You are on page 1of 1030

ANAIS

ISBN 978-85-5697-925-4
EVANDRO DOS SANTOS
HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO
JAILMA MARIA DE LIMA
MARIA ALDA JANA DANTAS DE MEDEIROS
MATHEUS BARBOSA SANTOS
(organizadores)

ANAIS DO VIII ENCONTRO ESTADUAL DE


HISTÓRIA DA ANPUH-RN E XIV SEMANA
DE ESTUDOS HISTÓRICOS DO CERES-
UFRN: A HISTÓRIA E O FUTURO DA
EDUCAÇÃO NO BRASIL

ISBN 978-85-5697-925-4

CAICÓ
2019
SUMÁRIO
O EVENTO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................................................................... 4
EQUIPE ORGANIZADORA DO EVENTO ..................................................................................................................................... 5
PROGRAMAÇÃO............................................................................................................................................................................................. 7
MESAS REDONDAS .................................................................................................................................................................................. 10
SIMPÓSIOS TEMÁTICOS ....................................................................................................................................................................... 17
MINI CURSOS .................................................................................................................................................................................................27

TEXTOS COMPLETOS DOS SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

1 - HISTÓRIA ORAL/AUDIOVISUAL: UMA POSSIBILIDADE DE PROPOSTA METODOLÓGICA


PARA O TEMPO PRESENTE ..................................................................................................................................................... 29
2 - HISTÓRIA DAS MULHERES: DIÁLOGOS E PERSPECTIVAS .........................................................................40
3 - PROFHISTÓRIA: CAMINHOS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA ........................................ 101
4 - ÍNDIOS NA HISTÓRIA: TEMAS E PERSPECTIVAS NO ENSINO E PESQUISA
(PERÍODO COLONIAL AOS DIAS ATUAIS) ......................................................................................................................... 126
5 - A COLONIZAÇÃO EM MOVIMENTO: COLONOS E REINÓIS NA EXPANSÃO DO IMPÉRIO
(AMÉRICA PORTUGUESA, SÉCULOS XVII-XVIII) .................................................................................................. 176
6 - HISTÓRIA DOS ESPAÇOS, PRÁTICAS, TEORIAS E HISTORIOGRAFIA ............................................ 320
7 - CULTURA E ESPAÇOS DE PODER NO MUNDO ANTIGO............................................................................ 429
8 - MEMÓRIA, ORALIDADE E HISTÓRIA POLÍTICA ................................................................................................... 461
9 - HISTÓRIA DAS PRÁTICAS DE CURA NO BRASIL .............................................................................................. 533
10 - A HISTÓRIA E EDUCAÇÃO NO BRASIL: HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E EXPERIÊNCIAS DE
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO ...................................................................................................... 554
11 - BIOGRAFIAS E HISTÓRIA: A CONSTRUÇÃO DE VIDAS
E O TRABALHO DO HISTORIADOR ................................................................................................................................... 681
12 - O PATRIMÔNIO CULTURAL EM LUGAR DE FRONTEIRA: HISTÓRIA,
EDUCAÇÃO, ARQUITETURA, ANTROPOLOGIA, TURISMO, GEOGRAFIA
E OUTRAS ÁREAS CORRELATAS ..................................................................................................................................... 697
14 - POLÍTICA, HISTÓRIA E MÍDIAS: O OFÍCIO DO HISTORIADOR
NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO ......................................................................... 793
15 - SERTÕES: NARRATIVAS E FRONTEIRAS.............................................................................................................. 827
16 - RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES: HIBRIDAÇÕES E PERMANÊNCIAS ............................................. 867
17 - O BRASIL IMPÉRIO: TRAMAS, CONEXÕES E OUTRAS HISTÓRIAS ................................................ 924
18 - HISTÓRIA E IMPRENSA: PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SABER ................................................... 937
3

APRESENTAÇÃO
O VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN teve como tema A História e o
futuro da Educação no Brasil, seguindo a orientação da temática aprovada na última
Assembleia Geral da ANPUH-Brasil, que teve lugar em Brasília, durante o XXIX Simpósio
Nacional de História, realizado no mês de julho do corrente ano.
O evento foi realizado no Campus de Caicó, do Centro de Ensino Superior do Seridó
(CERES), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no período de 03 a 06 de
julho de 2018, conjuntamente com a XIV Semana de Estudos Históricos do CERES, seguindo
a dinâmica de parceria da ANPUH-RN com as instituições de ensino superior que sediam os
encontros estaduais.
A programação, composta de conferências, mesas redondas, minicursos e simpósios
temáticos, ofereceu um panorama de discussões sobre as questões que envolvem a relação
entre História e Educação nos dias de hoje. Os anais aqui publicados condensam os textos
completos dos trabalhos apresentados em simpósios temáticos, cuja responsabilidade pela
ortografia, redação e opinião são de completa responsabilidade dos respectivXs autorXs.

Os organizadores

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
4

EQUIPE ORGANIZADORA DO EVENTO

COMISSÃO GESTORA LOCAL


Prof. Evandro dos Santos – CERES-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof. Helder Alexandre M. de Macedo – CERES-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof.ª Jailma Maria de Lima – CERES-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018

COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Abrahão Sanderson Nunes Fernandes da Silva – CERES-UFRN
Prof. Evandro dos Santos – CERES-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof. Helder Alexandre M. de Macedo – CERES-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof. Marcílio Lima Falcão – UERN -Mossoró – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof. Mariano de Azevedo Júnior – UnP-Natal – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof. Rosenilson da Silva Santos – UERN-Assu – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof. Thiago Alves Dias – CERES-UFRN
Prof.ª Adriana Cristina da Silva Patrício – SEEC/RN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof.ª Airan dos Santos Borges – CERES-UFRN
Prof.ª Andreza de Oliveira Andrade – UERN-Assu – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof.ª Carmen Margarida Oliveira Alveal – CCHLA-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof.ª Jailma Maria de Lima – CERES-UFRN – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof.ª Juciene Batista Félix Andrade – CERES-UFRN
Prof.ª Lívia Brenda Silva Barbosa – Diretoria ANPUH 2016-2018
Prof.ª Sarah Luna de Oliveira – CERES-UFRN

COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Almir Félix Batista de Oliveira – PPGTUR/UFRN
Prof. André Victor Cavalcanti Seal da Cunha – UERN
Prof. Arthur Luís de Oliveira Torquato – IFRN
Prof. Arthur Rodrigues Fabrício
Prof. Carlos Eduardo Martins Torcato – UERN
Prof. Evandro dos Santos – UFRN
Prof. Francisco Fabiano de Freitas Mendes – UERN
Prof. Genilson de Azevedo Farias – PPGCS/UFRN
Prof. Haroldo Loguercio Carvalho – UFRN
Prof. Helder Alexandre M. de Macedo – UFRN
Prof. João Fernando Barreto de Brito – PPGH/UFRJ
Prof. Joel Carlos de Souza Andrade – UFRN
Prof. Lemuel Rodrigues da Silva – UERN
Prof. Lígio José de Oliveira Maia – UFRN
Prof. Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins – UERN
Prof. Lourival Andrade Junior – UFRN
Prof. Marcílio de Lima Falcão – UERN
Prof. Marcondes Alexandre da Silva
Prof. Mariano de Azevedo Júnior – UnP
Prof. Paulo Rikardo Pereira Fonseca da Cunha – IFRN
Prof. Paulo Vitor Sauerbronn Airaghi
Prof. Rafael Oliveira da Silva – Rede Privada de Ensino Básico – Natal/RN
Prof. Renato Amado Peixoto –UFRN
Prof. Rodrigo Ceballos – UFCG
Prof. Rosenilson da Silva Santos – UERN
Prof. Ruan Kleberson Pereira da Silva
Prof. Thiago Alves Dias –UFRN

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
5

Prof.ª Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto – SEEC/RN


Prof.ª Andreza de Oliveira Andrade – UERN
Prof.ª Carmen Margarida Oliveira Alveal – UFRN
Prof.ª Jailma Maria de Lima – UFRN
Prof.ª Juliana Alves de Andrade – UFRPE
Prof.ª Maiara Juliana Gonçalves da Silva – UFRN
Prof.ª Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRN
Prof.ª Vanda Fortuna Serafim – UEM
Prof.ª Vanessa Spinosa – UFRN

APOIO TÉCNICO
Gabriel Barreto – Secretaria
Joás Jones de Sousa Medeiros – Suporte de Informática
Lucas Thiago Araújo de Medeiros – Secretaria
Maria Alda Jana Dantas de Medeiros – Secretaria
Matheus Barbosa Santos – Secretaria

IDENTIDADE VISUAL DO EVENTO


Custódio Medeiros

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
6

PROGRAMAÇÃO

TERÇA-FEIRA – 03 JULHO DE 2018


HORÁRIO EVENTO LOCAL
08:00h às Laboratórios de
CREDENCIAMENTO
18:30h História
13:00h às Salas de Aula dos
Minicursos
17:00h Blocos D
Solenidade de Abertura Conferência de Abertura: A importância da
pesquisa e do ensino de História no século XXI
19:00h às Conferencista: Prof.ª Dr.ª Joana Maria Pedro – Departamento de
Auditório do CERES
21:00h História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
Presidente da ANPUH-BR
Adriana Cristina da Silva Patrício - SME/Natal

QUARTA-FEIRA, 04 DE JULHO DE 2018


HORÁRIO EVENTO LOCAL
07:30h às Laboratórios de
Credenciamento
18:30h História
07:30h às Salas de Aula dos
Minicursos
09:30h Blocos D
12:00h às
Intervalo –
14:00h
Mesas Redondas
MR 1 - A legitimação religiosa face ao Estado –
os casos do Espiritismo e do Santo Daime
Andre Victor Cavalcanti Seal da Cunha – Professor do DEHIS-UERN
09:45h às – Mossoró Bloco de Aulas D
11:45h Carlos Eduardo Martins Torcato – Professor do DEHIS-UERN – Sala D2
Mossoró
Adriana Gomes – Professora de História da SEEDU/RJ
Moderação:Prof.ª Lívia Brenda Silva Barbosa - UERN
MR 2 – A produção historiográfica no Rio Grande do Norte (1902-
1938)
Raimundo Pereira Alencar Arrais – Professor do DEHIS-CCHLA e
09:45h às PPGH-UFRN Auditório da Pós-
11:45h Bruno Balbino Aires da Costa – Professor do IFRN Graduação
Durval Muniz de Albuquerque Junior – Professor do DEHIS-CCHLA e
PPGH-UFRN
Moderação: Prof. Evandro dos Santos - UFRN
MR 3 – Formação de professores de História no Brasil:
história,historiografia e construções atuais
Aryana Lima Costa – Professora do DEHIS-UERN – Mossoró
09:45h às
Juliana Alves de Andrade – Professora do DE/UFRPE Anfiteatro do CERES
11:45h
Margarida Maria Dias de Oliveira – Professora do DEHIS-CCHLA e
PPGH-UFRN
Moderação: Prof. Mariano de Azevedo Júnior - UnP

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
7

QUARTA-FEIRA, 04 DE JULHO DE 2018


HORÁRIO EVENTO LOCAL
Salas de Aula do
Bloco A, B e D
14:00h às
Simpósios Temáticos Anfiteatro do CERES
18:00h
Anfiteatro da Pós-
Graduação
18:00h às
Bate-papo com Autores e Lançamento de Livros Anfiteatro do CERES
19:30h
Mesas Redondas
MR 4 – Leis 10.639/03 e 11.645/08: temas, problemas e
perspectivas no Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e
Indígena no Brasil
19:30 às
Lígio José de Oliveira Maia – Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH- Anfiteatro do CERES
21:30h
UFRN
Edson Hely Silva – Professor do DEHIS-UFPE
Prof. José Pereira de Souza Júnior - UFRN
MR 5 – Patrimônio Cultural interconectando áreas de pesquisa:
História, Geologia, Turismo
19:30 às Auditório da Pós-
Almir Félix Batista de Oliveira – Pós-doutorado – PPGTUR-UFRN
21:30h Graduação
Roberto Airon Silva – Professor do DEHIS-CCHLA-UFRN
Moderação: Prof. Thiago Alves Dias - UFRN
MR 6 – Sertões: narrativas e fronteiras
Helder Alexandre Medeiros de Macedo – Professor do DHC-CERES e
PPGH-UFRN
19:30 às Ricardo Alexandre Santos de Sousa – Professor do DEHIS-UESB – Bloco de Aulas D
21:30h Campus Vitória da Conquista Sala D2
Evandro dos Santos – Professor do DHC-CERES-UFRN
Moderação: Joel Carlos de Souza Andrade – Professor do DHC-
CERES-UFRN

QUINTA-FEIRA, 05 DE JULHO DE 2018


HORÁRIO EVENTO LOCAL
07:30h às Laboratórios de
Credenciamento
18:30h História
07:30h às Salas de Aula dos
Minicursos
09:30h Blocos D
Mesas Redondas
MR 7 – Religiões e religiosidades na composição da cultura
brasileira
09:45h às
Lourival Andrade Júnior – Professor do DHC-CERES-UFRN Anfiteatro do CERES
11:45h
Vanda Fortuna Serafim – Professora do DEHIS-UEM
Ane Luise Silva Mecenas Santos – Doutora em História – UNISINOS
MR 8 – Colonização e economia: espaços, agentes e instituições
09:45h às ultramarinas nos séculos XVI a XVIII Auditório da Pós-
11:45h Thiago Alves Dias – Professor do DHC-CERES-UFRN Graduação
Rodrigo Ricupero – Professor do DEHIS-USP

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
8

QUINTA-FEIRA, 05 DE JULHO DE 2018


HORÁRIO EVENTO LOCAL
Gustavo Acioli Lopes – Professor do DEHIS-UFRPE
Moderação: Carmen Margarida Oliveira Alveal - Professora do
DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN
MR 9 – Ensino de História Antiga e a educação do futuro: novas
perspectivas
Marcia Severina Vasques – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-
09:45h às UFRN Bloco de Aulas D
11:45h Lyvia Vasconcelos Baptista – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH- Sala D2
UFRN
Airan dos Santos Borges – Professora do DHC-CERES-UFRN
Regina Maria da Cunha Bustamante – Professora do DEHIS-UFRJ
12:00h às
Intervalo –
14:00h
Salas de Aula do
Bloco A, B e D
14:00h às
Simpósios Temáticos Anfiteatro do CERES
18:00h
Anfiteatro da Pós-
Graduação
19:00h às
Assembleia Geral da ANPUH-RN Anfiteatro do CERES
21:00h

SEXTA-FEIRA, 06 DE JULHO DE 2018


HORÁRIO EVENTO LOCAL
07:30h às Laboratórios de
Credenciamento
11:30h História
07:30h às Salas de Aula dos
Reunião dos GTs
09:45h Blocos D
Solenidade de Encerramento
Conferência de Encerramento: Conservadorismo, educação e
10:00h às
Ensino de História. Auditório do CERES
12:00h
Conferencista: Fernando Penna - Universidade Federal Fluminense
Profª. Juciene Batista Félix Andrade - UFRN
12:00h às
Intervalo –
14:00h
Salas de Aula do
Bloco A, B e D
07:30h às
Simpósios Temáticos Anfiteatro do CERES
09:00h
Anfiteatro da Pós-
Graduação
19:00h às
Confraternização A definir
22:00h

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
9

MESAS REDONDAS

MR 1 – A LEGITIMAÇÃO RELIGIOSA FACE AO ESTADO – OS CASOS DO ESPIRITISMO E DO


SANTO DAIME

EXPOSITORES
Andre Victor Cavalcanti Seal da Cunha - Professor do DEHIS-UERN – Mossoró
Carlos Eduardo Martins Torcato - Professor do DEHIS-UERN – Mossoró
Adriana Gomes - Professora de História da SEEDU/RJ

MODERAÇÃO
Prof.ª Lívia Brenda Silva Barbosa - UERN

EMENTA
A história da religião e das práticas religiosas tem uma trajetória bastante consolidada no
campo da historiografia brasileira, com Grupo de Trabalho (GT) funcionando em âmbito
nacional, revistas científicas temáticas (Revista Brasileira de História das Religiões) e
eventos internacionais próprios. É no interior desse grande campo que essa Mesa Redonda
se insere, buscando trazer ao público perspectivas diversificadas e inovadoras, em um
contexto de perplexidade com o avanço do fundamentalismo religioso e o desafio que ele
impõe ao estado laico e democrático. O debate inicia com a Profª Drª Adriana Gomes, que
apresentará uma reflexão sobre a relação do judiciário com as religiosidades proibidas no
Código Penal de 1890, particularmente, a praxis espírita. A atuação do juiz Francisco José
Viveiros de Castro, ligado à Escola Positiva do Direito, foi importante na legitimação do
Espiritismo como uma prática religiosa no Brasil. O Profº. Drº André Victor Cavalcanti Seal
da Cunha seguirá debatendo a legitimação do Espiritismo no Brasil, porém através da
exposição da trajetória do médico cearense Adolfo Bezerra de Menezes. As suas doutrinas,
apresentadas na forma de romances, procuraram criar uma configuração religiosa particular
para o Espiritismo kardequiano, um Espiritismo à Brasileira com fortes tonalidades
terapêuticas. A relação do espiritismo com a justiça e sua construção social em busca de
legitimidade social será comparada com outro fenômeno religioso tipicamente brasileiro: as
religiões cristãs ayahusqueiras, também conhecidas como religião do Santo Daime. O Profº
Drº Carlos Eduardo Martins Torcato fará uma comparação com o caso espírita, mostrando
que essa religião passou por um período de perseguição pelo Estado, pois ela era
considerada uma prática religiosa heterodoxa indesejada para a nação. Gradativamente,
entretanto, passou por um processo de legitimação que desafiou a política de guerra às
drogas no seu auge, tornando-se um caso original de culto com uso de enteógenos
legalizado; hoje esse culto se expande para o mundo inteiro, muito devido às suas
potencialidades terapêuticas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
10

MR 2 – A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA NO RIO GRANDE DO NORTE (1902-1938)

EXPOSITORES
Raimundo Pereira Alencar Arrais - Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN
Bruno Balbino Aires da Costa - Professor do IFRN
Durval Muniz de Albuquerque Junior - Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

MODERAÇÃO
Prof. Evandro dos Santos - UFRN

EMENTA
Esta mesa se propõe refletir e debater a produção historiográfica do Rio Grande do Norte
nas primeiras décadas do século XX, a partir de três eixos: a produção do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte (fundado em 1902), as obras de natureza historiográfica
de Luís da Câmara Cascudo e a produção historiográfica local voltada especificamente para
o tema da cidade. Nas primeiras décadas do século XX, as oligarquias estaduais investiram
na formulação de uma memória norte-rio-grandense, associando essa memória à construção
de projetos identitários, procurando definir um lugar para a unidade federativa Rio Grande
do Norte dentro de uma memória histórica nacional. Para tanto, adotaram as estratégias
seguintes, sobre as quais voltaremos nossa análise: a escrita da história, a comemoração e a
biografia. O gênero biográfico foi praticado, entre os anos 1927 e 1938, também por Luís da
Câmara Cascudo, que buscou inspiração no modelo de historiografia estabelecido pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, elegendo como personagens principais algumas
figuras que tiveram proeminência na história do Império brasileiro. Nesse sentido, dois
aspectos das biografias elaboradas por Cascudo requerem uma reflexão: a estratégia que
consistia em explorar o gênero biográfico como caminho para a compreensão de épocas
históricas e a visão saudosista que ele revela ao longo de suas obras. No cruzamento dessas
linhas – as demandas dos grupos dominantes locais, as circunstâncias históricas concretas
dentro das quais os historiadores produziram suas obras, os imperativos de construção da
memória e os modelos teóricos e metodológicos disponíveis para servir ao trabalho do
historiador – pode-se perceber o lugar secundário que a produção historiográfica local
reservou à cidade, os limites e as possibilidades locais para o estudo do passado da cidade,
em perspectiva histórica, sem que a cidade fosse absorvida por uma história política ou por
uma história administrativa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
11

MR 3 – FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA NO BRASIL: HISTÓRIA,


HISTORIOGRAFIA E CONSTRUÇÕES ATUAIS

EXPOSITORAS
Aryana Lima Costa - Professora do DEHIS-UERN – Mossoró
Juliana Alves de Andrade - Professora do DE/UFRPE
Margarida Maria Dias de Oliveira - Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

MODERAÇÃO
Prof. Mariano de Azevedo Júnior - UnP

EMENTA
Diante das atuais circunstâncias sociais e políticas que desafiam a atuação dos historiadores
no país, os debates desta mesa pretendem tomar a formação de professores como pretexto
para pensar os caminhos pelos quais a História atualmente praticada pode responder às
demandas que se colocam diante da categoria de seus profissionais. Isto se traduz em uma
discussão referente a como pensamos a história de nossa própria formação e no valor que a
sala de aula universitária pode agregar à história da historiografia assim como a questões
mais diretas com o tempo presente, como a formulação de políticas públicas que considerem
uma integralidade entre educação básica e superior e a responsabilidade incontornável da
universidade perante a sociedade, o que demanda um cuidado constante com a atualidade e
a relevância das práticas de formação. Abarcando diferentes temporalidades, e passando por
áreas como currículo, relação escola/universidade, novas tecnologias e desafios da
profissão, pretende-se utilizar esse espaço para congregar reflexões – da mesa e do público
em geral – sobre o que se espera e o que é possível de ser feito pelos profissionais de
História.

MR 4 – LEIS 10.639/03 E 11.645/08: TEMAS, PROBLEMAS E PERSPECTIVAS NO ENSINO


DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA NO BRASIL

EXPOSITORES
Lígio José de Oliveira Maia - Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN
Edson Hely Silva - Professor do DEHIS-UFPE
Prof. José Pereira de Souza Júnior – UFRN

EMENTA
Desde a homologação das Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, as escolas públicas e privadas
de Educação Básica no Brasil, são obrigadas a implantar e promover o estudo da História e
Cultura afro-brasileira e indígena. Entretanto, o desconhecimento ou mesmo a rejeição
destes dispositivos legais, inclusive, por parte dos docentes, tem dificultado sua efetivação.
Muitos são os desafios apresentados quanto à inclusão dos temas da história e cultura afro-
brasileiras e da história e culturas indígenas nos currículos escolares, ainda mais quando se
constata a pouca produção de material didático específico (livros didático e paradidático,
vídeos, jogos etc.) coerente às diferenças étnico-raciais visíveis na atualidade, como também
a escassez de cursos de formação continuada para professores das redes estadual e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
12

municipal quanto a essas mesmas demandas. Assim, o objetivo desta Mesa é apresentar
reflexões de experientes professores/pesquisadores que vêm discutindo a relação entre
Ensino e Pesquisa quanto aos temas da história indígena e história afro-brasileira, tanto em
suas pesquisas acadêmicas quanto em distintos materiais didáticos e metodologias de
ensino. Com isso, espera-se a ampliação do debate quanto à efetivação das Leis nº
10.639/2003 e nº 11.645/2008 e os desafios que envolvem a compreensão ética e científica
dessas importantes conquistas dos diversos grupos étnicos no Brasil. Esta Mesa é uma
proposta do GT – Índios na História, criado no último encontro estadual da ANPUH-RN, em
2016.

MR 5 – O PATRIMÔNIO CULTURAL INTERCONECTANDO ÁREAS DE PESQUISA: HISTÓRIA,


GEOLOGIA, TURISMO

EXPOSITORES
Almir Félix Batista de Oliveira - Pós-doutorando – PPGTUR/UFRN
Roberto Airon Silva – Professor do DEHIS-CCHLA-UFRN

MODERAÇÃO
Prof. Thiago Alves Dias - UFRN

EMENTA
Essa proposta de mesa redonda tem por objetivo discutir o papel do Patrimônio Cultural
como objeto de pesquisa que interconecta diferentes áreas de pesquisa como a História, a
Geologia e o Turismo. A temática do Patrimônio Cultural ganhou bastante relevância em fins
do século passado e início desse, constituindo se não como um campo consolidado de
pesquisa, em rápido processo de consolidação e para comprovarmos isso basta uma simples
pesquisa nos Bancos de Teses e Dissertação de algumas universidades brasileiras ou o da
própria CAPES para encontrarmos os mais diversos trabalhos abordando a temática. Em
termos da área de História a existência de um Grupo de Trabalho (GT) Nacional tratando
desse assunto e observando as suas diversas singularidades, assim como os diversos STs
participantes dos últimos Simpósios Nacionais da ANPUH-BR demonstram também a
importância do mesmo. Nesse sentido gostaríamos de propor a mesa composta pelo
professor Dr. Almir Félix Batista de Oliveira, pelo Prof. Dr. Marcos Antônio Leite do
Nascimento e pelo Prof. José da Paz Dantas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
13

MR 6 – SERTÕES: NARRATIVAS E FRONTEIRAS

EXPOSITORES
Helder Alexandre Medeiros de Macedo – Professor do DHC-CERES
Ricardo Alexandre Santos de Sousa – Professor do DEHIS-UESB
Evandro dos Santos – Professor do DHC-CERES-UFRN

MODERAÇÃO
Joel Carlos de Souza Andrade – Professor do DHC-CERES-UFRN

EMENTA
A categoria sertão presta-se fundamentalmente ao exame da diferença. Entendido como
lugar (habitado ou não), em sentido espacial ou histórico, o sertão, como visto anteriormente,
foi constantemente algo dito para o Outro. Neste sentido, e por diversos aspectos e
desdobramentos de sua obra, François Hartog é referência preponderante na estruturação
teórica desta área de concentração em especial. Em O espelho de Heródoto, publicado
originalmente em 1980, o historiador francês afirma: “dizer o outro é enuncia-lo como
diferente – é enunciar que há dois termos, a e b, e que a não é b. Por exemplo: existem gregos
e não-gregos. Mas a diferença não se torna interessante senão a partir do momento em que
a e b entram num mesmo sistema” (HARTOG, 1999, p. 229). Em seu estudo sobre a clássica
obra de Heródoto, Hartog constrói uma importante reflexão que leva em conta a
antropologia histórica, o que seguramente permite sua apropriação para outros objetos,
temáticas e áreas. Em diferentes contextos históricos e historiográficos, o sertão foi dito e
visto como o Outro. Na língua do Estado ou dos conquistadores diversos, o não conhecido, o
não verificado, o não dominado era chamado de “sertões”. Não há dúvida de que a partir do
momento em que se radicalizaram as diferenças, sobremaneira, com as grandes navegações
e a conquista política das Américas, da África e da Ásia pelos portugueses, cada vez mais a
categoria “sertões” passou a compor certo sistema, na adaptação moderna, entre o
submetido ao poder dos Estados absolutistas ou, posteriormente, grandes potências, e o que
a eles escapava de alguma forma. A mesa redonda proposta, pois, radica na discussão de
diferentes pontos de vista sobre a categoria sertão, tomando como referência os lugares de
colonização lusófona.

MR 7 – RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES NA COMPOSIÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA

EXPOSITORES
Lourival Andrade Júnior – Professor do DHC-CERES-UFRN
Vanda Fortuna Serafim – Professora do DEHIS-UEM
Ane Luise Silva Mecenas Santos – Doutora em História – UNISINOS

EMENTA
Esta mesa redonda propõe a discussão sobre as religiões e religiosidades que possibilitaram
a formação de um Brasil diverso, em que as manifestações das crenças se tornaram híbridas
e se amalgamaram na cultura brasileira. Mesmo a religião oficial do Estado, o catolicismo
romano, precisou se adaptar as condições humanas que se constituíram no país, com a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
14

chegada de negros vindos de diversas partes da África, sobretudo sulsaariana, mas também
necessitou entender o panteão de indígenas que aqui já habitavam. É neste turbilhão de
gestos, ritos e liturgias que surgiram religiões brasileiras e/ou afro-brasileiras, entre elas os
Candomblés, as Umbandas e os catolicismos em suas diversas modalidade, tanto oficiais
como não oficiais. É neste contexto que novos paradigmas surgiram e num momento de
tanta intolerância é necessário a discussão da historicidade destas práticas e suas dinâmicas
de ressignificações e resistências.

MR 8 – COLONIZAÇÃO E ECONOMIA: ESPAÇOS, AGENTES E INSTITUIÇÕES


ULTRAMARINAS NOS SÉCULOS XVI A XVIII

EXPOSITORES
Thiago Alves Dias – Professor do DHC-CERES-UFRN
Rodrigo Ricupero – Professor do DEHIS-USP
Gustavo Acioli Lopes – Professor do DEHIS-UFRPE

MODERAÇÃO
Carmen Margarida Oliveira Alveal – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

EMENTA
Relevante dimensão da produção historiográfica brasileira, a história econômica do período
colonial têm se renovado nos últimos anos ao ter alargado seu espoco de investigação,
notadamente, no que concerne sua aproximação com a história conectada, a nova história
política e dos poderes, a história cultural, a história atlântica e mais recentemente, com as
perspectivas da história dita global. Em que pese a insistente dicotomização entre modelos
e possíveis ‘escolas’ tão propaladas nos últimos 10 anos na historiografia brasileira, fato é
que os estudos sobre a colonização europeia e seus impactos na formação dos estados
nacionais em nível mundial, sobretudo, nas Américas e em África, continua sendo pauta de
debate e com grande vigor teórico de análise, como vem sendo demonstrando, por exemplo,
nos recentes trabalhos de historiadores econômicos como Kenneth Pomeranz, Sven Beckert
ou Thomas Pikkety. Essa mesa visa apresentar debates atualizados no campo da história
econômica, tendo como foco os fatos e processos concernentes a expansão e as experiências
colonizadoras ibero-americanas, entre o início da Era Moderna e a Era das Revoluções.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
15

MR 9 – ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA E A EDUCAÇÃO DO FUTURO: NOVAS


PERSPECTIVAS

EXPOSITORES
Marcia Severina Vasques – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN
Lyvia Vasconcelos Baptista – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN
Airan dos Santos Borges – Professora do DHC-CERES-UFRN
Regina Maria da Cunha Bustamante – Professora do Instituto de História da UFRJ

EMENTA
O profissional da área de História Antiga, assim como o de outras áreas do conhecimento
histórico, tem discutido e aprimorado a sua atuação com vistas à melhoria do ensino, em seus
vários níveis, Fundamental, Médio e Superior, levando para a sala de aula as mais recentes
discussões conceituais e novas metodologias de ensino-aprendizagem. Entre a discussão
conceitual podemos citar a valorização do outro, pelo princípio da alteridade, temática em
voga nas Ciências Humanas e também no campo da Antiguidade. Quando estudamos, por
exemplo, categorias como bárbaros e não bárbaros (gregos ou romanos), trazemos o
discurso clássico para debate no mundo contemporâneo, fonte de onde bebeu a elite
intelectual do País (seja na época colonial, imperial ou republicana) e, durante um
considerável período de nossa história, os donos do poder. A percepção da alteridade, no
sentido de reconhecimento da existência de múltiplas experiências humanas que existiram
em várias partes do mundo, serve também para o enriquecimento intelectual dos alunos e
para o conhecimento da natureza e culturas humanas, tão diversas e ricas em seus vários
momentos históricos. Além de gregos e romanos, formadores do pensamento europeu,
dialogamos também com as experiências do Oriente e da África, áreas de intenso contato no
Mediterrâneo Antigo. Hoje sabemos que elementos mesopotâmicos estão presentes nos
poemas de Homero, que dialoga com a Epopeia de Gilgamesh, e que elementos que
encontramos nos escritos judaico-cristãos, base da religião cristã predominante no Brasil, já
estavam presentes também (ou mesmo anteriormente) na cultura suméria. Estes são apenas
alguns exemplos de nossa conexão com o mundo antigo. Em relação ao ensino-
aprendizagem novas formas de abordagem têm sido utilizadas, como a discussão da questão
de patrimônio (brasileiro e internacional), o uso de jogos didáticos em sala de aula e as novas
tecnologias midiáticas e o seu papel na educação do futuro. Estes são alguns dos elementos
que propomos debater e discutir na mesa-redonda.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
16

SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

ST 1 – HISTÓRIA ORAL/AUDIOVISUAL: UMA POSSIBILIDADE DE PROPOSTA


METODOLÓGICA PARA O TEMPO PRESENTE

COORDENADORES
Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto – SME/Parnamirim e SEEC/RN
Rafael Oliveira da Silva – Professor da rede privada de ensino básico e superior em Natal

RESUMO
Nas últimas décadas a história oral/audiovisual tem se expandido e ajudado a consolidar
pesquisas sobre o tempo presente. O trabalho com entrevistas, relatos de vida, dentre
outros, tem atingido não somente os historiadores, como também profissionais, acadêmicos
ou não, de outras áreas, o que aponta para o caráter interdisciplinar da fonte oral/audiovisual.
Essa tendência possivelmente se tornará cada vez mais evidente, já que estamos inseridos
em uma sociedade marcada pela comunicação imagética e pelas mensagens de áudio através
das redes sociais. Por isso mesmo, as produções de entrevistas com audiovisuais vêm se
tornando mais recorrentes e têm passado a compor importante fonte histórica. Diante disso,
nosso objetivo é reunir pesquisadores que vêm realizando pesquisas acadêmicas com
história oral/audiovisual, a fim de trocar experiências e discutir técnicas e formas de
abordagem diversificadas ao trabalhar a fonte oral/audiovisual.

ST 2 – HISTÓRIA DAS MULHERES: DIÁLOGOS E PERSPECTIVAS

COORDENADORES
Genilson de Azevedo Farias – Doutorando – PPGCS/UFRN
Maiara Juliana Gonçalves da Silva – Professora da EJA/UFRN

RESUMO
O presente simpósio temático tem como proposta reunir pesquisadoras e pesquisadores
dedicados aos estudos sobre mulheres promovendo um intercâmbio intelectual a partir de
diferentes e múltiplas perspectivas que envolvam a temática em suas mais variadas
temporalidades e fontes. Entendemos como História das Mulheres, não apenas as histórias
delas, mas também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da educação, da
imprensa, da literatura, do seu corpo, da sua sexualidade, da violência (que sofreram e que
praticaram), da sua luta, da sua conquista, da sua trajetória de emancipação, do feminismo,
dos seus sentimentos, dos seus amores, de seu cotidiano, de seus múltiplos extratos sociais
e das suas relações com os homens, reafirmando a ideia de que “escrever sobre a história
das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam (estão) confinadas” (PERROT, 2015).
Por isso, convidamos todas e todos interessados a compartilharem suas produções sobre o
campo de pesquisa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
17

ST 3 – PROFHISTÓRIA: CAMINHOS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA

COORDENADORES
Haroldo Loguercio Carvalho – Professor do DEHIS-CCHLA e PPGEH-UFRN
Vanessa Spinosa – Professora do DHC-CERES e PPGEH-UFRN

RESUMO
O PROFHISTÓRIA busca a formação continuada de professores de História voltados para a
inovação na sala de aula, ao mesmo tempo em que, de forma crítica e responsável, possam
refletir acerca de questões relevantes sobre diferentes usos da informação de natureza
histórica presentes contemporaneamente na sociedade. Nesse sentido, a proposta deste
Simpósio Temático é o de recepcionar pesquisas em andamento, dentro da perspectiva de
refletir sobre as práticas docentes no ambiente escolar. O interesse é o de discutir sobre
investigações em diversos níveis (graduação e pós-graduação) que tenham como objetivo
desenvolver estratégias com aplicação direta na Educação Básica, como oficinas, cartilhas,
aplicativos, materiais didáticos, exposições, entre outros.

ST 4 – ÍNDIOS NA HISTÓRIA: TEMAS E PERSPECTIVAS NO ENSINO E PESQUISA (PERÍODO


COLONIAL AOS DIAS ATUAIS)

COORDENADOR
Lígio José de Oliveira Maia – Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

RESUMO
Desde a década de 1990, especialmente no Brasil, as pesquisas relacionadas aos povos
indígenas têm priorizado enfoques interdisciplinares, em especial com os campos da
antropologia e ciências sociais, enfatizando a agência ou a perspectiva desses povos na
História. Mais recentemente, a partir de demandas legais (LDB, art. 26-A, Lei nº 11.645/03)
também têm sido exigido dos docentes – de escolas públicas e privadas da Educação Básica
– um conhecimento específico quanto ao ensino da História e da Cultura indígenas. O objetivo
geral deste simpósio é então promover um diálogo aberto tanto com
pesquisadores/professores de universidades quanto com professores das redes estadual e
municipal de Ensino, com relação aos temas da história indígena e do indigenismo ao longo
da história do Brasil, do período colonial aos dias atuais, cujos objetivos específicos são:
tornar conhecida as temáticas e as pesquisas desenvolvidas e/ou em desenvolvimento;
apontar os desafios inerentes à efetivação da Lei n. 11.645/08 e ainda promover uma
discussão coletiva dessas atuais demandas no Ensino e na Pesquisa, no âmago da história
indígena. Este simpósio é uma proposta do GT – Índios na História, criado no último encontro
estadual da ANPUH-RN, em 2016.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
18

ST 5 – A COLONIZAÇÃO EM MOVIMENTO: COLONOS E REINÓIS NA EXPANSÃO DO


IMPÉRIO (AMÉRICA PORTUGUESA, SÉCULOS XVII-XVIII)

COORDENADORES
Rodrigo Ceballos – Professor da UACS/CFP/UFCG
Thiago Alves Dias – Professor do DHC-CERES-UFRN

RESUMO
Entre os séculos XVI e XVIII, o império português passou por grandes mudanças estruturais
e de consolidação de suas conquistas, alternando períodos de maior e menor centralização,
influenciados pelo direcionamento econômico e político que a Coroa portuguesa e outros
agentes buscavam imprimir. O período de conquista foi marcado por muitas guerras e
alianças com as populações de indígenas, e que culminou no estabelecimento das primeiras
povoações, vilas e cidades, com modelos de construção, arquitetura e ordenamento
transplantados da Europa, porém adaptados à realidade colonial. Os religiosos, por sua vez,
por meio da catequização, buscaram cristianizar essas populações, que possuíam sua própria
lógica religiosa e que acabaram por reconstruir o catolicismo ao seu modo. Para consolidar
o seu controle em regiões distantes e separadas por oceanos, a Coroa portuguesa
transplantou uma série de instituições políticas, econômicas, sociais e religiosas, e de rituais
administrativos, que conferiam um sentido de unidade ao Império. Estas instituições tinham
um campo vasto de atuação dentro da sociedade, identificado como sua área de jurisdição.
Da mesma forma, as festas e celebrações religiosas contribuíam para a afirmação do
catolicismo e de uma uniformidade, desejada deste os primórdios do período de conquista. O
objetivo deste Simpósio Temático, portanto, é discutir temáticas relevantes para o estudo do
período colonial brasileiro, abrangendo diferentes aspectos da sociedade e a variedade de
agentes sociais envolvidos.

ST 6 – HISTÓRIA DOS ESPAÇOS, PRÁTICAS, TEORIAS E HISTORIOGRAFIA

COORDENADORES
Evandro dos Santos – Professor do DHC-CERES-UFRN
Renato Amado Peixoto – Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

RESUMO
Nosso Simpósio visa proporcionar o debate e a troca de experiências investigativas entre
pesquisadores da História dos Espaços, procurando integrar os recursos humanos de nosso
Grupo de Pesquisa com integrantes e egressos do Programa de Pós-Graduação em História
da UFRN, assim como reunir estudantes e professores que se dediquem a esse enforque nos
demais cursos de história do Rio Grande do Norte. Privilegiam-se os estudos que tenham
como foco as diversas formações espaciais e identitárias na escala do local, regional,
nacional ou internacional; a produção e fabricação dessas formações em instituições,
organizações ou por grupos de intelectuais; a teorização dessas relações e a sua

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
19

apresentação historiográfica, bem como suas interações no campo político, historiográfico


ou religioso. Neste sentido, nosso Simpósio receberá trabalhos que reflitam sobre a teoria,
historiografia e/ou práticas espaciais ou identitárias fabricadas nos institutos
historiográficos e similares, locais ou nacionais e a sua relação com a política e o campo
histórico e espacial, assim como trabalhos que dedicam atenção à atuação de indivíduos,
imprensa e organizações civis e religiosas, tais como partidos, facções e correntes.
Receberemos também as reflexões acerca das ações e práticas relacionadas à história dos
espaços, notadamente os desdobramentos institucionais, políticos e sociais, que objetivem
perceber as matrizes de tais formulações, suas expressões concretas e suas permanências.

ST 7 – CULTURA E ESPAÇOS DE PODER NO MUNDO ANTIGO

COORDENADORES
Arthur Rodrigues Fabrício - Mestre em História – UFRN
Ruan Kleberson Pereira da Silva - Professor de História – SEEC/RN

RESUMO
Os estudos sobre o Mundo Antigo no âmbito da disciplina histórica têm despertado cada vez
mais interesse, tanto em nível nacional, quanto regional. No Rio Grande do Norte há um
crescente número de pesquisas sendo realizadas, nos mais diversos recortes e temáticas.
Neste sentido, compreendendo a importância dos espaços de debate e cooperação
acadêmica, este simpósio temático tem como objetivo reunir jovens pesquisadores e suas
produções, com o intuito de estimular a ampliação dos estudos na área, convidando-os a
refletir acerca das múltiplas relações que se estabelecem entre culturas e espaços de poder
nas sociedades do Mundo Antigo. Busca-se abarcar estudo sem torno da História da Cultura,
História Política, Cultura Material, História & Memória e História & Espaços, entre diversos
outros, que estejam voltados às Sociedades Antigas Orientais e Mediterrâneas, buscando
debater as representações, os valores, os conflitos, as espacialidades e as estruturas de
poder construídas em diferentes espacialidades e temporalidades, que relegaram ao
presente vestígios documentais advindos da Antiguidade que merecem e devem receber um
tratamento teórico-metodológico atento.

ST 8 – MEMÓRIA, ORALIDADE E HISTÓRIA POLÍTICA

COORDENADORES
Lemuel Rodrigues da Silva - Professor do DEHIS-UERN – Mossoró
Marcílio Lima Falcão - Professor do DEHIS-UERN – Mossoró

RESUMO
Nos dias 17 e 18 de dezembro de 2013 foi realizado nas dependências da Universidade
Estadual do Ceará (UECE) em Fortaleza, o I Colóquio de História Política, cujo objetivo foi a
reativação do GT- História Política. Na ocasião foram apresentadas e debatidas pesquisas
relacionadas às novas abordagens e problematizações que colocam a política como um lugar
de gestão do social e do econômico (Rémond, 2010). Além disso, as aproximações com outros
campos do saber têm favorecido profícuas reflexões sobre os movimentos sociais e suas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
20

temporalidades no que diz respeito às relações de força entre os sujeitos envolvidos, bem
como a análise de permanências e rupturas que estes movimentos propiciaram. Assim, ao
estreitar fronteiras, este simpósio temático tem como finalidade ser um espaço para o
debate em torna da relação entre memória, oralidade e a história política, uma vez em que as
críticas e transformações pelas quais a história política passou desde a primeira metade do
século XX contribuíram para sua renovação teórico-metodológica fato que nos leva a indagar
sobre a importância da memória e da oralidade para os estudos voltados a história política.
Nesse sentido, buscam-se refletir sobre as instituições, intelectuais, trabalhadores, partidos
políticos, líderes políticos, discursos, eleições e revoluções que propiciem o crescimento e
divulgação dos estudos sobre o passado.

ST 9 – HISTÓRIA DAS PRÁTICAS DE CURA NO BRASIL

COORDENADORES
Andre Victor Cavalcanti Seal da Cunha – Professor do DEHIS-UERN – Mossoró
Carlos Eduardo Martins Torcato – Professor do DEHIS-UERN – Mossoró

RESUMO
Esse Simpósio Temático é um espaço que busca articular interlocuções sobre como as
diversas práticas de cura se apresentam na história do Brasil. Essas práticas podem assumir
diversas facetas, pois dialogam com as representações culturais sobre as doenças e as
enfermidades. O fenômeno da cura se relaciona às formas de percepção sobre os males que
atingem indivíduos e comunidades, podendo evocar desde apropriações da esfera do divino
e do sobrenatural até as explicações científicas. Partimos do pressuposto que a cura envolve
aspectos do mundo da cultura, da sociedade e da institucionalidade. Nesse sentido, é
interesse particular desse simpósio discutir aspectos da cultura que envolvem as
representações e práticas de curar. Teremos assim amplas possibilidades temáticas, tais
como: a cultura popular e sua relação com as formas institucionais e oficiais da medicina
erudita; a trajetória de doentes e de curandeiros; a formação de políticas públicas de saúde e
de saneamento; a formação e atuação das especialidades médicas, desde as que atuam
diretamente no corpo doente (tais como sangradores e cirurgiões), como as que curam a
mente (a exemplo da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise); a utilização de remédios
populares; as práticas de cura relacionadas a diferentes matrizes religiosas; a história das
epidemias; dentre outros. O objetivo desse Simpósio Temático é congregar pesquisadores
de diferentes tendências temáticas e epistemológicas de forma a criar um perfil da pesquisa
histórica em saúde na região. Busca-se constituir um espaço coletivo de troca de saberes e
experiências de pesquisa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
21

ST 10 – A HISTÓRIA E EDUCAÇÃO NO BRASIL: HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E


EXPERIÊNCIAS DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO

COORDENADORAS
Juliana Alves de Andrade – Professora do DE/UFRPE
Margarida Maria Dias de Oliveira – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

RESUMO
Este ST se propõe a ser um espaço para apresentações de trabalhos que versem sobre a
história do ensino de história e da educação como campos que se alimentam mutuamente;
de reflexões sobre as produções que constituem os campos da história da educação e do
ensino de história, de relatos de experiências no chão da escola que constituem elementos
importantes da formação de professores e de concepções de tecnologias (jogos, vídeos,
sequências didáticas, cartilhas, guias, blogs, sites etc.) que operam com informações e
produção de conhecimentos históricos. Entendemos que as relações entre as várias formas
de produção do conhecimento histórico e a reflexão sobre elas é condição para construirmos
alternativas viáveis, democráticas e acopladas as demandas e realidades brasileiras e dos
locais onde atuamos e que, sem a troca de conhecimentos sobre essas variadas formas,
sujeitos históricos, funções e usos da história, é provável que nos mantenhamos nas
dicotomias ensino x pesquisa; produção x transmissão; história x pedagogia; academia x
sociedade. Daí, entendermos a necessidade de construir este espaço que conclame
professores, pesquisadores, graduandos a envidarem o debate.

ST 11 – BIOGRAFIAS E HISTÓRIA: A CONSTRUÇÃO DE VIDAS E O TRABALHO DO


HISTORIADOR

COORDENADORES
Paulo Rikardo Pereira Fonseca da Cunha – Professor do IFRN
Paulo Vitor Sauerbronn Airaghi – Mestre em História – UFRN

RESUMO
Este simpósio temático pretende agregar discussões sobre os estudos biográficos sobre
pessoas e/ou instituições. Serão aceitas tanto discussões que problematizem questões
teórico e metodológicas no tocante às biografias, quanto trabalhos centrados em trajetórias
de vida de indivíduos e/ou instituições, em suas interações com o mundo social. A biografia
se estabelece como um campo privilegiado para a análise do historiador, pois ela suscita o
debate sobre antigos e novos problemas do trabalho historiográfico: Qual a o papel do
indivíduo na história? Como se dão as relações entre os indivíduos e a sociedade? Qual a
importância das narrativas na construção do conhecimento histórico? O caráter criativo pode
estar presente no trabalho historiográfico? Quais as implicações metodológicas e teóricas
do uso de relatos memorialísticos e autobiográficos como fontes na produção de estudos
biográficos? A partir desses questionamentos, pode-se pensar que os indivíduos não são
inteiramente produtos, nem somente construtores da sociedade, eles estão em um
constante “vir a ser”, suas identidades se constituem em fluxos dinâmicos. Almeja-se que
esse simpósio se transforme em fórum propício para discussão de trabalhos voltados para

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
22

a particularização dos sujeitos. Pretende-se debater como um determinado sujeito se


particulariza em sua sociedade.

ST 12 – O PATRIMÔNIO CULTURAL EM LUGAR DE FRONTEIRA: HISTÓRIA, EDUCAÇÃO,


ARQUITETURA, ANTROPOLOGIA, TURISMO, GEOGRAFIA E OUTRAS ÁREAS CORRELATAS

COORDENADOR
Almir Félix Batista de Oliveira – Pós-doutorando – PPGTUR/UFRN

RESUMO
O presente simpósio temático tem por objetivo discutir o Patrimônio Cultural, tanto na sua
concepção material quanto imaterial, como um campo de pesquisa existente na fronteira ou
interconectando diversas áreas do conhecimento das ciências humanas, sociais e aplicadas.
Por esse motivo o simpósio aceitará trabalhos/pesquisas e experiências de sala de aula que
estejam sendo desenvolvidos em História, na Educação, na Antropologia, na Arquitetura, no
Turismo, na Geografia, nas Ciências Sociais, nas Políticas Públicas, na Biblioteconomia, na
Museologia, entre outras áreas, bem como nos Programas de Pós-Graduação Acadêmicos e
Profissionais das mesmas e que tenham o Patrimônio Cultural (material e imaterial), a
Educação Patrimonial como objeto central dos estudos.

ST 13 – HISTÓRIA POLÍTICA: IMPRENSA, CULTURA E MEMÓRIA NO NORDESTE


REPUBLICANO

COORDENADOR
Marcondes Alexandre da Silva - Professor de História – SEEC/RN

RESUMO
Este simpósio temático tem como proposta agregar pesquisadores que estudam a História
Política no Nordeste Republicano (1889 – 2018), por meio do estudo do poder, da cultura, da
memória, da imprensa e dos sujeitos sociais locais. Uma vez que, a imprensa vai ser um
sujeito social que irá contribuir para a construção de memórias locais. Almeja-se acrescentar,
além de historiadores, outros estudiosos das ciências humanas e sociais (geógrafos,
sociólogos e cientistas políticos) que tem pesquisas concluídas ou em andamento sobre
essas temáticas. Como também, estudos acerca das lembranças e os esquecimentos das
memórias silenciadas, vencidas, subterrâneas e manipuladas, vistas por meio da Nova
História Política, Social e Cultural. A partir de trabalhos que discutam o papel das famílias,
das parentelas, das oligar quias, das classes dos fazendeiros, dos industriais, dos
comerciantes, dos religiosos e alguns profissionais (médicos, farmacêuticos, advogados,
juízes, delegados), que expressam a força dos chefes políticos locais, ao personalizar o poder
ao assumir um cargo público em função do Estado, como se fosse proprietário do mesmo, no
qual, chega a convergir o público com o privado. Tais homens formam as elites locais,
regionais e até nacionais, a partir do poder econômico, jurídico, militar e simbólico. Assim,
esperam-se trabalhos que apresentem novas contribuições, a partir da criação dos espaços,
territórios e territorialidades, que são construídas e reconstruídas cotidianamente sobre

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
23

essa região, a partir do repensar a história local ou regional, na qual, se faz necessário, para
se aprofundar e ampliar o estudo do político no Nordeste Republicano.

ST 14 – POLÍTICA, HISTÓRIA E MÍDIAS: O OFÍCIO DO HISTORIADOR NA SOCIEDADE DA


INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO

COORDENADORES
Mariano de Azevedo Júnior – Professor de História – UnP
Arthur Luís de Oliveira Torquato – Professor do IFRN

RESUMO
Há décadas que intelectuais das ciências humanas e sociais se preocupam com a veiculação
de conteúdos políticos nos meios de comunicação contemporâneos. Podemos exemplificar
mencionando alguns marcos desse tipo de pensamento: nas décadas de 1960 e 1970 com as
reflexões da teoria crítica da sociedade, da chamada Escola de Frankfurt; na década de 1980,
com os trabalhos de Raymond Williams, que partem da teoria marxista para as
preocupações com as ideologias embutidas, por exemplo, no conteúdo televisivo (“Políticas
do Modernismo”); e a partir dos anos 90 até aqui, as preocupações com as redes de
informações na era digital através da obra de Jurgen Habermas (teoria da ação comunicativa)
e Manuel Castells (“A sociedade em rede” / “O poder da comunicação”). Seguindo esse
importante legado, em uma sociedade que se denomina “da informação” cuja topologia,
digital, se constitui em diversas redes comunicacionais, sentimos a necessidade de
problematizar qual é o papel das diversas mídias na construção do espaço público
conscientemente democrático. Como se dá a relação entre a coisa pública e o capital privado
na gestão da comunicação social? – esse é um dos questionamentos centrais que devemos
fazer para melhor entendimento da contemporaneidade. Nesse sentido, esta proposta de
Simpósio Temático se interessa por uma vasta gama de trabalhos que estudem a relação
entre política e história em meios, de conteúdo fictício ou não, voltados a diversas finalidades,
como: literatura, cinema, televisão, música, noticiários, periódicos; também estão inseridos
nesse campo investigativo os meios computacionais relacionados à rede mundial de
computadores, como endereços eletrônicos, blogs políticos, plataformas audiovisuais
disponíveis na Internet como Youtube e Netflix e jogos eletrônicos.

ST 15 – SERTÕES: NARRATIVAS E FRONTEIRAS

COORDENADOR
Joel Carlos de Souza Andrade – Professor do DHC-CERES-UFRN

RESUMO
O simpósio temático pretende congregar trabalhos que busquem discutir os sertões como
um espaço construtor de identidades e suas múltiplas composições historiográficas e
histórico-culturais, isto é, que discutam as narrativas construídas em torno do sertão e,
também, as suas fronteiras. É com esta preocupação que aceitaremos trabalhos que tratem
de questões relacionadas aos seguintes temas: conceitos, historiografias, memórias e
biografias, tradição e folclore, cancioneiro, poesia e literatura de cordel, literatura

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
24

regionalista e outras que fogem a este rótulo, seca e água, mitologias e crenças, amores,
espertezas, bandidos, heróis e anti-heróis na tessitura poética (no sentido de gerar, criar,
produzir) do espaço-sertão. Estas artes de nomear, pensar, visualizar, enredar, crer e compor
tornam os sertões um espaço privilegiado para gerar outras sensibilidades e relações
perante o outro.

ST 16 – RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES: HIBRIDAÇÕES E PERMANÊNCIAS

COORDENADORES
Lourival Andrade Júnior – Professor do DHC-CERES-UFRN
Vanda Fortuna Serafim – Professora do DEHIS-UEM

RESUMO
Este simpósio temático pretende reunir pesquisas que discutam as diversas formas de re
(ligações) entre o homem e o sagrado em suas mais variadas manifestações sensíveis,
gestuais, orais e materiais. Festas, ritos, orações, africanidades, processos mediúnicos,
catolicismo oficial e não oficial, cristianismo ocidental e oriental e manifestações não cristãs
fazem parte do que pretendemos discutir. Este ST está vinculado ao GT História das Religiões
e das Religiosidades (ANPUH). A proposta do Simpósio Temático está articulada à proposta
do GT História das Religiões e das Religiosidades (ANPUH), que tem como objetivos
constituir um espaço de referência nacional nos estudos sobre história das religiões e
religiosidades; analisar as manifestações religiosas inseridas em seu contexto histórico;
aprofundar o conhecimento e qualificar o profissional para a pesquisa e a docência; dar
visibilidade às pesquisas acerca das manifestações religiosas, vinculadas aos cursos de pós-
graduação em História; constituir referencial teórico e metodológico que oportunize a leitura
e a integração crítica e consciente da pluralidade do fenômeno religioso, e fortalecer a área
dos estudos religiosos como disciplinas em cursos de graduação, além do desenvolvimento
de projetos de ensino, pesquisa e extensão. Nesse sentido, o ST está aberto aos
pesquisadores da História e demais áreas do conhecimento que desenvolvam pesquisas
sobre religiões, religiosidades e crenças afro-brasileiras, atentando para as práticas,
representações e hibridismos estabelecidos dessas manifestações; além da produção
discursiva e da elaboração de um saber científico.

ST 17 – O BRASIL IMPÉRIO: TRAMAS, CONEXÕES E OUTRAS HISTÓRIAS

COORDENADORES
João Fernando Barreto de Brito – Doutorando em História – UFRJ
Rosenilson da Silva Santos – Professor do DEHIS-UERN – Assú

RESUMO
A I edição desse Simpósio Temático ocorreu no ano de 2014 por ocasião do VI Encontro
Estadual de História da ANPUH/RN, na cidade de Assú. A II edição se deu no VI Colóquio
Nacional História Cultural e Sensibilidades, na cidade de Caicó, no ano 2016. Seu objetivo é
reunir pesquisadores(as) e trabalhos que tratam de temáticas no recorte do oitocentos,
especialmente relacionados com a província do Rio Grande do Norte. Nossa proposta é

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
25

darmos continuidade às discussões iniciadas em 2014, seguidas em 2016 e que agora podem
ser ampliadas no sentido de oxigenar o espaço de debate e divulgação de pesquisas sobre a
história do Brasil Império. Serão bem-vindos trabalhos sobre cultura e poder, relações de
trabalho e cidadania, territórios e fronteiras e cotidiano e família, tendo como baliza o período
supracitado.

ST 18 – HISTÓRIA E IMPRENSA: PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SABERES

COORDENADORES
Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins – Professor do DEHIS-UERN – Mossoró
Francisco Fabiano de Freitas Mendes – Professor do DEHIS-UERN – Mossoró e PPGSCH-
UERN

RESUMO
A imprensa, mormente a publicação de jornais, informativos e revistas, seja como fonte, seja
como objeto de investigação, é uma das temáticas mais utilizadas pelos historiadores. Pela
amplitude do material, é possível obter uma leitura do passado de um setor da sociedade de
uma época, sua composição sociopolítica, seus projetos e expectativas. Deste modo, este
Simpósio Temático propõe discutir pesquisas que abordem o estudo de periódicos, tanto da
grande imprensa quanto da segmentada; da atividade profissional de jornalistas, colunistas
e correspondentes; assim como o periódico como fonte documental de outras temáticas
históricas que versem pela produção de saberes e circulação de ideias.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
26

MINI CURSOS

MC 1 – HISTÓRIA E HIPERMÍDIA: a percepção do passado na estética computacional dos


videogames

MINISTRANTES
Mariano de Azevedo Júnior – Professor de História – UnP
Marcella Albaine Farias da Costa – Doutoranda em História – PPGH-UNIRIO

EMENTA
Com a evolução técnica dos meios computacionais nas últimas décadas, se deu também o
desenvolvimento de suas capacidades narrativas. Isso tem possibilitado um fenômeno
semelhante ao que ocorreu em outros meios audiovisuais, como no cinema e na televisão: o
interesse pelos temas históricos, seja de uma forma inteiramente fictícia ou buscando
reproduzir versões do passado produzidas pelos historiadores profissionais. Os meios
computacionais que melhor têm se expressado narrativamente a respeito dos temas
históricos são os videogames, sem dúvidas, pois elaboram enredos e simulam espaços de
experiências, muitas vezes, sob o signo do “passado histórico”. Essas mídias, voltadas ao
entretenimento, não apenas divulgam certas concepções do passado, como também criam
formas particulares de percebê-lo e praticá-lo, no ato de jogar. Como noções centrais das
problematizações previstas para este minicurso estão a de “hipermídia” e “hipertexto”, já
tratadas há algum tempo nos trabalhos de importantes teóricos da comunicação social,
sociólogos, linguistas cognitivos e determinados segmentos do pensamento filosófico.
Desta vez, a intenção é pensar como as propriedades estéticas dos meios computacionais,
através dos videogames que abordam temas históricos em seus mundos fictícios, afetam a
percepção do passado – até mesmo do tempo, de forma mais ampla. Está presente, no nosso
exercício de reflexão, a tarefa de problematizar aquilo que importantes teóricos consideram
fundamental para o nosso tempo, isto é, a relação entre “técnica” e “política”, o que pode ser
feito através de diferentes abordagens do social.

MC 2 – A PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

MINISTRANTE
Margarida Maria Dias de Oliveira – Professora do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN

EMENTA
O presente minicurso tem por objetivo central refletir sobre a produção de materiais
didáticos para o ensino de História realizada no Brasil e, por meio destas reflexões, debater
sobre os saberes necessários a um profissional que se proponha a se dedicar a esta
produção. Parte-se do pressuposto que este é um campo a ser ocupado por profissionais de
História e qualificados para tal, que há uma imbricação com a produção do conhecimento
histórico acadêmico, mas que requer também um diálogo com outros campos de saberes,
dependendo dos suportes e objetivos dos materiais didáticos. Entende-se como um campo
possível de atuação profissional do formado em História e como uma forma de atuação para

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
27

contribuir na formação de cidadãos que operam com informações históricas e as


transformam em um banco de dados importante para orientação da vida prática.

MC 3 – PATRIMÔNIO CULTURAL: FORMAS DE APRESENTAÇÃO, FORMAS DE


PRESERVAÇÃO

MINISTRANTE
Almir Félix Batista de Oliveira – Pós-doutorando – PPGTUR/UFRN

EMENTA
O presente minicurso tem os seguintes objetivos: 1-Discutir como se conforma o patrimônio
cultural brasileiro; 2-Analisar os últimos 20 anos de preservação do patrimônio cultural
brasileiro; 3-Problematizar formas de apresentação e formas de preservação do patrimônio
cultural brasileiro. E para tais tarefas se utilizará do seguinte programa: 1º Dia (Primeira
Sessão): 1- O patrimônio cultural brasileiro: formas e constituição; 2- História da preservação
do patrimônio cultural brasileiro: os últimos 20 anos; 3- O patrimônio cultural brasileiro e o
ensino de história: formas de apresentação, formas de preservação; e 2º Dia (Segunda
Sessão): 4- O patrimônio cultural brasileiro e o livro didático de história: formas de
apresentação, formas de preservação; 5- O patrimônio cultural brasileiro entre exposições,
fotografias e documentários: formas de apresentação, formas de preservação; 6- O
patrimônio cultural brasileiro e o turismo: formas de apresentação, formas de preservação.

MC 5 – OS SERTÕES COLONIAIS: ENTRE OS ESPAÇOS VAZIOS E A BARBÁRIE

MINISTRANTES
Júlio César Vieira de Alencar – Professor do IFRN
Patrícia de Oliveira Dias – Professora do IFRN

EMENTA
Este minicurso tem como objetivo analisar o processo de territorialização dos sertões das
Capitanias do Norte do Estado do Brasil e discutir as diferentes noções presentes na
sociedade colonial acerca dos sertões da América portuguesa, encarados como espaços
marcados pela selvageria e pela barbárie, mas que possibilitavam a expansão das atividades
econômicas desenvolvidas pelos colonos. Para tanto, serão estudados os conceitos básicos
de territorialização e sertão, a fim de compreender como ocorreram as primeiras incursões
por esses espaços, os objetivos, as demandas dos luso-brasílicos em busca de terras e como
se estabeleceram as novas configurações espaciais. As fontes a serem trabalhadas no
minicurso são as cartas de sesmarias, entendidas como relatos acerca do espaço e como
forma de conversão do mesmo em território colonial; a documentação camarária, sobretudo,
os Livros de Cartas e Provisões e os Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal; a
coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional; e os documentos do Arquivo
Histórico Ultramarino. Para auxiliar na análise das fontes, será acessada a historiografia
clássica, com o objetivo de compreender como os sertões foram tratados nessas produções;
além da renovação historiográfica que revisitou o tema e as novas acepções sobre a
territorialização dos sertões das Capitanias do Norte.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
28

MC 6 – A UTILIZAÇÃO DA LITERATURA E DA IMPRENSA NA HISTÓRIA URBANA

MINISTRANTES
Raimundo Pereira Alencar Arrais – Professor do DEHIS-CCHLA e PPGH-UFRN
Renato Marinho – Professor do IFRN

EMENTA
Na formação do historiador, considerando o historiador na perspectiva de sua atuação como
pesquisador e como professor, o trabalho com a documentação se revela essencial para a
elaboração da narrativa histórica. O conhecimento da especificidade das várias linguagens
dos documentos explorados pelo historiador das cidades e o reconhecimento das questões
teóricas implicadas na aproximação entre esse tipo de documento e a narrativa o historiador,
contribuem para que se ampliem as possibilidades de seu uso pelos historiadores. A
proposta do minicurso consiste em abordar, de modo introdutório, as particularidades e as
potencialidades de dois tipos específicos de documentos no uso da história urbana,
especificamente a literatura e a imprensa. Este minicurso propõe explorar dois tipos de
testemunhos na perspectiva do historiador da cidade: a fonte literária e a imprensa. O
objetivo será de promover uma reflexão a respeito de como se explorar cada um desses
documentos e estimular as reflexões que devem ser desenvolvidas pelo historiador ao
incorporá-las à sua narrativa de modo criativo. O minicurso compreenderá exposição da parte
dos proponentes e realização, da parte dos participantes, de atividades orientadas a partir de
fontes literárias, jornais e revistas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
29

Simpósio Temático 1
HISTÓRIA ORAL/AUDIOVISUAL:
UMA POSSIBILIDADE DE PROPOSTA
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:

METODOLÓGICA PARA O TEMPO PRESENTE


A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
30

A REVOLUÇÃO DO CINEMA NOVO BRASILEIRO A PARTIR DE


GLAUBER ROCHA EM “TERRA EM TRANSE”

Beatriz Ribeiro de Andrade1

INTRODUÇÃO
No dado artigo iremos fazer um estudo acerca da discussão presente entre o
conceito de arte engajada, seja como propaganda ou como uma crítica, sendo escolhido
o filme Terra em transe (1967) para se fazer uma análise a partir do cinema como uma
arte engajada de crítica sendo bastante conveniente ao que estava se passando no
contexto politico não apenas a nível Brasil mas também de toda uma América Latina
como um todo.
Essa obra trata de crítica toda uma conjuntura política em crise em toda a
américa latina, desde lideres populistas, até os autoritários, no sentido de aproximar a
realidade dos países latinos, uma crítica hegemônica em busca de uma revolução não
apenas política mas também da arte, passando de algo enfaticamente estético para ser
algo mais próximo a realidade, mais engajado nas vidas das pessoas que assistem, que
admiram e analisam. Servindo da arte como uma forma de militância contra regimes
autoritários, em especial os da América latina.
A análise da obra vai partir de uma rememorada nos conceitos da arte engajada,
e posteriormente uma percorrida no enredo do filme e o que cada fator ali presente irá
representar, desde os personagens em si, até o resultado das relações entre eles.
Finalizando com uma análise na obra em si para o resultado com o seu externo, em
como foi a recepção da obra, até os resultados obtidos a partir daquela “revolução no
cinema”, de qual foi o resultado de nos trazer uma grande mudança no cinema, desde a
abordagem de temas políticos até da estética cinematográfica que foi também
modificada, tornando a película mais densa e psicológica.

A REVOLUÇÃO DO CINEMA NOVO E A “TERRA EM TRANSE”


Para dar início a uma discussão que tem como base o diálogo entre arte e política é
primordial sabermos que a arte pode ser trazida de duas formas opostas em prol da
política, seja como propaganda ou como uma crítica, e logo em seguida delimitamos o

1 Graduanda na Universidade Federal de Campina Grande

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
31

roteiro baseado no artigo “A relação entre arte e política: uma introdução teórico-
metodológica” de Marcos Napolitano de partir de uma análise histórica daquela
produção cultural a qual escolhemos tomar como referencial, e em segundo lugar
discutir o que seria a “arte engajada” dentro do uso que pretendo lhes expor, é
necessário à análise do lugar social do “artista-intelectual” que no caso seria o Glauber
Rocha como uma forma de relacionar a linguagem artística aos valores políticos.
Quando falamos em arte engajada temos a seguinte definição “ – a arte engajada
– de caráter mais amplo e difuso, define-se a partir do empenho do artista em prol de
uma causa ampla, coletiva, ancorada em ‘imperativo moral e ético’ que acaba
desembocando na política, mas não parte dela” (NAPOLITANO, 2011: 25-56). A partir
dessa intenção em produzir uma arte nesses moldes no sentido de engajamento e
também numa vertente revolucionária no que diz respeito a uma busca de uma nova
estética, de uma verdade do povo, uma influência possivelmente soviética ao pensar as
diretrizes políticas dos formadores desse cinema novo brasileiro. A busca partiu de uma
mudança no cinema, em contraponto com o socialismo Leninista de que implicaria
menos em uma “nova cultura” mas sim de socializar aquela cultura burguesa que não
era acessível, o caso brasileiro e latino-americano de influência marxista foi particular
no ponto em que buscava sim uma nova estética, um público que se identificava com
aquela cultura não mais copiando os moldes europeus, uma unidade de arte – mais
especificamente o cinema – no qual o povo se encontraria, onde o nacional seria mais
valorizado, mas na perspectiva democrática de representar um governo do povo.
Porém, porque a ânsia maior de uma unidade cultural nacional e também latino-
americana? Porque isso se diferenciaria de um dos maiores referenciais sobre arte e
cultura vindo da URSS? Exatamente por o Brasil, e a América Latina vinha de um caso
mais geral que atingira também o campo da arte, e consequentemente do cinema, seria
a situação colonial, quando pensamos em uma situação encaixada nos moldes de uma
colônia, pensamos então numa dependência quase total de uma indústria
cinematográfica, então temos a definição a partir de Galvão e Bernadet, trazida no
artigo de Pedro Simonard.

O fator básico que explica a “situação colonial” do cinema brasileiro é o


fato de que o “produto importado” ocupa o seu lugar. Trata-se,
portanto, de uma definição de ordem econômica que será
metaforicamente transposta para o campo da cultura. Importamos não

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
32

apenas objetos manufaturados, mas ideias prontas – e formas,


modelos, estruturas de pensamento – forjadas em função de
realidades diversas que correspondem mal a nossa própria realidade.
Estas ideias ocupam um tal espaço em nossas mentes que pouco sobra
para que nelas se desenvolvam ideias próprias. Além de produtos
industriais, os filmes são também produtos culturais. Juntamente com
os filmes, importamos uma concepção de cultura- e uma concepção de
cinema que identifica com o próprio cinema o cinema estrangeiro. Nisto
reside o cerne da “colonização” cultural: a “situação colonial” – cuja
marca cruel e inescapável é a mediocridade – se configura quando se
adota um modelo importado que não se tem condições de igualar. (apud
SIMONARD, 2003, p. 4)

Percebe-se total relação da sétima arte com a economia, e por ai se faz sua
peculiaridade, que o cinema não é apenas estética, crítica ou propaganda, temos a
preocupação com uma produção e uma distribuição que exige um diálogo com o
mercado, tem-se a preocupação de uma revolução na qual visa uma quebra total com
as raízes coloniais, não falando das raízes ibéricas, mas sim das nossas raízes de
dependência seja europeia, seja norte-americana, pois quando vemos a burguesia
notamos um espelho para o American way of life , e quando encontramos uma
esquerda muito espelhada numa União Soviética, se esquecendo então das
particularidades não apenas do país de dimensões continentais que é o Brasil, mas
também as peculiaridades da América Latina também estavam em falta nas
expressões artísticas. E então quando o próprio Glauber Rocha nos fala que “Não existe
poder cultural sem poder econômico e político. A finalidade dos cineastas
independentes deve ser a de conquistar o poder da produção e da distribuição em todos
os países.” ( ROCHA, 1981: 68). E é aí que nota-se toda essa teia de interligações
provocada intencionalmente por uma revolução no cinema. O tocante a uma noção além
do nacional é a dita a seguir pelo próprio diretor e roteirista do filme em que estamos
fazendo uma breve contextualização para adentrá-lo:

A noção de América Latina supera a noção de nacionalismos. Existe um


problema comum: a miséria. Existe um objetivo comum: a libertação
econômica, política e cultural de fazer cinema latino. Um cinema
empenhado, didático, épico, revolucionário. Um cinema sem fronteiras,
de língua e problemas comuns. (ROCHA, 1981: 51)

Quando paramos para analisar o lugar social da imagem, e do intelectual a frente


do projeto de um cinema novo brasileiro, existirá claramente a reflexão acerca da sua

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
33

política posicionada a esquerda, já tendo sido preso durante o regime militar e sofrido
grande repressão e crítica quando lançou o filme “ Terra em transe” críticas essas
vindas de ambas direções políticas, da direita vindo a repressão e a censura e da
esquerda houve críticas desde comparar e alegar elementos da chanchada, talvez por
criticar dentro do enredo a figura de um intelectual da esquerda no qual seus ideais não
correspondiam com suas ações. Então paramos no ponto em que Glauber Rocha foi
uma figura icônica, criticada e perseguida naquele período, e em especial foi uma
personalidade que ansiava por essa revolução, que mandava carta para outros
apaixonados e produtores do cinema brasileiro implorando por uma unificação, como
podemos ver esse fato no pequeno trecho de uma carta direcionada a Paulo César
Saraceni citada no artigo de Pedro Simonard.

Escrevi um artigo negando o cinema, Não acredito no cinema, mas não


posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer a revolução. Cuba é
um acontecimento que me levou ás ruas, me deixou sem dormir.
Precisamos fazer a nossa aqui. Cuba é o máximo (...). Estão fazendo um
novo cinema (...), vários filmes longos e curtos. Estou articulando com
eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos
agir em bloco, fazendo política. Agora, neste momento, não credito nada
à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo.
Do contrário eu me suicido. (Apud SIMONARD, 2003, p.6)

Então a partir do trecho dessa carta, vemos tamanho o desespero da figura do


Glauber Rocha diante da situação precária do Brasil, e também sua posição radical seja
politicamente seja em relação ao cinema em si, e quando notamos a sua posição não
em relação apenas a uma valorização apenas do Brasil, mas também de uma América
Latina, vemos que na obra “Terra em transe” ele escolhe por não localizar a trama, mas
inventando os lugares, locais nomeados como Alecrim e Eldorado.
Adentrando então no enredo do filme “Terra em transe” temos logo de início uma
organização levemente confusa, porém intencional, ao começar o filme como se fossem
memórias, tornando o recorrer do filme em vários “flashbacks” em que as memórias
possuíam um dono: Paulo Martins. O jornalista que nos trás suas narrações, e
lembranças de um passado infestado de ideais e de martírios arrependidos sobre
posições que tomou e não soube lidar com elas, a narrativa se faz de forma poética e
reflexiva, porém dentro de um decorrer de história com teor puramente político.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
34

A linearidade pode aparentar não estar em uma linha reta, mas em pontos e
figuras que são trazidas de acordo com sua significância, enquanto se conhece os
personagens daquele enredo fazemos uma viagem histórica comparativa dentro do
contexto da história politica brasileira, que vai de Vargas até João Goulart. Ou seja,
desde um autoritarismo abusivo e golpista até um populismo insuficiente apelativo e
disfarçado de “pai do povo”. O Glauber Rocha inventa um país chamado Eldorado que
se localiza na província fictícia de Alecrim e lá se cria as figuras desta trama, com
lugares fictícios e figuras fictícias também, o que deixa aberto para identificar-se com
diversas realidades, fazendo até referencia com nomes de personagens, a exemplo de
Porfírio Dias, militar e política mexicano, então é a partir dessa trama “inventada” que
se faz os encaixes com a realidade fazendo uma verdadeira alegoria política
acrescentando um ingrediente essencial nem sempre lembrado por alguns, que seria o
próprio povo.
Notamos então a gigantesca alegoria política existente na obra, criticando em
especial as seguintes figuras: Diaz e seu conservadorismo golpista como uma crítica
direta ao autoritarismo bastante vivo no período em que o filme foi lançado (1967), o
Vieira o populista totalmente ineficaz, oportunista e fraco diante da conjuntura política
sabendo apenas fazer promessas e mentir ao povo se aproveitando de uma situação
em que a fome falava mais alto e frases como “estou anotando tudo” seriam suficientes
para uma comunidade pobre e com fome lhe apoiar, temos o personagem principal que
se envolve com a podridão de todos os lados, porém com uma fala bonita, e ideais que
não saem do papel a partir do momento em que se articula com figuras que
representam um poder deplorável, e por fim um papel deixado as margens vindo da
figura feminina como companheira trazida em especial por Sara que nos mostra uma
mulher com uma posição de intelectual e santa dentro das tramas políticas porém com
uma noção alienada da conjuntura, e representada de forma bastante recatada ao longo
do filme, sendo o “ponto fraco sentimental” do Paulo mas estando a par do populismo
covarde do Vieira. Ao longo da película, se tem as memórias sobre acontecimentos em
que Paulo estaria tendo conhecimento no que diz respeito as tramas políticas que estão
por trás dos palanques, desde o momento em que ele decidira se abster da política e se
isolar em um ambiente com muitas mulheres e bebidas, porém não seria tão simples
escapar da política naquele momento de colisão política, que ocorreria dentro da obra,
e também no momento em que a obra estaria sendo construída. Então é a partir de um

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
35

trecho escrito pelo Glauber Rocha se entende bem a questão estética do filme em
questão.

As imagens grotescas de Terra em Transe, mais hispânicas do que


portuguesas (quero dizer, mais latino americana que brasileiras) são
destruídas no lirismo naif do velho Mauro, na imaginação satírica dos
velhos filmes musicais brasileiros e são reconhecidas como as imagens
concretas, paridas pelo poder político brasileiro, de Vargas até a queda
de Goulart. (ROCHA, 1981: 207)

Então é pontual quando o próprio diretor e roteirista nos fala a respeito da


intenção em relação à fotografia do filme mais grotesca e satírica com um fundo
intencional, e quando nos fala dos velhos filmes musicais brasileiros paramos para
notar o enredo sonoro do filme, que nos trás literalmente um transe sonoro com o jogo
de cenas ao som de metralhadoras, músicas clássicas, a exemplo de Vila-lobos, com
uma combinação de jazz, e essa fusão sonora é proposital quando nos trás realmente
uma sensação de transe que está ocorrendo dentro da mente do narrador quando está
com lembranças embaçadas de toda a trama e está em uma situação quase que
inconsciente de suas ações, ações essas a qual reprovava, e que teoricamente nunca
teria realizado, porém está tecnicamente pagando por elas.
E quando pensamos nas duas realidades divergentes de um conservadorismo
em contraponto a um populismo, vemos ao longo do enredo que não é muito difícil
conseguir um apoio do povo naquele momento em que qualquer agrado era suficiente
para manobrar aquela massa que estaria mais preocupada com a fome, com sua terra
para manter sua família, dentre outros pequenos favores políticos. Então dentro deste
enredo é escancarado a noção de que o povo está totalmente tendo sua miséria
explorada pelos jogos de poder e essa forma de mostrar a realidade a um povo que
provavelmente se identificará com essa história apresentaria sim um perigo para todos
os lados, pois como nota-se a crítica é direcionada desde a um jornalista intelectual com
ideias de esquerda, a um líder populista , até um conservador autoritário e golpista. É
devido a isso que a recepção do filme foi complexa no sentido de ser proibida,
censurada, obtido cortes, e recebido crítica também de intelectuais da esquerda. É
nesse sentido que vemos um certo isolamento quando tratamos do cinema novo
brasileiro, pois como diria o Paulo Saraceni “ O cinema novo não é uma questão de idade;
é uma questão de verdade” ( apud ROCHA, 1981, p. 15).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
36

Exatamente nesse limite de fidelidade a verdade em que o cinema novo encontra


dificuldades, pois dentro das suas produções vão estar sim críticas direcionadas para
todos os lados, no sentido de que existirão verdade de ambos os lados, quando
pegamos a figura do Paulo, jornalista intelectual de esquerda, porém que se envolve
em jogos políticos que podem não ser considerados dignos para sua vertente política,
pode ter atingido boa parte da elite intelectual de esquerda daquele período, ao mesmo
tempo em que critica um regime autoritário, é assim que notamos a marginalidade no
movimento do cinema novo, que vai ganhar mais espaço nas telas brasileiras quando
os filmes desse movimento ganham boas criticas e receptividades europeias, ou seja, o
brasileiro vem a achar bom quando um contexto estrangeiro vem dizer que aquele
cinema é bom, em conjunto com uma reformulação referente a distribuidora dos filmes
brasileiros. O importante é notar o quão confuso a recepção desta obra cinematográfica
foi para aquele período politico em que os militantes da esquerda não entendiam bem
a que direção essa obra queria beneficiar, mas não havia esse interesse, havia o de
revolucionar o cinema brasileiro, de torna-lo novo, e torna-lo uma verdade, a intenção
central foi claramente a de quebrar com os paradigmas sejam estéticos ou políticos,
neste trecho de Glauber Rocha notamos a ânsia por algo novo e revolucionário.

Havia uma revolução no teatro, o concretismo agitava a literatura e as artes


plásticas, em arquitetura a cidade Brasília evidenciava que a inteligência do
país não encalhara. E o cinema? Vínhamos do fracasso de Ravina, de uma
súbita interrupção em Nelson Pereira dos Santos, de um polêmico Walter
Hugo Khoury, do fracasso Vera Cruz & Cavalcanti e sofríamos na carne a tirania
da chanchada. (ROCHA, 1981: 15)

E partindo dessa ânsia por alcançar os outros setores artísticos se faz críticas
pelos antecedentes desse cinema brasileiro, desde o fracasso da Vera Cruz que investiu
grandemente no cinema, porém com um molde estrangeiro, utilizando um grande
capital para trazer recursos estrangeiros desde os profissionais à estética, claro
transformando em uma cópia estrangeira dando continuidade a “situação colonial”
também presente no cinema e não dando tanto atenção em um fator crucial dentro de
indústria cinematográfica que seria o da distribuição, e também a crítica dirigida a
Chanchada o que poderia chamar-se de uma verdadeira paródia de filmes estrangeiros,
o que poderíamos chamar de uma cópia mal feita dos filmes feitos por Hollywood,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
37

sendo um dos principais alvos da crítica da proposta do cinema novo brasileiro, no qual
propõe uma cara totalmente diferente ao cinema brasileiro.
Segue a decepção de um dos representantes desse movimento revolucionário
do cinema novo no que diz respeito a estar atrás dos outros setores, enquanto o cinema
só vem tendo experiências ruins uma atrás da outra, e destacando sim a importância e
a peculiaridade que o cinema representa nesse contexto, quando notamos a ligação
totalmente intrínseca a economia e a uma importação ideológica permanentemente
norte-americana, em resumo, hollyoodiana, permanecendo dependências não apenas
econômicas, mas também ideológica dentro de apenas um setor da arte, que como
outros artifícios de qualquer setor seria usado mais para a propaganda norte-
americana do que para uma crítica e formação de um senso crítico brasileiro e latino-
americano.
Então quando lidamos com o cinema, há bastante presente a discussão sobre
mercado, articulação política, e vemos isso a partir desse trecho de Glauber Rocha.

Ao cinema novo brasileiro preocupa mais do que nunca a conquista do


mercado latino, mercado que deverá ser internacionalizado pelas
próprias produções latinas. Não existe poder cultural sem poder
econômico e político e a conquista de tais poderes é única e complexa.
No caso do cinema, como no caso maior da História, cultura, economia
e política têm de ser simultaneamente revolucionários. As contradições
fazem parte do jogo. Historicamente, o cinema se destaca como a mais
importante manifestação de cultura latino-americana. Esta cultura
deve ser uma prática revolucionária. A afirmação da produção e da
distribuição dos filmes de cinema novo demonstra essa possibilidade.
(ROCHA, 1981: 15)

Então é a partir desse trecho, que o baiano Glauber Rocha nos deixa claro a
questão de como funcionaria a revolução desse cinema novo latino-americano na
perspectiva não apenas estética, mas também do mercado e de sua internacionalização,
pois a todo momento vem a tona essa internacionalização no que se refere a América
Latina.
Quando paramos para analisar o enredo do filme em questão “Terra em transe”
notamos uma forte identificação com a conjuntura política brasileira daquele período,
porém por o nome de um dos conservadores o mesmo nome de um líder militar
mexicano, que seria o caso do Porfírio Diaz, não seria mera coincidência , e também não
o é o fato de lidarmos com uma província e personalidades fictícias, no modelo para que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
38

da mesma forma que nós brasileiros nos vemos ali dentro do filme, outras realidades
da américa latina também possam se enxergar, e um processo de internacionalização
cultural se começa e desenvolve também a partir desses detalhes, seja de um simples
nomes mas também a escolha de não especificar, e tornar uma realidade plural e latina,
a revolução não foi apenas brasileira. Dentro ainda dessa importância dada ao mercado
e internacionalização uma declaração sobre o filme, por Glauber Rocha.

Hoje, 1967, meu último filme, Terra em transe, circulou, com resultado
financeiro excelente, em apenas seis meses. O mercado brasileiro é dos
maiores do mundo e, levando-se em conta as deficiências de
comunicação, de transporte e de controle – já se pode prever que, em
poucos anos, a Difilm conseguirá a revolução que não conseguiu a
Pelmex. E os exemplos frutificam: na Argentina e no Uruguai, graças a
ação de novos produtores – distribuidores como Walter Achugar ou
Edgardo Pallero, surgiu uma distribuidora de caráter latino-americano,
que começa a usar os métodos empregados pelo produtor Luís Carlos
Barreto, criador e estimulador da Difilm. (ROCHA, 1981: 52)

Então, a partir desse trecho não apenas fortifica o argumento de uma


preocupação na internacionalização a nível latino, mas também da grande importância
na parte mais econômica do que criativa dentro do cinema, o que tratamos na parte da
distribuição que se faz de grande importância no impacto que causará no sentido de até
onde essa revolução será capaz de alcançar, e claro que dependendo de distribuidoras
estrangeiras não seria fácil uma proposta de cinema revolucionário e crítico alçar
muitos voos, devido a uma simples questão de interesses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, concluímos que o cinema novo brasileiro representou não somente uma
revolução a nível nacional, mas também uma internacionalização a nível América Latina.
E é de grande importância reconhecer a relevância de um cinema que revoluciona não
apenas economicamente, mas também ideologicamente dentro de um período de
regimes autoritários contaminado pelo referencial artístico totalmente visando o modo
de vida norte-americano, tendo inclusive sido censurado e proibido o filme analisado
neste dado artigo.
Em linhas gerais, a intenção desse artigo foi de explanar sobre a construção e o
contexto da realização desse movimento revolucionário e unificado dentro da realidade
do mundo da cinematografia, escolhendo como uma das formas de argumentação para

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
39

explicar esse processo através do enredo e da produção geral do filme Terra em transe
datado em 1967, concretizado por um dos pensadores do movimento do cinema novo
brasileiro, o baiano Glauber Rocha, que a todo momento justifica sua paixão pelo
cinema mas uma paixão vinda de um militante de esquerda, logo tendo uma visão ampla
de como esse instrumento pode ser utilizado em prol de sua militância política, e como
bem concluímos o que o Glauber Rocha fez parte, foi de fato uma revolução dentro do
cinema brasileiro, e o filme em questão foi também bastante marcado na época em que
fora lançado, e até mesmo nos dias atuais ainda é uma obra bastante crítica e densa, no
sentido que nos trás uma alegoria política fictícia mas que encaixasse em uma realidade
política puramente latina, no sentido também de trazer um elemento muitas vezes
esquecido quando resolve tratar de tramas políticas: o povo. E é nesse limite que dentro
desse contexto vemos um cinema que critica não apenas posições políticas, mas a
crítica nos vem em forma de verdades, só que agora elas estariam expostas e não há
forma de negá-las.

REFERÊNCIAS
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/
EMBRAFILME, 1981.

SIMONARD, Pedro . Origens do Cinema Novo: a cultura política dos anos 50 até 1964.
Achegas.net , Internet, v. 9, p. 4, 2003.

NAPOLITANO, M.. A relação entre arte e política: uma introdução teórico-


metodológica. Temáticas (UNICAMP), v. 37-38, p. 25-56, 2011.

TERRA, em transe. Direção: Glauber Rocha, Rio de Janeiro – RJ, 1967. 109 min.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
40

Simpósio Temático 2
HISTÓRIA DAS MULHERES:
DIÁLOGOS E PERSPECTIVAS
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
41

HISTÓRIA DAS MULHERES: AS SENSIBILIDADES E VIOLÊNCIAS


CONTRA O FEMININO NA DÉCADA DE 30 (SÉC. XX) PRESENTE
NOS ROMANCES DE JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA E JOSÉ LINS
DO REGO: “A BAGACEIRA E MENINO DO ENGENHO”

Fransuênia de Oliveira Felix2


Girlucia Dias de Souza3
Paulo Sérgio da Silva Santos4
Orientadora: Prof. Dr.ª Silvana Viera de Souza5

O contexto sócio-histórico da década 1930 é permeado por um mundo agrário


pautado em relações sociais como patriarcado. O cenário do engenho de açúcar tece um
arranjo de interações entre homens e mulheres, no qual o masculino é inserido de
perspectivas protagonistas.
Esse ensaio foi produzido através da interface entre História e Literatura,
compreendendo seus campos, aproximações, contribuições e divergências. O
matrimônio “História e Literatura” trouxeram: sensibilidades, historicidade (das obras,
dos autores e o contexto que foram produzidas), um cenário repleto de signos
marcantes da década de 30 e ainda perene no tempo presente. Violências contra
mulheres, na esfera da vida privada e pública e os discursos acionados em torno desses
crimes.
Compreendendo que na década 30 (século XX) era latente o fator político da
exploração da ideia de um mundo agrário, “arcaico” e latifundiário. Esse discurso sobre
o “Nordeste” que ultrapassa a esfera política, por exemplo, e adentra nos romances
aqui analisados, a exemplo, de “A bagaceira”, obra prima de Almeida carregada de
premissas sociais e políticas que apresenta um lugar social pintado a cores tão cruéis
para angariar votos, subsídios e discursos. A imagem mitificada pela pobreza, pelos os
retirantes e da estiagem subsidia a premissa da indústria da seca, a invenção do
Nordeste (2009), como salienta a obra de título idem de Durval Muniz.
Essa mentalidade e sensibilidade social são refletidas nos romances
regionalistas, devemos salientar que os autores masculinos descrevem violências

2 Graduanda de Licenciatura Plena de História CFP/UFCG.


3 Graduanda de Licenciatura Plena de História CFP/UFCG.
4 Graduando de Licenciatura Plena de História CFP/UFCG.
5.Drª. Professora do CFP/UFCG

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
42

contra o feminino, ou seja, é o olhar do outro, respaldando em valores vigentes daquela


temporalidade, pois “[...] a mulher como o outro, a terra, a natureza, o inferior a ser
dominado ou guiado pela razão superior e cultura masculina (TELLES, p. 403).”
Inserimos nesse ensaio discussões sobre violências e os lugares desses femininos nas
obras escolhidas.

CLARICE E SOLEDADE
A primeira personagem feminina selecionada nesta análise provém da obra de
José Lins do Rego (1932), a Clarice. Ela era típica mulher do lar, dada a função da criação
do filho e descrita através dos olhares dos funcionários. Através da memória do
protagonista conhecemos características dessa personagem, segundo as lembranças
do menino do engenho sua mãe era:

Falava para todos com tom de voz de quem pedisse um favor, mansa e
terna como uma menina de internato. Criada em colégio de freiras, sem
mãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não falava. Filha de senhor
de engenho, parecia mais, pelo que me contavam de seus modos, uma
dama nascida para reclusão (REGO, 2017, p. 28).

Destarte, as lembranças caracterizam a personagem através de sua vida,


condição econômica, instrução e função social do espaço feminino reservado para a
mesma naquele contexto, “uma dama nascida para reclusão”, ou seja, uma mulher
criada para ser envolvida nas tarefas domésticas. Outro detalhe, a personagem está
travestida nas falas do menino do engenho por uma áurea angelical.
Em contra ponto, Almeida (1928) nos apresenta outro espaço reservado para o
feminino de acordo com sua inserção social, nos descreve a Soledade, uma retirante,
pobre e uma mulher forjada por signos sensuais e sexuais. Nas palavras do autor, este
a descreve: “Soledade conchegou os trapos que mal lhe disfarçavam a beleza magra
(2004, p.12)”. Sua fisionomia era agradável mesmo estando em condições de magreza,
em virtude de sua vida desoladora. Em outros momentos ao longo da obra ele traz a
emersão de um feminino sensualizado e dado aos prazeres do masculino.
A violência perpassa as esferas sociais e as condições socioeconômicas de
ambas personas dicotômicas, porém elas sofrem as mesmas restrições perene ao
feminino do período que são inseridas. As sensibilidades em torno dessas mulheres
refletem nelas, de vidas distintas e lugares idem, a violência silenciada.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
43

O romance de José Lins do Rego inicia-se com o assassinato da mãe do


protagonista. Através das memórias de Carlinhos o fato é narrado de forma apaziguada
demonstrando o lugar da mulher naquela sociedade. A violência contra a mulher
naquele contexto histórico e social era marcada pelo discurso da honra e da moral.
Clarisse tem seu assassinato descrito de forma atenuado, a exemplo da narração dos
demais personagens da trama.
Há dois significados para essa atenuação, o primeiro baseado nas próprias
premissas machistas e patriarcais vigentes, e a segunda fundamentada em tentar não
expor o menino ao sofrimento de ser constantemente lembrado que seu pai assassinou
sua mãe.
Destaque o que salienta Rego (1932):

Levaram me para o fundo de casa, onde os comentários sobre o fato


eram os mais variados. O criado, pálido, contava que ainda dormia
quando ouvira uns tiros no primeiro andar. E, e correndo para cima, vira
o meu pai com o revolver na mãe e minha mãe ensanguentada. “O
doutor matou a dona Clarisse” Por quê? Ninguém sabia me responder
(REGO, 2017, p.25).

A partir da descrição acima fica evidenciado os inúmeros discursos em torno do


assassinato, fica demonstrado a preocupação do menino em compreender o que vivera.
Pelas falas dos empregados percebe-se a supressa que o crime provocou, por isso, as
interrogações que não elucida em nenhum momento algum tipo de justificativa para o
fato ocorrido.
No romance de José Américo de Almeida (1928) a temática de violência contra as
mulheres é novamente utilizada, diferenciando a prática, pois a personagem Soledade
sofre violência sexual quando é abusada pelo coronel Dagoberto. Para o mandatário
todos que viviam em torno do engenho lhe pertencia, dessa maneira isso lhes dava
plenos “direitos” de manipular as vidas das pessoas sem nenhum pudor. Novamente as
estruturas daquela sociedade agrária, patriarcal, paternalista são esmiuçadas neste
romance, assim como Almeida (1928) retrata.
O crime de ambas são violências diversas, a Clarice um homicídio passional, e
Soledade um abuso sexual. A personagem de Rego (1932) é trazida à vida pelo tom
virtuosa e meiga. Almeida (1928) apresenta uma mulher sensual, marcada pela seca em
seu corpo, e dada à sexualidade ao olhar do homem. A violência de Soledade é

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
44

desenhada aos leitores e realizada por meio de um sentimento de posse, objetivação


desta através do Senhor do engenho, sentiu-se “permitido”. O crime de Clarice é
chocante, inesperado e seu algoz um homem de sentimentos dúbios e amargurados.
Um peso e duas medidas, no caso da filha do Senhor do engenho o crime é
amenizado e relativizado, esta torna-se uma vaga lembrança de uma mulher virtuosa.
A filha do retirante tem sua violência marcada pela conduta machista de vingança por
honra do pai desta, que faz justiças com as próprias mãos.
Enquanto, Soledade continua a margem da sociedade. Entregue a uma sociedade
marcada por signos fortes perante uma moça fora do lugar designado ao “bom”
feminino, se ver obrigada a voltar ao sertão e submeter às condutas em torno de uma
pessoa “não moça”. Tanto o pai do menino do engenho quanto o Dagoberto passam
imunes pelos seus atos, não há justiça para homens feita por homens.
A ideia perpassa entre os dois romances como a violência contra mulher é o
reflexo natural daquele contexto histórico, no qual o feminino é repleto de significados,
simbologias e representações sociais. Ser mulher neste período é, sobretudo, tentar
sobreviver em um mundo marcado pelo papel forte que o masculino exercia, essa
função que o homem possuía era denotado por meios da sua figura controladora das
esferas econômicas, sociais e das relações de poder. A engrenagem dessa sociedade do
mundo açucareiro faz prósperos homens, através do trabalho dos retirantes e ex -
escravo, colocando a figura masculina em pedestais fomentando aspectos machistas,
patriarcais e mandatários.
Outro aspecto perene nas duas obras é o forte imaginário social e cultural que é
o pensamento focado na perspectiva das questões sobre moral, honra e dignidade
sertaneja. Naquele mundo honra e o feminino eram termos que se entrelaçavam numa
simbiose, pois a mulher carregava consigo a representação do respeito. Quando o pai
de Soledade descobre o abuso sexual de sua filha fica chocado e ávido por vingança,
porque naquela vida miserável de retirantes, o bem que eles mais valorizavam era a
honra e dignidade.
De acordo com as narrativas em torno de Carlinhos é delimitada uma
caracterização da figura paterna, frisando um personagem melancólico,
temperamental e excêntrico tentando justificar de alguma forma o assassinato de
Clarisse.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
45

Novamente a violência contra a mulher e designada como algo negligenciado,


por meio da literatura analisamos tais personagens femininas de acordo com a história,
pois a ocorrência de violência contra mulher era recorrente nas esferas da vida privada
e dificilmente exposta no contexto público, ou seja, quantas mulheres sofriam de
violência doméstica, abuso sexual e assassinatos naquele mundo fortemente machista.

HISTÓRIA E LITERATURA: DESPERTANDO SENSIBILIDADES


A literatura proporciona diálogos, vivências, sensibilidades e experiências que
possibilitam adentrar em campos ainda não explorados pela História ou negligenciados
por tal área. Por isso a análise por meio da leitura e a relação com a historiografia sobre
obras ricas em críticas sociais, como “A bagaceira (1928) e o Menino do Engenho
(1932)”, apresentam leques de discussões e análises importantes para compreender as
especificidades de um Nordeste repleto de personagens nos quais os textos
historiográficos ora massifica-o ora individualizam. Através da literatura adentramos
nas experiências, sensibilidades e falas de personagens, a exemplo, Soledade e Clarice.
Através do enredo literário de Almeida (1928) e Rego (1932) fica claro que o
diálogo entre historiografia e literatura é essencial para compreender alguns meandros
dos personagens e o lado histórico, político e social entre outras diversas facetas.

