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Natureza
Marcos B. de Carvalho, Dicionário da Terra.
Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005. p. 338-341.
diante de uma questão mais complicada do que à primeira vista se supõe. Para confirmar
isso bastaria lembrar que as idealizações e imagens estereotipadas que costumam associar
ao natural apenas aparências florestais ou bucólicas, ritmos lentos ou suaves e sons
agradáveis, arriscam-se a excluir da natureza um bom número de componentes e de
características que igualmente lhe conferem realidade.
O fato é que muitos dos ingredientes da natureza, invariavelmente caracterizada por
situações de calma, ordenamento, criação e progresso, também se movem por velocidades
que nem em imaginação conseguimos alcançar: a luz se propaga a 300 mil km/s e o som a
340 m/s, por exemplo. O Universo, com todas as suas galáxias, sua infinidade de astros,
estrelas e sistemas solares, muito possivelmente se originou do caos e de liberação
descontrolada da energia provocada por uma grande explosão — Big Bang — ocorrida há
15 bilhões de anos. E se quiséssemos apenas ilustrar com a própria dinâmica da natureza
terrestre esses componentes velozes, destruidores e omitidos nas definições idealizadas do
natural, bastaria lembrar o papel que os movimentos das placas tectônicas (os “fragmentos”
de uma crosta totalmente fraturada) exerceram, e exercem, na conformação das grandes
paisagens em todos os continentes, moldando feições de costas, arrasando montanhas e
erguendo cordilheiras, ou, então, poderíamos ainda mencionar as correntes de convecção
presentes nas camadas subterrâneas do planeta, cujas energias produzidas, comparáveis
apenas àquelas que seriam promovidas por gigantescas explosões nucleares, são, em última
análise, as responsáveis por muitos dos principais e grandes movimentos que se verificam
na superfície da Terra.
Como se vê, natureza é uma totalidade complexa que além de aberta às novidades e
aos novos integrantes produzidos pelo fluxo do tempo, contempla em sua dinâmica ou em
sua composição todas as partes ou processos costumeiramente tidos como pólos
excludentes ou em radical oposição, tais como: ordem e desordem, velocidade e lentidão,
silêncio e ruído, micro e macro, destruição e construção, orgânico e inorgânico, natural e
cultural. As definições mais comuns de natureza, no entanto, costumam editar a concepção
dessa totalidade, excluindo ou omitindo partes dos pólos, segundo os interesses e as
capacidades cognitivas dos agrupamentos humanos que as formulam.
Contextos histórico-sociais e os esquemas de vida predominantes em cada da época
e em cada sociedade, com suas correspondentes visões de mundo, é que têm conduzido os
critérios dessas edições, projetando no chamado mundo natural a ordem e os exemplos que
se quer ver seguidos nos comportamentos humanos, ou as justificativas para as posturas
socialmente aceitas e adotadas. Assim, se em determinado momento os recursos que nos
cercam são vistos como fontes inesgotáveis de matérias-primas para a acumulação
econômica, então a idéia da natureza como selva desordenada prevalecerá, pois ao ser
humano (pelo menos para alguns deles) caberá o privilégio de ordenar, domesticar e até
mesmo converter todos os seres e elementos do mundo selvagem, incluindo alguns
agrupamentos humanos, como já aconteceu nos séculos XV e XVI. Contudo, se em outro
momento, como nos séculos XVIII e XIX, o caos e a desordem ameaçam se implantar nas
sociedades, e idéias revolucionárias de transformação, de igualdade entre as pessoas e de
subversão nos costumes são difundidas, então a natureza passa a ser utilizada como o meio
de conter os ímpetos, como o lugar da “ordem e do progresso” cujo exemplo indica o
caminho a ser socialmente seguido: natural, sem convulsões, com aceitação das imposições
etc.
A eficácia desses discursos que concebem a natureza como uma espécie de modelo
e de padrão para o próprio comportamento social, depende, paradoxalmente, da aceitação
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Indicações Bibliográficas:
PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. A Nova Aliança. Brasília: UNB, 1997.
COLLINGWOOD, R. G. Ciência e Filosofia, A Idéia de Natureza. Lisboa: Ed. Presença.
CARVALHO, M. B. O que é natureza. São Paulo: Brasiliense, 1994.