Por vezes, está aproximação da história com a literatura tem um sabor


de dejà vu, dando a impressão de que tudo o que se apregoa como novo
já foi dito e de que se está “reenviando à roda”. A sociologia da literatura
deste há a muitos anos circunscrevia o texto ficcional no seu tempo,
compondo o quadro histórico no qual o autor viverá e escreverá sua
obra. A história, por seu lado enriquecia por vezes seu campo de análise
com uma dimensão “cultural’’, na qual a narrativa literária era
ilustrativa de sua época. Neste caso a literatura cumpria a face á
história um papel de descontração, de leveza de evasão, “quase” na
trilha da concepção beletrista de ser um sorriso da sociedade
(PESAVENTO, 2006, p. 1).

Portanto, para Pesavento papel proveniente do casamento entre a História e


Literatura é ambivalente, pois ora a Literatura informa muito mais a outra área e vice-
versa, porém a Literatura contribui muito para o campo histórico, proporcionando o que
autora menciona como o “sabor de dejá vu”, ou seja, dentro dos registros, fontes e
análises e interpretações o campo ficcional também passar por uma linha tênue e
visível entre real e o imaginário, possibilitando as sensibilidades.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
46

A historiadora detalha a especificidade da Literatura em relação á história, pois


a função literária é fazer uma narrativa face ao entretenimento dos leitores, assim ela
não é obrigada a trabalhar com a oficialidade ou veracidade dos fatos. No entanto, tal
particularidade não menospreza a Literatura face a História.
Os cenários e o contexto histórico das obras literárias, destarte, são narrativas
que permitem o surgimento de personagens femininas dentro de um constructo social
que prevalece o mandatário masculino, sujeitos históricos que apenas serão
proporcionadas pela Literatura, elas são construídas a partir de contexto único e rico
que apenas a Literatura é capaz de produzir.
A História das Sensibilidades adentra nesse consorte (entre História e
Literatura) como uma dama de honra, pois através da ficção conseguimos captar dores,
sofrimentos, amores e sensibilidades. Para Santos, as sensibilidades:

Em outras palavras, a literatura traz a subjetividade e a sensibilidade


do passado, daquilo que um dia foi vivido, sentido, percebido de uma
outra forma, ou da forma como podia sern aquele momento. Ciente de
que este novo olhar é apenas uma versão sobre o passado, o
historiador tenta apreender o registro das nuanças das sensibilidades
de uma época, seus valores, conceitos, noções sobre a vida dos homens
e suas práticas sociais (SANTOS, 2005, p.36).

Consequentemente, o autor elucida que as sensibilidades são afloradas na


Literatura, e pouco exploradas em outras áreas, como a História. Esse novo fragmento
da Clio nos possibilita visualizar e analisar dores, emoções e conceitos da psique
humana, ou por meio das personagens conseguir trazer discussões sobre suas vidas,
via da subjetividade do ser. O tripé Literatura, Sensibilidades e a História, possibilitam
alguns diálogos e nuances sobre um passado que valorize o íntimo, as dores e as
violências, no caso desse ensaio, o feminino.

O CRIME: UM PESO E DUAS MEDIDAS


De fato, na obra Menino do Engenho (1932) o crime era justificável pelo discurso
que o pai de Carlinhos foi induzido a cometer o crime pelo seu sentimento obsessivo
dando o caráter passional, por meio de Carlinhos Rego evidência:

[...] Coitado do meu pai! Parece que o vejo quando saía de casa com os
soldados, no dia de seu crime. Que a ar de desespero ele levava, no rosto

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
47

de moço! E o abraço doloroso que me deu nessa ocasião! Vim


compreender, com o tempo, porque se deixava levar ao desespero. O
amor que tinha pela esposa era amor de um louco. Seu lugar não era no
presídio para onde o levaram. Meu pobre pai, dez anos depois, morria
na casa de saúde, liquidado por uma paralisia geral (REGO, 2017, p.27).

Deste modo a visão de Carlinhos sobre o fato é que o pai teria agido
involuntariamente ao tirar a vida de sua mãe, ou seja, o protagonista compreende a
justificativa criada em torno desse episódio.
Tanto a violência sexual quanto o assassinato de ambas as personagens
femininas conectam significados e reflexos daquela sociedade, no qual a mulher é
colocada em subjugado patamar, mesmo elas repletas de importância (sentido de
importância das personagens e o sentido hermenêutico) naquele contexto histórico.
“Ser mulher” é carregar um leque de simbologias e papeis sócias e culturais. As
violências contra as mulheres ativam discursos e relações de poderes que justificam
esses atos.
Carlinhos é visto como “Homem” quando ele obtém uma doença sexual, pois
para atingir a vida adulta o garoto necessitava passar por uma transição como está. O
papel do masculino era entrelaçado à descoberta sexual através das mulheres negras.
No romance Carlinhos assediava as negras do engenho e iniciou sua vida de homem
quando conquistou um espaço diante destas mulheres.
No caso de Soledade, a vida dessa personagem é marcada pelo sofrimento de
sobrevivência de uma retirante sertaneja. Sua inserção no engenho despertava o
interesse do filho e do proprietário latifundiário açucareiro. Há constantemente na obra
falas sobre o comportamento e a “libertinagem” de Soledade, como se sua
sensualidade atiçasse os desejos masculinos.
Em consequência da obsessão, o poderio, sentimento de posse, a visualização do
corpo feminino para Dagoberto, Soledade é abusada sexualmente. Seu pai pobre
sertanejo tinha a moral como fundamento primordial da vida, a mulher sem
“virgindade” era considerada dessorada, isso cria um imaginário que justificava o crime
de honra, assim o pai de Soledade na narrativa assassina um capataz em defesa da
moral de sua filha.
Ambas as obras nos apresenta a mentalidade do nordestino, transcorrida entre
o público e privado. Conceitos de moral, honra, masculinidade e virgindade. A liberdade
masculina versus a reclusa vida feminina seja na casa (vida doméstica), no cuidado com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
48

os filhos e sua sexualidade, no meio social etc. – a virgindade relevante nessa cultura,
assim como delimita, Fonseca:

A receita para a mulher ideal envolvia uma mistura de imagens: a mãe


piedosa da igreja, a mãe - educadora do Estado positivista, a esposa
companheira do aparato médico - higienista. Mas todas elas
convergiam para a pureza sexual – virgindade da moça, a castidade da
mulher para casar, era teoricamente preciso ser virgem. O próprio
código civil previa nulidade do casamento quando constatada pelo
marido a não virgindade da noiva (Fonseca, 2011, p.528).

A autora pontua, como a virgindade era pré-requisito de honra para o feminino,


pois representava toda a moral da família, explicitamente, do pai. A sexualidade da
mulher era temida e resguardada, em vez disso a sexualidade do homem era aberta e
estimulada precocemente, por exemplo, o protagonista da obra de Rego, Carlinhos.
Fonseca também salienta o discurso médico higienista sobre o corpo feminino,
sobre essa mentalidade Durval Muniz vai discorre e problematizar o “perigo”
propagado naquele contexto da década de 30, uma sociedade almejada moralizar as
instituições e trazer o novo, ao mesmo tempo justificada praticas arcaicas com ideias
novas, o discurso higienista vai pontua o corpo feminino como frágil, reafirmando seu
lugar inferior. Ainda sobre essa perspectiva, segundo Muniz: “Por isso lançam das
ameaças médicas e teorias ditas científicas que procuravam demonstrar os perigos que
esta igualdade traria para as mulheres, não apenas do ponto de vista moral, como do
ponto de vista físico (2013, p.43)”.
O discurso médico e higienista tornam-se mais um aparato sociocultural para
reafirmar a relevância do lugar feminino provido de uma desigualdade latente e
virtuosa para a sociedade. Aquele mundo agrário tratava o corpo feminino como objeto,
como demonstra as obras literárias, como propriedade do pai, responsabilidade da
família ou do noivo/marido. Uma moça “não virgem” é tão desonroso para o meio social
que até o adjetivo ou categoria sociocultural “moça” lhe é usurpado, “fulana não é
moça”.
O feminino acarreta inúmeras possibilidades de análise tanto pela história
quanto pela literatura, por meio dessas linguagens percebe-se como a mulher é
silenciada no ambiente social. De acordo com a literatura a vida privada feminina é
detalhada e entre no campo das Sensibilidades, pois através da narrativa fictícia as

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
49

emoções e vivências femininas são retratadas por meio de uma introdução que entra
no íntimo e nas mentalidades de tais personagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para a História e a historiografia a mulher (e outros sujeitos históricos são
preocupações atuais) é descrita por meio do discurso de cientificidade, por isso são
usados documentações e diversos tipos de fontes que podem dificultar a análise das
sensibilidades diferentemente da Literatura que tem a licença poética.
As personagens Soledade e Clarisse são as pontas de um iceberg dentro de
várias particularidades de violências contra as mulheres. Naquele contexto Soledade é
colocada por meio do narrador do romance como uma bela moça que usava sua
”feminilidade” (no sentido conotativo de sensualidade) exacerbada e isso é o retrato
produzido da personagem momentos antes do seu abuso sexual, ou seja, pelo discurso
do narrador a personagem detinha certo grau de culpabilidade é mesma premissa
machista da nossa sociedade atual diante de um crime de abuso ou assédio sexual no
qual a mulher é direcionada da esfera de vítima para “sedutora” e culpada, denotando
os aspectos ainda vigentes na nossa sociedade de mentalidade patriarcal e
paternalistas machista.
As violências contra as mulheres nessas obras regionalistas detalham as
particularidades sociais e culturais que as mulheres eram inseridas no nordeste na
década de 30. Uma sociedade marcada pelo triple: machista, patriarcal e paternalista. A
literatura traça um caminho que possibilita a visualização das sensibilidades e
mentalidades que surgem diante das violências contra o feminino. O mesmo ocorre com
a personagem Clarisse que foi assassinada num crime doméstico e o meio social tenta
criar “falas” que colocam seu algoz como vítima de si (melancólico e desiquilibrado), já
o abuso de Soledade, busca-se uma justiça para a família e não para ela.
Portanto, a História é feita de permanências e o nosso tempo presente
resguarda signos provenientes dessa mentalidade coletiva, imaginário e condutas
provindas dessa época. Um Nordeste, o falo e feminino (re)significado pelo viés
machista. Quantos homens na atualidade assassinam, abusam e assediam mulheres e
boa parte sociedade engendra uma linha tênue entre vítima e culpado, herança dessa
cultura.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
50

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed.
Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo; uma


História do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Editora Catavento,
2003.

ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira: romance / José Américo de Almeida;


introdução M. Cavalcanti Proença; ilustrações Poty. - 37a ed. com texto revisto da ed.
crítica. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

BORA, Z. M.; OLIVEIRA, M. R. de. A mulher Negra e as relações de Gênero em Menino


do Engenho de José Lins do Rego. Signótico, v. 23, n.1, p.231-245, jan./jun. 2011.

EL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. Coordenação de textos de


Carla Bassanesi. São Paulo: Contexto, 1997.

OLIVEIRA, Éris Antônio. Tragicidade e lirismo em A Bagaceira. Revista Trama -


Volume 2 - Número 4 - 2º Semestre de 2006.

PERSAVENTO, Sandra. História e Literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo


mundos, debates, 2006,[em línea ] Puestoel 28 janvier 2006,UR:htpp, nuevo
mundo.revues.org/index1560.html.consultado el 06 décembre2008.

REGO, José Lins. Menino do engenho. Apresentação Ivan Cavalcanti Proença. 108° Ed.
Rio de Janeiro. Olympio, 2017.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de Sensibilidades: espaços e narrativas da


loucura em três tempos (Brasil, 1905/1920/1937). Porto Alegre, 2005.

SILVA, Javana Garcia da. A (in) visibilidade do Feminino na obra Menino do Engenho,
de José Lins do Rego [Manuscrito]/ Javana Garcia da Silva:/. 2014.

SOUSA, Maria da Glória Ferreira; TIMBO, Margarida Pontes. As estruturas de poder


em A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Revista Rascunho Culturais, Coxim/MS.
V.6. n. 1. p.203-218. jan./jun. 2015.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
51

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER ALEMÃ NO DOCUMENTÁRIO


OLYMPIA DE LENI RIEFENSTAHL (1936-1938)

Fernanda Carla da S. Costa6


Sonní Lemos Barreto7

INTRODUÇÃO
Essa pesquisa cumpre o objetivo de analisar a representação das mulheres
alemãs, no documentário Olympia, onde no decorrer dessa narrativa fílmica, são
representadas as Olimpíadas de Berlim em 1936. Esse é o primeiro momento de
apresentação do poder nazista para o mundo, poder esse, que estava criando seu
espaço, oficialmente, desde 1933 com a ocupação de Hitler no cargo de chanceler.
Os objetivos específicos desse trabalho, buscam, demostrar um panorama da
historicidade alemã nesse recorte, explicar o processo de propaganda do regime
nazista, a partir da representação das mulheres alemãs, e realizar uma análise fílmica
dando conta de trazer parte representativa da fonte documental.
Assim, a problemática que buscamos investigar, questiona quais as
representações das mulheres alemãs no documentário? Agrupando a partir dessa
problemática, as circunstâncias das quais essas mulheres vivem e se socializam.
A metodologia faz um percurso pela pesquisa bibliográfica, com característica
descritiva, classificação a partir do tipo de documentário por Nichols (2010) e análise
fílmica a partir de Jullier e Marie (2009), como forma de uso dessa fonte documentária,
além da escolha de sequências, em cada uma das duas partes. As escolhas, foram
feitas, levando em consideração a representação dessas mulheres e todo o universo
que gira em torno do escopo do documentário, com a sua temática de Olimpíadas e seus
atletas.
Pensando no campo da historiografia, temos as influências decorrentes da
História Cultural, que são incorporadas para que os aparatos culturais mais diversos,
ganhem espaço de análise, levando a esse prisma sobre os usos e as interpretações

6 Graduanda em História – Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
graduada em História – Licenciatura pela Universidade Potiguar (UNP) mestranda em Ciência da
Informação, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – costacs.fernanda@gmail.com
7 Orientadora. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora

da Universidade Potiguar – sonni.lemos@unp.br

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
52

das práticas que os produzem, tomando a análise dos diversos aparatos culturais
(CHARTIER, 1991).
Nesses diversos usos de fonte documental, já advindo da Nova História8, uma das
fontes que ganham espaço significativo, é o cinema, que para além de representar o
que mostra, contém em si, um instrumento classificatório de formas do jogo de poder
(SANTIAGO JÚNIOR, 2009).
Dessa forma é imprescindível que o trabalho seja norteado em torno dos
conceitos de representação9, poder10 e discurso11, que são necessários para o campo de
compreensão da representação das mulheres, além do discurso e o poder mediante
todo esse contorno do nazismo. A escolha desses conceitos tem sua justificativa
alicerçada na tomada do cinema como representação e instrumento que produz e/ou
modifica uma dada realidade discursiva.

REPRESENTAÇÃO, DISCURSO E PODER


Todo processo de representação leva com ele um discurso advindo de uma ordem
de poder. “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.”
(FOUCAULT, 1999, p. 10). Dessa forma, uma disputa é sempre travada entre os que
dominam e tem poder, e aqueles que são a resistência a esse poder. É sabido também
que nem sempre esse poder se manifesta de forma explícita e bipolarizada. As
interdições podem produzir múltiplas manifestações de poder que perpassam a lógica
coercitiva e admite a introjeção de posturas condicionadas.
Já a representação como categoria dentro da História, ocupa um espaço próximo
da memória e das identidades sociais, que são fatores de disputa do poder, uma via
entre a representação e as resistências, onde “[...] supõe uma eficácia própria às ideias
e aos discursos, separados das formas que os comunicam, destacados das práticas que,
ao se apropriarem deles, os investem de significações plurais e concorrentes.”
(CHARTIER, 1991, p. 181).

8 Segundo Burke (1992) a Nova História, é produto direto da França, associada a Escola dos Annales, que
trouxe novas abordagens, problemas e objetos para o campo da História.
9 CHARTIER (1991) e (2002).
10 FOUCAULT (1979).
11 FOUCAULT (1996).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
53

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos preferidos com a posição de quem os utiliza.
(CHARTIER, 2002, p. 17).

Assim, a representação tanto trata das ausências e dos usos, que podem servir
como objeto de rememoração para essas representações, como também da ausência,
que funcionada junto com a relação simbólica do que é representado. “Uma relação
decifrável é, portanto, postulada entre o signo visível e o referente significado — o que
não quer dizer, é claro, que é necessariamente decifrado tal qual deveria ser.”
(CHARTIER, 1991, p. 184).
Pensando em representação das mulheres nesse meio específico do nazismo, da
posição referente ao arianismo, podemos perceber que as representações estão além
da sua área social de recepção e percepção, pois agem para além das divisões do que é
cristalizado (CHARTIER, 1991). Com isso, “a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 8-9).
O poder é um meio disciplinador na sociedade, seja por meio de uma instituição
diretamente, ou pela ordem que ela institucionaliza para outros sujeitos a
representarem. Entender que não se trata de perceber o por que há uma disputa de
dominação, mas sim, como funciona no nível de processo, para perceber como o poder
é ocupado.

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está
em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem.
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos
não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder,
e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se
aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 1979, p. 183-184).

A representação tem o poder de transformar como instrumento que produz aquilo


que os que dominam, ou seja, por onde passa essa rede de poder, o que necessita para
impor, já que “as lutas de representação têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
54

impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.”
(CHARTIER, 2002, p. 17).
O discurso dentro disso também, passando pelo processo de representação, tem
a característica da apropriação social, onde segundo Foucault (1996), um dos meios
para essa apropriação é a educação, que permite um sistema montar os poderes, sendo
assim um grande sistema de exclusão.
Dessa forma, pensar a representação, o discurso e o poder, nessa investigação,
implica entender como a partir do regime nazista e de toda sua ideologia discursiva
sobre raça ariana, o documentário em tela dar visibilidade a um dado poder feminino,
que é instituído por meio da disseminação da eugenia, do antissemitismo e, de forma
mais específica, onde a mulher é colocada como parte significativa desse sistema
ideológico.

PANORAMA DA ALEMANHA NO ENTRE GUERRAS


Memórias são criadas, reinventadas e inventadas, tudo em busca de perpetuação
de ideais ultranacionalistas na Alemanha anterior a Segunda Guerra e durante todo seu
acontecimento, assim, a História das Mulheres, também é um caminho de observação
desse contexto:

[...] a importância das mulheres na história significa necessariamente ir


contra as definições de história e seus agentes já estabelecidos como
“verdadeiros”, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que
aconteceu (ou teve importância) no passado. (SCOTT, 1992, p. 77).

Pós Primeira Guerra, a Alemanha é um país que se sente injustiçado, dividido e


empobrecido, os tratados travados na Europa, eram de imposição de uma paz punitiva
“[...] justificada pelo argumento de que o Estado era o único responsável pela guerra e
todas as suas consequências [...] para mantê-la permanentemente enfraquecida”
(HOBSBAWN, 1995, p. 41).
Período de crise que assola mundialmente esse grande contexto da história, a
crise dos anos 1920, segundo Hobsbawn (1995, p. 43), é que quando o mundo “[...]
pareceu ter deixado para trás a guerra e a perturbação pós-guerra, a economia mundial
mergulha na maior e mais dramática crise que conhecera desde a Revolução Industrial”.
Os processos derivados disso vão transformado os países, e claramente o contexto

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
55

alemão, como de alguns outros países, levando a forças políticas conturbadas e


militaristas.
Esse período, entre os anos 1920 e 1930 é de uma Alemanha em constante
turbulência política. “Os alemães viviam numa exaustiva cultura de agitação e
campanhas políticas, com uma crua fusão de provocações e propagandas de massa,
que os levava frequentemente às urnas” (LOWER, 2014, p. 31), assim, uma democracia
que se torna fragilizada, com diversos precedentes para seu ataque.
Almeida (2011) diz que o próprio processo de historiografia no país, tem sua
ligação com uma História Social12, que questiona os aspectos de hereditariedade,
reconhecimento de fronteiras e seu legado político advindo das dinastias, com um
reordenamento social onde todos os alemães pertenciam a um Reich.

O nazismo é impulsionado por estas pressões e contradições do


período pós 1ª Guerra Mundial que serviram de base para a construção
do nacionalismo alemão, diante de uma crise da representação política
entre 1919 a 1933, conotando uma característica de unidade do período
entre guerras. (ALMEIDA, 2011, p. 10).

Todo esse contexto, advindo dos processos da primeira grande guerra, torna a
Alemanha um país instável e com uma ultradireita que busca através das suas
memórias e vivências, um passado de glória, que por eles, fora vivido em outrora pelos
povos germânicos. Assim, a força de apoio ao nazismo, que transforma a figura do Hitler
em uma liderança, faz com que o espaço de violência criado pelo Terceiro Reich, se torne
um movimento de guerra interno e externo.

Esse foi um terreno fértil para o crescimento de um movimento político


construído sobre o ódio, dedicado a liquidar o sistema político que
nascera da derrota militar, superarando as divisões políticas e sociais
pela criação de uma “comunidade do povo” alemão
(volksgemeinschaft) e reverter “o terrível acontecimento”, “essa
miséria” de novembro de 1918. (BESSEL, 2014, p. 23).

Essa arena social e política do país, segundo Lower (2014, p. 28), viu explosão de
movimentos desordenados, grupos de justiceiros e partidos organizados de todo tipo,
dentre esses, o próprio partido nazista, que ganhou força com suas mensagens, no

História de grupos sociais e grandes massas, surgindo sobre a motivação de compreender grupos
12

marginais no contexto da história (BURKE, 1992).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
56

ponto máximo da crise em 1930, trazendo o sentimento de ressentimento, das


promessas de vingança e de esperança em um futuro melhor (BESSEL, 2014, p. 41).
Apesar da personificação de Hitler como personagem principal para o
desenvolvimento do que viria a ser a Alemanha nazista, o seu processo de tomada do
poder, passa por uma série de apoios, desde uma elite conservadora, até as forças
armadas, que fazem com que, de Chanceler, nomeado em janeiro de 1933, chegasse a
dar o último golpe de misericórdia, ao angariar os votos para o fim do parlamento
(BESSEL, 2014, p. 50-53).
Com isso, a ocupação do espaço do governo geral, com a morte do presidente, dá
a chefia do estado e comando supremo de forças armadas e poder judiciário, onde o
fato da inconstitucionalidade não era mais levado em consideração, com plebiscito que
serve apenas para reafirmar tudo que já estava acontecendo, onde o nacional-socialista
passa a controlar todos os aspectos de vida alemã (KITCHEN, 2006, p. 270). A partir
dessa tomada de poder e dessa definição da vida social através dos aspectos do
nacional-socialismo: “Primeiro veio o espetáculo de propaganda, cheio de simbolismo,
para mostrar que o triunfo do nazismo reforçava os valores nacionais” (BESSEL, 2014,
p. 52).
O que vinha a seguir às resoluções políticas, que abriam caminho principalmente
para guerra, o antissemitismo e a procura pelo triunfo alemão, era o encontro como
tudo aquilo que outrora foi sendo moldado para o alemão: “O homem do völkisch é um
alemão genuíno, absolutamente idêntico a si próprio, e oposto a tudo que representa a
sua negação, o não-völkisch, isto é, aquele que lhe é intrinsecamente diferente, o
forasteiro, o estrangeiro” (LÉVY, 2008, p. 95), a parte da essencial do regime.

A REPRESENTAÇÃO DE UMA REALIDADE DECUPADA: AS MULHERES ALEMÃS NO


CONTEXTO ENTRE GUERRAS
As mulheres durante o período de transição político, econômico e social, dessa
Alemanha efusiva, também são agentes que são incluídas nas mudanças, mesmo que
paulatinamente, pois o espaço que passam a ocupar, é fruto também, de todo o estado
de caos entre o fim da primeira guerra e o começo da segunda.

[...] legitimação masculina, muitas vezes é construída pela imagem e


muitas vezes também através da violência que tem por função
reafirmar os papéis sociais do masculino e do feminino que foram

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
57

desordenados por esse período entre guerras, já que estas mulheres


foram impulsionadas pelo mercado de consumo que gerou postos de
trabalho e também em decorrência da escassez de trabalhadores
homens durante o período da guerra. (ALMEIDA, 2011, p. 10).

Lower (2014, p. 28) explica que, nesse contexto, entre 1918 com a derrocada do
império e a nova ordem da democracia, houve mais chance de abertura e liberdade
individual para as mulheres. Foi nesse contexto da Primeira Guerra, que entraram para
a esfera pública, em suas relações de trabalho, ainda que não estabelecessem forte
ligação com a política, apesar de seu front ser sempre o espaço doméstico.
Com o desenrolar político da República ao Regime Nazista, as mulheres se
organizam a partir dos diferentes espaços políticos, porém “cerca de oito mil mulheres
comunistas, socialistas, pacifistas e “associais” estavam entre as pessoas
perseguidas” (LOWER, 2014, p. 33), e seguiam todas para os primeiros campos de
concentração. Com isso “o aumento de prisioneiras significava um aumento de guardas
femininas, recrutadas na Organização de Mulheres do Partido Nazista” (LOWER, 2014,
p. 33).
O símbolo da mulher, na tomada do front nazista, passa a ser uma das principais
responsáveis pela difusão do ideal de raça dessa ideologia, a obrigatoriedade de
reprodução, de sair do mercado de trabalho e constituir nichos familiares arianos, com
criação exemplar das ideias de formar um povo superior e preparado para guerra.
Apesar do fomento para o casamento, a criação de processos de fomento para
identificar a possibilidade de se reproduzir com bons filhos, para os casais, acaba sendo
algo que rui em determinado período, já que a mulher volta a ter o poder de trabalhar a
favor do desenvolvimento do regime, que precisava de pessoas para produzir, quanto
mais o tempo se tornava próximo de eclosão da segunda guerra (BESSEL, 2014).
Os lugares que elas podem ocupar no proceder das coisas, não são os mesmos
que os homens, apesar de Hitler proclamar que “[...] o lugar de mulher é tanto no lar
como no movimento” (LOWER, 2014, p. 34), sua carga de chefiar algo, estava quase
sempre ligada ao padrão do papel feminino de cuidar.

Cada vez mais mulheres arranjavam emprego, inclusive na economia


armamentista (isto é, nos setores químico e elétrico), apesar da
ideologia nazista, que considerava o lar como o lugar apropriado para
mulheres e dar à luz como o serviço mais importante que poderiam

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
58

prestar à Volksgemeinschaft (desde que fossem racialmente


aceitáveis). (BESSEL, 2014, p. 57).

Com isso a mulher está em diversos espaços, sendo permitidas dentro do


nazismo, como mão de obra e também como detentoras do poder de propagação dessa
raça, que fazia com que o regime respeitasse as puramente alemãs e cuidassem para
assegurar que as mesmas pudessem reproduzir. Além disso, todo seu padrão de
comportamento e estética era cuidadosamente ditado, para não ser espelho de um
padrão comportamental de mulheres que se vestiam de forma livre e faziam alto uso
de maquiagem (LOWER, 2014).
Dentro desse padrão de estética havia o atletismo, pois, essa mulher alemã,
moldada pelo nazismo, é essencial no esforço de guerra e nos cuidados de educar com
os ideais nazistas, sejam como professoras, enfermeiras, secretárias ou esposas, que
geraria o despertar racial, sendo “o brilho natural de uma jovem [...] o irradiar dos
exercícios físicos, da vida ao ar livre e, em sua mais elevada forma, da gravidez” (LOWER,
2014, p. 38).

O OLHAR DO CINEMA DOCUMENTÁRIO NO NAZISMO: A CINEASTA LENI


RIEFENSTAHL
A decupagem como processo do cinema, é onde se estruturam as sequências e
planos a partir da edição das partes, assim, Leni Riefenstahl, como cineasta a serviço
do nazismo, cria narrativa para uma ideologia a qual, a mesma, representa a partir de
uma conotação, que cria principalmente dois documentos para e época: O Triunfo da
Vontade (1935) e Olympia (1938).
A figura de Riefenstahl é controversa, é ao mesmo tempo, grande símbolo de
como o nazismo teve sua estruturação e triunfo a partir da propaganda. Seus filmes,
anos depois, são considerados os maiores repositórios memorialísticos de uma
Alemanha que buscava reencontrar seu passado de glória:

De bailarina a atriz, de atriz a diretora, para fotógrafa e mergulhadora,


a vida desta singular figura, cuja trajetória é, ao mesmo tempo,
fascinante e intrigante, é verdadeiramente um grande enigma para as
discussões sobre a arte, na atualidade. Banida e ignorada em seus
talentos artísticos, mesmo depois de ter sido absolvida nos
julgamentos de Nuremberg, após a guerra [...]. Ela e seus filmes
permanecem como controvérsias de uma frágil moralidade. Sobretudo

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
59

quando se trata de Olympia, filme que estabelece novos padrões e


novas questões, aliás, muito profundas, sobre a beleza. (FERREIRA,
2002, p. 16).

Ela em sua nebulosa produção, que se vincula, a todo momento, ao ideal nazista,
faz também uma revolução na estética do cinema, pois as formas como corta as
imagens, faz sua montagem, utiliza do som e novos recursos, cria maneiras para captar
imagens do esporte, são recursos que repercutem até o presente momento (TEXEIRA,
2008).

Figura 1: Leni cumprimenta Hitler. Fonte: Hoffmann (1938).

Tomadas, planos diferenciados, mecanismo e técnicas são o que levam a sua


marca no meio técnico do cinema, apesar de toda carga ideológica, ainda é vista como
uma das maiores cineastas do período moderno, carregando ao mesmo tempo as
benesses da sua brilhante produção técnica, mas também, o estigma devastador da
propaganda de um regime totalitarista.
Leni daria um toque de profissionalismo e talento ao filme documentário político
alemão. Para ela, foi uma questão de transferir a imensidão silenciosa dos Alpes, onde
gostava de filmar e aparecer em todo o tipo de situação, para as colossais e barulhentas
concentrações de massa organizadas pelo partido nazista. Deslocar o alvo da câmera
dos cimos elevados e baixá-la para a planície onde se reuniam as multidões, mantendo
sempre o seu aspecto espetacular, magnificente (FERREIRA; PASSAMANI, [200-], p. 3-
4).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
60

O DOCUMENTÁRIO OLYMPIA E SUAS ASPIRAÇÕES DE REPRESENTAÇÃO


A maneira pela qual o documentário se estabelece em suas características,
funções e missões, tem a ver diante de tudo, em sua relação como linguagem, do modo
de filmar, muitas vezes colocado apenas dentro do aspecto de não ficção, tem poder
científico, etnográfico, histórico (TEXEIRA, 2008).
A imagem por si só guarda entre suas funções, a de mostrar uma estética, assim
o documentário em sua linguagem já tem como signo esse preceito estético. No caso
do documentário Olympia, essa função é potencializada por uma ideologia que é
representada por ele, “marco do documentário esportivo mundial encontramos neste
filme uma maneira bastante artística de mostrar o virtuosismo do espetáculo esportivo
e a beleza estética dos esportistas em movimento” (PORPINO; SILVA; TORRES, 2014,
p. 2).
O documentário é dividido em duas partes: parte 1 – Festa do Povo (Fest der
Völker) e parte 2 – Festival de Beleza (Fest der Schoenheit), onde a primeira parte tem
como maior relação o resgate primeiro de uma memória da Grécia antiga e de colocar
essa relação com a memória e o destino de glória do povo alemão, além de toda a
adoração ao nazismo e sua construção de raça, feita principalmente pela segunda parte.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
61

Figura 2: Cartazes do Olympia parte 1 e 2. Fonte: DIE! (2009)

Assim, podemos colocar ainda a construção dessa representação:

[...] a ênfase dada ao corpo em suas imagens. Mas não um corpo


qualquer. Trata-se de um corpo de linhas puras, poderoso, vigoroso,
que parece emanar a certeza de um destino maior, de algo para além de
si mesmo que precisa de um esforço individual para se tornar concreto.
Um corpo capaz de endurecer, de se alhear de si mesmo para se tornar
colunas, blocos, linhas, coro a estourar o som diante da presença de
Fuhrer. (TEXEIRA, 2008, p. 26).

Com o papel persuasivo do Olympia, trazemos à tona a discursão do regime


utilizando de ferramentas para formar uma consciência da ideologia do povo germânico
puro. Como Agente, o documentário mostra como o momento anterior a guerra, a
olimpíada e o ditador, são figuras principais dos passos seguintes.
Como reflexo, a olimpíada em 1936, é o testemunho de um regime que procura se
instaurar, usando o documentário como difusor de uma Alemanha cheia de potencial,
já como representação dos personagens, atletas e do ditador, formam uma estrutura
de análise do poder de corporificação que buscava ser formado, mostrando assim, o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
62

retrato de como esse povo deveria ser: “O mais rápido, quanto mais veloz, melhor, a
superação física do atleta mostrava a rapidez com que o povo alemão queria e estava
conseguindo se reerguer e principalmente impulsionar sua indústria bélica”
(MOSTARO, 2012, p. 105).
O padrão ariano, pensado e imposto pelo nazismo, tinha um foco muito específico
no que nele, era trazido como atributo de uma memória, aos povos antigos e aos jogos
que se desenvolvem desde esse período. Nesse sentido, os homens e mulheres, apesar
de terem de seguir um foco pautado na rapidez, força e velocidade, eram também
divididos de formas diferentes pelo que se espera dos atributos dos mesmos. Assim,
como as mulheres, eram condicionadas por toda a sua educação, ao corpo atlético e
forte (LOWER, 2014).
As mulheres nesse contexto esportivo, ainda eram cercadas de limitações, pelos
tipos de esporte que poderiam participar, pelo pouco tempo que as primeiras mulheres
passam a compor as Olimpíadas. No caso das alemãs, o destaque tem uma ligação de
circunstância de como eram um padrão de beleza e saúde:
A ideologia do volk tinha sua própria estética feminina. Segundo essa ideologia, a
beleza era produto de uma dieta saudável e atletismo, e não de cosméticos. As
mulheres e meninas alemãs não deveriam pintar as unhas, depilar as sobrancelhas,
usar batom, tingir os cabelos ou serem muito magras. (LOWER, 2014, p. 37).
Sobre as mulheres, há também uma forma de construir uma memória acerca do
seu papel social, mesmo que seu lugar seja primordialmente o doméstico, seu espaço
se modela de acordo com as necessidades do poder ideológico de formação de uma
raça pura, dá qual ela, era principal responsável, com isso, tem seu lugar nesse espaço
de atletismo e de formação estética.

REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES DA ALEMANHA E O DISCURSO DE


PROPAGANDA DE UM REGIME
Chartier (1991) fala em duas divisões da representação, onde uma representação
mostra a ausência, onde há uma distinção entre o que representa e o que é
representado, e na segunda, temos que é a representação de uma presença, sendo
pública, de uma coisa ou pessoa.
Com isso o documentário representa de maneira direta a força e o poder que
tomava conta das Olimpíadas, situadas na cidade de Berlim, capital da Alemanha, todo

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
63

esse capital de poder tem na figura do Hitler seu cunho potencializador, que é colocado
em momentos estratégicos e potenciais para se fazer a problematização. Tudo isso, se
classifica no ponto de hibridismo de leitura dessa obra, que ao mostrar a Olimpíada,
pede uma leitura para além dela.
Assim, sabendo que o documentário tem uma geografia, um caráter ideológico,
um momento político especifico, que dentro disso tudo, faz um recorte de um evento
esportivo, podemos estabelecer as problematizações em torno dele, mostrando como
um momento de jogos que são de conexões mundiais, foi usado dentro do regime
nazista para mostrar o poder que estavam estabelecendo e queriam potencializar de
forma a tomar maior alcance.
Segundo Nichols (2005), o documentário pode ser classificado em gêneros, tais
como, poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático. A partir
dessa classificação e dentro dessas, a análise fílmica pode adotar perspectivas mais
específicas. Assim, o modo de representação de Olympia, se alinha a um documentário
poético (NICHOLS, 2005, p. 138) que enfatiza a transmissão dessa propaganda nazista,
em uma ação persuasiva. Sendo assim, foram usados desse modo, cenas, ângulos,
efeitos visuais, sonoros e de edição que valorizam o corpo e os movimentos dos atletas,
criando uma atmosfera diferente do real para transmitir a ideia de um corpo ideal,
utilizando-se de valores estéticos na propagação de uma ideologia.

ANÁLISE DO DOCUMENTÁRIO: A METODOLOGIA DE ANÁLISE FÍLMICA DE JULLIER


E MARIE (2009)
Ficha Técnica
Olympia- Fest der Völker e Fest der Schoenheit, 1938. Direção: Leni Riefenstahl.
Produção: Leni Riefenstahl. Roteiro: Leni Riefenstahl. Montagem: Leni Riefenstahl.
Fotografia: Hans Ertl, Walter Frentz, GuzziLantschner, Kurt Neubert, Hans Scheib.
Música: Herbert Windt. Elenco: David Albritton, Jack Beresford, Henri de Baillet-Latour,
Philip Edwards, Donald Finlay, Adolf Hitler, Rudolf Hess, Rei Umberto II, Theodor
Lewald, Luz Long, John Lovelock, Seung-yong Nam, Dorothy Odam, Martinus
Osendarp, Jesse Owens, Leni Riefenstahl, Mack Robinson, Kee-chungSohn, Henri
Nannen, Joseph Goebbels. Duração: 126 minutos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
64

Resumo
No ano de 1936, acontecem na cidade de Berlim, as Olimpíadas de verão, mais
especificamente no mês de agosto. Países de todo o mundo participam do evento,
apesar do clima que circunda do nazismo já instaurado como um regime, que buscava
nesse evento, mostrar ao mundo, seu poder de transformação de uma nação. A
comemoração desse evento tem em si a dualidade das representações, entre os
germânicos e os outros, que são explicitados a partir das vitórias e derrotas. Apesar de
sediar as Olimpíadas, Berlim esconde tudo aquilo que acontece em suas reviravoltas
políticas, que não são explicitadas de forma clara no decorrer dos momentos de euforia
e tristeza das disputas olímpicas.

Em torno do filme
Lançado em 1938, pouco tempo antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial,
Olympia é visto pela crítica como um novo olhar do documentário esportivo, algo novo,
que traz o que nunca antes havia sido visto daquela forma, além do esforço de
Riefenstahl em trazer novas técnicas de filmagem e decupagem. Uma das maiores
polêmicas em torno do documentário, foca na vitória de Jesse Owens, atleta norte-
americano e negro, que vence na modalidade Atletismo e contradiz todo o mito em
torno da inferioridade dos negros, em um período que a eugenia reafirmava padrões de
normalização.

Situação da sequência
As sequências elencadas para análise, são duas da primeira parte e outra da
segunda parte. Na primeira parte, as mulheres, principalmente alemãs, aparecem como
representações mais fortes, é apenas no que é elencado aqui a partir das referências,
temos um corpus que busca trazer uma visão geral desse documentário.
A primeira sequência se passa na abertura, da primeira parte, onde o jogo entre o
homem alemão e grego antigo, é feito para evocar as memórias do mundo antigo,
trazendo a gloria daqueles homens e daquele povo durante os jogos olímpicos.
As evidências principais dessa primeira sequência são as marcas que o regime
busca deixar, promovendo o corpo das mulheres de tal forma, que propague e afirme o
ideal de um corpo atlético e cheio de vitalidade, que no fim, era o corpo propício para
dar continuidade a raça ariana.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
65

1. Os corpos das mulheres são brancos, magros e bem moldados, se separam e


com os braços erguidos, tem em si, a imagem da referenciação, é ao fundo a luz, com
um sol, ilumina a glória desses corpos e dessas mulheres 113. 2. O sinal de referenciação
se junta aos poucos 2. 3. Esse plano, muda o recorte da cena, que torna mais próximo
aos bustos, focalizando nessa junção dos corpos 3. 4. São no final, um corpo todo, a
representação de uma nação conjunta, a partir do corpo feminino, símbolo de
perpetuação do arianismo 4.

1-2

3-4

Vemos então, o padrão estético e corpóreo das mulheres, junto com a menção
feita ao regime e como ele usa o corpo para fazer referência as suas ideias e o que busca
construir nesse momento, solidificando e fortificando tudo aquilo que estava sendo
construindo internamente na Alemanha. A partir da força dos homens e mulheres,
sendo essas mulheres aqui, centro da análise, sabemos que o padrão submetido,
mesmo que dentro do esporte, era reflexo do seu principal espaço nesse momento, que
vem de apoio a todas as ações dos homens que eram exclusivos em governar.

13 Numeração usada para indicar cena citada.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
66

A segunda sequência, se trata de Gisela Mauermeyer, que é exaltada por seu


recorde de lançamento de disco, levando-se em consideração que o Atletismo era o
esporte mais exaltado pelo regime, já que era o principal a remeter ao tempo glorioso
da Grécia. Os recortes anteriores, ao analisado aqui, mostram a acirrada disputa da qual
a atleta trava na final com outras competidoras. Esse recurso, é utilizado
principalmente para que a sequência a seguir, exalte a vitória da Alemanha, pela força
e supremacia da competidora.

1-2

3-4

5-6

1. A atleta reflete sobre o momento de olhos fechados, sobre o arremesso 1. 2. Se


prepara para o arremesso, mostrando assim toda a desenvoltura do seu corpo atlético
e musculoso 2 3 4. 3. O arremesso deixa o suspense por alguns segundos, como recurso

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
67

necessário para que se ponha em cheque se no final ela consegue superar as outras 5.
4. O close na atleta, mostra ela sorridente após parte a marcar das outras, sendo a sua
bastante superior, além disso, o close mostra bem o símbolo do partido nazista, que
ganha centralidade na cena deixando mais claro ainda o poder de superação e
supremacia dessa raça 6.
Na parte dois (2) do documentário, as sequências em que as mulheres aparecem
são ainda menores, podemos considerar que são duas delas. Na primeira parte do
documentário elas aparecem hasteando as bandeiras e indo em direção ao que seria o
centro da plataforma de comemorações e cerimonias do estádio. Na transição para o
segundo momento, as mulheres aparecem em uma dança, que faz remeter em muito a
ginástica rítmica, além de aparecerem no salto ornamental, esportes que mostram mais
as mulheres todas juntas, sem focar muito em uma ou um grupo.

1-2

3-4

5-6

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
68

7-8

1. A mulher perfeita do padrão ariano, aparece como uma primeira transição,


mostrando a parte superior do seu corpo e dos seus traços 1. 2. Os corpos se juntam
em ritmo, como a ginastica no atletismo, onde todos vão dando um sentido de junção e
completitude 234. 3. Já aparecem mais especificamente com aparelhos da ginastica,
que completam o movimento 5. 4. A visão da câmera vai subindo, mostrando como
todos esses corpos se juntam de uma visão de cima 7. 5. Se torna uma visão aérea, onde
o recurso, faz com que pareçam, que há milhares de mulheres fazendo a mesma
sincronia, em frente ao estádio olímpico, mas uma vez, símbolo do poder de junção
dessa raça e desses corpos 8.
Assim, percebemos que essa segunda parte, que em sua tradução, é intitulado,
Festival da Beleza, traz em sua representação a propagação de um discurso da beleza
muito mais voltada para o masculino, dentro do âmbito da olimpíada. As mulheres
aparecem em um número irrisório, e as alemãs também não são privilegiadas, em
detrimento da primeira parte, que mesmo aparecendo menos, são mais privilegiadas
em suas representações da partir das evidencias destacadas para o corpo e imagem da
mulher alemã.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, temos a representação de uma mulher alemã no padrão estabelecido
pelo arianismo dentro de toda a corrente de pensamento nazista, em um fronte que não
era considerado como tipicamente sendo o seu, já que o espaço a elas destinado estava
sempre relacionado a ajudar, auxiliar e principalmente formar no período entre guerras.
A hipótese colocada, que partia do aparecimento das mulheres alemãs, em menor
grau, se confirma a partir da análise, pois, para além da participação das mulheres ser

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
69

um fenômeno novo nas olimpíadas, os esportes que participavam eram em menor


quantidade. Mesmo com esse fato, poucos esportes aparecem e os mais destacados
estão na seleção de sequências explorados pela análise fílmica.
O corpo da mulher nesse contexto, é marca de tudo aquilo que se propaga sobre
a supremacia necessária, através da força e do poder de um corpo capaz de gerar vidas,
que são o futuro da purificação da raça, sendo toda a decupagem reflexo disso, dessa
propaganda feita para o mundo tanto no momento do evento, quanto posteriormente.
Entendemos por fim, que a Alemanha dessa representação, passa por uma
política de Estado, que torna o país fraco e sem dependência, que por meio dessa
efervescência política, o nazismo ganha força, a partir de uma organização social que
mexe com todas as esferas.
Nesse quesito, temos então, uma configuração que pleiteia bem quem são seus
cidadãos, como seguir os ideais e como governar, onde impera a raça ariana, é seu
padrão, bem centrado de mulheres, reprodutoras, auxiliares e frente necessária para
que todo esse poder, se torne hegemônico. Tudo isso, parte da concepção que o
arianismo impunha por meio do seu regime de exclusão e repressão.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Letícia Leal de. A nova História Cultural na Alemanha: algumas
observações. Revista Expedições: Teoria da História & Historiografia, Goiás, n. 3, p. 1-
16, dez. 2011. Disponível em:
<http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth/article/view/259>. Acesso em: 25
ago. 2017.

BESSEL, Richard. Nazismo e guerra. Rio de Janeiro: Record, 2014.

BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP,
1992.

CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre certezas e Inquietude. Porto


Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

CHARTIER, Roger. A história Cultural: Entre práticas e representações. 2. ed. Algés:


Memória e Sociedade, 2002.

DIE!, 1001 Movies…before I. Olympia (Parts 1 & 2: Festival of the Nations and Festival
of Beauty) (1938). 2009. Disponível em:
<https://ehaugenboe.wordpress.com/2009/09/01/olympia-parts-1-2-festival-of-the-
nations-and-festival-of-beauty-1938/>. Acesso em: 19 ago. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
70

FERREIRA, Alexandre Maccari; PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O cinema no limiar


da ética: Leni Riefenstahl e a produção cinematográfica nazista. In: CORAL, 2., [200-],
Santa Maria, Rs. Anais... . Santa Maria: UFSM, [200-]. p. 1 - 10. Disponível em:
<http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/006e2.pdf>. Acesso em: 2 set. 2017.

FOUCAULT, Michael. A Ordem do Discurso: Aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1941-1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. p. 7-61.

HOFFMANN, Heinrich. Leni Riefenstahl (l) congratulating Adolf Hitler to his 49th
birthday. 1938. Disponível em: <http://www.gettyimages.com/detail/news-
photo/germany-free-state-prussia-leni-riefenstahl-congratulating-news-
photo/545967443#germany-free-state-prussia-leni-riefenstahl-congratulating-
adolf-to-picture-id545967443>. Acesso em: 20 set. 2017.

JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Senac,
2009. p. 19-146.

LÉVY, Gilbert Isidore. A matriz do poder totalitário: Reflexões sobre a Alemanha


nacional-socialista. 2008. 161 f. Tese (Doutorado) - Curso de Ciências Sociais, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. Cap. 2. Disponível em:
<https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/3991>. Acesso em: 04 set. 2017.

LOWE, Wendy. As mulheres do nazismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro. Jogos Olímpicos de Berlim 1936: o uso do


esporte para fins nada esportivos. Logos: comunicação e universidade, Rio de Janeiro,
v. 19, n. 1, p.95-108, jan. 2012. Semestral. Disponível em: <http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/3283/2904>. Acesso em: 03 ago.
2017.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2005.

PORPINO, Karenine de Oliveira; SILVA, Liege Monique Filgueiras da; TORRES, Lais
Saraiva. Corpo e técnica em olympia. Recorde: Revista de História do Esporte, Rio de
Janeiro, v. 7, n. 1, p.1-11, jan/jun. 2014. Semestral.

SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 63-95.

TEIXEIRA, Karoline Viana. A orgia dos sentidos: A construção do corpo nas imagens
de Olympia, de Leni Riefenstahl. 2008. 250 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós-
graduação em História Social, Departamento de História, Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2008. Disponível em:
<http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/3057>. Acesso em: 25 jun. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
71

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
72

“SE TE AGARRO COM OUTRO TE MATO”:


DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA À LEI MARIA DA PENHA

Luísa Medeiros Brito14


Janaina Porto Sobreira15

INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher é um problema que possui dados alarmantes em
nosso país. Estima-se que, no Brasil, cinco mulheres são agredidas a cada dois minutos,
sendo o parceiro íntimo responsável por até 80% dos casos apontados. A situação de
violência doméstica e familiar que as mulheres enfrentam é muitas vezes,
negligenciada pela sociedade, em razão das categorias históricas e culturais que
alimentam desigualdades entre homens e mulheres e patrocinam o silenciamento e
conivência com estes crimes, como aconteceu durante um longo período histórico do
nosso país em que o argumento da “legítima defesa da honra” encontrava guarida no
julgamento dos parceiros íntimos que matavam suas mulheres, sob a justificativa de
que foram traídos.
Todavia, pressionado pelos grupos de defesa dos direitos humanos,
principalmente dos grupos feministas, e após condenação nas instâncias jurídicas
internacionais, o Estado brasileiro se viu obrigado a interferir de forma direta na
coibição e punição da violência de gênero contra a mulher no âmbito doméstico e
familiar.
Devemos ter cuidado para não cairmos na armadilha de considerar a violência
contra a mulher apenas como algo ocasional. O enfretamento desse tipo de violência
deve ocorrer diariamente, atacando a sua origem patriarcal e machista para não termos
nossas ações obnubiladas em favor dos discursos heroicos de resistência na esfera
individual.
A criação da Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha,
criminaliza e dá um passo para o rompimento da tradição naturalizadora dessa
violência. Destacamos a necessidade de haver o reconhecimento social da gravidade
dessas situações para que haja o estabelecimento de políticas que possibilitem a

14 Bacharela em Direito. Mestranda em Ciências Sociais PPGCS/UFRN. Graduanda em História


CERES/UFRN. luisabritom@gmail.com
15 Graduada em História. Mestranda em História PPGH/UFRN. janaporto_2008@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
73

superação das realidades negadoras dos direitos das mulheres e sejam criadas
políticas públicas que ofereçam real proteção e condições dessas pessoas romperem
com a situação de violência a que são submetidas.

O PAPEL DO PATRIARCADO NA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


O Brasil amarga um processo de degradação política, econômica e social que se
estende ao longo dos anos e paralelamente a isso, vivemos um clima de pavor,
alarmados pelo tão badalado fenômeno da violência. Fala-se de violência como um
fenômeno que dispensa conceituações, ela é algo cotidiano, rotineiro, a gente sabe que
existe, está por toda parte. O Estado é violento, a cidade, o bairro, a vida...
A violência define como vivemos, o que tememos e sobretudo, nos coloca diante
de nossa finitude, expõe nossa fragilidade, destrói nossas ilusões de que somos
intocáveis ou indestrutíveis. Apesar de figurar, na maioria das vezes, como um espectro
nebuloso, ela tem como característica a criação de inimigos concretos: o marginal, a
bandidagem, o vagabundo...são com eles que precisamos tomar cuidado. É por causa
desses inimigos que construímos verdadeiras fortalezas urbanas, blindamos nossos
carros, não frequentamos praças nem qualquer outro espaço público.
Não estamos seguros! Temos medo!
Podemos, assim, estabelecer o significado popular da violência como sendo a
ruptura de qualquer forma de integridade da vítima. (SAFFIOTI, 2004). Entretanto, não
podemos nos contentar com essa definição, tendo em vista que é cogente compreender
como ela opera nas diversas situações de nossas vidas, sobretudo no que tange à
violência doméstica e familiar contra a mulher, alvo deste trabalho.
A violência contra a mulher é um problema que possui dados alarmantes em
nosso país. Estima-se que, no Brasil, cinco mulheres são agredidas a cada dois minutos,
sendo o parceiro íntimo16 responsável por até 80% dos casos, expondo que as mulheres
estão sujeitas a um tipo de violência distinto da que os homens enfrentam.
A situação de violência doméstica e familiar que as mulheres estão expostas é
muitas vezes, negligenciada pela sociedade, em razão das categorias históricas e
culturais que alimentam desigualdades entre homens e mulheres e patrocinam o

16Aqui considerado como todo aquele que tem ou teve um relacionamento afetivo/sexual com a mulher,
seja marido, namorado, companheiro ou ex.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
74

silenciamento e conivência com estes crimes. De acordo com Alambert, “um exame,
mesmo que superficial, da história da mulher, vai nos indicar que se trata de uma
história de exclusão, invisibilidade, opressão e exploração, que perpassa todos os
séculos, todas as idades e todos os países do mundo” (2004, p. 26).
O patriarcado foi responsável pela transferência das mulheres para o mundo
privado do lar, pois, com ele, surgiu também a necessidade de uma esposa virgem para
gerar herdeiros cujo pai é certo e nominado. Assim, conforme nos aponta Engels, “a
mulher foi convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples
instrumento de reprodução” (1984, p. 61). Com a exclusão das mulheres da vida social,
a existência delas foi reduzida ao restrito espaço do lar patriarcal, onde o poder do
macho é inconteste.
Assim, ao longo dos anos foi sendo construída a ideia do feminino dócil, gentil e
submisso ao homem. “As mulheres vão se convertendo no feminino que predominou
ao longo de milênios: pessoas dependentes, débeis, frágeis, ignorantes, bonitas para os
homens aos quais devem servir, dóceis, compreensivas” (LESSA, 2012, p.37). Enquanto
isso, o masculino é sinônimo de força, virilidade, riquezas, honra e coragem.
Há uma divisão dos papeis na sociedade de acordo com o sexo, cabendo aos
homens as tarefas que envolvem força e protagonismo social, já às mulheres, restam
as atividades domésticas e os demais papeis de dependência e subordinação. As
diferenças de gênero17 são, portanto, imposições sociais.
Pode parecer ultrapassado trazer à tona o conceito de patriarcado em tempos
em que há regozijo na conquista do mercado de trabalho pelas mulheres, nos avanços
em sua autonomia e na crescente participação na política, no entanto, endossamos as
teorias que afirmam ser o patriarcado um sistema que se transforma para abarcar os
novos modelos sociais, apresentando-se de forma distinta da que fora concebida.

17Há uma série de teorias conflitantes no que tange ao conceito de gênero, todavia, seguindo o
entendimento de Saffioti acreditamos que “cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero,
havendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção social do masculino e do
feminino” (2004, p. 45, grifo nosso). Cabe esclarecer que, seguindo a autora citada, neste trabalho
usamos o conceito de gênero como categoria geral, englobando toda a história, e o de patriarcado como
categoria específica de um período que compreende os seis ou sete últimos milênios até os dias atuais.
Neste sentido, também Aguiar quando afirma que “é perfeitamente possível empregar os dois conceitos,
de gênero e de patriarcado, observando-se, quanto ao primeiro, que ele possui conotações que não estão
presentes no último. Quanto ao patriarcado e o seu lugar na história, observa-se que a diferentes
momentos históricos corresponderiam distintas formas de organização patriarcal, sendo este um
fenômeno variável” (2000, p. 324).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
75

Nessa esteira, não consideramos acertado abandonar o conceito de patriarcado


nem ignorar sua existência em prol de outras categorias, porque, “a recusa da utilização
do conceito de patriarcado permite que este esquema de exploração-dominação [das
mulheres] grasse e encontre formas e meios mais insidiosos de se expressar”
(SAFFIOTI, 2009, p. 24).
No mesmo sentido Pateman, quando afirma que perder de vista as bases sociais
e materiais do patriarcado seria um grande desserviço às mulheres e “representaria a
perda, pela teoria feminista, do único conceito que se refere especificamente à sujeição
da mulher, e que singulariza a forma de direito político que os homens exercem pelo
fato de serem homens” (1993, p. 39).
Trabalhando com essa categoria não nos tornamos alheias às diferenças sociais
entre as muitas mulheres existentes, seja em razão de classe, raça, sexualidade ou
etnia. Contudo, acreditamos que, no contexto de violência em que estamos inseridas, o
fato de sermos mulheres nos marca de uma forma ou de outra.

“SE TE AGARRO COM OUTRO EU TE MATO”18: A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA E A


IMPUNIDADE NA MORTE DE MULHERES
Numa sociedade em que a mulher, desde o seu nascimento, é educada para
constituir família, dedicar-se ao lar e ser eternamente fiel e submissa ao marido,
transgredir essas regras torna-se fatal, pois, sendo a mulher “entregue, sem reservas,
ao poder do homem: quando este a mata, não faz mais do que exercer o seu direito”
(ENGELS, 1984, p. 61).
Foi o que assistimos durante muito tempo em nosso país, quando o homem era
detentor da vida e da morte de sua companheira, tendo em vista que qualquer deslize
comportamental, sobretudo a traição, era motivo para o assassinato daquela que
ousava desobedecer a ordem patriarcal imposta.
A história do Brasil é marcada pela vergonhosa tese da “legítima defesa da
honra”, onde maridos feminicidas eram absolvidos no tribunal, sob a alegação de que
seu nome só poderia ser salvo perante a sociedade após ser lavado com o sangue da

18 Título de uma canção que foi grande sucesso na voz do cantor Sidney Magal, nos anos 1980.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
76

mulher desnaturada. No modelo de sociedade existente, o papel da mulher na


construção da honra se dava em razão dela ser a condutora da honra do macho19.
Honrado era aquele que perante a sociedade exercia bem a função de pai e
esposo, tinha um bom emprego e uma família respeitada. Apesar da honra pertencer ao
homem, a família deveria ser sua guardiã. Esse encargo recaía ainda mais fortemente
sobre as mulheres, por isso mesmo se exigia um severo controle sobre seu corpo,
afastando-a da esfera pública para que houvesse dedicação total ao lar e a plena
realização da honra masculina e, consequentemente, da família.
A sociedade brasileira absorveu de Portugal o costume do uso da violência no
âmago das famílias, por meio, inclusive, de seu aparato jurídico. “A maneira como o
Estado português do período colonial legislou a respeito das relações domésticas e
conjugais, depois de algum tempo, se tornou uma forma naturalizada de conceber as
relações familiares no Brasil” (SOUZA, BRITO e BARP, 2009, p. 64).
Mesmo levando-se em conta os processos de escravidão, miscigenação e
imigração aqui vivenciados, fazemos essa afirmação, pois, a organização de nossa
sociedade se deu sob a égide legislativa da Metrópole. Aqui, pôde-se observar uma
inversão na ordem de surgimento das leis, tendo em vista que, de maneira geral, os
costumes se apresentam como fonte do Direito e a lei é criada para regulamentar
práticas sociais já assentadas como costumes20. Todavia, no caso brasileiro, as leis
trazidas pela Corte Portuguesa passaram a ditar os comportamentos sociais dos
colonos.
A transplantação das Ordenações Filipinas trouxe para cá o modelo de Justiça
baseado na desigualdade entre os indivíduos, pois elas eram compostas por uma série

19Feminicida é aquele que comete feminicídio. Feminicídio, por sua vez, é o assassinato de uma mulher
por sua condição de mulher. Em uma perfeita definição dada pelo Congresso Nacional no Relatório Final
da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre a Violência contra a Mulher: “O feminicídio é
a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa
como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou
ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual
associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de
seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou
degradante.” (BRASIL, 2013, p. 1003)
20 Os costumes “são as práticas longevas, uniformes e gerais, constantes da repetição geral de

comportamentos, que, pela reiteração, passam a indicar um modo de proceder em determinado meio
social. É a norma criada e afirmada pelo uso social, de maneira espontânea, sem a intervenção legislativa.
Deve ser compreendido por dois diferentes ângulos: (i) objetivo, caracterizado pela repetição ou
reiteração; (ii) subjetivo, percebido pela convicção de sua necessidade

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
77

de livros que tinham como fundamento a discriminação, inclusive, com penas distintas
para um mesmo delito quando praticado por indivíduos de origens diferentes.
No caso do tratamento empregado às mulheres, vale destacar alguns aspectos:

A forma de compreender a violência, que aparece implícita nas atitudes


do marido, parece estar radicada em comportamentos
tradicionalmente reproduzidos e veiculados no senso comum, mas cujo
conteúdo, em essência, já havia sido prescrito nas Ordenações Filipinas.
Tal prescrição versava expressamente sobre o direito de o marido
agredir e, se julgasse necessário, matar a esposa flagrada em
adultério. (SOUSA, BRITO e BARP, 2009, p. 68, grifo nosso)

A legalidade do assassinato da mulher na simples suspeita de adultério não só


escancara o viés patriarcal de nossa colonização, como também expõe a desigualdade
jurídica-social que vivenciamos desde então. À mulher não era dado o direito de
desonrar o seu amo e senhor. A honra além de ser um privilégio masculino, era também
uma prerrogativa de classe, tendo em vista que o homem também poderia matar aquele
com quem sua mulher estava cometendo adultério, desde que fosse de uma classe
inferior.
No ano de 1830 passou a viger o Código Criminal do Império que alterou o nosso
regime jurídico e passou a criminalizar o assassinato dos cônjuges, mesmo quando
houvesse traição, mas com pesos e medidas distintos. Qualquer deslize da mulher era
considerado crime de adultério, mas para os homens, o mesmo só se daria se ele
mantivesse um relacionamento duradouro21.
Após a adoção do regime republicano, o Código Criminal Imperial foi revogado e,
em 1890, surge o “Código Penal dos Estados Unidos do Brazil”. Nesse período, o
machismo já havia se consolidado em nossa sociedade. Como prova, podemos citar a
diferenciação das mulheres nesse instrumento legislativo, inclusive com penas
distintas para os casos de estupro, caso a vítima fosse “pública”, “prostituta” ou
“honesta”. Se a estuprada fosse “honesta”, virgem ou não, a penalidade seria prisão de

21Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho
por um a tres annos.
A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo
antecedente. (CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO, 1830. Disponível em: https://goo.gl/mr6k6j.)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
78

um a seis anos. Mas se fosse “mulher pública” ou “prostituta”, a prisão passaria a ser
de seis meses a dois anos22 (BRASIL, 1890).
No tocante à honra, houve a continuidade, embora implícita, da possibilidade do
marido traído poder assassinar a esposa infiel, tendo em vista que o modo como esse
código trata a legítima defesa, afirmando que ela não se limita à vida, mas compreende
todos os direitos passíveis de lesão, tem a consequência prática de dar licitude à morte
da mulher adúltera ocasionada pelo esposo traído.
A lei foi moldada pelo discurso jurídico, de modo a perpetuar o poder patriarcal
sobre os corpos e acima de tudo, sobre a sexualidade das mulheres, dando azo para a
impunidade no tocante às mortes das esposas infiéis.
Em 1940 a legislação acima referida foi revogada e o código penal que se
sobrepôs permanece vigente até hoje. Apesar da mudança legal, as bases de nossa
sociedade permaneciam intactas e por isso mesmo, não houve transformação radical
no enfrentamento das questões específicas da mulher no que tange à esfera criminal
de nosso país. Mesmo com uma melhor descrição do instituto da legítima defesa23 e
com um capítulo próprio acerca dos crimes contra a honra24, houve um resgate da
teoria da “legítima defesa da honra”.
Para que a legítima defesa seja reconhecida, não se pode ultrapassar a
necessidade de proteção, nem haver a desproporcionalidade entre os meios
empregados na agressão e nos que forem utilizados para impedi-la ou repeli-la. Esses
requisitos são cumulativos e devem necessariamente ser considerados em conjunto.
Porém esse argumento prosperou durante muito tempo, mesmo estando em total
desacordo com a definição legal de “legítima defesa”.
Nunca existiu no Código Penal em vigor qualquer artigo que verse sobre a
“legítima defesa da honra”. A ressuscitação dessa tese só corrobora a ideia de que ao
longo de toda sua existência, a mulher é tida como menos valiosa e menos importante

22 Além disso, permanecia a diferenciação para a configuração do crime de adultério, tal qual o Código
Criminal Imperial. Se a mulher casada cometesse adultério, mesmo que fosse apenas um “deslize”, seria
punida com prisão de um a três anos, já o homem, precisaria de um caso duradouro, ou seja, possuir
“concubina teuda e manteuda”, para se encaixar no tipo penal.
23 De acordo com o artigo 25 do Código Penal em vigor, “entende-se em legítima defesa quem, usando

moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem”.
24 São considerados crimes contra a honra a injúria, a calúnia e a difamação que corresponde

respectivamente ao ato de ofender a dignidade ou decoro de outrem, imputar falsamente a alguém a


prática de um crime e atentar contra a reputação do indivíduo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
79

que a vida e a honra dos homens. Esse construto social legitimou a morte – pela via do
assassinato – de inúmeras mulheres que tiveram como algozes os seus parceiros
íntimos.
A visão da mulher como propriedade do marido é explorada nos processos
criminais de julgamento desses homicídios. É o que nos conta Eluf, quando traz um
determinado julgamento em que o réu havia matado sua esposa e a defesa reivindicava
a “legítima defesa da honra”. A conduta homicida foi assim explicada: “O réu não podia
suportar a idéia de que outro homem fosse ejacular nas entranhas de onde ele havia
saído” (2007, p. 166).
Colocações como essa eram bastante comuns nesses processos e tinham como
base o machismo e misoginia da sociedade, pois, o ato sexual praticado por uma mulher
fora do casamento era tido como algo “sujo”, “impuro”, passível de condenação moral
e social. Esse recurso à desmoralização da vítima promovia o achincalhe da “adúltera”
e transformava a mulher em culpada por não ter seguido as regras impostas pelo seu
“dono”.

Se, na Roma antiga, o patriarca detinha poder de vida e morte sobre sua
esposa e seus filhos, hoje tal poder não mais existe, no plano de jure.
Entretanto, homens continuam matando suas parceiras, às vezes com
requintes de crueldade, esquartejando-as, ateando-lhes fogo, nelas
atirando e as deixando tetraplégicas etc (SAFFIOTI, 2004, p. 46).

Por tudo isso, muitas mulheres experimentaram o gosto amargo do desprezo e


impunidade diante de suas mortes. Entretanto, alguns desses crimes ganharam intensa
repercussão social, pois, a mídia deu grande repercussão aos casos de assassinatos de
mulheres das classes média e alta como foi o caso do cometido por Augusto Carlos
Eduardo da Rocha Monteiro Gallo contra Margot Proença Gallo, pais da famosa atriz
Maitê Proença25.
Esse crime aconteceu no dia 07 de novembro de 1970, quando Gallo, suspeitando
da infidelidade da esposa, atacou-a com onze facadas. A defesa de Eduardo investiu na
“legítima defesa da honra”, promovendo a desqualificação social e moral de Margot,
dando detalhes da sua vida pessoal e amorosa, tratando de montar a imagem de uma
mulher totalmente “indigna do casamento”.

25Maitê Proença tinha apenas 12 anos na época do crime e foi testemunha de defesa do pai. Na época do
ocorrido ela foi uma importante testemunha do processo que culminou na absolvição do pai.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
80

Os advogados levaram ao processo testemunhas que afirmavam ser Margot


infiel ao marido, imputando a ela incontáveis casos extraconjugais. Eles queriam
demonstrar que o adultério deixara o marido muito abalado e sob forte emoção,
levando-o a cometer o assassinato. Gallo foi levado à júri por duas vezes e nas duas ele
saiu vitorioso. No primeiro julgamento teve sete votos a seu favor e nenhum contra. Já
no segundo julgamento, ganhou apertadamente de quatro a três. Nos dois
julgamentos, a “legítima defesa da honra” prevaleceu.
Para esse veredicto, foi totalmente desconsiderado o fato de que a honra é um
bem jurídico personalíssimo, ou seja, integrante da personalidade do indivíduo e,
portanto, intransferível. Não há que se falar em desonra por atitude de terceiro, a honra
está em cada um de nós e não pode ser maculada por outra pessoa. Porém, os valores
da sociedade patriarcal prevaleceram.

O tratamento dispensado pela sociedade em geral à violência praticada


contra a mulher considerada adúltera se mantém extremamente
conservador e tradicional apesar das alterações na lei, ou seja,
compreende-se o ato de violência praticado pelo homem, considerando
que ele agiu em “defesa da honra e a adúltera não soube honrar a
família”. [...]. Tanto que, em casos desse tipo, é comum que a opinião
pública transforme a vítima em ré se pairar alguma suspeita sobre a
integridade de sua conduta. Isso se dá por conta da força que
determinados valores tradicionais, presentes no senso comum (e a
questão de fidelidade feminina é um deles), exercem sobre a capacidade
das pessoas refletirem sobre esse tipo de situação. São justamente
concepções tradicionalmente arraigadas de honra, de papéis sociais e
de família que são reivindicadas pelo agressor como atenuantes do ato
praticado. (SOUSA, BRITO e BARP, 2009, p. 76)

Outro caso midiático de feminicídio marcou a história de lutas dos movimentos


feministas aqui no Brasil contra a violência que as mulheres enfrentavam e ainda
enfrentam até hoje no âmbito doméstico e familiar. Trata-se do crime cometido por
Raul Fernandes do Amaral Street, popularmente conhecido como Doca Street, contra
a socialite Ângela Diniz.
No dia 30 de dezembro de 1976, após um grande desentendimento do casal,
Ângela foi assassinada com três tiros no rosto e um na nuca. Ancorado também no
argumento da “legítima defesa da honra” Doca foi condenado à pena simbólica de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
81

apenas dois anos de reclusão com sursis26, ou seja, Doca não ficaria preso. Outro fato
marcante desse processo, foi o apoio recebido por Street no dia do julgamento, por
meio de faixas e manifestações em frente ao fórum.
Inconformados com o resultado do julgamento, os movimentos feministas
fizeram um grande alvoroço, a acusação recorreu e foi decidido que Doca passaria por
outro julgamento que ocorreu dois anos depois, em novembro de 1981. Desta segunda
e última vez, a sorte de Doca mudou. Ele foi condenado à pena de quinze anos de
reclusão, por cinco votos a dois, pelo homicídio de Ângela. O Júri compreendeu que
Street não agiu em legítima defesa de nenhum direito, tampouco de sua honra ferida.
A condenação de Doca foi uma verdadeira vitória frente ao machismo imperante
na nossa sociedade. Mas devemos ter cuidado para não cairmos na armadilha de
considerar a violência contra a mulher apenas como algo ocasional. O enfretamento
desse tipo de violência deve ocorrer diariamente, atacando a sua origem patriarcal e
machista para não termos nossas ações obnubiladas em favor dos discursos heroicos
de resistência na esfera individual.
A importância dos movimentos feministas se dá justamente pelo fato de
alertarem para o fato das relações entre homens e mulheres não serem naturais e sim
produto da socialização e da cultura dessas pessoas, sendo então passíveis de
mudanças. No caso brasileiro, as lutas feministas brotaram no contexto da luta em prol
da redemocratização do nosso país, contra a ditadura e contra as desigualdades sociais
sob forte influência das mulheres de esquerda (PEDRO, 2012).

FEMINISMOS E A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA: A CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA


Se hoje a violência contra a mulher é tida como violação de Direitos, a batalha
para que fosse introduzida em nosso ordenamento jurídico uma legislação de proteção
à mulher em situação de violência doméstica se insere num duro processo de análises
e críticas ao sistema normativo brasileiro e à cultura patriarcal.

26Sursis significa suspensão condicional da pena. É previsto nos artigos 77 a 82 do Código Penal
Brasileiro. O mencionado Instituto favorece a pessoa que foi condenada à pena que não seja superior a 2
anos, com a suspensão da mesma por até 4 anos, desde que satisfeitas as condições impostas pelo
magistrado. Para ser agraciado com o sursis, a lei estabelece: que o condenado não pode ser reincidente
em crime doloso; que os elementos referentes à prática do crime, tais como a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente e outros descritos na lei, autorizem a
concessão do benefício; e, por fim, que não seja cabível a substituição por penas alternativas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
82

A articulação dos grupos feministas foi a tônica capaz de criar mecanismos de


resistência que reivindicavam o direito das mulheres viverem dignamente. Nas palavras
de Marlise Matos, “as forças foram unificadas no objetivo central da transformação da
situação da mulher na sociedade brasileira, gestada durante os regimes militares, e
colocada à prova no momento da redemocratização do país” (2010, p. 84).
Com a inegável emergência desses movimentos ao redor do mundo, a
Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu o ano de 1975 como o Ano Internacional
da Mulher e, nesse contexto, houve a possibilidade de driblar os entraves políticos no
nosso país e organizar um ato público que tinha como pontos de debate a condição da
mulher brasileira nas esferas do trabalho, saúde física e mental, discriminação racial e
homossexualidade.
Embora a importância desses assuntos ser inegável, o que mais conseguiu atrair
as elites políticas da época, foram as denúncias das mortes violentas de mulheres. A
mídia deu grande repercussão aos casos de assassinatos de mulheres das classes
média e alta, divergindo do contexto francês e norte-americano, onde havia a ênfase na
liberdade sexual e na denúncia ao controle imposto pelos homens ao corpo e
sexualidade da mulher. No Brasil, lutava-se pelo direito à sobrevivência, havia a
necessidade de defender a vida das mulheres. (MACHADO, 2016)
O ano de1985 foi um marco no que tange às políticas públicas de enfrentamento
à violência contra a mulher em nosso país. Após intensos debates entre as
organizações feministas e o Estado, foi inaugurada a primeira delegacia especializada
em São Paulo, conhecida por Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). A primeira
delegacia da mulher teve uma grande demanda, o que corroborava a tese das
feministas de que a violência contra a mulher era um problema recorrente que
necessitava de um atendimento policial especializado.
Por mais que seja inegável a importância das delegacias de defesa da mulher no
combate à violência, temos que ter em mente que a legislação sobre tais delegacias
não trazia tipos penais específicos sobre a questão da violência contra a mulher. As
delegacias atuavam segundo tipificações penais e, como sabemos, violência contra
mulher (familiar, doméstica ou de gênero) não constituía figura jurídica, definida pela
lei criminal. O que era descrito como tipo penal, implicando uma classificação, dependia,
sobretudo, da interpretação que a agente (e, no caso concreto, a delegada ou a escrivã)
tinha da queixa enunciada pela vítima.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
83

Por tudo isso, as feministas continuaram a articulação no sentido de fortalecer


as políticas públicas de proteção as mulheres. Em março de 1987, o Conselho Nacional
de Direitos das Mulheres (CNDM) liderou a formação do “lobby do batom”, que
apresentou aos constituintes a “Carta das Mulheres. Com esse documento, elas
levavam ao parlamento brasileiro a principal conclusão da campanha: “Constituinte pra
valer tem que ter direitos das mulheres”.
A Carta comprova a particularidade do movimento feminista brasileiro, sempre
preocupado com a democracia e as questões sociais: justiça social, criação do Sistema
Único de Saúde, ensino público e gratuito em todos os níveis, autonomia sindical,
reforma agrária, reforma tributária e negociação da dívida externa. No que tange aos
direitos específicos das mulheres, ela trouxe preocupação com trabalho, saúde, direitos
de propriedade, chefia compartilhada na sociedade conjugal, defesa da integridade
física e psíquica da mulher como argumentação para o combate à violência, redefinição
da classificação penal do estupro, criação de delegacias especializadas de atenção à
mulher em todos os municípios.
Quanto aos direitos sexuais e reprodutivos, não tivemos muitos avanços por
causa das resistências de diversos setores. No tocante ao direito ao aborto, apesar de
não ser explicitamente reivindicado, pedia-se a introdução de um princípio
constitucional que garantia à mulher o direito de conhecer e decidir sobre o próprio
corpo. Porém, essa parte não foi aceita e não entrou no texto da Constituição em vigor
(MACHADO, 2016).
De acordo com levantamento do próprio CNDM, 80% das exigências foram
aprovadas. As mulheres conquistaram, na Constituinte de 1988, a igualdade jurídica
entre homens e mulheres, a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos das
mulheres, a igualdade de direitos e responsabilidades na família, a definição do princípio
da não discriminação por sexo, raça ou etnia e a proibição da discriminação da mulher
no mercado de trabalho.

Enquanto no passado, a diferença entre mulheres e homens serviu de


justificativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de modo mais
geral, para justificar as desigualdades de gênero, atualmente a
diferença das mulheres indica a responsabilidade que qualquer
instituição de direitos humanos teria de incorporar uma análise de
gênero em suas práticas e análises teóricas. (MATOS, 2010, p. 87)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
84

Dentre as diversas demandas dos movimentos feministas incorporadas ao texto


constitucional, destacamos a inclusão do art. 226, parágrafo 8º, por meio do qual, o
Estado se compromete a prestar assistência à família e a todos os seus membros,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
No entanto, foi o Sistema de Justiça internacional que propiciou a criação da Lei
11.340/2006, tendo em vista que a Farmacêutica e Bioquímica Maria da Penha Maia
Fernandes, junto com o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL-Brasil) e o
Comitê Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-
Brasil) encaminharam, em 1998, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) da OEA uma petição contra o Estado brasileiro, relativa ao emblemático caso de
impunidade em relação aos inúmeros episódios de violência doméstica por ela
vivenciados, tendo como agressor seu marido, o economista colombiano Marco Antonio
Heredia Viveros.
Em 29 de maio de 1983, Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de uma
tentativa de homicídio por parte do seu então marido, restando paraplégica após levar
um tiro nas costas enquanto dormia. O primeiro julgamento de Marcos aconteceu no
dia 03 de maio de 1991 sendo o réu considerado culpado e condenado a 15 anos de
reclusão. Todavia, a defesa recorreu e conseguiu a anulação do julgamento com base
na alegação de que os quesitos propostos ao corpo de jurados foram mal formulados.
Como consequência, Viveiros aguardaria o novo julgamento em liberdade.
Deste modo, um caso ocorrido em 1983 permanecia sem solução definitiva até
1997. Foi quando em 1998, resolveu-se acionar a CIDH (caso Maria da Penha nº 12.051)
e em abril de 1991, no Informe nº 54, a Comissão responsabilizou o Estado brasileiro
por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as
mulheres, em virtude da ineficácia do Judiciário.
De acordo com a CIDH, o Estado brasileiro deveria adotar medidas no âmbito
nacional visando à eliminação da tolerância dos agentes do Estado face à violência
contra as mulheres. Quanto a Marco Viveros, somente em outubro de 2002, mais de
dezenove anos depois do crime e faltando apenas seis meses para a prescrição do
ocorrido, foi finalmente preso.
O histórico de negligência do Estado brasileiro frente a questão da violência
contra as mulheres e sua complexidade finalmente veio à tona e o país foi obrigado a
criar uma lei que coibisse a violência doméstica e familiar por elas enfrentada. Assim

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
85

surgiu a Lei 11.340/2006, em homenagem a Maria da Penha Fernandes por sua história
de lutas frente à impunidade dos crimes cometidos por seu ex-marido.
A Lei tipifica os crimes de violência contra mulher no âmbito doméstico e familiar
e a coloca como uma das formas de violação dos direitos humanos, altera os trâmites
judiciais e da autoridade policial; muda o Código Penal e proporciona que agressores
sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada quando
ameaçarem a integridade física da mulher.
Além disso, prevê medidas de proteção para a mulher que corre risco de morte,
como o afastamento do agressor do domicilio e a proibição de sua aproximação física
junto à mulher agredida e aos filhos. Cria os Juizados Especiais de Violência Doméstica
e versa sobre a necessidade de o Estado promover mecanismos de atuação conjunta
para a repressão e responsabilização desses crimes.
Reconhecida como uma das leis mais famosas do país27, a principal fonte
legislativa de coibição à violência de gênero no Brasil, completou, no dia 07 de agosto
de 2016, dez anos e está hoje com quase doze anos de vigência. Nesse período, a Lei
Maria da Penha apresentou avanços no que tange à desnaturalização das violências
sofridas pelas mulheres, mas ainda enfrenta muita resistência em sua perfeita
implementação e aplicação.
Ainda há, perante a sociedade, uma grande desconfiança acerca da real
efetividade desta lei, tendo em vista que os números de violência contra a mulher são
alarmantes em nosso país. Desde sua promulgação, em 2006, até o ano de 2013, houve
um aumento de 600% nas denúncias de abuso doméstico e familiar contra a mulher 28.
Contudo, é justamente nesse processo de denúncia e suas consequências que ainda
residem alguns dos principais obstáculos na efetivação da Lei.
Tem-se observado que ainda há múltiplas resistências para sua aplicação de
forma efetiva. Diuturnamente ganha força a ideia de que o êxito da Lei está ameaçado
pelas inúmeras falhas em sua aplicação. Essas circunstâncias dificultam o acesso à
justiça para as mulheres que acabam, muitas vezes, tendo apenas uma manifestação

27 A pesquisa Percepção da Sociedade sobre Violência e Assassinato de Mulheres (2013) apontou que
apenas 2% da população brasileira nunca ouviu falar na Lei Maria da Penha.
28 A Câmara dos Deputados, nas justificativas do acréscimo do Art.9º-A à Lei n° 11.340/2006, que

determina a reserva de vagas gratuitas nos cursos técnicos de formação inicial e continuada, oferecidos
pelos Serviços Nacionais de aprendizagem, para mulheres em situação de violência doméstica e familiar,
divulga os números ora apresentados.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
86

formal por parte do Estado, saindo com “um boletim de ocorrência em uma das mãos e
uma medida de proteção na outra” (PASINATO, 2015, p. 535), sem que, realmente haja
políticas públicas que ofereçam real proteção e condições dessas pessoas romperem
com a situação de violência a que são submetidas.
Destacamos a necessidade de haver o reconhecimento social da gravidade
dessas situações para que haja o estabelecimento de políticas que possibilitem a
superação das realidades negadoras dos direitos das mulheres, tendo em vista que
“não é possível fazer emergir uma mulher livre de sua opressão específica sem a
garantia de eqüidade e de liberdade para todos” (SARTI, 2001, p. 48).
Necessitamos também fazer uso de mecanismos jurídicos que consolidem os
direitos necessários para que a dignidade seja exercida de forma plena. Assim, é
pungente a concretização da Lei Maria da Penha como instrumento efetivo de
prevenção e coibição da violência doméstica e familiar contra as mulheres, sem
esquecer as bases sociais fundadas no patriarcado, de modo a combater esse problema
em suas raízes e não por meio da solução de conflitos de maneira isolada.
As políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher devem atuar
constituindo redes de enfrentamento e de atendimento às mulheres em situação de
violência, salientando que a existência de diversos programas e serviços de
atendimento a essas mulheres não necessariamente implica na existência de uma rede
efetiva, tendo em vista que esta consiste em um atendimento qualificado e o diálogo
entre eles, com a finalidade de evitar a rota crítica29 das mulheres que buscam
resolução para a situação de violência sofrida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência contra a mulher não pode ser enfrentada como se fosse algo isolado
que pode ser combatido caso a caso. Para que haja o real enfrentamento dessa questão,
se faz necessário reconhecer a estrutura patriarcal fundante de nossa sociedade. Os
movimentos feministas cumprem seu papel de desnaturalizar as violências de gênero,
pressionando para que haja políticas públicas de enfrentamento e coibição da violência
contra mulheres, inclusive no âmbito doméstico e familiar.

29 A rota crítica consiste nas dificuldades e obstáculos enfrentados pelas pessoas em situação de
vulnerabilidade e violência, caracterizada pelas idas e vindas que fazem o mesmo caminho ser percorrido
em círculos e repetido sem resultar em soluções. Essas repetições resultam nas perdas de energias que
levam a desgaste emocional e revitimização. (CAMARGO e AQUINO, 2003)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
87

A luta pelos direitos das mulheres não se justifica pela ideia de se fazer justiça
ao lado mais fraco, ao oprimido, do contrário, devemos nos esforçar para não as
enxergar como “sexo frágil”, pois isso não atende às reivindicações relativas à
consolidação dos direitos necessários e urgentes desse grupo humano. A batalha para
que fosse introduzida em nosso ordenamento jurídico uma legislação de proteção à
mulher em situação de violência doméstica se insere num duro processo de análises e
críticas ao sistema normativo brasileiro e à cultura patriarcal.
Traçar a trajetória da Lei 11.340/2006 é voltar ao passado de nosso país,
envergonhar-se da omissão, permissividade e cumplicidade da sociedade brasileira
diante dos milhares de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é
enlutar-se pelas que não sobreviveram para endossar a luta pela promulgação da tão
conhecida Lei Maria da Penha. Contudo é também se alegrar diante do êxito dos
movimentos feministas do Brasil em sua aprovação, publicação e por que não dizer,
sobrevivência.
Mas, para que essa lei alcance real efetividade, devemos atentar para a qualidade
do atendimento dado à essas mulheres para não incorrermos no erro de montar uma
estrutura voltada para a satisfação de requisitos formais, mas que na prática não
atendem aos anseios dessas pessoas, do contrário representam mais uma forma de
negação da dignidade delas. Para que essa efetivação seja concretizada, apostamos na
criação de redes de enfrentamento e de atendimento às mulheres em situação de
violência, mas sobretudo no desmonte na sociedade machista e patriarcal em que
estamos inseridas.

REFERÊNCIAS
AGUIAR, N. Patriarcado, sociedade e patrimonialismo. Sociedade e Estado, Brasília, v.
15, n. 2, p. 303-330, Dezembro 2000. Disponivel em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69922000000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 junho 2018.

ALAMBERT, Z. A mulher na história, a história da mulher. Brasília: Fundação


Astrojildo Pereira, 2004.

BRASIL. Decreto nº 847, DE 11 de out. de 1890. Código Penal dos Estados Unidos do
Brazil, Rio de Janeiro, RJ, out 1890.

BRASIL. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a violência


contra a mulher, Brasília, 2013. Disponivel em:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
88

<https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-
final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-
mulheres>. Acesso em: 14 junho 2018.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 4105, de 16 de dez. de 2015. Brasília -


DF, Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra
;jsessionid=22478BAD92FD3B3CB03B9DA05AD4B4B7.proposicoesWeb1?codteor=
1430810&filename=Avulso+-PL+4105/2015>. Acesso em: 16 jun. 2018.

DATA POPULAR; INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Pesquisa Percepção da sociedade


sobre violência e assassinatos de mulheres, 2013. Disponivel em:
<http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-
content/uploads/2013/08/livro_pesquisa_violencia.pdf>. Acesso em: 12 junho 2018.

DEBERT, G. G.; GREGORI, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas.


Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 26, p. 165-185, Feb 2008.
Disponivel em: <>. Acesso em: 02 jun 2018.

ELUF, L. N. Paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro
a Pimenta Neves. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 9ª. ed. Rio de


Janeiro: Civilização brasileira, 1984.

MACHADO, L. Z. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e


incertezas. Cadernos Pagu, Campinas, 2016. ISSN 47. Disponivel em:<. access on 03
June 2018. Epub July 22, 2016. http://dx.doi.org/10.1590/18094449201600470001>.
Acesso em: 03 jun 2018.

MATOS, M. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a


partir do Sul global? Revista de Sociologia Política, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2010.

PASINATO, Wânia. Oito Anos de Lei Maria da Penha. Entre Avanços, Obstáculos e
Desafios. Estudos Feministas, Florianópolis, 23(2): 352, maio-agosto/2015. p. 533-
545. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38874.
Acesso em: 16. jun. 2018.

PATEMAN, C. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1993.

PEDRO, J. M. O feminismo de “segunda onda”: corpo, prazer e trabalho. In: PEDRO, J.


M.; PINSKY, C. Nova história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 238-259.

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu


Abramo, 2004.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
89

SAFFIOTI, H. I. B. Ontogênese e filogênese do gênero: ordem patriarcal de gênero e a


violência masculina contra mulheres. Série Estudos/Ciências Sociais/FLASCO-Brasil.
[S.l.]. 2009.

SARTI, C. A. Feminismo e contexto: lições do caso brasileiro. Cadernos Pagu, n. 16, p.


31-48, 2001.

SOUZA, J.; BRITO, D.; BARP, W. Violência doméstica: reflexos das ordenações filipinas
na cultura das relações conjugais no Brasil. Teoria e Pesquisa, v. XVIII, n. 01, p. 61 - 82,
jan/jun 2009. ISSN ISSN 0104-0103.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
90

O USO DE FONTES CRIMINAIS PARA A PESQUISA HISTÓRICA:


UM OLHAR SOBRE AS TAIS “MARIAS DA CONCEIÇÃO”
(COMARCAS DE CAICÓ E JARDIM DO SERIDÓ, 1922-1942)

Ana Carolina Oliveira30

INTRODUÇÃO
Pesquisas no campo da História da Justiça, prioritariamente, enfocadas em
fontes criminais, passaram a ser incentivadas no âmbito histórico a pouco tempo. Há
quem marque a inovação dessas abordagens, a partir dos trabalhos de autores como
Michel Foucault, com “Vigiar e Punir”, numa delimitação mundial, ou situando para um
contexto brasileiro, Boris Fausto, com “Crime e Cotidiano”, este inclusive, incentivado
pela própria obra de Foucault (FOUCAULT, 1996; FAUSTO, 2001). O incentivo ao estudo
dos ditos agentes silenciados na História acabou crescendo nas últimas décadas, em
fontes Judiciárias sob a ótica de que elas dão vazão a segmentos sociais e recuperam
relações cotidianas (BACELLAR, 2005), sejam de sociabilidade ou intrigas, muito
embora, até mesmo essa premissa já seja refutada (MAUCH, 2013), quando os
depoimentos que ali estão recolhidos resultam de eventos conflituosos.
As fontes selecionadas para a pesquisa provêm dos Fundos da Comarca de Caicó
e Jardim do Seridó, tutoradas pelo Laboratório de Documentação Histórica (Labordoc),
no Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), campus Caicó, cujo acervo dispõe de
diversas tipologias documentais. O laboratório é vinculado ao Departamento de
História, desde sua criação em 1998, que se deu por uma demanda específica ligada à
conservação de documentos da esfera criminal provenientes da Comarca de Caicó.
Dentre o acervo proveniente do âmbito judiciário, a estimativa quantitativa de
documentos custodiados pelo laboratório assenta-se por volta de 30 mil unidades.
Através de um panorama que demonstre o potencial de arquivos judiciários
como fontes de estudo voltadas ao cotidiano, o interesse inicial na pesquisa centrava-
se na investigação de processos onde a figura feminina era colocada em posição de
transgressão, indo em contramão à larga produção já feita sobre violências
empregadas contra a mulher. Dito isso, a discussão vai procurar elaborar uma análise

30 Licencianda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, email:


oliveiraana.ufrn@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
91

minuciosa dos discursos empregados em processos criminais nos quais mulheres são
rés, ensejando o debate em torno das acepções dispostas por estruturas de poder, que
nesse caso, elucida-se pela figura da Justiça. Demarcando também, como essas
interpretações são empregadas no social de agentes construídos e compreendidos
como submissos e passíveis de enquadramentos inferiores.
Subscrita em torno de mulheres que transgridem normas morais e sociais
através de práticas criminosas, a análise se finda dentro de uma ruptura de paradigmas
falocêntricos (BUTLER, 2017), elucidados por estruturas que condicionam construções
ao longo da história, especialmente através dos discursos de poder, cujo viés denota os
variados arquétipos em torno do feminino, transitando por adjetivos de submissa e
inferior. Desse modo, também se demonstram novas perspectivas de entendimento da
mulher enquanto agente histórico, impulsionando essas práticas como instrumentos
velados de resistência. Temos, por exemplo, dentro dessas abordagens de estudos,
Soihet (1997; 2007) e Pedro (2007), das quais extraímos considerações significantes
para a pesquisa.

CONSTRUINDO ESTUDOS SOBRE A MULHER NO CAMPO HISTORIOGRÁFICO


É importante, inicialmente, demarcar o lugar de onde estamos falando, o campo
historiográfico que deu vazão aos estudos voltados ao cotidiano, as vivências comuns,
aos entraves sociais e suas interseções. O panorama trazido por Castro (1997) acerca
da História Social, pontua sua consolidação pela aproximação do campo à Antropologia
após a colocação cunhada por E. P. Thompson, em 1966, sobre uma “história vista de
baixo”, que sutilmente ultrapassou os parâmetros de ativismo operário, para um amplo
conceito de experiência das pessoas comuns, que até então, estavam apagados da
história tradicionalista.
Sendo assim:

Tal postura implicou profundas reavaliações metodológicas. Que


fontes utilizar para dar voz às pessoas comuns? (...) O uso antropológico
de fontes ligadas à repressão, como os processos da inquisição,
inquéritos policiais e processos judiciais, tem-se mostrado
extremamente fértil. O contínuo questionamento em relação a até que
ponto as fontes oriundas da repressão nos podem revelar algo sobre a
experiência daqueles que interrogam, para além da lógica dos
interrogadores, tem produzido análises progressivamente menos
ingênuas e mais criativas. (CASTRO, 1997, p. 51)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
92

No entremeio de reviravoltas da História, especialmente após a década de 1960,


a amplitude de campos que emergem da História Social trouxe, para primeiro plano,
temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu interesse, o que contribui para o
desenvolvimento de estudos sobre as mulheres, como aponta Soihet (1997). É preciso
deixar claro que, muito embora fosse um cenário de emergência de vozes silenciadas
pela historiografia, a História das Mulheres não foi estruturada de uma vez, como num
rompante. Para Soihet, o marco para a sua incorporação deu-se a partir da Escola dos
Annales, entendendo que, mesmo que “as mulheres não fossem logo incorporadas à
historiografia pelos Annales, estes, porém, contribuem para que isto se concretize num
futuro próximo” (SOIHET, 1997, p. 296).
Os avanços dentro do campo de discussões sobre História das Mulheres são
pontuados por Soihet a partir da década de 1970, onde emerge a figura da mulher
rebelde, que é ativa, que compõe tramas a fim de atingir seus objetivos, desconstruindo
o que muito se discutia até ali, acerca da passividade feminina frente à confrontos e
opressões. A partir disso que se superam os enfoques dicotômicos, convertendo
posturas mais complexas de atuação da mulher.
Apesar da mudança de mentalidades e com ela, as perspectivas de estudos no
campo historiográfico, os estudos esbarram na carência de vestígios produzidos por
mulheres que recontem o seu passado. Embora haja a construção de representações
sobre o feminino nos discursos masculinos, estabelecendo quem são as mulheres e o
que devem fazer. Para Soihet, tais discursos não são a premissa essencial de estudo,
mas acabam possibilitando uma “análise visando a captar o imaginário sobre as
mulheres, as normas que lhes são prescritas e até a apreensão de cenas do seu
cotidiano, embora à luz da visão masculina” (SOIHET, 1997, p. 295).
A autora elucida ainda, que:

Nos arquivos públicos sua presença é reduzida. Destinadas à


esfera privada, as mulheres por largo tempo estiveram ausentes
das atividades consideradas dignas de serem registradas para o
conhecimento das gerações subsequentes. Fala-se das
mulheres, sobretudo, quando perturbam a ordem pública,
destacando-se, nesse caso, os documentos policiais, aliados aos
processos criminais. Constituem-se numa fonte privilegiada de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
93

acesso ao universo feminino dos segmentos populares, inclusive


através dos seus próprios depoimentos. (SOIHET, 1997, p. 295)

Entrevendo tais inconvenientes quanto ao acesso a esse passado feminino, as


abordagens recorrem a um viés flexível, mirando vestígios que ultrapassem o
silenciamento e a invisibilidade das fontes. Soihet assinala que a renovação teórica dos
estudos históricos, possibilitou o refinamento dos métodos e das técnicas, abrindo um
leque de maior intimidade com aqueles segmentos e a ampliação dos horizontes da
história (1997, p. 296).
Os ditos estudos de gênero que se aventuram nessa discussão sobre as
mulheres, desenvolveram-se tardiamente na disciplina de História, tendo em
comparação as demais áreas das ciências humanas. Soihet; Pedro (2007) argumentam
que:

A trajetória, costumeiramente ‘cautelosa’, dessa disciplina, e o


domínio do campo por determinadas perspectivas de abordagem,
retardaram significativamente o avanço das discussões. Grande
parte desse retardo se deveu ao caráter universal atribuído ao
sujeito da história, representado pela categoria ‘homem’.
Acreditava-se que, ao falar dos homens, as mulheres estariam
sendo, igualmente, contempladas, o que não correspondia à
realidade. (...) Genericamente conhecida como positivista,
centrava o seu interesse na história política e no domínio público,
e predominou no século XIX e inícios do XX. Esta privilegiava
fontes administrativas, diplomáticas e militares, nas quais as
mulheres pouco apareciam. (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 283)

As aberturas que acabam impulsionando os estudos enfocados na mulher se


dão a partir do surgimento de perspectivas relativas sobre o conhecimento histórico.
Impulsionada, primeiramente, pela História Social, a preocupação com as amplas
identidades coletivas de grupos sociais excluídos do enfoque historiográfico herdeiro
do século XIX, pluraliza os objetos de investigação histórica, e, nesse bojo, as mulheres
são alçadas à condição de objeto e sujeito da história. (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 285)

O TRABALHO COM FONTES CRIMINAIS


Pleiteando um levantamento bibliográfico em torno da sistematização de
pesquisas com processos criminais, seja de abordagem geral ou específica às práticas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
94

femininas, três obras acabaram sendo essenciais para percorrer tais horizontes: a)
Crime e Cotidiano, de Boris Fausto (2001); b) Mulheres que matam, de Rosemary
Almeida (2001); e c) Práticas Proibidas, organizado por Joana Maria Pedro (2003).
A respeito da primeira obra, identificamos a primeira percepção do autor sobre
os “valores, representações e comportamentos sociais através da transgressão da
norma penal” (FAUSTO, 2001, p. 27). Ele traça um período de criminalidade acentuada
em São Paulo, entendida como consequência da presença maciça de estrangeiros na
cidade. Para Fausto, "se apreendida em nível mais profundo, a criminalidade expressa a
um tempo uma relação individual e uma relação social indicativa de padrões de
comportamento, de representações e valores sociais" (FAUSTO, 2001, p. 27).
Em sua obra, ele coloca questões como:

Ao lidarmos com o crime estaríamos lidando com uma relação


individual aberrante, pouco expressiva dos padrões de conduta
ou das tensões reais de uma determinada sociedade? A história
da criminalidade seria quando muito na história do desvio, daquilo
que a sociedade repele intensamente? (FAUSTO, p. 27, 2001)

Seus apontamentos sugerem sutilmente que a História da Criminalidade no


senso comum provoca estranheza. Não é pensada como um tema "digno", por não se
ocupar dos grandes personagens/acontecimentos excepcionais. Embora “se
apreendida em nível mais profundo, a criminalidade expressa a um tempo uma relação
individual e uma relação social indicativa de padrões de comportamento, de
representações e valores sociais” (FAUSTO, 2001, p. 27).
Fausto então justifica que:

O processo penal como documento diz respeito a dois


'acontecimentos' diversos: aquele que produziu a quebra da
norma legal e um outro que se instaura a partir da atuação do
aparelho repressivo. Este último tem como móvel aparente
reconstituir um acontecimento originário, com o objetivo de
estabelecer a 'verdade' da qual resultará a punição ou a
absolvição de alguém. (FAUSTO, 2001, p. 31)

Colocação essa que, corrobora com a ótica de Mauch (2013), que trata o texto
judiciário como fruto de “um produto social, profissional e político, sendo assim, como
tal, deve ser analisado” (MAUCH, 2013, p. 8). Nesse ínterim, deve-se tomar como base

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
95

que os depoimentos que ali constam, não devem ser entendidos, tampouco
incorporados, de modo ingênuo e verossímil. Pois como a própria autora aponta, esses
trâmites processuais acabam compondo um intricado mosaico, a qual cabe ao
pesquisador, um conhecimento prévio das condições específicas de produção, para que
não caia em armadilhas errôneas em suas análises.
Como base para mediar o trato com fontes criminais em geral, podem ser
agregadas a discussão, as contribuições de Barros (2012), entendendo que suas
colocações oferecem subsídios pertinentes à abordagem da pesquisa. Barros dialoga
com um conceito de fontes dialógicas, que segundo definição, trata-se de “um texto
histórico que contém diversas vozes sociais” (BARROS, 2012, p. 9), sejam elas diretas
ou indiretas. O conceito aplica-se especificamente a fontes de cunho criminal ou
inquisitórias, onde diversas vozes emergem, sejam direta ou indiretamente, elencadas
pela figura do escrivão, por exemplo, em fontes criminais. Ou seja, onde envolva um
esforço de compreensão da fala de um outro, mesmo em torno disso, haja uma
manipulação da fala. Para melhor identificar esse tipo de fontes, basta elucidar a ideia
de interposição de mediadores ao longo do texto. Para ele, essa nova fase da História
composta por uma gama extensa de possibilidade de fontes, faz com que,
pesquisadores e especialistas flexionem e reelaborem metodologias diversas para o
tratar adequado do ofício do historiador.
Sobre a obra “Mulheres que matam”, é preciso elucidar sua apresentação sutil e
essencial no entendimento das mentalidades dessas mulheres que matam. A socióloga
Rosemary Almeida constitui essa obra como sua tese de doutorado, cuja estrutura
esmiuça desde as fronteiras dos perfis dessas mulheres transgressoras, traçando por
vezes, discussões que subentendem mecanismos de resistência às estruturas de
repressão (ALMEIDA, 2001).
A respeito da obra “Práticas Proibidas”, mencionada nessa breve revisão
bibliográfica, agregamos a composição organizada por Joana Maria Pedro, proveniente
de um grupo de pesquisas iniciado na década de 1990, na região sul do Brasil, que
investigava essas práticas antigas, de aborto e infanticídio. O seleto conjunto de artigos
reunidos acaba contribuindo de maneira convicta, tanto no entendimento das
construções sociais e históricas em torno dessas práticas, como aponta caminhos que
já foram traçados com o uso de fontes semelhantes, de modo que, demonstram novas
possibilidades de trajetórias a serem exploradas (PEDRO, 2003).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
96

Nesse sentido, as análises se interpuseram levando em consideração, as


colocações de ambos os autores, tangenciada pelo olhar atento e apurado aos silêncios
das fontes. Entendendo que nas ausências também se formulam hipóteses e
problemáticas.

UM ESTUDO DE CASO SOBRE MULHERES TRANSGRESSORAS


Como já foi dito anteriormente, as análises centraram-se em mulheres
transgressoras que feriram a moral imposta pelas estruturas de poder, cerceando
através dos filtros críticos do historiador, os discursos que moldam seus
comportamentos. Eventualmente, o interesse, migrou para uma tentativa de
entendimento acerca da subversão de espaços através de suas práticas criminosas,
decorrente do rastreamento submetido ao conteúdo das fontes, contextualizando um
discurso engessado e sem muitas margens para uma análise mais imagética.
Metodologicamente, fez-se um rastreamento dentro do acervo do Labordoc,
selecionando fontes, em primeiro momento, de anos diversos, sem prender-se a um
dado recorte temporal, muito embora, a tipologia tenha se centrado em crimes
inerentes ao feitio feminino, comumente atribuído pelo senso comum ao caráter
vingativo e sórdido, como envenenamentos, ou inerentes à maternidade, como
infanticídios. Feito a seleção de fontes, a etapa seguinte alternou-se entre leitura e
transcrição dos processos, com posterior análise, tomando-os como estudos de caso.
Ao todo, foram escolhidos quatro processos, sendo três de Infanticídio e um de
envenenamento, ocorridos entre os anos de 1922 a 1942, no território das Comarcas de
Caicó e Jardim do Seridó. Muito embora a tipologia criminal se alterne, as fontes
vinculam-se tanto por serem crimes cometidos por mulheres, como também, pela visão
da Justiça sobre suas práticas criminosas, cerceando um discurso moralista e
reprovador, o que reflete também, as mentalidades da época de produção dessas
documentações.
Sendo assim, temos em ordem cronológica, as fontes. A primeira é um auto de
Infanticídio, datado em 1922, cuja ré chama-se Elídia Maria da Conceição, que na época
residia no “Sítio Volta”, situado no distrito de Ouro Branco, município de Jardim do
Seridó.31 A segunda fonte, um auto de crime de envenenamento, no ano de 1937, de

31 LABORDOC/FCJS/PC/Cx. 252. Auto do crime de Infanticídio.1922. Ré: Elídia Maria da Conceição.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
97

autoria de Rosenda Maria da Conceição, que residia no Sítio Recanto, município de


Caicó.32 A terceira, um auto de Infanticídio, do ano de 1938, de autoria de Francisca Maria
da Conceição, até então residente no Sítio Riachão, município de Jardim de Piranhas.33
A quarta e última fonte, também um auto de infanticídio, data do ano de 1942, de autoria
de Sebastiana Maria da Conceição, que residia dentro do perímetro urbano da cidade de
Caicó.34
Um elo estabelecido, até de modo curioso, devido à semelhança dos nomes das
rés, pela repetição do sobrenome “Maria da Conceição”. Muito embora, na prática, não
denote muitas explicações, sugerindo que tal conexão se desdobra apenas pelos
nomes serem bastante usados nas regiões, especialmente nas zonas rurais, onde os
núcleos familiares cresciam consideravelmente e perpetuavam o sobrenome de forma
exponencial.
Quanto aos apontamentos encontrados após as análises, as quatro fontes
acabaram agrupando-se pela semelhança dos locais de práticas criminosas, como pelo
caráter de resistência velada inerentes aos seus atos. Elucidando brevemente o teor de
cada fonte, temos o envenenamento praticado contra a sogra e o marido da ré, por
motivos até então, incertos na documentação, embora seja possível rastrear uma
relação conturbada entre os envolvidos, especialmente entre Rosenda e a mãe de seu
marido. Quanto aos três infanticídios, seja no auto de denúncia ou no andamento do
processo, o padrão de recorrência dos crimes vincula-se à tentativa de encobrir a
desonra dessas mulheres, tendo em vista que essas crianças seriam frutos de
defloramentos.
Elídia, Francisca e Sebastiana eram jovens com idades em torno de 18 e 21 anos,
onde com exceção de Sebastiana, a figura da família não é mencionada nos processos,
denotando hipóteses de uma vivência marcada por essa ausência familiar. O que
também provoca especulações no sentido de que, no recorte temporal da época, entre
décadas de 1920 e 1940, no interior do sertão, se a estrutura patriarcal já infligia sobre
jovens de boa família uma opressão quanto ao resguardo do corpo e
consequentemente, da honra, quem dirá como esse sistema de controle incidente sobre

32 LABORDOC/FCC/PC/Cx. 309. Auto do crime de Envenenamento.1937. Ré: Rosenda Maria da Conceição.


33 LABORDOC/FCC/PC/Cx. 210. Auto do crime de Infanticídio. 1938. Ré: Francisca Maria da Conceição.
34 LABORDOC/FCC/PC/Cx. 230. Auto do crime de Infanticídio. 1942. Ré: Sebastiana Maria da Conceição.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
98

o feminino agiria sobre jovens que eram desvirginadas e largadas, carregando dentro
de si, um resquício que a marcaria perante aos meios sociais que estava ligada.
O intuito desse estudo não almeja a busca de inocentes ou culpadas. Muito
embora, o peso das sentenças influa diretamente nos resultados das análises, tendo
em vista que, toda a estrutura do processo se concentre num cenário duo, logo, os
discursos modulam-se e ganham rumos característicos, como o uso de adjetivos
pejorativos em relação às rés e apelativos quanto às vítimas, especialmente pela figura
do promotor público, enquanto um sujeito que cumpre seu papel dentro das
engrenagens jurídicas, quanto a busca e condenação das culpadas.
Ao realizar pesquisas tendo como fontes documentos de cunho criminal, o
historiador habitua-se a construir análises profundas no campo das sensibilidades,
entendendo que, cada aproximação com os processos possibilita um novo modo de
interpretação, mesmo que se volte à mesma fonte ao longo do tempo, os filtros críticos
de análise continuam renovando-se sistematicamente.
O trabalho realizado acabou demonstrando como o discurso da Justiça
acompanha e se une à moral social, essa afirmação atesta-se logo na leitura das
páginas finais do processo da ré Elídia, onde a acusação que pesa sobre seus ombros, é
retirada ao se constatar que a criança, se viva, carregaria consigo a vergonha da mãe
perante as relações sociais em que estava inserida. Bem como, os atos de Francisca e
Sebastiana passam a ser relatados de modo menos pejorativo nos processos, quando
ambas passam a aparecer como casadas, com seus respectivos defloradores, sob a
concepção de que, ao entregar sua virgindade enquanto solteira, sua honra só se
reestabeleceria através do matrimônio35.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho de pesquisa com fontes criminais proporciona a construção de um
horizonte de possibilidades de estudo sobre a temática, centradas, em suma, nas
histórias do cotidiano. Favorece ainda, a identificação de fatores sociais latentes nos
arquivos judiciários, seja por meio do discurso marginal feminino, seja pelos espaços
rurais resinificados enquanto cenários propícios a práticas transgressoras, ou ainda,
como esses documentos refletem um tipo de pensamento da sociedade que os produz,

35 Afirmativa trazida por Estacheski (2010).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
99

erigido em questões como: Quem pune? Como pune? Por que pune? Logo, é de se
pensar que, as abordagens nunca se findam, entendendo que, seus entremeios não são
necessariamente fáceis de compreensão, especialmente no encargo interpretativo de
seus conteúdos. Não deve se tratar com leviandade suas estruturas, tampouco ler
ingenuamente o relato transmitido por terceiros, entendendo que discursos de poder
se constroem em todo lugar, inclusive no aparelho jurídico.
As análises se interpuseram levando em consideração as colocações do
aparelho jurídico sobre as práticas transgressoras da moral social e a partir de
desfechos dos processos, identificou-se os subterfúgios discursivos da Justiça.
Atestou-se que, através de fontes criminais, é possível compreender os elementos de
motivação sobre os modos de agir e pensar do ato criminoso. Como também viabilizou
uma delimitação da visão político-social da Justiça sobre esses agentes sociais. Sendo
assim, confirmou a relevância de tais documentos, ligados ao Poder Judiciário, como
importantes fontes para a reconstrução do cotidiano nas Comarcas de Caicó e Jardim
do Seridó, na primeira metade do século XX.

FONTES
LABORDOC/FCJS/PC/Cx. 252. Auto do crime de Infanticídio.1922. Ré: Elídia Maria da
Conceição.
LABORDOC/FCC/PC/Cx. 309. Auto do crime de Envenenamento.1937. Ré: Rosenda
Maria da Conceição
LABORDOC/FCC/PC/Cx. 210. Auto do crime de Infanticídio. 1938. Ré: Francisca Maria
da Conceição.
LABORDOC/FCC/PC/Cx. 230. Auto do crime de Infanticídio. 1942. Ré: Sebastiana Maria
da Conceição.

REFERÊNCIAS
BACELLAR, Carlos. “Uso e mau uso dos arquivos”. In: Fontes Históricas. Carla
Bassanezi Pinsky (org.). 2 e.d., 1° reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008. pp. 23-37

BARROS, José D’Assunção. O Tratamento Historiográfico de Fontes Dialógicas.


Revista Expedições: Teoria da História & Historiografia. Ano 3, N.4, julho 2012.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução: Renato Aguiar. 15° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CASTRO, Hebe. “História Social” In: CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo (orgs).
Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
pp. 45-59

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
100

ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet. Da promessa ao processo: crimes de


defloramento em Castro (1890-1916). Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e
Políticas Públicas. Universidade Estadual de Londrina, junho de 2010.

FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São


Paulo: Editora Brasiliense, 2001.

MAUCH, Cláudia. O processo crime para além dos crimes. In: XI Mostra de Pesquisa do
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Anais: produzindo História a partir
de fontes primárias. Porto Alegre: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul,
2013. p. 17-31.

SOIHET, Rachel. & PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das
Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27,
nº 54, p. 281-300, 2007.

SOIHET, Rachel. “História das Mulheres”. In: CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo
(orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,
1997. pp. 275-296

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
101

Simpósio Temático 3
PROFHISTÓRIA:
CAMINHOS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
102

A UTILIZAÇÃO DE MEMES NO ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR


DO ENSINO HÍBRIDO

Alessandra Michelle Alvares Andrade36

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho é parte de uma dissertação de Mestrado em Ensino de História –
ProfHistória37 - desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
e tem por objetivo discutir a utilização de memes no Ensino de História dentro da
perspectiva do Ensino Híbrido. O intuito é tornar o processo de ensino-aprendizagem do
componente curricular de História atrativo e dinâmico a partir de uma abordagem
didática diferenciada que chame a atenção do alunado, a partir do humor contido nos
memes, para as aulas de História utilizando metodologias ativas de aprendizagem
como o Ensino Híbrido38. Desta forma, o Ensino de Historia tende a tornar-se
significante, uma vez que passa a estabelecer conexões entre os conteúdos escolares
tratados na escola e a vida do aluno.
Partindo do pressuposto que ensinar não é apenas transferir conhecimento39,
mas criar as possibilidades para a sua “produção ou construção”, acreditamos que
educadores e instituições educacionais precisam buscar métodos e caminhos possíveis
para despertar nos alunos o interesse por desenvolver os conhecimentos históricos
dentro e fora de sala de aula, na tentativa de possibilitar que o Ensino de História seja
significativo e significante, considerando os estudantes como sujeitos ativos de
aprendizagem e que trazem para o ambiente escolar, experiências e saberes adquiridos
em suas vidas cotidianas e em ambientes variados de interação.

36 Universidade Federal do Rio Grande do Norte


37 O ProfHistória Mestrado Profissional em História, é um programa de pós-graduação stricto sensu em
formato semipresencial em Ensino de História, criado e aprovado em 2013 pela Coordenação de
Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da Educação. Este programa tem por
objetivo proporcionar formação continuada aos docentes de História da Educação Básica, com o objetivo
de dar qualificação certificada para o exercício da profissão, contribuindo para a melhoria da qualidade
do ensino.
38 As metodologias de Ensino Híbrido e Sala de Aula Invertida serão explicadas e discutidas no segundo

capítulo desta dissertação.


39 Paulo Freire no livro Pedagogia da Autonomia defende a ideia que um dos saberes indispensáveis ao

educador, que deve assumir o lugar de sujeito participativo da produção do saber, é que ensinar não é
transferir conhecimento, mas criar meios para sua produção. Defende ainda que o processo educativo
constitui-se de uma troca onde quem ensina também aprende e vice e versa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
103

A opção por trabalhar com recursos didáticos midiáticos40 e de metodologias


ativas41 ocorre a partir da observação do hábito dos alunos no que se refere ao uso
constante de tecnologia, celulares e de redes sociais, sendo o compartilhamento de
memes bastante usual entre os jovens. Por entender que a sociedade atual está
inserida no mundo digital, percebemos a importância da inclusão de recursos
tecnológicos e virtuais no processo de ensino-aprendizagem como parte do
desenvolvimento da formação cidadã, através de sua apropriação crítica e criativa. Por
outro lado, a significativa repercussão que esta temática tem alcançado no cenário
nacional42 e no ambiente acadêmico43 despertou o interesse por utilizar esta
ferramenta virtual como um instrumento para promover o Conhecimento Histórico,
mediante a metodologia de Ensino Híbrido. Desta forma, acreditamos que ao trabalhar
com análise e produção de memes, o professor contribui para a formação de alunos
críticos e criativos, contribuindo para a formação cidadã, possibilitando que este atue
como sujeito histórico.

OS MEMES
O universo vivenciado pelo jovem do século XXI está inserido no mundo virtual
através das séries, vídeos, jogos, redes sociais, entre outros. O intenso contato com os
meios digitais e de comunicação acabam produzindo impactos sociais que são
refletidos também em sala de aula. Por outro lado, os recursos midiáticos na atualidade
não se limitam ao entretenimento. Nossa sociedade está cada dia mais conectada: no
transporte público, nas agências bancárias, nas informações, comunicações e tantos
outros. Por tanto, a apropriação dos recursos técnicos e virtuais são fundamentais para
o amplo desenvolvimento da vida em sociedade, que neste trabalho, usamos os memes
como ferramenta e elo entre este universo digital e a sala de aula.
Um meme é composto por uma imagem com texto curto, contendo ou não
humor, que apresenta certa carga interpretativa e que possui intencionalidade
relacionada a pessoa ou grupo que o produz. Apesar da temática desse trabalho ser

40 Recursos didáticos midiáticos podem ser entendidos como ferramentas tecnológicas e virtuais que
podem ser utilizadas a favor da educação.
41 As metodologias ativas utilizadas nesse trabalho são: Ensino Híbrido e Sala de Aula Invertida que será

abordado no segundo capítulo.


42 Os memes têm sido matéria de artigos na internet, jornais, revista eletrônicas e na mídia aberta.
43 Como exemplo da importância dos memes na esfera acadêmica, podemos citar o Museu do Meme

criado pela Universidade Federal Fluminense.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
104

apresentada como algo recente nas discussões do cenário nacional e acadêmico,


observa-se que seu conceito vem sendo discutido há algum tempo. De acordo com
Sandra Henriques, originalmente o termo Meme foi citado em 1976 pelo britânico
Richard Dawkins, que associou seu conceito à biologia, comparando a capacidade de
replicação do meme ao gene. Para ele, por definição um meme é uma ideia,
compartilhamento ou estilo que apresenta a capacidade de se multiplicar, sendo
transmitido de pessoa pra pessoa dentro de uma cultura. O meme seria “o ‘gene’ da
cultura”. (HENRIQUES, 2007, p. 7). Com o desenvolvimento das tecnologias, ele
funciona atualmente como uma unidade para transporte de ideias ou símbolos culturais
que podem ser transmitidos e multiplicados através da internet.
O conhecimento coletivo, apontado na teoria de Dawkins, de acordo com a
análise de Brito, é transmitido principalmente pelo compartilhamento das ideias pela
repetição. Porém, este conhecimento expresso na forma de memes, é potencializado
através dos meios de comunicação digital espalhando-se rapidamente, seja por e-mail,
blog, fórum, redes sociais, mensagens ou sites de vídeos. Para Dawkins, do mesmo
modo que o gene busca produzir cópias de si mesmo de uma geração para a outra, as
ideias também atuam de forma a dominar o maior número possível de pessoas capazes
de reproduzi-la, buscando assim a sobrevivência dentro das sociedades. No
pensamento deste autor, se o gene é uma unidade de informação biológica, o meme
seria uma unidade equivalente no campo cultural. (BRITO, 2013, p. 6).
Como desenvolvimento tecnológico, os memes foram tornando-se mais
populares através das redes sociais, ganhando destaque entre o público em geral e
despertando o interesse dos pesquisadores que procuraram classificá-lo. Felipe
Aristimuño (2014), em sua pesquisa sobre “Educação visual e mídia social – a criação e
propagação de memes em redes sociais, no desenvolvimento da subjetivação e
identidade adolescente na lusofonia”, afirma que os memes podem ser definidos como
uma entidade de informação digital, criada e propagada em escala global nas mídias
sociais, capaz de romper fronteiras sem perder a habilidade de conservar e criar
características específicas de grupos, forjando identidades contemporâneas. Ele é um
objeto que convida à ação criativa coletiva, tomando o produto virtual como obra aberta
e em constante processo de construção e disseminação em rede. A imagem abaixo pode
exemplificar um meme.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
105

Meme Descartes no face. Disponível em: https://aviagemdosargonautas.net/2015/08/21/humor-


agucado-alvo-uso-de-telemoveis-iv/. Acesso em 18 mai. 2018.

Atualmente os memes têm ganhado um local de destaque vinculado nas redes


sociais, nas mídias e na vida das pessoas. Não é difícil acessar uma página qualquer de
um navegador da internet e ver um desses elementos em destaque com as mais
variadas temáticas. Nas redes sociais, eles também se fazem presentes quase que
diariamente, sendo compartilhados, arrancando risadas e até gerando discussões.
Geralmente, sua principal característica é a presença evidente de humor. Porém, está
nova forma de comunicação midiática tem alcançado esferas de discussões que
ultrapassam o simples elemento humorístico e passam a abordar discussões mais
amplas como política, literatura, aspectos sociais, históricos e educacionais.
Os memes são elementos que possibilitam múltiplas abordagens,
interpretações e intenções, dependendo do objetivo com o qual é elaborado. Nas rede
sociais (Whatsapp, Facebook44, Twitter45, Instagram46, Tumblr47, etc.) eles se
espalham com grande facilidade e em algumas ocasiões esses conteúdos podem estar
vinculados a ideias ou (pré) conceitos por meio de imagens e frases curtas. Em sua
grande maioria, os memes que são produzidos corriqueiramente e circulam na internet,

44 Facebook é uma rede social lançada em 2014. Fonte: <https://www.significados.com.br/facebook/>.


Acesso em 05 nov. 2017.
45 Twitter é uma rede social e servidor para microblogging, que permite aos usuários enviar e receber

atualizações pessoais de outros contatos, em textos de até 140 caracteres. Fonte:


<https://www.significados.com.br/twitter/>. Acesso em 05 nov. 2017.
46 Instagram é uma rede social de fotos para usuários de Android e IPhone. Fonte:

<https://canaltech.com.br/redes-sociais/o-que-e-instagram/>. Acesso em 05 nov. 2017.


47 Tumblr é uma plataforma de blogs que funciona como espaço para compartilhar vídeos, imagens,

textos, músicas e gifs. Fonte: <http://www.techtudo.com.br/dicas-e-tutoriais/noticia/2016/06/o-que-e-


tumblr.html>. Acesso em 05 nov. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
106

não possuem finalidades acadêmicas, tendo como principal objetivo extrair risadas de
quem os vê.
Em função do potencial de comunicação deste elemento virtual, alguns estudos
estão sendo desenvolvidos como o intuito de atribuir ao meme caráter pedagógico. Na
Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE, por exemplo, está sendo
desenvolvida uma pesquisa sobre análise de memes históricos de internet em páginas
do facebook pelo professor Silvio Cadena48. Ele conceitua os memes como sendo
“imagens estáticas associadas a textos ou não, ou o texto em formato de imagens (gif,
png, jpeg) que foram produzidas e circuladas em redes sociais [...] sejam eles dotados
ou não de humor”. (CADENA, 2017, p. 7). Também podemos encontrar trabalhos que
envolvem o uso de memes na matemática49 e no estudo da língua portuguesa50 por
exemplo. No campo educacional, de maneira geral, os memes podem ser usados de
forma multidisciplinar, como foi citado no artigo publicado na página do UOL
Educação51 do dia 16 de agosto de 2017, cujo título era: “Está estudando memes? Eles
também podem ser colocados no ENEM”, no qual a autora Ana Carla Bermúdez fala das
possibilidades do aparecimento dos memes no Exame Nacional do Ensino Médio, uma
vez que essa ferramenta midiática possibilita a elaboração de questões que exijam do
aluno o senso crítico além do domínio de conceitos fundamentais da língua portuguesa
como polissemia, homonímia, conjunções e duplo sentido. Esta reportagem aponta
para o uso de elementos do universo virtual, memes e redes sociais, no processo
educativo.
Os memes podem ser produzidos com finalidades diversas, por pessoas ou
grupos. Eles podem ser expressão do contexto social, mas também podem ser uma
forma de influência, que favorecido pela dinâmica do universo virtual, propaga-se
rapidamente pela sociedade. Desta forma, a apropriação e a utilização de memes como

48 Silvio Cadena, mestrando da Universidade Federal Rural de Pernambuco que pesquisa os memes de
internet em páginas do Facebook que envolvem as relações entre História Pública e a Escolar.
49 Memes e educação matemática: um olhar para as redes sócias. Disponível em:
http://www.sbem.com.br/enem2016/anais/pdf/5825_2391_ID.pdf. Acesso em 18 maio. 2018; Um
retrato da matemática segundo os memes: potencialidade para o ensino-aprendizagem. Disponível em:
http://tecedu.pro.br/wp-content/uploads/2015/12/Art14-vol13-dez2015.pdf. Acesso em 18 mai. 2018.
50 O Ensino de Língua Portuguesa por meio de memes. Disponível em:
https://www.editorarealize.com.br/revistas/sinalge/trabalhos/TRABALHO_EV066_MD1_SA16_ID965
_13032017153321.pdf. Acesso em 21 mai. 2018; O Gênero meme nas aulas de Língua Portuguesa.
Disponível em: http://seer.unipampa.edu.br/index.php/siepe/article/view/19446. Acesso em 21 mai.
2018.
51 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/08/16/esta-estudando-memes-eles-
tambem-podem-ser-cobrados-no-enem.htm. Acesso em 18 ago. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
107

recurso didático-pedagógico apresentam-se com potencialidades para o


desenvolvimento do processo educativo, favorecendo a construção do Conhecimento
Histórico pelo aluno com auxílio e supervisão do professor, mediante o uso dos
recursos tecnológicos disponíveis – smartphones, por exemplo.
A utilização dos memes em sala de aula subtende a associação de metodologias
tradicionais, como uso de livro didático e aula expositiva, bastante utilizada por boa
parte dos professores de escolas públicas, com os recursos disponibilizados pela
tecnologia e internet através dos celulares dos alaunos. Esta associação é a base da
metodologia ativa denominada de Ensino Híbrido.

TECNOLOGIA E ENSINO
Não se pode negar que vivemos em um mundo digital no qual a tecnologia faz
parte do nosso cotidiano, dentro e fora das escolas. Por estar imerso em uma sociedade
digital, o aluno precisa incluir-se nela de maneira autônoma e consciente, devendo a
escola contribuir para esta inserção. Cabe a escola a função de instrumentalizar os
jovens para o uso social e crítico-cidadão das ferramentas digitais e virtuais, as quais já
fazem parte de suas vidas, sem serem dominados por elas, assumindo o protagonismo
de suas ações midiáticas, para que eles não sejam apenas receptores e replicadores de
conteúdos digitais online. Mas também que os alunos possam exercer o senso crítico e
criativo sobre o universo virtual com o auxílio do Ensino Híbrido e do trabalho com
memes. José Moran (2015) defende a importância da busca por modelos educacionais
mais eficientes, superando os modelos conteudistas, para que a educação possa ter
maior relevância para o jovem.
Uma das alternativas para que o Ensino de História seja relevante e significante
para os estudantes do Ensino Básico é a utilização das tecnologias digitais na educação,
uma vez que elas fazem parte do cotidiano deles e têm proporcionado alterações na
escola, na sala de aula e nas relações entre os alunos e o professor. Por outro lado, o
simples uso de dispositivos como projetores de imagem, lousa eletrônica e
computadores nas escolas, não garante que o processo de ensino-aprendizagem tenha
se modificado, esteja dinâmico ou significativo para o aluno. No que se refere ao Ensino
de História, o processo de aprendizagem torna-se significativo quando oportuniza o
desenvolvimento de habilidades que os alunos possam desenvolver durante a vida

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
108

escolar e que lhes dê condições para operar e entender o pensamento histórico


(MILIAN, 2013, p. 2).
A internet exerce atração ao estudante do Ensino Fundamental em função da
disponibilidade de recursos de entretenimento, informação, conhecimento,
comunicação e formação que se torna possível através das ferramentas virtuais.
Segundo José Moran, ela se faz presente na vida dos jovens devido a possibilidade de
descobrir endereços novos, de divulgar suas descobertas, pela disponibilidade de
jogos, vídeos e séries e pela comunicação em redes sociais, sendo “a mídia mais
promissora desde a implantação da televisão. (...) Mas também [em algumas ocasiões,
o aluno] pode perder-se entre tantas conexões possíveis, tendo dificuldade em escolher
o que é significativo, em fazer relações, em questionar situações problemáticas.”
(MORAN, 1997, p. 1-2).
Através da internet é possível fazer uso de metodologias ativas52 na educação,
as quais podem oportunizar o protagonismo juvenil ao mesmo tempo em que o
professor, trabalhando os conceitos e conteúdos históricos, pode significar e
ressignificar o Conhecimento Histórico, estabelecendo relação destes com a vida do
aluno. Tendo em vista que os estudantes não aprendem todos da mesma forma, o
professor pode utilizar as tecnologias digitais como aliada no processo educacional,
para atingir um número maior de alunos e envolve-los no processo de construção do
conhecimento integrando o ensino presencial com elementos online.

ENSINO HÍBRIDO
As metodologias ativas, como o Ensino Híbrido, de acordo com José Valente, são
propostas de práticas pedagógicas que estão em oposição à educação bancária
(FREIRE, 1987). Enquanto nesta o aluno atuava de forma passiva, recebendo as
informações, nas metodologias ativas ele assume uma postura mais participativa. O
Ensino Híbrido é uma metodologia ativa ou um modelo educacional que prioriza o maior
envolvimento do aluno no processo de ensino-aprendizagem. Nesta metodologia, o uso
de tecnologia se faz indispensável em pelo menos em uma das etapas da
aprendizagem, combinando momentos na escola com os vivenciados nos demais
ambientes sociais frequentados pelos alunos. Os recursos que o professor

52Metodologia ativa é uma concepção educacional que coloca o estudante como principal agente do seu
aprendizado, tendo o professor como um orientador do processo ensino-aprendizagem.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
109

disponibiliza, através do Ensino Híbrido vão além do quadro, dos livros e dos muros da
escola.
Dentre os significados que se pode encontrar a respeito do termo “Híbrido”, tem-
se o entendimento de que é algo formado por elementos diferentes e que se associam.
Abordando em uma perspectiva educacional, seria pensar o processo de ensino de
forma mais fluida, mesclando ou misturando os elementos da sala de aula formal com
os demais espaços de convivência do aluno, em especial os digitais, tornando a
educação mais flexível. Para um entendimento mais simplificado a respeito desta
metodologia, O Clayton Chistensen Institute53 apresenta uma definição ilustrativa de
Ensino Híbrido, conforme figura abaixo:

Definição de Ensino Híbrido. Disponível em: <https://www.pucpr.br/wp-


content/uploads/2017/10/ensino-hibrido_uma-inovacao-disruptiva.pdf>. Acesso em 12 nov. 2017.

A metodologia do Ensino Híbrido foi Criada por Clayton Christensen e Michael B.


Horn54 (2014) e tem como um dos fundamentos a introdução de recursos digitais no
processo educativo. Esta metodologia dispõe de recursos e métodos que estão
disponíveis na forma online, mediante planejamento do professor, para facilitar o
processo de aprendizagem podendo auxiliar no desenvolvimento das competências
cognitivas, como afirma Moran (2015), uma vez que através do uso da tecnologia, torna-

53 O Clayton Christensen Institute, anteriormente chamado Innosight Institute, isto é, programas de


educação formal que combinam o ensino online com escolas tradicionais, enfatiza que no Ensino Híbrido,
pelo menos uma as etapas sejam feitas online.
54 Difundido em maior escala nos Estados Unidos, o Ensino Híbrido chegou ao Brasil através dos seus

criadores em abril de 2014.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
110

se possível a integração dos espaços e tempos no qual o processo de ensino e


aprendizagem ocorre, entre o mundo físico e o digital. Esta associação entre sala de
aula e ambientes virtuais possibilita integração entre a escola e o mundo.
O Ensino Híbrido não propõe uma mudança radical na metodologia ou no
currículo e sim uma integração com a manutenção do modelo curricular disciplinar,
inclusive com o uso do livro didático, [...] “priorizando o envolvimento maior do aluno,
com metodologias ativas como o ensino por projetos de forma mais interdisciplinar”
(MORAN, 2015, p. 17). Este modelo educacional, em que há a integração das Tecnologias
Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) nas atividades pedagógicas, não é uma
metodologia inédita. Segundo Valente (2014), esta tem proporcionado mudanças no
sistema educacional, sendo uma das modalidades de fundamental relevância tanto no
Ensino Superior quanto na Educação a Distância (EaD).
A popularização de smartphones, linhas telefônicas e acesso a internet tem
chegado às escolas através da utilização crescente desses dispositivos pelos alunos
em sala de aula. A grande maioria das escolas brasileiras ainda não utiliza os recursos
tecnológicos a favor da educação. Quando o faz, não se preocupam com as
metodologias aplicadas. Visando uma maior participação, interação e dinamismo no
processo educacional. Assim, faz-se necessário a busca por novas metodologias que
associem o universo digital, a tecnologia e a educação para que se reduza o abismo
entre o mundo escolar e o universo digital no qual o aluno está imerso.

ENSINO DE HISTÓRIA E MEMES COM ENSINO HÍBRIDO


Para que possa haver mudanças significativas no processo educacional, faz-se
necessário entender as discussões a respeito de como se processa a aprendizagem dos
alunos, no que se refere a metodologia de ensino e ao conteúdo ministrado. No que se
refere à aprendizagem dos conteúdos históricos pelo aluno, de acordo com Itamar de
Freitas, durante algum tempo,

A aprendizagem permanecia como sinônimo de armazenamento de


episódios e histórias de vida com seus respectivos nomes, datas
tópicas e cronológicas. Numa frase: aprender era memorizar. [...]
Constatou-se que os jovens alunos repetiam frases a até narrativas
inteiras que faziam pouco sentido para elas. Na verdade as crianças
(re)significavam informações, os conceitos históricos transmitidos.
Para o professor, entretanto, essa (re)significação não tinha sentido
algum, ou melhor, para os mestres as crianças não entendiam os

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
111

“conteúdos” da forma que os adultos historiadores gostariam que elas


compreendessem (FREITAS, 2010, p.168).

Para Freitas, o estudo de temas históricos que se relacionam com o cotidiano do


aluno e que respondem a questões sociais contemporâneas podem ser melhor
entendido pelos estudantes, oportunizando a aprendizagem histórica. “Somente uma
abordagem pragmática poderia levar os alunos a assimilar os conhecimentos
históricos e a cumprir os objetivos da disciplina: estudar o passado para atribuir (e/ou
reforçar) o sentido da existência humana no presente” (FREITAS, 2010, p. 169).
Já Bittencourt (2011), faz uma abordagem a respeito das metodologias de ensino
de História. De acordo com ela, no que se refere à disciplina escolar Historia, a qualidade
na educação tende a estar associado à necessidade de um ensino mais inovador e
contextualizado, devendo o método de ensino “tradicional” ser substituído por novas
metodologias que se voltarem mais aos interesses dos alunos. Segundo a autora, a
partir do século XX, as várias propostas curriculares elaboradas para o ensino
Fundamental e Médio no Brasil tinham em comum a noção de que o aluno é sujeito
ativo no processo de aprendizagem, a aceitação de conhecimento prévio sobre os
objetos de estudos históricos o qual deve ser integrado ao processo de aprendizagem,
a importância da Historia na formação cidadã. Os dois autores citados enfatizam a
importância dos temas históricos estarem relacionados com a vivência do aluno e que
este precisa ser protagonista do processo de aprendizagem. Assim, utilizando os
memes no processo de aprendizagem, valoriza-se a vivência do aluno fazendo dele
também protagonista da construção do conhecimento.
Um dos objetivos da Educação e do Ensino de História é a formação cidadã. Para
alcançá-la, no contexto social atual, é imprescindível a busca por práticas pedagógicas
que visem tornar o Ensino de História atrativo e dinâmico. Esta proposta se faz possível
neste trabalho, através da análise e produção de memes históricos, utilizando recursos
tecnológicos disponíveis na escola e acessíveis aos alunos, principalmente os celulares.
Consta nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), a seguinte citação:

A Educação Básica de qualidade é um direito assegurado pela


Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Um
dos fundamentos do projeto de Nação que estamos construindo, a
formação escolar é o alicerce indispensável e condição primeira para o
exercício pleno da cidadania e o acesso aos direitos sociais, econômicos,
civis e políticos. A educação deve proporcionar o desenvolvimento

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
112

humano na sua plenitude, em condições de liberdade e dignidade,


respeitando e valorizando as diferenças (DCNs, p.6).

A proposta apresentada neste trabalho não é reinventar o Ensino de História,


mas torná-lo dinâmico e atrativo. Para tanto, é necessário que os alunos sintam
interesse pelas aulas através de metodologias dinâmicas que permitam uma maior
interação e participação entre os alunos, as temáticas trabalhadas e o professor. A ideia
é mobilizar este interesse através do uso de memes históricos que por sua
característica humorística, desperta a atenção dos estudantes, dando início ao processo
de construção do conhecimento.
Como já foi explicitado anteriormente, a partir da analise do uso dos alunos a
respeito dos ambientes virtuais, buscamos mecanismos que pudessem proporcionar a
construção do Conhecimento Histórico de forma atrativa, dinâmica e interativa, na
promoção do pensamento crítico e criativo do jovem cidadão através da utilização
responsável dos recursos tecnológicos. Como o foco deste trabalho é a análise e
produção de memes, estes precisariam de um sitio digital para depósito e que fosse de
fácil manutenção, simples manuseio e organização, um local de informação e interação
entre os alunos e professor. Nossa opção foi a utilização de um blog, muito embora
este espaço virtual possa ser de livre escolha do professor como por exemplo uma
página do Facebook, Instagran, um grupo no whatsapp ou demais espaços virtuais que
possibilitem a interação, desenvolvimento do Ensino Híbrido e depósito dos memes.

ETAPAS DE DESENVOLVIMENTO
No desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem, o uso dos memes se
dá em dois momentos diferentes: análise e produção. Na primeira fase, o professor
apresenta os memes já elaborados para análise da imagem de acordo com as etapas
de ensino, podendo ser usado tanto para levantamento de conhecimentos prévios dos
alunos, quanto no decorrer dos temas trabalhados. O material utilizado pelo professor
nesta fase tanto pode ser produzido por ele, quanto retirado de páginas da internet55.
Mediante questões norteadoras, o professor direciona o processo de análise do
material digital, tendo como base o conteúdo trabalhado em sala de aula e oferecendo

Há fanpages que produzem memes históricos como é o caso da “Memes Históricos” e o Museu de
55

Memes da UFF que podem ser usados como fontes para seleção do material virtual a ser usado em sala.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
113

ao aluno a possibilidade de ampliação de conhecimento através de links, vídeos e textos


complementares disponibilizados no ambiente virtual escolhido para o
desenvolvimento interacional e aplicação do Ensino Híbrido.

No segundo momento
Na segunda fase, após a conclusão das discussões, apresentação de conteúdo,
vídeos, links e demais recursos pedagógicos que serão disponibilizados tanto no livro
didático e aula expositiva, quanto no blog da turma, o aluno elabora o meme com base
no conhecimento adquirido no processo de ensino-aprendizagem, o qual será
compartilhado no blog. Assim, a produção de memes torna-se um feedback do
conhecimento adquirido pelo aluno e ao mesmo tempo uma avaliação de aprendizagem.
Para a produção do meme, o aluno pode utilizar um site gerador de memes, como por
exemplo, o meme Generator, conforme imagem abaixo:

Imagem retirada do site gerador de memes “Meme Generator”.Disponível em:


<https://imgflip.com/memegenerator>. Acesso em 20 jun. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
114

Imagem do processo de elaboração de memes retirado do site gerador de memes “Meme Generator”.
Disponível em: <https://imgflip.com/memegenerator>. Acesso em 20 jun. 2017.

Outra opção para a criação dos memes é através de aplicativos de celular, nos
quais o aluno poderá trabalhar de forma on-line e off-line com imagens baixadas da
internet ou do seu dispositivo. A sugestão é utilizar o aplicativo PhotoGrid, conforme
imagem a baixo:

Imagens retirada do aplicativo gerador de memes PhotoGrid.

A escolha pelo Meme Generator e pelo PhotoGrid se deu em função da facilidade


de manuseio e possibilidade de trabalho off-line, no caso do aplicativo para celulares,
de formas que alunos e professores não precisam ter um vasto conhecimento em

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
115

informática ou mídias para elaboração dos memes. Neste trabalho, o processo descrito
está inserido na metodologia de Ensino Híbrido, que é utilizada nas aulas de história e
no ambiente virtual, tendo como produto o blog da turma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho propunha-se a apresentar uma proposta didático-pedagógica que
utiliza memes históricos como ferramenta didática capaz de tornar o Ensino de História
atrativo e dinâmico. Como o desenvolvimento das pesquisas, constatou-se que o
trabalho com este elemento digital possui amplas possibilidades pedagógicas, muito
embora, este trabalho tenha se detido apenas apresentar uma proposta que enfatizou
apenas a sua análise e produção. Em se tratando da prática pedagógica, a utilização de
memes nas aulas de História pode ser um elemento de atração e identificação dos
alunos possibilitando o estabelecimento de relações entre o currículo escolar e a vida
dos alunos.
A utilização de celulares através de aplicativos, mediante metodologia de Ensino
Híbrido, possibilita que o tempo, que antes era dedicado ao uso dos dispositivos móveis
em redes sociais, seja empregado nas aulas com o intuito de obter
elementos/conhecimento necessário para elaboração dos memes. Perceber a
tecnologia como uma aliada e não um empecilho é apenas o primeiro passo para a
busca de uma educação de qualidade na qual o Ensino de História seja atrativo e
dinâmico em sala de aula e que o processo pedagógico possibilite a aprendizagem
significativa.

REFERÊNCIAS
ANGELUCE, Alan C. Belo, JUNQUEIRA, Antônio Hélio, PASSARELLI, Brasilina. Os
nativos digitais no Brasil e seus comportamentos diante das telas. Matrizes. São
Paulo, v. 8, n. 1, p. 159-178, jan./jun. 2014. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=143031143010>. Acesso em 04 mar. 2017.

AQUINO, Israel. Pesquisa e ensino de História na internet: limites e possibilidades.


Aedos, v. 4, n.11, set. 2012. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/30925>. Acesso em 04 mar. 2017.

ARISTIMUÑO, Felipe. O meme como expressão popular no ensino de arte alguns


pensamentos e conceitos base do projeto de pesquisa EVMS. Arte, São Paulo, n. 15,
nov. 2014.Acesso em: <http://www.revista.art.br/site-numero-15/12.pdf>. Acesso em
04 mar. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
116

BACICH, Lílian, MORAN, José. Aprender e ensinar com foco na educação híbrida.
Pátio,n. 25, p. 45-47, jun. 2015. Disponível em:
<http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/11551/aprender-e-ensinar-com-foco-
na-educacao-hibrida.aspx>. Acesso em 02 nov. 2017.

BARBOSA, Conceição A. P., CERRANO, Cláudia Aparecida. O Blog como ferramenta


para a construção do conhecimento e aprendizagem colaborativa. Disponível em:
<http://www.virtual.ufc.br/cursouca/modulo_web2/parada01_cid2/para_saber_mais
/011tcc3.pdf>. Acesso em 20 nov. 2017.

Base Nacional Comum Curricular. Disponível em:


<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/download-da-bncc/>. Acesso em 26 mar.
2018.

BECKO, Larissa Tamborindenguy, MAIA, Diego Pereira da, PIENIZ, Mônica. O Processo
de representação e identificação do Cartum: Análise das tirinhas de “Memes” da
internet. In: XIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul. 2012. Chapecó.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. 2012,
p. 1-12. Disponível em:
<https://scholar.google.com.br/scholar?cluster=10318636025064148224&hl=pt-
BR&as_sdt=0,5&sciodt=0,5>. Acesso em 29 out. 2017.

BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. 3. ed. rev. Campinas, SP: Autores
Associados, 2009. (Coleção polêmica do nosso tempo; 78). Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/es/v30n109/v30n109a08.pdf>. Acesso em 05 mar. 2017.
BERMÚDEZ, Ana Carla. Está estudando memes? Eles também podem cais no Enem.
Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/08/16/esta-estudando-
memes-eles-tambem-podem-ser-cobrados-no-enem.htm>. Acesso em 18 ago. 2017.

BEVORT, Evelyne; BELLONI, Maria Luiza. Mídia-educação: conceitos, história e


perspectivas. Educ. Soc., Campinas, v.30, n.109, p.1081-1102, Dec. 2009. Disponível
em<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73302009000400008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 30 abr. 2017.

BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3. ed. São Paulo:


Cortez, 2009. Cap. 2, 3, p. 193-350.

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica Continuada,


Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica. Conselho Nacional de Educação. Câmara Nacional de Educação Básica.
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Ministério da Educação.
Brasília. 2013.

BRITO, Bárbara de. O meme e o mestre: conhecimento coletivo nas redes sociaias. In:
CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUDESTE, 18., 2013, Baurú-
SP. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Baurú-SP,
2013. Disponível em <https://pt.slideshare.net/barbarabc/o-meme-e-o-mestre-o-
conhecimen-to-coletivo-nas-redes-sociais> acesso em: 30 mar. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
117

BRODBECK, Marta de Souza Lima. Vivendo a História: metodologia de ensino de


história. Curitiba: Base Editorial, 2012.

CADENA, Sílvio. Entre a História Pública e a História Escolar: as redes sociais e


aprendizagem histórica. In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História - contra os
preconceitos: história e democracia, 2017, Brasília. Anais... São Paulo: ANPUH-SP,
2017. p. 01-16.

CARIE, Nayara Silva de. Avaliações de coleções didáticas de história de 5ª a 8ª série


do ensino fundamental: um contraste entre os critérios avaliativos dos professores e
do programa nacional do livro didático. 2008. 139 f. (Mestrado em Educação).
Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. MG. 2008.

CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O Conceito de Representações Coletivas


segundo Roger Chartier. Diálogos - Revista do Departamento de História e do
Programa de Pós-Graduação em História, v. 9, n. 1, 2005, p. 143-156. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo. oa?id=305526860011.> Acesso em 26 out. 2017.

CHRISTENSEN, C.; HORN, M. & STAKER, H. Ensino Híbrido: uma Inovação Disruptiva?.
Uma introdução à teoria dos híbridos. Maio de 2013. Disponível em:
<http://porvir.org/wp-content/uploads/2014/08/PT_Is-K-12-blended-learning-
disruptive-Final.pdf> Acesso em 12 nov. 2017.

DELGADO, Andréa Ferreira; MAYNARD, Dilton. O elefante na sala de aula: usos de


sites nos livros didáticos de História do PNLD 2012.Perspectiva, Florianópolis, v. 32, n.
2, p. 581-613, jun. 2014. ISSN 2175-795X. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-
795X.2014v32n2p581>. Acesso em 18 ago. 2016.

DELGADO, L. A. Neves; FERREIRA, Marieta da Maraes. História do Tempo Presente e


ensino de história. Revista de História e Ensino. v. 2, n. 4, p. 19-34, dez 2013. Disponível
em: <https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/90>. Acesso em 18 ago. 2017.

DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Tempo e Argumento,


Florianópolis,v. 4, n. 1, p. 5-23, jan.-jun. 2012. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=338130378002>. Acesso em 20 ago. 2017.
Educacional. Disponível em:<http://www.educacional.com.br/legislacao/leg_viii.asp>.
Acesso em 24 jan. 2017.

ENSINAR HISTÓRIA. Disponível em:


http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/curriculo-de-historia-na-terceira-versao-da-
bncc/. Acesso em 23 abr. 2018.

Ensino de história e as novas tecnologias. Disponível em:


<http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/237/190>. Acesso em 13
abr. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
118

FEDERAL, G. FNDE/Apresentação. FNDE: Fundo Nacional de Desenvolvimento da


Educação. Disponivel em: <http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-
didatico-apresentacao>. Acesso em 17 Set. 2016.

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas: Papirus, 1993.

FRANCO, Edgar Silveira. HQTRÔNICAS: do suporte papel à rede internet. São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2004.

FRANÇA, Cyntia Simioni, SIMON, Cristiano Biazzo. Como conciliar Ensino de História e
novas tecnologias? (Mestrado em História Social - Universidade Estadual de
Londrina). Disponível em
<http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/arqtxt/resumos-
anais/CyntiaSFranca.pdf>. Acesso em 12 abr. 2017.

FREITAS, Itamar. Reformas educacionais e os currículos nacionais para o Ensino de


História no Brasil Republicano (1931/2009). Caderno de História da Educação. v. 12,.1 -
jan./jun. 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 36 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

HENRIQUES, Sandra Maria Garcia. A ideologia em weblogs: Uma análise dos memes
como formas simbólicas. In: XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2007. Santos. Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação. Disponível
em<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/r1363-1.pdf>.
Acesso em 29 out. 2017.

LUCCHESI, Anita, COSTA, Marcella Albaini da. Historiografia escolar digital: dúvidas,
possibilidades e experimentação. Autografia, Rio de Janeiro, 2016. Disponível
em:<http://orbilu.uni.lu/handle/10993/31128>. Acesso em 06 abr. 2018.

MILIAN, Vanessa K. Rodrigues. Educação histórica: um caminho para o ensino crítico


de história. Congresso Internacional de História. 6, 2013. Disponível em:
<www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/481_trabalho.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2018.
Ministério da Educação. Disponível em:<http://portal.mec.gov.br/pnld/apresentacao>.
Acesso em 24 jan. 2017.

MORAN, José. Mudando a Educação com Metodologias Ativas. In: SOUZA, Carlos
Alberto de, MORALES, Ofélia E. T. (Org.). Coleção Mídias Contemporâneas. v. 2.
PROEX/UEPG. 2015, p. 15-33. Disponível em: <http://www2.eca.usp.br/moran/wp-
content/uploads/2013/12/mudando_moran.pdf>. Acesso em 02 nov. 2017.

MORAN, José Manuel. Como utilizar a Internet na educação. Ci. Inf., Brasilia, v. 26, n.
2, p. 1-
18, Maio 1997.Disponívelem<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0100-19651997000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em
11 dez. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-19651997000200006.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
119

SILVA, Maria Raichelda Freitas. A internet no Ensino de História. Webartigos. 10 jul.


2012.<http://www.webartigos.com/artigos/a-internet-no-ensino-de-historia/92008/>.
Acesso em 13 abr. 2017.

OLIVEIRA, M. M. D. D. História: Coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da


Educação, v. 21, 2010.

________. Múltiplas vozes da construção do PNLD. In: GATTI JÚNIOR, Décio;


FONSECA, Selva Guimarães (Orgs.) Perspectivas do Ensino de História: ensino,
cidadania e consciência histórica. Uberlândia/MG: EDUFU, 2011, v., p.351-360.

PRENSKI, Marc. Nativos digitais e imigrantes digitais. MCB University Press, On the
Horizon,v. 9, n. 5, 2001.Disponível em:
<https://translate.google.com.br/translate?hl=pt-
BR&sl=en&u=http://www.marcprensky.com/writing/Prensky%2520-
%2520Digital%2520Natives,%2520Digital%2520Immigrants%2520-
%2520Part1.pdf&prev=search> Acesso em 19 mai. 2017.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a História. Belo Horizonte. 2 ed. Autêntica. 2015.

Reportagem do fantástico. Disponível em:


<http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2017/05/reportagem-revela-quem-esta-por-
tras-dos-memes-que-circulam-na-internet.html>. Acesso 15 jun. 2017.

ROCHA, Helenice Ap.; CAIMI, Flavia Eloisa. A(s) história(s) contada(s) no livro didático
hoje: entre o nacional e o mundial. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 34, n. 68, p. 125-
147, Dec. 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
01882014000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 25 ago.
2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882014000200007.

RODRIGUES, Eric Freitas. Tecnologia, Inovação e Ensino de História: ensino híbrido e


suas possibilidades. 2016. 97 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de
História). Universidade Federal Fluminense, Institudo de Ciências Humanas e Filosofia.
Departamento de História, 2016. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/profhistoria/dissertacao/eric-freitas-rodrigues>. Acesso
em: 25 set. 2017.

SANTOS, V. L. C., SANTOS, J. E. As redes sociais digitais e sua influência na sociedade e


na educação contemporâneas. Revista HOLOS. v. 6, p. 307-328, Dez. 2014. Disponível
em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/viewFile/1936/pdf_144.
Acesso em 15 jun. 2018.

SILVA, Jorge Everaldo Pittan. Ensino Híbrido: possíveis contribuições para a


qualificação do Ensino de História no Ensino Médio. 2016. 67 f. Dissertação (Mestrado-
ProfHistória) - Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Educação, Programa
de Pós-Graduação em Ensino de História em Rede Nacional, RS, 2016. Disponível em:
https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/173187/1/Disserta%C3%A7%C3%A3

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
120

o%20Jorge%20Pittan%20ProfHist%C3%B3ria%20UFSM.pdf. Acesso em 15 dez.


2017.

SOSA, Derocina, TAVARES, Luana Ciciliano. Ensino de história e novas tecnologias.


Revista Latino-Americana de História., v. 2, n. 6, p. 822-832, Agos. 2013. Disponível
em< http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/237/190>. Acesso
em 13 abr. 2017.

SOUZA, Felipe. Fábrica de memes: como brasileiros profissionalizaram criação de


vídeos e fotos que bombam nas redes. Reportagem BBC Brasil. Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/salasocial-39402172>. Acesso em 15 de jun. 2017.

TEBALDI, Raquel. Alfabetização Midiática e Informacional: gênero em debate no


ambiente escolar. In: Simpósio Gênero e políticas Públicas, 3, 2014, Londrina.
Disponível em:
<www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/GT6_Raquel%20Tebaldi.pdf>Acesso em
22 mar. 2018.

Unicamp, Histedbr. Disponível em: <


http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.histedbr.fe.uni
camp.br/navegando/glossario/verb_c_leis_organicas_de_ensino_de_1942_e_1946.
htm&gws_rd=cr&ei=UBWPWND-GMSGwQTKjoqYCg>. Acesso em 30 jan. 2017.

Universidade Estadual de Goiás. Disponível em:


<www.ppe.uem.br/publicacoes/seminario_ppe_2011/pdf/1/006.pdf>. Acesso em 14
abr. 2017.

Webblog, Professor WIFI. Meme, uma ideia que os alunos abraçam. Disponível
em:<http://professorwifi.blogspot.com.br/2015/02/memes-uma-ideias-que-os-
alunos-abracam.html>. Acesso em 30 mar. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
121

DAS ORIGENS DA DEMOCRACIA NA GRÉCIA ANTIGA AO


MODELO DEMOCRÁTICO CONTEMPORÂNEO: UMA
EXPERIÊNCIA DIDÁTICA CONTEXTUALIZADA NO
ENSINO MÉDIO

Antonio Batista Dantas Neto56*

INTRODUÇÃO
É a partir da Escola Estadual João Henrique Dantas, localizada na cidade de
Carnaúba dos Dantas, que se relata a experiência deste trabalho. Endereçada na rua
José Victor, no Centro da cidade, está sob a superintendência da 9a DIRED. Então, as
linhas escritas a seguir remetem a uma experiência docente, proposta pela atividade de
Estágio Supervisionado III, na turma do 1o ano “B” do ensino médio regular, no
expediente vespertino.
São as disciplinas de Biologia, Química, Física, Matemática, Língua Portuguesa,
Língua Inglesa, Língua Espanhola, Artes, Educação Física, Filosofia, Geografia e História
que compõem o currículo destes estudantes. Sendo programada semanalmente, duas
horas/aula para a disciplina de História, distribuídas no mesmo dia.
O período de observação da turma estava centrado nas discussões do Mundo
Antigo, sendo o momento em que se trata das primeiras formações de civilização desde
o Oriente Médio à África ao norte do Saara, mais especificamente, Antigo Egito. No
cumprimento desses assuntos, o planejamento e a professora-tutora anunciavam o
próximo conteúdo, que seria o da parte de regência, definido pelos regulamentos do
estágio supervisionado. Conteúdo o qual era apresentado como “O mundo grego:
democracia e cultura” (BOULOS JÚNIOR, 2006) no livro didático.
Participaram 28 alunos das atividades. Ocorreram durante um período de
regência de três encontros, somando 2 horas/aula cada encontro semanal. Ocupando
regularmente uma sala de aula, com a disposição de quadro e um projetor multimídia
sempre disponível em seu apoio pedagógico. Todos os estudantes dispõem-se de uma
série de materiais escolares, dentre eles 1 caderno de dez matérias, 1 caderno de
desenho, lápis grafite, canetas, borracha e lapiseira.

56 Graduando em Licenciatura em História (UFRN – Centro Regional de Ensino Superior do Seridó),


iniciado no ano de 2015 no campus situado em Caicó – RN. Atualmente reside na cidade de Carnaúba dos
Dantas – RN. E-mail para contato: antonioneto11@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
122

Este trabalho também é pautado na crítica das poucas discussões pleiteadas à


Avaliação, que pela raridade ou pelo desinteresse, nos fazem conviver com uma
definição confusa ou rasa, até mesmo num curso de licenciatura. Definição esta que nos
aproxima de práticas pedagógicas polarizadas entre provas e exames, mas nos
aproxima tanto que estes instrumentos chegam a ser sinônimos de avaliação.
É fato que a história da avaliação é muito mais recente do que a história dos
exames, sendo esta notada, pelo menos, desde os séculos XVI e XVII, e por mais que a
LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) de 1996 já referencie “avaliação
da aprendizagem”, nota-se um investimento muito maior nos exames.
Partindo do princípio em que a classificação e a seletividade do educando
inspiram o ato de Examinar, é pelo diagnóstico e pela inclusão do educando que
desenvolvemos o ato de Avaliar, bem como defende Luckesi (2011) quando afirma: “O
educando não vem para a escola para ser submetido a um processo seletivo, mas sim
para aprender e, para tanto, necessita do investimento da escola e de seus educadores,
tendo em vista efetivamente aprender.”(p.29). Disso, a necessidade de ponderarmos as
relações do instrumento de coleta de dados com a atribuição de notas, e a sensibilidade
da avaliação dos processos de aprendizado.
A Contextualização é uma abordagem aproximadora do estudante com o
conteúdo em questão. É um esforço didático pelo ensino por objetivos, ainda mais pelo
desenvolvimento de senso crítico, para fundamentar a ideia de que a educação é um ato
político. Desde a organização do conteúdo, o planejamento, até a delimitação das
estratégias em prol do aprendizado. Então dividimos nosso plano, basicamente, entre
momentos de exposições dialogadas, exercícios referentes as informações do
conteúdo, simultaneamente a uma simulação de poder de voto pelos dilemas da turma,
para culminar com um escrito de autoria dos estudantes, num exercício de correlacionar
o conteúdo ministrado com a experiência democrática e seu conhecimento de mundo.

METODOLOGIA
Foi pelas ideias de democracia que o experimento se direcionou. Pelos preceitos
e pela complexidade do modelo antigo ao contemporâneo que inspiraram nossas
atividades. Então, desde o primeiro encontro ocorre uma eleição de um único
presidente, em formato de assembleia de maioria simples, a qual, cada estudante,
levantando a mão, representava a soma de voto ou até mesmo anulação do mesmo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
123

Eleito então este presidente na classe, teria ele poder de decisão sobre dilemas,
ainda mais a atribuição de valores classificatórios na entrega de um exercício referente
ao conteúdo, posteriormente proposto. Já no segundo encontro, após a resolução deste
exercício, o primeiro presidente eleito entregaria uma relação dos valores por ele
atribuídos. Classificou assim cada entrega da lista como A, B ou C. Sendo A: a atribuição
da nota mesmo sem ter realizado o exercício por completo; B: atribuição da nota em
questão, somente por ter realizado; C: nota desconsiderada, mesmo realizado o
exercício de maneira desejável.
Após o apontamento do eleito, num segundo momento se define três grupos
baseados nessa classificação, a fim de que o grupo A tenha mais votos em relação ao
B, que por sua vez tem proporcionalmente mais votos para serem distribuídos na
eleição seguinte, como fosse o desenvolvimento aristocrático, no sentido de promover
privilégios a um determinado grupo, que também nos aproxima da nossa democracia
contemporânea, quanto mais indireta, em matéria de legenda.
Agora um processo eleitoral que conta com os cargos de presidente e dois
conselheiros, para que discutam entre si as mesmas atribuições de classe, por fim, até
reformulá-las. Sendo o líder anterior impedido de se candidatar de novo, percebemos
uma rotatividade de poder, e por isso parece ficar mais séria a relação com o
mecanismo.
Ao final do percurso de regência docente, propõe-se uma produção escrita
individual na qual impulsionasse um esforço de correlacionar os conceitos que
envolvem a história antiga ocidental, dentre eles a Democracia, com os caminhos do
experimento em sala de aula, até os sentimentos e expressões de como entendiam
política, antes ou depois do laboratório.
Eram jovens entre 15 e 18 anos que por muito queixavam suas relações com a
urna e a impotência de mudança de cenário político nacional. Porém, escreveram sobre
práticas políticas em sala de aula, e até aproximaram as informações contidas no
assunto com fatos da política de âmbito municipal.

RESULTADOS
Percebemos permanências e alterações na atribuição de classificação, quando
muitos nomes saltaram do conceito C ao A, na transitoriedade de um mandato ao outro,
assim como também ocorreu a inalteração para alguns estudantes.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
124

Uma temática, ou pelo menos uma palavra, por muito foi o tocante em boa
parte dos trabalhos. A “corrupção” foi retratada em relação a política nacional, mas
também aos meandros do experimento em sala de aula. Expressaram em seus escritos
a notória diferença entre as posturas dos governantes em seus respectivos mandatos
na classe, assim como também consideraram, de forma negativa ou positiva, o voto
nulo.
Houve referências a antiguidade quando percebiam a aproximação e o
distanciamento da Democracia grega com o modelo democrático contemporâneo, se
apropriando da essência dos conceitos que as envolvem, e até as outras contribuições
dos antigos expostas ao decorrer das aulas, como para a matemática e a música. Outra
observação que não pode ser invisível a nossa avaliação, é a de potencial
correlacionadora com alguns fatos da política municipal, como quando escrevem sobre
a participação de minorias de poder às candidaturas, e apontam para o dado das
minorias na Grécia antiga, quase sempre invisibilizadas nos processos democráticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não deixa de ser um esforço crítico um ensino de História pautado na avaliação
da aprendizagem. A abordagem do diagnóstico e pela inclusão, nos aparece como uma
via para a expressão mais subjetiva do estudante, e para a complexidade da crítica ao
Ato de Examinar, quando “Podemos estar utilizando instrumentos inadequados para
coletar dados sore o seu desempenho, fator que nos conduz a enganos a respeito de
nossos educandos” (LUCKESI, 2011, p. 31) e isso pode nos levar ao reducionismo do
aprovado ou reprovado.
Produzimos num espaço curto de tempo, a partir de um princípio de
diagnóstico, um levantamento de dados referentes as relações desses estudantes
quanto a cidadania e seus sentimentos políticos; da autonomia da expressão através de
um pouco do que pensam história e poderiam dissertar; do potencial do conteúdo
previsto no currículo se apresentar como conhecimento que, minimamente, tenha
sentido em seu cotidiano. Uma atividade que por si só demanda um contato mais
profundo e contínuo à plenitude de seus objetivos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
125

REFERÊNCIAS
LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições.
São Paulo. Cortez, 2011. 22a ed.

VERNANT, J.P. 2002. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro, Difel.

BOULOS JUNIOR, Alfredo. O mundo grego: democracia e cultura. História–Sociedade e


Cidadania. 1º ano. Ensino Médio/Alfredo Boulos, 2006.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
126

Simpósio Temático 4
ÍNDIOS NA HISTÓRIA:
TEMAS E PERSPECTIVAS NO ENSINO E PESQUISA
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:

(PERÍODO COLONIAL AOS DIAS ATUAIS)


A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
127

LEI 11.645/08 NO ENSINO DE HISTÓRIA INDÍGENA DO RIO


GRANDE DO NORTE- POSSIBILIDADES, EXIGÊNCIAS E
DESAFIOS

Kamyla Raphaely Macêdo Monteiro57


Orientador: Lígio José de Oliveira Maia

INTRODUÇÃO
A História das Culturas Indígenas no Brasil precisa ser reescrita, uma vez que
ela sempre foi lembrada como temas de povos existentes apenas na região norte, e o
que é pior, mais precisamente no estado do Rio Grande do Norte, por muito tempo
foram lembrados como povos extintos. Hoje, o seu estudo já é obrigatório em todas as
escolas do ensino fundamental e médio graças a Lei 11. 645/08 e com ela surge os
seguintes desafios, o de como a educação no ensino de história lida ao tratar das
questões étnico/raciais? o de como lecionar sobre estes povos indígenas, se é fácil
constatar que a imensa maioria do professorado na educação básica desconhece a
população indígena em nosso país e nem nunca ouviram falar que atualmente no estado
do Rio Grande do Norte, povos reivindicam o seu reconhecimento indígena? Este
professorado nem ao menos sabe quantos povos brasileiros se autodeclararam índios
no censo IBGE/2010, então, como tratar dos povos indígenas do Rio Grande do Norte,
se no senso comum e no ambiente escolar apenas se conhecem os índios da Região
Norte, quando muito? Considerados portadores de uma suposta ‘cultura pura’esses
índios da região norte, se opõem aos índios da região Nordeste, que sofreram
colonização há mais tempo, sendo que os índios do estado do Rio Grande do Norte não
é uma exceção, assim como os do Nordeste, eles tem suas identidades
sistematicamente negadas e são chamados de ‘caboclos’. Esse termo era bastante
utilizado em meados do século XIX pelos colonizadores e pelas autoridades que
defendiam o fim dos aldeamentos e muito contribuiu para a invisibilização desses
povos indígenas na história. Como se não bastasse, a historiografia local também muito
contribuiu para esse apagamento, com os escritores Câmara Cascudo, Rocha Pombo e
Tavares de Lira, não se tinha dúvida quanto o seu desaparecimento total. Até que

¹ Mestranda em História e aluna do bacharelado em História, já com Bacharelado em Turismo e


Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Especialista em
História e Cultura Afro-brasileira e em Gestão de Pessoas e Formação de Competências.
kamylarmonteiro@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
128

finalmente, no estado do Rio Grande do Norte, surgem trabalhos de Historiadores,


como o de Fátima Martins, por exemplo, revivendo a história desses povos sobre uma
outra óptica, mostrando que os índios ainda vivem no estado, e inspirando a tantos
outros trabalhos que se iniciam e contribuem para a construção da historiografia do
Rio Grande do Norte que ainda engatinha.
Diante do exposto, neste artigo tentaremos mostrar como superar a visão
comumente exótica sobre os povos indígenas do Rio Grande do Norte em sala de aula,
para substituí-la por uma abordagem crítica? Questões como essas, impregnadas de
desinformações, ignorância generalizada, equívocos e, portanto, preconceitos contra
‘os índios’ são grandes desafios para o ensino da história indígena e para as reflexões
sobre esse tema.

Figura 1: A falta de um mapa atualizado com as populações indígenas do Rio Grande do norte expressa
o quanto essa temática indígena ainda espera por investimentos em estudos58.

RECONHECENDO A SOCIODIVERSIDADE INDÍGENA DO RIO GRANDE DO NORTE

58Distribuição geográfica da população indígena urbana e rural no RN de acordo com as informações


obtidas da FUNAI/RN/Censo IBGE 2010 citado por SPINELLI, Ana Cristina. (Coord). (2013, p.9).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
129

O pouco conhecimento sobre os índios do estado do Rio Grande do Norte, ainda


está de certa forma, vinculado à imagem do indígena que constantemente ainda vem
sendo veiculada pela mídia, a de um ‘índio genérico’, com biótipo formado pelas mesmas
características que correspondem aos índios da região Amazônica, com cabelos lisos,
que estejam nus ou pintados, cheios de adereços, usando penas como enfeites, que
falam outra língua e sejam donos de uma cultura exótica. E ainda, a forma como esses
índios são representados seja na literatura romantizada do século XIX ou na
perspectiva de uma cultura etnocêntrica e evolucionista de uma suposta hierarquia de
raças, sendo chamados de tribos ou romantizados nos termos: “índios belos, ingênuos,
valentes guerreiros, bons selvagens, heróis, ameaçadores canibais ou bárbaros”.
As características acima citadas contribuem para que a imensa maioria da
população do país, mais especificamente a população potiguar mais esclarecida, não
saiba onde estejam os índios do estado do Rio Grande do Norte, uma vez que buscam
neles características que não lhes pertencem. Porém, a visibilidade política conquistada
por estes índios está fazendo com que essa visão ainda existente sobre os indígenas
venha mudando cada vez mais nos últimos anos.
Atualmente e de acordo com Monteiro (2006, p.9) em Etnohistória, Identidade,
Indigesnismo e Etnogênese: Um olhar sobre os Caboclos do Assú/RN, podemos ver que
as Comunidades indígenas do estado do Rio Grande do Norte, são estas: Mendonças do
Amarelão (João Câmara), que por sua vez estão divididos em três assentamentos:
Serrote de São Bento, Santa Terezinha e Assucena; os Eleotérios do Catu
(Canguaretama e Goianinha); Sagi/Trabanda (Baía Formosa); os Tapará (Macaíba); os
Caboclos do Assú59 (Assú); Comunidade do Sítio Trapiá/Olho d’água e da Comunidade
Banguê (ambas também no município de Assú); e Tapuia Paiacu (Apodi).
De acordo com Silva (2012, p.215) o que fez com que a sociedade em geral
(re)descobrisse os indígenas foi as mobilizações destes povos em torno dos debates
para a elaboração da Constituição de 1988 e as conquistas dos direitos indígenas
fixados na lei maior do país possibilitando a garantia de direitos, como a demarcação de
terras, saúde e educação diferenciada e específicas. Já Macedo e Medeiros Neta, na p.
22 vai mais longe, afirmando que as Comunidades no presente estão reivindicando sua
identidade indígena motivadas por um complexo cenário que se descortinou a partir do

59 Assú com SS e acento no U, em acordo com a Lei nº 124 de 16 de outubro de 1845.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
130

fim dos anos de 1990 e início da década de 2000, onde estes autores incluem eventos
como a comemoração dos “500 anos” do Brasil, bastante criticada e refutada por povos
indígenas do Nordeste e cientistas sociais. Vale salientar ainda que, a divulgação dos
números dos censos do IBGE de 1991, 2000 e 2010 atestando a presença de índios no
Rio Grande do Norte motivou o surgimento de estudos por pesquisadores da UFRN
visando discutir a presença indígena no estado.
Observemos que o mapa do Rio Grande do Norte (Figura 1) apresenta a presença
de povos indígena, embora o número esperado para esta região pudesse ser maior,
podemos interpretá-lo além dos impactos da colonização europeia, a falta de
conhecimento. O índio Gersem Baniwa (2006, p. 49), conforme citado por SILVA (2012,
p.216), escreveu o seguinte sobre a sociodiversidade dos povos indígenas:

A sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem


criam dificuldades para enquadrá-los em uma definição única. Eles
mesmos, em geral não aceitam as tentativas exteriores de retratá-los
e defendem como um princípio fundamental o direito de se
autodefinirem.

E ainda, após discorrer sobre as complexidades das organizações sociopolíticas


dos diferentes povos indígenas nas Américas questionando as visões etnocêntricas dos
colonizadores europeus, o pesquisador indígena afirma (SILVA, 2012, p.216):

Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de


diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de
civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos,
econômicos, enfim, de organizações sociais, econômicas e políticas
construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras
civilizações dos demais continentes europeu, asiático, africano e a
Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores
ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas
diferentes.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
131

Figura 2: Exemplo da Sociodiversidade Indígena no Rio Grande do Norte:

Fonte: acervo de imagens de Jussara Galhardo60

Ao tratar da chamada identidade cultural brasileira, Gersem (2006, p. 49) apud


SILVA (2012, p.216) conclui que:

não existe uma identidade cultural única brasileira, mas diversas


identidades que, embora não formem um conjunto monolítico e
exclusivo, coexistem e convivem de forma harmoniosa, facultando e
enriquecendo as várias maneiras possíveis de indianidade, brasilidade e
humanidade. Ora, identidade implica a alteridade, assim como a
alteridade pressupõe diversidade de identidades, pois é na interação
com o outro não idêntico que a identidade se constitui. O
reconhecimento das diferenças individuais e coletivas é condição de
cidadania quando identidades diversas são reconhecidas como direitos
civis e políticos, consequentemente absorvidos pelos sistemas
políticos e jurídicos no âmbito do Estado Nacional.

Desta forma podemos entender que afirmar a sociedade indígena, não só no Rio
Grande do Norte, mas também em qualquer lugar do mundo, é reconhecer os direitos

60Coordenadora do Grupo de Estudos da Questão Indígena no Rio Grande do Norte- Grupo Paraupaba-
MCC/UFRN e integrante da Comissão Pedagógica do Museu Câmara Cascudo-MCC/UFRN. Disponível
em: http://indigenasnorn.blogspot.com.br/ Acesso em 22/10/2016.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
132

às diferenças socioculturais, buscando compreender as possibilidades de coexistência


sociocultural, fundamentada nos princípios da interculturalidade, pois

a interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a


possibilidade de convivência e coexistência entre culturas e
identidades. Sua base é o diálogo entre diferentes, que se faz presente
por meio de diversas linguagens e expressões culturais, visando à
superação de intolerância e da violência entre indivíduos e grupos
sociais culturalmente distintos. (Baniwa, 2005, p.51 apud SILVA 2012,
p.216).

Nesse momento, tanto os Eleotérios do Catú, quanto os Mendonça do Amarelão,


os Caboclos do Assú, os Taparás de Macaíba, dentre as demais outras comunidades
emergentes do estado do Rio Grande do Norte (já citadas acima), estão se (re)definindo
enquanto sujeitos historicamente ativos e politicamente conscientes, uma vez que
manifestam suas insatisfações diante de processos políticos e ideológicos que os
deixaram à margem da sociedade e, por outro lado, da necessidade que têm de tomarem
para si a defesa de uma identidade diferenciada, mostrando que a história indígena do
Rio Grande do Norte está marcada por conflitos e lutas herdadas desde os tempos
coloniais, e está longe de ser feita de desaparecimentos, tornando-se como pontos
fortes da sociedade contemporânea.
Portanto, podemos ver que os indígenas vêm conquistando o (re)conhecimento
e o respeito a seus direitos específicos e diferenciados, e este reconhecimento, exige
também novas posturas e medidas das autoridades governamentais em ouvir dos
diferentes sujeitos sociais a demanda por novas políticas públicas que reconheçam,
respeitem e garantam suas diferenças.
Em Silva (2012, p. 217) podemos ver o exemplo da Educação, mostrando que nela
pretende-se a formulação de políticas inclusivas das histórias e expressões
socioculturais no currículo escolar, nas práticas pedagógicas e que essa exigência deve
ser atendida com a contribuição de especialistas, a participação dos próprios sujeitos
sociais, os índios, na formação de futuros docentes, na formação continuada daqueles
que discutem a temática indígena e atuam na produção de subsídios didáticos em todos
os níveis de ensino. Só assim, podemos deixar de tratar as diferenças socioculturais
como estranhas, exóticas e folclóricas, reconhecendo em definitivo os ‘índios’ como
povos indígenas, com seus direitos de expressões próprias que podem contribuir
decisivamente para toda humanidade.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
133

Por fim, se as mobilizações trouxeram nas últimas décadas considerável


visibilidade para os povos indígenas como atores sociopolíticos em nosso estado,
‘exigindo’ novas reflexões e o conhecimento principalmente entre os educadores, tá
mais do que na hora de contestarmos também os equívocos, os preconceitos e a
desinformação generalizada sobre estes indígenas.

LEI 11.645/08: POSSIBILIDADES, EXIGÊNCIAS E DESAFIOS.


A Lei 11.645/08 foi sancionada no governo de Luís Inácio Lula da Silva e alterando
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB- 9.394/96) e modificada pela Lei
nº 10.639/03, veio para combater o processo histórico de inferiorização dos índios por
meio da educação formal. Havia uma urgência de alteração na dinâmica das relações
étnicas no Brasil e com esta Lei torna-se obrigatório em estabelecimentos de ensino
público e privado, o ensino da história indígena, no âmbito de todo o território do nosso
País. No Diário Oficial da União (2008, Seção 1), podemos ver que:

A promulgação da lei 11645/08 altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Embora amparado pela Lei, o estudo da cultura indígena jamais pode ser visto
como mera obrigação ou cumprimento de conteúdo, mas graças a ela, passa a existir
no âmbito de todo currículo escolar, em especial na área de educação artística, de
literatura e história brasileira, pois é nos debates em sala de aula que podemos
desconstruir visões preconceituosas e deturpadas relacionados aos índios. O berço dos
conflitos dessa conversação é a escola, proporcionando a troca de experiências, uma
vez que é lá que se inicia a fase que entra em discussão a cultura indígena já integrada
ao currículo escolar. Pereira (2017, p. 15) apud Guedes, Nunes e Andrade (2013, p. 422)
segue dizendo que “nesse cenário, a Escola se torna, inevitavelmente, um lugar
privilegiado que reflete, através de diferentes perspectivas, o rico e desafiador enredo
das relações sociais”. Portanto, a influência que este assunto e lei causam em sala de
aula é de suma importância para estimular os alunos e os professores na discussão do
assunto, e o professor se sentirá seguro ao abordar esse tema já que existe uma lei que
o auxilia nesse processo. É necessário encontrar uma forma correta de abordar essa

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
134

questão, levando em consideração à rica e a diversidade cultural indígena, no Brasil e


até mesmo dentro do próprio estado do Rio Grande do Norte, para não cair na
redundância e no erro de limitar o estudo indígena do estado àqueles da região
amazônica.
Vale salientar que a obrigatoriedade do estudo de história indígena já fazia parte
das discussões de entidades envolvidas com os movimentos sociais, que em novos
cenários políticos e com diferentes atores conquistaram e ocuparam seus espaços,
reivindicando o reconhecimento e o respeito às sociodiversidades, portanto, podemos
dizer que um dos fatores primordiais para a aprovação da Lei 11.645/2008, foi à
organização sociopolítica do Brasil contemporâneo. Foi um momento em que
identidades foram afirmadas, diferentes expressões sociocultural passaram a ser
respeitadas e reconhecidas, provocando mudanças de atitudes que exigiram novas
políticas públicas que respondessem às demandas por direitos sociais específicos e
diferenciados.
A característica de variados modelos dos povos indígenas ajuda os professores
a aprofundar ainda mais o seu foco de atuação em sala, devendo este apenas tomar um
certo cuidado para não fazer generalizações para que não haja um impacto negativo no
conhecimento e entendimento dessa variada cultura das regiões marcadas pela
presença indígena no País. Descartando esta possibilidade, ela despertará nos alunos a
curiosidade, incentivando-os a pesquisa e a busca de mais informações.
Passados mais de 10 anos de sua publicação, vários desafios para efetivação do
que determinou a Lei 11.645/2008 ainda persiste. É de fundamental importância, por
exemplo, capacitar os quadros técnicos de instâncias governamentais (federais,
estaduais e municipais) para o combate aos racismos institucionais. Mas um grande
desafio, talvez seja até o maior deles, é a capacitação de professores. Tanto dos que
estão atuando quanto daqueles ainda em formação. Isso significa dizer que no âmbito
dos currículos dos cursos de licenciatura e de formação de professores deve ocorrer a
inclusão de cadeiras obrigatórias, ministradas por especialistas, tratando
especificamente da temática indígena. É preciso que as secretarias estaduais e
municipais incluam ainda a temática indígena nos estudos, nas capacitações periódicas
e na formação continuada, e a abordagem deve se dar na perspectiva da
sociodiversidade historicamente existente no Brasil: por meio de cursos, seminários,
encontros de estudos específicos e interdisciplinares destinados ao professorado e aos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
135

demais trabalhadores/as em educação, com a participação de indígenas e a assessoria


de especialistas reconhecidos. É preciso, também, adquirir livros que tratem da
temática indígena, destinados ao acervo das bibliotecas escolares. Outro grande
desafio e urgente necessidade é a produção – com assessorias de pesquisadores e
especialistas – de vídeos, subsídios didáticos, textos etc. sobre os povos indígenas, para
utilização em sala de aula, proporcionando ainda o acesso a publicações – livros,
revistas, jornais e fontes de informações e pesquisas sobre os povos indígenas.
A efetivação da Lei 11.645 possibilitará estudar, conhecer e compreender a
temática indígena. Superar desinformações, equívocos e a ignorância que resultam em
estereótipos e preconceitos sobre os povos indígenas, reconhecendo, respeitando e
apoiando os povos indígenas nas reivindicações, conquistas e garantias de seus direitos
e em suas diversas expressões socioculturais.
A efetivação dessa Lei, além de mudar antigas práticas pedagógicas
preconceituosas, favorecerá novos olhares para a História e a Sociedade. Na nossa
sociedade a escola tem papel privilegiado na formação humana, buscando responder
às demandas sociais. Ainda que se levem em conta as dificuldades e os desafios
presentes nos processos de ensino-aprendizagem, no fazer pedagógico, a escola é um
lócus onde a efetivação da Lei possibilitará viabilizar “espaços que favoreçam o
reconhecimento da diversidade e uma convivência respeitosa baseada no diálogo entre
os diferentes atores sociopolíticos, oportunizando igualmente o acesso e a socialização
dos múltiplos saberes”. Assim, contribuirá para a formação de cidadãos críticos,
possibilitando o reconhecimento das diferenças socioculturais existentes no Brasil, o
reconhecimento dos direitos da sociodiversidade dos povos indígenas.

DESAFIOS DO ENSINO DE HISTÓRIA E DA EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAIS


Cientes de que as desigualdades sociais em geral, é em parte uma consequência
da discriminação étnico/racial ocorrida no passado e ainda, de um “processo ativo de
preconceitos e estereótipos raciais que legitimam, cotidianamente procedimentos
discriminatórios” (FERREIRA, 2014), entendemos que para a construção de uma
sociedade coesa e justa, é necessário que não ocorra à persistência da discriminação
que além de trazer sérios danos, compromete a evolução democrática. Devemos
desconstruir a ideia de uma suposta identidade genérica nacional, mostrar que a
diversidade deve se tornar um dos pilares em que a cultura da inclusão e da igualdade

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
136

esteja presente, devemos mostrar que a diversidade étnica no Brasil é normal uma vez
que somos um país de diversas expressões socioculturais, étnicas e religiosas,
resultado da junção de complexos e diversos fenômenos. É necessário,
problematizarmos as ideias e afirmações de identidades gerais como a mestiçagem no
Brasil, discurso ainda bastante utilizado para negar, desprezar e suprimir as
sociodiversidades existentes no país. Reconhecer, afirmar e respeitar o direito às
diferenças significa questionar o discurso da mestiçagem como identidade nacional,
usado para esconder a história de índios.
Precisamos de uma sociedade ativa e fortalecida para o enfrentamento desses
negativos fenômenos, requerendo junto à atuação de um Estado efetivo, a articulação
de diversos tipos de intervenção que vão desde o repúdio às práticas preconceituosas
e o incentivo às ações de valorização da população indígena, além da combinação de
políticas afirmativas com as políticas sociais universais.
Agora, nos inclinando um pouco mais para o ensino de História, de acordo com
Monteiro (2017, p. 6) em seu trabalho Lei 10.639 na intervenção dos estagiários do
PIBID de história da UFRN-RN no ano de 2011, hoje esse ensino representa grandes
desafios uma vez que não existe uma fórmula única para se ensinar e as mudanças e
transformações sobre os estudos são constantes e vistos de forma natural uma vez
que a sociedade também está em mutação. Sendo assim, podemos verificar que os
trabalhos sobre como estudar e ensinar história tem crescido de maneira significativa
bem como o aumento dos cursos de graduação nessa área, porém, esse crescimento
nunca será suficiente para dizermos que encontramos a forma certa e devida para esta
tarefa de melhor ensinar o conteúdo de história para o melhor aproveitamento e
aprendizado por parte dos alunos.
Diversos trabalhos reafirmam que o ensino de História no Brasil apresentou
mudanças e permanências ao longo do tempo, mostrando que profissionais e teóricos
tem se dedicado a tratar sobre a metodologia que deveria ser utilizada, porém a forma
de repetição e de memorização embora muito criticada e um tanto quanto ultrapassada
continua sendo utilizada ainda nos dias de hoje, bem como a utilização apenas do livro
didático como guia de transmissão do conhecimento de professor para aluno. Este
método tradicional de lecionar representa um desafio a ser mudado e um limite para as
novas linguagens. Nas aulas Tradicionais, o professor é considerado como agente do
conhecimento, o transmissor da verdade histórica e os alunos são apenas os

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
137

receptáculos do saber, e todo esse conhecimento entra de forma natural e lá


permanece. Nessas aulas, usam muito do método expositivo, e da visão de História
política/linear, e pouco ajuda os alunos na apreensão do conhecimento histórico.
Outra questão que deve ser levada em consideração é o fato dos próprios alunos
terem sido “criado pelo modo tradicional”, e muitos deles veem “as mudanças” na
forma de ensino, com certa desconfiança. Em seu artigo A revolução dos conteúdos e
métodos da História ensinada, que também mostra mudanças e permanências por que
passou o ensino de história no século 20, principalmente pós-1994, AZEVEDO (2010)
confirma esse tradicional método utilizado:

No decorrer das observações, realizadas na última década na rede


escolar de ensino, percebemos que uma parte dos professores de
História ainda segue apenas o livro didático como recurso didático e, na
maior parte do seu tempo em sala, atém-se a aulas expositivas
tradicionais, aplicando questionários como exercícios. A tendência
apresentada por parte dos nossos alunos dos estágios
supervisionados é adotar a mesma postura.

O discurso de inovação é considerado uma possibilidade para superar esses


desafios no ensino, tanto por parte da escola, quanto pelos professores em geral,
porém mesmo assim de forma inconsciente, a tendência são eles continuarem fazendo
o tradicional, mesmo que retocado de inovação. Esperar (inconscientemente) que a
escola, e o ensino de História especificamente, sejam “ainda” tradicionais, não quer
dizer que devam ser. Professores universitários e pesquisadores perceberem que o
ensino da disciplina, em grande parte das escolas do país, ainda é realizado através da
forma tradicional, da qual os professores não conseguem, e não querem, se desligar.
Uma possível explicação, talvez esteja no fato dos cursos de graduação também serem
formulados e ministrados pela forma tradicional, expositiva e linear da História, o que
acaba gerando uma reprodução do ensino/aprendizado dos professores em seus
alunos.
As possibilidades encontradas no texto de Azevedo e Stamatto (2016, p.70-89)
no que se refere à solução para este desafio, mostra que “o professor ao dominar
diferentes concepções pedagógicas e históricas pode melhor definir e decidir sobre o
tipo de conhecimento que levará para a sala de aula atendendo às especificidades do
público escolar com o qual trabalha”. Já na renovação dos conteúdos e métodos da
história ensinada, apenas Azevedo, mostrando essas dificuldades que as escolas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
138

básicas de nosso país ainda sofrem em pleno século XXI, com esses desafios
apresentados pela necessidade de renovação no ensino de História, evidencia que “para
mudanças de maior monta, requer-se solidez teórico- metodológica no planejamento
docente” (2010, p.1). As possibilidades que ela apresenta ainda neste artigo citado são:

possibilidades metodológicas de renovação dos conteúdos e métodos


da história ensinada para os dias atuais por meio de um processo de
formação docente voltado a práticas de pesquisa e exposição de
possibilidades de fontes e biografias especializada passíveis de serem
utilizadas pelo professor em suas aulas (AZEVEDO (2010, pp.1-2).

A autora parte do princípio que o professor para superar estes desafios tem que
está constantemente se auto avaliando, assumindo o papel de um sujeito cognoscente
diante do seu objeto, ou seja, o professor deverá assumir a postura de um sujeito
pensante e de um profissional intelectual.
A Lei criada em 2008 não diminui os desafios, muito pelo contrário, com a
obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena passou-se a
pensar mais em políticas educacionais, bem como os limites e as possibilidades de uma
educação étnico-raciais. Diante dessas reflexões, questões de como fazer as
abordagens tratando do tema com a devida importância, quais conteúdos devem ser
transmitidos aos alunos, quais temas são de maior relevância no que diz respeito a
História Indígena e sua contribuição para a formação brasileira, e no que se refere ao
suporte necessário, até que ponto a lei dará o respaldo para a implementação
necessária e o apoio das políticas educacionais que regem a educação no Brasil? São
algumas das tantas outras inquietações que assolam os atuais professores que se
veem diante desse desafio.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS E DE CONTEÚDOS PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA


INDÍGENA DO RIO GRANDE DO NORTE
Se o ensino de História por si só, hoje representa grandes desafios imagine o
ensino de História Indígena acrescentando a esta o ensino de História Indígena do Rio
Grande do Norte. Portanto, para o ensino crítico da temática indígena nas escolas
devemos sempre atentarmos para a consideração da atualidade destes povos,
devemos utilizar mapas para a localização dos índios no estado, não esquecendo de se
desvincular da ideia de passado colonial em que supostamente todos esses índios

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
139

haviam sido exterminados. Podemos utilizar os censos do IBGE, contabilizando a


existência da população indígena no estado que se autodeclaram índios, além da
necessidade de se discutir as diferentes expressões socioculturais indígenas no
passado e no presente, questionando a clássica dicotomia Tupi X Tapuia e sugerindo a
utilização de fotografias para demonstrar essas sociodiversidades no Rio Grande do
Norte. Além disso, podemos também evidenciar a participação efetiva dos povos
indígenas nos diversos momentos históricos ao longo do tempo, desnaturalizando a
ideia equivoca da presença do índio apenas na época do ‘Descobrimento’ ou somente
na ‘formação do Brasil’. Ou seja, problematizando o lugar pensado e o ocupado pelos
povos indígenas na história do país.
É interessante também que as escolas por intermédio dos professores,
promovam momentos de integração entre os povos indígenas e os alunos durante o
calendário letivo, por meio de visitas previamente preparadas, dos estudantes às
aldeias/comunidades, bem como dos indígenas às escolas, buscando com isso a
superação das discriminações e dos preconceitos. Porém, devemos atentarmos para o
fato de que as visitas não devem se constituir como meras apresentações folclóricas,
mas principalmente como espaços de aprendizagens e diálogo.
Por fim, é necessário discutir e propor o apoio aos povos indígenas do estado do
Rio Grande do Norte por meio do estímulo ao alunado para a realização de cartas às
autoridades locais com denúncias e exigências de providências diante de assassinatos
ou atentados que embora não seja muito divulgado, o estado não está livre dessas
violências, um dos exemplos que podemos citar, foi o atentado contra o líder Luís do
Catú, onde o mesmo carrega em seu corpo as cicatrizes. Ainda podemos também,
estimular os alunos a realização de abaixo-assinados e por meio de manifestações
coletivas na sala de aula, estimularemos o apoio às campanhas de demarcação das
terras e a garantia dos direitos dos povos indígenas.

Sugestões bibliográficas
• CAVIGNAC, Julie A. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do
Norte .
• GUERRA, Jussara Galhardo Aguirres. Mendonça do Amarelão: os caminhos e
descaminhos da identidade indígena no Rio Grande do Norte. Dissertação de
Mestrado em Antropologia. Recife, 2007.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
140

• OLIVEIRA, Jailma N. V. de. Caboclos do Assú: Emergência Indígena, Identidade e


territorialidade no Rio Grande do Norte. XXI Simpósio Nacional de História-
Conhecimento histórico e diálogo social. Natal, ANPUH, 2013.
• LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande
do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII. 2005. 700p. Tese
(Doutorado em História do Brasil). Universidade Federal de Pernambuco. Recife.
• LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da
Capitania do Rio Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 2003.
• MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Desvendando o passado índio do
sertão: memórias de mulheres do Seridó sobre as caboclas-brabas. Vivência, n.
28, 2005, p. 145-57, Natal.
• MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e
populações indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande. 2007. 309p.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Natal.
• MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços:
relações interétnicas na Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó
entre o final do século XVIII e início do século XIX. 2002. 169p. Monografia
(Graduação em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Caicó.
• SPINELLI, Ana Cristina. (Coord). Marco Conceitual dos Povos Indígenas do RN.
UGP. Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Rio Grande do
Norte – RN Sustentável. Aprovação publicada no Diário Oficial do Estado
através da Portaria SEPLAN 011/2013 de 14 de fevereiro de 2013.
• SILVA, Claudia Maria Moreira da. “Em busca da realidade”: a experiência da
etnicidade dos Eleotérios (Catu/RN). 2007. 285p. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal.
• SILVA, Gildy- Cler Ferreira da. “Nós, os potiguara do catu”: emergência étnica e
territorialização no Rio Grande do Norte (Século XXI). 2016. Dissertação
(Mestrado em História) – UFRN, Natal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
141

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já sabemos a implementação da Lei 11645/08 trouxe muitos benefícios ao
tratamento das questões étnicas, o estudo e as discussões em sala de aula nos dias
atuais sobre a História Indígena é notória, porém, mesmo assim ainda não existe uma
coerência entre a teoria e a prática no que diz respeito a essa lei e muita coisa ainda
precisa ser revista, como por exemplo, o estudo da História do Rio Grande do Norte não
é obrigatória, ficando os alunos tendo que estudar e ver nos seus livros didáticos
apenas os índios de outras regiões contribuindo para as deturpações. Além disso,
infelizmente, ainda encontramos profissionais da educação sem o preparo necessário
para trabalhar as questões relativas à História Indígena no Brasil quanto mais no nosso
estado, coisa que sabemos que falar de índios na contemporaneidade não é uma tarefa
fácil, pois inclusive nós pesquisadores, muitas vezes nos deparamos cometendo erros
que já deveriam ter sido eliminados, no que se refere a tentar explicar uma ideia
referente a esses povos atuais, com uma visão que aprendemos durante toda a nossa
vida escolar. É necessário, fugirmos dessa tendência e para isso vimos que não basta
apenas darmos uma educação sem discriminações, não basta dar apenas “as
ferramentas” para o trabalho é preciso ensinar a usá-las, uma vez que o professor tem
nas mãos uma grande responsabilidade, dar uma educação que sirva para fazer com
que as diferenças sociais sejam respeitadas, onde todas as preocupações devem estar
acompanhadas de um conhecimento a respeito das diversas culturas que formam o
País.
Em muitas escolas a lei 11645/08 ainda não é aplicada de fato, por não terem
professores preparados sobre o assunto, a maioria não teve durante a sua graduação
disciplinas que lhes proporcionassem tal conhecimento, se fazendo necessário um
apoio maior para a formação continuada desses professores, e além disso ainda existe
muitas vezes, desinteresse da própria escola em levar adiante o tema. Encontramos
professores se esforçando para incluírem em suas atividades assuntos que valorizem
o conhecimento indígena, sendo que a própria instituição não apoia, não valoriza, ou não
se engaja para promover esse ensino.
A partir dos referenciais teóricos utilizados e também através de um
conhecimento já existente, percebemos ainda que as mudanças no ensino e nos
métodos de lecionar são muito difíceis, uma vez que para mudar o seu método, não se
pede apenas que o professor mude de técnica, pede-se para que ele próprio mude, e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
142

ainda foi-se comprovado que não existem métodos mais corretos ou melhores do que
outros, e que a questão não é dizer que devemos abandonar de vez o modo tradicional,
para eliminar as dificuldades existentes no ensino de História, mas sim, provocar e
estimular mudanças nas formas de ensinar de modo gradual e contínuo para que não
acabe trazendo consequências contrárias e indesejadas.
Por fim, devemos reconstruir uma sociedade que embora étnica, plural e
cultural, acima de tudo respeite a diversidade de um povo e que mais trabalhos sobre a
História Indígena do Rio Grande do Norte seja concluído para dar voz e visibilidade a
estes povos que depois de tanto tempo calados pelos discursos hegemônicos de
séculos, agora se mostram proferindo voz própria.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Crislane Barbosa de. A Renovação dos conteúdos e métodos da História
ensinada. In: Revista Percursos- Florianópolis, v.11, n. 02, jul./dez. 2010.

AZEVEDO, Crislane Barbosa de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Historiografia,


processo ensino- aprendizagem e ensino de história. In: Revista metáfora educacional
(ISSN 1809-2705) – versão on-line, n. 9. , dez/ 2010. p. 70-89. Disponível em:
http://www.valdeci.bio.br/revista.html. Acesso em 02 de julho de 2018.

FERREIRA, Vanda Maria. A importância da Lei 10.639 para a erradicação do racismo -


Disponível em: http://www.geledes.org.br/importancia-da-lei-10-639-para erradi-
cacao-racismo/#gs._w3W_dI. Publicado em 18/11/2014. Acesso em 02 de julho de
2018.

GUEDES, Elocir; NUNES, Pâmela e ANDRADE, Tatiane de. O uso da lei 10.639/03 em
sala de aula. Revista Latino- Americana de História. Vol.2, nº.6- Agosto de 2013 –
Edição Especial. PPGH-UNISINOS.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. e MEDEIROS NETA, Olívia Morais de. A
questão indígena no Rio Grande do Norte. Aula de nº 4 da disciplina História do Rio
Grande do Norte, preparada para o Curso Técnico de Nível Médio Subseqüente em
Guia de Turismo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do R. G. do
Norte – IFRN.

MONTEIRO, Kamyla. Emergência Étnica: Um olhar sobre os Caboclos do Assú/RN.


Trabalho apresentado no Simpósio Temático História indígena e do indigenismo no
Rio Grande do Norte: identidades e emergências étnicas em perspectivas históricas
do VII Encontro Estadual de História, promovido pela Associação Nacional de
História/Núcleo Rio Grande do Norte (ANPUH-RN), no dia 28 de julho de 2016, na
Universidade Potiguar, Natal/RN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
143

MONTEIRO, Kamyla. Lei 10.639 na intervenção dos estagiários do PIBID de História


da UFRN no ano de 2011. Artigo apresentado ao programa de Pós-Graduação Lato
Sensu da Faculdade Venda Nova do Imigrante/ES em 07 de Abril de 2017 para a
obtenção do Título de Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira sob a
orientação de Ana Paula Rodrigues. Registro de 11.04.17, nº 9945, livro 68, folha 146.

SPINELLI, Ana Cristina. (Coord). Marco Conceitual dos Povos Indígenas do RN. UGP.
Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Rio Grande do Norte – RN
Sustentável. Aprovação publicada no Diário Oficial do Estado através da Portaria
SEPLAN 011/2013 de 14 de fevereiro de 2013.

SILVA, Edson. O ensino de História Indígena: possibilidades, exigências e desafios com


base na Lei 11.645/2008. Revista História Hoje, v. 1, nº 2, p. 213-223 – 2012. Artigo
recebido em 15 de julho de 2012. Aprovado em 12 de setembro de 2012. Disponível em:
https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/download/48/38. Acessado em: 04.07.18.

Sites:
Diário Oficial da União (2008, Seção 01). Lei 11.645/08. Acesso em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/11645.htm. Despacho do
Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 11/03/2008- página 1 (publicação
Original).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
144

GRUPOS INDÍGENAS DO LITORAL NORTE DO RIO GRANDE:


RESQUÍCIOS ARQUEOLÓGICOS E CARTOGRÁFICOS
DO SÉCULO XVI

Pedro Pinheiro de Araújo Júnior61


Orientador: Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo62

INTRODUÇÃO
Esse trabalho investigou o processo de conquista do litoral norte da Capitania
do Rio Grande no século XVI. A partir da análise da Arqueologia Histórica,
compreendendo como foram estabelecidos as relações entre os grupos indígenas e os
europeus nesse período do contato. Investigando o cruzamento das informações
contidas nas fontes cartográficas, escritas, dos relatórios de prospecções dos sítios
arqueológicos, dos artigos produzidos e das fotografias dos artefatos arqueológicos.
As primeiras produções historiográficas sobre esse litoral, ocorreram nas
primeiras décadas do século XX, intituladas de historiografia clássica63. Teve como um
dos principais expoentes o historiador Francisco José da Rocha Pombo, na sua obra
História do Estado do Rio Grande do Norte (1922) traça todo o perfil da história do
Estado até o ano de 1920, destacando mais da metade de sua obra ao período colonial.
Porém, como era comum nas produções do período64, fez uma narrativa construída sob
a valorização do viés dos conquistadores portugueses, sendo esses, senhores do
território. Tanto ao descrever os primeiros contatos desses com os grupos indígenas
relatados nas viagens de Américo Vespúcio, pelo litoral, em 1501. Como também ao
descrever os embates entre portugueses e holandeses na Capitania do Rio Grande em
1633. Exemplo disso, o título do capítulo 11 é “O Domínio dos Intrusos”, tratando sob o
período da dominação holandesa na dita Capitania.

61 Mestrando do PPGH da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Brasil. E-mail:


pedrojuniorrn@yahoo.com.br.
62 Doutor em História, com área de concentração em História do Norte e Nordeste do Brasil, pela

Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Departamento de História do CERES e do PPGH da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Brasil. E-mail: helder@ufrn.edu.br.
63 O termo, historiografia clássica, foi utilizado pela historiadora Denise Mattos Monteiro ao fazer uma

análise sobre a produção historiografia norte-rio-grandense no I Encontro Regional da Anpuh-RN


(MONTEIRO, 2004, p.51).
64 Salientamos que as obras de Augusto Tavares de Lyra e José Francisco da Rocha Pombo foram

publicadas no contexto das comemorações do 1º centenário da Independência do Brasil em 1922,


incentivadas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (LYRA, 2012, p.11).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
145

Um ano antes, em 1921, Augusto Tavares de Lyra, constrói uma narrativa


semelhante em sua obra, já questionada no início desse texto. Valorizando os feitos dos
lusitanos e utilizando como principal fonte de sua narrativa, sobre os primórdios da
colonização, a obra História do Brasil de Frei Vicente de Salvador. Porém um diferencial
do autor em relação a Rocha Pombo, são as citações e as referências bibliográficas
utilizadas de forma mais constante ao longo de seu texto. Tornando a sua obra, a
principal fonte de pesquisa sobre a História do Rio Grande do Norte. No tocante aos
grupos indígenas o autor escreveu:

Quanto ao extermínio do gentio, recordamos apenas, sem subscrever


os conceitos dos que entenderem ter sido o seu sacrifício o
cumprimento de uma lei necessária [...] em virtude de guerras,
epidemias de varíola e crises climáticas periódicas, esse
desaparecimento foi quase completo, de tal modo que, no cruzamento
que ali se vem operando entre as três raças que entraram na nossa
formação histórica, a raça primitiva passou, desde então, a fornecer o
menor contingente, especialmente na zona agrícola, onde foram
assimilados, em maior número, os negros e mulatos (LYRA, 2012, p.
190).

Essa perspectiva fatalista de Augusto Tavares de Lyra sobre os grupos


indígenas que faziam parte da composição dos moradores65 da Capitania, coloca esses
sujeitos como extintos da participação histórica da formação do Rio Grande do Norte.
Principalmente ao utilizar o termo “raça primitiva”, utiliza o mesmo raciocínio de Rocha
Pombo. Essa historiografia do início do século XX, colocou os grupos indígenas que
habitavam a Capitania do Rio Grande como meros expectadores dessas narrativas.
Foram silenciados e esquecidos nessas obras. São citados apenas em pequenos relatos
de ataques aos portugueses, nos acordos de paz firmados no contexto da Fundação de
Natal, nos conflitos com os holandeses e ou na Guerra dos Bárbaros.
A partir da segunda metade do século XX, uma nova leva de pesquisas surgiram
sobre o período colonial. Luís da Câmara Cascudo encabeçou essa análise quando
lançou História do Rio Grande do Norte (1955). Porém, o escritor mantém o mesmo
discurso de Tavares de Lyra, sobre o desaparecimento dos grupos indígenas no
contexto do processo colonizador. Se Lyra informou que os indígenas foram

65Utilizamos o termo “morador” para todos os habitantes da Capitania, incluindo colonos e indígenas. De
acordo com o Dicionário do Padre Rafael Bluteau, morador seria aquele que “mora, habita” (BLUTEAU,
1789, p. 96). Nessa perspectiva morador seria todos aqueles que habitavam a Capitania do Rio Grande.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
146

“exterminados” ao longo desse processo, Cascudo estabeleceu o fim desses povos no


início do século XIX, ao afirmar: “o indígena entrou para morrer” (CASCUDO, 1984, p. 43).
Nas décadas de 1980 e 1990, o historiador Olavo de Medeiros Filho, membro
efetivo do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) publicou
obras que comtemplavam suas pesquisas sobre o período colonial na Capitania do Rio
Grande. Destaca-se como um dos primeiros a publicar efetivamente uma História
Indígena, na obra Índios do Açu e Seridó (1984). O autor amplificou o conhecimento
histórico sobre os povos indígenas que habitavam a Capitania, retirando esses
personagens dos silêncios das pesquisas realizadas século XX.
No final dos anos 1990, foram publicados trabalhos produzidos por professores
do departamento de História da UFRN, ligados aos estudos coloniais. A professora
Fátima Martins de Lopes lançou Índios, Colonos e Missionários na Colonização da
Capitania do Rio Grande do Norte (1998). Uma das primeiras pesquisas acadêmicas
sobre o processo de colonização e desaparecimento dos grupos indígenas desse
espaço colonial, um verdadeiro divisor de águas na historiografia colonial do Rio Grande
do Norte. Uma de suas contribuições está na mudança do conceito sobre a expansão
colonial, ao chamar esse processo de “povoamento colonial”. Concordando com esse
termo, percebe-se o reconhecimento da autora de que os povos indígenas também
povoavam o Rio Grande. Essa perspectiva muda todo um olhar sobre esses grupos, pois
na historiografia clássica, os termos povoamento, povoado ou habitante estavam
relegados apenas aos colonos portugueses.

FONTES E METODOLOGIA
Para dar respaldo a essa investigação foram utilizadas diversas tipologias de
fontes, sendo assim, utilizamos 4 fontes cartográficas do século XVI, como cartas, atlas
e livros produzidos em países europeus como: Portugal, França e Espanha. Os
documentos cartográficos são: Atlas de Nicolas Vallard (1547), Mapa de Diogo Homem
(1558), Mapa de Bartolomeu Velho (1564) e o Mapa de Jaqcques de Vaulx de Claye
(1579).
Outra tipologia de fonte analisada são quatro relatórios de diagnóstico e
prospecção arqueológica feitos no litoral norte, entre os anos de 2012 e 2015,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
147

realizados pela arqueologia de contrato66. Esses documentos são imprescindíveis para


a liberação do termo do impacto arqueológico nas regiões onde foram construídas
linhas de transmissão e usinas eólicas nesse espaço de estudo. Essas fontes trazem
amostragem do material arqueológico encontrado, identificando se são do período pré-
histórico ou do período do contato entre grupos indígenas e europeus. Esses relatórios
e o material arqueológico encontrado estão custodiados e disponíveis para consulta em
três instituições na cidade do Natal: MCC, IPHAN e o LARQ.
A primeira metodologia utilizada na pesquisa foi a da Arqueologia Histórica67.
Sob a ótica de Orser Júnior, refere-se as manifestações materiais do mundo, posterior
ao ano de 1500. Pode-se trabalhar nela temas como os artefatos traficados pelos
indígenas, as mudanças sociais acarretadas nessas sociedades graças à introdução de
objetos materiais europeus. Possuindo um leque de fontes de informação para auxiliar
na pesquisa. Dentre elas os artefatos e as estruturas, a arquitetura, os documentos
escritos, as informações orais e as informações pictográficas. Desse modo, no primeiro
momento, foi realizado a análise dos relatórios de prospecção dos sítios arqueológicos
do período do contato e artigos de outros autores sobre esses sítios. Em seguida foi
estabelecido um cruzamento de dados a partir de pesquisas em fontes cartográficas:
observando as iconografias e topônimos nos documentos. Além da investigação em
fontes escritas dos cronistas do século XVI. Assim conseguiu-se identificar e examinar
resquícios de aldeias indígenas no espaço em estudo.

A CARTOGRAFIA DA CONQUISTA
Entre os séculos XV e XVI dá-se uma verdadeira revolução na ciência e na arte
cartográfica. Na ciência, pela introdução das latitudes observadas, do meridiano
graduado nas cartas e do cálculo do valor do grau terrestre, o que permite uma
representação muito mais exata da superfície do planeta. Na arte, pela formação e

66 As empresas responsáveis por esses relatórios da arqueologia de contrato são a Arqueologia


Brasileira Consultoria LTDA e Alasca Arqueologia. Ambas tiveram endosso institucional e apoio do
IPHAN, MCC e do LARQ. A pesquisa preventiva ou de contrato é uma etapa obrigatória para o
licenciamento ambiental de um empreendimento público ou privado, pode ser desde a construção de
estradas ou de parques eólicos a hotéis e condomínios residenciais, comuns nas áreas litorâneas.
Disponível em: <https://www.opovo.com.br/jornal/cienciaesaude/2018/04/lei-ambiental-colabora-com-
arqueologia.html>. Acesso em: 6 jun. 2018.
67 Seria o estudo arqueológico dos aspectos materiais, em termos históricos, culturais e sociais

concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo que foi trazido da Europa em fins do século XV
e que continua em ação ainda hoje (ORSER JÚNIOR, 1992, p.23).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
148

generalização daquilo que Jaime Cortesão intitula de o estilo naturalista (CORTESÃO,


1965, p.86). Esse estilo foi utilizado nos primeiros mapas criados para descrever o
litoral do atual território brasileiro. Foram confeccionados a partir de relatos e estudos
de militares e cronistas ligados à administração da Coroa Portuguesa. Esses agentes
da Coroa deveriam retratar as terras recém-descobertas para que o governo central,
em Lisboa, fosse capaz de conhecer esse novo espaço e estabelecer novas políticas
administrativas, além de expandir seu território de além-mar.
A figura chave nesse processo de territorialização68, a partir da confecção de
mapas, pertencia à figura do cosmógrafo, que era responsável por montar os dados já
pesquisados, fazer apenas o risco, aquartelamento e preparação dos atlas manuscritos
em versões de luxo, muitas vezes acompanhados do texto explicativo redigido pelo
próprio encarregado do levantamento. Essas cartas, ainda pouco padronizadas,
“explicitavam o estilo pessoal de cada cosmógrafo, caracterizando-se pelo predomínio
dos topônimos e figurações livres que preenchiam as lacunas decorrentes do
desconhecimento efetivo da região representada” (BUENO, 2004, p.202).
Essas representações do espaço, realizadas a partir da confecção de mapas,
foram analisados sob uma das tríades69 do pensamento de Henri Lefebvre. No caso, “o
espaço concebido” seria aquele dos cientistas, dos planificadores, dos urbanistas, dos
tecnocratas, de certos artistas próximos da cientificidade, identificando o vivido e o
percebido ao concebido. Em outras palavras, é o espaço dominante numa sociedade. As
concepções do espaço tenderiam para um sistema de signos verbais, portanto,
elaborados intelectualmente (LEFEBVRE, 2013, p.100). Concordando com a ideia de
Henri Lefebvre sobre o espaço concebido, os mapas têm essa característica de
descrever um espaço que era ainda desconhecido do público europeu, ou seja, estava
no plano da abstração. Aproximando-se da ideia do “espaço concebido’, Tiago Kramer

68 A expansão territorial, no processo colonizador, é no sentido de que a apropriação de terra realizada e


os usos do solo introduzidos respondem às carências ou às potências que alimentaram a motivação para
mover-se. Para que ela ocorra, é necessária uma efetivação da ocupação do espaço, isto é, a colonização
é um assentamento com certa dose de fixação e perenidade. Percebe também que o colonizador é um
“agente externo”, que passa a atuar como elemento de estruturação interna daquele espaço. Assim, à
colônia corresponde a existência de uma metrópole, que atua como núcleo irradiador do dinamismo que
impulsiona a própria consolidação da colônia e o avanço do movimento colonizador (MORAES, 2008,
p.63-64).
69 A celebre tríade de Henri Lefebvre: “espaço concebido” (elaborado pelas autoridades e pelos homens

de ciência), “espaço percebido” (resultante dos percursos e deslocamentos cotidianos), “espaço vivido”
(imagens e símbolos espaciais veiculados pelos habitantes, mas também por artistas, viajantes etc.)
(FONSECA, 2011, p.74).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
149

nos relata que “a cartografia, por mais que não possa ser vista como um discurso
neutro e objetivo, é obra de ficção sobre um espaço imaginado que se torna real apenas
por meio de um discurso persuasivo convincente” (OLIVEIRA, 2014, p.165).

RESQUÍCIOS ARQUEOLÓGICOS DO LITORAL NORTE


Primordialmente foram investigados nos relatórios do Projeto Dunas70 quais
os sítios catalogados no litoral do Rio Grande do Norte eram do período do contato. Dos
43 sítios pesquisados, 5 eram do período do contato e estão no litoral dos municípios
de Rio do Fogo e Touros. Os sítios Rio do Fogo I, Rio do Fogo II, Zumbi71 e Enseada de
Pititinga estão localizados nas imediações entre as atuais praias de Zumbi e Pititinga,
nas proximidades da foz do rio Punaú. O sítio Lagoa do Sal, localiza-se entre as praias
de São José e Cajueiro no município de Touros. Todos os sítios estão registrados72 pelo
IPHAN e nos relatórios existem indícios que são do período do contato entre indígenas
e franceses. Os artefatos encontrados nestes sãos de cerâmica com pintura
Tupiguarani, em especial o sítio Enseada de Pititinga foi observado que continha
também “restos de faiança francesa e outros artefatos da tralha doméstica europeia”
(ALBUQUERQUE; SPENCER, 1995, p.6).
Os artefatos encontrados nos sítios estão custodiados na sede do IPHAN na
cidade do Natal-RN. Fizemos as análises e fotografamos e buscamos informações
sobre as características desses materiais. Já que nos relatórios não se encontravam as
imagens dos artefatos. Para entender se os mesmos, no caso o material cerâmico, era
do período do contato. Recorremos aos estudos de Gabriela Martin, onde a mesma nos
informa que a tradição Tupiguarani73 era recorrente entre os anos de 1500 a 1800, na
qual ela chama do período do contato europeu. Tinha como característica, apresentar

70 Sobre o projeto indicamos a leitura do artigo: ALBUQUERQUE, Paulo Tadeu de Souza; SPENCER,
Walner Barros. Projeto Arqueológico: O Homem das Dunas (RN). Clio Série Arqueológica, n° 10, 1994, p.
175-188.
71 No lugar conhecido como Zumbi[município de Rio do Fogo] localizaram-se nove manchas com cerâmica

Tupiguarani, formando ocas, distribuídas em forma de ferradura, modelo que se repete em mais quinze
sítios entre Muriú e Punaú, nos municípios de Ceará-Mirim e Maxaranguape (MARTIN, 1997, p.148).
72 Os sítios estão registrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos CNSA/SGPA. O sítio

apresenta os sítios arqueológicos brasileiros cadastrados no IPHAN, com todo o detalhamento técnico
e filiação cultural dos Sítios Arqueológicos. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/sgpa/?consulta=cnsa, acessado em: 14 jul.2018.
73 A grande extensão territorial que o Tupi alcançou é realmente impressionante e sua expansão coincide,

também em parte, com a difusão da cerâmica conhecida como da tradição Tupiguarani, facilmente
identificável, especialmente na sub-tradição policromia pintada, que se encontra, praticamente, de norte
a sul do Brasil (MARTIN, 1997, p.193).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
150

desenhos nas cores branca, vermelhas, preta e cinza. Os desenhos são complexos,
“geométricos” ou abstratos, com fino acabamento, aplicado no interior, no exterior ou
em ambos lados do vasilhame (MARTIN, 1997, p.195-197).
Como nos descreve André Prous, essas cerâmicas são numerosas e são grandes
vasilhas abertas, acreditando serem denominadas de “tenhãe”, termo usado em certos
vocabulários jesuíticos. Como se averigua na Figura 1, o vaso contém a boca e contorno
circular, elíptico ou quadrangular. “Possivelmente eram utilizadas na preparação da
farinha de mandioca, e todas estão pintadas internamente. As gravuras dos cronistas
dos séculos XVI-XVII mostram-nas recebendo os orgãos internos dos sacrificados
durante as festas canibais” (PROUS, 2009, p.12).

Figura 1: Cerâmica do sítio Zumbi. Detalhe, a direita, da imagem ampliada da pintura da tradição
Tupiguarani

Fonte: Artefato cerâmico do sítio Zumbi (Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos - CNSA: RN00050),
cx. 03, etiquetas 40 e 41. Custódia do acervo: IPHAN/RN, em Natal-RN. Foto: Pedro Pinheiro, 27 jun.
2018.

Na parte interna e inferior do artefato, apresenta-se a pintura na cor vermelha já


desaparecendo devido ao tempo. Na borda desta vasilha, na parte superior, ocorreu a
utilização da pintura da cor branca sobreposta com bastões desenhados numa cor
escura. Característica comum a todos os artefatos encontrados nos 5 sítios
arqueológicos. Esses desenhos são excepcionalmente característicos nas regiões
litorâneas entre os estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte74.
Para ampliar a análise sobre o encontro colonial, à luz da Arqueologia Histórica.
Averiguamos os relatos dos cronistas quinhentistas, pois são importantes na

74 Para André Prous esse desenho é tratado com linhas mais espessas e de maneira menos delicada que
os demais. Esse campo decorativo dividido em setores, cada qual com um preenchimento específico de
linhas paralelas entre si, retas ou quebradas ortogonalmente. Essa fórmula parece exclusivamente do
litoral mais setentrional – Rio Grande do Norte e Pernambuco (PROUS, 2005, p.22-28).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
151

compreensão de como a Coroa Portuguesa iniciou o processo colonizador, desta costa,


em direção às regiões limítrofes que eram território da Coroa Espanhola pelo Tratado
de Tordesilhas. Como também podemos desprender como ocorreu esse contato entre
os agentes da Coroa e os indígenas. A administração lusa investigava dessa maneira,
através de seus interlocutores, os pormenores do espaço recém-conquistado, sua
fauna, flora, solos e descrevendo os grupos indígenas através da ótica dos europeus do
século XVI. A Coroa Portuguesa, iniciou sua política de expansão colonial para reprimir
da posse de seus domínios, piratas e outros grupos estrangeiros que realizavam
extração de pau-brasil (MONTEIRO, 2002, p.29). Sendo detentora do território do Brasil,
tentou a princípio colonizar a região com o sistema das Capitanias Hereditárias em
1534, consolidando seu poderio posteriormente na região com o estabelecimento do
Governo-Geral, a partir da fundação da cidade de Salvador em 154975.

SOUASOUTIN: A COSTA DO RIO GRANDE NA CARTOGRAFIA FRANCESA


Rocha Pombo revelou que todo o litoral no norte da capitania ficou desde 1538
até fins do século, completamente abandonado pelos portugueses (POMBO,1922,
p.27). Mas como são verificados na historiografia, cartografia e fontes escritas esse
espaço era de contato entre franceses e Potiguara desde o início do século XVI. Não
respeitando o Tratado de Tordesilhas de 1494, a Coroa Francesa incumbiu de corsários
e agentes a explorar a costa recém-descoberta do atual Brasil e iniciaram o tráfico de
pau-brasil com os indígenas desse litoral76. Segundo Tristão de Alencar Araripe, a
primeira viagem feita por franceses a costa de Vera Cruz, foi comandada por um oficial
chamado Binot Paumier de Gonneville, que levou a bordo do navio Espoir, dois pilotos
portugueses, Sebastião de Mouta e Diogo do Couto, contratados em Lisboa. A viagem
saiu do porto francês de Honfleur em 24 de junho de 1503 e chegou no litoral do atual
Estado de Santa Catarina em 5 de janeiro de 1504. Depois seguiu por 90 dias a percorrer

75 As 15 capitanias, que foram divididas por 12 donatários, tinha no extremo oeste a linha fictícia do
Tratado de Tordesilhas, através do qual Portugal e Espanha haviam dividido os territórios da América.
Foi criado a Capitania do Rio Grande, tinha como seu limite sul a Baía da Traição, que ainda hoje conserva
seu nome, atual estado da Paraíba, e como seu limite norte a Angra dos Negros, no atual estado do Ceará.
Somente em 1549 foi estabelecido em Salvador o governo da Coroa. Entretanto, na metade do século
seguinte, o Estado do Brasil permaneceria periférico às atenções reais (MONTEIRO, 2002, p.31; RUSSEL-
WOOD, 1998, p.1).
76 Nas desavenças políticas pelo controle das terras no Atlântico Sul, perpetradas pelas Coroas da

França e de Portugal. O rei de Portugal D. João III, recebeu informações que em 11 de fevereiro de 1526,
dez navios estavam sendo armados em portos franceses, com destino ao Brasil. Assim, D. João III enviou
novas expedições para evitar o domínio dos franceses na colônia lusa (BAIÃO; DIAS, 1924, p.70).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
152

a costa em direção ao atual Nordeste do Brasil (BAIÃO; DIAS, 1924, p.62; ARARIPE,
1886, p.315-331).
Em 1535 os donatários da Capitania do Rio Grande, Ayres da Cunha e João de
Barros, organizaram uma expedição saindo de Lisboa em novembro para conquistar o
território da Capitania e fundar uma colônia. Desembarcaram no litoral norte, na foz do
rio Ceará-Mirim (Baquipe), ao sul do Cabo de São Roque. Mas foram guerreados pelos
Potiguara e traficantes franceses e desistiram da posse da terra, migrando com as suas
frotas em direção ao Maranhão. Em 1555, ocorreu uma segunda tentativa, encabeçada
pelos filhos de João de Barros, mas novamente foram derrotados pelos Potiguara. O
Rio Grande só seria conquistado pelos lusos nos últimos anos do século XVI Assim, até
os últimos anos do século XVI, a Capitania do Rio Grande não foi apropriada pelos seus
donatários. Era um espaço concebido pelos portugueses através da cartografia
quinhentista, mas não territorializado pelos mesmos. (CASCUCO,1984, p16-19; LYRA,
2012, p.21; LOPES, 1998, p.66-68; MACEDO, 2007, p.64).
Segundo Fátima Martins Lopes, os franceses, após a expulsão definitiva
perpetrada pelos militares portugueses, ocorrida na Baía de Guanabara em 1560.
Migraram para outros espaços longe das áreas ocupadas pelos lusos77 no Estado do
Brasil. Buscaram assim novas bases de apoio para a suas embarcações para supri-las
de pau-brasil. Assim ocuparam com novas feitorias as regiões costeiras acima da
Capitania de Itamaracá (LOPES, 1998, p.70). No Caso, as Capitanias do Rio Grande e
Paraíba.
Esse encontro colonial, entre franceses e Potiguara é verificado em dois mapas
da cartografia francesa do quinhentos. Essas cartas são chamadas por Jaime Cortesão
de “escola luso-normanda de Dieppe”. Para o autor, essas cartas limitavam quase
sempre a copiar as cartas portuguesas, utilizando-se das mesmas legendas na língua
original. Se observa uma nomenclatura de origem portuguesa e espanhola nos
topônimos. Apresentam-se as efígies de soberanos, palácios, animais e legendas
descritivas (CORTESÃO, 1965, p. 91-101).

77 O processo de expansão dos domínios portugueses rumo ao norte de Salvador, foi realizado após a
luta com os franceses na Guanabara. O Governador-Geral, Mem de Sá, dirigiu sua atenção para o litoral
norte da Costa do Pau-brasil[ Capitanias do Rio Grande, Itamaracá e Pernambuco]. Em 1562, em
represália à morte dos naufrágios seis anos antes, declarou “guerra justa” contra os caetés que
ocupavam o litoral, do norte da Bahia até Pernambuco (OLIVEIRA, 2015, p.197).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
153

O Atlas de Nicolas Vallard de 154778 constitui de 15 cartas náuticas, ricamente


ilustradas demonstrando toda arte da escola de Dieppe79 no Quinhentos. No todo, o
projeto do cartógrafo francês mostra os limites ainda indefinidos do continente
americano e das regiões da Ásia e Oceania. Utilizando-se da arte de representar com
iconografias o interior desconhecido dos continentes, mostrando os mesmos como se
fossem grandes ilhas projetadas em direção ao mar. Cada continente mostra um grupo
de indivíduos diferenciados na cor, vestimenta e cultura. Provavelmente seria um olhar
etnográfico do europeu do século XVI sobre essas novas terras e populações que
seriam conquistadas. A carta é uma das primeiras representações dos indígenas na
América pela ótica dos cartógrafos de Dieppe. O topônimos, foram escritos em francês,
português e galego português80. Indicando que foram copiados de outros mapas
produzidos em Portugal. O documento é contemporâneo das tentativas81 da Coroa
Francesa de conquistar as terras americanas divididas entre as Coroas Ibéricas.
Na Figura 2, apresentam-se topônimos referentes à costa das Capitanias da
Paraíba e Rio Grande, local de exploração e escambo de pau-brasil entre franceses e
Potiguara. Com os termos “S. Domingo”, “Potiiou”, “Pracel”, “Baía da Tartarn” e “Rio de
Sa Miguel”82. A baía de “S. Domingo” refere-se ao atual rio Paraíba, na época era contato
constante entre Potiguara e franceses. A região do rio Paraíba tinha os melhores pau-
brasil da costa. Os franceses cortejavam os Potiguara com botes repletos de
mercadorias. A aliança com os franceses tornou esses indígenas inimigos dos
portugueses, que ficaram frustrados diante de seu número e coesão. Eles não eram tão

78 O Mapa está custodiado e disponível no catálogo da Huntington Library, Califórnia, nos Estados Unidos.

Disponível em:
http://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+29&Description=&page=1,
acessado em: 16 jul.2018.
79 A escola de Dieppe foi uma série de mapas-múndi produzidos em Dieppe na França entre os anos de

1540 e 1560. Eram patrocinados pelos reis da França e da Inglaterra, e tiveram como principais artífices
Pierre Desceliers, Jean Rotz, Guillaume Le Testu, Guillaume Brouscon e Nicolas Desliens. Disponível em:
http://www.myoldmaps.com/renaissance-maps-1490-1800/3812-vallard.pdf, acessado em: 16 jul.2018.
80 Mais informações sobre o Atlas de Nicolas Vallard, ver os estudos em cartografia do historiador

português Luís Filipe F.R. Thomaz. O mesmo defende que os navegadores portugueses foram os
primeiros a “descobrirem” a Austrália a partir da análise das Cartas de Vallard. Disponível em:
<http://cdn.impresa.pt/fce/0ea/10836150/LuisFernandesThomaz.pdf>. Acesso em: 16 jul.2018; Ver o
artigo: THOMAZ, Filipe F.R. D. Manuel, a Índia e o Brasil. Revista de História, n. 161, 2009, p.13-57.
81 Sobre a colonização francesa no Brasil no século XVI, ler o artigo: FRANÇA, Jean Marce Carvalho.

Dossiê: França Antártica. Revista de História, v.27. n.1, 2009, p. 14-27.


82 O termo “Potiiou” é sempre apresentado nos mapas franceses e corresponde ao atual rio Potengi. O

“Pracel” seria o litoral entre o rio Guamaré e a Ponta dos Três Irmãos. Os termos “Baía de Tartarn’ e “Rio
de Sa Miguel”, correspondem respectivamente às fozes dos rios Assu e Apodi-Mossoró (BRANCO, 1950;
MEDEIROS FILHO, 1996).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
154

fragmentados como as demais nações indígenas e não podiam ser provocados para
entrar em guerras internas (HEMMING, 2007, p.128-129).

Figura 2: Detalhe do Atlas de Nicolas Vallard (1547): Costa das Capitanias da Paraíba e Rio Grande.

Fonte: BIBLIOTECA DE HUNTINGTON. Portolan Atlas, anonymous Dieppe, 1547. World atlas containing
15 nautical charts, tables of declinations, etc. 1547. Catálogo de imagens Huntington. Códice: HM29.

Toda essa costa do Rio Grande é encimada pela iconografia dos baixios de São
Roque, em formato de um triângulo pontilhado, tal como ocorre nos mapas
portugueses. Como também, são representadas as ilhas próximas a esse litoral, como
a ilha de “Fernão de Loronha” e o Atol das Rocas. Como não existia um reconhecimento
da Coroa Francesa pela repartição do continente americano entre Portugal e Espanha,
praticamente assumiam o domínio da região (LOPES, 1998, p.68), não são visualizadas
a localidade de Olinda83, principal núcleo português na Capitania de Pernambuco, e nem
as divisões e referências toponímicas das Capitanias Hereditárias estabelecidas pela
Coroa Portuguesa em 1534.
Observa-se ainda na Figura 2, que os indígenas estão reunidos em torno de
fogueiras cozinhando84 seus alimentos em pequenas vasilhas. A imagem também é
mais um testemunho da exploração de pau-brasil – se percebe os troncos de árvores

83 Segundo, José Luiz Mota Menezes, não se sabe o dia da fundação de Olinda. O povoado em 1537, já
estava elevado à categoria de vila. Nesse mesmo ano, o Donatário da Capitania de Pernambuco, Duarte
Coelho enviou ao rei de Portugal, D. João III, o Foral, carta de doação que descrevia todos os lugares e
benfeitorias existentes na Vila de Olinda. Nas praias, a vila foi fortificada para a defesa e do alto das
colinas se expandiu em direção ao mar, ao porto e ao interior onde ficavam os engenhos de açúcar.
Disponível em: <https://www.olinda.pe.gov.br/a-cidade/historia/>. Acesso em: 16 jul. 2018.
84 No Mapa de Jacques de Vaulx de Claye de 1579, se descreve o cotidiano dos indígenas ao redor de uma

fogueira até a duas horas da manhã (MEDEIROS FILHO, 1996, p.34).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
155

cortados – e os usos de utensílios europeus por parte dos indígenas para auxiliar os
corsários nas atividades extrativistas85.

Figura 3: Detalhe do Mapa de Jacques de Vaulx de Claye (1579): Costas das Capitanias da Paraíba e Rio
Grande

Fonte: Carte de la côte du Brésil de Vau de Claye m'a faict en Dieppe l'an 1579. Acervo da Biblioteca
Nacional da França.

Três décadas após o trabalho de Nicolas Vallard, foi produzido um Mapa em


Dieppe com um desenho iconográfico um pouco rudimentar que o de Vallard, mas com
indicação da penetração de franceses nos sertões. Com uma riqueza de detalhes, com
legendas explicativas demonstrando um conhecimento sobre o espaço, que naquele
momento, era desconhecido pelos portugueses. O Mapa de Jacques de Vaulx de Claye
de 1579 é um retrato da consolidação das relações comerciais86 entre os grupos
indígenas Potiguara e de corsários franceses.
Indicando possíveis aldeias e feitoras pela costa do atual Nordeste do Brasil. A
produção do mapa é contemporânea aos embates87 entre franceses e seus aliados
Potiguara, e portugueses nas imediações entre as Capitanias da Paraíba e Pernambuco.

85 Os utensílios visualizados na imagem são foices, machadinhas e enxadas. Percebe-se que existe um
certo cesto cheio de ferramentas para o auxílio na extração de pau-brasil.
86 Na análise de Helder Macedo, os corsários franceses mantinham uma política de alianças com os

Potiguara, mediante escambo. Mercadorias trazidas da Europa eram constantemente trocadas por pau-
brasil, essência vegetais, plantas medicinais, algodão, minérios, pedra preciosas, penas de pássaro,
âmbar, peles de onça e animais como saguis, macacos e papagaios (MACEDO, 2007, p. 64).
87 Nas disputas para a conquistar das capitanias ao norte de Pernambuco, uma expedição patrocinada

pela Coroa Portuguesa, destruiu embarcações francesas no rio Paraíba no início da década de 1580. Em
maio de 1584, foi construído um forte chamado São Filipe, a alguns quilômetros rio acima. O novo forte
foi guarnecido com 110 eficientes arcabuzeiros e 50 mamelucos brasileiros, posteriormente foram
emboscados pelos Potiguara (HEMMING, 2007, p.248-249).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
156

Em vista disso, como indica a Figura 3 , os franceses arregimentariam 10.000


indígenas88 para atacar as capitanias ao sul do Rio Grande. Destaca-se o meio-círculo
feito em compasso pelo cartógrafo, indicando que várias aldeias89 Potiguara e Tarairiú
estavam sob aliança da Coroa Francesa. O círculo estabelecido no Mapa, tem como
limites costeiros ao sul a partir da Baía de São Domingo (rio Paraíba), seguindo a
noroeste para o atual rio Acaraú no Ceará. Portanto, é uma territorialização semelhante
ao estabelecido por Gabriel Soares de Sousa em 1587, em relação aos domínios dos
Potiguara.

Figura 4: Detalhe do Mapa de Jacques de Vaulx de Claye (1579): Aldeia Potiguara Souasoutin.

Fonte: Carte de la côte du Brésil de Vau de Claye m'a faict en Dieppe l'an 1579. Acervo da Biblioteca
Nacional da França.

Alguns nomes dos lugares, permaneceram como no mapa anterior de Nicolas


Vallard. Na Figura 4, verifica-se por exemplo “Potiiou”90 com riqueza em detalhes dos
acidentes geográficos. Jacques de Vaulx apropriou-se e intitulou os topônimos da

88 Olavo de Medeiros Filho fez a tradução das informações do Mapa que nos permitiu entender esse
processo de conquista: “Neste enclave deste meio-círculo do compasso para fornecer dez mil selvagens
para desferir a guerra com os portugueses e são mais ousados que aqueles da jusante do rio”
(MEDEIROS FILHO, 1996, p.33). Se levarmos em conta que no ano de 1500, moravam por essas costas
100.000 Potiguara, segundo estimativas de Frans Moonen e Luciano Mariz Maia, essa quantidade de
guerreiros possa ser plausível (MOONEN; MAIA, 1992, p.93).
89 No Mapa são visualizadas 5 aldeias dentro do território aliado dos franceses. Cada uma delas

forneceria certa quantidade de guerreiros para a guerra contra os portugueses. A aldeia “Random”
forneceria 600 índios, as aldeias “Tarara Ouasou” e “Ouratiaune” teriam 1800 guerreiros (MEDEIROS
FILHO, 1996; LOPES, 1998, p.70).
90 Segundo Olavo de Medeiros Filho seria o equivalente a “Potiú”, ou seja, ao atual Rio Potengi. Logo

após a sua barra, figura uma ilhota, hoje chamada Ilha do Cajueiro, formada pelos esteiros do Jaguaribe
e Manimbu[ nas imediações da Zona Norte de Natal]. Em direção ao interior, no Potengi vê-se o topônimo
“Ourapary”, provavelmente uma aldeia chefiada por um maioral do mesmo nome (MEDEIROS FILHO,
1996, p.33).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
157

cartografia portuguesa, como “Saint Roc” - São Roque - dando novos sentidos na língua
francesa. Pode-se inferir que era uma mudança no estilo da escrita cartográfica de
Dieppe. O tráfico de pau-brasil era inexistente a oeste do rio Ouyatacas [atual rio de
Touros], segundo o Mapa, “ não existe nada de brasil, mas há peles de papagaios e
outros bichos”. Talvez por ser uma região de transição de Mata Atlântica, para um misto
de cerrado e dunas típicas da paisagem do litoral norte (ARAÚJO JÚNIOR, 2013).
Novamente vemos a iconografia dos baixios de São Roque e a indicação que era uma
região “com água baixa que se estendem por 21 léguas”, sendo perigosas para a
navegação costeira. Nesses baixios e nas praias adjacentes encontravam muito
âmbar91 cinza para comercializar (BRANCO, 1950; MEDEIROS FILHO, 1996; LOPES,
1998; MACEDO, 2007).
O litoral norte era intitulado de “Coste de Merengastes”92, ver Figura 4. Para
Olavo de Medeiros Filho seria uma tradução literal de “Costa de Maxaranguape”,
referência ao rio ao sul do Cabo de São Roque. Nessa faixa de terra estaria uma aldeia
Potiguara intitulada de “Souasoutin”93, que para o autor, pelo idioma tupi, pode-se
interpretar de “Çuaçu Tin, isto é, Focinho de Veado, provavelmente o nome de um chefe
indígena aliado dos franceses” neste litoral (MEDEIROS FILHO, 1996, p.33). Reforçando
assim, que existiam alianças entre franceses e Potiguara no litoral norte da Capitania
do Rio Grande. As aldeias foram desenhadas de formas quadrangular, com um padrão94
semelhante em todo o Mapa. Nelas mostram a organização social desses grupos, como
também indicam uma relação mais amistosas com os corsários franceses.
Buscando alinhar-se com a Arqueologia Histórica para entender o processo de
ocupação dos espaços coloniais no litoral norte da Capitania do Rio Grande, utilizamos
três vertentes para cruzar dados informativos: as imagens e relatórios arqueológicos,
a cartografia e as fontes escritas quinhentistas. Assim conseguiu-se montar no Mapa 1
indícios do encontro colonial entre grupos indígenas Potiguara e piratas franceses.
Como foi observado, a região litorânea em estudo era identificada pelos franceses de

91Betume amarelo ou pálido que se encontra nas praias o mar (BLUTEAU, 1789, p.73).
92 Região litorânea compreendida entre Touros e o Cabo de São Roque (MEDEIROS FILHO, 1996, p.33)
93 Para Castelo Branco, a aldeia estava na costa oeste do Cabo de São Roque a 5° 30’ aproximadamente

(BRANCO, 1950, p.44).


94 A aldeia era a principal unidade da organização social dos indígenas. A localização era escolhida num

lugar alto, ventilado, próximo a água e adequado ás plantações que se faziam ao seu redor. Suas
habitações, feitas com toras de madeira, cobertura de folhas e não tinham divisões internas. Poderiam
ter de duas a três entradas, eram arrumadas formando um terreiro quadrado que ficava vazio. Esse
espaço comportava mais de duas dezenas de indivíduos aparentados entre si (LOPES, 1998, p.50).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
158

“Costa de Merengastes”. Local segundo Gabriel Soares de Sousa, como ancoradouro


de “naus francesas da Enseada de Itapitanga”. Os sítios arqueológicos95 do contato
foram avaliados com supostos indícios de feitorias ou aldeias que mantinham um
constante escambo entre esses grupos europeus. Lembramos que os dados
arqueológicos observados na Figura 1, indiciam que esse território era formado por
grupos ceramista Tupiguarani, contemporâneos do período do contato colonial, entre
1500 e 1800. Assim, pelas fontes escritas e pela historiografia analisada esses
indígenas eram Potiguara.
Os quatro sítios estão nas imediações do rio Punaú, em locais de altitude um
pouco elevada, em solo dunar96 e pouco afastados da praia, com distâncias que variam
entre 1,4 a 0,9 quilômetros do Oceano Atlântico. Possivelmente, devido aos efeitos dos
ventos, a configuração geográfica das dunas nas imediações da Enseada de Pititinga
eram outras nesse período. As características geográficas desses sítios, corroboram
com as descrições de aldeias indígenas Potiguara, feitas por Fátima Martins Lopes. Ao
descrever que essas ficavam localizadas em um “lugar alto, ventilado, próximo a água
e adequado às plantações que se faziam ao seu redor” (LOPES, 1998, p.50). Sendo assim,
essa enseada foi um local de intensa atividade de oficinas ceramistas, em vista da
quantidade de artefatos cerâmicos encontrados nos sítios.
O escambo entre os dois grupos, Potiguara e franceses é evidenciado na
iconografia da cartografia francesa, como se pode perceber nas Figura 2, Figura 3 e
Figura 4. Em vista disso, o material arqueológico encontrado nos 4 sítios ao redor do
rio Punaú continham: artefatos de faiança fina, faiança francesa, miçangas venezianas
e outros artefatos da tralha doméstica europeia do quinhentos, evidencia uma troca
comercial entre os indígenas e europeus nesse espaço. Lembremos que esses dados
podem referendar essa região da enseada, como um ancoradouro de navios franceses,
devido ser uma região de “aguada”97. No Dicionário de Padre Bluteau, esse termo

95 Os sítios avaliados nesse Mapa 1, são os localizados nas imediações da Enseada de Pititinga: Sítio
Zumbi, Enseada de Pititinga, Rio do Fogo I e Rio do Fogo II. O sítio Lagoa do Sal não foi utilizado devido a
distância do mesmo em reação aos outros.
96 Nas referências dos relatórios de prospecção são descritos que esses sítios estão no “maior campo

dunar do Rio Grande do Norte” (ALBUQUERQUE; SPENCER, 1995).


97 Nos mapas da cartografia portuguesa do início do século XVII, apresentam-se em sua toponímia da

costa norte do Rio Grande, o termo “Rio da Aguada” ou “Rio da Agoadoce”. Ver o Mapa de Albernaz, João
Teixeira: [Atlas] DESCRIPÇÃO DE TODO O MARITIMO DA TERRA DE S. CRVS, CHAMADO
VULGARMENTE, O BRAZIL, [manuscrito colorido], 1640. Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do
Tombo, inv. nº CF 162, fl. 4, [Cota: Coleção Cartográfica, nº 162. TT-CRT-162], Lisboa, Portugal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
159

significa: “provisão de água para o navio; lugar que faz essa provisão” (BLUTEAU,1789,
p.44).

Mapa 1: Costes des Merengastes: do rio de Ouyataca à Sainct Roc.

Mapa elaborado pelo autor, com auxílio do Google Earth., A partir dos dados cartográficos do Mapa de
Jacques de Vaulx de Claye de 1579 e dos escritos de José Moreira Brandão Castelo Branco (1950), Olavo
de Medeiros Filho (1996), Fátima Martins Lopes (1998) e Helder Alexandre Medeiros de Macedo (2007).
Além dos relatórios dos sítios arqueológicos identificados pelo Projeto Dunas e organizados em quadros,
com as respectivas coordenadas geográficas, na Tese de Doutorado de Iago Henrique Medeiros (2016).

Como se observa no Mapa 1 as lagoas ao fundo e os dois rios perenes, o Punaú


e “Ouytacas” poderiam fornecer água para as embarcações estacionadas na enseada,
fato que ocorre desde a expedição de 1501 de Américo Vespúcio. Supõe-se que a costa
de São Roque era local da aldeia Souasoutin, está poderia fornecer, devido às alianças,
mão de obra para os traficantes franceses de pau-brasil. Estes realizavam uma rota
marítima, trazendo em chalupas, carregamento de pau-brasil das imediações do rio
Baquipe [Ceará-Mirim]. Subiam, rumo ao norte, com essas pequenas embarcações além
do Cabo de São Roque, para carregamento final do produto, nas grandes naus
ancoradas nesta costa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No final da década de 1590, os portugueses conquistam as imediações da foz do
rio Potengi, 10 léguas ao sul do Cabo de São Roque. Intensificaram a colonização na
Capitania do Rio Grande a partir da fundação da Fortaleza dos Reis Magos em 1598 e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
160

da Cidade do Natal em 25 de dezembro de 1599(POMBO,1922, p.42). Expulsam os


últimos redutos franceses na costa e consequentemente as descrições sobre esses
indígenas no litoral norte tornaram-se raras ou invisibilidades pelos cronistas. No
próprio documento de Soares de Sousa de 1587, já indiciava esse desaparecimento
indígena nas imediações da costa setentrional: “ a costa é limpa e a terra escalvada, de
pouco arvoredo e sem gentio” e da costa de São Roque, “a terra por aqui ao longo do
mar está despovoada do gentio por ser esterio e fraca” (SOUSA, 1851[1587], p.25). O
relato é um testemunho desse “desaparecimento” dos Potiguara no litoral norte,
contribuindo para esses dados, a expansão do território português sobre espaços
pertencentes aos Potiguara. Estimativas indicam que em 1570, a população indígena
era na ordem de 800 mil indivíduos, estava reduzida a um terço de seu volume
demográfico no início do século XVI (OLIVEIRA, 2015, p.176-177).
Por fim, o encontro colonial desencadeou a dizimação por doenças, guerras e
escravização desses povos do litoral. As populações remanescentes buscaram abrigos
em outras paragens, longe do contato dos militares europeus no litoral. O genocídio
desses povos se perpetuou no decorrer dessa expansão territorial perpetrada pela
Coroa Portuguesa. Ao mesmo tempo, a cartografia portuguesa do XVII, mudou a
concepção das confecções desses mapas, pois os sertões estavam sendo desbravados
por pioneiros em marchas pelas ribeiras dos rios e nos antigos caminhos dos indígenas
para o sertão. Esses novos elementos observados por esses agentes externos, foram
inseridos nessa cartografia lusa, não mais preocupada em elaborar novos atlas
buscando inserir nestes, os limites da terra desconhecidos, e sim, aprimorar o
conhecimento sobre interior da América Portuguesa. Essa produção cartográfica teve
como principal expoente, as produções da família de cosmógrafos Teixeira Albernaz,
que elaboraram entre 1574 e 1666, nove documentos entre livros, atlas e mapas sobre
o Estado do Brasil.

FONTES
Fontes Cartográficas
BIBLIOTECA DE HUNTINGTON. Portolan Atlas, anonymous
Dieppe, 1547. World atlas containing 15 nautical charts, tables of declinations, etc.
1547. Catálogo de imagens Huntington. Códice: HM29. Disponível em:
http://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+29&Description
=&page=1, acesso em: 21 jul.2018

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
161

MAPAS HISTÓRICOS BRASILEIROS. Mapa de Diogo Homem, 1558.


Enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, São Paulo: ed. Abril Cultural,
1969. Reprodução do fac-simile da mapoteca do Ministério das Relações Exteriores.
Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/mapa20g.htm, acesso em: 21
jul.2018.

MAPAS HISTÓRICOS BRASILEIROS. Mapa-múndi de Bartolomeu Velho, 1561.


Enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, São Paulo: ed. Abril Cultural,
1969. Reprodução do fac-simile da mapoteca do Ministério das Relações Exteriores.
Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/mapa57.htm, acesso em: 21
jul.2018.

BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA. [Carte de la côte du Brésil] Jacques de Vau de


Claye m'a faict en Dieppe l'an 1579. 1579. Departamento de Mapas e Planos, Códice:
GED-13871 (RES).
Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b550026193/f1.item, acesso em:
21 jul.2018.

Fontes Impressas
IPHAN/APEC. Relatório da primeira etapa do Projeto Dunas. Natal, jan. 1995.

MEDEIROS, Iago Henrique Albuquerque de. Os cocheiros em dunas do litoral


setentrional norte-rio-grandense: ocupação humana, cultura material e processos
de formação do registro arqueológico. 284f. Tese. (Doutorado em Arqueologia).
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Arqueologia
do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2016.

Fontes Imagéticas
IPHAN. Material arqueológico dos sítios: Zumbi; Enseada de Pititinga. Custodiado
pelo IPHAN – RN. Cxs. 01 e 03. (Fotos tiradas pelo autor em: 27 jun.2018).

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Paulo Tadeu de Souza; SPENCER, Walner Barros. Relatório Projeto
Dunas. Natal: IPHAN/APEC, jan.1995.

AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15,
p.145-151, 1995.

ARARIPE, Tristão de Alencar. Primeiro navio francês no Brasil. Revista do IHGB. Rio de
Janeiro, Tomo XLIX, v.2.1886, p.315-331.

ARAÚJO JÚNIOR, Pedro Pinheiro de. Rio do Fogo (RN) – História e Patrimônio. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27, 2013, Natal. Anais eletrônicos do XXVII
Simpósio Nacional de História - Trabalhos Inovadores dos Professores da Rede
Pública de Ensino. Natal, ANPUH, 2013.

BAIÃO, Antônio; DIAS, Carlos Malheiro. A expedição de Cristóvam Jacques. In: História
da Colonização Portuguesa no Brasil. DIAS, Carlos Malheiros (Dir.),v.3, 1924, p.59-91.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
162

BLUTEAU, Rafael. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa: Officina de Simão


Thaddeo Ferreira, 1789.

BRANCO, José Moreira Brandão Castelo. O Rio Grande do Norte na Cartografia do


século XVI. Revista do IHGRN. Natal, v. 45-47, 1950, p.21-50.

__________. O Rio Grande do Norte na Cartografia do século XVII. Revista do


IHGRN. Natal, v. 48-49, 1952, p.27-68.

BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Decifrando mapas: sobre o conceito de


“território” e suas vinculações com a cartografia. Anais do Museu Paulista, São Paulo,
v. 12, n. 12, p.193-234, 2004.

CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia,
1925.

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Fundação
José Augusto, 1984.

__________. Nomes da Terra: Geografia, História e Toponímia do Rio Grande do


Norte. Natal: Sebo Vermelho, 2002.

CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos Velhos Mapas. Tomo I. Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1965.

__________. História do Brasil nos Velhos Mapas. Tomo II. Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1965.

__________. Os Descobrimentos Portugueses. 3. ed. Lisboa: Livros Horizontes,


1980.

GIRARDI, Gisele. Leitura de mitos em mapas: Um caminho para repensar as relações


entre geografia e cartografia. Geografares, Vitória, v. 1, n. 1, p.41-50, jun.2000.

HEMMING, John. Ouro Vermelho: A Conquista dos Índios Brasileiros. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

LEFEBVRE, Henri. La producción del espacio. Madrid: Capitán Swing, 2013.

LOPES, Fátima Martins. História Indígena. In: Índios e negros na história do Brasil
[recurso eletrônico]: invisibilidades e emergências, do século XVI ao XXI. PEREIRA,
Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues [et al.] (Orgs.). Natal: EDUFRN, 2016.

_________. Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio


Grande do Norte. Natal: IHGRN, 1998. (Prêmio Janduí/Potiguaçu).

LYRA, Augusto Tavares. História do Rio Grande do Norte. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2012.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
163

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, Territórios e Populações


Indígenas no Sertão da Capitania do Rio Grande. 309f. Dissertação. (Mestrado em
Ciência Sociais). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em História, Natal, 2007.

MARTIN, Gabriela. Pré-história do Nordeste do Brasil. 2. ed. Recife: Editora


Universitária da UFPE, 1997.

MEDEIROS, Iago Henrique Albuquerque de. Os cocheiros em dunas do litoral


setentrional norte-rio-grandense: ocupação humana, cultura material e processos de
formação do registro arqueológico. 284f. Tese. (Doutorado em Arqueologia).
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Arqueologia
do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2016.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Dept.
Estadual de Imprensa, 1997.

__________. O Rio Grande do Norte no Mapa de Jacques de Vaulx, de Claye (1579).


Caderno de História, v.3, n.1, jan-jun. 1996, p.30-34.

MOONEN, Frans; MAIA, Luciano Mariz. Etnohistória dos índios Potiguara. João
Pessoa: PR/PB, 1992.

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. Natal:


EDUFRN-Editora da UFRN, 2002.

__________. Balanço da Historiografia Norte-rio-grandense. In: I Encontro


Regional da Anpuh-RN: o ofício do historiador, 23 a 29 de maio de 2004, Natal-RN,
Anais, EDUFRN, 2006, p.51-54.

MORAES, Antônio Carlos Robert de. Formação colonial e conquista de espaços. In:
_____. Território e história no Brasil. 3.ed. São Paulo: Annablume, 2008. p. 61-74.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Os indígenas na fundação da colônia: uma abordagem


crítica. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial 1, 1443-
1580. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 167-228.

OLIVEIRA, Tiago Kramer de. Desconstruindo mapas, revelando espacializações:


reflexões sobre o uso da cartografia em estudos sobre o Brasil colonial. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 68, p.151-174, 2014.

ORSER JÚNIOR, Charles E. Introdução à Arqueologia Histórica. Belo Horizonte:


Oficina de Livros, 1992.

PATRIOTA, Nilson. Touros: Uma Cidade do Brasil. Natal: Departamento Estadual de


Imprensa, 2000.

POMBO, José Francisco da Rocha. História do Estado do Rio Grande do Norte. Rio de
Janeiro: Annuario do Brasil, 1922.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
164

PROUS, André. A pintura em cerâmica Tupiguarani. Revista Ciência Hoje. v.36. nº 213,
p.22-28, mar.2005

___________. A pintura tupiguarani em cerâmica. Revista do Museu de Arqueologia


e Etnologia. São Paulo: Suplemento 8, p.11-20, 2009.

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro, 1500-1808.


Revista Brasileira de História. São Paulo. v.18, nº36,1998.

SILVA, Tyego Franklim da. A Ribeira da Discórdia: Terras, Homens e Relações de


Poder na Territorialização do Assu Colonial (1680-1720). 176f. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em História, Natal, 2015.

SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descriptivo do Brazil em 1587. Rio de Janeiro:
Typografhia Universal de Laemmert, 1851.

URBAN, Greg. A História da Cultura Brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA,
Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 2.ed. 3ª reimpressão,1998. p.87-102.

VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:


Objetiva, 2001.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: Antes de sua separação e
Independência de Portugal. Tomo I. 2.ed. Rio de Janeiro: Em Casa de E. & H. Laemmert,
1877.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
165

INDÍGENAS NO ENSINO SUPERIOR: PERCORRENDO AS


VEREDAS DOS DESAFIOS E DAS DIFICULDADES NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO

Guilherme Luiz Pereira Costa98


Maria Eunice de Oliveira99

INTRODUÇÃO
Desde os anos de 1970, os povos indígenas do nosso país têm se organizado e
lutado por seus direitos. A Constituição Federal de 1988 reconhece a necessidade de
uma legislação que atenda as diversas sociedades indígenas brasileiras, assegurando
o direito ao território, a prática de suas culturas e um ensino escolar diferenciado. Pela
primeira vez no Brasil, os índios deixam de ser tratados como incapazes e passam a ser
os protagonistas. Assim, desde a década de 1980, o Estado e as sociedades indígenas
passam a lutar no mesmo lado.
As leis que antes buscavam a assimilação definitiva dos nativos, agora têm como
intenção assegurar o exercício da diferença. Esse processo de reivindicação de uma
educação que valorize as especificidades de cada povo indígena, atendendo as crianças,
jovens e adultos também refletiu na presença indígena no ensino superior.
A presença de estudantes indígenas no ensino superior leva-nos a pensar sobre
as reais possibilidades da educação proporcionada e da participação efetiva na
sociedade colonizadora. Os desencontros que pretendemos expor no decorrer deste
trabalho que aqui segue, são causas diretamente resultantes de uma educação que
ainda não está pronta para atender todas as demandas específicas: uma educação que
não visa novos caminhos para a compreensão das diferenças existentes.
Acreditamos que a inserção de indígenas no sistema educacional brasileiro
surge não somente como uma provável efetividade de políticas públicas de acesso,
como reflexo de reinvindicações, ou somente como força de vontade de uma minoria,
mas consiste em uma necessidade de entender como vendo sendo construído o

98 Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestrando no
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas-PPGCISH/UERN.
guilhermelpcosta15@gmail.com
99 Licenciatura em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestranda no Programa

de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas-PPGCISH da Universidade do Estado do Rio Grande do


Norte-UERN. maria16eunice@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
166

caminho e como tem sido percorrido por aqueles que adentraram aos muros das
instituições.
Desde o título desse trabalho, falamos de “veredas de desafios” para referirmo-
nos a um caminho longo e ao mesmo tempo muito estreito. Veredas essas que estão
levando os índios até as universidades, mas que ainda são repletas de arbustos e outras
plantas espinhosas, causando cansaço e desistência. Muitos não conseguem trilhar a
caminhada até a faixa de chegada. Com isso, pretendo deixar claro que não trata-se de
fraqueza ou desistência por falta de interesse. Existe diversos fatores que obscurecem
o percurso e impedem o êxito dos maratonistas. O pódio parece estar [ainda] muito
distante e saberemos que não depende unicamente dos indígenas para alcançá-lo.
Contudo, percebe-se a existência de um certo nível de contraste e/ou oposição
entre a busca pelo diploma e o uso do cocar. Fazendo com que a escolha seja
constantemente imposta e assim, apareça com ela todo um jogo de identidades e
diversos contratempos em torno da permanência desses representantes étnicos no
ensino superior.
Como metodologia, utilizamos de levantamento e pesquisa bibliográfica sobre a
temática para analisar o trajeto de estudantes indígenas em cursos de graduações em
algumas instituições brasileiras e em cursos diversos. A reflexão consiste no debate
acerca de trabalhos de pesquisadores que relatam experiências de tais estudantes.
Nossa intenção é trazer à tona as impressões e opiniões de estudantes que vivenciaram
(ou que tentaram vivenciar) a academia a partir da análise de bibliografia. Trata-se de
uma discussão a respeito do sucesso ou da ausência de êxito perante um sistema que
historicamente vem representando uma educação integracionista e que não foi
preparado para sequer receber quem tem necessidades específicas, quando o assunto
é conhecimento.

A PRESENÇA DE INDÍGENAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS


A presença de indígenas nos sistemas de ensino ultrapassa o nível da educação
básica, mostrando que tem aumentado significativamente o número de índios nas
universidades. Antes esses povos procuravam isolar-se; hoje acontece um movimento
afirmativo que consiste um momento de contato e diálogo com a sociedade nacional.
Por outro lado, escola indígena, apesar de ser almejada por muitos povos que
reconhecem que essa instituição pode propiciar a preservação e manutenção de suas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
167

culturas, também pode ser fruto de conflito ou até mesmo motivo de repulsa por aparte
de algumas comunidades.
Quando se fala de estudantes indígenas nas universidades públicas, logo se
pensa em ações para a inserção dos mesmos nestas instituições de ensino. Por outro
lado, permanência dos ingressantes nas universidades não tem sido proporcionada da
mesma forma que a entrada. Deve pensar na efetivação de um duplo pertencimento
(AMARAL; BAIBICH-FARIA, 2012) dos docentes, considerando as novidades do âmbito
acadêmico e sua identidade étnica.
O ingresso de alunos indígenas nas universidades é um fenômeno recente no
Brasil. Por meio de ingresso específico e diferencial, o Estado tem permitido que
estudantes provenientes de comunidades indígenas cursem uma graduação ou pós-
graduação em instituições públicas. Mas percebe-se que a permanência torna-se pauta
tanto na agenda dos movimentos indígenas quanto de comunidades acadêmicas
interessadas em uma Universidade pública e de qualidade, que respeita as diferenças e
preocupa-se com a inclusão de segmentos sociais historicamente excluídos. Trata-se
de pensar uma educação descolonizada:

Em primeiro lugar, penso que o conceito de descolonização deve ser


utilizado com o intuito de fortalecer a autodeterminação dos povos
indígenas. Nesse sentido, o mesmo pode servir para aprofundar
concepções, questionamentos e métodos utilizados no campo científico
e que vem tendo desdobramentos diretos na vida dos povos indígenas.
A academia possui também uma função de fornecer profissionais e
produções de conhecimento para a concepção e realização de políticas
públicas em diversos âmbitos, assim como uma influência na
construção das diversas concepções sobre educação, escola, saberes,
organizações sociais etc., em diversas esferas sociais. Dessa forma,
outra questão, nas ordens principalmente política e metodológica, deve
ser apontada em que medida a categoria “descolonização” tem relação
direta com o que os povos indígenas vêm defendendo sobre suas
escolas nos últimos tempos. Sobre tal ponto, pude observar o uso do
termo por indígenas, seja em apresentação de trabalhos em espaços
acadêmicos ou em fala de lideranças indígenas ao se referir,
principalmente, aos processos de escolarização (CHATES, 2017, p. 06).

O histórico da tentativa de assimilação total dos índios brasileiros não tem fim
com o término do período Brasil colônia. Ainda hoje, por meio de uma educação ofertada
no sistema de ensino nacional, a história dos povos indígenas tem sido desvalorizada e
esquecida. A visão civilizatória ganhou forças com a implantação da escola. Mas é

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
168

ilusório pensar que eles nunca resistiram. É de extrema importância mostrar que os
direitos obtidos são frutos de lutas e reivindicações desses povos.
O protagonismo indígena liberta esses povos da tutela do Estado, tornando-os
atores ativos “[...] agentes, elaboradores, incentivadores, criadores, participantes e
proponentes, com direito de voz e, em algumas situações, de voto, das decisões outrora
tomadas pelo Estado e que os atingia diretamente”. (BICALHO, 2011, p. 06). É uma
questão de autorrespeito e de relação entre as etnias.
Surgia um movimento organizado em meio à política integracionistas e projetos
de um governo ditatorial. Porém, mesmo depois da Constituição de 1988, a luta
permanece na busca de garantir os direitos que foram conquistados. Agora, deixando
de ser considerado como opositor, o Estado passa a dialogar com o Movimento
Indígena.
Estado, sociedade civil e indígenas buscam novos caminhos:

Para a compreensão desse processo, elegeu-se cinco eventos


considerados marcantes – devido à importância dos mesmos à inegável
tomada de consciência desses povos, e às formas de desrespeito
praticadas pelo Estado e setores da comunidade nacional frente aos
mesmos – durante o contínuo temporal em que ocorreu o surgimento,
a estruturação e a organização do Movimento Indígena no Brasil, que
são os seguintes: as Assembleias Indígenas; o Decreto de Emancipação
de 1978; a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/Constituição de
1988; as Comemorações dos 500 anos do Brasil; e o Abril
Indígena/Acampamento Terra Livre. (BICALHO, 2011, p. 12).

A organização dos povos não pode ser deixada de lado quando nos dispomos a tratar
de uma educação para indígenas. É preciso entender que o direito às cotas é reflexo de
uma história de lutas.

DISCUTINDO A INCLUSÃO
Somente no início do século XXI, pela primeira vez no Brasil, é aprovada uma lei
que assegure o acesso de estudantes indígenas no ensino superior. No paraná, foi
aprovada a Lei Estadual nº 13.134, de 18 de abril de 2001, que garante vagas
suplementares em universidades e faculdades do estado, através de um vestibular
específico para os povos indígenas no ano seguinte. De início, a lei dispõe que deve-se
ser garantidas três vagas por ano em cada uma dessas universidades paranaenses.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
169

Para Amaral e Baibich-Faria, o ensino superior para indígenas pode ser


considerado como complementação para o êxito de uma educação na própria
comunidade:

Esse processo se apresentava num contexto caracterizado pela luta


reivindicatória dos movimentos e das organizações indígenas pela
efetiva institucionalização das escolas indígenas no País – nesse
momento com significativo respaldo legal e normativo –, com a clara
intenção de que fosse garantida a educação básica bilíngue, específica,
diferenciada e intercultural nas terras indígenas, conforme já
preconizava a legislação brasileira. O ensino superior se apresentava
principalmente como estratégia e possibilidade de formação dos
professores índios para as escolas indígenas, dada a perspectiva de
ampliação da oferta dos anos finais do ensino fundamental nas aldeias
(p. 820).

A necessidade de uma formação universitária para povos indígenas tem feito


com que as mobilizações indígenas no brasil constantemente reivindiquem o acesso ao
conhecimento acadêmico. Até mesmo o ensino básico proporcionado a esses povos
resulta em um frágil domínio de conteúdos escolares. Então, parte dessa fragilidade a
defesa de uma educação que deva ocorrer no interior das comunidades.
A formação de membros das comunidades indígenas é uma estratégia de
intercâmbio entre a sociedade envolvente e as ditas sociedades tradicionais, mas nem
sempre é fácil de acontecer. Assim, de acordo com a bibliografia utilizada para o
desenvolvimento dessa pesquisa, nota-se que viver e conviver com sujeitos em um
espaço que não parece entender as diferenças socioculturais, torna-se extremamente
desafiador para os indígenas.
O grupo que teve maior expressão na luta pelo direito à educação diferenciada e
por ações afirmativas foi o movimento de professores indígenas, com apoio de grupos
étnicos de várias regiões. Esse movimento também é responsável pela conquista das
licenciaturas interculturais como cursos específicos. A formação de professores para
atuarem nas comunidades comtempla a modalidade da educação indígena que é
assegurada tanto pela Constituição Federal de 1988 quanto pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB de 1996):

A educação superior não pode ser pensada pelos “brancos” para os


povos indígenas, mas deve ser pensada pelos povos indígenas e com os
povos indígenas. Para que isso seja possível, é necessário que se

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
170

promovam as condições financeiras e logísticas, além de uma postura


institucional que favoreça o debate e a reflexão sobre a universidade e
que atenda às suas demandas. (ARCANJO, 2011, p. 92).

A interculturalidade trata do diálogo das comunidades entre si e com a sociedade


nacional. É a valorização da diversidade sem privilegiar uma perspectiva na construção
de um sistema educacional, favorecendo e reconhecendo o pertencimento étnico dos
sujeitos envolvidos.
As dificuldades encontradas levam a uma série de razões que são comumente
chamadas de “desistência”. Apesar da aprovação e matrícula, muitos não permanecem
nos cursos que eles mesmo escolheram. Os menores índices de evasão de estudantes
indígenas tem sido observados em instituições de ensino superior que mostram-se
preocupadas e acompanham o processo de permanência desses estudantes (AMARAL;
BAIBICH-FARIA, 2012).
Quando já estão inseridos entre os murros da instituição de ensino superior, a
questão da identidade étnica transforma-se em alvo de reflexão. Muitos se reconhecem
enquanto persistente e têm orgulho de ser responsável, de alguma forma, em pelo
acesso ao conhecimento que poderá ser utilizado a favor de seu povo futuramente.
Mesmo sendo associada a busca pelo exercício da cidadania e de aprendizagem de
saberes que antes não eram acessíveis, os indígenas se deparam com situações de mão
única, onde os saberes produzidos por seus povos são tratados como inúteis no âmbito
acadêmico.
Em sua análise acerca do protagonismo dos Movimentos Sociais no processo de
construção e aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE 2010-2014), com enfoque
nas metas para a Educação Superior, Morais (2014) busca o contato com
representantes que possam tornar sua pesquisa uma porta-voz na luta por uma
educação pública e de qualidade. A autora, ao entrevistar Edilene Pajeú100, uma
representante indígena, se depara com uma visão que vai além das cotas.
Pajeú discute que enquanto outros países estão empenhados na ideia de
construir Universidades Indígenas, aqui no Brasil ainda estamos debatendo o papel das

100Edilene Bezerra Pajeú, popular Pretinha Truká, professora indígena empenhada na luta e de uma
educação diferenciada para os povos indígenas. Ela faz parte da Comissão de Professores Indígenas de
Pernambuco da qual tem travado inúmeras batalhas nesse campo de atuação e como representante da
COPIPE garantiu assento na Comissão Nacional de Educação, uma peça importantíssima na organização
interna da Comunidade, concluiu a Licenciatura Intercultural.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
171

cotas. Fazemos mobilizações para assegurar uma porcentagem do número de vagas


para atender alguns indivíduos no Ensino Superior. Além disso, estamos preocupados
em manter os direitos já conquistados, pois esses estão constantemente pairando
sobre uma nuvem de ataques. Não se pode pensar que a oferta de cotas encerra as
reivindicações, já que o número de vagas disponíveis não completa todos os povos.
Nosso sistema educacional prende-se a defesa da meritocracia e se funda em
problema que supostamente seriam ocasionados a partir da abertura das portas das
instituições tanto para negros quanto para os indígenas. Assim, mesmo não estando
diretamente tratando da questão indígena, sendo o foco principal as cotas para negros,
Vieira (2016) assegura ser necessário buscar entender o porquê da recusa proveniente
das próprias instituições que deveriam ser as promotoras da inclusão:

As políticas de ação afirmativa existentes nos dias de hoje constituem-


se em canais de crítica ao que se estabeleceu e se cristalizou no
pensamento social e acenam no sentido da elaboração de novos
quadros interpretativos da sociedade brasileira, no interior dos quais
não haja a naturalização de desigualdades baseadas na raça (VIEIRA,
2016, p. 28).

De acordo com a citação anterior, o que vigora no discurso de resistência não é


realmente a capacidade tida ou não por aqueles que usufruem das cotas para ingressar
em instituições educacionais. O que é percebido diz respeito ao pensamento
conservador, evolucionista e racial.

PERCORRENDO AS VEREDAS
O que buscamos discutir são ações que apoiam a permanência de acadêmicos
indígenas nas universidades públicas brasileiras, deixando de focar apenas em políticas
de acesso. De forma geral, considerando a bibliografia utilizada para esse trabalho, as
principais barreiras percebidas nas pesquisas realizadas com alunos indígenas e
instituições que recebem esses alunos, pode-se destacar problemas como:

▪ Aprendizagem frágil em escolas não diferenciadas;


▪ Falta de moradia, uma vez que esses indivíduos têm que se afastar de
suas comunidades para frequentar a universidade;

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
172

▪ Dificuldade com locomoção e alimentação nas instituições na cidade


grande;
▪ Saudades da comunidade, devido ao forte vínculo criado no seio da
própria comunidade;
▪ Número reduzido de bolsas permanência, e quando conseguem tais
bolsas, frequentemente, estas são liberadas com meses de atraso;
▪ Discriminação por parte dos estudantes brancos por desconhecimento e
preconceito a respeito da condição social dos povos indígenas;
▪ Ausência de ações que possam possibilitar um intercâmbio entre as
instituições e as comunidades;

Mesmo tendo em vista uma vasta lista de dificuldades, ações afirmativas,


vestibulares diferenciados e licenciaturas interculturais são mecanismos utilizados
para que indígenas consigam entrar na Universidade. Porém, essas iniciativas de
reconhecimento não é percebido por muitos, na vida acadêmica, como fenômeno de
inclusão social, mas como favorecimento ou privilegio de uma parcela da sociedade.
Antes do caráter obrigatório da Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, intitulada
com Lei de Cotas, as iniciativas para implantação de mecanismos que permitissem o
acesso e permanência de negros e indígenas dependia de cada instituição. A presença
de indígenas em universidades dava-se inicialmente por meio de convênios entre a
Fundação Nacional do Índio (Funai) e instituições privadas a partir da década de 1990
(DOEBBER; BRITO). Atualmente, o ingresso de indígenas no ensino superior, pelo
cumprimento do Plano Nacional de Educação, tem se consolidado principalmente em
cursos diferenciados como as licenciaturas interculturais.
O Programa de Bolsas Permanência foi instituído em 2013 (apesar de se limitado
e não atendendo as necessidades específicas), permitindo auxílio financeiro a
estudantes em vulnerabilidade socioeconômica. O Conselho Indigenista Missionário
(2018) lamenta, que mesmo sabendo da importância que o auxílio tem para combater a
evasão de estudantes indígenas e quilombolas, no primeiro semestre de 2018, o
Ministério da Educação (MEC) anuncia uma severa redução no número de bolsas. Até
2017 o número de estudantes contemplados estava em torno de 4.000, mas o MEC
reduziu para quase 10% desse total.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
173

Trazendo o números de indígenas matriculados, Lima (2012), de acordo com o


Movimento Indígena e com o próprio MEC, afirma que existia cerca de 8.000 estudantes
em território nacional no ano de 2012. Percebe-se assim, que as bolsas disponíveis
antes do corte anunciado recentemente já não eram suficiente para suprir a
necessidade de atender a quantidade de universitários indígenas.
Concordamos com Lima (2012) quando ele diz que, no Brasil, enquanto país de
imensa diversidade de culturas, existe a necessidade de considera a história e
conhecimento produzido e que continua sendo reproduzido pelas diferentes etnias, não
permitindo que saberes e valores sejam em momento algum abandonados por serem
tratados como inferiores ou inúteis. No caso dos índios no nosso pais, a ignorância
reflete como violência, simbólica ou não.

CONCLUSÃO
Historicamente, na escola, o preconceito a respeito das sociedades indígenas
tem sido frequentemente propagado, assim como na mídia. A imagem do indígena do
senso comum que tem sido passada nas instituições de ensino e nos veículos de
comunicação representam permite a vergonha e a desvalorização das destes grupos
étnicos perante a sociedade nacional. Por outro lado, nas últimas décadas, esses povos
têm participado mais efetivamente em decisões tomadas pelo Estado nacional que são
relacionadas a eles. Reagindo devido a indignação com a imagem que foi construída e
perpetuada sobre sua existência.
A preocupação maior percebida pelos pesquisadores tem sido a inserção dos
indígenas formados enquanto profissionais na comunidade. Com isso, Bergamaschi,
Doebber e Brito (2018) afirma que os cursos da área de saúde, educação, direito e
ciências da terra são os mais procurados pelos indígenas. O interesse por esses cursos
apresenta-se como reflexo do que já foi citado anteriormente: entender as políticas
indigenistas.
As cotas, especialmente nas universidades, ainda representam persistência e
resistência nas nossas discussões sobre igualdade e o direito a diferença. Por um lado,
podemos considerar que o debate parece estar estagnado no tempo, mas isso não
significa que seja um retrocesso. Pelo contrário! Porém, nos causa a impressão de que
os avanços não acontecem quando estamos falando da realidade brasileira. Podemos
então, dizer que estamos avançando nessas questões a passos de tartaruga.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
174

A participação e o protagonismo dos movimentos indígenas na busca por


reconhecimento e representação do Estado, requer uma formação para entender as
políticas que não fruto de suas reivindicações. Além disso, existe a necessidade um
diálogo em diferentes contextos, com diferentes povos. A formação em todos os níveis
de indígenas representa a importância e urgência de compreender a capacidade
articulação e de conseguir atuar sem a tutela do Estado.
O que discute-se é a construção de uma Universidade nova, onde os índios não
deixam de serem considerados índios devido ao ingresso em ensino superior. Além
disso, existe a necessidade de um instituição de ensino superior pública que leve em
consideração os conhecimentos produzidos nas comunidades. Trata-se de perceber
que o indígena não é um estudante comum e fazer com que ele deixe de ser percebido
como um estrangeiro. Deve-se também refletir acerca da importância da presença de
lideranças indígenas nas universidades e a possibilidade de atividades que privilegiem
extensão e pesquisa, resultando na troca de sabres entre as duas concepções de
mundo.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Wagner Roberto; BAIBICH-FARIA, Tânia Maria. A presença dos estudantes
indígenas nas universidades estaduais do Paraná: trajetórias e pertencimentos.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, n. 235, p.818-835, 2012.

ARCANJO, Julia de Alencar. A luta pelo diploma e o diploma para a luta: Educação
Superior para os povos indígenas. 2011. 161 f. Monografia (Especialização) - Curso de
Ciências Sociais, Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2011.

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; DOEBBER, Michele Barcelos; BRITO, Patricia


Oliveira. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas
de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 99,
n. 251, p.37-53, 9 maio 2018.

BICALHO, Poliene Soares dos Santos. Protagonismo Indígena no Brasil: Movimento,


Cidadania e Direitos (1970-2009). In: Anais do XXVI Simpósio Nacional De História,
2011, São Paulo: Anpuh. p. 01 – 14, 2011.

BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Portaria nº 389, de 9 de maio de 2013. Cria o


Programa de Bolsa Permanência e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 13 maio 2013.

______. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 23 dez. 1996.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
175

CHATES, Taíse de Jesus. Descolonização da escola e questão indígena: porque e para


quem? Relacult – Revista Latino-americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 3,
n. Edição Especial, p.01-09, 2017.

COSTA, Ana Maria Morais. Movimentos sociais e Educação Superior: Ação coletiva e
protagonismo na construção do Plano Nacional de Educação (2010-2014). 2014. 250 f.
Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

LIMA, Antonio Carlos de Souza. A Educação Superior de Indígenas no Brasil


contemporâneo: reflexões sobre as ações do Projeto Trilhas de Conhecimentos.
Revista História Hoje, Florianópolis, v. 1, n. 2, p.169-193, 2012.

MISSIONÁRIO, Conselho Indigenista. MEC oferece apenas 800 bolsas e ameaça


permanência de 4 mil indígenas e quilombolas na universidade. 2018. Disponível em:
<https://www.cimi.org.br/2018/05/mec-oferece-apenas-800-bolsas-e-ameaca-
permanencia-de-4-mil-indigenas-e-quilombolas-na-universidade/>. Acesso em: 01 jul.
2018.

VIEIRA, Paulo Alberto dos Santos. Para além das cotas: Contribuições sociológicas
para o estudo das ações afirmativas nas universidades brasileiras. Jundiaí: Paco
Editorial, 2016. 292 p.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
176

Simpósio Temático 5
A COLONIZAÇÃO EM MOVIMENTO:
COLONOS E REINÓIS NA EXPANSÃO DO IMPÉRIO
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:

(AMÉRICA PORTUGUESA, SÉCULOS XVII-XVIII)


A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
177

QUANDO ACABA O PREGÃO: CONTRATOS,


GRUPOS DE INTERESSE, ECONOMIA E FISCALIDADE NA
CAPITANIA DO RIO GRANDE (1673-1723)

Lívia Brenda da Silva Barbosa101

Os autos de arrematação dos dízimos reais eram postos como pregão público
com o objetivo de lançar em forma de contratos a arrecadação sobre a produção na
capitania do Rio Grande. Assim, utilizava-se de um mecanismo administrativo para
atribuir a particulares a responsabilidade de arrecadar os tributos régios. Ao arrematar
o contrato o rendeiro pagava à Provedoria da Fazenda Real um valor previamente
estabelecido de acordo com as cláusulas do pregão e a diferença entre o que ele pagava
e o que de fato era arrecadado consistia no seu ganho102.
Mesmo em tempos de poucos lances os autos de arrematação da Provedoria da
Fazenda Real ocorriam103. O processo dos autos de arrematação da Provedoria do Rio
Grande era organizado, seguia um padrão ritualístico bem definido e acontecia mesmo
com algumas dificuldades. Findo o auto, o contratador tomava os ramos verdes em
mãos e outra etapa viria: a arrecadação. O auto de arrematação era apenas o começo de
uma jornada de cobranças e registros burocráticos que tinham o objetivo de garantir
as rendas da capitania.
Ainda que ocorressem de forma padronizada e com determinações bem
definidas, não havia garantia de que os contratos seriam pagos dentro do prazo ou de

101 Graduada em História/Licenciatura (2014) e em História/ Bacharelado (2016) pela UFRN. Mestre em
História (2017) pelo Programa de Pós-graduação em História da mesma instituição (PPGH-UFRN).
Integra o Laboratório de Experimentação em História Social da UFRN (LEHS-UFRN), e faz parte do grupo
de pesquisa Impérios Ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura. Atualmente trabalha no
Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NUDOPH) da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN) como técnica especializada do Departamento de História.
102 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.

340, 341.
103 Os registros dos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande narram em

detalhes como ocorria o processo, seus participantes e oficiais envolvidos. Sobre o processo do auto de
arrematação, sua ritualística e procedimentos ver: BARBOSA, Lívia Brenda da Silva Barbosa. Com os
ramos nas mãos, para o lucro dos homens e da Coroa: os autos de arrematação da Provedoria da Fazenda
Real do Rio Grande (1673-1723). Temporalidades, v. 8, p. 392-408, 2016. Thiago Alves Dias tratou sobre
os autos de arrematação no caso da Câmara do Natal. Ver: DIAS, Thiago Alves. O Código Filipino, as
Normas Camarárias e o comércio: mecanismo de vigilância e regulamentação comercial na capitania do
Rio Grande do Norte. Revista Brasileira de História. v. 34, n. 68, p. 215 – 236. 2014. DIAS, Thiago Alves.
Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-1821). 2011. 277 f. Dissertação
(Mestrado em História e Espaços) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
178

que os contratadores conseguiriam uma boa arrecadação. Quando o pregão chegava ao


fim iniciavam-se outras etapas para os oficiais e os contratadores. As dificuldades
administrativas não estavam apenas nos autos. As características dos autos de
arrematação da Fazenda do Rio Grande fazem com que algumas questões sejam
consideradas. A inconstância dos autos – dificuldades enfrentadas nos pregões –
ausência de lances, pausas e retomadas poderiam influenciar na arrecadação, o que
tornava as rendas da capitania oscilantes104.
As perguntas sobre o que poderia tornar as rendas da Provedoria do Rio Grande
tão frágeis imperam: seriam os problemas dos autos de arrematação? A falta de
interesses dos lançadores em arrematar os contratos? A baixa produção que impedia
uma boa arrecadação? A conjuntura conturbada da retomada da colonização, da
interiorização do povoamento e da Guerra dos Bárbaros?
As respostas podem não ser tão exatas, mas envolvem uma série de dinâmicas
que dizem respeito a produção, grupos de interesse, e de forma geral ligam economia
e fiscalidade. Nesse sentido, com base principalmente nos autos de arrematação dos
dízimos reais da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande, pretende-se compreender
a relação entre os grupos de contratadores e as dinâmicas da economia e da fiscalidade
entre a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII, na capitania do Rio
Grande, apontando-se algumas hipóteses iniciais acerca destas questões105.

OS CONTRATADORES E AS RENDAS
Segundo Stuart Schwartz, em geral, os arrematadores espalhados no reino e
ultramar tinham uma “ideia aproximada da produtividade da região, mas não podiam
prever secas, inundações ou guerras”. O autor destaca que os contratadores possuíam
“provavelmente uma capacidade muito melhor de estimar o preço dos bens
produzidos”. Além disso, tinham conhecimento que “se a produção dobrasse, mas o
preço caísse pela metade, o valor do contrato não seria maior do que fora antes das

104: BARBOSA, Lívia Brenda da Silva Barbosa. Com os ramos nas mãos Op. cit.
105O recorte inicial deste trabalho, 1673, é demarcado pela disponibilidade de fontes, pois é o ano do
primeiro auto de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande até agora encontrado, a
principal fonte aqui utilizada. O recorte final, 1723, corresponde a um marco importante no que diz
respeito as dinâmicas fiscais da Provedoria do Rio Grande. Foi nesse ano em que a referida Provedoria
passou a ter competências administrativas apenas sobre a capitania do Rio Grande, pois desde a década
de 1680 era responsável pela arrecadação também da capitania vizinha Siará Grande. A partir de 1723 foi
criada junto com a ouvidoria do Siará Grande sua provedoria, reduzindo-se assim as competências da
Provedoria do Rio Grande em termos territoriais.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
179

alterações”106. Como complemento a essa afirmação de Schwartz, Mozart Vergetti de


Menezes reiterou que:

“por isso, era comum que grandes arrematadores, que tinham cabedais
suficientes para tal, se envolvessem em mais de um contrato de ramos
diferentes e em diversas praças do Império Português. Mas o acúmulo
de contratos, sob olhos atentos da Coroa, não era algo prudente, pois
se temia que, em caso de um contrato malsucedido, o resultado fosse o
encadeamento da ruína de arrematadores e fiadores”107.

Os fatores que influenciavam a inconstância nos contratos da Provedoria do Rio


Grande poderiam ser inúmeros. Destaca-se que cerca de 50 anos de autos de
arrematação foram levantados neste artigo. Cada grupo de lançadores, cada auto em
sua conjuntura poderia fornecer uma explicação específica para as causas desta
característica comum ao recorte analisado: os contratos da Provedoria do Rio Grande
ocorriam quase sempre em circunstancias adversas.
O quadro abaixo permite visualizar alguns elementos dos autos de arrematação
entre 1673 e 1723. Em ordem estão o ano do auto, os indivíduos que fizeram lances no
referido auto, o contratador e o valor do contrato. No caso dos contratadores, muito
pela condição do documento, não foi possível de identificá-los na maioria dos autos,
assim como o valor do contrato. Nesse último caso, foi colocado o último lance

106 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:
Companhia das letras, 1998.p. 154 Apud MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação:
Fiscalismo, Economia e Sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). João Pessoa: Editora da UFPB,
2012. p. 120-121.
107 Conforme Mozart Menezes, para a capitania Paraíba, há o caso de Rafael Nunes Paz, que foi

pretendente a arrematador dos dízimos na Paraíba, em 1727, quando, um ano antes, e em conjunto com
Manuel Rodrigues Costa, contratou os dízimos em Pernambuco por cinquenta mil cruzados. AHU-RN,
Papéis Avulsos, Cx. 7, D. 541. É interessante também o caso de Manuel Correia Bandeira, que apareceu
aperreado, em 1725,“com a notícia de um decreto que havia sua majestade baixado ao Conselho de sua
Real Fazenda, para que não pudesse arrematar um contrato a quem já tivesse outro”. Dessa feita, o
arrematador temia perder o contrato do direito real de cobrar os 3$500 réis sobre “os escravos que se
resgatam em toda a Costa da Mina, Cacheu, São Tomé e mais partes para a Paraíba, Pernambuco e
anexas”, pois já acumulava com esse o “direito aplicado para a Guarda-Costa do Rio de Janeiro”. Nesse
caso, o temor da Coroa era de que o acúmulo de contratos levasse o contratador à ruína e, consigo, os
seus fiadores. Contudo, Manuel Bandeira, além de ser homem afortunado, pois dizia possuir uma
propriedade de casas em que vivia e alugava na freguesia de São Miguel em Alfama, apresentava como
seus fiadores: Domingos de Miranda, “Provedor dos Contos da Sereníssima Casa de Bragança e superior
deles e da Casa do Infantado, possui várias fazendas, em que entra sua quinta no termo de Sintra, e duas
no termo dessa cidade, uma no Carnanixe e outra no Lumiar”; João Antunes, ourives rico e que tinha uma
morada de casas em Castel Picão, e outra no Alegrete, na freguesia de São Miguel, e uma outra morada
de casas na rua da Madragoa; e“Antônio Bernardes, ourives rico e reputado”. AHU-RN, Papéis Avulsos,
Cx. 6, D. 431. MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na
Capitania da Paraíba (1647-1755). João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. p. 120-121.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
180

identificado no auto de arrematação, valores que estão postos no quadro com um


asterisco (000$$000*):

Quadro I– Lançadores e contratadores dos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio
Grande (1673-1723)
Ano Capitania Lançadores Contratador Valor do
contrato/ maior
lance
1673/74 Rio Grande Antonio Gonçalves Ferreira Simão da Rocha 530$000 réis
Caminha anuais
Antonio Leite de Oliveira

Antonio Lopes de Lisboa

Domingos Dias Moura

(Alferes) Jorge França

Juliano Maciel

Manuel Nunes Nogueira (Capitão)


Simão da Rocha Caminha
1690 Siará Grande Não houve lançadores Não houve NA
contratador
1702 Rio (Capitão) Antonio Dias Pereira Domingos da 1:870$400 réis
Grande/Siará Silveira anuais
Grande (Padre) Amaro Barbosa

(Capitão) Gonçalo de Castro da


Rocha

(Capitão) Bento Correa da Costa

(Alferes) Domingos da Silveira

João Carvalho de Lima

Manuel Gonçalves Branco

Manuel Rodrigues Arioza

Manuel Rodrigues Taborda


1704/05 Rio Bento Correa da Costa Fadrique Não identificado 1:200$150 réis
Grande/Siará Correa da Costa anuais (Rio
Grande Grande)
José da Silva Vieira
2:000$100 réis
Manuel da Silva Queirós anuais (Siará
Grande) *
1709 Rio Grande Carlos da Rocha Não identificado 1:920$000 réis
anuais *
Francisco Gomes

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
181

Quadro I– Lançadores e contratadores dos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio
Grande (1673-1723)
Manuel Gonçalves Branco

Maurício Bocaro Ribeiro (Vigário


da Matriz) Simão Rodrigues de Sá
1713 Siará Grande (Comissário geral) Antonio Pereira João Malheiros 1:312$000 réis
de Azevedo anuais

João Malheiros
1714 Siará Grande (Alferes tenente) Antonio Lopes Não identificado 1:000$000 réis
de Lisboa anuais
1715/16 Rio Grande Bartolomeu da Costa Jeronimo Cardoso 1:200$000 réis
da Silva
(Sargento-mor) Bento Teixeira
Ribeiro

(Capitão) Domingos da Silveira

(Alferes) Faustino da Silveira

(Licenciado) Francisco Alves


Bastos

Jeronimo Cardoso da Silva

João Marinho de Carvalho

(Sargento-mor) José Morais


Navarro

(Comissário geral) Manuel de


Melo Albuquerque
1717 Siará Grande (Coronel) Carlos de Azevedo do Não identificado 1:200$000 réis *
Vale

(Capitão) Tomé Leite de Oliveira


1723 Rio Grande (Coronel) Bento Correa da Costa Não identificado 600$000 réis
anuais *
Francisco Antunes Vieira

Francisco Pita da Rocha Brandão


Fonte: Quadro elaborado pela autora Lívia Barbosa com base nos autos de arrematação da Provedoria
da Fazenda Real do Rio Grande ocorridos entre 1673 e 1723 108 e do AHU-RIO GRANDE DO NORTE, Cx. 1,
D. 42. Todos os valores que estavam em cruzados foram convertidos para réis.

108 AUTOS de arrematação dos Dízimos Reais da capitania do Siará (1690). Fundo documental do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. S/ n. de caixa. Fls. [?]. AUTO da arrematação dos dízimos
da capitania do Rio Grande (1673-1674). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte. Caixa 113. Fls. 75-92v. AUTO da arrematação dos dízimos das capitanias do Rio Grande
e do Siará Grande (1702). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
s/nº de caixa. Fls. 81-88. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Rio Grande e Siará (1704-
1705). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº de caixa. Fls.
88v – 100. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Rio Grande e Siará (1709). Fundo
documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº de caixa. Fls. [ilegíveis].
AUTO de Arrematação dos Dízimos Reais da capitania do Siará Grande (1713). Fundo documental do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
182

A riqueza da fonte, dos autos de arrematação, descortina uma série de


informações. Assim, foi possível identificar não apenas os contratadores, como ainda
os outros homens que fizeram seus lances. Isso abre uma maior margem para
identificar quem tinha interesse em investir nos contratos. Contudo, essa margem
suplanta os indivíduos que estavam ali nos autos de arrematação gritando seus lances,
competindo com outros lançadores pelo contrato posto em pregão. Sem sombra de
dúvida analisar os contratos é um dos tópicos com mais facetas e possibilidades desta
pesquisa. O negócio dos contratos e seus segredos de arrecadação envolviam
possibilidades de ganho financeiro, grupos de interesses, fatores de queda e alta dos
valores, tudo isso apesar de não ser analisado em detalhes – como posto em pauta os
limites da pesquisa, tempo hábil e necessidade de novos estudos que se
complementem – tudo isso é sempre considerado como elementos que podem alterar
as conclusões de pesquisa futuramente.
Dessa maneira, quanto aos interessados nos contratos, fica claro que os autos
permitem ir além dos nomes dos contratadores, aqueles que davam o lance final,
conhecendo-se também os lançadores. Contudo, não se pode enganar-se: poderiam
haver financiadores por trás desses homens. As redes de negociantes, a quem esses
homens poderiam representar, grupos familiares. Essas pessoas representavam, na
verdade, outros indivíduos que, em segredo, os financiavam e alargam em grande
medida esses grupos de interesses que não estão explícitos nos autos de arrematação
e somente estudos focados em cada um desses indivíduos poderão esclarecer.
Feitas essas ressalvas de caráter metodológico, foram elaboradas algumas
considerações com base nos dados que já foram obtidos. Um primeiro fator identificado
é que não ocorria um alto índice de reincidência dos mesmos indivíduos interessados
nos contratos. De um total de 40 homens que fizeram lances entre 1673 e 1723, 4 (10%)
reincidiram nos lances dos pregões públicos: Bento Correia da Costa (1702,1704/05,

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº cx. Fls. 69 v- 71. AUTO de Arrematação dos
Dízimos Reais da capitania do Siará Grande (1714). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte. s/nº cx. Fls 71 v – 76 v. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Rio
Grande (1715-1716). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Caixa
nº 49. Fls 22- 69. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Siará Grande (1717). Fundo
documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Caixa nº 49. Fls. 169- 176. AUTO
da arrematação dos Dízimos Reais da capitania do Rio Grande (1723). Fundo documental do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº de caixa. Fls. 1-2.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
183

1723); Domingos da Silveira (1702, 1715/16), Manuel Gonçalves Branco (1702, 1709) e
Antonio Lopes de Lisboa (1673/1674, 1714). Em uma primeira análise, portanto, não
haviam grupos consolidados de negociantes dos contratos da Provedoria do Rio
Grande. A cada auto de arrematação novos indivíduos surgiam nos pregões.
Por mais que um lançador não reincidisse em contratos posteriores, havia
sempre a possibilidade de que esses homens se associassem a outros indivíduos nos
contratos, e assim não são identificados diretamente nos autos, mas a partir de suas
ligações. Um dos casos mais curiosos dos autos analisados é o do vigário da Matriz,
Simão Rodrigues de Sá, lançador no auto de 1709. Conforme José Rodrigues da Silva, o
padre tinha uma filha, casada com Manuel de Melo Albuquerque, camarário, também
fez seus lances no auto de arrematação de 1715. Desse modo, há um primeiro indício de
que sogro e genro estivessem associados na tentativa de investir em contratos na
capitania109.
Outros dois lançadores que tinham ligação eram Manuel Gonçalves Branco (Juiz
ordinário, em 1716 e Almotacé em 1717) e Carlos de Azevedo do Vale (Vereador em 1724
e 1727 e Juiz ordinário em 1738), o primeiro lançador em 1702 e 1709 e o segundo em
1717. Kleyson Bruno Chaves Barbosa constatou que Carlos Azevedo do Vale tinha uma
filha, Angélica de Azevedo leite, casada com Valentim Tavares de Melo, filho de Manuel
Gonçalves Branco. Inclusive, no mesmo ano em que Carlos do Azevedo do Vale fez
lances, seu filho, Carlos de Azevedo do Leite também estava fazendo lances no auto de
arrematação, em 1717. Observa-se, nesses exemplos, alguns casos de indivíduos com
ligações de parentesco circulando nos autos de arrematação110.
Alguns fatores podem justificar a configuração da dinâmica dos homens que
participavam dos pregões, dentre eles: a) Os contratos da Provedoria do Rio Grande
não davam grandes retornos aos rendeiros, por isso a ausência de uma reincidência nos
pregões seguintes; b) Não existiam grupos consolidados de contratadores que
investiam nesses contratos; c) A circularidade ou reincidência de interessados não pode
ser visualizada nos dados existentes porque ainda não foi possível identificar redes e
ligações entre esses homens e a quem eles poderiam representar. Assim não fica claro

109 SILVA FILHO, José Rodrigues. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. III Encontros
Coloniais, Natal, 14 a 17 de junho de 2016. p. 1-10.
110 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os homens de conhecida nobreza:
governança local na capitania do Rio Grande. 2017. 319 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2017. p. 108.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
184

se um homem que investia em um ano estava investindo em outro ano por meio de um
parceiro de negócios.
O primeiro contrato identificado após a retomada da administração da Fazenda
Real do Rio Grande foi o de 1673, arrematado por Simão da Rocha Caminha por um valor
relativamente baixo em relação aos anos seguintes, 530$000 réis anuais. A despeito
disso, a última informação para as rendas da capitania foi a mencionada em 1665, em
carta da Câmara do Natal ao rei D. Afonso IV, ínfimos 200 réis111. Em pouco mais de cinco
anos ocorreu um aumento significativo das rendas da capitania, considerando-se que o
contrato dos dízimos era a fonte de arrecadação da Fazenda do Rio Grande.
Em 1682, os dízimos da capitania não teriam chegado à arrematação de 550$000
réis. Mesmo que não tenham sido encontrados ainda registros de autos de arrematação
entre 1675 e 1690, em documento enviado pelo provedor-mor ao provedor do Rio
Grande, Pedro da Costa Faleiro, além do dado dos rendimentos de 1682 é mencionado
que o valor de 550$000 havia diminuído em relação aos anos anteriores, que variavam
entre 800$000 e 850$000 réis. Assim, a recomendação posta em regimento quanto à
obrigação dos oficiais da Fazenda em não aceitar lanços menores que a arrecadação
anterior, em vista do ganho da Real Fazenda112, era posta de lado devido às condições
de baixos arremates da capitania do Rio Grande.
As primeiras décadas após a retomada do funcionamento da Provedoria do Rio
Grande foram dificultosas no aspecto da arrecadação. A característica prossegue até
pelo menos 1690, ano do registro seguinte dos autos de arrematações. Nesse ano,
diferente dos anos anteriores com diminuição dos valores de arremate, nenhum
lançador sequer compareceu ao pregão para fazer seus lanços.
Os fatores que motivaram essa baixa podem ter sido situações de baixa
produção como secas, das quais não se tem conhecimento para esse período. O que
teria levado falta de interesse dos contratadores é ainda uma incógnita. É certo que
essas primeiras décadas eram de reestruturação da administração fazendária. O
primeiro avanço, já verificado anteriormente, foi a retomada da ação da instituição na
capitania. Os oficiais existiam, eram nomeados, completavam o quadro administrativo

111CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos
Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições. Anexo: carta (treslado). AHU-RN, Papéis Avulsos,
Cx. 1, D. 7.
112 REGIMENTO dos provedores da Fazenda. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação

administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. p. 100.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
185

e durante todo o recorte analisado, apesar de todos os fatores, estavam em exercício.


Uma boa arrecadação era algo que, mesmo com a (re)organização da Fazenda, não
poderia ser garantido. A fase de retomada da Fazenda mal ocorreu e outro
acontecimento que exigia muito dos cofres da Provedoria se insurgia. A chamada
Guerra dos Bárbaros (1698-1720) deixou clara a fragilidade das rendas da capitania e
os socorros do governo-geral, para o sustento das tropas foi verificado.113.
Dos dez autos de arrematação entre 1673 e 1723, cinco foram identificados
como arrematados. Os outros cinco, um não houve lançador (1691) e quatro
(1704/05,1709,1717,1723), devido às condições das fontes, não foram possíveis
identificar o valor do lance de arremate, ou seja, o valor do contrato. Porém, o que se
observa é que, os contratos das primeiras décadas do XVIII, são de valor maior que os
anteriores, mesmo nos casos em que não se sabe qual foi o valor do último lance, os
valores excedem aos 500$000, 800$000 e 850$000 réis do século anterior.

OS HOMENS DOS CONTRATOS


A questão dos autos com vários dias sem um lance ao menos, postergados até
o ano seguinte, pode ter uma resposta em outro dado. As chances de parte dos
lançadores serem homens locais são grandes. Assim, cada fator que pudesse
influenciar em risco de má arrecadação e de déficit no investimento feito por esses
indivíduos era mais fácil de ser conhecida. Se esses homens faziam parte da dinâmica
local da capitania, não era muito difícil para eles tomarem conhecimento das
possibilidades de ganhos, ou não, com o negócio. O quadro abaixo reúne algumas
informações que foram obtidas sobre esses indivíduos:

Quadro II – Informações dos homens dos contratos da Fazenda do Rio Grande (1673-1723)
Nome Funções camarárias exercidas Outras funções Sesmaria (ano)
na capitania (ano)
Auto de arrematação de 1673/74 – Rio Grande
Antonio Gonçalves Ferreira Juiz ordinário ---- RN 1264 (1682)
(1672,1678,1681,1684,1688)
Antonio Leite de Oliveira ---- ---- ----
Antonio Lopes de Lisboa Procurador (1675); Almotacé ---- RN 0030 (1676);
(1676); Escrivão (1679,1680, CE 0013 (1680);
1681,1682,1683,1684,1685,1686,
RN 0023

CARTA para o provedor da Fazenda do Rio de Janeiro ter prontos os mantimentos para a gente do
113

Terço, para a guerra do Rio Grande, de que é Mestre de Campo Manuel Alvares de Moraes Navarro.
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume XI. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1929. p.
259-260.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
186

Quadro II – Informações dos homens dos contratos da Fazenda do Rio Grande (1673-1723)
1687,1688); Vereador (1693, (1684); RN
1696) 0056 (1706);
Domingos Dias Moura ---- ---- ----
Jorge França Vereador (1673,1675) Alferes (1673) ----
Juliano Maciel ---- ---- ----
Manuel Nunes Nogueira ---- ----- ----
Simão da Rocha Caminha Procurador (1673); Almotacé Capitão (1673) ----
(1673, 1674,1677); Vereador
(1676)
Auto de arrematação de 1702 – Rio Grande/Siará Grande
Antonio Dias Pereira Almotacé (1695,1715); Capitão (1702) CE 0958 (1710);
Procurador (1696,1710); Juiz RN 0336 (1713);
Ordinário (1709,1714,1719)
RN 0348 (1716);
RN 0376 (1717)
Amaro Barbosa ---- Padre (1702) PE 0049 (1708)
Gonçalo de Castro da Rocha ---- Capitão (1702) RN 0338 (1713);
RN 0450
(1737);
Bento Correa da Costa Vereador (1714,1716) Capitão (1702) RN 0072
(1709); RN 0919
(1733)
Domingos da Silveira Procurador (1711); Vereador Alferes (1702) RN 0095 (1711);
(1717); Juiz ordinário (1727)
João Carvalho de Lima Almotacé (1711) ---- ----
Manuel Gonçalves Branco Juiz ordinário (1716); Almotacé ---- ----
(1717)
Manuel Rodrigues Arioza ---- ---- CE 0079 (1703);
CE 0262 (1707);
CE 0263 (1707);
RN 0347 (1710)
Manuel Rodrigues Taborda Almotacé (1697); ----- RN 0347 (1716);
RN 0349 (1716);
RN 0372 (1717);
RN 0982 (1719)
Auto de arrematação de 1704/05 – Rio Grande/Siará Grande
Bento Correa da Costa Op. cit. ---- Op. cit.
Fadrique Correa da Costa Almotacé (1710,1711,1729) ---- ----
José da Silva Vieira ---- ---- ----
Manuel da Silva Queirós ---- ---- ----
Auto de arrematação de 1709 – Rio Grande/Siará Grande
Carlos da Rocha Procurador (1709) ---- ----
Francisco Gomes Vereador ---- CE 0029 (1682);
(1685,1692,1694,1698); Juiz RN 0080 (1705)
Ordinário (1689,1713)
Manuel Gonçalves Branco Op.cit. ---- ----
Maurício Bocaro Ribeiro ---- ---- ----
Simão Rodrigues de Sá ---- Vigário da Matriz PE 0385 (1681);
(1697-1714) RN 0052 (1706);
RN 0948

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
187

Quadro II – Informações dos homens dos contratos da Fazenda do Rio Grande (1673-1723)
(1706); RN
0054 (1706);
Auto de arrematação de 1713 – Siará Grande
Antonio Pereira de Azevedo ---- Comissário geral RN 0097 (1711);
(1713)
João Malheiros Procurador (1710) ---- RN 0543 (1705)
Auto de arrematação de 1714 – Siará Grande
Antonio Lopes de Lisboa Op. cit. Alferes tenente Op. cit.
(1714)
Auto de arrematação de 1715/16 – Rio Grande
Bartolomeu da Costa Almotacé (1691); Vereador ---- RN 0173 (1715);
(1692); Procurador (1719) RN 0397 (1719);
RN 0980 (1719)
Bento Teixeira Ribeiro Juiz ordinário (1715); Sargento-mor RN 0094 (1710);
(1715) RN 0335 (1712)
Domingos da Silveira Op. cit. Capitão (1715) Op. cit.
Faustino da Silveira Almotacé (1725); Vereador Alferes (1715) RN 0377 (1717);
(1728,1738); Juiz ordinário RN 0932
(1747)
(1736);
Francisco Alves Bastos Juiz de órfãos (1724;1725,1731); ---- CE 0068 (1705);
Almotacé (1733,1734,1735) CE 0152 (1706);
CE 0152 (1706);
CE 0231 (1707);
RN 1128 (1731);
RN 1136 (1731)
Jeronimo Cardoso da Silva ---- ---- ----
João Marinho de Carvalho Vereador (1710,1715,1718); ---- RN 0446 (1736)
Almotacé (1716, 1719)
José Morais Navarro ---- Sargento-mor ----
(1715)

Manuel de Melo Vereador (1709, Comissário geral RN 0954 (1701);


Albuquerque 1711,1713,1717,1718); Almotacé (1715) RN 0961 (1708);
(1710,1712),1715,1716,1722,1725,
1738,1740,1741,1742,1744,1745
RN 0480
); Juiz ordinário (1724,1737); (1733);
Juiz de órfãos (1732,1734)
RN 1005 (1740
Auto de arrematação de 1717 – Siará Grande
Carlos de Azevedo do Vale Vereador (1724,1727); Juiz Coronel (1717) RN 0099 (1711);
ordinário (1738) RN 0924
(1735); RN
0930 (1737)
Tomé Leite de Oliveira Vereador (1720); Juiz ordinário Capitão (1717) ----
(1721); Almotacé (1722)
Auto de arrematação de 1723 – Rio Grande
(Coronel) Bento Correa da Op. cit. ---- Op. cit.
Costa
Francisco Antunes Vieira ---- ---- ----

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
188

Quadro II – Informações dos homens dos contratos da Fazenda do Rio Grande (1673-1723)
Francisco Pita da Rocha ---- ---- ----
Brandão
Fonte: Quadro elaborado pela autora Lívia Barbosa com base nos autos de arrematação da Provedoria
da Fazenda Real do Rio Grande ocorridos entre 1673 e 1723 114. LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos
Livros de Termos de Vereação. Senado da Câmara de Natal. Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte. Banco de dados da Plataforma SILB. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br.

Dos dados levantados, 55% (22) do total dos indivíduos, que apostaram nos
autos de arrematação tabulados, fizeram parte da Câmara do Natal. Como verificado na
tabela, alguns como Antonio Lopes de Lisboa, Francisco Alves Bastos, Francisco
Gomes, Manuel de Melo Albuquerque, exerceram várias funções na Câmara. Grande
parte desses em período aproximado da sua participação nos autos. A grande maioria
desses camarários eram também sesmeiros do Rio Grande. Dos cinco contratadores
levantados, quatro foram camarários do Rio Grande, Simão da Rocha Caminha que
arrematou o contrato de 1723, foi Procurador (1673); Almotacé (1673, 1674,1677);
Vereador (1676); Domingos da Silveira, contratador de 1702, foi Procurador (1711);
Vereador (1717); Juiz ordinário (1727); João Malheiro, contratador de 1713, foi
Procurador (1710), apenas Jeronimo Cardoso da Silva consta sem informações do
levantamento realizado. Desse modo, há a hipótese dos contratos da Provedoria do Rio
Grande estarem inseridos em dinâmicas de investimento de grupos endógenos a
capitania.

114AUTOS de arrematação dos Dízimos Reais da capitania do Siará (1690). Fundo documental do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. S/ n. de caixa. Fls. [?]. AUTO da arrematação dos dízimos
da capitania do Rio Grande (1673-1674). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte. Caixa 113. Fls. 75-92v. AUTO da arrematação dos dízimos das capitanias do Rio Grande
e do Siará Grande (1702). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
s/nº de caixa. Fls. 81-88. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Rio Grande e Siará (1704-
1705). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº de caixa. Fls.
88v – 100. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Rio Grande e Siará (1709). Fundo
documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº de caixa. Fls. [ilegíveis].
AUTO de Arrematação dos Dízimos Reais da capitania do Siará Grande (1713). Fundo documental do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº cx. Fls. 69 v- 71. AUTO de Arrematação dos
Dízimos Reais da capitania do Siará Grande (1714). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte. s/nº cx. Fls 71 v – 76 v. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Rio
Grande (1715-1716). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Caixa
nº 49. Fls 22- 69. AUTO da arrematação dos dízimos da capitania do Siará Grande (1717). Fundo
documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Caixa nº 49. Fls. 169- 176. AUTO
da arrematação dos Dízimos Reais da capitania do Rio Grande (1723). Fundo documental do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. s/nº de caixa. Fls. 1-2.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
189

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As conclusões a respeito desses grupos de contratadores e das dinâmicas de
arrecadação do Rio Grande podem ser aprofundadas. Entretanto, muitas das ressalvas
e possibilidades aqui colocadas orientam para caminhos de pesquisa. No momento,
caracterizar o processo de realização dos autos de arrematação, seu pregão púbico, foi
um avanço para entender uma das partes do cotidiano da Provedoria da Fazenda Real.
Além disso, ainda que em virtude da falta de lançadores, dos valores em baixa, o que se
observa pelas amostragens é que os autos continuaram ocorrendo ao longo de 50 anos.
Essa longa fase em que a instituição se sustentou em plena atividade perdurou com
algumas dificuldades. Novas mudanças e reorientações de caráter administrativo
ocorreram na década de 1720 e integram uma parte da História da Provedoria da
Fazenda Real do Rio Grande. É nesse sentido para o qual a pesquisa deve avançar.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os homens de conhecida
nobreza: governança local na capitania do Rio Grande. 2017. 319 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2017.

BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Com os ramos nas mãos, para o lucro dos homens e
da Coroa: os autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande
(1673-1723). Temporalidades, v. 8, p. 392-408, 2016.

DIAS, Thiago Alves. O Código Filipino, as Normas Camarárias e o comércio: mecanismo


de vigilância e regulamentação comercial na capitania do Rio Grande do Norte. Revista
Brasileira de História. v. 34, n. 68, p. 215 – 236. 2014.

______. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-


1821). 2011. 277 f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Rio de


Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972.

MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo, Economia e


Sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). João Pessoa: Editora da UFPB, 2012.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial.


São Paulo: Companhia das letras, 1998.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
190

SILVA FILHO, José Rodrigues. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. III
Encontros Coloniais, Natal, 14 a 17 de junho de 2016.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
191

OS FEITICEIROS DO RIO GRANDE E A DEMONOLOGIA: A


CIRCULARIDADE CULTURAL E OS VÁRIOS TIPOS DE
FEITIÇARIA NA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO SÉCULO XVIII

Rodrigo Santos do Nascimento115

Criada em meados do século XIII, pela Igreja Católica, a Inquisição consistia em


um tribunal que tinha como principal objetivo o julgamento de suspeitos de práticas
consideradas heréticas, ou que desviavam da moralidade cristã, os chamados hereges.
Estes, além de perseguidos, foram presos, torturados, e até queimados vivos por
pensarem ou se comportarem de maneira diferente dos padrões morais e religiosos
impostos pelo catolicismo romano. Neste momento, a Inquisição Medieval foi
idealizada e dominada pelo Papado. Posteriormente, no século XV, essa instituição foi
reformulada passando por transformações administrativas, em que contou com
estruturas fixas e um corpo hierarquizado de agentes em atividade permanente, sendo
esta uma das principais características da Inquisição Moderna.
Fundada em 1478, por iniciativa da Coroa, a Inquisição espanhola atuou na
península Ibérica juntamente com a portuguesa, estabelecida em 1536. Ambos os
tribunais tinham o mesmo objetivo: combater os hereges e, principalmente os
criptojudeus. Esse crime recaía sobre os cristãos-novos judaizantes, que, após serem
convertidos a fim de se adaptarem às exigências da Igreja, ficaram sob os pesados
olhares dos agentes desses tribunais e, devido a isso, muitos buscaram refúgio em
outros territórios. Com a chegada dos europeus à América, a Inquisição também migrou
para esse continente e os cristãos-novos que lá já tinham chegado foram novamente
perseguidos.
Embora existissem tribunais em alguns pontos das colônias espanholas, o
mesmo não aconteceu na América portuguesa. Entretanto, mesmo não se tendo fixado
nos territórios de domínio português um tribunal propriamente dito, como em outras
regiões do continente, e muito menos tenha manifestado a mesma força que na Europa,
é importante destacar seu funcionamento, que se deu por meio de visitações periódicas
a fim de manter o controle no cotidiano das pessoas, recolhendo denúncias que
poderiam virar processos inquisitoriais. Além disso, devem ser ressaltadas as

115 Graduando – UFRN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
192

características particulares que ela adquiriu nas terras da Colônia. Segundo Ronaldo
Vainfas:

As diferenças que separavam o Velho e o Novo Mundo no limiar da


época moderna eram em tudo extraordinárias: em termos de religião,
costumes, vida material, gentes, dimensões geográficas e, certamente,
na posição que os dois passariam a desempenhar no moderno sistema
de trocas impulsionado pela expansão marítima. (VAINFAS, 1989, p. 36).

Dessa forma, esse novo ambiente, tornou-se um verdadeiro laboratório de


misturas culturais religiosas e miscigenação, por meio do qual seus habitantes, que
anteriormente não haviam tido contato com os dogmas católicos, estavam sujeitos à
condenação por parte dos mesmos. Estes habitantes foram perseguidos devido aos
desvios morais, como a bigamia, o concubinato e a sodomia, que eram recorrentes, além
é claro, dos crimes que se configuravam como heresias, que seriam as práticas de
criptojudaísmo e de feitiçaria.
Pensando nisso, este trabalho tem como objetivo discutir e entender como a
feitiçaria contribuiu à criação de uma demonologia no Brasil Colonial, especificamente,
na Capitania do Rio Grande durante o século XVIII, com base nos relatos encontrados
na documentação inquisitorial presentes no site do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo116, que se referem à feitiçaria, principalmente, à adivinhação do quibando.
Partindo desse princípio, busca-se verificar quais os tipos de feitiçaria que mais
aparecem nesses relatos, e em seguida, como a prática do quibando era vista pelos
denunciantes, por meio da perspectiva de influência europeia deles que baseava estas
visões. Pretende-se mostrar ainda como a tensão entre o poder de Deus e do Diabo
estava viva na Capitania do Rio Grande.
Presente na cultura popular dos colonos europeus, sobretudo dos religiosos, o
Diabo era o inimigo pessoal de cada um desses evangelizadores, e de todos aqueles
que o perseguiam e combatiam. Durante a maior parte da Idade Média, sobretudo no
século XVI, a Igreja Católica encontrava-se ameaçada diante de práticas heréticas,
precisamente de feitiçaria, que eram de imediato associadas ao demônio. Logo, esse
temor foi formulado em um corpo doutrinário que ficou conhecido como demonologia.

116Órgão administrado pelo governo português que disponibiliza uma extensa gama de arquivos
documentais originais, de Portugal e das ex-colônias de além-mar, que incluem também as denúncias
inquisitoriais que eram enviadas para o Tribunal do Santo Ofício.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
193

Com a criação de uma ortodoxia cristã, no final da Antiguidade, os demônios


passaram de coadjuvantes para protagonistas no cotidiano do homem medieval,
precisamente, após os estudos de Santo Agostinho de Hipona. Em sua visão, esses são
definidos como seres intermediários entre o humano e o divino, mas que estão
associados à magia e à superstição do povo comum117.
Nos seus estudos do livro de Gêneses, Santo Agostinho debruçou-se sobre a
interpretação dos estudos dos anjos, da origem do mal e do conhecimento de Deus,
definindo a natureza angélica como puramente espiritual e livre. Dessa forma, o
demônio imaterial do Antigo Testamento, passou a ganhar um estatuto concreto e
multiforme, logo, a demonologia enriqueceu durante a Idade Média. (SOUZA, 1993, p.
23).
Nos estudos de Carlos Roberto Figueiredo de Nogueira, em Bruxaria e história
(2004, p. 153), é possível atentar para o surgimento de um “universo mágico”, que é
criado diante das crises generalizadas do final da Idade Média. A fome, as epidemias, os
terrores objetivos e sobrenaturais, o medo do fim do mundo, foram estes os seus
principais causadores. Ainda segundo o autor:

A morte passa a ser a companheira constante, as comunidades


camponesas se desagregam em busca da sobrevivência nas cidades e
aí a peste as ameaça com seu braço invisível e inesperado. É a ira divina
que abate sobre os homens e o sinal de que Satã domina o mundo, e o
desespero toma conta da cristandade. (NOGUEIRA, p.154).

Devido à disseminação desse pensamento, o poder dos demônios ascendeu na


cultura popular européia, causando uma tensão entre o racional e o maravilhoso, entre
o pensamento laico e o religioso, entre o poder de Deus e do Diabo.118 Sendo o grande
protagonista, este foi o principal agente da proliferação da bruxaria, que foi sendo
assimilada às grandes catástrofes naturais, tornando-se reflexa dos costumes, o
elemento mais aguçado dos medos e dos ódios. (NÓBREGA, 2004, p. 156).
Com a cristianização no Velho Continente, os demônios passaram, então, a
conviver no cotidiano das pessoas do Novo Mundo. Sendo a principal causa disso a

117 Moraes, G. L. Os demônios de Santo Agostinho. Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da


Antiguidade, 2017, p. 172.
118 SOUZA, Laura e Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
194

colonização, que trouxe consigo o mundo religioso no qual o diabo agia como ser
indispensável à religião cristã119.
Após a migração dos demônios para o Novo Mundo, intensificou-se a luta entre
Deus e o Diabo, sobretudo na colônia luso-brasileira, que recebeu por Cabral, o nome
de Terra de Santa Cruz, em homenagem ao Lenho Sagrado. A preocupação de nomear
a nova terra manifesta o poder que esses seres exerciam sobre os europeus, sobretudo,
o português que via o Diabo não só como grande sábio, mas com suas características
de caluniador, enganador de espíritos fracos e tentador malicioso, cujo poder entre os
homens é limitado pela autoridade divina e cuja índole não é totalmente malévola 120.
Com isso, a nomenclatura estava associada à ideia de crucificação, revelando uma
preocupação na cristianização dos povos. Laura de Mello e Souza ainda comenta: “O
Santo Lenho inscrevia o sacrifício de Cristo na gênese da nova terra, que ficava toda ela
dedicada a Deus, havendo grande esperança na conversão dos gentios” 121.
Os cronistas seiscentistas contribuíram para o fortalecimento desse
pensamento religioso nas colônias americanas, descrevendo os ritos populares como
práticas demoníacas, empregando a terminologia que conheciam, e utilizando-a para
designar os líderes, e responsáveis, religiosos pelo espaço sagrado. Devido a isso,
muitos sacerdotes maias, incas ou astecas, xamãs, caraíbas e pajés tupis, foram quase
sempre chamados de bruxos e feiticeiros.
Antes de adentrar na discussão de como ocorria a relação entre o homem e o
demônio no Brasil colonial, precisamente, na Capitania do Rio Grande no século XVIII, é
fundamental se entender como este relacionamento já era bastante afetuoso entre os
colonizadores portugueses ainda no século XVI. Segundo Francisco Bethencourt, essa
relação é semelhante, em certos pontos, à relação do homem com o santo, devido à
troca de favores entre os envolvidos. O autor ainda escreve:

Essa economia de trocas simbólicas, (...) foi cristalizada pelos


inquisidores sob a figura do pacto com o demônio, numa evidente
projeção de certas normas de relações sociais para a esfera religiosa e
mágica. Trata-se de uma sociedade impregnada de espírito jurídico, uma
sociedade cujo tradicionalismo de costumes e dependência diante da

119 BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no


século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 178.
120 Ibidem, p. 177.
121 SOUZA, Laura e Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993, p. 30.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
195

religião implica uma regulamentação geral do comportamento social


do indivíduo. (BETHENCOURT, p. 185).

Visto que a relação do homem com o Diabo já era uma prática corrente no início
do período colonial, o cenário na Capitania do Rio Grande nos oitocentos mostra como
o poder desse ser ainda ascendia na cultura popular das pessoas. Em 18 de dezembro
de 1756, no Apodi, foi registrado pelo Padre Frei Fidelis de Partana, a confissão do índio
Bento, no qual,

confessou que adorava algumas vezes ao diabo de joelhos, rezando-lhe


pai nosso e ave Maria, aparecendo-lhe também em forma visível com
orelhas de cavalo, focinho de cachorro, pés de pato e uma vela na
cabeça, pedindo-lhe frutas, mel e bichos para ele comer, tendo muita fé
nele122.

É interessante notar, que a descrição da confissão feita pelo sacerdote é similar à


demonologia europeia, ao passo que, como já dito neste trabalho, a interpretação que
os inquisidores tinham das práticas locais era baseada em conceitos eclesiásticos,
portanto, todos os casos de feitiçaria analisados neste trabalho são oriundos de apenas
um lado da moeda.
O caso do índio Bento ainda demostra como o demônio era representado,
confirmando os estudos de Francisco Bethencourt, no qual, afirma que quando assume
uma forma física verifica-se certa preferência pela figura zoomórfica123. Neste caso,
orelhas de cavalo, focinho de cachorro e pés de pato.
Ainda neste relato, é notória a dificuldade de analisar o documento, visto que
nestes casos de adoração ao demônio, as fontes inquisitoriais são produzidas por
eclesiásticos, como se observa no documento: “Constrangido do Padre Missionário,
apresentou-lhe umas penas de ema com as quais nas mãos, enfeitava-se com outras
penas (...) Isto é o que se podia alcançar de sua confissão estando eu presente como
testemunha (...)”. Há uma dificuldade em discernir quais partes deste testemunho são
realmente verdadeiras, e quais partes teriam sido “instruída” pelo escrivão, o Padre
Manuel Dias Ferrão, e o missionário apostólico, Frei Fidelis de Partana.

122ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livro 309, fl. 452-453.


123BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal
no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 183.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
196

O documento também revela que o dito Bento reunia-se com seus parentes “nas
primeiras chuvas, (...) levando-os para o mato enganando-os para pedir frutas a gente
de outro mundo, e a maior parte enganados iam (...)”. A historiografia que trata sobre a
idolatria mostra que havia uma tendência em demonizar as práticas religiosas do Novo
Mundo, logo, a maioria dos casos de adoração ao diabo recaia sobre os indígenas.124
Com isso, percebe-se uma possível assimilação dos ritos populares às práticas
demoníacas, visto que o índio Bento e seus parentes foram interpretados como
idólatras. Portanto, fica compreensível o pensamento dos etnodemonólogos da
América, ainda no século XVI, quando o jesuíta José de Acosta, em seus escritos,
percebia o indígena como receptor apto à fé católica, apesar deste se entregar às
idolatrias demoníacas125.
A ideia de que os demônios buscaram refúgio nas almas dos índios já era
difundida desde os primeiros anos da colonização no Novo Mundo, visto que a
concepção de que as práticas religiosas de incas e astecas eram idolatrias fez-se
presente nos escritos dos cronistas que se debruçaram sobre as colônias espanholas.
(SOUZA, 1993). Percebe-se uma construção de um universo etnocêntrico, que se
formou devido à expansão europeia, a partir do século XVI, ocasionando em um choque
de culturas. Essa discussão a respeito do etnocentrismo sobre os índios é bem
trabalhada pela historiadora Norma Telles (1987), que observou:

(...) a cultura europeia não só é etnocêntrica, como também etnocidária.


O etnocídio é a destruição de modos de vida e de pensamentos
diferentes dos compartilhados por aqueles que conduzem à prática da
destruição, que reconhecem a diferença como um mal que deve ser
sanado mediante a transformação do Outro em algo idêntico ao modelo
imposto. (TELLES, 1887).

Uma vez tratado como o Diabo exercia seu poder na cultura popular da colônia
luso-brasileira, precisamente da Capitania do Rio Grande, é pertinente atentar para o
significado do termo feitiçaria, que tem sua origem ainda na Antiguidade, e passou por
uma transformação de significado, até chegar ao pensamento moderno. Carlos Roberto
Figueiredo Nogueira (2004), em seus estudos, estabelece o lugar da feitiçaria, uma vez

124 SOUZA, Laura e Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993, p. 34.
125 Ibidem.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
197

que procura fazer uma divisão entre magia-feitiçaria e bruxaria. Ele escreve que “a
bruxaria é uma qualidade inerente, enquanto a feitiçaria age em certo sentido”, ou seja,
a distinção se coloca entre diferentes meios, mas com fins semelhantes.126 Ainda,
segundo o autor:

Para os historiadores a controvérsia por uma distinção entre feitiçaria


e bruxaria está longe de ser resolvida. Como observa Keith Thomas, a
distinção antropológica é de limitado uso quando aplicado à Inglaterra,
mas concorda que o feiticeiro utiliza objetos materiais, enquanto a
bruxa não. (NOGUEIRA, 2004, p. 51).

A origem da feitiçaria europeia está muito ligada às práticas mágicas para fins
amorosos, nas quais cabiam às feiticeiras essa atividade. O papel da mulher feiticeira
na Antiguidade era visto como uma dádiva passional, visto que “(...) o mundo da feitiçaria
é o mundo do desejo, que a tudo se sobrepõe para conseguir uma resposta para uma
paixão não correspondida ou proibida127”.
Na Idade Média, o discurso religioso dominou o Ocidente cristão, ao passo que a
feitiçaria ficou sujeita ao domínio exclusivo do Mal. Desse modo, “as ideias de feitiçaria
e bruxaria vão ganhando significados diferentes ao passo que a feiticeira seria a pessoa
que invocaria as forças do mal, enquanto a bruxaria seria a personificação do próprio
mal.” (SÁ JUNIOR, 2004).
Se por um lado, em um primeiro momento, a feitiçaria poderia ser vista com bons
olhos, devido ao ofício de cura que, muitas vezes, exercia, posteriormente, a formulação
do pensamento eclesiástico categorizou essas “curandeiras” como adoradoras do
Diabo, associando suas práticas de cura a poderes mágicos conferidos pelo Demônio.
Segundo Jacques Le Goff (1980), na Idade Média essas práticas integraram-se à
concepção do Mal, principalmente com a formulação da demonologia no Ocidente
cristão.
Na Colônia, o papel de feiticeira também recaia sobre a mulher, uma vez que, com
a escassez de médicos, elas tendiam a cuidar de seus próprios corpos para prevenir
doenças, utilizando práticas que já vieram da Europa, como o uso de ervas e benzeduras.
Devido a isso essas mulheres passaram a serem vistas como feiticeiras.

126 NOGUEIRA, C.R. Bruxaria e história: as práticas mágicas no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1991, p.
51.
127 Ibidem.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
198

Com relação às práticas para fins amorosos em Portugal, ocorriam por meio de
alguns elementos considerados sagrados pelos ditos feiticeiros, sendo um desses, os
santos óleos, passados nos lábios das mulheres para se ter a pessoa amada.
No Rio Grande, houve o caso da escrava forra, Luiza Teles, que, em 28 de outubro
de 1691, no bispado de Pernambuco, por descargo de sua consciência, denunciou ao Frei
Bernardino das Andradas, o negro forro, João Temudo, que foi morador do Rio Grande.
Em seu relato, ela afirmou que o dito João a ensinou um feitiço, dizendo-a que bebesse
uma água cozida “com certas ervas, o que ele tudo trazia já feito em uma panela, e lhe
disse abafasse primeiro e bebesse dela para certo homem lhe querer bem128”. Nesse
caso, era necessária a ingestão da água para conseguir o amor desejado,
diferentemente da utilização do santo óleo que era aplicado nos lábios. Nota-se
também que o uso de ervas ainda continuava sendo utilizado entre os ritos de matriz
africana, devido ao conhecimento que foi mantido entre os povos escravizados na
colônia. Mas, afinal, como essas práticas amorosas atravessavam o Atlântico e
conseguiam sobreviver e, até mesmo, se ramificar após longos períodos?
A historiadora Nereida Soares Martins, em sua dissertação de mestrado sobre
crenças e práticas mágicas na América portuguesa, explica o aparecimento dessas
práticas no Brasil colonial quando escreve que “a chegada das ‘feiticeiras’, degredadas
europeias que, com seus encantos, fórmulas mágicas e demônios familiares, vieram
habitar as terras longínquas da Colônia, deixará marcas na religiosidade popular que se
desenvolverá na terra de Santa Cruz”. (2012, p. 51).
O documento ainda revela que o dito João Temudo “(...) lhe tirou, ou rasgou sua
carne com a ponta de uma agulha, (...) no braço esquerdo e no pulso, a lhe meteu entre
a pele e a carne uma coisa negra (...), para que ela, dita denunciante, não fosse nunca
ofendida com feitiços”129. Isso demonstra que essas práticas mágico-religiosas, desde
o início da colonização, ainda circulavam entre as Capitanias do Rio Grande e da Paraíba
no final do século XVII, ao passo que eram utilizadas como forma de proteção.
Observa-se, ainda, que ambos os envolvidos na denúncia, tanto Luiza quanto
João eram escravos forros, logo, pode-se supor que esses ritos de proteção tendiam a
ser utilizados entre os escravos negros daquela época, indicando, assim, uma
sobrevivência da viagem transatlântica da cultura africana. Atenta-se ainda para uma

128 ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livro 263, fl. 261.
129 ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livro 263, fl. 261.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
199

certa preocupação com relação à saúde, uma vez que os conhecimentos medicinais
eram precários. Portanto, feitiços de proteção eram populares entre esses grupos da
sociedade colonial, mostrando certa eficiência, devido a continuidade desses
conhecimentos.
Com relação às denúncias de feitiçaria apuradas para o desenvolvimento deste
trabalho, todas ocorreram na Capitania do Rio Grande no século XVIII, sendo a maioria,
na década de 1740. Foram contabilizadas ao todo 27 denúncias relativas à feitiçaria,
sendo 23 delas do tipo adivinhação; 3 de bolsa de mandinga; e somente 1 referindo-se
à idolatria.

Denúncias apuradas na Capitania do


Rio Grande - século XVIII
Quantidade de denúncias

23

3 1

Década de 1730-1760

Adivinhação Bolsa de mandinga Idolatria

Fonte: ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livros: 263, fl. 261; 296, fl. 253; 297, fl. 22;
297, fl. 23; 297, fl. 25; 297, fl. 27; 297, fl. 30-31; 301, fl. 15; 301, fl. 91; 301, fl. 92; 309, fl. 452-453; 310, fl.
55; 310, fl. 60; 310, fl. 64; 315, fl. 386-396.

As denúncias de adivinhação, apontadas no gráfico acima, foram registradas na


Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação entre as décadas de 1730 e 1740, sendo
19 desses 23 casos, “do quibando”.
O gráfico indica apenas 3 denúncias do tipo bolsa de mandinga, que ocorreram
entre as décadas de 1750 e 1760. A primeira desse tipo aconteceu na Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação, em 1755, e se refere ao índio Manuel Pedro. As
demais, ocorreram na aldeia do Mipibu, entre os anos de 1750 e 1760, e ambas
correspondem ao índio José Rodrigues Monteiro.
Com relação à única denúncia do tipo idolatria, esta ocorreu no Apodi, no ano de
1756, e se refere ao índio Bento, como já exposto neste trabalho.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
200

O uso da bolsa de mandinga, também conhecida como patuá, era bastante


popular entre os indivíduos das mais diversas camadas sociais, apesar de muito
utilizada por índios. Esse tipo de feitiçaria foi a manifestação mais consistente em todo
o território luso-brasileiro. Nos documentos analisados, como é o caso do índio José
Rodrigues, mostram que o indivíduo portava, geralmente, o objeto pendurado em seu
pescoço a fim de conseguir proteção, “(...) para ser valente e não lhe entrar, no corpo,
ferro nem chumbo”.130 Revelam, também, que, dentro dessas bolsas, sempre haviam
papéis com orações e hóstia para livrar de situações perigosas.
A bolsa de mandinga também representava a sobrevivência das tradições
europeias desde a Alta Idade Média, em que a confecção de amuletos já era bastante
popular entre os ditos feiticeiros. Dessa forma, percebe-se uma reinterpretação dessas
práticas no Brasil Colonial, ao passo que reúne características culturais europeias
congregando a tradição dos amuletos com o fetichismo ameríndio e os costumes das
populações da África.131 Consequentemente, devido ao uso recorrente na capitania, a
Igreja passou a ver os mais novos mandingueiros como feiticeiros. Segundo Daniela
Calainho (2004):

A viabilização desses objetivos configurou um conjunto variado de


práticas vistas pela Igreja e pelos próprios africanos e descendentes
como mágicas, uma vez que estariam sob influências sobrenaturais,
tornando-se supostamente eficazes para os fins aos quais se
destinavam. (CALAINHO, 2004).

No que diz respeito às denúncias de adivinhação, o gráfico apresenta um alto


índice de relatos desse tipo de feitiçaria, sendo a maioria descritas como “do quibando”.
Segundo o historiador Mario Teixeira de Sá Junior (2004), o termo “quibando”,
ou Quimbanda, refere-se aos sacerdotes africanos participantes das religiões de culto
aos antepassados, das regiões de Angola e do Congo, chamados de Kimbanda e
Nganga, respectivamente. Todavia, devido ao contato com os europeus, esse termo foi
ressignificado por meio dos conceitos de feitiçaria e práticas mágicas que estes tinham.
Consequentemente, os quimbandas passaram a ser vistos como feiticeiros e inimigos
da fé cristã.

ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livro 310, fl. 60.


130

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
131

Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 210-211.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
201

O termo também aparece nos estudos do historiador Luiz Mott (1999, p. 2), que
relata em seus escritos, que a palavra quimbanda está associada à homossexualidade:

Há entre o gentio de Angola muita sodomia, tendo uns com os outros


suas imundícies e sujidades, vestindo como mulheres. Eles chamam
pelo nome da terra: quimbandas, os quais, no distrito ou terras onde os
há, têm comunicação uns com os outros. (MOTT, 1999).

Contudo, o termo quimbanda está ligado ao culto religioso, sobretudo aos


sacerdotes e aos curandeiros, e não à homossexualidade. Nesse sentido, este se refere
ao benzedeiro de um local, nada a princípio relacionado com homossexual.
Ao aportar no Brasil, os cultos religiosos africanos, dirigidos pelo sacerdote
Kimbanda e Nganga, passaram por um processo de transformação ao serem expostos
a outras práticas aqui já existentes. Logo, a dinâmica cultural com as religiões e
religiosidades europeias e indígenas gerou novos cultos religiosos e, posteriormente
no século XX, matrizes religiosas como a Umbanda.
Porém no século XVIII, os feiticeiros quimbandas foram interpretados como
adivinhadores, como é o caso do Antônio de Vasconcelos. Em 3 de abril de 1739, na
cidade do Natal, freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, o vigário Manoel Correa
Gomes, registra que o dito homem, juntamente com seu filho, Bonifácio, fizeram a
adivinhação “do quibando” a fim de adivinharem onde estava uma certa tapuia, escrava
do Antônio. Para realizarem o feito, os denunciantes utilizaram uma urupemba132 e uma
tesoura. Posteriormente, ambos foram denunciados, mais uma vez, pela mesma causa,
porém utilizaram dessa vez um chapéu133. Com isso, percebe-se que, na visão do padre
Manoel Correa, a adivinhação do quibando, era feita por meio de objetos com formatos
circulares com o objetivo de identificar determinada pessoa ou encontrar algum
pertence.
Em 18 de maio de 1743, na mesma freguesia, o comissário João Gomes Freire,
registrou uma série de denúncias que se referem à mesma adivinhação, como
demonstra a tabela a seguir:

132 Espécie de peneira feita de finas talas de bambu.


133 ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livro 296, fl. 253.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
202

DENÚNCIAS DE ADIVINHAÇÃO REGISTRADAS PELO COMISSÁRIO


Denúncias Denunciante Denunciado
1ª Sebastiana, escrava; Dona Ana;
2ª Rosa Maria; Escolástica, filha de Capitão;
3ª Joana, escrava; Ana, escrava; Thomé, índio;
4ª Adriana, escrava; Ana, escrava; Maria, escrava;
Margarida de Mendonça, sua
5ª Maria, escrava; senhora;
6ª Manoel, escravo; Maria, escrava; Margarida de Mendonça, senhora;
7ª Damásia, escrava; Margarida de Mendonça, senhora;
8ª Brásia Tavares, escrava; João do Carmo, forro;
Fonte: ANTT. IL. Cadernos do Promotor, Livro 297, fl. 23.

Os casos apontados na tabela, além de demonstrar um índice considerável de


denúncias feitas por escravos, também revelam o quanto a prática da adivinhação do
quibando era popular entre os escravos e, até mesmo, entre seus senhores, mostrando
que essas práticas eram vistas com bons olhos de acordo com a necessidade. O 5º, 6º,
e 7º caso, mostra isso claramente, ao passo que a escrava Maria, disse que sua senhora
a mandou falar com outro escravo, chamado Manoel, para este adivinhar quem havia
furtado umas obras de ouro. No entanto, para realizar a adivinhação, o escravo utilizou
uma cuia de água para ver o sujeito furtador do ouro e, sendo descoberto, o ouro
retornou para as mãos da dita Margarida. Posteriormente, a dita senhora foi
denunciada por outra de suas escravas pelo mesmo motivo. Esta, chamada Damásia,
disse que Maria havia lhe dito que foi até um tal preto (Manoel), para fazer a dita
adivinhação com o mesmo propósito.
Aqui se percebe que os saberes mágicos não transitavam apenas entre os
negros e indígenas, escravos e forros, mas também entre camadas mais altas da
colônia, como, senhores de escravos ou pessoas com prestígio social elevado.
Ainda ao observar este caso, fica evidente uma espécie de circularidade cultural
na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, ao passo que uma senhora solicitava
serviços mágico-religiosos de seus escravos, confirmando o que escreve Laura de
Mello (1986): “Adivinhações, curas mágicas, benzeduras procuravam responder às
necessidades e atender aos acontecimentos diários, tonando menos dura a vida
naqueles tempos”. Desse modo, devido a essa troca de conhecimentos culturais, a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
203

cultura popular passou a ganhar espaço em um cenário religioso que tinha como
dominante a cultura eclesiástica.
Outro ponto, a ser destacado nestas denúncias, é a visão que os denunciantes
escravos tinham das práticas mágico-religiosas, por meio da perspectiva de influência
europeia deles que baseava estas visões. Como observado no registro feito pelo padre
João Gomes Freire, alguns escravos também viam estas práticas como feitiçaria,
categorizando-as como diabólicas. Daniela Calainho (2004) escreve:

A aquisição destes conhecimentos se originava nas próprias instâncias


de poder: nos cárceres inquisitoriais, nos editais apregoados nas igrejas
que incitavam denúncias e nos próprios autos-de-fé, com leituras
públicas das sentenças, fazendo circular estes saberes entre os negros
e o resto da população. (...) a dinâmica da circularidade cultural definida
por Carlo Ginsburg, (...) é definida como uma massa de discursos, formas
de consciência, crenças e hábitos relacionados a determinado grupo
historicamente determinado. (CALAINHO, 2004).

Em 28 de setembro do mesmo ano, João Gomes Freire registrou outras duas


denúncias, feitas por Maria da Conceição e sua filha, Suzana de Gouveia, contra a
mesma Margarida de Mendonça, por mandar adivinhar, por Josefa Bezerra, parda forra,
moradora da cidade do Natal, quem lhe havia furtado um pouco de ouro, fazendo
adivinhação, (...) e que em um alguidar de água se vira quem o furtou . Após descobrir
quem era o ladrão, um soldado ourives134, cujo nome não se sabia, lhe furou um olho, e,
sendo preso, foi visto com um parche135 encobrindo o mesmo.
Apesar de essa denúncia ter sido registrada em setembro, ela é muito
semelhante ao caso já analisado, que envolve os escravos da dita Margarida, porém
este relato inclui mais detalhes do ocorrido, revelando o que aconteceu com o ladrão
do ouro. Com isso, além de se perceber certa competência dessa prática, é interessante
notar uma espécie de resistência adaptativa136 por parte dos escravos que possuíam
determinado conhecimento. Para Sá Junior (2004):

134 Aquele que faz, executa ou vende objetos de ouro e prata.


135 Pedaço de pano.
136 Termo utilizado por Steve Stern para indicar ações protagonizadas por grupos dominados. Estas

ações representaram uma manifestação de apropriação e resistência diante das transformações que
ocorriam na sociedade colonial. Ver: STERN, Steve J. (compilador). Resistencia, rebelión y conciencia
campesina en los Andes. Siglos XVIII al XX. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1990.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
204

Não é difícil se perceber, se partirmos de um imaginário tão afeito a


essas práticas, que o ser feiticeiro poderia gerar um capital, simbólico
e/ou material, para os seus praticantes, (...). Os praticantes da feitiçaria
transformavam os seus poderes em moeda de troca, numa sociedade
que se lhe mostrava tão adversa, benefícios que, por certo, seriam
utilizados por outros grupos sociais, não escravos. (SÁ JUNIOR, 2004).

Devido a possuir esses conhecimentos, os considerados feiticeiros, sobretudo


escravos, forros, negros ou índios, eram bastante solicitados pelos senhores e, até
mesmo, por outros escravos a fim de serem curados, protegidos ou até amados. Por
causa disso, muitos senhores de escravos toleravam certas reuniões espirituais dos
seus cativos e, por muitas vezes, as estimulavam. Sá Junior (2004) ainda escreve:

Num universo onde se aproximar ou se apartear, combinar ou divergir


faz parte da mesma realidade, negros, como os kimbandas e os
ngangas, sofreram perseguições, mas também puderam utilizar seus
conhecimentos religiosos visando uma melhor participação no corpo
social. (SÁ JUNIOR, 2004).

Por causa disso, a utilização dessas práticas, além de se mostrarem muito


populares, mostram também resultados, sendo uma ferramenta bastante útil devido a
tamanha procura a fim de resolver problemas do cotidiano. Em suma, é possível
perceber, por meio desses casos ocorridos no Rio Grande no século XVIII, o quanto a
feitiçaria adivinhatória contribuía para a proliferação da demonologia na Colônia
portuguesa, ainda em que as circunstâncias dessa prática fosse realizada pelos
escravos, livres, e até pelos senhores.
A maioria das práticas de feitiçaria do período colonial ganharam significados
diferentes no decorrer dos séculos. Atualmente, por exemplo, é possível observar o uso
de patuás, benzeduras e simpatias, que, assim como naquele período, utilizadas para
resolver problemas de saúde, afetivos e de prosperidade. Por causa disso, há uma
grande necessidade em se estudar o Brasil Colonial, visto que essas práticas de
feitiçaria e o pensamento religioso em relação ao Diabo dialogam diretamente com a
época atual. Desse modo, torna-se muito mais importante reconhecer a herança
cultural que herdamos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
205

FONTES
ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livros: 263, fl. 261; 296, fl. 253;
297, fl. 22; 297, fl. 23; 297, fl. 25; 297, fl. 27; 297, fl. 30-31; 301, fl. 15; 301, fl. 91; 301, fl.
92; 309, fl. 452-453; 310, fl. 55; 310, fl. 60; 310, fl. 64; 315, fl. 386-396.

REFERÊNCIAS
BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros
em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

CALAINHO, Daniela Buono. Africanos penitenciados pela Inquisição portuguesa.


Revista Lusófona de Ciências das Religiões. Ano III, 2004. n o 5/6, pp. 47 - 63.

CRUZ, Carlos Henrique A. Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição. Dissertação


de Mestrado em História apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013.

GINZBURG, Carlos. História Noturna – decifrando o Sabá. 2ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.

LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980.

Moraes, G. L. Os demônios de Santo Agostinho. Revista de Estudos Filosóficos e


Históricos da Antiguidade, 2017.

MOTT, Luiz. Sodomia na Bahia: o amor que não ousava dizer o nome. In: Revista
Inquice, no. 0, Julho de 1999.

SILVA, Nereida Soares Martins da. As “mulheres malditas”: crenças e práticas de


feitiçaria no nordeste da América Portuguesa. 2012. 123 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.

SIQUEIRA, Sonia. Ensaios: A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo:


Ática, 1978.

SOUZA, Laura e Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-


XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade


popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

STERN, Steve J. (compilador). Resistencia, rebelión y conciencia campesina en los


Andes. Siglos XVIII al XX. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1990.

TELLES, Norma. A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora. In:


SILVA, A. L. da (Org.). A questão indígena na sala de aula: subsídios para professores
de 1° e 2º graus. São Paulo: Brasiliense, 1987.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil


Colônia. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
206

CRISTIANIZAÇÃO DOS ESPAÇOS E BATISMO DE ESCRAVOS


NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA
DA APRESENTAÇÃO (1749-1770)

Danielle Bruna Alves Neves137

A justificação da escravidão negra no Império Português no Período Moderno


baseou-se, principalmente, na evangelização cristã de povos designados como gentios
e pagãos. As bulas papais Dum Diversas (1452), Romanus pontifex (1455) e Intra
Caetera (1493) tornaram-se a chave na defesa da ideia de que retirar os negros de suas
práticas originais e levá-los para o seio da cristandade, salvaria suas almas
(ALENCASTRO, 2000). A entrada dos escravizados nas antigas e novas possessões
portuguesas fazia-se, então, pela evangelização e recepção do batismo. Recebia-se um
novo nome, a água do batismo e o sal como sinal da libertação do pecado original,
enquanto na ata batismal anotava-se sua condição de cativo e o nome do seu
proprietário. O batismo poderia libertar a alma, porém mantinha o corpo do africano
escravizado.
Assim, o objetivo deste trabalho é analisar a relação entre o processo de
cristianização e a conversão dos escravos na Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação, no período compreendido entre 1749 e 1770. Para isso, o principal fundo
documental pesquisado foi o livro de batismo da freguesia. Assim, o espaço da
freguesia foi pensado a partir do conceito de cristianização dos espaços (e de almas),
baseado na obra de Cláudia Damasceno, adaptado para o caso da Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação. Cristianizar os espaços significava o processo
transformação da lógica espacial, encontrada previamente pelos portugueses, por
meio da inserção da organização eclesiástica, através da construção de prédios
sagrados e da administração dos sacramentos como o batismo.
Renata Assunção da Costa (2015), em sua dissertação de mestrado, utilizando-
se também dos registros de batismo da freguesia, porém no período compreendido
entre 1681 e 1714, estudou o processo de cristianização da Freguesia de Nossa Senhora

137Licenciada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mestranda do Programa de Pós-
graduação em História e Espaços também pela UFRN, sob a orientação do profº Dr. Helder Alexandre
Medeiros de Macedo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
207

da Apresentação, baseando-se na obra de Cláudia Damasceno e no conceito de


experimentação espacial do geógrafo Yi-Fu Tuan. A historiadora analisou o esforço da
Igreja e do governo português de manter a população que viviam neste território dentro
de um padrão moral estabelecido pelas mesmas e o uso que os moradores desta
localidade faziam deste espaço.
O proposito deste artigo é aprofundar a análise sobre esse processo,
percebendo a influência deste processo de territorialização empreendido pela Igreja
sobre a população escrava desta freguesia e como esses cativos reagiam a
normatização imposta pela sociedade colonial cristã para construir alianças que
poderiam garantir um espaço social diferenciado para si e sua descendência.

CRISTIANIZAÇÃO ESPACIAL E A CONVERSÃO DOS ESCRAVOS NA FREGUESIA DE


NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO
Segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, no período colonial, uma
freguesia era o espaço territorial assistido pelos religiosos e a mesma era composta
basicamente pela tríade: matriz, capelas, padres (CASCUDO, 1992). Sua territorialização
foi constituída levando em consideração o ritmo da ocupação e as relações de poder
que foram se formando a partir da apropriação do espaço. No âmbito das freguesias
desenrolavam-se todas as atividades da vida religiosa, além de também servir à
administração civil. A existência do padroado nas monarquias ibéricas fazia com que os
poderes espiritual e temporal estivessem intimamente relacionados.
A paróquia de Nossa Senhora da Apresentação correspondeu, como tantas
outras paróquias durante o período colonial, a uma área de assistência religiosa onde
havia igrejas, capelas e padres, comportando grandes espaços onde a população vivia
dispersa em diferentes fazendas, mesmo existindo pequenos povoados. Era o corpo
social que compõe a freguesia que dava o real sentido que tinha a paróquia: a igreja
matriz, o pároco e moradores da região vivendo e cumprindo com suas obrigações
cristãs (PAULA, 2010, p. 9).
A sociedade do mundo colonial português tinha sua conduta normatizada.
Cristianizar os espaços significava, entre outras coisas, manter a administração dos
sacramentos e fiscalizar as ações das pessoas. Dentre essa normatização da conduta
da população estava o batismo. Foi com a publicação das Constituições Primeiras do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
208

Arcebispado da Bahia e sua posterior divulgação, um esforço de normatização do


batismo na colônia pode ser observado.
Para o historiador Thiago Torres de Paula, em seu artigo sobre a Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação, o discurso da Igreja pode ser percebido como “um
grande tecido que cobria padres e colonos na América Portuguesa”, apesar de, como
destaca o historiador, esse tecido apresentar múltiplos rasgos, por onde passava a vida
cotidiana dos indivíduos (PAULA, 2009, p. 95).
Assim, trabalhou-se ao longo deste artigo com o conceito de cristianização
espacial, baseado na obra de Cláudia Damasceno - que permitiu verificar, com base na
criação de prédios sagrados, a garantia da conversão e da manutenção da fé católica
nos espaços da freguesia. Na sua obra, Claudia Damasceno salienta a importância da
religião para o processo colonizador e o papel da Igreja e da Coroa na criação das
freguesias. Durante o Antigo Regime, a existência do direito régio do padroado fazia
com que os poderes temporal e espiritual estivessem intimamente ligados nas
monarquias ibéricas. Era por meio da religião que a Coroa e a Igreja exerciam seu
controle social nestes espaços (FONSECA, 2011, p. 84).
Segundo a historiadora potiguar Renata Costa (2015), que estudou o processo
de cristianização na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, tendo como base o
trabalho de Claudia Damasceno, não seria propriamente o espaço que regularia os
comportamentos, mas aqueles estavam recriando esses espaços, fossem religiosos ou
moradores, fosse pela incorporação de ambos aos espaços que antes contavam com a
lógica dos índios - de diversas etnias. Assim a ideia de que os espaços regulam os
comportamentos pode ser aplicada no sentido de que os padres, bem como os lugares
de culto, incidiam na vida dos fregueses, regulando a maneira de agir dessas pessoas
(COSTA, 2015, p. 43). Assim, este trabalho discute como esse processo, por meio da
atuação dos padres, seculares e regulares, exerceu influência na inserção desses
cativos no mundo cristão. Porém, não aceitavam essa normatização de forma passiva,
mas respondiam o que lhe era imposto como uma estratégia de vida e de sobrevivência.
Por meio dos documentos paroquiais é possível retirar informações como a
distribuição das igrejas e capelas no espaço de jurisdição eclesiástica. No quadro a
seguir, podemos ver as igrejas e capelas que faziam parte da Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação até o ano de 1762:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
209

Quadro 1: Igrejas e capelas da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (até 1763)


Ano em que aparecem pela
Igrejas e capelas Locais primeira vez nos registros
paroquiais
Matriz de Nossa Senhora da ribeira do rio Potengi
1681
Apresentação
Capela Nossa Senhora do Ó de
ribeira do rio Mipibu 1687
Mipibu
Capela Santo Antônio do
ribeira do rio Potengi 1681
Potengi
Capela Nossa Senhora dos
ribeira do rio Ceará-mirim 1727
Prazeres de Guajurú
Capela Santa Ana do Ferreiro
ribeira do rio Jundiaí 1732
Torto da Aldeia de Mipibu
Capela Nossa Senhora da
ribeira do rio Grande 1738
Soledade
Capela São Gonçalo do Potengi ribeira do rio Potengi 1683
Capela Santos Reis Magos da
Barra do rio Potengi 1749
Barra
Capela Nossa Senhora da
ribeira do rio Jundiaí 1711
Conceição do Jundiaí
Elaborado pela autora a partir dos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação
(1749-1770).

Esses espaços religiosos foram construídos nos pontos onde se tinha os


povoados já consolidados, geralmente nas ribeiras dos rios, onde havia uma maior
concentração de pessoas. Segundo Thiago Torres, as capelas estavam onde os
moradores estavam, pois a função das mesmas era prestar uma assistência religiosa
aos colonos que viviam distantes do maior centro populacional, onde estava localizada
a igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal (PAULA, 2010, p. 53). Na
imagem a seguir, podemos ver a circunscrição eclesiástica da dita freguesia:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
210

Elaborado pelo Laboratório de Experimentação em História Social (LEHS), baseado nos registros
paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

Com a criação de outras freguesias, na primeira metade do século XVIII, como a


do Açu, a de Goianinha e a de Caicó, e na década de 1760, a criação da vila nova de
Estremoz do Norte e, concomitantemente, instalada a freguesia de São Miguel,
localizada na região do Ceará-Mirim; em 1762, estabelecida a vila de São José do Rio
Grande e, com ela, a freguesia de Nossa Senhora do Ó e Santana do Mipibu; e em junho
de 1760 a vila de Arês e, com ela, a freguesia de São João Batista, a área de assistência
da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação foi-se modificando, enquanto novas
freguesias foram surgindo, como podemos ver no seguinte quadro:

Quadro 2: Igrejas e capelas da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (a partir de 1763)


Matriz de Nossa Senhora da Apresentação
Capela Santo Antônio do Potengi
Capela Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí
Capela São Gonçalo do Potengi
Capela Nossa Senhora da Soledade
Capela Santos Reis Magos da Barra
Capela de Sana Ana do Ferreiro Torto
Elaborado pela autora a partir dos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação
(1749-1770).

Os espaços das igrejas e capelas eram relevantes por possibilitarem o processo


de cristianização, mas não sendo possível batizar nestes locais sagrados, qualquer
espaço poderia ser utilizado. Em casos especiais, fora do templo, com o perigo de morte,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
211

a urgência determinava que qualquer pessoa poderia batizar, tendo a intenção de fazê-
lo. O medo da morte sem o batismo, acometia, principalmente, os pais de crianças
recém-nascidas. Para isso, os párocos deveriam ensinar aos cristãos a boa forma de
administração do ritual, especialmente às parteiras.
Posteriormente, o batizando deveria ser encaminhado até o pároco para
averiguar a sua validade e, se estivesse em boa forma, ele deveria finalizar o ritual
colocando os santos óleos e fazendo os exorcismos; ou repetindo o batismo sub-
conditione. Por fim, cabia somente ao vigário o registro da cerimônia em livro próprio,
onde se registrava o nome do batizando, sua condição social e, caso fosse escravo, o
nome do senhor, padrinhos, data, local e assinatura do vigário, que não seria
questionada. Dessa maneira, encontra-se em várias paróquias a documentação de
nascimentos de crianças livres, forras e escravas e da chegada de escravos adultos. As
atas paroquiais tinham lugar central na continuação da vida comunitária. Era por ela
que se comprovava, oficialmente, a filiação, fundamental em casos de reconhecimentos
de filhos, de demandas relacionadas a heranças e de outras questões judiciais, em que
se exigia a confirmação de ser cristão e poder, assim, receber as bênçãos do matrimônio
e demais sacramentos. Na sociedade escravista, podemos encontrar registradas,
também, alforrias de crianças em pia batismal, valendo como “cartas de alforria e
liberdade”.
Com base nestes registros de batismo, pode-se analisar o processo de
cristianização de almas escravas na freguesia. Assim, foram encontrados 308 registros
de batismo de escravos, de um total de 1089 assentos:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
212

Tabela 1: Batismo na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação entre 1749 à 1770

Elaborado pela autora a partir dos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação
(1749-1770).

Conforme os resultados, pode-se ressaltar alguns aspectos da sociedade


colonial no Rio Grande do Norte. A principal é que a maioria da população era composta
de pessoas consideradas livres, corroborando o fato de que a escravidão foi menor do
que em outras áreas. Portanto, havia uma economia que não necessitava de um grande
número de escravizados, o que culminou em números superiores da população livre em
relação à escrava.
Apesar disso, o número de assentos de batismo de escravos é significativo,
correspondendo à 28,3% do total de registros, ainda que durante muito tempo, na
historiografia do Rio Grande do Norte (ROCHA POMBO, 1922; LYRA, 1922, CASCUDO,
1955), acreditou-se que os escravos eram tão poucos que não se constituiriam em uma
parcela significativa a ser considerada. Para os indivíduos inseridos nesta sociedade,
era importante ter escravos no sentindo de se diferenciarem socialmente, uma vez que
na colônia ser senhor de terras e escravos os distinguia na hierarquia social (ALVEAL;
DIAS, 2017).
Nesse processo de escravização do africano, o batismo era critério central no
processo de feitura do novo escravo. Na ação da monarquia católica portuguesa, pelo
Padroado Régio, foram instituídas normas nas ordenações do reino para tratar,
especificamente, da recepção do sacramento cristão. Desde as Ordenações Manuelinas
(1521), consta ser dever dos senhores batizar todos os escravos e escravas de origem
africana, dentro de seis meses.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
213

No caso de terem dez anos ou menos idade, deveria cumprir dentro de um mês
após a chegada do cativo. Às crianças nascidas de pais da Guiné1, deveria ser observado
o mesmo tempo determinado para o batizado dos filhos dos cristãos, oito dias,
contados da data de nascimento, sem questionar a anuência dos pais. Nessa ordem,
caso o escravo adulto se recusasse a receber o sacramento, o senhor deveria comunicar
ao pároco, que comprovaria pessoalmente a recusa.
Posteriormente, nas Ordenações Filipinas (1603), vê-se a correção das ordens
anteriores, instituindo que, se os senhores não mandassem seus escravos ao batismo,
haveria a perda para quem os demandar (Ordenações Manuelinas, 1521: livro V, p.300-
301; Ordenações Filipinas, 1603: livro V, p.1247). Fica nítida, então, a relação entre
escravização e evangelização.
O artigo das Ordenações Filipinas dedicado à questão do batismo foi reforçado
pelo arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, no texto das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia. O artigo 99, livro V, das Ordenações diz ser
responsabilidade, primeiramente, dos senhores mandar batizar seus escravos. Caso
houvesse denúncia do não cumprimento da ordem, os senhorios perderiam a posse
para aqueles que denunciaram. Além disso, o clero local deveria zelar para que todos
recebessem o sacramento.
Promulgada em 1707 e publicada em 1719, em cinco volumes, nela se encontra
as principais diretrizes para a administração dos sacramentos aos escravos,
particularmente aos adultos, muitos deles “de língua não sabida”. Contribuindo com a
manutenção da ordem social e religiosa, utilizando-se de instrumentos de vigilância e
punição, temos as Constituições a reforçar as hierarquias do Antigo Regime e do direito
senhorial, defendido no bom governo de sua Casa, ao levar os escravizados “rudes e
boçais” ao seio da santa madre Igreja.
Vê-se a ênfase no batismo e no seu poder de “purgar o pecado original" para a
salvação da alma do gentio. É, ainda, reforçado o papel senhorial na educação religiosa
de filhos e escravos, de mandá-los à missa, ensinar-lhes o catecismo e a guardar os dias
santos, além de afastá-los de suas crenças de origem.
Para aprofundar a análise da questão da cristianização dos escravos nos
diferentes espaços da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, também foi
elaborado uma tabela com o local de batismos destes indivíduos:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
214

Tabela 2: Local de batismo da população escrava na Capitania do Rio Grande do Norte (1749-1770)

Elaborado pela autora a partir dos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação (1749-1770)

De acordo com os registros, a maioria dos batismos de população negra escrava


ocorreu em Natal, na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, seguido pela capela
de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí e a capela de São Gonçalo do Potengi. Esses
números podem indicar que as atividades que envolviam a mão de obra escrava giravam
em torno desses locais.
Apesar de Natal não ter sido uma cidade com alta dinamicidade econômica,
parece ter exercido uma centralidade das ações da Igreja ou talvez diante das
dificuldades da ida de clérigos aos locais mais remotos, é possível que houvesse um
esforço de se ir até à capital para garantir o sacramento (COSTA, 2015).
Aos párocos das localidades cabia à responsabilidade de exortar os fregueses
na doutrinação dos cativos, fiscalizar para que todos recebessem o sacramento, ensinar
o catecismo aos escravos e comandar a cerimônia, dentre outras funções. As
Constituições prescrevem o batismo, ainda, em várias situações da vida colonial. Todo
adulto deveria receber o batismo.
Dentro dos primeiros seis meses de sua chegada, é que o escravo deveria ser
informado da necessidade de ser batizado e da escolha do seu outro nome que o
acompanhará nos documentos oficiais, nas matrículas de escravos, nos testamentos e
inventários do senhor. Era nessa realidade que os pretos novos, “que já tem uso da
razão”, deveriam ser instruídos “na fé, e ter contrição ou atrição dos pecados da vida

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
215

passada”, e deveriam aprender as orações comuns: Credo, Padre Nosso, Ave Maria e os
artigos da fé e os mandamentos da lei de Deus. E “estando assim instruídos serão
batizados por efusão, deitando água sobre a cabeça, rosto, e corpo e não sobre o
vestido” (Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1719: livro I, Título XIV, p.19).
Já as crianças escravas até sete anos não precisariam do consentimento dos pais para
o ritual. A partir dos sete anos, idade em que se possui “algum juízo” e entendimento,
ela próprias deveriam confirmar a vontade de recepção.
Porém, deve-se ressaltar que esses indivíduos não aceitavam essa influência
passivamente. É preciso destacar a forma encontrada por esses cativos, como sujeitos
históricos ativos, de responder a essa normatização imposta pela Igreja, valendo-se do
código social dos brancos para atingir seus interesses e, por meio do batismo, construir
redes de parentesco e solidariedade. Além disso, Sheila Faria ressalta que “a cidadania
católica era requisito básico para a sobrevivência na colônia. Negar o domínio seria
acintoso e representaria um confronto direto” (FARIA, 1998, p. 306). Ou seja, para o
escravizado participar da vida religiosa poderia ser algo facilitador para sua vida
cotidiana.

A APROPRIAÇÃO DO BATISMO PELOS AFRICANOS NA AMÉRICA PORTUGUESA


Ao longo da história, o próprio sacramento do batismo e sua administração
sofreram significativas mudanças. Dos primeiros séculos do Cristianismo à Idade
Moderna, variados sentidos foram sendo incorporados ao ato batismal, reforçando sua
validade para entrada do indivíduo na comunidade de fiéis, como “purgador do pecado
original” e salvação da alma. No entanto, foi na esfera comunitária que o sacramento
passou a ter destacado papel. A necessidade de se ter padrinhos que acompanhassem,
particularmente, as crianças, aparece desde o século III da era Cristã. No entanto, foi no
século IX que a Igreja Católica definiu a função do parentesco ritual no batismo e proibiu
pais de se tornarem padrinhos dos filhos (GUDEMAN, 1975). Sendo fiadores, diante de
Deus, da fé do afilhado, o celebrante do ritual deveria informar aos padrinhos que eles
se tornavam pais espirituais do batizado.
O ato de apadrinhar determinava algumas responsabilidades, os padrinhos e
madrinhas se comprometiam perante o próprio “Deus” de serem responsáveis pela
educação religiosa e dos “bons costumes” das crianças, ou seja, tornavam-se “seus pais
espirituais”. Tais determinações não se diferenciavam para a população cativa. Ao

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
216

contrário, a legislação eclesiástica afirma que esta merece uma atenção especial, pois
“são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza”. Por isto, deveriam ser
mandados por seus “amos e senhores” à Igreja para que obtivessem educação
religiosa. Em outras palavras, isto significava dizer que a população escravizada deveria
participar dos rituais da Igreja.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, orientavam que os
padrinhos seriam escolhidos na comunidade cristã, tendo o padrinho mais de 14 anos e
a madrinha mais de 12, idades também necessárias para se habilitar ao matrimônio, o
que representaria a entrada na vida adulta. Essas exigências, principalmente a de ser
batizado, eram essenciais para a função religiosa a ser assumida, mas a Igreja não
determinava o estatuto social dos padrinhos. No entanto, a própria definição teológica
do parentesco ritual, laço superior ou mais elevado do que o laço carnal, sugeria que o
convite fosse feito a pessoas importantes para o círculo social da família ou do indivíduo
adulto (GUDEMAN, 1975, p. 234). A autoridade religiosa que procedia ao ritual deveria
reforçar o valor do laço constituído naquele instante e que gerava até mesmo,
interdições, sendo necessária licença especial para casamentos entre padrinhos
afilhados e padrinhos e pais. Portanto, o ato batismal institucionalizava dois sistemas
sociais: o apadrinhamento, a relação entre afilhado e padrinhos; e o compadrio, que
ligava os pais àqueles escolhidos para segurar a criança na celebração do batismo e
serem seus protetores. Em uma sociedade organizada sobre o princípio jurídico da
diferença dos corpos, as relações de compadrio e apadrinhamento reforçavam os
valores de distinção e hierarquia social. Dessa maneira, produziam e reproduziam as
relações hierarquizadas do Antigo Regime: de um lado, o padrinho e, do outro, a família
e o afilhado, hierarquicamente posicionados (HESPANHA & XAVIER, 1998, p. 347).
No que se refere aos laços estabelecidos nesse ritual, Gudeman e Schwartz
(1988) mencionam que não se restringiam ao âmbito social da Igreja, “[...] uma dimensão
peculiar do compadrio é que ele é produzido na Igreja entre indivíduos que o carregam
para fora da instituição formal. O compadrio é projetado para dentro do ambiente
social” (GUDEMAN; SCHWARTZ, 1988, p. 37). Os citados autores chamam atenção que
os laços efetivados no compadrio são produzidos na Igreja, mas não se limitam a este
ambiente. Tais relações são transpostas para o convívio social, isto é, para “fora da
instituição formal”, ou seja, os padrinhos e madrinhas não teriam apenas uma
responsabilidade religiosa, de manter seus afilhados firmes na fé cristã, esse cuidado

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
217

também era transportado para o dia-a-dia. Os pais poderiam contar com essa ajuda dos
padrinhos e madrinhas e não era diferente para os escravizados.
Desta maneira, verificamos que o espaço religioso, através dos seus rituais
também se realizou muito das experiências dos escravizados, especialmente no ritual
do batismo. Uma vez levando seus filhos e filhas para serem batizados, estes pais e
mães escravizados deveriam escolher aqueles que seriam os protetores espirituais de
seus filhos, ou seja, os padrinhos e as madrinhas e tais escolhas deveriam partir dos
pais, conforme indicado na legislação eclesiástica, embora não descartamos a
possibilidade de que muitas escolhas poderiam ter a interferência senhorial. Kátia
Mattoso chama a atenção para isto, sobretudo em relação aos africanos, estes recém-
chegados da África eram desconhecidos, então como escolher padrinhos nesta
situação? Neste caso, talvez seja indubitável a interferência do proprietário na escolha
(MATTOSO, 1982 [2003], p. 132).
A historiografia tem apontado que, em várias regiões do Brasil, sobretudo nas
regiões em que predominaram pequenas e médias posses de cativos, os escravizados
apresentaram a tendência em escolher padrinhos e madrinhas entre a população livre.
Foi o que constatou Stuart Schwartz para a Bahia do século XVIII, “quando crianças
escravas foram batizadas, pessoas livres serviram de padrinhos em cerca de 70% dos
casos, libertos, em 10%, e outros escravos, em 20%” (SCHWARTZ, 1988, p. 332). Sheila
Faria, em um contexto de maiores posses de cativos, fez constatação semelhante para
a Freguesia de São Gonçalo no Rio de Janeiro, no final do século XVII, sendo que foi
entre os filhos de mães solteiras que mais tiveram padrinhos livres (46,6%) enquanto
os filhos legítimos eram apadrinhados por cativos (85,6%) (FARIA, 1998, p. 319, 320).
Para Goiás setecentista, José de Castro verificou que os escravizados firmaram o
compadrio com pessoas cativas, mas preferiram também escolher padrinhos livres
(CASTRO, 2011, 262).
O quadro a seguir apresenta os números e a condição jurídica dos padrinhos
escolhidos para o batismo de crianças e adultos na freguesia:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
218

Quadro 3 – Padrinhos escolhidos para o batismo de cativos na Freguesia de Nossa Senhora da


Apresentação 1749-1770
Padrinhos livres ou libertos Padrinhos escravizados Padrinhos livre e escravizado

230 casos 18 casos 11 casos

Elaborado pela autora a partir dos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação
(1749-1770)

O maior percentual é para os assentos cuja condição jurídica dos padrinhos dos
escravizados eram livres, correspondendo à 230 registros. Ou seja, na maior parte dos
casos eram selecionados padrinhos livres para o batismo dos escravos.
Vejamos o caso dos filhos da escrava Ignácia. No dia trinta de abril de 1754, na
capela de Nossa Senhora do Ó de Mipibú, Ignácia, escrava do Capitão Caetano Barbosa
de Góis, batizou sua filha, Catarina, tendo como padrinhos o Capitão José Monteiro3 e
Brígida Maria, filha de José Barbosa Ribeiro. Dois anos depois, no dia vinte e sete de
agosto de 1756, o segundo filho de Ignácia, Caetano, foi batizado também na capela de
Mipibu; os padrinhos foram o licenciado João Barbosa Marques Ferreira e a viúva
Florinda Francisca Leal de Jesus.
Francisca, escrava de Francisca Antônia, também teve dois filhos: Ana foi
batizada no dia primeiro de maio de 1749, na matriz, e teve como padrinhos o cabo de
esquadra Vicente Rodrigues e Luzia, mulher de Miguel Correa. Seu irmão Luís, batizado
no dia 17 de maio de 1758, também na matriz, e teve como padrinho Francisco Pinheiro
Teixeira4.
Já Ana, filha de Brígida, escrava de João de Souza Nunes, teve como padrinhos o
sargento Vitoriano Rodrigues e Felipa, filha de Agostinho Cardoso Batalha5. Seu irmão,
José, batizado na matriz no dia 14 de maio de 1758, teve como padrinho o capitão
Manuel de Oliveira Miranda. O terceiro filho de Brígida, João, também batizado na
matriz; seus padrinhos foram o capitão-mor Cosme do Rêgo Barros e Dona Quitéria de
Jesus Maria, mulher do alferes José Barbosa Gouveia. Felipa foi novamente escolhida
para ser madrinha, desta vez da quarta filha de Brígida.
Nas experiências citadas constatamos exemplos de pessoas escravizadas que
escolheram como padrinhos e madrinhas de seus filhos pessoas de condição livre.
Estabelecer o parentesco espiritual com indivíduos livres era estratégico para os
escravizados. Um padrinho e uma madrinha livre possuíam mais recursos para com os
cuidados com o seu filho ou filha espiritual. Alguns poderiam escolher padrinhos da

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
219

elite. Isto poderia ser vantajoso para os escravizados, pois estas pessoas estavam
melhor situadas na hierarquia social.
As pessoas escravizadas foram identificadas em 18 assentos. Segundo Kátia
Mattoso (1982), o compadrio firmado entre pessoas de condição escrava servia para
reforçar laços de solidariedade já existente entre os escravizados. Silvia Brügger
(2007), ao pesquisar sobre o compadrio em São João Del Rei (Minas Gerais) entre os
anos de 1736 e 1850, verificou que a população escravizada estabeleceu o compadrio
tanto com pessoas de sua mesma condição, isto é, escravizadas, como pessoas livres.
Para Brügger, esta ação de escolha não era aleatória, existia uma lógica:

Para as escravas, a escolha dos padrinhos parecia oscilar,


preferencialmente, entre os dois extremos sociais: padrinhos livres,
visando provavelmente a possibilidades de ganhos, para seus filhos ou
para si, ou cativos, para reforçar as teias sociais estabelecidas na
própria comunidade escrava (BRÜGGER, 2007, p. 319).

Todavia, percebemos que os escravizados da Freguesia de Nossa Senhora da


Apresentação tendiam mais a firmar o compadrio com pessoas livres do que com os de
sua mesma condição. Esta tendência pode ser justificada pelo predomínio das
pequenas posses de escravizados na região, o que levava os cativos a firmarem
sociabilidades com os livres. Houve, ainda, os batizando que tiveram como padrinho um
indivíduo livre (ou liberto) e uma madrinha escrava, ou vice-versa (11 casos).
Vimos, através das experiências citadas, que os escravizados fizeram escolhas
de com quem estabeleceriam o parentesco espiritual e tais escolhas poderiam
proporcionar melhor sobrevivência no sistema escravista. Ter um padrinho e/ou
madrinha era importante para os escravizados, pois independente da condição social,
conforme determinação eclesiástica, os padrinhos tinham responsabilidades para com
os seus afilhados e isto era um apoio tanto para os pais e/ou mãe como para as próprias
crianças. A constituição familiar e as sociabilidades firmadas no compadrio foram
mecanismos de uma melhor sobrevivência em um sistema opressor.

FONTES
ARQUIVO da Cúria Metropolitana de Natal. Livros de batismo da Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação – 1749-1761; 1760-1761; 1761-1763; 1763-1766; 1766-
1768;1769-1770.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
220

CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo


Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º arcebispo do
dito Arcebispado, e do Conselho de sua Majestade: propostas, e aceitasem o Sínodo
Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. 1ª edição Lisboa
1719 e Coimbra. 1720. São Paulo: Typografia 2 de Dezembro de Antônio Louzada
Antunes, 1853

PLATAFORMA SILB – Banco de Dados de Sesmaria do Império Luso-Brasileiro

REFERÊNCIAS
ALENCASTRO, Luis Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BLUTEAU, D. Rafael de. Vocabulario portuguez latino. Coimbra: Collegio das Artes da
Companhia de Jesus, 1712.

BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Escolhas de padrinhos e relações de poder: uma


análise do compadrio em São João del Rei (1736-1850). In: CARVALHO, José Murilo de
(org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 9-14; 315-347.

COSTA, Renata Assunção da. "Porta do Céu": o processo de cristianização da


Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714). 2015. 173f. Dissertação
(Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.

DAMASCENO, Cláudia. Arraias e vilas del rei: espaço e poder nas Minas setecentistas.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

GUDEMAN, Stephen. Spiritual relationship and selecting a godparent, Man, 10. 1975.
pp. 221-237.

___________. & SCHWARTZ, Stuart B. Purgando o pecado original: compadrio e


batismo de escravo na Bahia do século XVIII. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e
invenção da liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988. pp.33-59.

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1998.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974

MINTZ, Sidney & WOLF, Eric. An analysis of ritual co-parenthood (compadrazgo),


Southwestern Journal of Anthropology, 6, 1950, pp. 341-368.

MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2003
[1982].

PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. Teias de caridade e o lugar social dos
expostos da Freguesia de Nª Srª da Apresentação: capitania do Rio Grande do Norte,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
221

século XVIII. 2009. 197 f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade


Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2009.

PORTELA, Bruna Marina. Gentio da terra, gentio de guiné: a transição da mão de obra
escrava e administrada indígena para a escravidão africana (Capitania de São Paulo,
1697-1780). Curitiba, 2014, p. 165.

SCHWARTZ, Stuart. A família escrava e as limitações da escravidão. In: SCHWARTZ,


Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 310-334.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
222

A CRISTIANIZAÇÃO NA FREGUESIA DA GLORIOSA SENHORA


DE SANTA ANA DO SERIDÓ: ANÁLISE DAS CERIMÔNIAS DOS
PÁROCOS ENVOLVIDOS EM AÇÕES DE DESOBRIGAS
(1788-1818)

Isac Alisson Viana de Medeiros138

O seguinte trabalho trata-se do início de uma pesquisa maior139 que tem como
objetivo central analisar o processo de territorialização da Freguesia da Gloriosa
Senhora Sant’Ana do Seridó durante o período de 1788-1818. Para tal, partimos do que
Marcelo Lopes Souza140 entende pelo conceito de território, o qual configura-se como
um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. Seguindo essa
premissa, Souza explica que, para se entender um território, primeiro antes é necessário
identificar os agentes detentores de poder que ali se estabelecem – quem domina ou
influencia em determinado espaço –, logo, a categoria poder torna-se essencial na
análise do nosso recorte espacial.
Em relação à Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó141, a questão
das forças detentoras de poder que atuavam nesse espaço pode ser analisada por
diferentes prismas. Durante o movimento histórico de ocupação das terras do Seridó
existiram muitos processos que motivaram a fixação das pessoas na região. Segundo
Manoel Rodrigues Melo, na introdução que faz da 17ª edição do livro Seridó, escrito por
José Augusto142, à região se caracteriza pelo fato de não existir uma origem comum
para as vilas e cidades que se estabeleceram nesse território. Muitas tiveram seu início
ligado a fazendas de criar gado, outras no espírito religioso da sua população, algumas
se relacionam com o ciclo do algodão. Ou seja, são múltiplas as relações de poder
estabelecidas nesse território e, portanto, para quem deseja estudar a territorialização

138 Graduado em História (Licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
campus Caicó-RN e atualmente cursando a especialização em História dos Sertões, pela mesma
instituição e o mestrado em História e Espaço pelo Programa de Pós Graduação em História da UFRN,
campus Natal-RN.
139 Nos referimos a monografia de conclusão de curso da especialização em História dos Sertões que

está atualmente em pro


140 SOUZA, Marcelo Lopes. O território: sobre espaço e poder. Autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO,

Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs). Geografia: conceitos e temas
– Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995, p. 78-80.
141 Como o nome do recorte é uma constante em nosso trabalho, por uma questão de convenção,

adotaramos Freguesia do Seridó, de agora em diante, até para melhor fluidez do texto.
142 AUGUSTO, José. Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1980.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
223

da Freguesia do Seridó, muitos podem ser os caminhos para essa tarefa, os quais
podem variar mediante o tempo e espaço analisados.
Deste modo, a Freguesia do Seridó se apresenta como um espaço produzido
pelas relações e atividades humanas, assim, não se trata de algo natural, dado
gratuitamente ou pré-existente a própria história. Consideramos o espaço como um
conceito carregado de historicidade e, portanto, repleto de discursos e intenções que
refletem na sua construção decorrente do tempo e lugar analisados. Em nosso
trabalho, a Freguesia do Seridó está longe de ser apenas o palco das ações dos homens
no decorrer da história, não se enquadra nesse modelo naturalizado e gratuito. O
território da freguesia se enquadra no próprio objeto de nosso estudo. E, nesse aspecto,
acaba por oferecer caminhos diferentes para se analisar os processos pelo quais se deu
sua territorialização. Para interesse dessa pesquisa, iremos deter a nossa atenção para
o sagrado, aspecto do processo de cristianização desse espaço – mas especificamente,
as desobrigas realizadas pelos padres nos sítios e fazendas.
Durante nossa pesquisa bibliográfica, pudemos observar, a partir de autores um
pouco de como as desobrigas143 tem sido objeto de análise em trabalhos
acadêmicos144. Infelizmente, constatamos que muito pouco tem se produzido acerca do
tema, de modo que nenhuma obra tinha esse objeto como central e só conseguimos
encontrar citações referentes à desobriga em pesquisas que abordam outras
temáticas, como sacramentos, religiosidades, conquistas territoriais e população. A
desobriga apresentou-se como uma tarefa não só ligada ao ato de desobrigar os

143 Em nossa pesquisa entendemos as desobrigas como o ato de sacerdotes da Igreja Católica se
deslocarem pelo território da Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó para cristianizar as
populações que viviam nas fazendas, sítios e serras localizadas em torno das povoações existentes na
freguesia.
144 NEVES, Gilberto Pereira das. In: (coord) SILVA, Maria Beatriz Mizza da. Dicionário da história da

colonização portuguesa no Brasil. Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo, 2013;
ZANON, Dalila. Os bispos paulistas e a orientação tridentina no século XVIII. História: Questões &
Debates, Curitiba, n. 36, 2002. Editora UFPR; SANTOS, Roberto Sousa. A reestruturação sociorreligiosa
em Sergipe, no final do século XVIII. Dissertação (estrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2010; MACEDO, Helder Alexandre Medeiro de. Ocidentalização, territórios
e população indígenas no sertão da capitania do Rio Grande. Dissertação (mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2007; SANTOS, Roberto Sousa. A
reestruturação sociorreligiosa em Sergipe, no final do século XVIII. Dissertação (estrado em Ciências
Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2010; SMITH, Roberto. A Presença da
Componente Populacional Indígena na Demografia Histórica da Capitania de Pernambuco e suas Anexas
na Segunda Metade do Século XVIII. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais,
realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002; MACÊDO, Muirakytan
Kennedy de. Estado das almas: população, família e educação escolar no Rio Grande do Norte colonial
(século XVIII). In: Revista Educação em Questão, v. 41, n. 27, Natal, jul./dez. 2011.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
224

fregueses dos ritos cristãos ou de prepara-los para a Páscoa, a partir da realização de


sacramentos nos fiéis, mas também – e talvez, principalmente – como uma forma de
controle da população, onde se tornava possível além de fazer a manutenção das
obrigações religiosas, também contar essas gentes, controla-las e vigiá-las. Logo, são
um exemplo do poder da Igreja católica sobre determinado território.
Em nossa análise, as desobrigas se convertem no modelo de estudo para se
pensar o território da Freguesia. Ocorre que, a partir do percurso que os padres faziam
pelos espaços eles iam registrando esses locais nos livros de casamento e batismo,
enchendo-os de nomes referentes à região, completando-os com a nomeação das
fazendas, sítios e povoações que visitavam durante a realização dos sacramentos, o que
nos permite localizar esses espaços na bibliografia referente à região e construir pouco
a pouco, as fronteiras desse território.
Porém, antes de analisarmos as desobrigas em si, antes de nos adentrarmos na
forma em que esse fenômeno ocorria no nosso recorte espacial e temporal145, torna-se
necessário um estudo prévio acerca dos agentes desse fenômeno, ou seja, os padres,
coadjutores e visitadores que puderam empreender as desobrigas na Freguesia da
Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó. Dessa forma, esse será o objetivo desse
artigo: analisar as cerimônias de batismo e casamento realizadas pelos sacerdotes que
atuaram na freguesia entre os anos de 1788 a 1818. O interesse aqui se remete a tentar
entender algumas questões referentes ao processo de cristianização desse território:
Qual o número de sacerdotes que atuavam na região? Quem eram esses sujeitos e
como atuaram no território? Como se organizavam? Como ocorria a cristianização da
freguesia? Era mais comum as cerimônias ocorrerem na matriz e capelas da região ou
pelos sítios e fazendas? Todas essas questões nos ajudam a compreender melhor a
lógica de funcionamento da religião na freguesia, assim como o papel dos padres na
imposição dessa lógica. Após entendermos isso, poderemos enfim analisar como
ocorriam as desobrigas e como relacioná-las ao processo de territorialização da
Freguesia do Seridó.
A principal fonte documental utilizada nesse exercício foram os registros
paroquiais, em especial três livros, dois de batismos (1803-1806; 1814-1818) e um de
casamento (1788-1809). Anteriormente, contávamos com seis livros para esse estudo,

145 Essas questões fazem parte de futuras pesquisas e, portanto, não serão tratadas aqui.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
225

acrescentando dois de óbitos (1788-1811; 1812-1838) e outro de casamentos (1809-


1821), porém no decorrer da pesquisa optamos por descartá-los, tendo em vista que em
um primeiro momento não conseguimos identificar as desobrigas nos óbitos e o banco
de dados que continham as informações acerca dos registros desse livro de
casamentos não constavam a identificação dos sacerdotes que realizaram os ritos
religiosos e, devido a isso, mesmo que momentaneamente, tornaram-se inviáveis a essa
primeira parte da nossa pesquisa.
Infelizmente, esse fato aumenta ainda mais o nosso vácuo em relação às
informações ocorridas nas cerimônias da freguesia, já que, somada à ausência desses
juntam-se os primeiros livros referentes aos primeiros 40 anos da freguesia146 e a
outros posteriores que ainda estão em processo de transcrição e alocação em bancos
de dados147. No entanto, os livros à disposição já nos oferecem ricas informações que
nos permitem pensar chaves importantes do processo de cristianização e
principalmente acerca da função das desobrigas na Freguesia do Seridó.
Em relação ao perfil dos sacerdotes e a atuação destes no espaço de nosso
interesse, em meio ao processo metodológico de catalogação de dados necessários
para a pesquisa, demos protagonismo 1) ao nome do sacerdote: que nos foi útil na
identificação do sujeito e permitiu que observássemos a frequência de sua atuação na
freguesia a partir do número de registros em que ele esteve presente como
responsável pela cerimônia. 2) ao lugar em que ocorreu o rito religioso: se foi em um
templo (matriz ou capela) ou pela restante do território da freguesia (sítio, fazenda,
oratório). Assim pudemos separar as atuações de desobrigas das ocorridas nos
templos religiosos de suas respectivas povoações. E, por fim, 3) às datas, que nos
permitiram perceber os períodos em que essas cerimônias ocorriam – se realmente
duravam todo o ano, ou simplesmente durante a Quaresma.148

146 Segundo Dom José Adelino Dantas em seu livro intitulado “Homens e Fatos do Seridó Antigo” os
livros de registros mais antigos se perderam, provavelmente destruídos pelo tempo. Segundo o autor,
esse de óbito, que data a partir de 1788 é no máximo, o segundo mais antigo. Ver DANTAS, Dom José
Adelino. Homens e fatos do Seridó Antigo. Natal, RN: Sebo Vermelho Edições, 2008. [primeira edição:
1959]
147 Essas tarefas vêm sendo realizadas por bolsistas de projetos de pesquisa ligados a Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação dos professores Muirakytan Macêdo e Helder Macedo,
desde o ano de 1999 em diante, até o ano atual em que continua-se dando prosseguimento ao projeto..
148 NEVES, Gilberto Pereira das. In: (coord) SILVA, Maria Beatriz Mizza da. Dicionário da história da

colonização portuguesa no Brasil. Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo, 2013;
ZANON, Dalila. Os bispos paulistas e a orientação tridentina no século XVIII. História: Questões &
Debates, Curitiba, n. 36, 2002. Editora UFPR; SANTOS, Roberto Sousa. A reestruturação sociorreligiosa
em Sergipe, no final do século XVIII. Dissertação (estrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
226

Para dar início aos resultados iniciais dessa pesquisa, falemos primeiramente da
Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó. De acordo com autores
tradicionais da historiografia referente à região que abrange, nos dias atuais, o
território do Rio Grande do Norte, a exemplo de Dom José Adelino Dantas e Olavo de
Medeiros Filho, a freguesia foi criada oficialmente no dia 15 de abril de 1748, com
invocação a Sant’Ana e com sede na povoação da Vila do Príncipe. A freguesia era uma
das instâncias administrativas da colonização portuguesa nos trópicos. Tinha cunho
eclesiástico, onde buscava oferecer assistência espiritual as pessoas que residiam
dentro dos seus limites. Ao mesmo tempo ela servia a propósitos religiosos e da Coroa
portuguesa. Era também uma forma de territorializar os espaços conquistados,
demarcando o poder do Império português em sua área de abrangência. Sobre esse
aspecto, em relação à Freguesia do Seridó, Muirakytan Macêdo afirma que:

A princípio, subordinado aos serviços religiosos da distante Freguesia


de Piancó (vila paraibana, hoje Pombal) até 1748, os sertões do Seridó
foram seccionados dessa jurisdição e delimitados como freguesia da
Gloriosa senhora Sant’Ana, para atender às necessidades espirituais da
população. Era a primeira regionalização do espaço seridoense que se
desenhava. Partindo da divisão administrativa da Igreja Católica na
colônia, o Seridó ganhava existência no plano cartográfico como
território fiscal – o dízimo do gado era cobrado nesse espaço –, como
território espiritual – dominado por Sant’Ana – e jurisdição política a
povoação do Queiquó (antiga denominação de Caicó), posteriormente
Vila do Príncipe, como sede do poder civil da Freguesia149.

Percebe-se que, mais do que apenas uma marca da religiosidade cristã, o


território da freguesia era efetivamente uma demarcação das posses do Império
colonial português sobre aquelas terras. Tratava-se de uma denominação espacial que
misturava aspectos civis e espirituais, como se pode perceber ao ver que, dentre as
funções da mesma estavam a obrigação de realizar a manutenção da fé dos fregueses
ao mesmo tempo em que se contabilizava esses povos. O próprio Muirakytan Macêdo
atenta para o fato da freguesia compor um território híbrido, que mistura aspectos
fiscais, espirituais e políticos. Assim, percebe-se que para o período destacado – séculos

Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2010; SILVA, Francisca das Chagas Marileide Matias da. O processo de
formação territorial de angicos (1760-1836). Dissertação (estrado em História) – Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2015.
149 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: Patrimônio e cotidiano familiar nos sertões da

pecuária. (Seridó - Século. XVIII). Natal, RN: Flor do Sal: EDUFRN, 2015. p. 17.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
227

XVIII e XIX – o ato de territorializar determinados espaços se constituía também em um


ato de sacralização espacial150.
Em termos de descrição do seu espaço físico, a freguesia localizava-se entre as
capitanias do Rio Grande do Norte e Paraíba e caracterizava-se como uma região rural.
Basicamente era um conjunto de fazendas que ficavam nas proximidades da região do
rio Seridó.
Em relação aos aspectos sagrados que conformavam a caracterização desse
território, segundo Helder Macedo151, até 1788 a freguesia contava com oito templos
religiosos – a matriz e sete capelas –, onde cada qual localizava-se em uma povoação
da dita freguesia, sendo estes: a própria (1) Matriz da Senhora Sant’Ana do Seridó e a
Capela de Nossa Senhora do Rosário do Penedo localizados na povoação do Caicó;
seguidos das capelas da (2) Povoação de Nossa Senhora dos Aflitos do Jardim das
Piranhas; (3) Povoação da Nossa Senhora do Ó da Serra Negra; (4) Povoação de Nossa
Senhora da Guia do Acari; (5) Povoação de Santa Luzia do Sabugi; (6) Povoação de
Nossa Senhora da Guia dos Patos; (7) Povoação de Nossa Senhora da Luz da Pedra
Lavrada e (8) Povoação de Nossa Senhora das Mercês da Serra do Cuité. Cada povoação
possuía uma capela que servia de centro religioso para as fazendas que ficavam
circunscritas àquela área. Obviamente a localização espacial desses templos não era
escolhida a mero acaso, como podemos perceber em relação à escolha do local da
matriz de Sant’Ana pela qual informa o padre Alves Maia no livro de tombo da Paróquia:

Aos 26 dias do mês de julho do ano do Nascimento de Nosso Senhor


Jesus Cristo de mil setecentos e quarenta e oito, em dia da Senhora
Santa Ana, padroeira desta Freguesia, vim a este lugar do Caicó, onde
todos os fregueses desta dita freguesia ou a maior parte deles de
melhor nota assentaram por voto unânime que fosse fundada e ereta
sua matriz com a invocação da Senhora Santa Ana por ser este lugar o
mais comodo e para onde podia concorrer o povo com a conveniencia
comum para todos; e aí no dito lugar, acompanhado de grande parte do
povo e consentimento do Tenente José Gomes Pereira, levantei uma
cruz no mesmo lugar e terreno, onde os fregueses hão de fundar a
matriz (grifos nossos).152

150 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: Patrimônio e cotidiano familiar nos sertões da
pecuária. (Seridó - Século. XVIII). Natal, RN: Flor do Sal: EDUFRN, 2015. p. 22.
151 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no sertão

do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2013.
152 PARÓQUIA DE SANT‟ANA DE CAICÓ (PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Tombo nº 1.

Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1748-1906. Copia fiel do Edital do Rmo
Vizor

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
228

Como visto a partir das palavras do padre, a matriz foi estrategicamente


construída em um local que pudesse ser de fácil acesso para a maioria dos moradores
(ou pelo menos para a maioria de maior qualidade153) da região. Assim, as fazendas
normalmente ficavam em torno da matriz, de modo que durante os eventos cristãos –
missas, realização de sacramentos e festas religiosas – essa população pudesse se
dirigir para o local. Acreditamos que a mesma lógica fosse usada para as demais
povoações citadas acima, ou seja, as suas respectivas capelas localizavam-se em
lugares que fossem mais acessíveis para grande parte da população que ali residiam.
No entanto, mesmo seguindo essa lógica, é certo afirmar que nem toda a
população conseguiria seguir essa ordem, fosse por causa da distância das fazendas
em relação aos templos, que mesmo assim podia ser consideravelmente longe ou até
mesmo devido à rotina diária desses sujeitos, baseada em um cotidiano voltado para o
trabalho agrícola de subsistência e, principalmente a criação de gado. É nesse aspecto
que surge a necessidade do movimento dos padres pela freguesia realizando atos de
fé por meio das desobrigas, buscava-se dar assistência religiosa para essa população
que não tinha condições de ir regularmente às igrejas e capelas dispostas pela região.
Sendo assim, a cristianização da freguesia se dava a partir de uma organização
que atrelava os ritos religiosos ocorridos nessas matriz e capelas às realizações das
desobrigas dos padres pelo território da freguesia. Deste modo, buscava-se dar
assistência ao maior número de fiéis possível.
Explicados, então a metodologia, conceitos e recortes espacial e temporal,
falemos enfim, sobre os agentes da fé da freguesia, padres que realizavam as
cerimônias de batismo e casamento nos templos e fazendas da região. Tendo como
base os dados e livros de registros paroquiais já citados, construímos a seguinte tabela
mostrada abaixo, que aloca os dados de todas as cerimônias de batizado e casamento
ocorridas na Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó, entre os anos de
1788 a 1818.

Manoel Machado Freire, pelo qual se dividiu esta Freguesia de Santa Ana do Seridó, da, de Nossa Senhora
do
Bom Sucesso do Piancó ou Pombal em 15 de abril de 1748, fl. 1-2. (Manuscrito).
153 O conceito de qualidade é entendido aqui de acordo com Eduardo Paiva. Ver: PAIVA, Eduardo França.

Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de
mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
229

A mesma é composta por duas colunas que se dividem de modo que


paralelamente apresentam o nome do sacerdote e a quantidade de vezes em que o
mesmo apareceu realizando uma cerimônia. Organizamos os dados de ordem
decrescente, partindo do padre mais atuante ao que menos apareceu nos registros.
Outro ponto importante a se destacar deve-se ao fato de alguns padres estarem em
negrito, sublinhados e possuírem um “*” em frente aos nomes. Nesse caso são estes os
sacerdotes identificados nos registros como pertencentes à outra freguesia, ou seja,
possivelmente só estavam de passagem pela Freguesia do Seridó. Feita as devidas
explicações, vamos à apresentação e análise dos dados.

Tabela 1: Sacerdotes da Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó (1788-1818) seguido do
número de registros em que aparecem realizando atos de fé.
SACERDOTE NºREGISTROS

Pe. Francisco de Brito Guerra 466

Pe. Manuel Teixeira da Fonseca 375

Pe. José . C. de Mesquita 275

Pe. Coadjutor Inácio Gonçalves Melo 261

Não Indicado 165

Pe. André Vieira de Medeiros 118

Pe Antonio Batista Coelho 61

Pe. José Moreira da Silva 44

Pe. Manuel Gomes de Azevêdo 36

Vice-cura Fabrício da Porciúncula Gameiro 27

Pe. Manuel Fernandes Pimenta,Freguesia.Cuité* 22

Pe José Gonçalves de Medeiros 17

Pe Coadj Manuel de Araújo Correia 15

Pe Coadj Gonçalo Bezerra de Brito 13

Pe Francisco de Albuquerque Melo 13

Pe Antonio Félix Barreto 11

Pe Manuel Carneiro da Ressurreição 10

Pe Ângelo Custódio de Jesus Maria 9

Pe Francisco Xavier de Vasconcelos Maltez 7

Pe Antonio de Melo Barbosa 6

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
230

SACERDOTE NºREGISTROS

Pe Joaquim José de Santa Ana 5

Vigário dos Patos, José Ribeiro Campos* 5

Pe José Gonçalves de Melo 4

Pe José Vieira Afonso 4

Pe José Monteiro de Brito 4

Pe Francisco de Sales Melo 4

Pe José da Costa Soares 3

Pe José Ferreira Nobre, mandado do Ilmo.


Sr.Visitador* 3

Pe Braz de Melo Muniz 3

Pe João Pereira Monteiro Sarmento 2

Pe Francisco C. de Albuquerque Lacerda 2

Pe Francisco Antonio Pinto 2

Pe Antonio Alves Delgado 2

Sr.Dr.Visitador João Feio Tavares de Brito* 2

Padre Frei Manuel de Santa Mônica* 2

Pe coadj Antonio José Machado 2

Pe Manuel Jácome Bezerra 2

Pe do Cuité Francisco Antonio Correa* 2

Pe João Pereira Monteiro 1

Pe Frei Manuel de Santa Isabel, religioso


franciscano* 1

Pe Sebastião de Medeiros Rocha 1

Pe Lourenço Rodrigues Pires 1

Pe Mestre Frei José da Sagrada Família* 1

Pe João Francisco 1

Pe Dr. José Joaquim Nunes da Costa 1

Pe Francisco da Silva Melo 1

Pe. João Barbosa de Góis e Silva 1

Pe. Frei João de Santa Tereza Ximenes, religioso


carmelitano* 1

Pe Secretário da Visita Manuel Gonçalves da Fonte* 1

Pe. João Gualberto Ribeiro Pessoa 1

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
231

SACERDOTE NºREGISTROS

Pe José de Jesus Barreto 1

Pe Francisco Xavier Ordonho 1

Pe Antonio C. R. Barros 1

Pe Inácio Vieira de Melo Cavalcanti 1

Pe André Maldonado de Menezes 1

Pe Manuel Antonio Duarte 1

Pe Coadjutor Manuel Teixeira Pinheiro 1

Pe Manuel Pinto 1

Pe Francisco de Paula Carneiro 1

Pe Manoel Nunes Ferreira 1

Pe dos Patos, Antonio da Silva Costa* 1

Pe Frei Lourenço de Montaboldo 1

TOTAL 61

Fonte: Elaboração de Isac Medeiros a partir de Paróquia de Sant’Ana de Caicó (PSC). Casa Paroquial São
Joaquim (CPSJ). Livro de Batismo n° 1, Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS),
1803-1806. (Manuscrito); PSC. CPSJ. Livro de Batismo n° 2, FGSSAS, 1814-1818. (Manuscrito); PSC. CPSJ.
Livro de Matrimônio n° 1, FGSSAS, 1788-1809 (Manuscrito).

O que primeiro nos chama atenção é a quantidade de padres que atuaram na


Freguesia do Seridó durante o nosso recorte (1788-1818). Ao todo, obtivemos um total
de 61 padres. Tal dado, mesmo se tratando de um período de trinta anos, ainda é uma
quantidade considerável. Ainda, na quinta linha da Tabela 1 localiza-se destacado em
negrito um campo denominado “Não indicado” que representa os registros em que o
nome do sacerdote que realizou a cerimônia não foi registrado, somando um total de
165 casos. Percebe-se que muitos registros tiveram ausentes o nome dos sacerdotes,
o que aumenta ainda mais o vácuo em nossas pesquisas. Tais registros poderiam
acrescentar ainda mais nomes à quantidade de padres atuantes na freguesia, assim
como a frequência do trabalho realizado por eles. Desse modo, fica claro que a
Freguesia do Seridó obteve a assistência de muitos sacerdotes no período analisado.
Para esse fato podemos discutir alguns pontos se considerarmos os dados com
mais cuidado. Em primeiro lugar, percebe-se que mesmo apresentando um alto número
de padres que atuaram em nosso recorte, a grande maioria destes realizaram poucas
cerimônias. Apenas 11 padres dos 61 realizaram mais de vinte cerimônias no período de
trinta anos; destes, apenas 5 realizaram mais de 100 cerimônias no período e, sem

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
232

dúvida, o que chama mais atenção, cerca de 24 padres atuaram apenas uma única vez.
O gráfico abaixo traz uma representação dessa ideia que acabamos de citar e nos
ajuda a transmitir de forma efetiva esses dados. Vamos às explicações acerca deste.
Primeiramente dividimos todos os dados da tabela em quatro grupos, cada um
representado por uma cor. Cada grupo representa um número de padres e a quantidade
de cerimônias que realizaram; os números presentes no gráfico referem-se ao padre
daquele grupo que realizou mais cerimônias e o que realizou menos. Por exemplo, no
primeiro grupo, representado pela cor azul, o padre que realizou mais cerimônias
somou um total de 466, enquanto que o que realizou menos somou 118, logo a legenda
que intitula o grupo é 466 a 118. O número em parênteses ao lado refere-se a quantos
padres constituem aquele grupo, no caso deste do exemplo, são 5 padres. Logo, o grupo
azul é constituído por 5 padres, sendo que destes, o que mais atuou em cerimônias de
batismo ou casamento, o fez 466 vezes e que menos atuou o fez 118 vezes. Já os demais
padres do grupo realizaram um número de atuações que ficam entre esses dois valores.

Gráfico 1: Cerimônias de batizado e casamento realizadas na Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa


Ana do Seridó (1788-1818), em relação ao número de sacerdotes que as realizaram.

61 padres e 2028 registros

2%
3%
8%

13%
466 a 118 (5)
61 a 11 (10)
10 a 3 (12)
74% 2 a 1 (35)
Não indicados

Fonte: Elaboração de Isac Medeiros a partir de Paróquia de Sant’Ana de Caicó (PSC). Casa Paroquial São
Joaquim (CPSJ). Livro de Batismo n° 1, Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS),
1803-1806. (Manuscrito); PSC. CPSJ. Livro de Batismo n° 2, FGSSAS, 1814-1818. (Manuscrito); PSC. CPSJ.
Livro de Matrimônio n° 1, FGSSAS, 1788-1809 (Manuscrito).

Seguindo a ideia anteriormente verificada com o auxílio da tabela, ao analisar o


gráfico pode-se constatar que a grande maioria das cerimonias cristãs realizadas no

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
233

período de 1788 a 1818 foram feitas por apenas 5 padres (grupo azul escuro),
responsáveis por 74% das 2028 ocorridas no recorte154. Em seguida, o grupo vermelho
(contendo 10 padres) caracteriza o segundo grupo de sacerdotes mais atuantes, onde
o reverendo que mais atuou somou 61 registros e o que menos atuou somou 11,
convertendo 13% das cerimônias ocorridas na freguesia. Seguindo a mesma lógica dos
grupos anteriores, o grupo verde é constituído por 12 sacerdotes que juntos realizaram
apenas 3% das cerimônias do período. O grupo roxo, formado pelo maior número de
padres (cerca de 35), concebeu apenas 2% das cerimônias ocorridas na Freguesia do
Seridó no período analisado, e, por último, o grupo azul claro, formado pelos registros
que não apresentaram os padres realizadores das cerimônias (não indicados) somaram
8%.
Deste modo, percebe-se um contraste a respeito da cristianização da Freguesia
da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó. O grupo155 composto por menos padres
apresentou o maior número de cerimônias realizadas, em contrapartida o grupo que
tinha mais padres em sua formação apresentou o menor número de cerimônias
realizadas156. Com isso, pode-se ver que as cerimônias de batismo e casamento, quando
se trata da freguesia analisada nesse estudo, ocorriam, em grande parte, feitas por um
pequeno grupo de padres que atuavam tanto em locais fixos – nesse caso, na matriz e
em capelas da região – quanto pelo território da freguesia – sítios e fazendas. Os padres
em questão são: Francisco de Brito Guerra (466)157; Manuel Teixeira da Fonseca (375);
José Antônio Caetano de Mesquita (275); Inácio Gonçalves Melo (261) e André Vieira de
Medeiros (118). São estes, portanto, os padres que mais atuaram no território da
Freguesia do Seridó no período em questão158.
Um fato que poderia justificar essa maior presença desses padres nos registros
paroquiais, seria por exemplo: a região de atuação dos mesmos poderia situar-se nos
maiores centros de povoação da freguesia e, portanto, sendo esses os locais que mais

154 Nesse caso, cada cerimônia é relacionada a um registro paroquial, sendo este o documento que atesta
a realização do ato de fé.
155 Importante deixar claro que esse agrupamento é feito por nós como forma de melhor analisar os

dados.
156 Essas informações dizem respeito aos dados analisados até o momento, afinal, como já foi

mencionado, existem lacunas na documentação que geram alguns vácuos na pesquisa.


157 O número em parênteses representa o total de registros que o padre aparece realizando uma

cerimônia de batismo ou casamento no recorte aludido.


158 Obviamente, quando falamos em “atuação”, nos referimos aos termos concebidos pelo processo

metodológico dessa pesquisa, logo, levando em consideração apenas os dados presentes nos registros
de batismo e casamento mencionados.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
234

ocorreriam essas cerimônias, o que explicaria um número tão maior que os demais. No
entanto, essa é apenas uma hipótese, já que mediante o tempo destinado a essa
pesquisa, ainda não conseguimos cruzar os dados que nos permitiriam afirmar tal
constatação com mais certeza.
Em relação ao grande número de padres que realizaram poucos registros,
obviamente não consideramos que isso seja algo normal para a freguesia. Como o
gráfico apresentou, foram 35 padres que realizaram apenas uma ou duas cerimônias,
só que se aguçarmos o nosso olhar para essa análise e voltarmos nossa atenção
novamente para a Tabela 1 podemos perceber que se somarmos a estes o número de
padres que realizaram até 5 cerimonias, o resultado sobe para 43. Portanto, para um
período de trinta (30) anos, são muitos padres atuando em poucas cerimônias e este é
um dado que merece nossa atenção. Uma hipótese para isso que temos até um
momento pode se referir as festas religiosas que poderiam atrair um maior número de
sacerdotes em algumas épocas específicas do ano, ocorridas nas povoações da
freguesia. Isso talvez explicasse um pouco essa situação. Também, a partir da Tabela 1
podemos perceber que alguns padres não pertenciam à Freguesia do Seridó (são
aqueles destacados de vermelho)159 o que contribui para essa ideia. Porém, como dito
anteriormente é apenas uma hipótese, uma questão a mais para tentarmos responder
futuramente.
O fato é que tanto a tabela quanto o gráfico acima nos permitem pensar um
pouco sobre como ocorria a cristianização referente a batismos e casamentos na
Freguesia do Seridó. A partir dos dados apresentados, durante o período de 1788 a 1818
a freguesia possuiu um grupo principal de sacerdotes dispostos na matriz e capelas da
região160, ao mesmo tempo estes também ofereciam assistência espiritual nas
fazendas e sítios da freguesia. Porém, também se percebe a existência de vários outros
sacerdotes que ofereciam apoio na manutenção da fé. Dentre esses padres, alguns
pertenciam à Freguesia do Seridó e outros estavam apenas de passagem pela região.

159 Estes são casos em que na própria fonte – registros paroquiais – eles estão mencionados como vindos

de outra freguesia e que estariam de passagem. Com o cruzamento com outras fontes acreditamos poder
descobrir mais desses exemplos.
160 Em relação a esse grupo de padres principais que citamos aqui é importante esclarecer que não nos

referimos apenas aos cinco padres mais atuantes citados anteriormente. Se observarmos a tabela,
outros padres tiveram quantidades expressivas de registros. Ainda mais, a quantificação é apenas o
primeiro passo para se perceber essa diferença da norma. Uma pesquisa de cunho mais qualitativo, a
partir do cruzamento com outros documentos será realizada futuramente para termos uma melhor visão
acerca dessa situação.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
235

Logo, se pode notar, mesmo que minimamente e ainda de forma muito geral, a
existência de uma rede entre esses sacerdotes, onde um substituía o outro em casos
de ausência, ao mesmo tempo em que se organizavam para dar conta da manutenção
da doutrina cristã no vasto território da Freguesia do Seridó. Ao olhar para os registros,
percebe-se que esses padres se movimentavam pelo território durante o ato de
cristianização, iam se dividindo, revezando-se entre a matriz, capelas, sítios e fazendas
da região. Ao mesmo tempo, documentavam nos registros paroquiais os locais que
passavam o que permite que hoje, a partir desses documentos, possamos observar o
que Helder Macedo chama de “cartografias da fé” 161. As desobrigas, objeto de análise
desse estudo, referem-se a esses trajetos que podem nos ajudar a entender melhor a
forma em que se ajustava o território da Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana
durante o período temporal aqui analisado.
Neste caso, outro ponto que merece nossa atenção trata-se justamente dos
locais em que ocorriam essas cerimônias de batismos e casamentos. Elas eram mais
comuns nos templos religiosos (matriz e capelas) ou pela freguesia (sítios e fazendas)?
Qual era a realidade nesse aspecto para o nosso recorte? São essas questões que
tentaremos responder agora. Os registros paroquiais também nos dão informações a
esse respeito. O registro oferece, dentre vários dados, o lugar em que ocorreu a
cerimônia, revelando a matriz, capela, sítio ou fazenda específicas em que ocorreram os
atos de fé. No entanto, para essa parte específica de nossa análise, optamos por deixar
de lado – pelo menos por hora – os nomes desses locais e separamos esses dados
apenas em templos religiosos (matriz e capelas), pela freguesia (sítios e fazendas) e
não indicados (casos em que a exemplo do que ocorreu com os padres, não foi

O autor utilizou primeiramente a expressão cartografia da fé em sua monografia de graduação, com o


161

objetivo
de referir-se ao território formado a partir da produção do espaço pela ação da Igreja Católica no período
colonial, resultando na constituição da freguesia enquanto unidade administrativa. Porém voltou a usar
sobre o mesmo significado em sua dissertação de mestrado e tese de doutorado. Ver respectivamente:
MACEDO, Helder
Alexandre Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços: relações interétnicas na Freguesia da
Gloriosa
Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX. 2002. 169f. Monografia
(Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2002. p. 90-5; MACEDO,
Helder Alexandre Medeiro de. Ocidentalização, territórios e população indígenas no sertão da capitania
do Rio Grande. Dissertação (mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal,
RN, 2007; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no
sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
236

registrado o nome do local onde ocorreu a cerimônia). O gráfico abaixo organiza a


apuração desses dados, representados pelas cores azul, vermelho e verde,
respectivamente.

Gráfico 2: Locais em que ocorreram as cerimônias de batismo e casamento na Freguesia da Gloriosa


Senhora de Santa Ana do Seridó (1788-1818)

Onde ocorriam os atos de fé (2028


registros)

11%
Matriz/Capela
27% Pela Freguesia
62% Não Indicados

Fonte: Paróquia de Sant’Ana de Caicó (PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Batismo n° 1,
Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1803-1806. (Manuscrito); PSC. CPSJ. Livro
de Batismo n° 2, FGSSAS, 1814-1818. (Manuscrito); PSC. CPSJ. Livro de Matrimônio n° 1, FGSSAS, 1788-
1809 (Manuscrito).

O Gráfico 2 nos mostra que a maioria das cerimônias, mais especificamente 62%
– de 2028 ocorridas no período de 1788 a 1818 – foram realizadas em templos
religiosos, enquanto que 27% aconteceram nos sítios e fazendas da freguesia e 11% não
foram registrados os locais de realização desses atos de fé. Deste modo, percebe-se
que, para a realidade de nosso recorte, era mais comum que essas cerimônias
ocorressem na matriz e capelas da região, o que reforça a ideia inicial apresentada
nesse artigo de que esses templos eram construídos em locais de mais acessibilidade
para a população das povoações da freguesia. Porém, os 27% referentes às cerimônias
ocorridas “pela freguesia162” ainda sim é um número importante a se pensar, pois faz

Trata-se de uma categoria nossa que utilizamos para se referir as cerimônias que não ocorreram na
162

Matriz ou em capelas nas povoações, ou seja, todas aquelas realizadas nos sítios, fazendas, serras e
outras espacialidades presentes no território circunscrito à freguesia.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
237

menção a uma população que dependia das desobrigas para realizar rituais
importantes da doutrina cristã, o batismo e casamento, considerados sacramentos
essenciais para a religião. Os 11% de registros que não ofereciam essa informação aqui
analisada, obviamente aumentam o hiato das nossas pesquisas e certamente criam
lacunas, no entanto não chega a influenciar nos resultados mencionados acima, visto
que hipoteticamente, mesmo que todos esses documentos fossem referentes à “pela
freguesia”, ainda assim, não ultrapassaria o número de cerimônias realizadas em
templos.

* * *

Pudemos analisar, nesse artigo, informações acerca dos padres e suas atuações
ligadas às cerimônias de batismo e casamento realizadas na Freguesia da Gloriosa
Senhora Santa Ana do Seridó, durante o período de 1788 a 1818. Em resumo, discutimos
que a Freguesia do Seridó tratava-se de uma área de características notadamente
rurais, logo, se constituía de um conjunto de povoações que reuniam fazendas e sítios
em seu entorno e que tinha como centro a Vila Nova do Príncipe. Essas povoações
possuíam templos religiosos que eram construídos estrategicamente em locais de
maior acessibilidade para a maioria dos fiéis da região. No caso da Vila Nova do Príncipe,
local sede da freguesia, era lá que localizava-se a Matriz de Sant’Ana. No entanto,
mesmo assim, nem toda a população tinha condições de frequentar esses templos,
como alternativa a isso, os padres realizavam os atos de desobriga ao saírem pelo
território da freguesia realizando os atos de fé.
Deste modo, a realização de cerimônias no território da Freguesia do Seridó
ocorria a partir dessa dualidade, entre os templos religiosos e pela freguesia. O primeiro
caso era o mais comum reunindo 62% do total das cerimônias do período analisado,
visto os fatores apontados, no entanto, o segundo caso (27%) também apresentava
importância em relação à assistência espiritual de uma parcela significativa da
população.
Em relação aos padres, apesar de ser identificado um grande número de
sacerdotes, 61 para ser mais preciso, grande maioria desses agiam como suporte a um
grupo principal de padres que cuidavam do aprisco religioso da freguesia. Esses padres
possivelmente formavam uma rede que se organizava nos revezamentos entre matriz,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
238

capelas, sítios e fazendas da sede e povoações da freguesia. Em relação às desobrigas,


o movimento dos padres pelo território ocorreu durante todos os meses do ano e não
somente durante o período da quaresma, de modo que a desobriga, para fins de análise
desse estudo é entendida sobre esses termos, ou seja, os rituais religiosos ocorridos
nos sítios e fazendas da freguesia, independente do período do ano em que ocorriam.

REFERÊNCIAS
AUGUSTO, José . Seridó. Brasília: Centro gráfico do senado federal, 1980.

BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: revisitando alguns aspectos primordiais


para a Pesquisa Histórica. Mouseion, Canoas, n. 12, mai/ago. 2012.

BASSANEZI, María Silvia. O historiador e suas fontes. In:______Os eventos vitais na


reconstituição da história. São Paulo: Contexto, 2010.

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Rio de Janeiro:
Achiamé; Natal: Fundação José Augusto, 1984.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 1. As artes de fazer. Petrópolis: Vozes,


1994.

COSTA, Renata Assunção da. Porta do céu: o processo de cristianização da Freguesia


de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714). 11 de Setembro de 2015. 179 f.
Dissertação – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-
Graduação em História. Natal, 2015.

DAMASCENO, Cláudia. Arraias e vilas d’el rei: espaços de poder nas Minas
setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

DANTAS, Dom José Adelino. Homens e fatos do Seridó Antigo. Natal, RN: Sebo
Vermelho Edições, 2008. [primeira edição: 1959]

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989a.

GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In:


______. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989b. p. 169-191.

LAMARTINE, Oswaldo. Sertões do Seridó. Brasília: Cento Gráfico do Senado Federal,


1980;

LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 2.ed. Natal: Fundação
José Augusto; Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1982.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
239

LOPES, Fátima Martins. Missões Religiosas: Índios, Colonos e Missionários na


colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. 1999. 210p. Dissertação de Mestrado
(História do Brasil) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiro de. Ocidentalização, territórios e população


indígenas no sertão da capitania do Rio Grande. Dissertação (mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2007.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias


mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Estado das almas: população, família e educação
escolar no Rio Grande do Norte colonial (século XVIII). In: Revista Educação em
Questão, v. 41, n. 27, Natal, jul./dez. 2011, p. 244-268.

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: Patrimônio e cotidiano familiar


nos sertões da pecuária. (Seridó - Século. XVIII). Natal, RN: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.

M. D. Hameister, op. Cit.; S. O. Nadalin, João, Hans, Johann, Johannes: dialética dos
nomes de batismo numa comunidade imigrante, em Revista História Unisinos, São
Leopldo, 2007.

MEDEIROS FILHO, Olavo. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do


Senado Federal, 1983.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1983.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró: Fundação Guimarães


Duque/Fundação Vingr-Un Rosado, 2002 (Mossoroense, Série C, v.1268).

MONTEIRO, Denise de Mattos. Balanço da historiografia norte-rio-grandense. In:


ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da (Org.). Anais do I Encontro Regional da ANPUH-
RN: O ofício do historiador, 23 a 29 de maio de 2004, Natal, RN/ Associação Nacional
de História: EDUFRN Editora da UFRN, 2006.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, Roberto Sousa. A reestruturação sociorreligiosa em Sergipe, no final do


século XVIII. Dissertação (estrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Natal, RN, 2010.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; LINHARES, Maria Yedda L. Região e história
agrária. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 4, 1995.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
240

SOUZA, Marcelo Lopes. O território: sobre espaço e poder. Autonomia e


desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA,
Roberto Lobato (orgs). Geografia: conceitos e temas – Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
1995.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.

ZANON, Dalila. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, 2002. Editora UFPR, p.
219-250.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
241

SOBRE A VIDA, PELAS ALMAS: O USO DE FONTES PAROQUIAIS


NA CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA LOCAL
(SERTÕES DO SERIDÓ, SÉCULOS XVIII-XIX)

Maria Alda Jana Dantas de Medeiros163


Orientador: Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo164

INTRODUÇÃO
O presente trabalho incorpora-se ao Projeto de Pesquisa Histórias dos Sertões
do Rio Grande do Norte e Paraíba, aprovado no Edital 01/2016 – PPG/PROPESq – Apoio
a grupos Emergentes para Criação de Programas de Pós-Graduação, cujo objetivo é
explorar, em múltiplas abordagens, as histórias dos sertões norte-rio-grandense e
paraibano, dentro de um vasto recorte temporal, que abarca desde o Holoceno até o
século XXI. Tal projeto desdobra-se em dois eixos de pesquisas: o primeiro eixo reflete
sobre o imaginário e as práticas culturais dos sertões, e o segundo aborda as tramas
sociais das relações sertanejas.
Integrada ao primeiro eixo, esta pesquisa é fruto do Plano de Trabalho Sertões
do Rio Grande do Norte e Paraíba: das sesmarias à territorialização do espaço, o qual
propõe examinar as ideias sobre o “sertão” presentes nos requerimentos para
concessão de sesmarias nos espaços sertanejos das Capitanias do Rio Grande do Norte
e da Paraíba (entre as décadas de 1650 e 1750) e nos inventários post-mortem da
Ribeira do Seridó (de 1737 a 1822).
Enveredamos, aqui, pelas as fontes eclesiásticas, admitidas como favoráveis
veículos para pensarmos sobre as sociedades do passado, especialmente por
possibilitarem um extenso leque de desdobramentos temáticos. Na Europa, o registro
de sacramentos em livros de assentos adquiriu natureza universal e padronizada a
partir das normas estabelecidas no Concílio de Trento (1545-1563), ainda que algumas
paróquias já registrassem matrimônios e batismos antes mesmo do século XVI (LUCA,
PINSKY; 2009). O referido concílio ecumênico foi convocado num quadro de
vulnerabilidade da cristandade, encadeada pela Reforma Protestante, movimento que

163 Discente do Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó - Brasil. Bolsista PPG/PROPESq
do Projeto História dos Sertões do Rio Grande do Norte e Paraíba (Edital nº 01/2016-PPG/PROPESq),
sob orientação do Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo. E-mail: aldajanamedeiros@gmail.com
164 Professor do Departamento de História do CERES-UFRN. E-mail: heldermacedox@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
242

desencadeou para a Igreja Católica a necessidade de conhecer e controlar seus


membros. Como instrumento para tal controle, a prática de registrar individualmente
cada católico passou a ser obrigatória e padronizada, materializada nos livros de
assentamentos das Curas. O ciclo da vida cristã passa, então, a ser documentado nos
registros de seus principais ritos de passagem: batizado, casamento e enterro
(MARCÍLIO, 2004).
As Constituições de Coimbra instauraram os registros paroquiais em Portugal
em 1591, práticas que foram reproduzidas nos domínios da Coroa no Novo Mundo. O
instituto do Padroado Régio na América Lusa outorgou às instâncias eclesiásticas
funções que excederam o caráter exclusivamente religioso e, bem como, contemplaram
esferas políticos-administrativas. Responsável por registrar todos os indivíduos que
nascessem, casassem e falecessem na colônia, a Igreja conseguia atingir uma
cobertura quase universal de toda a população – sendo, esta, uma característica que
infere aos registros paroquiais um teor de disseminação junto aos diversos grupos de
pessoas, uma vez que eles abrangiam diversos estratos sociais.
A partir de 1707, quando da criação das Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia, os registros ganharam uma regulamentação local, cujas normas seguiam as
determinações estabelecidas no Concílio de Trento (MARCÍLIO, 2004). Também
inspiradas em antigas experiências lusas, as freguesias da América portuguesa
atuavam como instrumentos burocráticos; cuidavam das almas, e, outrossim, se
encarregavam dos corpos (MACEDO, 2007).
Neste quadro, refletimos sobre o uso da documentação paroquial como subsídio
para construção de uma História Local, de modo a ponderar sobre como os registros
dos ritos de passagem da vida privada podem ser suportes para análises acerca de um
perfil demográfico da sociedade estudada. Para pensarmos sobre essa questão,
utilizamos como estudo de caso a povoação do Jardim das Piranhas, espaço hoje
representado pelo município de Jardim de Piranhas-RN, localizado na região do Seridó
norte-rio-grandense.
A povoação, gênese do município, surgiu como efeito de um processo de
territorialização sucedido nas margens do rio Piranhas, durante os séculos XVIII e XIX.
A princípio, a povoação era vinculada à Capitania da Paraíba do Norte, como termo da
Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó, todavia, se integrou às
circunscrições da Capitania do Rio Grande em 1788, quando passou a ser integrante do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
243

termo da Vila Nova do Príncipe, sede da Freguesia do Seridó. A comunidade constituída


pelas famílias que haviam se fixado ao redor do rio Piranhas foi alçada ao nível de
povoação quando do surgimento de uma capela erguida na chamada fazenda Jardim,
no século XVIII. Sob o culto de Nossa Senhora dos Aflitos, o pequeno templo religioso
marcou a representação de um núcleo urbano, administrativo e espiritual, instituição
onde os moradores puderam consagrar seus ritos de passagem (MEDEIROS, 2017).
Estes ritos, por sua vez, foram registrados nos livros de assentos religiosos mais
antigos da Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó, nossas primordiais
fontes, atualmente conservadas na Casa Paroquial São Joaquim, da Paróquia de Santa
Ana de Caicó. O rol de documentação é composto por três livros de assentamentos de
batismos (1803-1806, 1814-1818, 1818-1822), que contém, ao todo, 3012 registros; dois
livros de casamentos (1788-1809, 1809-1821), que somam o total de 1166 registros; e,
por fim, dois livros de assentos de enterros (1788-1811, 1812-1838), que apresentam,
juntos, 2249 sepultamentos registrados. Estas fontes foram acessadas principalmente
através dos bancos de dados do projeto de pesquisa, construídos no software
Microsoft Access, produtos das pesquisas de Muirakytan Macêdo e Helder Macedo e
suas equipes.
Dentro da numerosa quantidade de registros, buscamos naqueles
correspondentes à povoação do Jardim das Piranhas, os ritos consagrados na Capela
de Nossa Senhora dos Aflitos durante os anos de 1788 a 1838. Trabalhamos, desse
modo, com 199 registros de assentamento de batismos, 50 registros de matrimônio e
110 registros de enterros. Por meio do levantamento, leitura e análise quanti-qualitativa
dessa documentação, buscamos destrinchar o que as fontes poderiam nos informar
acerca da população da povoação.
Alusivo às nossas contemplações teórico-metodológicas, consideramos as
reflexões da História Local, na qual assumimos a relevância da possibilidade de outros
referenciais, temas e abordagens que não sigam apenas os caminhos construídos pelos
fundamentos eurocentristas. Reconhecendo que a história pode também se alicerçar
em aspectos sui generis, os estudos em nível local expõem elementos que são
inalcançáveis em abordagens sistemáticas (NEVES, 2002). Outrossim, nos inspiramos
no instrumental teórico da Demografia Histórica, onde se destacam as figuras dos
intelectuais franceses Michel Fleury e Louis Henry, graças às suas contribuições sobre
o uso de registros paroquiais como base de dados para alcançar sociedades pretéritas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
244

Através da documentação eclesiástica, se torna possível estabelecer taxas de


fecundidade, natalidade, nupcialidade e mortalidade e, assim, tecer apontamentos
sobre a demografia do passado. Além disso, a Demografia Histórica abriu um leque de
possibilidades de estudos sobre as sociedades, de maneira a contemplar mentalidades,
comportamentos e sensibilidades do passado (MARCÍLIO, 2004).

NASCER PARA A IGREJA: REGISTROS DE BATISMOS


A datar do século XII, a Europa medieval passou a admitir que as crianças que
faleciam sem o batismo eram destinadas a um lugar específico na geografia do além: o
limbo das crianças, que, junto ao purgatório e ao limbo dos patriarcas, formavam o
espaço intermediário entre o paraíso e o inferno. Isto pois o sacramento inicial era
indispensável à salvação e, mesmo que não sofressem as punições corporais no
inferno, as almas sem batismos recebiam a maior das punições: a privação de Deus,
afastadas do gozo celeste. Sem o rito, “ninguém pode ser considerado membro da
sociedade cristã aqui embaixo, e ninguém poderia ser integrado à Igreja celeste no
além” (BASCHET, 2009, p. 405).
Percebemos, então, o lugar que a cerimônia batismal ocupa na cristandade, a
importância da passagem da vida pagã para a cristã, a partir do recebimento dos santos
óleos. O batizado, primeiro rito da vida privada, para além da importância espiritual,
também era influente nas tramas sociais, no tocante às relações com os padrinhos.
Cada rito demandava um livro exclusivo para registro de seu sacramento:

De acordo com as normas estabelecidas pelo Concílio de Trento, na ata


de batismo deveriam constar: data do evento, nome completo do
batizando, nome dos pais, filiação legítima ou ilegítima, local de
residência dos pais ou responsáveis, o nome de pelo menos um
padrinho (melhor dois), a assinatura do sacerdote (LUCA; PINSKY,
2009, p. 147)

Casos de crianças ilegítimas ou abandonadas (expostas) também deveriam ser


informados. Além disso, nos documentos manuseados referentes à povoação do Jardim
das Piranhas, encontramos igualmente informações acerca das “qualidades” e
condições das crianças e de seus progenitores.
Diferente dos demais livros de assentos, os registros de batismos da Freguesia
de Santa Ana só começam no século XIX, deixando lapsos sobre as populações que
viviam na Ribeira do Seridó no século anterior. Durante o período de 1802 a 1822

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
245

(considerando a lacuna existente entre os anos de 1806-1814), foram realizados 199


batismos na Capela da Povoação do Jardim das Piranhas.
Como previamente mencionado, a cobertura universal da população que os
registros dispõem propiciam dados que podem ser utilizados para análises sobre os
fenômenos demográficos vitais das sociedades do passado. É possível, com isso, suprir
a ausência de censos demográficos do período e estabelecer dados estatísticos sobre
a fecundidade, natalidade, nupcialidade e mortalidade. A respeito disso, constatamos
que dos 199 indivíduos que foram batizados na Capela do Jardim, 112 eram do sexo
masculino e 87 do sexo feminino.
Nos registros, ao observarmos as averbações dos sacerdotes, pudemos fazer
um levantamento dos batismos a partir das “qualidades” e condições das crianças,
conceitos estes que trabalhamos a partir das considerações de Eduardo Paiva (PAIVA,
2015)165.
No recorte temporal trabalhado, 94 dos indivíduos batizados na capela do Jardim
das Piranhas eram brancos, sendo este o grupo de maior expressividade numérica nos
dados computados166. Entre 1803 e 1806, quatro batizandos foram declarados como
escravos, condição que se repetia para seus pais – além do mais, podemos entender a
condição de “escravo”, valendo as ressalvas de tempo e espaço, como, provavelmente,
sinônimo de negro e/ou preto (PAIVA, 2015). Em 1804, foi batizado na Capela de Nossa
Senhora dos Aflitos o índio Lino, o único expressivamente designado como tal na
povoação. Este caso é, por sinal, um dos oito batismos de índios que foram realizados
na Freguesia do Seridó durante o período de 1803 e 1806 (MACEDO, 2007).
Um número considerável das atas não relatam as “qualidades” dos sujeitos
nitidamente, mas apresentam apenas siglas que nos dão margens para
cautelosamente refletirmos sobre as probabilidades. É o caso dos 58 batizandos que
receberam a “qualidade” “P”: a partir disso, cogitamos as possibilidades de se tratar
das “qualidades” “preto” ou “pardo”, admitindo, porém, maior probabilidade de fazer
referência à ultima, dada a superioridade numérica dos pardos nos livros de assentos
da Freguesia do Seridó. Segundo Macedo, dos 1.064 batizados registrados no Seridó
entre 1803 e 1818, 41,92% eram de pardos, frente a 39,94% de brancos (MACEDO, 2013).

165 Exclusivamente devido aos lapsos que encontramos na documentação sobre as “qualidades” e as
condições, optamos por considerar ambas em um só levantamento, pois, em caso de distinção, os dados
seriam incipientes para a análise, uma vez que poucas atas de batismo apresentam os dois elementos.
166 Desconsideramos os 29 registros que não expressavam nem a “qualidade”, nem a condição.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
246

Ainda no universo das siglas, oito indivíduos foram descritos como “NC”, o que
supomos poder ser “negro cativo” ou “nação Congo”. O que pudemos observar é que
todos os batizandos que receberam tal definição estavam incorporados ao mundo da
escravidão, em razão de seus progenitores. É o caso de Marcelina, batizada em 1820,
cujos pais João e Luiza eram pretos e escravos, bem como, Domingos, natural de
Angola, já atribuído à condição de escravo quando recebeu os santos óleos em 1821,
filho de Manoel e Mariana, escravos. Os sujeitos que foram designados pela sigla “PC”
(“pardo cativo”; “preto cativo”?) também estavam ligados à escravidão, devido à
condição de suas mães.

UNIDOS OS CORPOS, UNIDAS AS ALMAS: REGISTROS DE MATRIMÔNIOS


Sendo o segundo importante rito da vida privada, o casamento simbolizava o
início da vida adulta. Os registros de matrimônios eram documentados também em um
livro específico, seguindo as normas postuladas no Concílio de Trento, e deveriam
constar

a data do casamento, o nome de cada cônjuge e sua filiação, residência,


naturalidade, além dos nomes dos padrinhos, com suas residências e
naturalidades, e a assinatura do sacerdote. [...] exigia-se, se fosse o caso,
a declaração de viuvez do cônjuge, com o nome do primeiro(a)
esposo(a); era ainda necessário mencionar se os cônjuges estavam
incursos nos impedimentos graves ou leves determinados pelo Código
Canônico, da Igreja Católica (como por exemplo, parentescos
consangüíneos ou espirituais). Neste caso, o matrimonio só se daria
após um dispendioso processo de solicitação de dispensa dos
impedimentos, dado pelo Bispo local. Essa dispensa deveria ser
mencionada no registro de matrimonio, assinalando-se os graus de
parentesco entre os cônjuges (MARCÍLIO, 2004, p. 13-14).

Em algumas atas, nos deparamos com uma fartura ainda maior de informações,
como o nome das testemunhas e as “qualidades” e condições dos nubentes. No que
concerne à povoação do Jardim das Piranhas, trabalhamos com 50 uniões
sacramentais realizadas no período de 1790 a 1821, na Capela da povoação.
A primeira linha que seguimos para explorarmos esses registros igualmente
partiu das “qualidades” e condições dos indivíduos que contraíram núpcias na povoação.
Durante o período de 1788 a 1809, dos 537 matrimônios celebrados na Freguesia de
Santa Ana, 91,79% envolviam nubentes do mesmo grupo social, enquanto 8,21% das
uniões eram firmadas entre indivíduos de grupos distintos. Neste mesmo universo, 463

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
247

dos casamentos envolviam pessoas brancas (MACEDO, 2007). Na Povoação do Jardim


das Piranhas, excluindo os 16 casos nos quais não foram indicadas as “qualidades” e/ou
condições, encontramos maior recorrência de casamentos entre sujeitos brancos,
configurando um total de 21 uniões, seguido das uniões entre pardos, com 8 casos.

Gráfico 1 - Matrimônios por "qualidade"/condição, Capela de Nossa Senhora dos


Aflitos do Jardim das Piranhas (1788-1821)

22

20

18

16

14

12

10

Fonte: Elaboração da autora a partir de livros de assentos de casamento da Freguesia da Gloriosa


Senhora de Santa Ana do Seridó (1788-1821). Universo amostral composto por 50 uniões matrimoniais.
Não foram computados os registros sem indicação de “qualidade” e condição (16).

De modo mais pontual, encontramos alguns registros que não mencionavam a


“qualidade” de um dos nubentes. É o caso do matrimônio celebrado na capela da
povoação em 1799, entre José Nicácio Pereira, índio, vindo do Acaracu (Capitania do
Ceará) e Ana Maria, cuja “qualidade” desconhecemos. Ainda assim, sabemos que, no que
concerne às relações de ameríndios, “a maioria dos casamentos se dava entre os
próprios indígenas (34%), seguidos das uniões entre índios e mestiços (31%) e aqueles
em que um dos nubentes era negro (17%)” (MACEDO, 2013, p. 136). Ainda sobre isso, é
pertinente pensarmos sobre a presença de indígenas nos livros de assentos religiosos
da Freguesia de Santa Ana, e em como isso elucida a permanência de nativos na Ribeira

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
248

do Seridó. Incorporadas, pela ocidentalização, ao cristianismo, as populações


ameríndias vivam conjuntamente com brancos, negros e “mestiços” (MACEDO, 2007).
Escravos e libertos também contraíram núpcias no Jardim das Piranhas.
Citamos, a exemplo, o matrimônio celebrado em 1802 entre os escravos crioulos João
e Josefa, ambos parte do plantel de Dona Joana Batista.
Conforme as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,

o matrimônio de escravos com pessoas cativas ou livres era um “direito


divino e humano”. Além de afirmar que os senhores não poderiam
proibir-lhes o matrimônio, defendiam a indissolubilidade da família, de
forma que os casais não poderiam ser separados na venda do plantel.
Os argumentos em favor desse tipo de casamento eram que os
escravos continuariam a servir seus senhores da mesma forma e que
reproduziriam a escravaria sobre o abrigo das normas cristãs (apud
MACÊDO, 2007, p. 224).

Os matrimônios entre escravos na Povoação do Jardim das Piranhas geralmente


ocorriam entre indivíduos que pertenciam a um mesmo proprietário. Na Freguesia de
Santa Ana, durante 1788 a 1811, os casamentos entre pessoas de cor ocorreram,
primordialmente, entre escravos (72%), seguido pelas uniões entre homens escravos e
mulheres libertas (12%). Estrategicamente, uniões dessa ordem eram favoráveis para
os senhores, uma vez que a mulher liberta era incorporada à dinâmica de trabalho do
marido escravo, agregando, assim, mão-de-obra para o plantel (MACÊDO, 2007). Casos
como esses aconteceram na povoação em 1806, quando o crioulo Antônio, escravo de
Dona Rosa Maria, se casou com Rosa Maria da Conceição, mulher liberta de Dona
Úrsula Josefa.
Outro aspecto que pode ser averiguado a partir dos registros é a procedência
dos nubentes que receberam os sacramentos do matrimônio da Capela de Nossa
Senhora dos Aflitos. Desses 100 indivíduos, apenas 9 não possuem indicação de
naturalidade, sendo a maioria natural da própria Freguesia do Seridó (60). Entretanto,
31 indivíduos adivinham de outros lugares, principalmente da capitania da Paraíba,
região que mantinha relações comerciais com a Ribeira do Seridó. Ainda na Capitania do
Rio Grande, aparecem a Freguesia do Açu (3), e Freguesia de São José (1), antiga missão
e vila indígena.
Depois da Freguesia de Santa Ana, o lugar de onde veio o maior número de
nubentes é a Freguesia do Pombal, com 13 indivíduos – possivelmente, isso se

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
249

relaciona com o fato da Povoação do Jardim das Piranhas ter sido, até 1788, termo da
Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó, Freguesia do Pombal. Da
Capitania da Paraíba do Norte, constam também a Freguesia da Campina Grande, de
Manguape, do Taipu, do Jardim do Rio do Peixe, da Areia, dos Patos, Paraíba (hoje, João
Pessoa), Nossa Senhora do Pilar do Rio Paraíba e Baía de São Miguel, cada uma com
um caso de naturalidade.
Em outras localidades, encontramos a Freguesia de Nossa Senhora do Ó de
Pojuca e a Freguesia do Cabo, ambas da Capitania do Pernambuco; Acaracu, Capitania
do Ceará; e a Freguesia de Antônio Freitas – cada lugar com um caso.

ENTRE O AQUI E O ALÉM: REGISTROS DE ÓBITOS


O terceiro e último rito vital dos fregueses correspondia à passagem da vida para
a morte. Para compreendermos o temor que a morte despertava nos indivíduos, basta
considerarmos que ela antecedia a justiça divina, momento em que a alma seria
encaminhada para a danação eterna do inferno, para a alegria paradisíaca ou para a
estadia transitória no purgatório. Já no século XI, a dualidade e as incertezas do além
influenciavam diretamente o comportamento dos cristãos, dilatando as práticas e as
ritualizações que envolviam os mortos, no intuito de salvar suas almas (BASCHET,
2009).
Para poder alcançar a beatitude do céu, era necessário, portanto, ter uma boa
morte, o que encadeava um dispendioso processo de preparação, algo que envolvia uma
considerável quantidade de missas, de padres; a cerimônia de enterramento, o local da
sepultura, as vestes funerárias e, dentre outros elementos, a encomendação da alma
ao Pai Eterno.
O medo do destino após a morte aparecia, com maior clareza, nos testamentos,
onde o fregueses iniciavam o momento preparatório para a passagem para o além,
apelando para a proteção de seus santos de devoção, na esperança da salvação de suas
almas. Geralmente, testamentavam os sujeitos que possuíam cabedal mais expressivo.
Em 1762, Manoel Gonçalves Rabelo testou no sítio Batalha, na povoação do
Jardim das Piranhas. Natural de Lisboa, o freguês detinha um patrimônio avantajado, a
julgar pelos bem listados em seu inventário post-mortem, de 1763. Em nome da
Santíssima Trindade, Manoel Gonçalves Rabelo, declarando estar em seu juízo perfeito,
fez seu testamento no desejo que sua alma caminhasse rumo ao paraíso, suplicando

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
250

sua salvação à Virgem Maria, a Jesus Cristo e “a todos os mais santos a quem tenho
devoção que queiram por mim interceder”167.

Outros cuidados que os indivíduos tinham com a passagem da vida para morte
apareciam nos próprios registros de óbitos, que indicavam

a data do falecimento, o nome do morto, seu estado civil. No caso de


solteiros, dever-se-ia nomear os pais, ou o fato de ter sido exposto ou
ser ilegítimo. No caso dos casados e dos viúvos(as), além desses dados,
era necessário indicar o nome do esposo(a). Em muitas paróquias
assinalava-se a naturalidade do morto, sua idade, e atividade que
exerceu. Em alguns casos indicava-se a causa da morte e se o morto
havia deixado testamento. As condições do enterramento vinham por
vezes mencionadas: tipo e cor da mortalha ou do caixão (século XIX) e
local do enterramento. Estes dados eram porém mais raros (MARCÍLIO,
2004, p. 15).

No caso dos registros da Povoação do Jardim das Piranhas, eram recorrentes as


informações sobre os materiais e as cores do hábito mortuário, dados ausentes apenas
em 8 das 110 cerimônias funerárias realizadas na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos,
entre 1788 e 1838.
Em análise sobre o guarda-roupa fúnebre dos moradores no Jardim das
Piranhas, a maioria dos indivíduos foram sepultados com vestimentas brancas,
totalizando 72 casos. O branco, além de ser a cor funerária em várias nações africanas,
detém também forte simbologia no cristianismo, principalmente, em relação ao pano
branco que envolveu o corpo de Jesus Cristo após sua morte. De tal forma, se espelhar
em Cristo excitava a fé da salvação, pois a vestimenta do corpo influenciava o destino
do espírito, e as mortalhas cumpriam a missão de proteger a alma na viagem para o
além (REIS, 1991).
Sete sujeitos usaram mortalhas pretas e cinco foram envoltos no hábito de São
Francisco, santo este frequentemente aludido nas cerimônias de sepultamento, por
estar associado ao ato de salvar almas do purgatório. As demais cores e tecidos que

167LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC). FUNDO DA COMARCA DE CAICÓ


(FCC). 1º CARTÓRIO JUDICIÁRIO (1ºCJ). Inventários post-mortem. Cx. 410. Inventário de Manoel Gonçalves
Rabelo. 1763.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
251

apareceram vestindo os finados foram azul, amarelo, seda, bretanha, borel, algodão,
cassa, linho e carmesim.
O trato empregado para se ter uma boa morte contemplava também a
preocupação com o lugar do sepultura. Ser enterrado em terra profana – ou não morrer
em terra firme – provocava forte pavor, pois implicava em tormentos para a alma. A
sepultura tinha que ser feita num espaço sagrado, por isso que por muito tempo os
corpos eram sepultados no próprio templo religioso. Sendo a igreja a morada do
Senhor, o corpo desfalecido se aproximava fisicamente das entidades divinas, além de
preservar uma conexão com os vivos, garantindo seu espaço na memória e nas orações
dos que permaneceram no mundo terrestre.
Por trás do enterramento dos defuntos, existia uma lógica classificatória sobre
o lugar da sepultura, o que João José Reis concebe como uma “geografia da morte”:

De um modo geral, pessoas de qualquer condição social podiam ser


enterradas nas igrejas, mas havia uma hierarquia do local e do tipo de
sepultura. Uma primeira divisão se fazia entre o corpo, parte interna do
edifício, e o adro, a área a sua volta. A cova do adro era tão
desprestigiada que podia ser obtida gratuitamente. Ali se enterravam
escravos e pessoas livres muito pobres. [...] sob o chão das igrejas os
mortos se dividiam de maneira que refletia a organização social dos
vivos (REIS, 1991, p. 175-176).

Assim, a localização da sepultura retratava o local social e econômico ocupado


pelo defunto enquanto vivo. Apenas 38 registros informam o lugar da sepultura dos
enterrados na Capela do Jardim das Piranhas. Há casos, ainda, de moradores que
faleceram na povoação, porém foram sepultados na própria matriz de Santa Ana, como
é o caso do já citado Manoel Gonçalves Rabelo, que em seu testamento declarou que
seu corpo deveria ser sepultado na matriz do Seridó, envolto no hábito de São
Francisco. Supomos que este trajeto da morte possivelmente dialogue com o status
social do Manoel Gonçalves Rabelo, o qual, como já mencionado, dispunha de
corpulento cabedal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
252

Gráfico 2 - Distribuição das sepulturas na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos


do Jardim das Piranhas
(1788-1838)

Corpo da capela Das grades para


13 cima
12

Do arco para dentro Das grades para


4 baixo
9

Fonte: Elaboração da autora a partir de Livros de assentos de óbitos da Freguesia da Gloriosa Senhora
de Santa Ana do Seridó (1788-1821). Universo amostral composto por 110 sepultamentos. Não foram
computados os registros sem indicação de local da sepultura (72).

O corpo da igreja correspondia à nave central do templo, região onde se deu o


maior número de sepulturas na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos. De forma geral,
o corpo abarcava a maioria da população, pessoas menos abastadas. Na cartografia da
morte, as expressões “acima” e “abaixo” indicavam a proximidade da sepultura com o
altar. Logo, quanto mais acima, mais prestigiado o falecido e maiores suas chances de
salvação, pois consequentemente também se estava mais próximo do Santíssimo
(SANTOS, 2005). Assim como o altar, o cruzeiro e a capela-mor eram os lugares mais
valorizados da igreja, separados do corpo pelo arco, espaço que separava as pessoas
de patrimônio mais opulento das menos privilegiadas. Em toda a Freguesia de Santana,
somente 40 pessoas brancas (das 545 sepultadas entre 1789 e 1811) conseguiram
pagar para serem sepultadas no cruzeiro (MACÊDO, 2007).
Os dados dos registros de óbitos também nos permitiram investigar aspectos
de ordem mais demográfica, como, por exemplo, a mortalidade por faixa etária dos
moradores da povoação.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
253

Gráfico 3 - Mortalidade por faixa etária, Capela de Nossa Senhora dos Aflitos do
Jardim das Piranhas (1788-1838)
26
24
22
20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
Menos de 1 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 61 a 70 71 a 80 81 a 90
1 ano anos anos anos anos anos anos anos anos anos

Fonte: Elaboração da autora a partir de Livros de assentos de óbitos da Freguesia da Gloriosa Senhora
de Santa Ana do Seridó (1788-1821). Universo amostral composto por 110 sepultamentos. Não foram
computados os registros sem indicação de idade (13).

O que atualmente é entendido como taxa de mortalidade infantil se manifestava


em altos níveis na povoação do Jardim das Piranhas, fenômeno que, inclusive, se
alastrava por toda a Freguesia de Santa Ana, na qual quase um terço dos 979 indivíduos
faleceram até 1 ano de idade, no período de 1788 a 1811 (MACEDO, 2007). Tal dado nos
direciona a refletir sobre as precárias condições médico-sanitárias do período, algo
ainda mais nítido quando averiguamos as causa-mortis registradas.
“Repentinamente”, “de vento”, “uma dor” são alguns dos imprecisos termos que
se apresentam como causas das mortes nos registros de óbitos referentes à Capela do
Jardim das Piranhas, ambiguidade esta que provavelmente decorria da inaptidão da
família ou do pároco em dar um diagnóstico apurado sobre os trespasses (LUCA,
PINSKY; 2009). Entre os 59 registros que indicaram a causa-mortis, as enfermidades
mais frequente foram maligna (febre tifoide ou malária)168, hidropisia (acúmulo de
líquidos no corpo), feridas, moléstia de parto, moléstia interior, mordida de cobra,
espasmo (convulsões), estupor (acidente vascular cerebral) e sarampo. Pontualmente,

168Por vezes, o léxico das doenças nos séculos XVIII e XIX não nos é inteligível. Em função disso,
consultamos as explicações que Olavo de Medeiros Filho fez sobre as moléstias mais presentes no
Seridó antigo (MEDEIROS FILHO, 2002).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
254

ainda encontramos moléstia de peito, moléstia gálicas, câmaras (desistiria


sanguinolenta), debilidade, defluxão, engasgo, facadas, icterícia, obstrução e rotura.
Citamos, em particular, os casos de Manoel de Souza e Raimundo Alves dos
Santos, sepultados na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos em 1833 e 1835,
respectivamente. Na documentação, encontramos “dentadas de piranhas” como causa-
mortis, algo que se relaciona com a própria etimologia do lugar. Isto pois o rio Piranhas
– que dá nome à povoação do Jardim das Piranhas –, era conhecido por seus volumosos
cardumes de piranhas, perigosos peixes carnívoros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vida privada dos cristãos – e daqueles imersos na teia do cristianismo – era
marcada por ritos de passagem que assinalavam as principais fases da vida:
nascimento, casamento e morte. Através dos batismos, matrimônios e sepultamentos
consagrados na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos nos séculos XVIII e XIX,
conseguimos refletir sobre a população da povoação do Jardim das Piranhas. A análise
se sobressaiu aos elementos da esfera religiosa e, igualmente, amparou considerações
sobre um perfil demográfico da povoação, por meio dos indicadores sociais, culturais e
econômicos fornecidos pela documentação, o que corroborou, assim, a construção de
uma História Local.
Para além do que brevemente discutimos aqui, o corpo documental que
utilizamos ainda nos possibilita caminhos que podem ser explorados para
contribuirmos com o conhecimento e a historiografia do município de Jardim de
Piranhas. Citamos, como exemplos de desdobramentos, estudos sobre os rituais
envolvidos das cerimônias de matrimônio, os impedimentos e as dispensas que
elucidam o parentesco (consanguíneo ou espiritual) entre alguns nubentes; o balanço
da época em que os matrimônios eram realizados e sua relação entre o calendário
religioso e o agrícola; e, dentre outras possibilidades, a análise sobre os sacramentos
que os falecidos recebiam na cerimônia funerária, cenários estes a serem observados
em trabalhos futuros.
A partir do crivo do historiador, as fontes paroquiais podem se constituir
enquanto trilhos para alcançarmos aspectos do passado e observarmos as sociedades
pretéritas mediante múltiplos ângulos. Seus costumes, comportamentos,
mentalidades, sensibilidades e particularidades aparecem, por vezes, nas entrelinhas,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
255

mas ainda permanecem sendo frutuosos sustentáculos para análises. São mulheres,
homens, brancos, negros, índios, “mestiços”, ricos e pobres que aparecem no palco
dessas séries documentais, nos possibilitando assistir as tramas do passado de
maneira quase democrática, ouvindo os murmúrios até dos que pouco tiveram voz.

FONTES
1. Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (1788-1857)
Paróquia de Santana de Caicó, Casa Paroquial São Joaquim, Caicó-RN
Livro de Batismos nº 1, 1803-1806.
Livro de Batismos nº 2, 1814-1818.
Livro de Batismos nº 3, 1818-1822.
Livro de Casamentos nº 1, 1788-1809.
Livro de Casamentos nº 2, 1809-1821.
Livro de Óbitos nº 1, 1788-1811.
Livro de Óbitos nº 2, 1812-1838.

2. Laboratório de Documentação Histórica


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ensino Superior do Seridó, Campus
de Caicó, Caicó-RN
2.1 Fundo da Comarca de Caicó, 1º Cartório Judiciário
Inventários post-mortem. Cx. 410. Inventário de Manoel Gonçalves Rabelo. 1763.

REFERÊNCIAS
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. Ed.
Globo. São Paulo, 2009.

HENRY, Louis. O levantamento dos registros paroquiais e a técnica de reconstituição


de famílias. In: MARCÍLIO, Maria Luíza (org.) Demografia Histórica: orientações
técnicas e metodológicas. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1977. p. 41-63.

LUCA, Tania Regina; PINSKY, Carla Bassanezi. O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009.

NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição


da história na crise da modernidade. Salvador: Arcádia, 2002.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. De como se constrói uma História Local:
aspectos da produção e da utilização no Ensino de História. In: ALVEAL, Carmen
Margarida Oliveira; FAGUNDES, José Evangelista; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo
da. (Org.). Reflexões sobre História Local e Produção de Material Didático. Natal:
EDUFRN, 2017. P. 57-81.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e populações


indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande. 2007. 309f. Dissertação (Mestrado
em História), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
256

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias


mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese
(Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar


nos sertões do Seridó (Séc. XVIII). 2007. 286f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

MARCÍLIO, Maria Luíza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Varia História,


v. 31, 2004, p. 13-20.

MEDEIROS, Maria Alda Jana Dantas de. Apontamentos sobre o processo de


territorialização da Ribeira do Piranhas (séculos XVIII e XIX). Caicó. 2017.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia seridoense. Mossoró: Fundação Guimarães


Duque, 2002.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. Companhia das Letras, 1991.

SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. Temp(I)o da Salvação: representações da morte e


ritos fúnebres no Seridó nos séculos XVIII e XIX. 2005. 182f. Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
257

DAS PATENTES AOS BENS MATERIAIS: USO DE INVENTÁRIOS


NA ANÁLISE DA VIDA MATERIAL
DOS POTENTADOS DO SERTÃO DO PIANCÓ
(CAPITANIA DA PARAÍBA DO NORTE, 1728-1773)
Larissa Daniele Monteiro Lacerda (UFCG/CFP)169
Orientador: Rodrigo Ceballos (UFCG/CFP)170

A ADMINISTRAÇÃO DO SERTÃO DO PIANCÓ E A DISTINÇÃO DE SEUS


ADMINISTRADORES
Por entre as frestas das poucas janelas que as casas de moradas do sertão do
Piancó possuíam adentramos a vida material dos seus primeiros povoadores. Passar
da porta da frente para dentro é condição que só cabe aos mais íntimos, por isso nos
contentamos em observar de longe ou, no máximo, nos achegarmos ao alpendre onde
os homens costumam conversar. São casas singelas, construídas em taipa caiada e
localizadas em sua maioria no campo, avizinhadas por seus currais e lavouras.
Os homens que conversam no alpendre das casas de taipa, sobre seus negócios
e interesses pessoais, são aqui considerados autoridades locais, aqueles que se
ocupavam dos cargos militares e jurídicos. Muitos dentre eles começaram a chegar ao
sertão do Piancó ainda em fins do século XVII, quando timidamente iam estabelecendo
os currais de gado.
O sertão do Piancó era uma extensa área que extrapolava os atuais limites da
Paraíba, abarcando partes do Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, formado por
outros sertões: Piranhas, Piancó, Rio do Peixe e Espinharas, Pajeú e Seridó (imagem 1).

169Discente do curso de Licenciatura Plena em História, Unidade Acadêmica de Ciências Sociais, UFCG,
Cajazeiras, PB. E-mail: ldmonteirolacerda@gmail.com
170 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado da Unidade

Acadêmica de Ciências Sociais, UFCG, Cajazeiras, PB. E-mail: rcovruski@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
258

IMAGEM 1: Possível delimitação espacial do sertão do Piancó171

A possibilidade de comunicação entre os sertões do Piancó garantia transito


livre aos transeuntes que, por entre seus corredores, iam do Estado do Brasil ao Grão-
Pará e Maranhão.172 Sua capilaridade possibilitava até mesmo ao gado que saía do Rio
Grande do Norte atravessá-lo e chegar aos mercados de carne verde e de carne seca no
Recife, de onde partiam rumo às Minas Gerais, sul da Bahia, Goiás e Mato Grosso, sem
precisar cruzar toda a Capitania da Paraíba do Norte.173
A fluidez por entre seus caminhos, onde transitavam homens abastados e
pobres, indígenas, escravos e animais, logo viria a ser alvo de um projeto colonizador
de organização social e administrativa, como forma de evitar os desmandos e garantir

171 SOARES, Maria Simone Morais. Formação da Rede Urbana do Sertão de Piranhas e Piancó da
Capitania da Paraíba Setecentista. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Centro de
Tecnologia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. 2012. p. 15.
172 Sobre a importância do sertão do Piancó para a manutenção do Caminho do Brasil: Cf.: MORAES, Ana

Paula. Entre mobilidades e disputas: O sertão do Rio Piranhas, Capitania da Paraíba do Norte, 1670-1750.
Tese (doutorado) – Programa de Pós-graduação em História Social, Centro de Humanidades da
Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2015. 301 f.
173 Sobre o mercado das carnes: Cf.: MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e

cotidiano familiar nos sertões do Seridó (séc. XVIII). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. Natal, 2007. p.123.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
259

a povoação da região. Nessas condições, estabeleceu-se uma série de aparelhos


institucionais, tanto de caráter militar quanto jurídico.
O primeiro aparelho criado foi o Corpo de Ordenança, estabelecido no Piancó
ainda em fins do século XVII, quando há a formação de um Arraial às margens do rio
Piranhas, comandado pelo Capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo (imagem 2). As
tropas de Ordenança eram formadas por homens da própria localidade onde atuavam,
e sua responsabilidade girava em torno da defesa e auxílio na administração dos
territórios conquistados. Financeiramente pouco custavam ao reino, pois seus homens
não recebiam soldo algum, nem muito menos qualquer tipo de instruções
sistemáticas.174
Como saída para a ausência de soldo e forma de manter os homens no exercício
de suas funções, a Coroa concedia aos militares, no ato de nomeação aos postos, o
direito de gozarem honras, liberdades, privilégios e isenções, o que, consequentemente,
possibilitava aos seus ocupantes usufruírem de um signo de distinção social. 175 O
mesmo signo haveria de ser compartilhado, anos mais tarde, por volta de 1711, por
aqueles que assumiriam funções jurídicas no Termo do Piancó.

174 COSTA, Ana Paula Pereira. Organização militar, poder de mando e mobilização de escravos armados
nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas colonial. Revista de História Regional, n.
2, v. 11, 2006. p. 112.
175 O direito em questão é registrado nas cartas de nomeações aos postos militares de Ordenança, todas

disponíveis no Arquivo Histórico Ultramarino.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
260

IMAGEM 2: Localização onde se estabeleceu o Arraial de Piranhas 176

A imagem indica os limites da Capitania da Paraíba no século XVIII; já a área pontilhada os possíveis
limites do sertão do Piancó; e o circulo vermelho a localização onde se estabeleceu o Arraial de Piranhas,
que, no início do século XVIII, se tornou a Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso.

Em 1711 criou-se o ofício Juiz Ordinário no sertão do Piancó, como forma de agir
institucionalmente sobre esse espaço. A criação pretendia sanar os problemas
cotidianos de seus moradores, assim como registrar negócios, posses de terras e
cartas de liberdade de escravos. Esta medida foi uma saída à falta de Câmaras nas
localidades mais distantes, e foi justamente a atuação desse sujeito que rendeu ao
Piancó uma centralidade política.177
Até 1772, quando há a instalação do Senado da Câmara, foram os homens de
Ordenança e o Juiz Ordinário, conjuntamente com licenciados, escrivães e tabeliões, os
responsáveis pela organização social e administrativa do Piancó. Funcionando como
centros de poder local, ou seja, espaços de encontro e colaboração entre os interesses
das elites locais e os do poder central, os espaços militares e jurídicas concorriam para
a produção de um ethos aos seus ocupantes.178

176 SOARES, Maria Simone Morais. Formação da Rede Urbana do Sertão de Piranhas e Piancó... Op. cit. p.
119. Adaptado.
177 FONSECA, Claudia Damasceno. Urbs e civitas: a formação dos espaços e territórios urbanos nas Minas

setecentistas. Anais do Museu Paulista, v. 20, n. 1, 2012. p. 88.


178 Sobre a discussão acerca do significado de centro de poder: Cf.: MELLO, Christiane Figueiredo Pagano

de. Forças Militares no Brasil colonial: Corpos Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século
XVIII. Rio de Janeiro: E-Papers, 2009. 258 p.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
261

Era através da posse de cargos militares e jurídicos que os homens do Piancó


exerciam a autoridade local e tornavam-se reconhecidos socialmente por isso. O ethos
social se forjava entre esse movimento de serviço e reconhecimento. O conceito de
ethos faz referência a um sentimento de distinção e de pertencimento a um espaço de
privilégio, destinado àqueles dotados de honra.179
A posse dos cargos por si só não se faz suficiente para a legitimação desse
ethos. As patentes e ofícios é preciso somar uma série de elementos simbólicos, como,
por exemplo, a tríade terra, escravo e gado. Tais posses materiais eram sinônimo de
riqueza e poder. Por isso, buscamos analisar quais os bens que esses homens detinham
e qual seu valor para legitimidade de seu ethos, através da análise dos inventários
produzidos no sertão do Piancó, durante o século XVIII.
Por meio dos inventários do Piancó temos acesso a resquícios da vida material
dos moradores do sertão. Contamos com um total de 42 inventários, que, atualmente,
encontram-se sob a tutela do Fórum “Promotor Francisco Nelson da Nóbrega”
(Comarca de Pombal-PB). Contudo, ao considerarmos a extensão dos registros,
optamos por selecionar apenas um inventário para o presente trabalho.
Os resultados que aqui serão expostos são baseados na análise do inventário
do Alferes Pedro Soares da Silva, senhor de terras, gado e escravos que atuou como
militar e juiz ordinário no Piancó, um exemplo de potentado local.

HOMEM DAS ARMAS E DAS LEIS: O ALFERES PEDRO SOARES DA SILVA E A


PRODUÇÃO DE UM SENTIMENTO DE DISTINÇÃO
Pedro Soares da Silva, filho de Mônica Rodrigues e Pedro Soares, era natural
da Cidade da Paraíba do Norte e esposo de Maria da Costa, com quem teve nove filhos
(gráficos 1, 2 e 3). Acompanhado de sua esposa, filhos, gado e escravos, Pedro fixou
morada por entre as margens do rio Piranhas e Piancó. As primeiras referências feitas
sobre ele no sertão datam ainda de 1739, quando já carregava consigo a patente militar
de Alferes.

179MONTEIRO, Nuno. O 'Ethos' Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e
imaginário social. Almanack Braziliense, n. 2, 2005. pp. 4-20.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
262

Gráfico 1
Pais do Alferes Pedro Soares

Pedro Mônica
Soares Rodrigues
da Silva dos Santos

Pedro
Soares
da Silva

Gráfico 2
Esposa e filhas do Alferes

Pedro Maria da
Soares Costa da
da Silva Fonseca

Ântonia Mônica Úrsula Maria da Tereza Ana Soares Jozé Pedro


Nunes Vicência Soares da Costa da de Jesus do Bom Soares Soares
G. Ferreira Conceição Fonseca Maria Sucesso da Silva da Silva

Gráfico 3:
Genros e netos do Alferes Pedro Soares da Silva

Ântonia Manoel Mônica Ântonio José de Vicência João Úrsula Francisco Maria da Tereza Ântonio Ana Soares Ântonio
Nunes Rabelo Pereira Barros Ferreira Correa de Soares da José Costa da de Jesus Duarte do Bom Pereira
G. da Costa Barbosa Silva Queiroga Conceição Ferreira Fonseca Maria Machado Sucesso Nunes

Manoel Mônica
Filho Filha

Apesar de não receber soldo pelas funções que executava, Pedro Soares
acabava por garantir, na posse do título, o direito de gozar de honras, liberdades,
privilégios e isenções. O título produziu para si um espaço de distinção social, que, em
1748 e 1766, foi legitimado na escolha e nomeação do Alferes para o cargo de Juiz
Ordinário, mostrando assim a sua importância social e política conquistada naquela
localidade.
É certo que o Alferes tecera suas próprias redes de sociabilidade entre os
potentados do Piancó, pois na ausência dessas a sua nomeação ao cargo não teria

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
263

alcançado êxito algum, uma vez que, tanto as funções militares quanto as jurídicas,
eram assumidas com base no critério de “qualidade” e reconhecimento social.
Ao assumir funções militares e jurídicas Pedro Soares passou a participar
ativamente do controle do aparelho administrativo, o que lhe proporcionou barganhar
interesses locais e pessoais junto aos moradores do Piancó e as autoridades da Cidade
da Paraíba. Através e como consequência do exercício dessas funções, Pedro Soares e
seus pares partilhavam de um ethos. Detê-lo e legitimá-lo não se fazia possível apenas
pela posse de um cabedal simbólico, como é o caso dos títulos militares e cargos
jurídicos. Pedro Soares também precisou contar com um cabedal material significativo,
formado por terras, gado, escravos, metais e objetos de valor como utensílios
domésticos, ferramentas de trabalho e vestuários.

APÓS A MORTE, OS TRÂMITES PARA A PARTILHA DOS BENS


Desde quando redigiu o testamento, com o auxílio do licenciado José da Cruz
Vila Nova, ainda no início de 1769, o Alferes Pedro Soares se queixava dos incômodos
causados pela moléstia da qual se encontrava acometido. Anos mais tarde seu estado
de saúde se tornou mais grave, dando-lhe sentença de morte entre maio ou início de
junho de 1772. A hipótese levantada a respeito do período de sua morte se baseia na
própria data de abertura do testamento, 13 de junho de 1772 (considerando que a
abertura do documento era feita pouco tempo após a morte do indivíduo, com o objetivo
de dar início à partilha dos bens).
Dona Maria da Costa, a fim de garantir seu acesso e o de seus filhos aos bens
do falecido esposo, teve de cuidar de todos os trâmites legais, pois além de cabeça de
casal, era ela quem teria que assinar todos os termos do inventário como testamenteira
do moribundo, juntamente com seu filho Pedro Soares e seu genro José de Barros.
Na condição de viúva, as Ordenações Filipinas garantiam às mulheres a posição
de “cabeça de casal” e o direito civil de administrar os bens recebidos em herança,
admitido apenas ao pai, enquanto solteira, e ao esposo, quando casada. Por isso, diante
da morte do esposo, Dona Maria teve a possibilidade de assumir uma nova fase de sua
vida, a viuvez, que lhe admitia o direito de administrar seus próprios bens, emancipada

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
264

do poder paternal e marital180. Nessas condições, Maria da Costa passou todos os


direitos necessários para que um de seus genros, o Capitão Antônio Pereira Barbosa,
comparecesse perante o escrivão Francisco Gonçalves Reis Lisboa suplicando-lhe que
fizesse o translado do testamento e codicilo com que falecera o Alferes, para assim dar-
se início ao processo de inventariação dos seus bens.
A inventariação teve início em janeiro de 1773. Através dela deu-se o
arrolamento, avaliação e partilha de todos os bens pertencentes ao defunto, um
montante avaliado em 3:797$160 réis (gráfico 1), fortuna que se somaria a outros
valores, de natureza não identificada, contabilizando 4:400$450 réis no total. O monte
mor haveria de ser partilhado da seguinte forma: após o pagamento das dívidas, o valor
líquido deveria ser divido em duas partes iguais, sendo uma delas destinada à esposa
(2:187$225 réis), enquanto a outra seria divida em três, uma para a terça do defunto
(729$075 réis) e as outras para os herdeiros (1:458$150 réis).

GRÁFICO 1: Porcentagem dos valores individuais dos bens arrolados no inventário do Alferes Pedro
Soares da Silva

Ferramentas Armamento Vestuário


de trabalho 0,53% 0,41%
Utensílios 0,78% Outros 0,59%
domésticos
2,05%

Gado 37,68%
Imóveis
41,87%

Escravos
16,06%

Apresentaremos a partir de então, de forma detalhada, os bens que constituíam


o cabedal do Alferes Pedro Soares da Silva e seu valor simbólico.

180Isso não significava dizer que ela teria toda a liberdade diante seus atos civis, pois a própria legislação
lhe impunha certos limites. Cf.: ALENCAR, Ana Cecília Farias de. Declaro que sou “dona”, viúva e cabeça
de casal... Op. cit. p. 43-55.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
265

O gado: uma riqueza móvel


Sinal de riqueza, o gado tornou-se um dos bens mais significativos na
composição do cabedal dos homens dos sertões. Por essa razão, é frequente a sua
referência em testamentos e inventários, geralmente relacionados à posse de terras e
escravos, elementos que se unem pela sua interdependência.
Os gados dos sertões correspondiam a três espécies: o vacum, cabrum e
cavalar. Seu uso era diverso. Do gado vacum tudo se aproveitava, da carne ao couro. O
rebanho era moeda de mercado, força de trabalho (os carros de boi são bons exemplos
disso), alimento para a comunidade local e os grandes centros (como foi o caso do
mercado da carne-verde e seca), e suplemento para cobertura de tamboretes,
confecção de bolsas, cordas, roupa de entrar no mato etc.
Já o gado cabrum, segundo Muirakytan (2007, p. 128), formava um plantel
estratégico a uma economia facilmente afetada por períodos de secas duradouras, pois
eram os únicos animais a resistirem os dias mais difíceis. Com uma capacidade
reprodutora maior que o bovino, os caprinos sobreviviam com a ruminação dos pastos
desidratados e proporcionavam aos seus donos leite e carne.181
O uso do gado cavalar, por sua vez, correspondia basicamente à montaria e
carga, utilizado nas longas viagens feitas de um lugar a outro, carregando em seu
lombo os viajantes e suas mercadorias, além de auxiliar os vaqueiros na pega do boi.182
Uma soma de 55 cabeças de gado cavalar foram contabilizadas no inventário do Alferes
Pedro Soares. Destas, 827 correspondia ao gado vacum e 170 ao cabrum, totalizando
1.052 animais, ou seja, 38% (1:431$000 réis) do valor total dos bens arrolados.
Os preços desses animais poderiam variar de acordo com a raça, idade e estado
físico, bem como do lugar e da época em que foi cotado. O inventário de Pedro não nos
informa a raça, a idade ou o estado físico, resumindo-se apenas a sua quantidade e o
valor. A cabeça de gado vacum, por exemplo, custava entre 1$200 e 4$000 réis,
enquanto o cabrum mantinha um valor fixo de $140 réis. Já o gado cavalar valia entre
2$700 e 4$000 réis.
É comum a relação desses animais a objetos referentes à sua lida, como selas
e “ferro de ferrar” (marca de gado). Segundo Macêdo (2007, p. 127), ambos os objetos

181 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais... Op. cit. p. 129.
182 Idem. p. 126.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
266

são promotores de distinção. O primeiro “era sinal da riqueza ou pobreza de seu dono
[…] um homem abonado punha sobre seu cavalo um sela “bastarda” cujo preço não era
acessível a todos os vaqueiros” Seu preço variava entre 1$000 e 7$000 réis. Já o
segundo, além de exercer sua finalidade (marcar os bens pessoais como forma de
demonstrar posse material) denotava “dignidade social e atributo de virtude
individual”.183 Conforme o historiador, a marca funcionava como assinatura que
figurava como índice de prestígio e signo de poder dos grandes criadores gravados em
quase todo seu cabedal, desde animais aos utensílios domésticos, como forma de fazer
visível aos demais sua quantidade e seu proprietário.184
A posse do ferro estava, somente, para os criadores que possuíam rebanhos
numerosos.185 O Alferes Pedro Soares se enquadrava nessa condição, tanto pelo
número de cabeças de gado quanto pelo total de “ferros de ferrar” que foram arrolados
entre seus bens. No total foram registrados cinco ferros, correspondentes aos valores
de $160 e $240 réis. Dentre os bens arrolados não se fez referência a nenhuma sela,
mas a um par de esporas, avaliadas em 6$850 réis. Este era o valor aproximado ao de
uma sela “bastarda” na Capitania do Rio Grande do Norte, conforme as informações
levantadas por Muirakytan (2007, p.127).

Os escravos e as terras que pertenceram ao Alferes Pedro Soares


É provável que parte do gado do Alferes Pedro Soares estivesse sob os
cuidados de seus genros Antônio Pereira e João Correa, criadores em fazendas de sua
propriedade, enquanto os demais animais estariam sendo cuidados por seus escravos,
que representavam 16% (610$000 réis) do valor total de seus bens. Sendo eles: duas
crianças – uma delas doente do fígado –, cinco jovens – sendo uma mãe de uma das
crianças – e dois idosos – Maria e José Moco, casados. Seus escravos estavam
avaliados entre 10$000 e 120$000 réis.
De acordo com Nizza (apud ALENCAR, 2014, p.68), a simples posse não pode
ser considerada um fator de diferenciação social, mas, sim, sua quantidade de acordo
com a fortuna de seus proprietários. A sua posse era essencial para a sobrevivência,
principalmente para as pequenas propriedades que necessitavam da mão de obra

183 Op. cit. p. 109.


184 Idem. p.109
185 Idem. p.111.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
267

escrava para o seu sustento.186 Eram esses escravos que trabalhavam na lavoura e
garantiam a produção de alimentos, importante atividade devido ao seu caráter de
subsistência.
Cada fazenda tirava da lavoura seu próprio sustento. As terras destinadas às
atividades dessa natureza eram minoritárias. Sobre elas se cultivavam milho, feijão,
mandioca, algodão.187 Nas terras do Alferes a produção parece ter dado maior espaço
para o cultivo da mandioca. Isso porque dos 29$630 réis em que foram avaliadas as
suas ferramentas de trabalho, 15$000 réis correspondia aos aviamentos de fazer
farinha e $100 réis ao cevador. O cevador era utilizado para triturar a mandioca, um dos
aviamentos utilizados na produção, enquanto os demais poderiam dizer respeito ao
caitituá – roda de ralar –, prensa, cocho, forno e tachos188.
Entre as ferramentas de Pedro encontravam-se ainda machados (5), enxadas
(4), cavador (1), alavanca (1), entre outros. Tais ferramentas devem ter sido utilizadas
pelo próprio Pedro Soares e seus escravos em lavouras estabelecidas às margens do
rio Piranhas, tanto na parte de cima quanto na de baixo, mais precisamente nos sítios
do Genipapo e do Abro, onde Pedro Soares e sua esposa Maria da Costa eram
proprietários de algumas casas.
É importante perceber que a posse das sesmarias em lugares diferentes
poderia, além de denotar a importância de seu proprietário (por tratar-se de um senhor
de terras), funcionar como uma estratégia para que todo o seu gado pudesse ser
remanejado de um pasto a outro quando necessário. Este aspecto talvez se aplique ao
caso de Pedro Soares, já que suas duas sesmarias eram próximas.
Os imóveis do Alferes corresponderam a 42% (1:590$000 réis) do valor total
dos bens. Trata-se de uma parcela que diz respeito à soma de dois sítios e duas casas
localizadas na Vila Nova de Pombal. É interessante perceber a posse de casas na Vila e
associá-las ao fato de que Pedro já havia atuado como Juiz Ordinário em 1766, nesse
mesmo lugar, antes denominada Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Por
isso, é provável que o exercício da função lhe exigisse certo tempo de permanência
nesse lugar sendo mais viável para Pedro Soares o seu estabelecimento na Vila quando

186 ALENCAR, Ana Cecília Farias de. Declaro que sou “dona”, viúva e cabeça de casal... Op. cit. p. 68.
187 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais... Op. cit. p. 93
188 Idem. p. 99.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
268

necessário. O mesmo deveria acontecer com os padres responsáveis pela Matriz de


Nossa Senhora do Bom Sucesso e outros homens de funções públicas.
Não se pode afirmar com precisão se as telhas (6$000 réis), janelas (1$920
réis) e porta com fechadura (2$560 réis), arroladas no inventário, encontravam-se
instaladas nas casas da vila, mas acreditamos que seja possível, pois na partilha da
herança a esposa herda as casas da vila, telhas e porta, o que nos leva a pensar na
possibilidade de serem as casas cobertas com essas telhas e protegida por porta com
fechadura, enquanto seus donos vivem nas casas de morada dos sítios. Além disso,
receberia em herança as ditas casas de morada, 2 escravos, 516 cabeças de gado e
algumas ferramentas.
No que diz respeito às janelas, avaliadas em 1$920 réis, sabemos que elas
foram separadas para o pagamento da terça, somadas a 160 cabeças de gado, 4
escravos e outros bens de valor. A terça parte corresponde ao valor destinado aos
gastos para garantir a “boa morte”, ou seja, os ritos (missas, velas, procissões etc.) que
encaminhavam a alma ao paraíso.189

Do que compõe o lar: o valor das pequenas coisas


Os utensílios domésticos que se encontravam depositados nas moradas do
Alferes foram descritos detalhadamente pelos seus avaliadores. Há um considerável
número de colheres de prata, pratos, cocos, bacias e tachos, objetos que viriam a
compor o dote das nove filhas e a herança da esposa no ato da partilha. É importante
chamar atenção para a posse desse tipo de artefato, especialmente colheres e pratos,
por tratar-se de um indicativo de distinção social. Talheres e pratos eram objetos raros
na colônia, principalmente no sertão, lugar onde o ato de se alimentar dava-se em
esteiras no chão, de cócoras e, na maioria das vezes, comia-se com as mãos.190
Ao estudar o caso de Quixeramubim (Ceará), no decorrer do século XVIII e XIX,
Anna Cecília Alencar (2014) nos afirma que esses utensílios só foram encontrados em
inventários das famílias de “qualidade”. Tanto a pesquisadora quanto o historiador
Muirakytan Macêdo (2007), que pesquisa a cultura material do Seridó (Rio Grande do
Norte) no mesmo período, comungam da ideia de que o valor desses utensílios não

189 FURTADO. Júnia Ferreira. A morte como testemunho da vida. In: LUCA, Tânia Regina de. PINSKY, Carla
Bassanezi. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p.107.
190 ALENCAR, Ana Cecília Farias de. Declaro que sou “dona”, viúva e cabeça de casal... Op. cit. p. 65.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
269

estava, necessariamente, em seu uso cotidiano, mas sim, em seu caráter simbólico. Era
comum possuí-los com a finalidade de ostentá-los às visitas. Talvez isso justifique a
disparidade entre os membros da casa e os talheres possuídos, um número geralmente
incompatível conforme os historiadores citados acima verificaram para suas
localidades de pesquisa.
Ainda entre os artefatos de distinção encontrados no inventário de Pedro
Soares estavam objetos religiosos e referentes ao vestuário. O oratório era um dentre
os objetos raros a serem encontrados nos sertões. Ele representava um pequeno altar
onde ficavam expostas as imagens dos santos aos quais eram devotos seus
proprietários. Segundo Muirakytan Macêdo (2007, p.162-163), sua presença era uma
compensação para o altar das igrejas e capelas, e sua posse com ou sem santos era
algo que não poderia ser adquirido por qualquer pessoa devido seu valor. Para o
inventário em questão, trata-se de um pequeno e velho oratório de cedro avaliado em
1$280 réis, recebido pela esposa no ato da partilha.
No que tange ao vestuário, segundo Silvia Lara (apud ALENCAR, 2014, p.57), é
importante pensar as roupas como artefato de distinção, pois eram elas que revelavam
os jogos hierárquicos no interior dos quais as diferenças eram mostradas. De acordo
com Lara (apud ALENCAR, 2014, p. 57-58), uma série de leis e decretos foi aplicada para
reforçar a distinção presente nas roupas, como em 1696 quando se proibiu o uso de
“vestidos de seda, cambraia, holandas com rendas e brincos de ouro ou prata” por
escravas. Entretanto, não encontramos no inventário de Pedro Soares algum registro
dos tipos de roupas utilizadas, mas apenas colares, fivelas, abotoadeiras e botões, tudo
em ouro e prata.
Todos esses bens foram distribuídos entre as filhas durante a dotação e a
esposa no ato da partilha, assim como os utensílios domésticos vistos anteriormente.
Através da partilha a esposa recebeu em herança uma caixa, mala com fechadura e
arcas. Eram bens avaliados entre 2$000 e 10$000 réis. Estes tipos de utensílio eram
comuns no sertão. Geralmente as malas e caixas eram utilizadas para guardar peças do
vestuário, joias e até alimentos, como farinha e carne salgada.191 Pela facilidade de
transporte esses objetos eram fundamentais à necessidade de fuga em meio às

191 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais... Op. cit. p. 173.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
270

dificuldades locais, fosse pelas secas ou enchentes, situações as quais estavam


expostos constantemente os homens do sertão.192
Respondendo a mesma lógica estavam os tamboretes e os catres, sendo este
último uma espécie de leito dobrável, fácil de carregar em viagens. Além de custarem
mais caro que os simples bancos de madeira, os tamboretes tinham um caráter
importante, pois ao permitir a um indivíduo sentar-se sozinho acabava por indicar quão
honrado e superior o era, pois a grande parte da população pobre se sentava no chão
para conversar ou fazer refeições.193 No inventário do Alferes foram contabilizados
cinco tamboretes cobertos com sola (2$400 réis), herdados mais tarde pela esposa, e
três catres, avaliados em 6$000 réis, sendo dois distribuídos entre as filhas e um pela
viúva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa com base nos inventários do Piancó ainda está em sua fase inicial.
Contamos com uma grande quantidade de informações que requer maior tempo de
pesquisa, por isso optamos analisar, inicialmente, apenas o inventário do Alferes Pedro
Soares da Silva. A partir dessa fonte podemos perceber quais os bens que constituíam
o cabedal de um potentado do Piancó, sem criar generalizações, e seu valor, não só
monetário, mas também simbólico.
Todos os resultados levantados até então nos tem permitido traçar um
possível perfil do Alferes. Por meio deles tomamos ciência sobre quem ele era (qual a
sua naturalidade e suas relações familiares) e a importância de seus bens para a
legitimição do seu ethos social. Ainda é possível realizar o cruzamento de parte dessas
informações com outras dispostas em Livro de Notas, produzidos no sertão do Piancó
durante o século XVIII e as solicitações de sesmarias, criando assim um complexo de
informações sobre o militar.

192 Idem. p. 174.


193 Idem. p. 161.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
271

POR DETRÁS DAS LETRAS:


UM ESTUDO DE CASO SOBRE ANTONIO VAZ FERREIRA
JÚNIOR, JOÃO DE SOUSA E SILVA E MANOEL PEREIRA DA
SILVA CASTRO (RIBEIRA DO SERIDÓ, SERTÕES DO RIO GRANDE
DO NORTE, 1777-1830)
Matheus Barbosa Santos194
Helder Alexandre Medeiros de Macedo - Orientador195

INTRODUÇÃO
O presente trabalho está vinculado ao grupo de pesquisa História dos Sertões,
constituindo parte do Projeto de Pesquisa História das mestiçagens nos sertões do Rio
Grande do Norte por meio de um léxico das “qualidades” (séculos XVIII-XIX), sob
coordenação do Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo.
O projeto maior atrela-se ao Plano de Trabalho específico: O olhar dos agentes
do Estado e da Justiça, nascendo assim, esta comunicação. Objetivamos examinar as
trajetórias de vida dos agentes da Justiça produtores de documentos, no qual
encontram-se registrados indivíduos frutos das mestiçagens, afim de estabelecer um
perfil acerca de quem nomeava pessoas com as “qualidades” de “mestiço”, mameluco,
pardo, mulato, cabra e curiboca.
Ao longo de dois anos, iniciados em 2016.2 e completados em 2018.2, os
interesses do Plano de Trabalho caminharam em mão dupla, ou seja, fizemos um
rastreamento dos escrivães e/ou tabeliães que exerceram o seu ofício na Ribeira do
Seridó entre os séculos XVIII e XIX, utilizando como principal corpus documental os
inventários post-mortem do Fundo da Comarca de Caicó (FCC) e do Arquivo da Vara
Cível da Comarca de Currais Novos (AVCCCN) (1737 – 1850) – são neles que consistem
o maior número de processos manuscritos pelos escrivães, bem como, o registro dos
sujeitos frutos das “dinâmicas de mestiçagens” (PAIVA, 2015) do Seridó colonial. A
outra via, por sua vez, era acessada na tentativa de compreensão do fenômeno das
“mestiçagens”, utilizando as letras destes indivíduos da Justiça como um meio.

194 Discente do Curso de Bacharelado em História, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC-UFRN). E-
mail: matheusx1998@gmail.com.
195 Professor do Departamento de História, CERES, UFRN. E-mail: heldermacedox@gmail.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
272

Desta vez, sentimos a necessidade de analisarmos e compreendermos o lugar


social ocupado por estes indivíduos da Justiça, principiando que cada sujeito histórico
é fruto do seu contexto espaço-temporal, portanto, os escrivães e/ou tabeliães que
desempenharam suas incumbências nos sertões do Seridó são frutos dos filtros feitos
pelos mesmos dos seus contextos de vida, de crenças, valores e desejos coletivos e
próprios, de medidas que extrapolam os símbolos fixados na documentação – as letras.
É neste contexto que, pretendemos investigar os “atos de escrita”, discutido por
Sílvia Rachi (2016), tomando como recorte espacial a Ribeira do Seridó, de 1777 a 1830,
afim de traçar um perfil acerca dos escrivães e/ou tabeliães Antonio Vaz Ferreira Júnior,
João de Sousa e Silva e Manoel Pereira da Silva Castro. A escolha destes três sujeitos
foi motivada pelo número de processos inventariantes, feitos a próprio punho, no qual
eles desempenham o seu ofício de redação das letras196. Tomando como base a
realidade “jurisdicional” dos sertões do Seridó, o número de processos em que estes
indivíduos estão envolvidos, de maneira direta ou indireta, é possível considerá-los
como os escrivães e/ou tabeliães “mais influentes” das águas denominadas Seridó.
As nossas lentes estão ajustadas, desta maneira, para analisarmos e tentarmos
compreender o lugar social ocupado pelos escrivães e/ou tabeliães no seio da
sociedade ibero-americana, mais precisamente nos sertões da Capitania do Rio Grande,
em terras nomeadas como Seridó. Problematizamos o seu ofício investigando a
documentação manuscrita pelos mesmos, a exemplo, os já referidos inventários post-
mortem, e igualmente, os documentos nos quais eles aparecem como sujeitos
protagonistas e/ou figurantes, tais como as celebrações católicas de batismo,
casamento e óbito.
Metodologicamente partimos de revisão historiográfica acerca de obras que
contemplassem o universo burocrático da Justiça Colonial, enfocando nos agentes do
Estado e da Justiça, em nosso caso, os escrivães e/ou tabeliães197. Buscamos, ainda,
obras de abrangência mais geral, no que diz respeito a realidade ibero-americana e
colonial198, além daquelas que figuram no território da Ribeira do Seridó199.

196 No período de 1777 à 1830, na Ribeira do Seridó, o escrivão e tabelião Antonio Vaz Ferreira Júnior
atuou em 32 processos; João de Sousa e Silva em 27; e Manoel Pereira da Silva Castro em 17.
197 A exemplo de: Por mãos alheais (RACHI, 2016); Um Império de Papel (LIRA, 2018).
198 Ver, a exemplo: Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas (CHATURVEDULA; STUMPF, 2012);

Burocracia e sociedade no Brasil Colonial (SCHWARTZ, 1979).


199 Ver: Seridó (AUGUSTO, 1954); Outras famílias do Seridó (MACEDO, 2013).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
273

Trabalhamos com fontes de diferentes cunhos, contemplando as esferas


religiosas e jurídicas. São elas: As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
(CPAB) (1853 [1720]) e as Ordenações Filipinas (1870 [1603]), ambas estão disponíveis
para download no site do Senado Federal (ver Referências); Manual do Tabelião (1834),
disponível para download no site da Faculdade de Direito da Universidade de Nova
Lisboa (ver Referências); os inventários post-mortem do Fundo da Comarca de Caicó
(FCC) (1737-1815), custodiados pelo Laboratório de Documentação Histórica
(LABORDOC) CERES/Caicó – RN, e os que estão conservados no Arquivo da Vara Cível
da Comarca de Currais Novos (AVCCCN) (1788-1863); também utilizamos Cartas de
Alforria – Livros de Notas que encontram-se na Cidade Judiciária de Caicó (1792-1814),
dispostos em bancos de dados do Microsoft Access, construídos pelo Prof. Muirakytan
Macêdo e Prof. Helder Macedo e suas equipes de pesquisa; e, ainda, um conjunto de
fontes paroquiais, também ordenado nos bancos de dados, como batismos (1803-1822),
casamentos (1788-1821) e óbitos (1788-1857), relativos à Freguesia da Gloriosa
Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), estando, respectivamente, sob posse da Casa
Paroquial São Joaquim, da Paróquia de Sant’Ana.
Alicerçando este trabalho, manuseamos dois conceitos em específico, afim de
que os mesmos possam dar sustentação de análise e compreensão aos agentes da
Justiça que estavam por detrás das letras, sendo do nosso interesse, os escrivães e/ou
tabeliães, de tal modo que, possamos, também, analisarmos a ação da escrita como
objeto histórico e passível de problematização no contexto do universo colonial da
Ibero-América, e no que diz respeito à Ribeira do Seridó e suas adjacências. O primeiro
deles é o conceito de “escrita”, contemporâneo ao cotidiano das pessoas que residiam
no Ultramar, conforme elucidado pelo Dicionário de Bluteau (1712-1728):

ESCRITA. O que o escrivão, ou Tabaliaõ escrevco, contar a escrita,


Scripta à Tabulario folia numerare. Pagar a escrita. Pro scriptis à
Libellione folijs solvere. (p. 227, 8 v). (Grifo nosso)

Na América Portuguesa, como grifado acima, em que a “redação das letras


estava circunscrita ao uso do escrivão e/ou tabelião”, a “escrita” desempenhou um
efetivo instrumento de poder e domínio, sendo empregada para libertação ou opressão
social. A Colônia vivia uma situação de incongruência, pois se levarmos em
consideração que estamos lidando com uma sociedade predominantemente não

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
274

letrada, no qual as formas comunicacionais, em larga escala, eram caracterizadas pelas


práticas orais; por outro lado, os discursos só ganhavam legitimidade quando estavam
afixados no papel, estando assinalados e reconhecidos. (RACHI, 2016)
Problematizando o conceito, Sílvia Rachi (2016) entende a “escrita” como
manifestação e artefato, produto e produtora de cultura, possibilitando a
materialização de pensamento e discursos, além de viabilizar a relação entre as
pessoas e destes com as instituições de poder. A “escrita” deve ser compreendida como
uma dimensão da linguagem, levando em consideração o seu simbolismo e
materialidade. Citando Magalhães (1994), ela assimila que a “escrita” é um ato humano,
racional e técnico, é a fixação da palavra. Uma representação gráfica e visível da
linguagem, vencendo tempo e espaço. Utiliza-se de signos convencionais, sistemáticos
e identificáveis. Rachi (2016) acrescenta que é uma produção contextualizada, individual
e/ou coletiva, por meio do qual os indivíduos registraram suas experiências.
O segundo conceito que tomamos como base são os “atos de escrita” (RACHI,
2016), elucidando que devemos ponderar acerca do que está entre a pena/lápis e o
papel, ou seja, o sujeito histórico; no presente trabalho, nas figuras do Antonio Vaz
Ferreira Júnior, João de Sousa e Silva e Manoel Pereira da Silva Castro, trajados com
seus ofícios de escrivães e/ou tabeliães. Estes, indivíduos frutos do seu tempo e espaço,
e dos filtros particulares de suas realidades, desempenharam, consciente e
inconscientemente mecanismos de poder através da “escrita”. É importante
compreendermos que a tessitura das palavras não é imparcial, ela versa sobre a
redação de algo, registrando intenções, objetivos e estratégias, sendo assim, um objeto
ideológico. A “escrita”, e as pessoas dotadas da mesma, estão imbricadas em uma
malha de poder, pois ela articula “jogos de dominação, participação/exclusão e é uma
mediadora cultural a partir do “escrito”, responsável, ainda, por ser um dos utensílios
de manutenção do poderio dos grupos dominantes, no qual o seu aprendizado é
reduzido e controlado.
É tomando como base este cenário, e o entendimento de que as pessoas
“revestidas pelo poder das letras” desempenhavam um papel social importante no
contexto em que elas estavam inseridas, que se fez necessário compreendermos a
representatividade desempenhada pelos três indivíduos supracitados, no qual
realizamos o processo de rastreamento de suas vidas, desempenhando um intenso
cruzamento de dados, observando a sua atuação nos processos judiciais, bem como,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
275

investigando em que momento das celebrações católicas (batizado, casamento,


enterro) eles apareciam. Tal rastreamento levou em consideração as premissas
metodológicas do paradigma indiciário (GINZBURG, 1989) e do método onomástico
(GINZBURG; PONI, 1989).

RASTROS E LETRAS: ANTONIO VAZ FERREIRA JÚNIOR


O sujeito que intitula o tópico aqui tratado tem suas raízes oriundas na Capitania
da Paraíba. Fincando os passos nas terras da Ribeira do Seridó e deixando os seus
rastros no período de 1788, na justificação de dívidas do inventário post-mortem de
Manoel Marques e alongando-se até 1810, no inventário de Ana da Conceição, Antonio
Vaz Ferreira Júnior contraiu matrimônio com Maria José de Jesus, ambos de
“qualidade” (PAIVA, 2015) “branca”, segundo consta no I Livro de Batismo FGSSAS
(1803-1806).
Segundo Paiva (2015), o conceito de “qualidade”, reconstruindo sua genealogia,
notando os diferentes significados atribuídos ao termo ao longo do tempo e do espaço,
remonta desde a Antiguidade, com Cícero, como nos aponta Bluteau (1712-1728). No
contexto medieval, o termo seria usado para distinguir os “homens bons”, ou pessoas
dotadas de honrarias, e as que eram ausentes ou das que tinham em menor proporção
ou menor intensidade. Quando a palavra é imigrada para o Novo Mundo, ela passa a
“qualificar” não somente as pessoas dotadas de privilégios, mas também aquelas não
aceitas e mal vistas pela sociedade, ou as novas formas de representar os seres
humanos nascidos no Ultramar, dentre estes, os sujeitos fruto das mestiçagens. Ele
debruça-se, ainda, afim de evidenciar o conceito de “qualidade” como um dispositivo
capaz de medir a “qualificação” social das pessoas, classificando os indivíduos, como,
também, os grupos sociais, utilizando como suporte aspectos como, por exemplo, a
ascendência e descendência familiar, proveniência, origem religiosa, dentre outras
tantas, como os fenótipos. Mesmo quando não era possível o uso destas ferramentas
para a “qualificação”, utilizavam-se de elementos mais salientes, a exemplo da cor, ou
aqueles que se achassem mais favoráveis.
No caso retratado, no qual o “qualificativo” do casal foi indicado como “branco”,
frisamos a distinção social exercida por este “gênero clarus”, pois a falta de melanina
em sua pele alçava o indivíduo nas primeiras posições de uma sociedade hierárquica,
como é o caso da colonial. Havendo conhecimento das exceções, ser “branco” na

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
276

América Portuguesa excluía os olhos segregacionistas do cotidiano. A inserção social


era facilitada, de tal maneira que, estas pessoas, mesmo nascendo pobres, tinham
muito mais oportunidades de crescimento e ascensão do que as “pessoas de cor”
(PAIVA, 2015).
No caso do Antonio Vaz Ferreira Júnior, para além do mesmo ser “qualificado”
como “branco”, ele também estava revestido pelo prestígio que as letras poderiam
proporcionar, tornando-se assim, “somente por estes dois fatores”, um ser humano
destoante da realidade social em que ele estava inserido.
Encontra-se registrado no I Livro de Batismo FGSSAS (1803-1806) um filho do
casal acima referido, chamado Sancho, batizado no dia 31 de março de 1804, em um
sábado santo.
O outro fruto do casal é uma menina, nomeada Perpétua200, que recebeu a água
batismal e os santos óleos no dia 30 de junho de 1805 – esta veio a falecer, como
pudemos averiguar no I Livro de Óbito FGSSAS (1788-1811), aos 10 meses, no dia 03 de
abril de 1806, sendo sepultada no lugar “do cruzeiro para cima” – tomando como base
as palavras de Alcineia Santos: “espaço compreendido entre o corpo da igreja e a
capela-mor. (2005, p.105)”. Portanto, era um espaço privilegiado, transmitindo prestígio
e cobiça, sobretudo por estar próximo à “capela-mor”. Os sujeitos que conseguiam ter
acesso a este “local de descanso eterno” dispunham de um cabedal considerável,
ademais, Perpétua foi sepultada vestindo um “hábito de cetim preto”. Segundo Reis
(1991), este tecido exigia um alto investimento, sendo comum o uso nas mulheres,
especialmente as “brancas”.
O Antonio Vaz Ferreira Júnior desenvolveu os labores de escrivão e tabelião na
Ribeira do Seridó, portanto, constatamos que ele não somente era um escrivão
ordinário, mas era detentor de um arcabouço jurídico capaz de exercer, também, a
função do tabelionato. Em se tratando de uma sociedade colonial com altos índices de

200 Através da documentação da FGSSAS, constituindo-se em registros de batismo (1803-1822),


casamento (1788-1821) e óbito (1788-1857), conservada na Casa Paroquial São Joaquim, na Matriz de
Sant’Ana, disposto em bancos de dados do Microsoft Access, construídos pelo Prof. Muirakytan Macêdo
e Prof. Helder Macedo e suas equipes de pesquisa, é possível traçarmos, em maior ou menor medida, a
genealogia dos sujeitos históricos trabalhados. No caso do Antonio Vaz Ferreira Júnior, conseguimos
reconstruir a sua primeira geração familiar, enfatizando que este exercício genealógico, fruto de um
denso cruzamento de fontes e dados, não é por acaso. Através dele conseguimos evidenciar que estes
indivíduos não vinham para as terras coloniais do Seridó somente para exercerem as suas obrigações ou
preencherem locais com deficiência de pessoas especializadas para uma determinada atividade, mas que
eles criavam raízes emotivas, construíam redes de amigos e familiares, como, também, fizeram parte do
processo colonizador dos sertões da Capitania do Rio Grande.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
277

não letramento, por estar ligado ao aparelho da Justiça, não constituindo-se como uma
esfera impermeável, mas que, por exemplo, estava interseccionada com a esfera
religiosa e, muitas das vezes, com a vontade dos que detinham cabedal político e/ou
econômico, ocupar os ofícios supracitados colocariam as demais pessoas em uma
posição de prestígio e poder no seio da sociedade do Além-mar.
Destacamos que, ocupando a função do tabelião, o agente tem em torno de si
várias normas e leis que norteiam o seu ofício, como é o caso das Ordenações Filipinas
(1870 [1603]) e do Manual do Tabelião (1834), estando na sua responsabilidade a
redação das peças jurídicas cotidianas, os atos formais e administrativos daquelas
instituições. Os agentes detentores dos ofícios de escrivão e/ou tabelião distinguiam-
se dos demais funcionários destes aparelhos da justiça, por serem os principais
responsáveis pela redação da comunicação escrita, e pelo fato de serem ofícios locais,
cujo provimento era efetuado pelo rei (LIRA, 2018).
Pondo o seu ofício em prática, o escrivão e tabelião Antonio Vaz Ferreira Júnior
foi o responsável pela feitura de 5% das cartas de alforria da Vila Nova do Príncipe
(1792-1814), mais precisamente, estamos lidando com um universo amostral de 122
cartas de alforria, no qual ele foi o responsável por registrar 7 delas no Livro de Notas
do Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe. Na realidade espaço-temporal que
estamos lidando, este valor é significativo, inclusive quando o comparamos com os
outros escrivães e/ou tabeliães, como vai ser possível constatar ao longo desta
narrativa.
As pessoas que dominam o conhecimento das letras, além do conhecimento e
reconhecimento de suas estimas sociais, mantêm uma forte conexão com as
instituições religiosas e os grupos predominantes, assim como elucida Rachi (2016). O
escrivão e tabelião aqui trabalhado, por sua vez, está presente em várias das
celebrações católicas da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, a exemplo
de como consta no I Livro de Batismo FGSSAS (1803-1806), em que Antonio Vaz
Ferreira Júnior e sua mulher Maria José de Jesus aparecem como padrinhos de uma
criança pela parte – como procuradores – de Francisco Toscano do Rêgo e Dona
Francisca Dorneles.
As CPAB (1853 [1720]) afirmam que a escolha deste “parentesco espiritual” – os
padrinhos – deveria ser feita com zelo, pois não eram todos os indivíduos que estavam
aptos a ocupar tal cargo, sobretudo aos olhos da Igreja, no qual o sujeito a ser escolhido

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
278

teria uma série de prerrogativas que deviam ser atendidas, como, por exemplo, ser
maior de 14 anos e respeitar os princípios da Santa Fé. Isto demonstra o quão
heterogênea era a América Portuguesa, pois não somente a escolha do parentesco
espiritual parte da estima que os indivíduos, tais como os pais de um filho a ser batizado
tinham pela seleção do padrinho/madrinha, como, também, o sujeito devia atender as
exigências de uma das maiores instituições de poder do mundo Ibérico.
Outra celebração católica que Antonio Vaz Ferreira Júnior participou foram os
matrimônios, como aponta o I Livro de Casamento FGSSAS (1788-1809). Em 543
registros de uniões, o escrivão e tabelião aparece como primeira testemunha em 5
casos, como segunda testemunha em 6, cada uma delas representando 5% do total.
Não é “ingênua” a classificação numérica da escolha de testemunhas: o primeiro lugar
“é mais honroso” do que o segundo, o que não quer dizer que ambas não possam ser
vistos como classificadoras sociais. As CPAB (1853 [1720]) resguardam que as pessoas
escolhidas devem ser “dignas de fé”, não ter nenhum impedimento, pois são
asseguradores da “verdade” ao testemunharem o matrimônio.
Uma escrava, chamada Josefa, do gentio de Angola, falecida em 25 de julho de
1800, como demonstra o I Livro de Óbito FGSSAS (1788-1811), tinha como o seu
proprietário o escrivão e tabelião Antonio Vaz Ferreira Júnior. Para a Ribeira do Seridó,
como nos assegura Muirakytan Macêdo (2015), a tríade terra-escravo-gado era a que
se configurava com os elementos preponderantes em cabedal dos inventários post-
mortem (1737-1813). E, por mais que o sujeito aqui tratado tenha somente uma unidade,
isto demonstra um certo grau de poder aquisitivo do mesmo, uma vez que, levando em
consideração Josefa “mostrar ter 45 anos”, e uma escrava, de nome Izabel, criola, de
quarenta anos, constante no inventário post-mortem de Cosme Fernandes Jorge,
datado de 1801, ter o valor de 100$000 réis, podemos inferir que o valor da gentio de
Angola também girasse em torno destes números.
“Na Época Moderna, a escrita configurou-se como instrumento de poder ao
permitir o funcionamento das práticas em distintas esferas: na vida política, na
religiosidade, no âmbito privado” (RACHI, 2016, p.338). E são, a partir destes
microelementos trabalhados acima que, para a realidade da Ribeira do Seridó, podemos
traçar um perfil acerca destes indivíduos que não passaram despercebido nas fontes,
muito menos na sua contemporaneidade.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
279

JOÃO DE SOUSA E SILVA


O escrivão e tabelião João de Sousa Silva, juntamente com sua irmã Ana Maria
da Trindade, assim como encontra-se registrado no III Livro de Batismo FGSSAS (1818-
1822), marcaram sua passagem nos sertões do Seridó de 1777, no inventário post-
mortem de Manuel Barbosa das Neves, até 1805, no processo de mesmo caráter de Ana
de Oliveira. Neste espaço de tempo, ambos não contraíram núpcias, até onde sabemos.
Assim como o sujeito anteriormente trabalhado, João de Sousa e Silva também
foi responsável por fazer cartas de alforrias (1792-1814), levando o seu nome de
escrivão e tabelião em 8% dos registros, mais precisamente, em 9 casos.
No I Livro de Batismo das terras consagradas à Freguesia da Gloriosa Senhora
Santa do Seridó (1803-1806), no dia 29 de maio de 1803, em casas de morada da Fazenda
Jurema, João, filho de Gabriel Fernandes de Andrade e Maria do Carmo, achava-se em
perigo de vida, sendo batizado e recebendo os exorcismo e santos óleos da Igreja pelo
João de Sousa e Silva – o ato tendo sido validado pelo padre Inácio Gonçalves de Melo.
Nas CPAB (1853 [1720]), recomendava-se que as crianças fossem batizadas em até oito
dias depois de nascidas, pois sendo este o primeiro dos sacramentos e o mais
importante, eram ocasião em que as portas da Igreja Católica abriam-se para o
indivíduo, ou seja, ele deixaria de ser pagão e teria, agora, um lugar no mundo dos
cristãos.
Como João encontrava-se em perigo de vida, para que o mesmo não chegasse a
falecer pagão, os instrumentos mágico-religiosos foram manuseados pelo João de
Sousa Silva; era de preferência da Igreja que o batismo fosse realizado na sua sede, mas
ela abria exceções, como no caso de João, que se encontrava em “perigo de vida”, para
que a cerimônia ocorresse fora de suas quatro paredes. O que queremos ressaltar é que
o indivíduo a ministrar as águas do batismo e os santos óleos, segundo as CPAB (1853
[1720]), poderia ser, até mesmo, mulher e/ou infiel, mas que deveria estar ungido das
motivações da Igreja para realizar tal ato, portanto, e em se tratando do lugar social
ocupado pelo escrivão e tabelião na sociedade do Novo Mundo, não era e não foi por
acaso a escolha do João de Sousa e Silva.
Dotado de todo o prestígio social que o seu ofício lhe garantia, João de Sousa e
Silva também ligou-se espiritualmente com sujeitos, ocupando o lugar de padrinho de
Irineu, batizado na Capela do Jardim de Piranhas, em 1 de janeiro de 1815, como
encontrado no II Livro de Batismo FGSSAS (1814-1818). Além dele, no III Livro de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
280

Batismo FGSSAS (1818-1822), João de Sousa e sua irmã Ana Maria da Trindade
apadrinharam Manoel, em 29 de setembro de 1822, filho de Gonçalo Álvares de Farias
e Francisca Xavier das Chagas.
Como ora elucidado, o lugar de primeira e segunda testemunha de casamento
detinha subjetividades para além daquelas religiosas, João de Sousa e Silva, por sua
vez, no I Livro de Casamento da FGSSAS (1788-1809), atuou como testemunha de
primeira posição em 8 dos 543 casos, representando 6%; na segunda posição dos
sujeitos “testadores da fé”, ele está presente em 18 ocasiões matrimoniais, o que
representa 14%. Além destes, soma-se à conta o II Livro de Casamento da FGSSAS
(1809-1821), figurando pela última vez, no dia 20 de setembro de 1813, segundo os
registros paroquias, como segunda testemunha de casamento.
A “escrita”, composta de regras intrínsecas e extrínsecas, utilizada como forma
de poder e legitimação do mesmo, das instituições representativas do poderio político,
econômico e social, estendeu-se para os sujeitos encarregados de realizarem os “atos
de escrita” (RACHI, 2016). A ligação, fortemente presente nos dois escrivães e tabeliães
aqui trabalhados, como, por exemplo, com a instituição religiosa, demonstra, entre
tantos flancos, o quanto é característico e particular, para os sujeitos que manejam as
letras, uma distinção social exercida dos “centros de poder” alongando-se até as suas
zonas mais periféricas.

MANOEL PEREIRA DA SILVA CASTRO


Outro sujeito, cuja raiz, oriunda da Capitania da Paraíba, estendeu-se até o solo
da Ribeira do Seridó, mantendo sua estadia na documentação de 1808, no inventário
post-mortem de João de Góis de Mendonça, foi Manoel Pereira da Silva Castro, o
escrivão do processo. O mesmo era casado com Maria Bandeira de Melo e pai de quatro
filhos, segundo a “qualidade” na averbação, “B”201: Antônio, Esmeraldina, Delfina e
Antônio – este, batizado em 1819, sendo a baliza temporal de permanência do escrivão
nas terras devotadas à Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, de acordo com o II e III
Livro de Batismo FGSSAS (1814-1822).

201Não é possível dizermos com clareza qual “qualidade” expressa-se com a letra “B”. Entretanto,
aportando-se em percepções e interpretações pessoais, com base na observação dos dados empíricos
coletados junto às fontes paroquiais, acreditamos que fosse o designativo de “branco”.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
281

Tratando-se deste sujeito, não conseguimos encontrar, para além dos 17


inventários post-mortem em que ele exerceu seu ofício, outras fontes judiciais em que
ele tenha sido responsável pela redação da peça jurídica. Também foi escassa a procura
nas celebrações católicas da FGSSAS (batismo, casamento e óbito). Indagamo-nos se,
ao contrário do Antonio Vaz Ferreira Júnior e João de Sousa e Silva, que
desempenharam e tinham bases para serem, além de escrivães ordinários, tabeliães da
Ribeira do Seridó, a falta deste título à pessoa de Manoel Pereira da Silva Castro possa
ter “anulado” uma participação mais efetiva no bojo social. Entrementes, a
documentação que dispomos não nos fornece este tipo de informação.
Além disto, uma outra explicação/hipótese pode ser dada, pois se analisarmos
que, respectivamente, Antonio Vaz Ferreira Júnior e João de Sousa e Silva,
contemporâneos, permaneceram na Vila Nova do Príncipe por 22 e 28 anos,
respectivamente, e o escrivão Manoel Pereira da Silva Castro por 11 anos, coexistindo,
ainda, com o primeiro, o mesmo vai ser detentor de um prestígio social menor, em
decorrência da sua migração ter ocorrido mais de uma década depois.
Todavia, não podemos desprezar o número significativo de inventários post-
mortem em que o mesmo atuou (17) em 11 anos, bem como, levando em consideração
que manuscrever os processos jurídicos, fosse tabelião ou não, é um indicativo de que
o indivíduo era dotado de “fé pública”, como assegurado no Dicionário de Bluteau (1712-
1728):

Fé. Testemunho autentico, ou o que o Escrivão, ou outro official de


justiça porta por fé. Scripta testificatio, onis. Fem. Daqui vem, que
dizemos, Dar, ou naõ dar fé de alguém. Vistes a fullano? Vidisti
hominem? Naõ dei fé delle. Illum non vidi. (p.52, 8 v). (Grifo nosso)

São através destas minuciosidades que acontecem as “relações sociais do


escrito” (RACHI, 2016). As letras, comumente usadas como dispositivos de manutenção,
inclusão, segregação e intenções de poder, desempenharam, para as pessoas que a
dominassem, um fator de notoriedade na sociedade colonial. Não diferente, nos sertões
do Seridó, no qual estes indivíduos eram reconhecidos como diferentes por outras
pessoas e tinham uma legitimidade ímpar com as duas maiores instituições de poder
deste período – a Igreja e a Justiça.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
282

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível fazermos um levantamento quantitativo, a partir das fontes
judiciais que dispúnhamos – inventários post-mortem e cartas de alforria – dos
escrivães e/ou tabeliães Antonio Vaz Ferreira Júnior, João de Sousa e Silva e Manoel
Pereira da Silva Castro exercendo os seus “atos de escrita” (RACHI, 2016). Lembremo-
nos que, por mais que estes sujeitos estivessem exercendo os seus ofícios cotidianos,
produzindo uma gama de processos com variadas finalidades e intenções, qualquer
modalidade de linguagem representa modos de expressão, crenças e princípios de um
determinado tempo e espaço.
O modelo formal, como é o caso da esfera jurídica, foi encarado como legítimo
por conter regras que conferem fidedignidade ao texto, sendo utilizado pelas instâncias
de poder, segundo Sílvia Rachi (2016). Responsáveis, ademais, por encabeçar uma
realidade de manutenção e dominação das relações entre os indivíduos que
extrapolaram as figuras dos escrivães e/ou tabeliães supracitados.
Na esfera de suas vidas privadas, não desassociadas do ofício que ocupavam, de
tal modo que, o prestígio conferido ao cargo ocupado, neste momento, estava
interseccionado com o sujeito de carne e osso, ou seja, não precisava estar segurando
uma pena/lápis e/ou (re)afirmando o seu lugar no universo jurídico para conferir-lhe o
“prestígio natural”, os escrivães e/ou tabeliães estão presentes em celebrações de
batismo, casamento e óbito da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó,
apontando para o que Sílvia Rachi elucida nos seus escritos: “[a “escrita”] possibilita,
por um lado, a manutenção do poder nas mãos daqueles que dominam tal
conhecimento, com forte conexão com as instituições religiosas e elites educadas.”
(2016, p.338).
Portanto, não somente era o reconhecimento da entidade para com estes
sujeitos, mas as pessoas, no contexto social em que eles estavam inseridas, tratando-
se da Ribeira do Seridó, também eram reconhecedoras deste lugar social ocupado por
estes oficiais da Justiça, sendo reflexo desta percepção, o “parentesco espiritual” que
estes indivíduos foram convidados a se agregar.
Foi com base nestes dois universos, o jurídico e o religioso, que tentamos traçar
um perfil acerca do lugar social ocupado pelos sujeitos Antonio Vaz Ferreira Júnior,
João de Sousa e Silva e Manoel Pereira da Silva Castro. Elucidando a “escrita” (RACHI,
2016) como um instrumento intrínseco aos jogos de poderes, caracterizando

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
283

ideologicamente as “relações sociais”, as esferas públicas e privadas e,


compreendendo que, a tessitura das letras constitui-se como um ato político,
estratégico e intencional, direta ou indiretamente, no qual foi possível vencer-se o
tempo, revelando as ideias de outras épocas e territorialidades.
Importante destacar, também, os “atos de escrita” (RACHI, 2016) para além das
pessoas que detinham este conhecimento. Por exemplo, nos inventários post-mortem,
cartas de alforria, registros de nascimento, matrimônio e falecimento, a presença
constante de diversos tipos sociais, tais como escravos e mulheres, que não
dominavam, salvo as ressalvas, por ser restrito aos mesmos, o conhecimento das
letras, é efervescente. Todavia, a falta desta habilidade nos seus cabedais intelectuais,
o que não quer dizer que não o fossem capazes de o tê-lo, não negaram a sua
participação na história, no envolvimento com os sujeitos e instituições de poder, de
serem personagens protagonistas e figurantes na vida social em que estavam
inseridos.
A “escrita” (RACHI, 2016) e os “atos de escrita” (RACHI, 2016) configuraram-se
como um dispositivo de poder social e político bastante eficaz, sobretudo por trajarem
os sujeitos que tinham o seu conhecimento de uma estima social bastante prestigiosa,
estando ligados às duas maiores pujanças do período colonial na América Portuguesa,
a Justiça e a Igreja. Escrever, a próprio punho, este sistema simbólico formado por
letras, constituindo-se em palavras, no qual tecer a mais ingênua de todas as coisas, é
versar sobre algo e falar de si próprio, mesmo que subjetivamente.

FONTES
ARQUIVO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE CURRAIS NOVOS (AVCCCN). Fundo da Comarca
de Currais Novos (FCCN), 3º Cartório Judiciário (3ºCJ), Inventários post-mortem, Caixas 01 a 03
(1788-1854). Fórum Municipal Desembargador Tomaz Salustino, Currais Novos, RN.

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico.


Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.

COMARCA DE CAICÓ (CC). Cidade Judiciária de Caicó. Cartas de Alforria – Livro de Notas. Vila
Nova do Príncipe, 1792-1814.

CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA (1853 [1720]). Disponível em:


<http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222291>. 8 de agosto 2018

FREGUESIA DA GLORIOSA SENHORA SANTA ANA DO SERIDÓ (FGSSAS). Livro de registro de


batizados nº 01 (1803-1806). Acervo da Casa Paroquial São Joaquim, Paróquia de Santa Ana,
Caicó, RN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
284

FGSSAS. Livro de registro de batizados nº 02 (1814-1818). Acervo da Casa Paroquial São


Joaquim, Paróquia de Santa Ana, Caicó, RN.

FGSSAS. Livro de registro de batizados nº 03 (1818-1822). Acervo da Casa Paroquial São


Joaquim, Paróquia de Santa Ana, Caicó, RN.

FGSSAS. Livro de registro de casamento nº 01 (1788-1809). Acervo da Casa Paroquial São


Joaquim, Paróquia de Santa Ana, Caicó, RN.

FGSSAS. Livro de registro de casamento nº 02 (1809-1821). Acervo da Casa Paroquial São


Joaquim, Paróquia de Santa Ana, Caicó, RN.

FGSSAS. Livro de registro de óbito nº 01 (1788-1811). Acervo da Casa Paroquial São Joaquim,
Paróquia de Santa Ana, Caicó, RN.

LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC). Fundo da Comarca de Caicó


(FCC), 1º Cartório Judiciário (1ºCJ), Inventários post-mortem, Caixas 01, 02, 03, 04, 05, 321, 322,
323, 410 e 481 (1737-1815). Labordoc, Centro de Ensino Superior do Seridó, Campus de Caicó,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

MANUAL DO TABELIÃO (1834). Disponível em:


<http://www.fd.unl.pt/BibliotecaDigitalDetalhe.asp?Area=BibliotecaDigital#>. Acesso em: 17
maio 2018.

ORDENAÇÕES FILIPINAS (1870 [1603]). Disponível em:


<http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733>. Acesso em: 05 julho 2017.

REFERÊNCIAS
AUGUSTO, José. Seridó. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.

AGUIAR, Júlia Ribeiro; GUEDES, Roberto. Pardos e pardos forros: agentes da escravidão e da
mestiçagem (São Gonçalo do Amarante, Rio de Janeiro, século XVIII. In: GUEDES, Roberto;
FRAGOSO, João (Org.). História Social em Registros Paroquiais (Sul-Sudeste do Brasil,
séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. p. 87-120.

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Recuperando sociabilidades no passado. In: BOTELHO,


Tarcísio Rodrigues et al (Org.). História Quantitativa e Serial no Brasil: um balanço. Goiânia:
Anpuh-mg, 2001. p. 27-43.

CHATURVEDULA, Nandini & STUMPF, Roberta (Orgs). Cargos e ofícios nas monarquias
ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Lisboa: CHAM – Centro de
História do Além-Mar, 2012.

FRAGOSO, João. Apontamentos para uma metodologia em História Social a partir de


assentamentos paroquiais (Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII). In: FRAGOSO, João; GUEDES,
Roberto; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Org.). Arquivos Paroquiais e História Social na
América Lusa: Métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um corpus documental. Rio
de Janeiro: Mauad X, 2014. p. 23-125.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
285

GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico.
In:_____. A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 169-178.

LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. Um império de papel: um histórico do ofício de


escrivão da Câmara do Natal (1613-1759). 2018. 385f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no
sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no
sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos e Cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos
sertões da pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os
séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015.

RACHI, Sílvia. Por mãos alheias: usos da escrita na sociedade colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. Temp(l)o da salvação: representações da morte e ritos


fúnebres no Seridó nos séculos XVIII e XIX. 2005. 182f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal-RN, 2005.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e


seus juízes: 1609-1751. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
286

A INFRAÇÃO DAS POSTURAS E ALGUNS PERFIS DE


INFRATORES DO RIO GRANDE: GUARAÍRAS202 E GOIANINHA203
(1707-1717)

Sarah Karolina Sucar Ferreira*


Orientadora: Carmen M. O. Alveal

Este trabalho tem como objetivo analisar o perfil dos indivíduos que infringiam
as posturas camarárias e quais eram essas infrações, tendo como foco a espacialidade
da região do aldeamento do Guaraíras e do povoamento de Goianinha, no período de
1707 a 1717. Para isso utilizou-se do Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara
(onde se encontram os Editais de Postura) e a principal fonte utilizada para essa
pesquisa é o Livro de Correições do Senado a Câmara de Natal. Foi feito também o
cruzamento de fontes, com os registros paróquias, os Termos de Vereação e Livros de
Cartas e Provisões e sesmarias. Levando em consideração que o Senado da Câmara de
Natal era a única municipalidade na capitania até o ano de 1759, e para compreender
melhor essa instituição é necessário saber um pouco sobre o código geral que a regia.
O código Filipino, criado no período da União das Coroas, feito pelo rei Felipe II,
passou a viger no reinado do seu filho Felipe III, sendo esse código de lei impresso e
promulgado em 1603. Esse código é dividido em cinco livros. Pode-se destacar que no
primeiro livro aborda questões sobre o Senado da Câmara e suas atribuições, além dos
cargos e suas funções, como estar responsável pelos pesos e medidas, taxações e
impostos (DIAS, 2011).
De acordo com Lívia B. da Silva Barbosa, uma das práticas recorrentes da Coroa
portuguesa, no período da conquista, era a instalação de instituições administrativas,
como a Provedoria da Fazenda e a Câmara (BARBOSA, 2017- a, p. 23). Em relação à
Capitania do Rio Grande, com a retomada do domínio português, em 1659, após a
expulsão dos holandeses, um dos primeiros órgãos administrativos instituídos foi o
Senado da Câmara. Segundo o professor Rubenilson Brazão Teixeira, que identificou

202 De acordo com Luís de Câmara Cascudo, o nome Guaraíras vem de “guaraí”, que tem o significado de
uma espécie de peixe e mais “ira”, “(...) que tem o significado o diminutivo de animais, ou seja, filhotes de
guaíras”(CASCUDO, 1968).
203 O local foi chamado primeiro de Goiana, que em tupi significa abundância de caranguejo. No século

XVIII mudou o nome para Goianinha, para se diferenciar de Goiana de Pernambuco (CASCUDO,1968).
*Universidade Federal do Rio Grande do Norte, aluna de graduação.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
287

uma doação de chão de terra para o Conselho da Câmara da Cidade do Natal no ano de
1605, este leva a inferir que a capitania do Rio Grande teve sua primeira câmara fundada
possivelmente entre 1599 e 1605204 no termo da cidade de Natal, único local a ter foro
de municipalidade na capitania até 1759, quando as reformas pombalinas
transformaram os aldeamentos em vilas (TEIXEIRA, 2014). Natal era a única localidade
com foro de município, e por isso sua área administrativa compreendia também a outras
povoações da capitania (BARBOSA, 2017-b).
No tocante às funções da câmara, estas seriam legislar, fiscalizar, elaborar,
cumprir as ordens reais, além de fazer os bandos, editais de posturas, acórdãos,
regulamento de feriados públicos, procissões e pressionar a população a cumprir essas
ordens (BARBOSA, 2015-b). O não cumprimento dessas resultava em multas e penas,
as quais eram executadas pelos camarários. Em relação à arrecadação da câmara, essa
provinha das propriedades municipais e dos impostos e, no início, as provisões básicas
estavam isentas, como pão, sal e vinho. Outra fonte de renda eram as multas cobradas
pelos almotacés. A denúncia era incentivada pela coroa, pois o denunciante receberia
uma parte da multa e a Coroa outra (BARBOSA, 2015-b).
Em relação às posturas camarárias, segundo Thiago Dias, essas eram feitas no
início do ano, e eram colocadas em lugares públicos das cidades e das ribeiras (DIAS,
2011). E nessas regras sociais havia o que não seria permitido e o valor da multa (como
não pesar com “pesos de pedra”), além de deveres, como aqueles que possuíssem
escravos deveriam cultivar obrigatoriamente certa quantidade de gênero, para garantir
o abastecimento. Para fiscalizar as posturas, a câmara nomeava os almotacés, os quais
geralmente eram pessoas que já haviam ocupado cargos camarários anteriormente
como juízes ou vereadores (BARBOSA, 2015-b). Em se tratando da função do almotacé,
destaca-se fiscalizar os pesos e medidas, “a sanidade pública”, “controle do mercado”,
a configuração do traçado urbano, dentre outras atribuições (PEREIRA, 2001; SOUSA,
2003). O tempo de prestação de serviço desse cargo, geralmente, era curto para não
prejudicar o bem comum e evitar subornos. Em média, o tempo de serviço do almotacé

204 Por muito tempo acreditava-se que o Senado da Câmara da Cidade de Natal tinha sido fundado em
1611, mas o professor Rubenilson Brazão Teixeira questionou essa afirmação. Com base num documento
de chão de terra que foi doado à câmara de Natal, em 1605, Teixeira levanta a hipótese de que a câmara
teria sido fundada junto com a cidade em 1599, ou em 1605. O autor ainda afirma que a fundação poderia
ter sido entre essas duas datas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
288

era um mês. No caso da capitania do Rio Grande poderia chegar a dois meses
(BARBOSA, 2015-b).
De acordo com Thiago Dias, as correições seriam um meio de “vigilância do
comércio” e também poderiam ser entendidas como o ato de “[...] correr os lugares,
povoados, vilas e caminhos em busca de corrigir, censurar, repreender e punir” (DIAS,
2011, p. 155). Segundo este, essas correições ocorriam duas vezes por ano. Segundo
Kleyson Bruno Chaves Barbosa, a questão do almotacé era de grande importância,
sendo 27,41% das discussões na Câmara sobre a nomeação para esse cargo,
principalmente no mês de janeiro e abril, (BARBOSA, 2015-b, p. 10-16).
Além disso, é importante enfatizar que, no período estudado, a Capitania do Rio
Grande era subordinada à administração do Governo de Pernambuco e judicialmente à
comarca da Paraíba (DIAS, 2011).
Com o objetivo de compreender a ação camarária e como ocorria essa
fiscalização, identificando quais as regras que foram estabelecidas nos editais de 1709
a 1717205, na capitania, delimitou-se o espaço geográfico de estudo do aldeamento de
Guaraíras e a povoação de Goianinha. A primeira localidade foi escolhida devido à
recorrência da citação da lagoa de Guaraíras nos editais de posturas, o que poderia
indicar uma importância dessa região para a pesca; e a segunda localidade pela relação
entre as pessoas que pescavam na lagoa acima citada e foram moradores de Goianinha.
Ademais, pretende-se analisar quais as infrações foram infringidas nessa região e se
havia diferença na aplicação das multas, e, por fim, construir o perfil de alguns
infratores. O período analisado é de 1707 a 1717206.

AS POSTURAS E A FISCALIZAÇÃO CAMARÁRIA


Dentre as responsabilidades do Senado da Câmara estava a publicação do Edital
de Posturas, o qual seria um conjunto de regras sociais de conduta, e a fiscalização do
cumprimento dessas (NOGUEIRA, 2017, p. 116). Foram analisados os editais de 1709207

205 Apesar do recorte cronológico deste trabalho começar já em 1707, foram encontrados somente os
editais de posturas para o ano de 1705 e 1709 a 1760, possivelmente os anteriores foram perdidos, pois
se tem nomeação para o cargo de almotacé para anos anteriores, como correições também.
206 Esse recorte temporal é devido à própria limitação das fontes de correições, que após essa data tem

um lapso de quase 30 anos.


207Apesar de o recorte temporal deste trabalho ser desde 1707, só foi possível ter acesso aos editais de

posturas a partir de 1709. Possivelmente os editais anteriores existiram já que havia correições em
períodos anteriores a 1709.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
289

a 1717, procurando identificar quais as regras que foram estabelecidas na capitania


nesse período, bem como as correições de 1707 a 1717, na região do Guaraíras e
Goianinha. Com base nos dados levantados, e por meio de uma análise quantitativa e
qualitativa, pode-se fazer o seguinte levantamento:

Tabela das posturas que não aparecem nas correições de Guaraíras e Goianinha no período estudado.
O registrador tem que vir dar conta ao Senado e ter currais e ranchos cobertos 0
suficiente

Tirar licença e molde da rede 0

Todos os moradores que tiverem escravos deveriam plantar cada cerca de 2 mil covas 0
de mandioca, e ao redor dessas plantar, carrapateiros, mamoeiros e bananeiras.

Os alqueires só devem sair da capitania com licença 0

Os índios deveriam trabalhar nas lavouras e não nas salinas, por causa da falta de 0
alimento (1710)

Tirar o sal com licença 0

Nenhuma pessoa poderá levar farinha dessa capitania para negociar (1710) 0

Limpar as testadas 0

Toda pessoa que pescar por negócio será obrigado a vender peixe ao povo dessa 0
capitania com o preço do edital (1712)

Os mestres de barcos deveriam dar entrada no Senado 0

Fonte: IHGRN-Livros de Correições do Senado da Câmara de Natal- 1707-1717 e Editais de posturas 1709-
1710-1711-1712-1713-1715-1716-1717.

Com isso, pode-se percebe que não houve registro de infração de todas as
posturas ao longo do período estudado. Todavia outras posturas foram descumpridas
diversas vezes nesse mesmo espaço de tempo, como mostra a tabela a seguir:

Tabela: Editais de posturas e posturas infringidas.


Tirar licença para exercer ofício mecânico 1

Ter licença para vender qualquer gênero 3

Tirar gado da capitania só com licença do registrador 2

Vender o peixe de acordo com o preço do edital 10

Proibido tirar peixe da capitania sem licença 3

Só cortar carne e erguer balança com licença do contratador 3

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
290

Vender carne e porco de acordo com o preço estabelecido 1

Não se pode tampar os rios, nem bater 208, nem impedir o curso dos peixes 4

Não se deve matar gado ocultamente 1

Vender todo peixe que o povo queira comprar 4

Vender tudo fora do edital 1

Vender peixe para fora por mais do edital 2

Vender farinha de acordo com o edital 3

Ter as medidas afiladas de acordo com a câmara, e sendo proibido pesar com pedras 11
e cuias

Fonte: IHGRN- Livros de Correições do Senado da Câmara de Natal- 1707-1717 e Editais de posturas 1709-
1710-1711-1712-1713-1715-1716-1717.

De acordo com os dados, compreender que as posturas, além de expressar um


código que deveria ser seguido, demonstrava a preocupação da administração local
sobre o abastecimento que era uma das atribuições camarárias (BARBOSA, 2017-b). A
base da alimentação nesse período era a mandioca (LOPES, 2005), e o cultivo de duas
mil209 covas de mandioca, de acordo com os editais, era obrigatório para todos os
moradores que tivessem escravos, como também plantar ao redor dessa plantação
outros alimentos como mamoeiros, carrapateiros e bananeiras.
Com esse gráfico é possível entender que o controle sobre a farinha e o peixe
foram os alimentos mais presentes nas correições dessa região no período estudado.
Segundo Luís Câmara Cascudo, Ana Lunara S. Morais, André V. Sales, a lagoa do
Guaraíras foi, durante o período holandês, uma zona fértil de plantação de mandioca,
produção de farinha, e abundância de peixe (CASCUDO, 1955, p. 79; MORAIS, 2014;
SALES, 2012, p. 36). Conforme Aldinizia M. Sousa, que estudou sobre a alforria e
escravidão na Vila de Arez210 nos séculos XVIII e XIX, e por meio da analise dos
inventários, a historiadora constatou que o produto agrícola mais mencionado foi a
mandioca. De acordo com esta, a mandioca, que era feita em Arez, seria tanto para o
consumo como também para a negociação, principalmente no sertão (SOUSA, 2013, p.
41-49). O comércio de farinha local que ocorria na região de Goianinha foi possível
identificar por meio das correições, mas não foi possível perceber o comércio desse

208 Pode significar possivelmente impedir o curso do peixe.


209 Apenas em um edital esse número era reduzido a mil.
210 O aldeamento do Guaraíras se torna vila de Arez, em 1760 após as reformas pombalinas (LOPES,

2005).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
291

gênero alimentício para outras capitanias. Todavia, esse comércio de farinha para fora
da capitania existia, pois tem um edital de 1710211, que proíbe levar farinha para negociar
fora da capitania.
Segundo Ana Lunara S. Morais, a pesca, assim como a agricultura, também era
um meio de subsistência para os moradores da capitania do Rio Grande e de outras
regiões da América Portuguesa. Segundo esta, em 1607, os padres da Companhia de
Jesus, afirmaram que, próximo ao rio Jacu, havia três lagoas (Guaraíras, Papeba e
Papari) de grandes dimensões e abundância de peixe (MORAIS, 2014). Nos editais
analisados de 1709 a 1717, o nome da lagoa do Guaraíras foi citado em todos, e algumas
vezes o de Papari. Essa recorrência dessa região nos Editais de Posturas mostra a
relevância dessa lagoa como local pesqueiro. A lagoa do Guaraíras foi diversas vezes
alvo de tentativas do controle camarário, cuja preocupação não era somente com os
impostos, mas também com o abastecimento (ALENCAR, 2017, p. 56). Ademais, a
maioria das infrações, fosse na região da lagoa do Guaraíras, fosse no povoamento de
Goianinha estava relacionada a peixe, fosse por vender por mais que o preço
estabelecido pela câmara, por não querer vender ao povo, ou ainda vender para fora da
capitania sem licença camarária, podendo-se perceber que esse comércio de peixe
ocorria tanto no interior da capitania, como também com outras capitanias. Foi possível
identificar, por meio das correições, que alguns moradores da capitania do Rio Grande
vendiam peixe para habitantes da Paraíba, e algumas vezes por preços maiores do que
os estabelecidos nos editais da câmara de Natal. Além do comércio, é possível inferir a
preocupação da câmara em manter o curso dos peixes nos rios, possivelmente para
evitar a falta desse alimento, e uma maneira de tentar manter o abastecimento da
capitania (BARBOSA, 2017-b).
Dessa forma, mesmo que nem todas as infrações não tenham sido cometidas ou
denunciadas não significa que essas outras situações não existiram nessas localidades,
mas que algumas foram mais proeminentes ou menos encobertas.

JUSTIFICATIVAS DE DIMINUIÇÃO DE MULTAS E ALGUNS PERFIS DE INFRATORES.


A partir da análise das correições foi possível identificar cerca de 22 indivíduos
que infringiram as posturas camarárias na região do Guaraíras e Goianinha. E, com isso,

211 De acordo com Alencar uma proibição de vender farinha para fora tinha ocorrido em 1690, e o problema

com abastecimento, continuou até por volta meados do século XVIII. (ALENCAR, 2017).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
292

pode-se identificar três justificativas utilizadas para manter ou diminuir o valor das
condenações, como mostra o gráfico a seguir:

1
1

Não houve justificativa ou foi


de acordo com o edital
4
Por ser muito pobre

"Por ser falto de bens e ser


preto"
Pagar a condenação por ter
posses de bens
16

Fonte: FUNDO documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Senado da Câmara
do Natal. CORREIÇÃO- Câmara do Natal – Ano – 1709-1715-1727.

Dessa forma, pode-se constatar que a justificativa para a diminuição das multas
era a situação financeira do indivíduo, que possivelmente tinha sua pena diminuída para
que pudesse pagá-las. Segundo Kleyson Barbosa, a situação de pobreza do indivíduo
poderia fazer com que sua condenação pudesse ser diminuída (BARBOSA, 2017-b).
Todavia, não era sempre que se conseguia ou se tinha essa alegação para a mesma
pessoa, como, por exemplo, João Gonçalves de Ataíde, o qual foi condenado quatro
vezes (1709, 1711, 1712, 1716), e dessas apenas em duas teve alegação de ser muito
pobre (1709 e 1716), e as outras duas foi condenado a pagar a multa estabelecida pelo
edital. Sobre Ataíde foi possível notar, pelas correições, que ele vendia peixe, já os
outros três casos em que também aparece a alegação de pobreza para a diminuição da
pena estava o crioulo forro Lourenço Dias (que pescava e vendia peixe); o outro se sabe
que também estava envolvido na venda de peixe e corte de carne, e os quarto que
recebeu essa alegação tinha cometido a infração de “bater no rio”.
Em relação à justificativa “por ser falto de bens e ser preto” para Pedro da
Cunha, foi a única que se utilizou da qualidade como meio de argumentar para reduzir a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
293

pena. Em primeiro lugar, a afirmação de Pedro ser preto212 e não aparecer sua condição
jurídica indicaria que ele era livre, e que nasceu nessa condição, possivelmente filho de
mãe forra, pois numa sociedade extremamente hierarquizada e escravista a qualidade
e seu status jurídico era um fato de distinção social (PAIVA, 2015). Mas essa justificativa
de qualidade ter sido só para Pedro e não para o crioulo forro Lourenço, não ter sua
qualidade como justificativa pode indicar que essa distinção fosse mais do olhar do
outro, fosse do escrivão, fosse dos camarários sobre a situação dessas pessoas, pois
no mesmo ano dessa argumentação aparece a justificativa oposta para outro indivíduo
ter sua pena mantida. Com a justificação de “ter posses de bens” o sargento-mor
Domingo Dias da Penha foi condenado a pagar a pena prevista. Mesmo com o
cruzamento de fontes não foi possível identificar esses bens. Entretanto, o Capitão
Cipriano Lopes que possuía sesmaria e que havia ocupado cargos camarários, tinha
cabedal, escravos, vendas, possuía ouro, prata, cobre, gado vacum, e cavalar, além de
bens móveis, não aparece em sua justificativa de “ter posses de bens”(GALVÃO, 2012).
Possivelmente essa justificativa como a utilizada para Pedro da Cunha seja mais
uma interpretação do escrivão (já que essas duas justificativas que só apareceram uma
vez foram no mesmo ano), do que uma justificativa recorrente para a diminuição das
penas.

ALGUNS PERFIS DE INFRATORES.


Com o objetivo de identificar o perfil dos infratores da região estudada, foram
consultadas outras fontes, como as cartas de sesmaria (SILB), para identificar quem
possuía terras e onde essas estavam localizadas; o Catálogo dos Termos de Vereação,
que permite saber quais pessoas ocuparam cargos camarários e as patentes que esses
tinham na época que ocuparam esses cargos; e os registros paroquiais, que podem
indicar as relações dos indivíduos, como a localidade onde moravam ou circulavam. Com
base nesse levantamento fez-se o quadro a seguir com o universo total de 22 pessoas:

212 Segundo Eduardo França Paiva, uma das qualidades que foram mais usualmente atribuídas as
pessoas nascidas na África ou seus descendentes direitos nascidos na América, foi “negro”, “preto” e
“crioulo”. (PAIVA, 2015, p. 205).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
294

Informações dos infratores de Guaraíras e Goianinha (1707-1717).213


Possuidor de terras 6

Possuía cabedal214 (terras e escravos) 2

Ocupou cargos camarários 2 (1)cargos juiz ordinário e vereador(1).

Possuía escravos 5

Tinha vendas ou tendas 3

Condição jurídica Livres (21) e forro (1)

Ocupação Coronel215 (1), pescador (4), oficial de carapina


(1), tabelião público e escrivão da Fazenda
Real (1) e (Matheus que era escravo
trabalhava como ferreiro).

Patente militar Capitão de ordenanças de Pernambuco216 e


coronel (1), capitão e coronel (2), capitão (2),
sargento-mor (1).

Localidade onde moravam Papeba do Guaraíras (1), Mipibu (1), Capitania


da Paraíba (1), Capitania do Rio Grande (3),
Goianinha (4), foi morador no Jaguaribe (1).

Infrações cometidas por escravos 8

Qualidade Crioulo (1) e preto (1).

Tipo de alimentos citados Peixe (16), carne (2) e carne seca (1), farinha
(3), aguardente e mel (1), fumo (1).

Fonte: FUNDO documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Senado da Câmara
do Natal. CORREIÇÃO- Câmara do Natal – Ano – 1709-1715-1727; IHGRN – Livro de Cartas e Provisões
do Senado da Câmara do Natal; LOPES, Fátima Martins (org.) Catálogo dos Livros dos Termos de
Vereação do Senado da Câmara do Natal (1674-1823). No prelo. ASSENTO DE BATISMO, Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação-1688-1710; ASSENTO DE MATRIMÔNIO, Freguesia de Nossa Senhora
da Apresentação-1727-1740; 1740-1752.

Por meio dos dados, pode-se perceber que pessoas que tinham ocupado cargos
na câmara, que eram “homens bons”, que conheciam os editais de posturas também as
infringiam. Apesar de as infrações não terem sido cometidas no ano que essas pessoas
estavam ocupando os cargos camarários, mas na maioria das vezes posteriormente, e

213 O universo total dessa tabela são 22 indivíduos, porém não foi possível identificar a informações para
preencher cada quesito para todos. A mesma pessoa pode esta em mais de uma linha se essa possuía o
item informado.
214 Plataforma SILB, RN 0064 e RN 1261 (uma das justificativas pedidas na carta de sesmaria conjunta

entre os solicitantes estava Cipriano Lopes Pimentel). E nas correições foi possível identificar os
escravos desses dois descumprindo os editais.
215 De acordo a Plataforma SILB, nas cartas RN 0049 e RN 0064, Estevão de Bezerril alegou ter a

ocupação de coronel.
216 O cargo de capitão de ordenação geralmente é atribuído a uma localidade, como por exemplo,

freguesias, o que parece estranho essa generalidade a ser referir a todo a capitania. (Anais da Biblioteca
Nacional- Vol. 75.)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
295

essas pessoas já conheciam os editais previamente. O que é interessante nessa


informação é que tanto o juiz ordinário como o vereador tinham como uma de suas
funções de fazer os editais, e que mesmos esses às vezes os desrespeitavam como foi
o caso do coronel Estevão de Bezerril, juiz ordinário em 1711 e descumpriu a postura em
1712.
Ademais, sobre as duas vendas, Barbosa afirma a presença de escravos
trabalhando em vendas de mantimentos no Povoamento de Goianinha e demonstra a
dinamicidade que essa localidade tinha naquele período (BARBOSA, 2017-b, p. 133).
Além dessas duas vendas, ainda foi possível identificar uma tenda vendendo
mantimentos na mesma localidade, porém nessa não se pode afirmar a presença da
mão de obra escrava. Ademais, desse tipo de mão de obra, também se expressava nos
ofícios mecânicos, como, por exemplo, do ofício de ferreiro, a utilização desses ofícios
também seriam um elemento que expressaria a dinâmica desse povoamento.
De modo geral, os infratores eram de localidades diferentes, sendo só um de
outra capitania e todos os outros moradores da Capitania do Rio Grande e de condição
jurídica livre e um forro. Apesar de oito infrações terem sido cometidas por escravos
(sendo cerca de 5 do capitão Cipriano Lopes), o responsável por pagar as multas foram
seus senhores, pois possivelmente era o senhor o responsável pelo preço correto, pela
licença e por afilar as medidas. O tipo de alimento que mais é citado nas correições,
como já foi dito anteriormente é o peixe e a farinha.
Com esses dados foi possível construir o perfil de alguns dos infratores, e, como
forma de exemplificar a diversidade desses perfis, serão usados o coronel Estevão de
Bezerril, o crioulo forro Lourenço Dias e o capitão Manuel do Prado Leão. Sobre
Bezerril, ele tinha a condição jurídica livre, sua idade seria 70 anos mais ou menos no
ano de 1708, era morador na Ribeira de Goianinha, era casado, e sabe-se que ele tinha
uma filha chamada Ignes217. Em relação ao status, de acordo com a carta de sesmaria
de 11 de julho de 1706 (RN0064) Estevão possuía cabedal (na carta de sesmaria
RN0064218, ele afirmava que tinha gado vacum e cavalar, que mostra outra indicação

217 Ignês foi madrinha em Goianinha, e ao invés de seu sobrenome é citado o nome de seu pai Estevão de
Bezerril, mostrando a importância dele (ASSENTO DE BATISMO, Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação-1688-1710). Segundo Thiago Dias, o batismo criaria uma ligação entre o batizado e
padrinho que iriam até o quarto grau, também seria um modo de criar redes com pessoas de diferentes
camadas sociais. (PAULA)
218 Plataforma SILB.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
296

de cabedal), morava há 16 anos na Ribeira de Goianinha, e na carta requeria título de


terra, pois afirmava ter comprado as terras a Luís do Vale Ferreira. Além dessa
sesmaria, Estevão de Bezerril tinha pedido junto com José Barbosa Leal uma sesmaria
(RN 0046), na Ribeira de Piranhas, utilizando-se da justificativa de que não tinham
terras e que haviam lutado contra índios. Pode-se perceber que a alegação de não ter
terras foi desmentida pela justificativa da segunda sesmaria. Em relação às patentes
militares que Bezerril ocupou, identificou-se duas: em 1679, ele tinha sido nomeado
capitão de ordenanças de Pernambuco, e, a partir de 1706, como coronel, alegou ser sua
ocupação. Ademais, Bezerril também ocupou o cargo de juiz ordinário219 por duas vezes,
sendo a primeira em 1692 e a segunda em 1711, um ano antes de infringir a postura, pois
consentiu que seu escravo vendesse farinha por um preço maior do que o estabelecido
pela câmara, além de não ter os pesos nem medidas afilados. Dessa forma, pessoas de
alto status, que ocuparam cargos camarários, e que chegaram a fazer parte da
elaboração dos editais de posturas, também as infringiram.
Em relação ao segundo perfil, Lourenço Dias, crioulo220, o qual tinha a condição
jurídica de forro e sua ocupação221 era de pescador. Ele cometeu infrações em 1709 e
1716, a primeira, por vender peixe para fora da capitania sem licença, alegando que os
seus circunvizinhos não queriam comprar peixe a ele e porque não tinha como ir até a
cidade pedir licença, pela justificativa de ser pobre teve a pena diminuída como foi
citado acima. Em 1716, Lourenço foi condenado novamente, mas a infração cometida foi
ter vendido o peixe acima da taxa estabelecida pela câmara.
Por fim, o terceiro perfil é do capitão Manuel Prado Leão, o qual tinha a condição
jurídica de livre. Em 1707, tinha por volta de 55 anos, morava na Papua do Guaraíras.
Sua condição matrimonial era de casado, e possuía a patente militar de capitão. A
ocupação de Leão, segundo essa correição, era que vivia de “suas redes”. Ele infringiu a
postura de vender peixe para fora da capitania sem licença no ano de 1709. Um ano
depois, apareceu com o mesmo nome e patente, com a idade de 56 anos mais ou menos,
entretanto o local que afirmou residir foi Goianinha e não mais o Guaraíras, e afirmou
“viver de suas agências”, levando a crer que sejam a mesma pessoa e que tenha

219 O juiz ordinário era o presidente da câmara, geralmente membro da elite local, eleito pelos por meio
da eleição de pelouro. (BICALHO, 2001; NOGUEIRA, 2017).
220 Segundo Paiva, uma das fórmulas utilizadas nas documentações do século XV era “nome+ qualidade

+ condição”. (PAIVA, 2015).


221 Correição de 1707, e também citada na dissertação de Barbosa (2017).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
297

mudado-se de uma localidade para outra. Posteriormente, em 1711, apareceu nas


correições permitindo que sua escrava vender mel e água ardente sem ter as medidas
afiladas e sem licença.
Portanto, o perfil dos infratores podia variar desde ex-camarários, comerciantes,
pescadores e militares a pessoas com cabedal ou não, livres ou forros, os quais de uma
maneira ou de outra participavam do comércio e o do abastecimento na capitania do Rio
Grande.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir que posturas eram infringidas por pessoas de status menos
elevados ou de qualidades consideradas inferiores podiam ter suas penas diminuídas,
sob alegação de serem muito pobres. Todavia, alguns infratores tiveram suas penas
diminuídas, outros não.
Os produtos identificados no comércio eram alimentos básicos para alimentação
da capitania, o peixe e a farinha de mandioca, que estavam vinculados tanto à pesca e à
agricultura, atividades bastante presentes na vida dos moradores da capitania.
Em relação ao perfil dos infratores, menos da metade tinham terras e patentes
militares, podendo-se inferir que a maioria dos infratores viviam da pesca ou/e do
comércio. Em relação a esse último, como já foi citado ao longo do trabalho e por outros
historiadores, era mais dinâmico em Goianinha do que no aldeamento do Guaraíras.

FONTES
FUNDO documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
Senado da Câmara do Natal. CORREIÇÃO- Câmara do Natal – Ano – 1709-1715-1727.

IHGRN – Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara do Natal.

LOPES, Fátima Martins (org.) Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do
Senado da Câmara do Natal (1674-1823). No prelo.

Plataforma Sesmaria do Império Luso-Brasileiro- SILB.

ASSENTO DE BATISMO, Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação-1688-1710.

ASSENTO DE MATRIMÔNIO, Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação-1727-


1740; 1740-1752.

Anais da Biblioteca Nacional- Vol. 75. Inventário dos documentos relativos ao Brasil,
existentes na biblioteca Nacional de Lisboa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
298

REFERÊNCIAS
ALENCAR, Júlio Cesar Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara
de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). 2017.244 f. Dissertação (Mestrado em
História)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em História, 2017.

BARBOSA, Lívia B. da Silva. Das ribeiras o tesouro, da receita o sustento: a


administração da provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1606-1723). 2017. 227 f.
Dissertação (Mestrado em História)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras, e Artes. Programa de Pós-Graduação em História.
Natal. 2017- a.

BARBOSA; K. Bruno Chaves. A Câmara da Cidade do Natal e os homens de conhecida


nobreza: Governança local na Capitania do Rio Grande (1720-1759). Dissertação
(Mestrado em História)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de
Ciências Humanas, Letras, e Artes. Programa de Pós-Graduação em História. Natal.
2017- b.

BARBOSA; K. Bruno Chaves. A Câmara da Cidade do Natal: O cotidiano administrativo


de uma câmara periférica (1720-1759). 2015. 83 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Bacharelado em História)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de
Ciências Humanas, Letras, e Artes. Programa de Pós-Graduação em História. Natal.
2015- b.

CASCUDO, Luís de Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura, Ser. de Documentação, 1955.

CASCUDO, Luís de Câmara. Nomes da Terra. (S. l.): Fundação José Augusto, 1968.

DIAS, T. A. Dinâmicas Mercantis Coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-


1821). 2011. 274 f. Dissertação (Mestrado em História)- Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras, e Artes. Programa de Pós-
Graduação em História. Natal. 2011.

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva.
O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (século XVI-XVIII). In:
______ (Org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

GALVÃO, Hélio. Velhas heranças. Natal: Edições Sebo Vermelho, 2012.

LOPES, F. M. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob diretório
pombalino no século XVIII. 2005. 699 f.- Tese (Doutorado em História do Norte-Nordeste)-
Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-Graduação em História, 2005.

MORAIS, A. L. S. QUANTO PEIXE SE COMPRA COM UM VINTÉM? Análise da atividade


pesqueira e as querelas derivadas desta na capitania do Rio Grande, 1650-1750.
Revista Ultramares , v. 1, p. 196-221, 2014.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
299

NOGUEIRA, Gabriel Parente. Viver à lei da nobreza: elites locais e o processo de


nobilitação na capitania do Siará Grande (1748- 1804). 1. ed. Curitiba: Appris, 2017.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os
séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho. 1. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015.

PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. Águas da Salvação: O batismo na Freguesia da


Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande do Norte século XVIII e XIX. Revista Histórica e
Cultura/ UNESP- No Prelo.

PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Almuthasib– Considerações sobre o direito de


almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 21, nº42, 2001.

SALES, André Valério. Lugares e personalidades históricas de Arez-RN. João Pessoa: Editora
Universitária da UFPB, 2012.

SOUSA, A. M. Liberdades possíveis em espaço periféricos: Escravidão e alforria no


termo da Vila de Arez (século XVIII e XIX). 2013. 137 f. – Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes. Programa de Pós-graduação em História, 2013.

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la
camara municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidad
de Salamanca, Salamanca, 2007.

TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Terra, casa e produção. Repartição de terras da


Capitania do Rio Grande (1614). Mercator, Fortaleza, v.13, n. 2, p. 105-124, mai./ ago.
2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mercator/v13n2/1676-8329-
mercator-13-02-0105.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
300

SISTEMATIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO MILITAR NA


CAPITANIA DO RIO GRANDE, SÉCULOS XVII E XVIII

Maiara Silva Araújo222


Helder Alexandre Medeiros de Macedo - Orientador223
INTRODUÇÃO
A ocidentalização224 da América Portuguesa refere-se à um processo complexo
e descontínuo de constituição territorial e social, que teve como fundamento um
conjunto de instituições lusitanas (eclesiástica, civil, jurídica, fazendária e militar) que
foram importadas da metrópole para sua colônia. Essas instituições, portadoras de
funcionalidades distintas e complementares, atuaram de forma conjunta nesse
processo de formação territorial da América, que ocorreu em consonância com a
conjuntura social, econômica e cultural de cada capitania instituída nessa espacialidade.
Partindo dessa premissa, nesse estudo, examinamos, especificamente, uma instituição
colonial em particular: o sistema militar. De forma precisa, esse artigo discute o modo
como ocorreu a sistematização da administração militar na Capitania do Rio Grande, no
decurso do século XVII e da primeira metade século XVIII. Problematizando, dessa
forma, os corpos militares existentes nesse território colonial, bem como o perfil
quantitativo dos praças e oficiais que atuaram no recorte espaço-temporal citado.
Para composição desse estudo, foi utilizado assentamentos de praça e baixas,
arquivados no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - IHGRN, e
documentos avulsos225, disponíveis de forma digitalizada no Arquivo Histórico
Ultramarino AHU. Metodologicamente, essa documentação foi examinada de forma
quantitativa226 e qualitativa, no intento de construir o quadro geral da gente de guerra

222 Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Campus de Natal
– Brasil. E-mail: maiarasa@yahoo.com.br.
223 Docente do Departamento de História do CERES, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó – Brasil. E-mail:
heldermacedox@gmail.com.
224 Sobre o conceito de ocidentalização ver os estudos do historiador francês Serge Gruzinski:

(GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das letras, 2001).
225 Essa documentação avulsa é referente a cartas enviadas tanto pelos oficiais da Câmara do Natal

quanto pelos Capitães-mores do Rio Grande à Coroa Portuguesa, na segunda metade do século XVII e na
primeira metade do século XVIII.
226 Para o historiador francês François Furet, a História quantitativa pretende observar a realidade a

partir da noção de números, de valores que podem ser representados graficamente, por meio de recursos
matemáticos. Dessa forma, trata-se de um meio de observação do fenômeno histórico que tem a
quantificação como instrumento de análise. Nessa perspectiva, fizemos uso desse recurso metodológico
para examinarmos o perfil social dos soldados e oficiais que atuaram na Capitania do Rio Grande ao longo
do recorte temporal estudado. Em consonância com esse exercício quantitativo, evidentemente,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
301

que atuou no espaço em exame. Por fim, esta pesquisa parte de lacunas presentes na
historiografia produzida acerca do contexto colonial da Capitania do Rio Grande, no que
concerne ao estudo específico da instância militar da burocracia colonial instaurada no
ultramar. Portanto, pretende-se com o mesmo, preencher algumas dessas lacunas e,
dessa forma, salientar o papel dessa instância administrativa no processo de conquista
e territorialização do espaço em estudo.
No entanto, antes de abordamos esse processo de institucionalização da
administração militar na Capitania do Rio Grande, consideramos pertinente tecer
considerações acerca da organização da administração militar instaurada na América
Portuguesa. Nessa perspectiva, o serviço militar na América era constituído por três
corpos militares: ordenanças, milícias e tropas pagas. Esses corpos militares possuíam
um conjunto de especificidades que os diferenciavam, no que se refere à composição
dos mesmos (gente de guerra) e, dentre outros elementos, ao modo como funcionavam.
Todavia, apesar dessas peculiaridades que os caracterizavam e os tornavam
autônomos, os mesmos atuavam de forma integrada em meio a situações emergenciais
e que ameaçavam a integridade dos espaços administrados pela Coroa. Essa atuação
conjunta das forças militares existentes na América foi caracterizada pelo historiador
Francis Cotta como sendo um sistema militar coorporativo, que mesmo implicando em
integração não resultava na eliminação das especificidades de cada corpo militar que
constituía a instância militar da burocracia colonial instaurada no Ultramar227.
Os corpos militares supracitados, em linhas gerais, organizavam-se da seguinte
forma: as milícias e as ordenanças eram consideradas tropas auxiliares, ou seja, tropas
não burocráticas, permanentes e estáveis. As mesmas, em detrimento das tropas de
linha, eram corpos militares institucionais, regidos pelo Estado português, mas sem o
auxílio financeiro do mesmo228. Dessa maneira, apenas as tropas de linha eram
oficialmente financiadas pelas Câmaras municipais das territorialidades coloniais em
que atuavam.

realizamos também uma análise qualitativa da gente de guerra que constituiu os corpos militares
existentes na Capitania. FURET, François. A História quantitativa e a construção do fato histórico. In:
SILVA, Maria Beatriz Nizza (org.). Teoria da História. Editora Cultrix, 1976. p. 76.
227 COTTA, Francis. Negros e Mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida,

2010. p.35
228 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001. p. 79.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
302

No que concerne especificamente às Ordenanças, em 10 de dezembro de 1570229 foi


instituído em Portugal o Regimento Geral das Ordenanças230 que, além de regular a
atuação desse corpo militar na metrópole, definiu também as atribuições do mesmo na
América. Segundo esse regimento, era obrigatória a matrícula no serviço militar de todo
e qualquer colono, com exceção dos fidalgos e eclesiásticos, residente nas capitanias
da América Portuguesa e que tivesse entre dezoito e sessenta anos. Os habitantes de
cada cidade, vila ou conselho, conforme este regimento, deveriam organizar-se nas
companhias de ordenanças em esquadras de vinte e cinco homens comandadas por um
Cabo de Esquadra, que era um oficial indicado pelo alferes das companhias de
ordenanças e escolhido pelos “homens bons” das Câmaras municipais.
Portanto, as companhias de ordenanças eram formadas pelos moradores locais das
capitanias e que não estivessem matriculados em nenhuma outra tropa militar. Sendo
assim, em tese, cada habitante da colônia, independente de sua qualidade, era um
homem de guerra, que deveria estar à disposição da Coroa em meio a situações
emergenciais, onde a tropa de linha necessitasse de apoio militar. Para a Capitania do
Rio Grande, como discutiremos a posteriori, em meio à Guerra dos Bárbaros, essa
máxima de que todo colono era um homem de guerra ficou evidente nos assentos de
praça e baixas que examinamos, onde identificamos a presença de colonos de
diferentes qualidades atuando como gente de guerra.

229 O Regimento Geral das Ordenanças foi complementado pela provisão de 15 de maio de 1574. Sobre
esse aspecto da administração militar ver SALGADO, Graça, coord. Fiscais e meirinhos - a administração
no Brasil colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/Pró-Memória/ Instituto Nacional do Livro, 1985, p. 97.
230 Assim como nas milícias e nas tropas de linha, existia uma hierarquia entre os ofícios existentes nas

ordenanças. Dessa forma, mesmo sendo obrigatória a matrícula no serviço militar de todo colono
residente em um território sob a jurisdição de Portugal, existiam ofícios nas companhias de ordenanças
que deveriam ser exercidos, preferencialmente, pelos “principais da terra”, que tivessem “partes e
qualidades para os ditos cargos”, como era o caso do ofício de capitão-mor. Em linhas gerais, nesse
contexto, ser considerado como principal da terra remetia a um colono que fosse de qualidade branca,
cristão e que possuísse cabedal. Assim, é evidente que, em meio a uma situação emergencial, todo colono
era um “homem de guerra”, mas nem todos recebiam o mesmo prestígio e ocupavam postos militares
privilegiados. Por fim, além de um capitão-mor, as companhias de ordenanças possuíam um alferes, um
sargento, um meirinho, um escrivão, dez cabos de esquadra e um tambor. Todavia, conforme Graça
Salgado, segundo a ordem de 12 de dezembro de 1739 nas vilas que possuíam até 100 moradores deveria
ser extinto o ofício de Capitão-mor e cada companhia deveria ter apenas o capitão-de-companhia, um
capitão, um alferes, um sargento do número e outro supra e os cabos de esquadra que fossem
necessários, “extinguindo-se todos os demais cargos, ficando reformados os que atualmente tem
exercício, para irem entrando nos postos que vagarem em seus distritos” Ibid. p.107; Regimento dos
Capitães-Mores e mais Capitães e Oficiais das Companhias da gente de cavalo e de pé e da ordem que
terão em se exercitarem, 1570. Disponível em:
<http://www.arqnet.pt/exercito/1570capitaesmores.html>. Acesso em: 11 jan. 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
303

Quanto às milícias, foram instituídas em Portugal no ano de 1641, como tropas


deslocáveis e que deveriam atuar em conjunto com as tropas regulares, instituídas no
ano de 1640. Já na América, segunda Kalina Silva, os primeiros terços foram
engendrados em meio a invasões estrangeiras, como a invasão holandesa à Capitania
de Pernambuco231. No caso específico dos terços de homens “mestiços” e negros,
comandados por Henrique Dias na Capitania de Pernambuco, enxergaram nesse
contexto postbellum um cenário propício para alcançarem a institucionalização de sua
existência232. Entretanto, o processo de criação e instauração em cada capitania da
América portuguesa dos corpos militares obedeceu ao processo de territorialização
desses espaços. Portanto, não foi um processo linear e homogêneo.
As milícias233, diferentemente das ordenanças ou tropas regulares, era organizado
em “terços de base territorial – comarcas, freguesias –, não remuneradas, a não ser
quando em serviço ativo. Seus oficiais também são eleitos entre os civis, com apenas
algumas patentes superiores, mas são geralmente, tiradas das tropas de linha”234.
Normalmente, eram constituídas com base em critérios monetários e étnicos
(qualidade dos colonos).
No que concerne às tropas de linha, eram as forças militares burocráticas tanto em
Portugal quanto na América. Nesse sentido, a gente de guerra que constituía esse
corpo militar deveria dedicar-se exclusivamente ao serviço militar e ser mantido
sempre treinado e em prontidão para defender o território americano de possíveis
inimigos estrangeiros ou internos. Portanto, os membros das tropas de linha deveriam
receber das câmaras municipais regularmente soldo, fardamento, armamento,
assistência médica e alimentos. Entretanto, conforme discutiremos nas páginas
seguintes, as dificuldades enfrentadas pelas tropas de linha na Capitania do Rio Grande
eram muitas, sendo comum a falta de armamento e munições, o que resultava em
fugas, falta de mostras e em pedidos de baixas. Porém, a complexidade do cotidiano

231SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de
homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p.77.
232 SILVA, Luiz Geraldo. Gênese das milícias de pardos e pretos na América Portuguesa: Pernambuco e

Minas Gerais, séculos XVII e XVIII. Revista de História, São Paulo, v, n. 169. p. 111-144, jul/dez. 2013.
233 As milícias estruturavam-se hierarquicamente da seguinte forma: um mestres-de-campo, coronéis,

sargento-mores, tenentes-coronéis, capitães, tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra,


porta-estandartes e um tambor. COSTA, Ana Paula Pereira. Organização militar, poder de mando e
mobilização de escravos armados nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas
colonial. Revista de História Regional, Ponta Grossa, 2006.
234 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Op cit. p. 493.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
304

dos praças não foi uma particularidade da Capitania do Rio Grande, mas também de
outras realidades coloniais, como as Capitanias de Pernambuco e da Bahia235.
Por fim, os corpos militares coloniais, em linhas gerais, tinham como principal
finalidade assegurar a defesa dos territórios que estavam sob a tutela lusitana. Em
consonância com isso, deveriam garantir que o processo de ocidentalização se
expandisse e se consolidasse não apenas no litoral, mas também nos sertões. Dessa
forma, isso explica, por exemplo, a utilização de tropas coloniais em ocasiões de
resistências indígenas ao processo de expansão da colonização e, consequentemente,
de territorialização dos sertões, como foi o caso da Guerra dos Bárbaros nas Capitanias
do Norte do Estado do Brasil, em fins do setecentos e nas primeiras décadas do
oitocentos236.

SISTEMATIZAÇÃO DO SERVIÇO MILITAR NA CAPITANIA DO RIO GRANDE


A institucionalização da administração militar na Capitania do Rio Grande teve
como marco inicial a edificação da Fortaleza dos Reis Magos, em 1598. Percebemos,
com base na documentação e na bibliografia consultadas, que a edificação dessa
estrutura de caráter militar implicou não apenas na vinda da gente de guerra para esse
espaço, mas também possibilitou que tivesse início, de fato, o processo de
territorialização das terras pertencentes a esta Capitania, aspecto materializado, por
exemplo, pela edificação da Cidade do Natal, no ano de 1599, nas proximidades da
Fortaleza237. Dessa maneira, a construção de uma Fortificação no Rio Grande foi,

235 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de
homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII.
236 Guerra dos Bárbaros foi a definição atribuída ao conjunto de embates envolvendo colonos e indígenas

de diversas etnias residentes nos sertões das Capitanias do Norte do Estado do Brasil. A principal causa
desses conflitos, conforme a historiografia clássica, foi o processo de ocupação e territorialização dos
sertões empreendido pelos agentes da Coroa Portuguesa, que compreenderam os nativos como sendo
um empecilho para a expansão da empresa colonial. Segundo Pedro Puntoni, dois grandes conflitos
constituíram essa guerra, o do Recôncavo, ocorrido na Capitania da Bahia (1651-1679) e do Assú, ocorrido
na Capitania do Rio Grande (1687-1725). No entanto, os efeitos desses embates descontínuos e
sangrentos, envolvendo colonos e nativos, foram sentidos nos sertões das Capitanias do Ceará,
Pernambuco e Paraíba. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do
sertão nordeste do Brasil. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social,
FFLCH/USP, São Paulo, 1998. p. 13. Dessa maneira, sempre que nos remetermos aos praças que atuaram
na Guerra dos Bárbaros estamos fazendo referência à gente de guerra que atuou apenas nos conflitos
que se desenrolaram na Capitania do Rio Grande e que se encerraram na década de 1720.
237 Após a edificação da Cidade do Natal, próxima à Fortaleza dos Reis Magos, teve início o lento processo

de ocupação e territorialização da Capitania do Rio Grande através da distribuição de sesmarias no ano


de 1600. Todavia, esse processo de ocupação e territorialização do Rio Grande conduzido pela Coroa
Portuguesa foi interrompida no ano de 1630, em decorrência da ocupação holandesa, e retornou quase
trinta anos depois, contexto em que teve início as investidas coloniais para a ocupação dos sertões. Sobre

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
305

também, o certificado de que aquele espaço estava a partir de então sob a tutela de
Portugal e que, assim, poderia ser territorializado em prol dos interesses da Coroa.
Quanto à Fortaleza dos Reis Magos, após ser concluída sua construção238,
Manuel Mascarenhas Homem, Capitão-mor de Pernambuco que havia conduzido as
investidas para a ocupação da Capitania do Rio Grande e auxiliado na construção dessa
fortificação, entregou-a a Jerônimo de Albuquerque, deixando-a “muito bem fornecido
de gente, artilharia, munições, mantimentos, e tudo o mais necessário [...]239”.
Possivelmente, a gente de guerra que permaneceu na Fortaleza logo após a sua
construção era constituída de homens vindos das Capitanias de Pernambuco e/ou da
Paraíba e que haviam atuado contra os nativos que residiam no litoral do Rio Grande
para garantir a ocupação desse espaço pelo colonizador240.
Infelizmente, para os anos iniciais do século XVII não dispomos de
documentação que nos possibilite estabelecer o perfil social dos praças que
guarneceram nesse cenário na Fortaleza dos Reis Magos. No entanto, sabemos que no
ano de 1612 essa Fortaleza possuía cerca de 80 praças, além dos oficiais 241”. De forma
específica, o quadro da gente de guerra nesse contexto era o seguinte: um capitão, um
alferes, um tambor, 4 cabos-de-esquadra, um sargento e oitenta soldados. Todavia, não
podemos inferir, conforme já afirmamos, o perfil desses militares, ou seja, suas
qualidades. Entretanto, um aspecto que conseguimos constatar acerca do cotidiano
desses praças e que, na verdade, fez-se presente também na segunda metade do século

essa discussão ver: LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal: EDUFRN,
2008.
238 Na verdade, a construção da Fortaleza só esteve de fato concluída em 1628. Segundo Hélio Galvão, o

que estava finalizado em 1598 “era uma fortificação provisória, com o mínimo de segurança para abrigar
a gente da expedição, protegendo-a contra inesperado ataque do gentio”. (GALVÃO, Hélio. op cit. p.22).
Assim, a construção dessa estrutura de caráter militar se deu processualmente, ao longo de quase três
décadas. Em 1612, por exemplo, a Fortaleza ainda estava por acabar e em decorrência disso “os soldados
fogem dela como da morte”. (Ibid. 36). Em 1618, ainda faltava nessa fortificação, dentre outros aspectos
físicos, uma cisterna e alojamentos para os soldados. Apenas em 1628 a Fortaleza dos Reis Magos foi
descrita como finalizada. Nesse contexto, a mesma possuía 40 soldados, nove canhões de ferro e, desde
1622, contava com uma casa da pólvora e uma capela. (Ibid. 38-39). Portanto, a construção provisória de
1598 foi, na verdade, um marco inicial da instauração da administração militar no Rio Grande, que deveria
garantir que as terras pertencentes à Capitania do Rio Grande ficassem sob tutela portuguesa e
pudessem ter territorializadas.
239 SALVADOR, Frei Vicente do apud LYRA. História do Rio Grande do Norte. p. 34.
240 A prática de envio de praças de Pernambuco para guarnecerem na Fortaleza dos Reis Magos

prevaleceu na segunda metade do século XVII. No entanto, nesse contexto, deparamo-nos com objeções
a esta prática tanto da Câmara de Natal quanto do Capitão-mor do Rio Grande. As justificativas para tais
objeções eram decorrentes das fugas praticadas por estes militares que, para Manuel Muniz, Capitão-
mor do Rio Grande, para se revolver esse “o problema da fuga” “os soldados” deveriam ser “recrutados
entre os naturais da terra”. GALVÃO, Hélio. Op cit. p. 126.
241 LYRA, Tavares. História do Rio Grande do Norte. p.52.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
306

XVII é a dificuldade presente no exercício do serviço militar da colônia. No ano de 1612,


por exemplo, a Fortaleza dos Reis Magos ainda estava por ser acabada e em
decorrência disso era considerada “a mais miserável vivenda” que se podia encontrar
“no mundo [...] pelo que só os soldados fogem dela como a morte242.”
Na década de 20 do século XVII, segundo a descrição da Capitania do Rio Grande
presente na obra de Tavares de Lyra, existia nesse espaço duas companhias de
ordenanças. E, quanto à Fortaleza, continuava a ser guarnecida por 80 praças, que
permaneciam sofrendo com as dificuldades presentes no serviço militar do Rio Grande,
como a falta de munições, pólvora e até mesmo de uma cisterna na Fortaleza243. Esses
soldados que guarneciam na fortificação, na década de 1630, tiveram que lidar com um
inimigo estrangeiro: os holandeses, que saíram vitoriosos desse embate e passaram a
guarnecer na Fortaleza até o ano de 1654.
A presença dos flamengos no Rio Grande, conforme é discutido tanto na
historiografia clássica244 quanto em estudos recentes245, foi uma “pausa” no processo
de expansão da colonização lusitana, não apenas no espaço em análise, mas também
na Capitania de Pernambuco. No entanto, a ocupação holandesa nas Capitanias citadas,
no sentido militar, engendrou processos distintos. Enquanto na Capitania de
Pernambuco o domínio holandês resultou na emergência de terços de gente preta e
parda e em um processo de militarização da sociedade246, o Rio Grande sofreu com a
falta de soldados, armas, munições e com o estado de ruínas da Fortaleza, que havia

242 Ibid. p.54.


243 Ibid. 59.
244 Com relação à historiografia clássica nos referimos à obra de Tavares de Lyra, História do Rio Grande

do Norte. LYRA, Tavares. Op cit. p. 129.


245 Quanto à historiografia recente, nos remetemos à dissertação de mestrado de Patrícia Dias, também

já referenciada nesse texto. DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo
de territorialização da ribeira do Apodi-Mossoró. 2015, 187 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do rio Grande do Norte, Natal. p. 43.
246 Em detrimento, no pós guerra, a Câmara Municipal de Olinda sofria com a obrigatoriedade de ter que

dispender recursos para manter uma tropa burocrática grande e ociosa, constituída por três terços com
um total de 1.913 soldados, em um contexto em que seus serviços já não eram mais precisos. Na verdade,
a presença da gente de guerra em Pernambuco, especificamente das tropas pagas, foi tema de um
conjunto de discussões entre a Capitania de Pernambuco e a Coroa, onde a Câmara de Olinda buscava
ficar isenta do ônus de ter que sustentar as tropas burocráticas existentes em Pernambuco. E, por fim,
as tropas pagas de Pernambuco foram, nesse contexto, objeto de uma reforma militar conduzida por
Brito Freyre no governo de Mendonça Furtado. Portanto, enquanto no Rio Grande o problema era a falta
de homens para o serviço militar, a falta de munições e armas e uma busca para sistematizar o serviço
militar nesse espaço e armar todos os colonos que tivessem aptidão para as armas, Pernambuco
experienciava o oposto. SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade
colonial: História de homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII
e XVIII p.153.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
307

sido concluída pouco antes da ocupação holandesa. De forma específica, após a


expulsão dos holandeses, a Capitania possuía apenas uma tropa paga importada da
Capitania de Pernambuco e companhias de ordenanças, como demonstra o quadro
abaixo:

Quadro 1 – Espaços da Capitania do Rio Grande que possuíam Companhias de Ordenanças na segunda
metade do seiscentos
Cidade do Natal
Distrito de Cunhahú
Distrito Guarahiras
Distrito de Goyana
Ribeira de Mopobú
Ribeira de Putigy
Ribeira do Siará Mirim
Distrito do Syará debaixo
Ribeira de Paguçara
Distrito de Goyana
Distrito de Gorayras
Fonte: Elaborado pela autora com base no v. XII da série X
dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional

Contudo, o fortalecimento da administração militar e o alistamento obrigatório


de todos os colonos nas ordenanças deveria ser uma preocupação do Capitão-mor do
Rio Grande, como demonstra o Regimento de 04 de outubro de 1663, escrito pelo Conde
de Óbidos Dr. Vasco Mascarenhas, em 01 de outubro de 1663 e dado ao capitão-mor
Valentim Tavares de Cabral (1663-1670). As determinações presentes neste Regimento
recomendavam a constante vigilância em tudo que dissesse respeito à defesa da
Capitania, ao estado da fortaleza, artilharia, munições e armamento. Determinavam
também que fosse feito mostra a todos os moradores da Capitania e que aqueles em
condições de pegar em armas fossem obrigados a possuí-las247. Foi nesse contexto,
por exemplo, que João de Barros Coutinho foi nomeado Capitão de Infantaria das
ordenanças que deveria constituir nos Distritos de Guarahiras e Goyana da Capitania do
Rio Grande, citados no quadro anterior248. Assim, a máxima que estava posta na
segunda metade do seiscentos era a de que todo colono que tivesse aptidão para pegar
em armas fosse transformado em um homem de guerra e que o capitão-mor deveria

247 Regimento do Conde Vice-rei com que veio o Capitão-mor Valentim Tavares Cabral, a entrar no
governo desta Capitania. In: LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.
Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Commercio, 1912. v. 1. p. 85-7.
248 Coleção de Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. V. XII, p. 75-76.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
308

alistá-lo nas ordenanças tornando-o oficialmente um militar a serviço da defesa desse


território.
Os anos que se seguiram ao governo do capitão-mor Valentim Tavares de Cabral
foram de retomada da colonização através da distribuição de sesmarias feita pelos
capitães-mores, bem como de reestruturação da própria administração militar. O que
se percebe, a partir do ano de 1665, é o envio de cartas, tanto da Câmara de Natal quanto
dos capitães-mores do Rio Grande, ao Rei D. Afonso VI acerca do estado de ruína da
Fortaleza dos Reis Magos, da falta de soldados, armas e munições. Nesse cenário, o
que estava colocado eram as dificuldades para manutenção da administração militar
durante a retomada da expansão da presença portuguesa nas terras do Rio Grande. No
entanto, conforme já salientamos, os obstáculos presentes no serviço militar não
foram uma particularidade da Capitania do Rio Grande. As dificuldades para recrutar
homens, o atraso dos soldos e o desprestígio do posto de soldado foram algumas das
contradições da administração militar instaurada no Ultramar que, segundo Kalina
Silva, já herdou da metrópole alguns desses elementos.
Uma carta do capitão-mor do Rio Grande, Valentim Tavares Cabral, acerca do
estado de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e da falta de soldados, armas e munições,
foi enviada ao rei D. Afonso VI no ano de 1665249. Todavia, esses problemas persistiram
durante toda a segunda metade do século XVII, conforme demonstra a documentação
disponível no AHU. Nesse sentido, no ano de 1682, o capitão-mor do Rio Grande, Manuel
Muniz, caracterizava a administração militar da capitania da seguinte forma:

Que a Fortaleza dos Reis Magos, sendo uma das primeiras do Brasil,
não possuía guarnição suficiente, e faltava-lhe material de guerra.
Constava apenas a guarnição de quinze a dezesseis praças que vinham
de Pernambuco, quando outrora dispunha de sessenta e setenta.
Acontecia muitas que, pela mudança, ficava reduzida a cinco ou seis
infantes. A munição existente compunha-se de dois barris de pólvora
grossa e muito velha, setenta balas que haviam deixado os holandeses,
seis cunhetes de balas mosquete, doze peças de bronze e nove de ferro,
imprestáveis. Os quartéis estavam arruinados [...]. O Rio Grande podia
contar com trezentos homens brancos para as armas, sendo, dentre
estes, cem solteiros, que desapareceriam dada qualquer eventualidade
ofensiva, e os duzentos eram pouco para a defesa de suas famílias. A
fortaleza podia dispor, em momento dado, de oitenta homens das

249Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza
dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
309

ordenanças, que considerava insuficientes quando o inimigo tentasse


se apoderar da capitania [...]250.

Portanto, é evidente que apesar da administração militar ter sido instituída na Capitania
com a construção da Fortaleza dos Reis Magos, no ano de 1598, a sua consolidação se
deu processualmente, assim como a própria expansão da presença lusitana no Rio
Grande. A “pausa” de trinta anos, devido à presença holandesa, deixou sequelas na
administração militar do espaço em estudo que foram sentidas durante toda a segunda
metade do século XVII. No Rio Grande, em detrimento da Capitania de Pernambuco,
onde percebemos um processo de militarização da sociedade e das tentativas de
institucionalização dos terços de gente parda e preta, o que constatamos na
historiografia examinada e nas fontes compulsadas é uma tentativa de sistematização
da administração militar, que ocorrerá pari passu com a retomada da distribuição de
sesmarias e consequentemente com a territorialização desse espaço. Portanto, o que
temos até então, é apenas a gente de guerra pertencente às companhias de
ordenanças. As tropas regulares251 se constituíram somente no século seguinte.
Nesse sentido, acreditamos que os percalços enfrentados pelos
administradores da Capitania do Rio Grande na tentativa de resolver os embates
envolvendo colonos e nativos, em fins da década de 1680, se deu em decorrência das
próprias fragilidades do serviço militar existente nesse território, que ainda estava se
consolidando. Essa situação militar que estava posta implicou, inicialmente, na vinda de
auxílio militar tanto da Capitania de Pernambuco quanto da Paraíba, como verificamos
nos assentos de praça. Nesse contexto, membros do Terço dos Paulistas252 também
assentaram praça no Rio Grande e buscaram solucionar os conflitos envolvendo
nativos e colonos, que se estenderam, de forma descontínua, até o século seguinte.

250 LYRA, Tavares. História do Rio Grande do Norte. p.134.


251 Salientamos que, apesar das tropas regulares constarem na bibliografia lida e na documentação
consultada apenas no século XVIII, durante a Guerra dos Bárbaros as milícias que atuaram eram pagas.
Além disso, o Terço dos Paulistas se institucionalizou enquanto tropa paga nesse contexto.
Posteriormente, especificamente em 1716, segundo Olavo de Medeiros Filho, este Terço deixou de
guarnecer no Rio Grande. No entanto, alguns soldados e oficiais que constituíam essa tropa paga
passaram a integrar a primeira tropa regular da Capitania, instituída para substituir o Terço dos Paulistas
na Fortaleza dos Reis Magos. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande.
Departamento Estadual de Imprensa, 1997. p.135.
252 Conforme Mirian Silva de Jesus, o termo “paulista” foi utilizado no contexto colonial para designar a

naturalidade dos colonos oriundos da Vila de São Paulo de Piratininga, “empenhado em percorrer
sertões” e “se embrenhar pelo mato”. JESUS, Mirian Silva de. Abrindo espaços: os “paulistas” na
formação da Capitania do Rio Grande. 2007, 120 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN. p. 15.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
310

Segundo Júlio César Vieira de Alencar, foi com o auxílio dos Paulistas que as tropas
coloniais obtiveram as primeiras vitórias contra os índios que resistiam às investidas
da empresa colonial253.
Nesse cenário de guerra, entre os anos de 1698 a 1725254, período para o qual
temos assentamentos de praça, constatamos para a Capitania do Rio Grande a
presença da atuação de tropas auxiliares (ordenanças e milícias) e pagas 255. Sendo
assim, além das companhias de ordenanças, percebemos a forte presença de
companhias administradas por capitães pertencentes ao Terço dos Paulistas. É sabido
que, membros do Terço de Henrique Dias também auxiliaram as companhias locais nos
conflitos com os nativos. Entretanto, na documentação que compulsamos, localizamos
apenas a referência de seis soldados que haviam feito parte desse Terço. Acreditamos
que nesse contexto, os homens pertencentes a essa milícia não estavam mais sendo
enviados de forma efetiva para o Rio Grande e por isso não os localizamos nos assentos
examinados. Em detrimento, colonos que fizeram parte do Terço dos Paulistas
assentaram praça em fins de todo século XVII e ao longo dos primeiros anos do século
XVIII256.

253 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: A Câmara de Natal e a
Guerra dos Bárbaros (1681-1722). 2017, 244 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN. p.71.
254 Antonio de Albuquerque Câmara (1687) e Manuel de Abreu Soares (1688) foram responsáveis por

comandar as primeiras expedições organizadas pelo Governo Geral contra os índios sublevados dos
sertões. Essas expedições eram constituídas com o auxílio militar vindo, sobretudo, das Capitanias de
Pernambuco e Paraíba, onde duas companhias dos Terços do Camarão e dos Henriques atuaram em
conjunto com os infantes do presídio de Pernambuco e com os homens das ordenanças da Capitania do
Rio Grande. Nesse sentido, salientamos que, apesar de não termos os assentos de praça dos anos iniciais
da Guerra dos Bárbaros, especificamente da Guerra do Açu, desde o início dos embates envolvendo
tropas coloniais e os índios dos sertões não houve homogeneidade, unidade no perfil social dos soldados
que formaram as tropas coloniais. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros, p. 133.
255 O Terço dos Paulistas se institucionalizou e passou a ser pago a partir da Ordem Régia de 1695. Ibid.

p.201.
256 Além do Terço dos Paulistas, outros terços combateram no Rio Grande, como foi o caso do terço do

Mestre Campo Cristóvão de Mendonça, do qual era capitão Simão Cordeiro. Acreditamos que esse terço
pertencia à Capitania de Pernambuco, visto que todos os seus membros foram identificados como sendo
naturais desse território. Possivelmente, era um terço socialmente misto, uma vez que possuía tanto
colonos identificados como brancos quanto colonos identificados como sendo de cor, mais
especificamente, de “cor morena”. O ingresso de homens de cor, em se tratando de um terço de colonos
brancos, pode ter se dado pela falta de homens dessa qualidade para atuarem como soldados, já que a
qualidade era um fator que diferenciava os terços e, nem sempre, a presença de colonos de cor era
tolerada em terços que congregavam pessoas de qualidade branca. Dessa forma, na documentação
examinada, um caso que exemplifica nossa assertiva é do soldado José de Lima. Este foi membro do
Terço de Henrique Dias e atuou na Capitania do Rio Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros. O mesmo
ficou agregado na Companhia do Capitão Manoel Mata Coutinho e assentou praça na mesma. Porém,
recebeu baixa por ser “gente incapaz pela cor” para as “companhias da gente branca”. Assentos de praça
e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
311

Dessa maneira, com base na documentação examinada, localizamos o nome de


11 capitães de companhia que atuaram no Rio Grande e que eram membros do Terço
dos Paulistas, liderado por Manuel Álvares de Morais Navarro. Foram eles: Antonio
Gago de Oliveira, Salvador de Amorim e Oliveira, José Porrate de Morais Castro,
Domingos de Morais Navarro, Francisco Lemos Matoso, Francisco Ribeiro Garcia
Francisco Tavares Guerreiro, Manuel da Mata Coutinho, Luis Lobo Albertin, José de
Morais Navarro e Theodozio da Rocha257. Infelizmente, a documentação não faz
referência ao nome de todos os terços aos quais os capitães de companhias pertenciam.
Dessa forma, não conseguimos identificar o terço ao qual pertenciam os seguintes
capitães: Antonio Simões Moreira, Mateus Mendes Pereira, José Pereira da Fonseca e
João da Costa Marinho. Esses capitães de companhia podiam ter atuado tanto em uma
milícia quanto nas ordenanças. Entretanto, infelizmente, esse dado não está presente
nos assentamentos de praça.
Com relação à composição dos corpos militares que atuaram na Capitania nesse
cenário de guerra, constatamos a presença de indígenas258, negros, mestiços259 e
brancos, como demonstra o gráfico abaixo:

257 O Terço dos Paulistas, ao longo da Guerra dos Bárbaros, foi sofrendo alterações em sua composição
social. Á medida que o conflito se prolongava, o mesmo foi recrutando homens que eram naturais do Rio
Grande e das Capitanias vizinhas. Em detrimento, nos anos iniciais da Guerra, o Terço era composto,
principalmente, por colonos vindos das Capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Além
disso, no início da atuação deste Terço no Rio Grande, precisamente no 1698, segundo Miriam Silva de
Jesus, o mesmo era constituído por dez Companhias, que foram gradativamente sendo reduzidas. Em
1701, por exemplo, existiam sete Companhias e, em 1712, apenas duas. Conforme a autora citada, a
explicação para esta redução reside no processo de profissionalização desse corpo militar, que era
facilitado se o mesmo possuísse menos homens. JESUS, Miriam Silva de. JESUS, Mirian Silva de. Abrindo
espaços: os “paulistas” na formação da Capitania do Rio Grande. p. 78.
258 Os assentos de praça apresentam índios identificados de diferentes formas: “tapuya forro da nação

dos chamados Canide do certão”, “tapuia forro da Nação dos Chamados da Silva” e, dentre outros, “tapuia
forro da Nação Cararis”. Portanto, o termo índio utilizado nesse gráfico reúne diferentes tipologias
presentes na documentação para identificar essa população e que foram homogeneizadas para termos
mais clareza da presença quantitativa de índios no serviço militar da Capitania.
259 O termo “mestiço” não consta na documentação examinada e por isso o utilizaremos sempre entre

aspas. Nos assentos de praça constam apenas os seguintes termos: pardo, trigueiro, mulato e, dentre
outros, mameluco. Dessa forma, estamos fazendo uso do conceito “mestiço” fundamentados na análise
de Eduardo França Paiva, para quem “mestiço” é um termo que aglutina indivíduos que foram
qualificados como sendo resultados do intercurso biológico ocorrido entre grupos sociais distintos e que
foram definidos nos registros do Estado e da Igreja como pardos, mulatos, mamelucos e, dentre outros,
cabras. PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e
espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 2012. 286f.
Tese. (Concurso para Professor Titular em História de Brasil – Departamento de História) - Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
312

Gráfico 1 - Qualidade dos soldados e oficiais que assentaram praça e receberam baixa na Capitania do
Rio Grande, 1698-1725
Cor pálida Preto
0% 5%
Crioulo
0% Branco
8%

Índio…
Mestiços
19%

Sem
Identificação
35%

Fonte: Elaborado pela autora com base em 495 Assentos de praça


e Baixas entre os anos de 1698 a 1725 (IHGRN).

Dessa forma, examinando o gráfico acima, é perceptível que 33% da gente de


guerra que atuou no Rio Grande, entre os anos de 1698 a 1725, foi definida na
documentação militar em análise como indígena. Todavia, esse não foi um padrão que
se repetiu nos anos seguintes. Na verdade, examinamos 1.834 assentos de praça e
baixas referentes aos séculos XVII, XVIII e aos primeiros anos do século XIX e apenas
em fins do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII percebemos a presença de
indígenas assentando praça ou recebendo baixa. Precisamente, localizamos indígenas
assentando praça nos seguintes anos: 1698, 1699, 1703, 1704, 1705, 1710, 1713, 1714 e
1715. Entretanto, foi no ano de 1698, 1699, 1703 e 1704 que ocorreu uma quantidade
significativa de assentamentos de indígenas, totalizando 95 assentos em um universo
amostral de 185. Nos anos posteriores, os assentos não foram superiores a 3. Ou seja,
foi nas primeiras décadas da Guerra dos Bárbaros, contexto desfavorável para as
tropas coloniais, que a presença indígena assentando praça foi mais significativa. Esse
fato, provavelmente, explica-se pela necessidade de homens para atuarem nos
embates contra os indígenas do sertão, o que levou, inclusive, o Capitão-mor do Rio
Grande, Paschoal Gonçalves de Carvalho, em 1698, a solicitar a presença de colonos
que haviam cometido crimes para fazerem entradas no sertão contra o “genttio Tapuya
levantado260”.

Bando que mandou botar nesta Capitania do Rio Grande o Capitão Major Pachoal Glz. de Carvalho. In:
260

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p. 127.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
313

Além da presença de povos indígenas261, colonos identificados nos assentos


como sendo de qualidade “mestiça” (19%), branca (8%) e preta (5%) se alistaram no
serviço militar entre os anos de 1698 a 1725 na Capitania do Rio Grande. No entanto,
nos anos posteriores à Guerra dos Bárbaros, como veremos a seguir, não localizamos
mais a presença de índios no serviço militar, mas apenas de “mestiços”, brancos e, de
forma diminuta, negros. Em consonância com esse padrão presente nos assentos de
praça e baixas, no período posterior à Guerra dos Bárbaros, além das companhias de
ordenanças, constatamos na Capitania do Rio Grande também a presença de milícias e
de tropas regulares. De forma específica, o quadro militar na década de 40 do século
XVIII era constituído por duas companhias de infantaria pagas, que guarneciam na
Cidade do Natal e na Fortaleza dos Reis Magos262, por 16 dezesseis companhias de
cavalaria263 que atuavam em toda a Capitania do Rio Grande, sendo divididas da
seguinte forma: 10 presentes na Cidade do Natal264, duas na Ribeira do Seridó265, duas
na Ribeira do Assú266 e, por fim, duas na Ribeira do Apodi267.
Essas companhias de Cavalaria somavam o total de 855 homens, que atuavam
como gente de guerra. Em consonância com as tropas pagas e com as Companhias de
Cavalaria, existiam, também, 10 Companhias de milícias268, que somavam o total de 525

261 Com relação especificamente aos soldados identificados como indígenas e descritos no gráfico 2, a
utilização da força nativa como gente de guerra e o estabelecimento de alianças com populações
indígenas foi uma estratégia colonial comum no processo de territorialização da América. Na Capitania
de Pernambuco, por exemplo, segundo Maria do Socorro Ferraz, o estabelecimento de alianças dos
colonizadores com indígenas foi uma prática necessária e que possibilitou a ocupação desse espaço, bem
como, posteriormente, a expansão da presença lusitana para os sertões de dentro e os sertões de fora.
Portanto, não foi uma particularidade da Capitania do Rio Grande o uso militar de pessoas de qualidade
indígena. FERRAZ, Maria do Socorro. A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos sertões de
dentro e de fora. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial, 1580-1720. V.2.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 171-226.
262 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. p.144.
263 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte Francisco Xavier de Miranda Henriques ao rei [D. João

V] enviando mapas do Regimento de Cavalaria e do Terço dos Auxiliares, 1744. AHU-RN, Papéis Avulsos,
Cx. 6, doc. 288.
264 As Companhias de Cavalaria que atuavam na Cidade do Natal eram constituídas cada uma por 40

soldados. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288.


265 Assim como as Companhias de Cavalaria que eram responsáveis pela defesa da Cidade do Natal, as

Companhias presentes na Ribeira do Seridó eram constituídas cada uma por 40 soldados. Idem.
266 102 soldados constituíam as Companhias de Cavalaria presentes na Ribeira do Assú, sendo cada uma

formada por 51 homens. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288.


267 As Companhias de Cavalaria presentes na Ribeira do Apodi eram regidas pelo Sargento-mor Clemente

Gomes de Amorim, sendo estas compostas por 134 soldados. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288.
268 Cada Companhia de Milícia era formada por 43 soldados. Os Capitães responsáveis por estes corpos

de guerra foram os seguintes: Bonifácio da Rocha, Antonio de Paiva, Manoel Gomes da Silveira, Gaspar
de Paiva, Sebastião Cardoso, Manoel das Neves Silveira, Manoel de Mello, Sebastião Dantas, Antonio
Gomes Torres. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
314

praças. Agrupando o total da gente de guerra que constituía as Companhias de


Cavalaria e com os que formavam as 10 Companhias de Milícias, percebemos que
oficialmente o Rio Grande possuía na primeira metade do século XVIII o total de 1.380
homens de guerra. Isso, sem somarmos os praças que atuavam nas tropas pagas, para
os quais não possuímos informações quantitativas precisas para este contexto
histórico. Sobre as tropas pagas, sabemos apenas que por volta 1728 existiam duas
companhias de infantaria paga, que possuíam cerca de 90 soldados no total269. No
entanto, mais do que números, esses dados são indicativos de que somente após a
consolidação do domínio português no Rio Grande, tanto no que concerne à presença
de conflitos externos (domínio holandês) quanto de conflitos internos (Guerra dos
Bárbaros), é possível vislumbrar uma expansão das forças militares coloniais, que até
a década de 80 do século XVII era restrita, praticamente ao litoral e a existência de
companhias de ordenanças.
Todavia, essa composição militar descrita acima, no que concerne à existência
de Companhias de Cavalarias e Companhias Auxiliares, sofreu mudanças no ano de
1744. O motivo foi o seguinte: o Capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de
Miranda Henriques270, no ano de 1744, institui Companhias de Cavalaria e Auxiliares e,
em detrimento ao que havia solicitado o Conselho Ultramarino, não enviou um mapa
das Companhias de Ordenanças existentes na Capitania. Nesse contexto, Francisco
Xavier de Miranda Henriques, em carta ao Rei D. João V, descreveu a Capitania do Rio
Grande e suas necessidades militares da seguinte forma:

[...] que toda esta capitannia he cercada de mar; e em varias partes, com
dezembardouros largos: como hé na Barra de Cunhaú, Pirangi, Potengi,
Pititinga, por cujo motivo na formatura que fis do Regimento da
Cavalaria e nomeação de Auxiliares (...) da providencia depor os corpos
dispersos, com esta distinção, adonde há Cavalaria ouvesse Auxiliares;

269GALVÃO, Hélio. Op cit. p.129.


270Segundo o Capitão-mor, o mesmo não remeteu mapa das ordenanças porque os únicos homens que
se achavam alistados no serviço militar eram os que ele enviou nos mapas de Companhias de Cavalarias
e Companhias Auxiliares. Nas palavras do mesmo, “(q fazendosse a conta a todos os moradores que se
achavão) aqui fiz resumo de tudo matriculado na palavra (todos) logo distinguindo: que são na cavalaria
oito centos e sincoenta e sinco homens e nos Auxiliares quinhentos e vinte e sinco; vem a somar tudo
junto mil trezentos e oitenta como se via dos Mappas; porq se mais gente ouvesse alistada fora da
ordenança de cavalaria e dos auxiliares nomeados mayo soma e mais Mappas remetera a Vossa Mag.”
CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]
sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das
ordenanças. Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis
Avulsos, Cx. 5, doc. 303.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
315

para que sucedendo alguma invasão estejão tão prontos os de pê como


os de cavalo. E como os certões, são mais afastados da costa do mar e
metidos pella terra dentro; donde fica a Ribeira do Assu, Apody e Ciridô:
em cada ribeira destas criei formei duas companhias de cavallos, e em
todos seus sargentos Mores p as reger [...]271.

A disposição militar arquitetada pelo Capitão-mor do Rio Grande tinha clareza quanto a
sua funcionalidade militar em caso de invasões estrangeiras. No entanto, o não envio
de um mapa das ordenanças existentes no Rio Grande ao Conselho Ultramarino
resultou na destituição das Companhias Auxiliares existentes nesse espaço, mesmo
que o Capitão-mor tenha evidenciado sua pertinência ao lado da Cavalaria.
Sendo assim, no ano de 1746, o Governador de Pernambuco, D. Marcos de
Noronha, “ordenou ao Provedor da fazenda da Capitania do Rio Grande mandasse dar
bacha a todos os oficias e soldados Auxiliares da mesma Capitania272”. Após dar baixa,
segundo o Governador de Pernambuco, o Capitão-mor do Rio Grande deveria “formar
uma Companhia de oitenta ate cem soldados [...] procurando q sejão dos mais ricos,
moços, robustos [...]273.” A justificativa da Coroa para essa mudança na estrutura militar
do Rio Grande não estava restrita somente ao caráter militar dessa instância
administrativa, mas também ao social, visto que a mesma estava preocupada com a
multiplicação de militares que atuavam de forma privilegiada, na Cavalaria e nas
Milícias. Segundo a ordem dada ao Governador de Pernambuco e repassada ao Capitão-
mor do Rio Grande pelo mesmo, era importante que não se “multipliquem os
privilegiados de sorte q não haja quem sirva na República; e apenas a quarta parte das
ordenanças se podem privilegiar”. Além disso, na prática, na concepção do Reino, as
Companhias de Cavalaria e Auxiliares não eram suficientes para os encargos que a
República impunha, ou seja, era preciso que houvesse homens para formar companhias
de pé, homens que estivessem prontos para defender os territórios coloniais, tanto os
litorâneos quanto os “certões”, mas sem que houvesse multiplicação desmedida de
privilégios que modificassem a estrutura social da colônia, onde a desigualdade entre
homens era parte mantenedora da ordem social que estava posta.
Infelizmente, não possuímos documentação acerca da estrutura militar do Rio
Grande nos anos seguintes, após a destituição das Companhias Auxiliares e a

271AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 288.


272AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 303
273 Idem.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
316

instituição das Ordenanças de Pé. Informações precisas acerca da estrutura militar do


espaço em estudo foram localizadas na documentação consultada apenas para fins do
século XVIII e para os primeiros anos do século XIX. No entanto, a discussão desses
elementos presentes nas fontes ultrapassaria os limites desse trabalho. Por fim, no
que se refere a composição dos corpos militares existentes na Capitania ao longo do
século XVIII, como afirmamos acima, percebemos a ausência de indígenas e a redução
de colonos negros, como demonstra o gráfico abaixo:

Gráfico 2 – Qualidade dos colonos que assentaram praça e receberam baixa


na capitania do Rio Grande, 1726-1795
Cor negra
0% Crioulo
Preto do Gentio 0%
da Guiné
0%

Branco
26%
Sem
Identificação
44% Mestiços
30%

Fonte: Elaborado pela autora com base em Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1726 a
1795

O gráfico acima, quando comparado com o gráfico 1, demonstra que a presença indígena
e negra nos corpos militares da Capitania do Rio Grande esteve diretamente associada
ao contexto da Guerra dos Bárbaros, que transformou todo e qualquer colono em um
homem de guerra. Nos anos posteriores a esse conflito, o que se percebe é a ausência
de colonos indígenas e a redução significativa de colonos negros, que entre 1726 a 1795
não ultrapassava de um indivíduo. Em detrimento, constatamos a presença significativa
de colonos “mestiços” e brancos, o que demonstra maior receptividade para esses
indivíduos na instituição militar da Capitania. Dessa maneira, precisamos nos estudos
seguintes investigar o lugar destinado aos colonos “mestiços” nos corpos militares
existentes no Rio Grande, visto que, no que concerne aos indígenas, percebemos que
mesmo esses constituindo 33% do efetivo militar da Capitania no contexto da Guerra
dos Bárbaros, os mesmos, em detrimento dos colonos brancos, ocupavam apenas os
postos de soldados, que não constituíam uma patente e nem implicava em ganhos
simbólicos (prestígio) para os seus ocupantes.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
317

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso estudo demonstra que a sistematização da administração militar na
Capitania do Rio Grande foi um processo lento, descontínuo e que esteve diretamente
associado ao processo de territorialização da Capitania. Dessa forma, a presença
holandesa nesse território, entre os anos de 1633 a 1654, retardou o processo de
expansão dos empreendimentos coloniais de Portugal no Rio Grande e,
consequentemente, a expansão de seus sistemas administrativos. Em consonância com
isso, apesar da Guerra dos Bárbaros, ter reunido homens de diferentes qualidades
(“mestiços”, índios, negros e brancos), bem como a atuação de diferentes corpos
militares (ordenanças, tropas pagas e milícias), apenas posterior a esse evento
constatamos uma expansão da administração militar na Capitania do Rio Grande para
os sertões, como, a exemplo, para a Ribeira do Seridó, que a partir de 1726 passou a
possuir companhias de ordenanças.
Em síntese, muitos dos dados presentes nesse texto precisam ser examinados
de forma mais minuciosa, como, dentre outros, o ingresso de “mestiços” na instituição
militar da Capitania. Portanto, nos estudos seguintes esperamos discutir de forma mais
sistematizada esses elementos qualitativos da administração militar instaurada na
Capitania do Rio Grande.

FONTES
1.1 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO
AHU – Lisboa, Portugal
Documentos manuscritos microfilmados, digitalizados e integrando CD-ROM do
Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco
CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de
ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665.
Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5.

CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Valentim Tavares Cabral, ao rei [D.
Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados,
armas e munições. AHU-RIO GRANDE DO NORTE. 1665. Cx. 1; doc. 5.

CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte Francisco Xavier de Miranda


Henriques ao rei [D. João V] enviando mapas do Regimento de Cavalaria e do Terço
dos Auxiliares, 1744. Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 288.

CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda


Henriques, ao rei [D. João V] sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
318

a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças. Anexo: carta do governador
de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 303.

1.2 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE


IHGRN-Natal
1.834 Assentos de praça e baixas – Arquivo Histórico do IHGRN

REFERÊNCIAS
ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a câmara
do Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). 2017. 244f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN.

COSTA, Ana Paula Pereira. Organização militar, poder de mando e mobilização de


escravos armados nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas
colonial. Revista de História Regional, Ponta Grossa, 2006.

COTTA. Negros e Mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte:


Crisálida, 2010.

DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de


territorialização da ribeira do Apodi-Mossoró. 2015, 187 f. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal do rio Grande do Norte, Natal.

FERRAZ, Maria do Socorro. A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos


sertões de dentro e de fora. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O
Brasil Colonial, 1580-1720. V.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 171-226.

FURET, François. A História quantitativa e a construção do fato histórico. In.: SILVA,


Maria Beatriz Nizza (org.). Teoria da História. Editora Cultrix, 1976. p. 73-91.

GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. Rio de Janeiro:


Conselho Federal de Cultura, 1979.

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das letras, 2001.

JESUS, Mirian Silva de. Abrindo espaços: os “paulistas” na formação da capitania do


Rio Grande. 2007, 120 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal-RN.

LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Rio de


Janeiro: Typografia do Jornal do Commercio, 1912. v. 1.

LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal: EDUFRN,
2008.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado
1984.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
319

______. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Departamento Estadual de


Imprensa, 1997.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas
portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e
o mundo do trabalho). Tese. (Concurso para Professor Titular em História de Brasil –
Departamento de História). UFMG, 2012.

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão


nordeste do Brasil. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em História
Social, FFLCH/USP, São Paulo, 1998.

REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In.: ______ (org.). Jogos de


escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
p. 15-38.

SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade
colonial: História de homens, militarização e marginalidade na Capitania de
Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife,
2001.

SILVA, Luiz Geraldo. Gênese das milícias de pardos e pretos na América Portuguesa:
Pernambuco e Minas Gerais, séculos XVII e XVIII. Revista de História, São Paulo, v, n.
169. p. 111-144, jul\dez.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
320

Simpósio Temático 6
HISTÓRIA DOS ESPAÇOS,
PRÁTICAS, TEORIAS E HISTORIOGRAFIA
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
321

A JORNADA DE JACQUES MARITAIN AO PRATA, O


CENTRO DOM VITAL DO RECIFE, OTTO GUERRA
NA ARQUIDIOCESE DE NATAL E A DES-ESPACIALIZAÇÃO
DO EIXO DO CATOLICISMO NO BRASIL

Renato Amado Peixoto

O objetivo desta comunicação é aprofundar a ideia de que o Movimento de Natal


resulta de uma recepção diferenciada das contribuições de Jacques Maritain e, que a
sua tradução no contexto local resultaria em ser um dos grandes insumos para a
articulação da CNBB, com a subsequente transformação da Igreja no Brasil.
Como o início dessa tradução pode ser identificado na publicação por Otto Guerra
da resposta de Jacques Maritain às acusações lançadas pelo padre Antônio Paulo
Ciriaco Fernandes (PEIXOTO, 2017, p. 10-11), líder do Centro Dom Vital de Recife, nos
cabe procurar compreender essa publicação pode nos evidenciar acerca da recepção
diferenciada na Arquidiocese de Natal.
No caso, entendemos que essa compreensão depende de pensarmos a viagem
de Jacques Maritain à América do Sul no recorte brasileiro e de explicitar que a tradução
local se deu em contato com as expressões regionais e nacionais do catolicismo,
evidenciando dois espaços políticos e religiosos em tensão, um deles articulado a partir
do Centro Dom Vital do Rio de Janeiro e o outro de Recife.
Buscamos, assim, apresentar mais um resultado parcial de nosso Projeto de
Pesquisa acerca da aproximação entre o catolicismo e o fascismo no Brasil durante a
década de 1930, procurando discernir o centro de articulação da Neocristandade e os
seus concorrentes, com isto, procurando delimitar os espaços de atuação e de ideias do
catolicismo no Brasil.274
Venho buscando estender a aproximação entre o catolicismo e o fascismo a
partir do conceito de ‘colusão’ inventado por Roger Griffin, 275 estendendo-o na direção


Professor do Programa de Pós-graduação e do Departamento de História da UFRN. Doutor em História
pela UFRJ.
274 O Projeto de Pesquisa em tela é ‘Padre J. Cabral, do ativismo ao misticismo: um caso de estudo da

colusão entre o catolicismo e o fascismo na década de 1930’, desenvolvido na UFRN sob minha
coordenação.
275 O conceito de ‘colusão’ foi explicitado por Griffin no texto ‘The Holy Storm’ como “a confluência e

síntese de posições antitéticas, com a transformação das crenças religiosas cristãs para que estas se
adaptassem ao fascismo” (GRIFFIN, 2008: 1-3).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
322

de tentar compreender todas as relações entre o catolicismo e as extremas políticas.


Nossa pesquisa tem perscrutado no âmbito da Diocese de Natal o afastamento em
relação ao fascismo e a gênese de uma transição para a aproximação do catolicismo
com o marxismo (PEIXOTO, 2015). No caso, procuro definir minha variante da ideia de
‘colusão’ de Griffin enquanto “o processo de seleção e tradução de posições antitéticas,
com a transformação das crenças católicas para que estas se adaptassem às posições
políticas de extrema”.

O CONCEITO DE ‘COLUSÃO’ E O INÍCIO DO MOVIMENTO DE NATAL


Neste sentido, consideramos que a compreensão do início do ‘Movimento de
Natal’ deve ser buscada na década de 1930 e não no período pós-Segunda Guerra, como
têm sido apontada pela historiografia,276 na medida em que a gênese e transição da
atuação política e social da Diocese de Natal de uma ideário à direita para posições que
seriam flexionadas à esquerda se deu ainda nesse período, assim como a formação da
maior parte de seus quadros dirigentes, instituições e veículos principais do dito
Movimento. No caso, consideramos que as questões sociais pós-Segunda Guerra foram
estimuladoras de um posicionamento político-teológico de intervenção societária já
havia sido colocado desde 1937 pelas lideranças leigas e hierárquicas para ser
redirecionado paulatinamente na direção daquilo que mais tarde seria nomeado de
‘Pastoral de Conjunto’ pela CNBB.
Já no texto O Movimento de Natal e a gênese da colusão entre catolicismo e
marxismo em meados da década de 1950 apontamos que a visita de Jacques Maritain
ao Brasil em 1936 fora um detonador para a tradução dos contextos internacional e
nacional para as posições do catolicismo local, um “manifesto político religioso” em
1937 (PEIXOTO, 2017, p. 10), a qual propiciaria uma compreensão renovadora da
encíclica Mystici Corporis Christi no âmbito da Diocese ainda em 1943, facilitando o
começo efetivo do Movimento de Natal, bem antes do agravamento das condições
sociais com a saída das tropas estadunidenses baseadas no Rio Grande do Norte.
Colocadas, portanto as inflexões principais do processo colusivo desencadeado
na Diocese de Natal, o qual se encaminharia da extrema direita para a extrema esquerda
da décadas de 1930 a 1960, faltava discernir as condições de sua inflexão e discuti-las

276Esteé o caso das obras de síntese mais significativas sobre o Movimento de Natal tais como as de
Ferraro (1968) e de Camargo (1971).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
323

no escopo das condições analíticas então colocadas, i.e., na articulação da categoria


‘Religião’ ao metajogo do ‘Político’, detectada a partir de um investimento na História
dos Espaços – pela utilização da ideia de ‘espacialização’. No seguimento de outras
reflexões (PEIXOTO, 2014; 2017) buscávamos desvelar o modo com que os sentidos de
espaço e tempo eram ali tomados – internacionais, locais, regionais e nacionais – para
apresentarmos a compreensão de que nosso caso se constituíra como uma des-
espacialização e des-constituição de outras espacializações. Contudo, notamos que
essa operação não fora apenas passiva ou dirigida, mas ativa e também reflexiva,
porquanto se deslocava – ativa e masculinamente, mas também recebia e concebia –
passiva e femininamente.
E, naquele texto (PEIXOTO, 2017) havíamos apontado que no Movimento de
Natal se refletiam as tramas do reposicionamento do centro decisório e intelectual do
espaço do catolicismo no Brasil rumo à consolidação da CNBB, dando-se, assim, sentido
e oportunidade à colusão com o marxismo, mas não deveríamos discutir o início das
inflexões deste processo colusivo por meio do mesmo escopo analítico?
Cabe-nos aqui já começar a recolocar a nossa aproximação com a História dos
Espaços procurando avançar na compreensão do problema atinente ao nosso caso de
estudo, i.e., como explicitar e explicar que movimentos simultâneos e contrários
poderiam se completar na operação citada?
Buscaremos, então, contextualizar a Arquidiocese de Natal dos anos de 1936-
1937 como o ‘palco’ de dois deslocamentos ativos e operantes: a viagem de Jacques
Maritain à América do Sul e a disputa entre os grupos liderados por Dom Sebastião
Leme e pelo padre Antônio Paulo Ciriaco Fernandes. Mas, afinal, como alinhar e
adequar esses deslocamentos à proposta de uma História dos espaços?
Por um lado, a viagem de Jacques Maritain da Europa para a América, isto
poderia ser tipificado simplesmente por meio do vocábulo ‘viagem’ e, o seu destino
poderia ser condensado adequadamente no rótulo de ‘Argentina’ ou ‘América do Sul’?
Por outro lado, como as disputas políticas e religiosas, poderiam ser adequadas
e trabalhadas numa reflexão que diz respeito ao espaço? Nas páginas seguintes
prosseguiremos neste propósito.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
324

O ‘DESLOCAMENTO’ DE JACQUES MARITAIN À AMÉRICA DO SUL


A ideia do ‘deslocamento’ tem sido empregada na geografia para tratar dos
processos de mudança populacional provocados por catástrofes naturais e humanas
como as secas e as guerras, que impelem os habitantes de uma determinada região à
mudança para outra região ou à sua dispersão por vários territórios. No campo
anglófono da geografia o termo deslocamento [displacement] tem sido, inclusive,
trabalhado de modo a bem caracterizar os processos que inseridos na lógica capitalista
estariam voltados a transformar determinados espaços e a remover destes as
populações menos favorecidas, a gentrificação [gentrification].
Nosso intento é juntar tanto o sentido casual quanto o proposital de cada uma
das apreensões numa ideia do ‘deslocamento’ mais propícia a ser trabalhada pela
História dos Espaços, na medida em que a análise seria fundada na digressão entre as
marcas temporal e espacial.277
Assim, o embate entre os reacionários e os partidários de Maritain no Brasil,
começado em 1937, poderia ser entendido enquanto a demonstração de dois espaços
católicos, um nucleado no Centro Dom Vital do Rio de Janeiro outro no Centro Dom Vital
do Recife. E, a gênese de embate poderia ser compreendida na viagem de Maritain à
Buenos Aires em 1936, uma vez que se redimensionaria a sua inserção no problema
brasileiro, já que a ida a Argentina propiciaria uma articulação no Brasil para planejar a
passagem e que dinamizaria a recepção de suas ideias e a incorporação dela ao espaço
centrado no Rio de Janeiro. Pela proximidade da Diocese de Natal com a liderança e o
esforço do Rio de Janeiro se daria uma tomada de posição liderada por Otto Guerra que
subtrairia o Rio Grande do Norte do espaço centrado em Recife. Contudo, essa tomada
de posições não se daria pela substituição dos conteúdos e ideias religiosas e políticas
anteriores pelas novas, mas pela transformação e amálgama com as novas. Por
conseguinte, o problema da des-espacialização e des-constituição apontado ao início
desta comunicação se traduziria na Diocese de Natal pela possibilidade de um processo
e de uma transformação colusiva.278

277 Os fundamentos desta ideia do deslocamento e de sua adequação à História dos Espaços encontra os
seus fundamentos ao trabalho de Edward Shils acerca das relações entre Centro e Periferia e às suas
colocações a respeito dos fenômenos da atribuição do Carisma e da integração cultural na sociedade
(SHILS, 1992).
278 Estas questões devem ser entendidas enquanto trabalhadas pelo referencial das impressões de

Jacques Derrida acerca do espaço e de sua compreensão (PEIXOTO, 2015) assim como pelas ideias acerca
da Nação e da tradução esboçadas por Homi Bhabha no conceito de Entre-Lugar (BHABHA, 2010).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
325

Utilizaremos duas obras bastante significativas para a compreensão da viagem


de Jacques Maritain, visando a reunir insumos para nossa argumentação a partir de um
apontamento sucinto e bastante prático, apenas voltado para os limites estreitos desta
comunicação: Cristianos Antifascistas, publicada por José Zanca no ano de 2013 e
Jacques Maritain et l’Amérique du Sud, da lavra de Olivier Compagnon em 2003.
São dois autores extremamente competentes e essas duas obras estão entre as
que melhor trabalham o objeto, mas se repararmos nas utilizações do termo ‘viagem’
ao deslocamento de Maritain - à Argentina, no caso de Zanca e, à América do Sul, no de
Compagnon – observaremos que elas não alcançam a amplitude e a singularidade
desse movimento. E, nos termos estritos de uma historiografia centrada na apreensão
do temporal, pouco importaria a nossa observação de que Maritain passou por outras
cidades que não as da Argentina ou se dissermos que ele não visitou todos os países da
América do Sul. Ao final, o trajeto do deslocamento de Maritain começou mesmo na
Europa e finalizou na América do Sul, pois ele saiu de Marselha para ir até Buenos Aires,
a capital da Argentina, ficando nesse país por 61 dias, praticamente todo o tempo em
que não estava a bordo da embarcação em que se deslocou.
Nosso argumento se desdobra além de uma evidente crítica pós-colonialista:
sim, é interessante observar a visada a partir das quais essas obras foram produzidas
para colocar que o termo ‘viagem’ pode ali estar acomodado numa certa
contextualização histórico-espacial, a primeira obra incorrendo numa visão
centralizada na Argentina ao discorrer no préstimo da estadia de Maritain para aqueles
católicos que lutavam contra as posições conservadoras; a segunda, trabalhando o
sentido das ideias e da trajetória intelectual do francês Maritain na condução do
pensamento católico na América do Sul, uma viagem só de ida.
No entanto, acredito que também é importante fazer notar que em ambos os
casos o termo ‘viagem’ acomoda a reificação da marca temporal no fazer histórico, pois
subordina a esta marca o sentido da interpretação e por ela se acomoda na não-
problematização dos deslocamentos.
Por exemplo, pouca importância têm o deslocamento propriamente dito e o meio
de transporte utilizado: qual era a tempo de espera pelo deslocamento e a duração do
percurso; quais e onde seriam as paradas ou escalas; e, se essas paradas se repetiam
na volta. Qual transporte fora utilizado e as suas características; se haviam outros
meios de transporte disponíveis; e, por que foi utilizado este transporte e não aquele?

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
326

O viajante fora sozinho ou acompanhado; e, se foi acompanhado, quem era essa pessoa
e o porquê de acompanhá-lo.
O navio permitia juntar uma quantidade maior de integrantes de um mesmo
grupo, mas o deslocamento era mais lento, e, na maioria das vezes, suas acomodações
mais espaçosas permitiam o desenvolvimento de uma sociabilidade duradoura.
Inclusive, na época de Maritain, o uso do telégrafo sem fio à bordos dos navios
possibilitava articulações e respostas daqueles que aguardavam a chegada ou a
passagem da embarcação.
Por conseguinte, o termo ‘viagem’ não deveria se referir apenas ao tempo em
que se permanecesse em terra, mas incluir as articulações potencialmente muito
próximas com aqueles que conviviam estreitamente no meio de transporte. Esses
contatos não se estabeleciam apenas no transporte, mas também em paradas pré-
estabelecidas e aguardadas, às quais se juntava o sentido da oportunidade não apenas
para aqueles que os esperavam no destino, mas também para aqueles que tinham
notícia da passagem dos navios nas escalas. E, as notícias acerca do viajante precediam
a sua partida e também se sucediam com as suas paradas nos portos de escala, assim
como as notícias dos resultados obtidos precediam a sua volta e, novamente
impressionavam aqueles que estavam postados nas escalas da volta.
Em nosso caso: Maritain viajou de navio, mas por que não de avião ou de
Dirigível? A Air France dispunha de voos de que integravam Paris a maioria das capitais
europeias, desde Estocolmo até Madri e, de Londres à Istambul. Além do roteiro
europeu, a Air France operava a partir de Paris um caminho aéreo que passava por
Marselha para daí integrar boa parte do território colonial francês, chegando a Saigon
numa de suas extremas e a Dacar. Desta última cidade saia uma linha regular de correio
da Air France para a América do Sul que passava pelo Brasil, desde Marselha até
Santiago, no Chile, mas que não fazia o transporte de passageiros.
Isto se dava em razão de dois problemas: o primeiro era que o Brasil, como muito
países, havia reservado as rotas internas de passageiros para as companhias nacionais;
o segundo, que a travessia transatlântica ainda era problemática e, por conta disso,
fazia mesmo parte da propaganda das grandes potências e do jogo de poder e
influência global. A primeira metade da década de 1930 foi justamente o período dos
grandes “raides” aéreos do regime fascista italiano e num dos mais famosos, o
comemorativo da ‘Decennale’ (os dez anos da chegada de Benito Mussolini ao

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
327

Governo), Italo Balbi, o segundo da hierarquia fascista chegou ao Brasil com a sua
esquadrilha de hidroaviões, em 1931. Compreendido então como um movimento heroico
e capaz de demonstrar a fibra do revolucionarismo de direita, o raide impressionou boa
parte do mundo e, inclusive aqueles católicos que na Diocese de Natal haviam se
aproximado do fascismo através da Legião do Trabalho de Severino Sombra (PEIXOTO,
2016).
Maritain viajou de navio, mas o que era esta embarcação? Como acabamos de
ver, designar o meio de transporte muitas vezes não informa todas as circunstâncias
do deslocamento pois os navios, como os aviões e dirigíveis, podiam fazer parte de
redes e estratégias de deslocamento que se integravam ao jogo político e econômico
das nações, projetando ou refletindo investimentos e influências.
A embarcação em que Maritain se deslocou pertencia à Société Générale de
Transport Maritime à Vapeur (SGTM), a qual operava quatro rotas em 1936: a que ligava
a França à Itália; aos territórios coloniais da Argélia; à Espanha e Argélia; e a que
rumava de Marselha ao Brasil, Argentina e Uruguai. Esta última rota era designada pela
SGTM tanto pelo título de “Brasil-Prata” quanto “América do Sul via Marselha”, ligando
a França à Buenos Aires com escala no Rio de Janeiro e, dependendo do dia da saída,
estava incluída uma outra parada, em Santos ou Montevidéu.
A partir da análise do itinerário da rota Marselha-Buenos Aires da SGTM
podemos perceber que a depender das estratégias dos grupos católicos situados no
Brasil e Uruguai e, dos interesses de Jacques Maritain, ele seria aguardado
obrigatoriamente no Rio de Janeiro, escala de todas as rotas e, a depender das
circunstâncias, esse itinerário poderia ser estendido a Montevidéu e a Santos.
Sabemos que Maritain cumpriu uma agenda intensa no Rio de Janeiro e em
Montevidéu durante a sua viagem, mas como poderia qualificar esses esforços? É certo
que fazemos aqui uma leitura a partir do viés do catolicismo, mas o deslocamento e o
esforço de Maritain teriam originalmente a ver com isto? Nossa aproximação a partir
da História do Espaços e a digressão em torno do conceito ‘deslocamento’ nos ajudaria
à compreensão dessa agenda e a nos permitir a continuar no trabalho de evidenciar a
recepção diferenciada da Arquidiocese de Natal?
Sabemos pelos periódicos de época e pela consulta às obras de Zanca e
Compagnon que originalmente o deslocamento de Maritain não estava ligado às
demandas do catolicismo, mas do Pen Club que organizava então o Congresso

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
328

Universal dos Escritores em Buenos Aires, ao qual se somaram posteriormente a


Universidade de Buenos Aires e a Faculdade de Humanidades de La Plata. Por conta
disso, viajavam com Maritain vários outros escritores europeus – por conta das amplas
dependências da embarcação, e, por conseguinte, a recepção e o patrocínio recebidos
por Maritain no deslocamento à Argentina, ao Uruguai e ao Brasil, tinham a ver com
esta iniciativa.
Jacques Maritain foi recebido como um escritor reconhecido, que fora convidado
para um certame de primeira ordem e, a partir da inserção das universidades, como
filósofo. Nesse ínterim, tornou-se possível às organizações católicas inserir suas
demandas e organizarem também um circuito, que então interessava sobremodo aos
grupos situados ao centro e à esquerda do catolicismo em cada uma das cidades
possíveis de serem visitadas por Maritain – essa foi a ordem pela qual se deu a inserção
de Maritain nos países visitados. E, essa ordem foi flexibilizada a partir das folgas e das
oportunidades que o roteiro de viagem apresentou: Montevidéu foi visitada quase ao
fim de sua estadia na Argentina; no Rio de Janeiro se organizou uma agenda no período
em que Maritain estava na Argentina e no Uruguai, dada que era certa a sua escala
nessa cidade quando retornasse à Europa, e, a cidade de Santos não teve essa
oportunidade na medida em que essa preparação haveria de ter sido feita antes da vinda
de Maritain, uma vez que Santos era uma escala para no roteiro da SGTM apenas na ida
para Buenos Aires.

JACQUES MARITAIN, O ‘MENSAGEIRO DA FÉ CATÓLICA’


O navio que levava Jacques Maritain para Buenos Aires aportou no Rio de Janeiro
em 10 de agosto de 1936, tendo sido recebido pelo Ministro da Educação e por vários
intelectuais, destacando-se, dentre eles, Alceu Amoroso Lima, presidente do Centro
Dom Vital do Rio de Janeiro.
Cognominado de ‘Mensageiro da fé católica’ em O Jornal, um dos principais
diários brasileiros, Jacques Maritain era também apontado como um dos “grandes
vultos do pensamento moderno”, mas a recepção de suas ideias no Brasil se devia
àquilo que era então o ponto mais agudo da pauta política da Igreja no Brasil: a
aproximação com o fascismo.
Julgava-se que Maritain emprestasse prestígio ao posicionamento de aliança
com a Ação Integralista Brasileira, advogada por Alceu Amoroso Lima e encarnada mais

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
329

à direita por vários expoentes e jovens talentos do catolicismo, como Otto Guerra, no
Rio Grande do Norte e, padre Hélder Câmara, no Ceará (PEIXOTO, 2017b).
“Qual deve ser a atitude de todos os católicos face do comunismo e do
capitalismo?”, perguntava o repórter de O Jornal – “Combatei-os!”, respondia, sem
hesitação, Maritain - o católico deveria ser anticapitalista e lutar ao mesmo tempo
contra o comunismo, mas sem armas e ameaças, agindo contra o comunismo,
“purificando-se internamente com o fogo da caridade e da penitência regenerando sua
alma, seu espírito, seu coração, vivendo intensamente sua fé”. Contudo, acrescentava o
jornalista, seria “de prima importância”, “aliar-se a forças que já existem ou hão de
existir, e resistir ao espírito do mal. Lembremo-nos que nem os Cruzados, por não serem
bastante purificados, conseguiram obter o túmulo do Cristo” (CORREA, 1936).
Maritain era apresentado como o “Mensageiro da fé católica” o qual pregava a
pureza, a caridade e a penitência para que os católicos pudessem enfrentar “o espírito
do mal” o grande perigo político, cultural e ideológico colocado simultaneamente pelo
capitalismo e pelo comunismo, e, por essa leitura justificava-se a aliança com o
Integralismo, mesmo que fosse uma junção de cordeiro com lobos
Dado a imensa importância dessas ideias para as posições daqueles que se
juntavam no Centro Dom Vital do Rio de Janeiro e que emprestavam apoio ao Cardeal
Dom Sebastião Leme, na volta de Buenos Aires, e Montevidéu, Jacques Maritain
cumpriria no dia 21 de outubro de 1936 uma extensa agenda, palestrando na Coligação
Católica, no Palácio do Itamaraty (sede do Ministério das Relações Exteriores) e na
Academia Brasileira de Letras, sempre acompanhado de Alceu Amoroso Lima,
repetindo e estendendo temas de palestras e conteúdos já apresentados em Buenos
Aires e Montevidéu.
Se esta seleção de temas e ideias atendia às questões mais importantes para
Maritain, a seleção de audiências e a importância dos locais de reunião obedecia à
estratégia de adensar política e culturalmente a presença de Maritain, tudo isto
possibilitado pela inteligência de marcá-las num percurso pequeno e de fácil
locomoção, no centro da cidade do Rio de Janeiro e, próximo ao ancoradouro do navio
que o trouxera.
Tudo isto nos leva a poder aventar duas outras questões a serem apontadas por
meio do conceito de ‘deslocamento’: primeiro, se o deslocamento é a variação de um
corpo em um certo intervalo de tempo, todos os intervalos teriam a mesma importância

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
330

para a interpretação dos eventos históricos, ou nalguns intervalos a densidade de


acontecimentos não implicaria na necessidade de termos de requalificá-los? As
passagens de Maritain pelo Rio de Janeiro não foram episódicas nem desprovidas de
significado até porque naquela cidade estavam condensadas várias circunstâncias de
valor político, simbólico e cultural para o catolicismo do Brasil: poderíamos dizer de
uma magnitude de eventos?
Afinal o Rio de Janeiro era a sede do Centro Dom do Vital presidido por Alceu
Amoroso Lima, era a sede do único cardeal da América do Sul, Dom Sebastião, da
Nunciatura Apostólica e, ali se localizava o Cristo Redentor e a capital de República e,
se a passagem de Maritain fora tão condensada, estas duas circunstâncias poderiam
ser juntadas para requalificar a viagem de Maritain e a sua passagem pelo Brasil?
A recepção brasileira de Jacques Maritain nos ajudaria na tarefa de requalificar
o seu deslocamento, afinal ele não fora cognominado de “Mensageiro da fé católica”?
Se observamos como o deslocamento de Maritain foi se transformando desde sua
partida e, até seu retorno a Marselha, de acordo com as demandas, no apronto das
circunstâncias, não deveríamos pensar que ele também acreditava cumprir uma
missão?
Tomando emprestado ao literário e o mítico a ideia da ‘Jornada’, um percurso
incerto e inconstante, mas com um objetivo fixo, ainda que ilusório, não poderíamos
nomear o deslocamento de Maritain como uma Jornada? A Jornada do Herói? História
sagrada e humanizada, poderíamos juntá-la à interpretação da História dos Espaços, no
caso, tomando-a a partir da ideia derridiana de Khora, no sentido de espaço que junta o
lógico ao mítico (DERRIDA, 2001).
Esta ideia de ‘Jornada’ se aprestaria para nos ajudar a formular, no sentido
requerido por Edward Said (2012) um início, humano e lógico, afastado do sentido das
origens, sobrenatural e mítica, aventando o local espaço-temporal, o divisor de águas
dos posicionamentos religiosos, culturais e políticos do campo católico, não apenas
emprestando representatividade às suas vertentes menos extremadas, mas também
gerando enfrentamentos que transformaram o catolicismo regional e nos permitem
caracterizar a ideia de ‘Espacialidade’.
No Brasil a repercussão das opiniões de Maritain, sobretudo no que dizia
respeito à Guerra Civil Espanhola, levaram o Centro Dom Vital do Recife, liderado pelo
padre Antônio Paulo Ciríaco Fernandes, a se projetar como eixo de um posicionamento

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
331

que rivalizava com a liderança do Cardeal D. Sebastião Leme, nucleada no Estado do Rio
de Janeiro e amparada pelas Dioceses do Sul e Centro-Oeste.
Em 1937 o embate entre Maritain e padre Fernandes tomaria a sua maior
dimensão com a publicação em diversos periódicos da 'Boa Imprensa' – inclusive em O
Jornal, o mesmo diário que cognominou Maritain de “mensageiro da fé católica”, a carta
com que Jacques Maritain expôs as suas posições e, com a subsequente necessidade
de tomada de partido em nível local.
No caso da Arquidiocese de Natal isto se daria a partir da expressão da liderança
de Otto Guerra nas sua função de editor do jornal ‘A Ordem’ e líder da refundação da
‘Ação Católica’, do seu afastamento da Ação Integralista Brasileira e, do seu
rompimento com as posições do padre Antônio Paulo Ciríaco Fernandes, seu primeiro
mentor religioso e líder do reacionarismo na região.
Este desfecho nos permite juntar à ‘Espacialidade’ às colocações de Edward
Shils em torno da relação centro/periferia bem como frisar a pertinência do ‘Entre-
lugar’ de Homi Bhabha para se pensar a questão da Nação e, de todas, para situar nossa
ideia da História dos Espaços.

REFERÊNCIAS
BHABHA, H. O Local da Cultura. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2010.

GRIFFIN, R. “The Holy Storm”: Clerical Fascism’ through the lens of Modernism. In:
FELDMAN, M.; TURDA. M; GEORGESCU, T. Clerical Fascism in Interwar Europe.
London: Routledge, 2008, p. 1-16.

CAMARGO, C. Igreja e Desenvolvimento. São Paulo: CEBRAP, 1971.

COMPAGNON, O. Jacques Maritain et l’Amérique du Sud. Le modèle malgré lui,


Villeneuve-d’Ascq, Presses universitaires du Septentrion, 2003.

CORRÊA, R. "Jacques Maritain mensageiro da fé católica" O Jornal, 11/08/1936, p. 8.


DERRIDA, J. Khora. Campinas: Papirus Editora, 1995.

FÁVERO, O. Uma pedagogia da participação popular: análise da prática educativa do


MEB – Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Editora Autores
Associados, 2006.

FERRARO, A. Igreja e Desenvolvimento – O Movimento de Natal. Natal: Fundação José


Augusto, 1968.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
332

PEIXOTO, R. 'Duas Palavras': 'Os Holandeses no Rio Grande' e a invenção da identidade


católica norte-rio-grandense na década de 1930. Revista de História Regional, v. 19, p.
35-57, 2014.

__________. A Colusão entre o Catolicismo e o Integralismo no Rio Grande do Norte


(1932-1935). In: XXVIII Simpósio Nacional de História, 2015, Florianópolis. Anais
eletrônicos do XXVIII Simpósio Nacional de História. São Paulo: Anpuh Nacional, 2015.

__________. System of the Heavens: um exame do conceito de ‘Colusão’ por meio do


caso da criação do Núcleo da AIB em Natal. Revista Brasileira de História das
Religiões, v. 9, p. 121-150, 2016.

__________. O Movimento de Natal e a gênese da colusão entre catolicismo e


marxismo em meados da década de 1950. In: XXIX Simpósio Nacional de História -
contra os preconceitos: história e democracia, 2017, Brasília. Anais do XXIX Simpósio
Nacional de História - contra os preconceitos: história e democracia. São Paulo: Anpuh
Nacional, 2017.

__________. Da Liga Eleitoral Católica à Reação Nacionalista: o percurso do


Catolicismo brasileiro rumo à colusão com o Fascismo. REVISTA BRASILEIRA DE
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES, v. 10, p. 297-332, 2017 (b).

SAID, E. Beginnings: intention and method. Londres: Granta, 2012.

SHILS, E. Centro e Periferia. Difel: Lisboa, 1992.


ZANCA, J. Cristianos Antifascistas: conflictos em la cultura católica argentina. Buenos
Aires: Siglo Veintiuno, 2013.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
333

A QUESTÃO BANDEIRANTE
A QUERELA HISTORIOGRÁFICA ENTRE CORTESÃO E
HOLANDA (DE ABRIL À AGOSTO DE 1952)279

Douglas André Gonçalves Cavalheiro280

INTRODUÇÃO
Entre abril e agosto de 1952 os leitores dos suplementos literários de tiragens
dominicais, Diário Carioca e Diário de Notícias, presenciaram um aprofundado debate
historiográfico entre Sérgio Buarque de Holanda e Jaime Cortesão. Em textos
tangenciados por colunas escritas por Raquel de Queiroz, Tristão de Athayde e poesias
de Homero Homem – no caso do Diário de Notícias – e, crítica literária de Otto Maria
Carpeaux, textos de José Lins do Rego e poesia de Manuel Bandeira –do Diário Carioca,
demonstra um caráter distinto do jornalismo do início do século XX: a maior influência
francesa marcava o aspecto de textos opinativos sob a maneira da escrita informativa
e objetiva ao estilo norte-americano281.
No entanto, apesar do público acostumado com as múltiplas temáticas
abordadas pelos cadernos literários, essa questão indigesta se apresentou de forma
insólita aos leitores. Devido ao grau de complexidade e extensão, a querela foi
comentada pelo escritor Otto Lara Resende, imortal da academia brasileira de letras,
como uma polêmica monótona que poderia ser solucionada com uma mera ligação
telefônica. Contudo, a querela historiográfica é importante por ser capaz de relevar
diversos procedimentos do modus operandi sobre o ofício do historiador. A distinção
interpretativa entre Sérgio Buarque de Holanda e Jaime Cortesão sobre a função dos

279 A pesquisa é resultado da investigação de iniciação científica de 01 de agosto de 2017 até 31 de julho
de 2018 sob a orientação do professor Dr. Renato Amado Peixoto, inserido no projeto: “As fabricações
de Jaime Cortesão: a formulação e construção da História da Cartografia, da Formação Territorial do
Brasil e das figuras de Alexandre de Gusmão e do Barão do Rio Branco entre 1930 e 1960”.
280 Possui licenciatura plena em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010) e

mestrado em Filosofia, na área de Metafísica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2014).
Atualmente é professor de filosofia da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do
Norte. Também é graduando de História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e, bolsista
de Iniciação Científica PIBIC/CNPq da base de pesquisa Cartografia Imaginária (2015). Contato do e-mail:
douglas.cavalheiro@gmail.com
281 A imprensa carioca passou por transformações ao longo da década de 1950. Entre esses pioneiros

estava o Diário Carioca (1928) que protagonizou uma modernização na gestão empresarial e na maneira
de escrita objetiva e na forma de tipografia das tiragens. Cf. Ribeiro, Ana Paula Goulart. Imprensa História.
Imprensa do Rio de Janeiro de 1950. Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, 2000. Tese de Doutorado.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
334

bandeirantes na expansão territorial do Brasil lança uma luz sobre a compreensão da


História dos Espaços. Pois, nessa categoria, a história surge como um cenário teatral,
construído, elaborado e fabricado diante de uma necessidade de uma demanda. As
delimitações do cenário representam significados para distintas formações espaciais:
no caso, a formação do Brasil. Os bandeirantes surgem nessa narrativa como
personagens, porém, o seu protagonismo é interpretado por um lado na forma de
heroica jornada épica lusitana – por Cortesão – e por outro lado como uma tragédia das
necessidades circunstanciais – por Holanda. Dessa forma, por meio da querela é factível
analisar a formação espacial do “saber sobre o espaço” através da Cena de Escrita
histórica.

A HISTÓRIA DOS ESPAÇOS: A HISTORIOGRAFIA ESPACIAL PAULISTA


A investigação sobre a querela entre Cortesão e Holanda se delineia a partir da
construção da historicidade dos bandeirantes, na qual, o responsável pela formação
territorial brasileira estaria sob um ideal geopolítico: a Ilha-Brasil. No exame do tempo
histórico, ao analisar o processo de construção do bandeirantismo, a pesquisa segue a
historicidade proposta por Araújo (2013), na qual afirma que a historiografia possui
uma história própria. Quanto ao aspecto sobre a constituição espacial, a pesquisa
baseia-se no processo de fabricação da cena historiográfica, estabelecido por Peixoto
(2014) através da ideia geopolítica da “ilha-Brasil”.
A modernidade transformou profundamente a concepção dos processos de
manufatura. Anteriormente, a função laboral alterava as matérias primas em objetos
de consumo com fim de atender uma demanda específica. Porém, com o advento da
Revolução Industrial, a produção tornou-se racionalmente sistematizada através de um
processo mecanizado a fim de atender uma demanda global. Essa fabricação não foi
uma exclusividade dos bens materiais, mas também sobre os bens culturais. Nesse
aspecto, a história se tornou fruto desse processo fabril visando atender as demandas
de determinados grupos sociais. “A historiografia como ciência é, por definição, uma
máquina de impropriedade, de transformação do tempo histórico em objeto pronto
para os mais diversos usos sociais” (ARAUJO, 2013, p.38). Logo, a reificação da
temporalidade em tempo histórico torna possível investigar a transmissão dos
acontecimentos passados sob a concepção de continuidade e descontinuidade.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
335

A partir da metodologia de uma história da historiografia é possível investigar a


concepção sobre os bandeirantes, em disputa por Cortesão e Holanda, sob uma ótica
de continuidade e descontinuidade. Jaime Cortesão, historiador lusitano, foi um
importante operador desse maquinário historiográfico no Brasil. Em virtude de
participar da comissão organizadora do IV Centenário da Cidade de São Paulo, Cortesão
defendia uma concepção apoteótica dos bandeirantes, ou seja, seguindo a continuidade
das concepções iniciadas por Afonso Taunay. Em contrapartida, numa forma de
descontinuidade, Sérgio Buarque de Holanda, na condição de Diretor do Museu
Paulista, apresenta uma perspectiva crítica em relação a atividade dos bandeirantes,
afirmando que as concepções de Cortesão consistiram numa tentativa de construir uma
mitologia sobre as atividades reais dos bandeirantes.
No que tange os aspectos hermenêuticos é preciso lançar uma compreensão
sobre o conceito de cenário, advindo da crítica literária e adaptado para análise
historiográfica por Peixoto (2005). Influenciado por Harold Bloom e Derrida, Peixoto
procura estabelecer uma compreensão das narrativas históricas como uma forma de
"saber sobre o espaço" que se constrói e se ressignifica por meio de uma "cena da
escritura". Todos os processos de construção sobre os cânones literários estão sujeitos
ao ato de releitura, transcendência e transgressão sobre uma provável continuidade.
Dessa forma, a definição da espacialidade da cena pode ir além da compreensão usual
de um local em que se desenvolve a representação cênica de um enredo, sendo também
um espaço de construção da historicidade na qual se desenvolve a narrativa histórica.
Tal como na concepção do Teatro da Crueldade, na qual Antonin Artaud advoga uma
ruptura na concepção clássica da distinção entre o palco e a plateia, na qual, o espaço
da representação, o cenário, estaria em amálgama com a realidade, inserido numa
contínua ressignificação sobre uma "nova concepção de espaço".
Dessa forma, a concepção da "Ilha Brasil", apresentada por Cortesão, é analisada
pela história da historiografia como um cenário da produção histórica. Em A Flecha e o
Alvo, Peixoto (2014) apresenta que para investigação desse conceito sobre a cena seria
necessário: a) avaliar a finalidade do processo de criação da narrativa historiográfica, b)
abordar a performance do contexto social e político em que são fabricadas as cenas
históricas, c) inserir o produto do cenário historiográfico em uma rede econômica
sujeito a atender uma demanda, sendo por isso circulado e divulgado visando ao
consumo de determinados grupos sociais.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
336

A partir dessa segmentação apresentada por Peixoto, o debate entre Cortesão e


Holanda será inicialmente apresentado a partir das diferentes finalidades que foram
abordadas as concepções historiográficas sobre a "ilha Brasil" e as ações dos
bandeirantes na formação do território do Brasil, apresentando, consequentemente, o
cenário político e social paulista, e, nacional, em que o enredo do debate foi montado.
Por fim, apresentar os grupos sociais que defendiam e consumiam essa narrativa
exposta tanto por Cortesão como por Holanda.

ESPACIALIDADE & CENÁRIO HISTORIOGRÁFICO: O CONTEXTO PARA A CENA DE


ESCRITA
Cortesão estava exilado de sua terra natal, porém, ainda gozava de prestígio
social devido ao seu cargo de Diretor da Biblioteca Nacional de Portugal. Através dos
conhecimentos de cartografia, Cortesão iniciou seu curso sobre a formação territorial
brasileira a partir dos estudos realizados no Ministério das Relações Exteriores. Após
organizar os manuscritos sobre a ocupação da região platina, reunidos na Coleção de
Angelis282, em 1951283, Cortesão foi convidado para compor a comissão organizadora
do IV Centenário da Cidade de São Paulo, juntando esforços com Francisco Matarazzo
Sobrinho e Júlio Mesquita Filho. Nesse período Sérgio Buarque de Holanda também já
era um intelectual consagrado, ocupava o cargo de diretor do Museu Paulista desde
1946, e, quando esteve na Alemanha em 1929, foi jornalista correspondente do
periódico Diários Associados. Durante a década de 1950, escrevia para coluna literária
do Diário Carioca e dava aulas na Faculdade de Filosofia em Sorocaba. Socialista
convicto e atuante, Holanda participou da fundação do Partido Socialista Brasileiro e
lançou sua candidatura para vereador de São Paulo em 1947.
O objeto central abordado pela querela entre Cortesão e Holanda é a natureza
dos bandeirantes e as suas responsabilidades na formação territorial do Brasil.
Segundo Cortesão, as expedições das bandeiras foram insimuladas e patrocinadas pela

282 O professor napolitano Pedro de Angelis (1784 – 1859) era secretário das Relações Exteriores em
Paris após as guerras napoleônicas. Em 1927 foi convidado por Bernardino Rivadávia, presidente da
Argentina, para se estabelecer em Buenos Aires. Durante esse período reuniu uma coleção de livros,
documentos, cerca de 90 mapas. De Angelis catalogou numa coleção de obras impressas sobre a região
do Rio da Plata. Posteriormente, esse material foi adquirido por D. Pedro II, em 1853 e passou a integrar
o acervo da Biblioteca Pública da Corte, atualmente conhecida como Biblioteca Nacional.
283 Cf. Manuscritos da Coleção De Angelis. 1. Jesuítas e Bandeirantes no Guairá. Biblioteca Nacional.

Divisão de Obras Raras. Rio de Janeiro, 1951),

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
337

coroa portuguesa, que desde as projeções cartográficas do século XVI, já possuía a


concepção de que o território colonial do Brasil seria uma ilha continental circunscrita
entre os fluxos dos rios e o oceano atlântico. Sob essa ideia geopolítica da Ilha-Brasil,
os portugueses reivindicavam o espaço interior do continente. Para isso, realizaram
uma série de expedições na busca por reivindicar essa espacialidade para Portugal.
Dessa maneira, Cortesão fundamenta que o fenômeno dos bandeirantes é puramente
lusitano, inspirado nos mesmo ideais expansionistas que geraram as Grandes
Navegações séculos anteriores. Em contrapartida, Holanda discorda dessa concepção
de uma ocupação organizada e pré-estabelecida pela coroa lusitana. Os bandeirantes
seriam um fruto da miscigenação indígena e de lusitanos, na qual, devido a escassez
material buscavam metais preciosos e escravizavam indígenas, também executando
papéis de soldados mercenários nas lutas contra quilombos, como o caso de Palmares,
e, no interior do Nordeste na Guerra dos Bárbaros. Portanto, a expansão territorial do
Brasil realizada pelos bandeirantes não foi resultando de uma ação cosmopolita e
civilizatória, mas, marcada pela violência decorrente de uma escassez de uma economia
sustentável.
Por meio de uma análise da história sobre a historiografia do movimento
bandeirante, à luz do cenário social e político em que se encontrava o Brasil durante
1952, é compreensível a forma do discurso que foram fabricados na Questão
Bandeirante. No cenário nacional, a política apresentava no princípio de crise uma frágil
aliança política. Vargas conseguia governar com uma maioria simples no congresso.
Sua política externa e econômica era constantemente criticada pelo Clube Militar
carioca e o empresariado paulista. Tudo isso, em meio das comemorações do IV
Centenário de São Paulo, farão com que Cortesão e Holanda transformem os
bandeirantes em protagonistas da identidade paulista diante da crise nacional.
O enredo desse debate foi elaborado num cenário social e político de tensões
regionais e nacionais. Em 1952, as tensões políticas se iniciavam dentro das classes
militares. Em março foi formada a chapa conservadora Cruzada Democrática para as
eleições do Clube Militar, composto pelos generais Alcides Etchegoyen e Canrobert
Pereira da Costa que derrotou a chapa nacionalista dos generais Estillac Leal e Horta
Barbosa. Os membros conservadores se posicionavam contrários à política nacionalista
de Vargas, principalmente sobre o discurso nacionalista da campanha do O Petróleo É
Nosso. Outro aspecto que chamava atenção apenas não só dos militares, mas também

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
338

dos empresários paulistas, foram as manifestações sindicais em favor do reajuste do


salário mínimo. Desde sua criação em 1942, o salário mínimo não possuía nenhum
reajuste e com a constante desvalorização devido a inflação as manifestações públicas
evoluíram exponencialmente. "O número de grevistas cresce no país de ano para ano,
passando de 264 mil em 1951, para 411 mil em 1952 e a cerca de um milhão em 1953."
(PRESTES, 1954,).
O cenário do governo estadual paulista refletia o aspecto nacional da frágil
aliança de Getúlio Vargas (PTB) e Adhemar de Barros (PSP) durante as eleições de
1950. Getúlio Vargas eleito presidente pelo PTB em conjunto com seu vice-presidente,
Café Filho, indicado por Adhemar de Barros. O PSP também fizera seu sucessor no
governo do estado de São Paulo com a vitória de Lucas Nogueira Garcez. Porém, a elite
paulista possuía uma ojeriza em relação ao trabalhismo de Vargas desde os conflitos
militares que ocorreram em 1932 e o golpe do Estado Novo de 1937 "foi mais um motivo
de rusga entre boa parte dos políticos e da imprensa paulista com Vargas, uma vez que
o governador de São Paulo, Armando Sales de Oliveira, seria um dos nomes que
concorreria ao cargo de presidente na eleição que seria realizada em 1938." (FIDELIS,
2013). Armando de Sales Oliveira era cunhado de Júlio Mesquita Filho, chefe do
periódico O Estado de São Paulo, e, grande opositor do regime de Getúlio Vargas, sendo
por esse motivo preso e exilado.
Em retorno ao Brasil, Mesquita vai integrar os setores políticos de oposição ao
Estado Novo, ingressando na União Democrática Nacional (UDN). Nesse momento, a
UDN integrava todos opositores do regime de Vargas, incluindo intelectuais socialistas,
como Sérgio Buarque de Holanda, que posteriormente, em 1947, irão fundar o Partido
Socialista Brasileiro (PSB).
Na ocasião do debate, Sérgio Buarque de Holanda era diretor do Museu Paulista
e Jaime Cortesão tinha sido chamado para fazer parte da comissão organizadora do IV
Centenário da cidade de São Paulo. Nessa condição, Cortesão aproximou-se da elite
paulista que organizava o evento, como Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccilo, e Júlio
Mesquita Filho. Dessa maneira, a narrativa historiográfica de Cortesão estava
sintetizada na construção do cenário anti-vargas que se orientava pelas organizações
do IV Centenário da cidade de São Paulo. As críticas de Holanda também não ficam fora
desse cenário. Socialista e candidato a vereador em São Paulo pelo Partido Socialista
Brasileiro em 1947, Sérgio Buarque de Holanda apresentava uma orientação crítica de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
339

esquerda ao regime político nacional. A partir da conjuntura desse cenário político e


social é possível observar que Cortesão e Holanda se encontram em grupos rivais ao
trabalhismo. Contudo a narrativa de Cortesão será consumida e utilizada pelo grupo
conservador da elite paulista, no caso os Matarazzo e os Mesquita. Já a narrativa
histórica de Holanda sobre as finalidades do bandeirantismo vai estar associada aos
grupos socialistas, que possuíam em seu escopo críticas de esquerda ao governo
Vargas.
A construção historiográfica dos bandeirantes como uma marca do sentimento
de orgulho paulista se iniciou já durante a década de 1920, durante o contexto dos
eventos comemorativos do centenário da independência brasileira. Era preciso a
fabricação de um discurso que integrasse o cenário da nacionalidade aos aspectos
regionais paulistas, e, a figura do bandeirante vai ser esse protagonista. "Na
historiografia paulista produzida nesse período as ideias de conquista e civilização
aparecem relacionadas com qualidades que as elites desejavam ver o Brasil da época,
tais como progresso, modernidade, riqueza e integração territorial." (RAIMUNDO, 2012).
Os construtores dessa narrativa histórica reuniram mentes como Ellis Junior,
Alcântara Machado, Afonso Taunay e Basílio de Magalhães. Para elaboração dessas
narrativas, Afonso Taunay e Basílio Magalhães deram ênfase nas expansões
territoriais das bandeiras: "Alfredo Ellis Junior, numa mesma linha de exaltação
trabalhou para demonstrar a existência de uma estirpe paulista e Alcântara Machado
distanciou-se um pouco dos demais, estudou as condições econômicas da sociedade
seiscentista." (RAIMUNDO, 2012).
O surgimento dessas narrativas historiográficas sobre as bandeiras e
bandeirantes ocorreram no mandato do governador Washington Luís (1920-1924), que
foi responsável pela modernização do Arquivo do Estado de São Paulo, assim como o
Museu do Ipiranga que foi reformado e transformado em Museu Paulista, que na
direção de Afonso de Taunay passou a ter ênfase na história paulista centrada na figura
dos bandeirantes. Washington Luís procurava, dessa maneira, apresentar um discurso
sobre o sentimento regional paulista, que associado em sua gestão, será um fator
decisivo para sua futura candidatura para presidente nas eleições de 1926. Enquanto o
presidente Epitácio Pessoa centralizou as comemorações do centenário da
independência no Rio de Janeiro, Washington Luís escolheu por uma festividade de
caráter cívico. "As concepções que nortearam a organização das duas festas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
340

caminharam em direções bem distintas. Se no Rio de Janeiro as discussões giraram em


torno da ideia de modernidade, em São Paulo, vinculou-se a valores históricos locais."
(RAIMUNDO, 2012).
Por isso, é possível inserir o debate entre Cortesão e Holanda no cenário
historiográfico sobre a condição dos bandeirantes, associando esses elementos aos
contextos políticos regionais e nacionais da década de 1950. Nesse momento em que a
elite paulista procurava representar, diante do IV Centenário da cidade de São Paulo,
uma proposta política alternativa as correntes populistas: o trabalhismo de Vargas e
ao social-progressivismo de Adhemar de Barros.
As fabricações de Jaime Cortesão vão produzir uma narrativa inovadora em
relação a condição dos bandeirantes paulistas. Somados com os estudos cartográficos,
técnica e objetos escassos aos estudiosos paulistas da década de 1920, Cortesão vai
afirmar que as expansões dos bandeirantes obedeceram a um plano de expansão
territorial. Os bandeirantes não seriam representantes da identidade brasileira, mas, do
sentimento expansivo lusitano, tal qual foram durante as Navegações. Os bandeirantes
seriam, portanto, movidos por concepções da cosmografia da geopolítica, mas não por
meros interesses econômicos. Desde o século XVI, os cartógrafos portugueses
mapearam o território brasileiro instruído pelo modelo da Ilha Brasil, na qual toda
espacialidade interior seria contornada pelos rios, no norte amazônico e no sul pela
bacia platina, que circunscreveriam o espaço insular inserido no continente americano.
Por isso, Cortesão afirma que apenas a colaboração do ameríndio não poderia "explicar
a expansão territorial, por vez fulminante do Estado brasileiro, não podemos esquecer
que o português deu - o que é essencial- consciência, direção, sentido político ao ímpeto
e a cultura expansionista aborígene." (CORTESÃO, 1952b, p.4).
Entre as principais referências historiográficas que abordaram a temática dessa
querela, entre Cortesão e Holanda, foram trabalhos publicados: Oliveira (2012) Ribeiro
(2015) e Rêgo (2016). É possível apresentar essas recentes produções inseridas no
discurso sobre a definição da espacialidade sertaneja e interiorana do Brasil, centrados
nos fundamentos cartográficos expostos por Cortesão. No caso, a tese de doutorado
de Oliveira (2012) é fundamentada pelo viés de uma metodologia da História Econômica,
na qual visa observar as cartografias sertanejas da ocupação do Mato Grosso para
relacionar com as formações dos aspectos econômicos da espacialidade. Já a
dissertação de Ribeiro (2015) se destaca pelas interações pessoais de Cortesão no

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
341

Brasil, priorizando pela sua atuação como organizador do IV Centenário da cidade de


São Paulo, na qual, por meio de uma investigação museológica sobre a criação de um
espaço da memória paulista por meio da Exposição História da Cidade de São Paulo. E
por fim, o artigo científico de Rêgo que utiliza a cartografia de Cortesão para apresentar
a concepção imaginária sobre o interior do Brasil. Todos os trabalhos abordaram a
questão sobre a espacialidade e a construção do cenário da Ilha-Brasil, contudo, não
houve referências detalhadas aos protagonistas centrais que Cortesão tanto
pesquisou e debateu com Holanda: os Bandeirantes. Dessa maneira, é possível
redimensionar o cenário historiográfico do debate Cortesão e Holanda além dos
aspectos sobre a espacialidade, mas como também diferentes interpretações sobre a
função dos bandeirantes na ocupação territorial brasileira.

O BANDEIRANTE ENTRA EM CENA: ANÁLISE SOBRE A QUERELA DE CORTESÃO &


HOLANDA
A fabricação historiográfica sobre a questão dos Bandeirantes ocorreu entre
abril e julho de 1952 nos periódico Diário Carioca e Diário de Noticias, ambos cariocas,
e posteriormente em agosto republicado n’O Estadão, da cidade de São Paulo. O debate
teve seu início em 6 de abril de 1952, com questões elaboradas por Sérgio Buarque de
Holanda, em sua coluna do periódico Diário Carioca, presente no caderno dominical
Letras e Artes.
Na ocasião das publicações dos Manuscritos da Coleção de Angelis editadas sob
a supervisão de Jaime Cortesão, em 1951. No artigo denominado Lenda Negra, Holanda,
a partir das concepções historiográficas de Leopold von Ranke, afirma sobre a
importância dos documentos para fundamentar uma pesquisa histórica, evitando a
elaboração de narrativas históricas que sejam frutos de meras conjecturas imaginárias.
Na reunião da documentação da Coleção Angelis sobre a ocupação na região do Guairá,
região fronteiriça do Paraná com Mato Grosso do Sul e Paraguai, Holanda comenta que
esse empreendimento teria uma finalidade de poder absorver os bandeirantes do seu
“legado negro”. Através da documentação, Holanda atenta ao episódio em que os
jesuítas teriam usado o poder de fogo contra os bandeirantes em 1618.

E que dez anos mais tarde, sem terem licenças para isso, utilizavam nas
contra os bandeirantes, embora acentuado, em documentos oficiais,
que continuavam indefesos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
342

Para quem se preocupe em absorver os bandeirantes da espécie de


“legenda negra” que ainda hoje os envolve não será sem interesse
observar estas curiosas contradições. Figurantes mudos de nossa
história, é em grande parte pelo testemunho de outros, de seus mais
apaixonados inimigos e de suas vítimas que conhecemos certos
pormenores de sua obra. Agora, a palavra desses inimigos irá
ajudarmos a melhorar o retrato, por vezes infiel, que deles nos foi
legado. (HOLANDA, 1952a, p. 6).

No artigo, Holanda elogia o trabalho realizado por Cortesão em organizar e


torná-los acessível, pois assim possibilita denunciar o legado obscuro das ações de
violência dos bandeirantes. Holanda advoga que os manuscritos possibilitam a uma
melhor compreensão desses personagens tão importante para história da formação
territorial do Brasil, que nada deixaram escrito.
Posteriormente, no artigo História e Geopolítica, publicado no dia 13 de abril de
1952, Holanda procura apresentar concepções antagônicas aos aspectos defendidos
por Cortesão. Holanda concordou com a perspectiva de Cortesão de que os
bandeirantes eram dotados de patriotismo lusitano e um forte sentimento anti-
hispânico, contudo, Holanda hesitou em aceitar que a atividade dos bandeirantes
estivesse inserida numa ação intencional e organizada através de um planejamento
geopolítico arquitetado pela coroa portuguesa, pois, em sua concepção, os
bandeirantes ao tomarem suas iniciativas de desbravamento além do território do
Tratado de Tordesilhas estariam contra as ordens da coroa lusitana. Nesse
questionamento sobre a tese de Cortesão foi utilizado como exemplo as expedições de
Aleixo Garcia que seria animada por notícias de “terras ocidentais, ricas em metal
precioso, não pode ser invocada sem reserva em favor da tese, quando a própria
nacionalidade portuguesa do pioneiro continua sujeita a consternações”. (HOLANDA,
1952b, p. 6). Outro aspecto é abordado sobre o padre jesuíta Manuel da Nóbrega:

E se Nóbrega, jesuíta português “pensou em alagar conjuntamente as


missões portuguesas e a soberania nacional até o Paraguai”, segundo
nota ainda o sr. Cortesão, pode-se lembrar que o desígnio de alagar
tanto aquelas missões fora animado pelo próprio capitão espanhol do
Paraguai, prova de que não via nele nenhum perigo de extensão da
soberania portuguesa. E embora Nóbrega tenha a princípio alimentado
dúvidas sobre o direito dos castelhanos sobre Assunção, conforme se
depreendo de uma das suas cartas, mais tarde voltou aparentemente
atrás e passou a chamar-lhe por várias vezes “ferra do Imperador”,
originando-se ao mesmo tempo em defensor dos castelhanos contra
portugueses e tupis que os molestavam. (HOLANDA, 1952b, p. 6).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
343

Em respostas aos apontamentos abordados por Holanda, Jaime Cortesão


escreveu no Diário de Notícias, em 18 de maio de 1952, intitulado: Aleixo Garcia –
descobridor de humanidades. Ao abordar sobre a expedição do bandeirante, que teria
acessado a região do atual Paraguai, durante o século XVI, através dos caminhos de
Peabiru, Cortesão ironiza ao questionamento elaborado por Holanda sobre a
nacionalidade de Aleixo Garcia:

O português? Esta é a primeira dúvida que nos opõe Sérgio Buarque de


Holanda. Permita-nos o crítico eminente recorda-lhe que ainda em
junho de 1948 ele falava, sem restrição alguma do “empreendimento
desse português” no seu notável ensaio: Expansão Paulista em fins do
século XVI e princípio do século XVII. Diz-nos agora que “a
nacionalidade portuguesa de Aleixo Garcia continua sujeita a
contestações”. É nós candidamente confessarmos ignorar que espécie
de razões, de razões sérias, ode fundamentar a dúvida, quando aquela
nacionalidade é afirmada pelo escrivão consista da expedição de Alvar
Nuñes Cabreza de Vaca (1541), isto é, quando parte dos castelhanos,
contemporâneos de Garcia e que percorreram, uma grande parte, o seu
itinerário; ou pelo hispano-paraguaio Rui Diaz de Gusman, que privou
no Paraguai com um filho de Aleixo. (CORTESÃO, 1952a, p. 01).

Em 15 de junho de 1952, essa temática foi retomada por Holanda no artigo


Tentativa de Mitologia, titulação que se tornaria usada para edição do livro homônimo
em 1970. Nesse momento, Holanda agradece as considerações realizadas por Cortesão
às suas questões anteriormente esboçadas. Contudo, Holanda ainda permanece crítico
em aceitar de que a expansão dos bandeirantes fosse uma ação lógica, orgânica,
deliberada intencionalmente pela coroa lusitana e legitimada pela fundamentação
geopolítica da concepção de que o Brasil possuiria em sua cartografia o formato de ilha.
Encerrando essa etapa, Holanda afirma que comentará sobre a natureza mitológica
sobre a concepção geopolítica de que o território brasileiro seria uma ilha, “pois o mito
é o meio mais fecundo de se submeter as gentes a uma dieta rigorosa, que encaminho
os seus intentos e suas vontades a certos fins magníficos, embora só obscuramente
suspeitados” (HOLANDA, 1952c, p. 6). Holanda prossegue em suas críticas e afirma: “a
noção dos chamados ‘limites naturais’ não a encontro em nenhum dos seus escritos,
mas é evidente que ela preside para ele, aquela noção de unidade.” (HOLANDA, 1952c,
p. 6). Dessa forma, Holanda estabelece seus postulados no maior de todos seus artigos
críticos ao Jaime Cortesão - A Ilha Brasil, dividido em três partes: a primeira parte

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
344

publicada em 22 de junho, a segunda em 29 de junho e a conclusão em 06 de julho.


Nesses escritos, Holanda reúne toda suas abordagens realizadas e aponta que as
hipóteses de Cortesão não são propriamente fundamentada pela documentação dos
manuscritos da Coleção De Angelis, mas, interpretações subjetivas sobre os
acontecimentos históricos.

E, por outro lado, aos momentos em que se racionalizam as confusas


aspirações é quando justamente, costumam reportar certas razões
contrárias, hesitações, ponderações amolecedora de toda vontade e
disciplina. Apenas não é difícil que esses mitos aflorem por vezes à
consciência, e o próprio sr. Cortesão nota que alguns bandeirantes – e
que se dirá dos sábios cartógrafos que, segundo seus respectivos
interesses nacionais, deslocavam caprichosamente o traçado de
Tordesilhas? - obedeciam àquela aspiração latente, mas não deixavam,
ao mesmo tempo, de perseguir um “plano deliberado”. (HOLANDA,
1952d, p. 6)

Nesse ínterim, Cortesão escreveu suas resposta em três textos ao Diário de


Notícias: em 01 de junho de 1952, intitulado Obedeceu a um plano a expansão do
Brasil?; em 13 de julho de 1952, a Introdução ao debate sobre a Ilha-Brasil e em 27 de
julho de 1952, Portugueses e Espanhóis na América. Posteriormente, esses textos
foram publicados em agosto pelo periódico paulista Estadão. Em forma sintética,
Cortesão expõe em oito tópicos suas ideias: I – Devido as experiências marítimas, os
portugueses teriam amadurecido cosmograficamente, fazendo observar as extensões
de terra de maneira geopolítica; II – O nome geo-mítico, Ilha Brasil, foi a maneira como
se poderia nomear as hipóteses geográficas que Portugal teria para com o Brasil; III –
Essa etapa geomítica foi fruto da relação dos portugueses com a cultura tupi-guarani;
IV – As cartas portuguesas do século XVI e XVII sempre demonstravam o meridiano de
Tordesilhas englobando o vale do prata na soberania portuguesa; V – o conceito de
Ilha-Brasil identifica a soberania portuguesa através de uma unidade geográfica e
cultural; VI – o mito da Ilha-Brasil remonta ao governo Mem de Sá; VII – Alexandre
Gusmão ao estabelecer o Tratado de Madri circunscreveu toda vasta área de florestas,
serras, cachoeiras e regiões alagadiças como marcos de fronteira VIII – o processo
evolutivo territorial do Brasil evoluiu aos poucos do mito para as claridades políticas
através das ações iniciais dos bandeirantes e posteriormente racionalizadas pela
diplomacia de Alexandre Gusmão e Barão do Rio Branco. (CORTESÃO, 1952b, p. 01).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
345

Dessa maneira, Cortesão fundamenta sua perspectiva de que os bandeirantes


eram um híbrido entre portugueses e indígenas, um conhecimento anfíbio de
cartografia lusitana e nativa do território, permite que se observem as atividades
expansionistas dos bandeirantes como uma realização do sentimento lusitano, algo
muito além do que é delimitado pela crítica de Holanda.

É na semelhança de métodos e processos de penetração, que


conservam as explorações levantadas a cabo pelos portugueses na
África e na Ásia, com a obra realizada pelos que determinaram o recuo
do meridiano de Tordesilhas, que se poderá encontra a causa do
sucesso obtido pelos construtores do Brasil geográfico.
E mais categoricamente:
“O bandeirantismo, na sua essência, é um fenômeno eminentemente,
visceralmente português”.
O nacionalismo luso, onde ele se esconda, está vingado. (CORTESÃO,
1952c, p. 01).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Questão dos Bandeirantes retrata duas possibilidades de visão sobre o
sentimento paulista diante da formação espacial territorial do Brasil. De um lado, a
perspectiva de Cortesão que compreende os bandeirantes como fruto da ação
expansionista e cosmopolita lusitana. As ações foram planejadas através da concepção
de que a croa lusitana concebia o território brasileiro como uma ilha circunscrita no
continente americano. Por outro lado, uma posição crítica dessa perspectiva será a de
Holanda, o qual advoga que os bandeirantes são resultado espontâneo da
miscigenação entre portugueses e indígenas, e apenas buscavam metais preciosos e
lutavam como mercenários em conflitos. Para Cortesão o expansionismo do território
brasileiro seria resultado de um cosmopolitismo lusitano, por outro lado, Holanda
compreende que essa cordialidade dos bandeirantes foi resultado de atividades
violentas.
Repensar a concepção das bandeirantes à luz da historiografia permite
compreender a função do paulista diante do cenário de crise nacional. A concepção
otimista sobre os bandeirantes de Cortesão serviu como unidade discursiva durante a
comemoração do IV Centenário de São Paulo, que foi usado pela elite paulista, todos
desgostosos com a administração federal de Getúlio Vargas. No entanto, a crítica de
Holanda visava destituir o entusiasmo do discurso paulista, no qual, apresentava um

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
346

perigo tão eminente quanto as medidas autoritárias que foram resultados da


administração de Getúlio Vargas.

REFERÊNCIAS
ARAUJO, Valdei Lopes. História da historiografia como analítica da historicidade. In:
História da Historiografia. Ouro Preto, UFOP, nº 12, 2013, p. 34-44.

PEIXOTO, Renato Amado. A Máscara da Medusa: A construção do espaço nacional


brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005 f. 432. tese
(doutorado história) – Programa de Pós-graduação em História Social, UFRJ, 2005.

_______________________. A Flecha e o Alvo – as origens, as transformações e


a função do curso da história da cartografia lecionado por Jaime Cortesão no
Ministério das Relações Exteriores. Revista Antíteses. Londrina, v. 7, n. 13, p. 184-209,
jan./jun. 2014.

_______________________. O Modelo e o Retrato: Jaime Cortesão, a História da


Formação Territorial do Brasil’ e a sua articulação com a ‘História da Cartografia
brasileira’. História da Historiografia. Ouro Preto, UFOP, n. 19. p. 46-65, dez. 2015.

REFERÊNCIAS HISTORIOGRÁFICAS
FIDELIS, Thiago. Rumo aos Campos Elísios: as eleições de 1954 pelas páginas do
Estado de São Paulo (OESP). In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História
(ANPUH), Natal, 2013.

OLIVEIRA, Tiago Kramer. Desconstruindo velhos mapas, revelando espacializações:


a economia colonial no centro da América do Sul (primeira metade do século XVIII),
2012. f dissertação (mestrado em história) – Programa de Pós-Graduação em História
Social – USP, 2012.

RAIMUNDO, Sílvia Lopes. Bandeirantismo e identidade nacional: Representações


geográficas no Museu Paulista. In: Terra Brasilis, postado em 05 Novembro 2012,
consultado o 01 Julho 2017. Disponível em: http://terrabrasilis.revues.org/375.

RÊGO, André Heráclio, O Sertão e a geografia. In: Revista do Instituto de Estudos


Brasileiros. n. 63. Abr. 2016. p. 42-66.

RIBEIRO, David William. Cartografia das Relações: As condições da produção


intelectual e os percursos da escrita histórica de Jaime Cortesão (1940-1957). 2015.
261f dissertação (mestrado em história – Programa de Pós-Graduação em História
Social – USP, 2015.

PRESTES, Luís Carlos. Por um 1 de Maio de Luta e de Unidade. In: Problemas - Revista
Mensal de Cultura Política. nº57, maio de 1954. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/prestes/1954/04/maio.htm. Consultado em 5
de julho de 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
347

FONTES HISTÓRICAS EM PERIÓDICOS


HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Lenda Negra. In: Diário Carioca, Rio de Janeiro, 6 de
abril de 1952a, p.3 e p.6 (Hemeroteca Digital).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História e Geopolítica. In: Diário Carioca. Rio de Janeiro.
13 de abril de 1952b, p.3 e p. 6. (Hemeroteca Digital).

CORTESÃO, Jaime. Aleixo Garcia - descobridor de Humanidades. In: Diário de Notícias.


Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 18 de maio de 1952a, p. 01. (Hemeroteca Digital).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativa de Mitologia. In: Diário Carioca. Rio de
Janeiro, 15 de junho de 1952c, p. 4 e p. 6 (Hemeroteca Digital).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Ilha Brasil - (Parte I): Diário Carioca. Rio de Janeiro,
22 de junho de 1952d, p.3 e p.6 (Hemeroteca Digital).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ilha Brasil - (Parte II): Diário Carioca. Rio de Janeiro, 29
de junho de 1952e, p. 3 e p. 6 (Hemeroteca Digital).

CORTESÃO, Jaime. Obedeceu a um plano a expansão do Brasil? In: Diário de Notícias.


Rio de Janeiro 1 de julho de 1952b. p. 01. (Hemeroteca Digital).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ilha Brasil - (Conclusão): Diário Carioca. Rio de Janeiro,
06 de julho de 1952f, p.3 ep.6 (Hemeroteca Digital).

CORTEÃO, Jaime. Introdução ao debate sobre a Ilha-Brasil. In: Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 13 de julho de 1952c, (Hemeroteca Digital).

CORTESÃO, Jaime. Portugueses e Espanhóis na América. In: Diário de Notícias. Rio de


Janeiro, 27 de julho de 1952d, p. 01. (Hemeroteca Digital).

CORTESÃO, Jaime. Obedeceu a um plano a expansão do Brasil? In: Acervo Histórico d'
O Estado de São Paulo, Estadão, São Paulo, 27 de julho de 1952e, p.7.

________________ . Introdução ao debate sobre a Ilha-Brasil. In: Acervo Histórico


d' O Estado de São Paulo, Estadão, São Paulo, 01 de agosto de 1952f, p.4

________________ . Portugueses e Espanhóis na América. In: Acervo Histórico d' O


Estado de São Paulo, Estadão, São Paulo, 06 de agosto de 1952g, p.2.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
348

TEMPO E CRISE: CONSIDERAÇÕES SOBRE ESCRITA DA


HISTÓRIA NA HISTORIOGRAFIA DA PRIMEIRA REPÚBLICA

Ledson Silva284
Orientador: Evandro dos Santos285
INTRODUÇÃO
No início do século XX, a desilusão com o progresso aconteceu de várias formas.
As principais expressões dessa ruptura aconteceram mediante as duas guerras
mundiais. O âmbito científico que levava o humano a pensar em sociedades pujantes,
de abundância econômica e prosperidade social, acabou mostrando o potencial de
destruição que dele poderia surgir. A razão não estava redimindo a humanidade. Talvez
a razão a matasse. Dessa forma, pretendemos entender como tal desencanto atinge a
escrita da história em suas formas mais variadas, ou mesmo se essa desilusão chega a
acontecer e aparecer.
Nosso recorte temporal abrange a Primeira República brasileira.
Especificamente indo de 1891 até 1924. Dentro deste momento abordamos excertos de
textos de alguns letrados, onde estão inseridos pensamentos pertencentes a um tipo
de orientação, ao qual tentamos problematizar. Para tal averiguação, retomamos nesta
introdução uma breve contextualização do período.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)286 foi criado a partir dos
meandros políticos do Império, em 1838. Havia a necessidade, no século XIX, de se criar
uma identidade nacional para a Pátria.287 O Instituto se encarregaria de trabalhar neste
ponto e trazer, mediante os sócios, trabalhos para sanar tal lacuna. No processo de
consolidação dos Estados-Nacionais, surge, portanto, a ideia de pensar a história

284 Graduando do curso de Licenciatura em História do Centro de Ensino Superior do Seridó da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN), em Caicó-RN. E-mail:
ledson.15@hotmail.com
285 Professor Adjunto de Teoria da História no Departamento de História do Centro de Ensino Superior

do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN). Doutor em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: evansantos.hist@gmail.com
286 Cuja Revista é nossa principal fonte. Os tomos podem ser acessados facilmente através do link:

< https://www.ihgb.org.br/ >


287 Termos como Nação , Pátria, e pátria, no século XIX, se confundiam com facilidade. Mas de acordo

com Istvan Jancsó e Pimenta, Nação e Pátria remetiam ao território agora recém-emancipado, do país
que tinha cortado os laços com a metrópole de Portugal em 1822. Enquanto pátria indicava a região de
nascimento, ou mesmo vilas e províncias. Cf: JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um
mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA,
Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Editora
SENAC, 2000, p. 129-175.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
349

nacional, consagrando projetos, ideias e demasiadas discussões sobre o tema.288 O


Império estabelecia pautas dos mais variados vetores: o lugar político, o destino da
nação, sua legitimidade, etc., e todas elas exigiam respostas de cunho histórico.289 Ter
uma história não só legitimava a determinada sociedade mas também diferenciava de
outras nações que se consolidavam aos poucos, tanto na Europa quanto nas Américas.
A elite intelectual se consolidava aos poucos. Seja através das escolas de Direito,
criadas apenas cinco anos após o corte de laços com Portugal, ou de outras instituições
de saber como os próprios Institutos e Museus, de qualquer forma, esses homens
precisavam se estabelecer em tais locais para garantir autonomia de uma “classe
ilustrada nacional”.290
Vieram à luz dentro da instituição propostas de pensar a história, como nos
moldes de Karl F. von Martius, Julio Wallenstein; ou mesmo obras clássicas. A título de
exemplo, a História Geral do Brasil (1854-1857), de Francisco Adolfo Varnhagen,
aparece como primeira resposta à demanda do IHGB. Os primeiros letrados que
forneceram os textos conhecidos cada vez mais por “textos fundadores” do IHGB, como
Januário Cunha Barbosa e o militar Raimundo José da Cunha Mattos, colocam ali
princípios da história que deve ser pensada pelo Instituto. Esses princípios tornaram-se
máximas para o letrado, para aquele que se debruçava na pesquisa histórica da nação
brasileira. Quase um culto, os sócios faziam questão de destacar a “crítica apurada”,
erudição, imparcialidade. Todos esses pontos reforçavam o objetivo de tirar as raízes
do Império no fundo do esquecimento.291
As categorias de tempo – passado, presente e futuro – marcavam presença
constantemente nos discursos. Sem dúvida, o jogo temporal demostrava a orientação
ótica destes letrados. E o passado revelava-se como grande âmbito de pesquisa. Nos
tempos antigos seria possível buscar respostas para entender melhor que país estava
se construindo. Não é à toa que a arqueologia e etnografia vão adentrar nas pesquisas
do Instituto.292

288 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos: caminhos da
historiografia, Rio de Janeiro, n. 1, 1988.
289 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional

brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & RothSchild, 2008, p. 187.


290 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil

(1870-19320). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 32


291 BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. In: RIHGB. Tomo 1, 1839, p. 4-10.
292 ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. Cit., p.153-154.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
350

Indiscutivelmente, encontramos nos cinquenta (50) primeiros anos da Revista


do Instituto características da historiografia moderna. A saber: tradição antiquária e
erudita, preocupações filosóficas e, por conseguinte, a forma narrativa. Os discursos de
Cunha Barbosa e Cunha Mattos são bons exemplos para isto.293 A escrita da história
oitocentista brasileira buscava então, com um ponto de vista extremamente
centralizador, produzir discursos-imagéticos onde o Brasil deixa claro os limites e seus
lados positivos. Críticas e elogios partem sobre a história brasileira. Surgem questões
como: “haveria aqui uma civilização anterior a nossa?” ou então “temos tudo para
sermos grandiosos?”, etc. Há de se destacar que na RIHGB os sócios pretendiam
decifrar o Brasil. O grande desafio do Instituto.
O arquivo parecia ser o lugar central para o historiador. O local onde se
guardavam os documentos era de fato único. Pois é através dos documentos que a
verdade poderia ser alcançada. Tal empreendimento tem como símbolo os eruditos
Leopold von Ranke e Georg Niebuh. Com essa trilha a traçar, disciplinas como filologia,
arqueologia, cartografia, epigrafia, entre outras atribuíram força a esta historiografia
pautada nos documentos. Portanto, assim se consolidava a escrita da história
brasileira, no Oitocentos. Mas como a historiografia se relacionava diretamente com a
sociedade? Com esta pergunta, de forma genérica, tentamos abordar alguns temas
relacionados.

“O PROGRESSO ESTÁ PRÓXIMO”


Sem dúvida alguma, as crises são constantes na história humana. As próprias
revoluções têm um caráter de prosperidade, se olharmos para as expectativas de forma
otimista – o que geralmente aconteceu na primeira metade do século XX -. No entanto,
como toda revolução, ela traz incialmente desordem, portanto crise. Seja a crise nos
seus mais variados graus, desde o socioeconômico ao ético. O que queremos realçar,
para não causar confusão, recai sobre a quebra de laços éticos, morais e políticos que
uma sociedade simplesmente ignora em momentos de conturbação.
Há um senso de orientação que passa pela escrita da história oitocentista,
principalmente como espécie de mantra dos letrados no IHGB, adentrando facilmente
no início do século XX, que é o ideal de progresso. A posteridade justificava o trabalho

293Cf. BARBOSA, Januário da Cunha. Op. Cit.; MATTOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação acerca do
sistema de escrever a história antiga e moderna do império do Brasil. In: RIHGB, 1863, p. 121-143.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
351

do historiador. Moreira de Azevedo, em 1887, resgata deveres do historiador junto com


o ideário progressista da sociedade:

Convém riscar da história nacional esses fatos mal averiguados,


inventados pela imaginação dos escritores com o fim de exaltar os seus
maiores, de engrandecerem com tradições não provadas os seus
antepassados. Na vida longa de um povo há para lhe dar glória e
renome fatos grandiosos, façanhas ilustres, atos de valor e virtude que
o historiador deve registrar e gravar nos anais da história que são
também os da posteridade.294

A geração de 1870, como ficou conhecida, resguarda muito desses elementos


historiográficos. As mudanças corriam pela historiografia. Um dos exemplos mais
citados é o surgimento do povo. Esse singular-coletivo que amarra cada vez mais os
trabalhos do IHGB. O povo é o receptor das mensagens. Ele é o grande interlocutor
desta narrativa. Além de ser o protagonista da história a ser produzida pelos
letrados.295 E assim segue até o final da República.
Partimos da premissa da orientação do tempo, tendo em vista que o
conhecimento histórico e a memória emanam um sentido, noção e orientação ao agir
humano. Em primeira visão, isto é similar às antigas teleologias filosóficas do século
XVIII e XIX. No entanto, desde Dilthey, Schleiermacher, entre outros, e na constituição
do próprio moderno conceito de história (geschichte), a história molda seu caráter de
forma não mais simples ou teleológica, mas hermenêutica, focada na compreensão e
nos sentidos que dela possam surgir.296
Sendo assim, o tempo para nós é de grande relevância. O futuro justifica o labor
intelectual do fazer histórico. O horizonte de expectativa se alarga deixando várias
possibilidades e ideários de um “mundo futuro”. Adotar essa perspectiva nos leva a
buscar compreender como essa ideia de progresso veio se solidificando. Para citar dois
exemplos, podemos ir mediante o âmbito da ciência e o dos eventos que se
concretizavam ao final do Império.

294AZEVEDO, Moreira. Amador Bueno – Memória. In: RIHGB. Tomo 50 - 3°folheto, 1887, p. 1.
295 TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista. História da
Historiografia, n° 2, março, 2009.
296 Para esta discussão, sugiro KOSELLECK, Reinhardt. Futuro passado: contribuição à semântica dos

tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 161-186; REIS, José Carlos. História
da "consciência histórica" ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur. - 2° reimp. - Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 257-277; RÜSEN, JÖRN. Pode-se melhorar o ontem? Sobre a
transformação do passado em história. In: Salomon, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó,
SC: Argos, 2011, p. 259-290

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
352

A ciência ganhou espaços incontornáveis no século XIX. Sobretudo com a


publicação de Origens das Espécies (1859) a utilização do termo Raça, a chegada das
teorias raciais, entre tantos outras discussões no meio intelectual, o âmbito cientifico
se destacava cada vez mais. No Brasil, o IHGB era um desses espaços junto com os
museus, as faculdades de Medicina e Direito. Lilia Moritz Schwarcz empenhou-se para
demonstrar como as ideias advindas do evolucionismo de Charles Darwin acabavam
sendo interpretadas de maneira incoerente.297 O rumo tomado pelas ciências fortaleceu
a ideia de progresso humano. O evolucionismo social, tão prestigiado em instituições,
ou disciplinas do naipe da frenologia, marcaram presença em variados setores de
estudo. Tais ramos de estudo atribuíram influência contínua e larga para muitos
homens consagrados na história do pensamento brasileiro. Vejamos um exemplo:
Euclides da Cunha segue uma máxima argumentativa muito comum de finais do século
XIX e início do século XX, que é tentar definir ou compreender um indivíduo, dentro de
seu meio social, através de sua aparência. Este tipo de pensamento veio através dos
pareceres de Cesare Lombroso, o famoso criminologista ao qual proporcionou a
perspectiva de averiguação em direção ao criminoso, por sua aparência, não no que ele
pensa ou no que ele faz.298
A abolição da escravidão certamente causou o último abalo no Império do Brasil.
O discurso republicano ganhava impulso desde as insurreições no século XVIII. As
concepções de história a partir da República precisavam ser revistas. Diretrizes de
homens como Cunha Barbosa, Cunha Mattos, Francisco Adolfo Varnhagen, Silva
Pontes, Karl Friedrich von Martius, deparavam com novos problemas além da
tradicional lacuna de uma História Geral. Ocorreu então um momento de confecção para
novas orientações dos sócios na substituição dos outrora historiadores monárquicos
constitucionais. Na virada do século XIX para o XX encontramos uma desorientação do
senso histórico no Brasil devido a rupturas políticas, econômicas (neste caso podemos
citar o Encilhamento), e sociais, como as várias revoltas que ocorreram na Primeira
República. Certamente, as críticas que os historiadores vão sofrer contribuem para tal

297 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-19320). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 42-81.
298 Para mais um exemplo, Nietzsche ao criticar Sócrates, em O Crepúsculo dos Ídolos, faz do mesmo

modo utilizando essa argumentação da aparência. Repudia a estrutura de pensamento religiosa socrática
criticando sua aparência: “Sócrates é um monstro na face e na alma”. Cf. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm.
Crepúsculo dos Ídolos, ou como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
353

desorientação de pesquisa. François Simiand traz à luz fortes questões para o nosso
ofício. Dizia ele, dentro do contexto europeu, mas podemos enxergar tais
apontamentos de forma universal, que o historiador possui ídolos (cronologia, política
e biografia), e sem dúvida alguma, foram colocadas de forma pertinente. Mas, talvez, o
principal motivo de confusão e desestabilidade no IHGB, fora a transição conturbada de
um regime monárquico para o republicano. O que dá margem para eventuais conflitos
dentro do instituto. Ao mesmo tempo quando a República ganha suas raízes nos planos
intelectuais, o federalismo impulsiona o discurso regionalista, sendo que este nascera
em meados do XIX a partir dos estudos provinciais. Questões relacionadas à revoltas e
movimentos (por que não “guerras civis”?) ganham novo enfoque, novas perspectivas.
Sendo tudo isso visto como uma “República que não foi”. Narrativas estas que possuem
determinado vigor até 1920.299
A biografia, por exemplo, procurou cientificar a História. Ao longo do século XIX,
aos poucos surgem os primeiros tijolos da pesquisa historiográfica: fundamentar-se
mediante fontes. Sem elas, o trabalho do historiador não prossegue. Abrindo
parênteses, de certo modo, são as fontes que impedem o total relativismo da
perspectiva histórica. Assunto sempre atual, o relativismo é uma chave-mestra que se
encaixa em todo lugar, todavia não garante a solução para lacunas que enxergamos na
disputa social e política do nosso dia a dia. Esse tipo de ferramenta é essencial para nos
relacionarmos com o outro, em sociedades que não estamos ainda inseridos. Mas, para
o trabalho histórico, o relativismo não sana muitas lacunas, principalmente no plano
ético. Voltando a questão, assim, o letrado com base nas biografias exercia a tarefa de
espalhar exemplos morais para a sociedade.300
De acordo com Sérgio da Mata, a normatização foi comum à historiografia antiga
e moderna. Servindo, assim, para construção de identidades, normatizações como a
criação de um passado comum a todos, ou de heróis que simbolizem o tempo
construído pelos historiadores.301 Para a escrita da história do IHGB, enquanto coligado

299 GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte – MG. Argumentum, 2009,
p. 27; COSTA, Bruno Balbino Aires da. “A CASA DA MEMÓRIA NORTE-RIO-GRANDENSE”: O Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a construção do lugar do Rio Grande do Norte na
memória nacional (1902-1927). Porto Alegre, Tese de Doutorado, 589 f., 2017, p. 14-16.
300 OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como problema

historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 51-68.


301 MATA, Sérgio da. Historiografia, normatividade, orientação: sobre o substrato moral do conhecimento

histórico. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender
com a história? o passado e o futuro de uma questão. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 59-77.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
354

radicalmente ao Império, os atores históricos vistos nas insurreições e outros


movimentos separatistas, podem ser visualmente apresentados como construtores de
rupturas, aquilo que Hannah Arendt chamou de gap302, de abalos na estabilidade da
sociedade, possibilitando visões temporais e estruturais diferentes de um mesmo
âmbito social. Com o fim do período monárquico, esses atores agora aparecem como
“heróis”, passados por profunda transformação, eles trazem agora as raízes do
movimento republicano em suas revoltas, é o caso de Tiradentes.
Nos momentos iniciais da Republica, o IHGB passou por vários problemas
estruturais, financeiros quase se dissolvendo, de acordo com o historiador Hugo
Hruby.303 O governo de Floriano Peixoto foi de certo modo caracterizado por longos e
árduos conflitos. Criticado por vários intelectuais, como Eduardo Prado, Rui Barbosa,
Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, o governo foi visto com desprezo por vários homens
ligados a boa parte da esfera letrada. Mas também foi defendido por outros. Um
exemplo muito destacado é Tristão Araripe:

A instituição republicana em nossa terra natal foi inquestionavelmente


assinado progresso, que nos deve conduzir ao auge da grandeza; e
beneméritos são portanto os brasileiros, que por atos importantes
concorreram para essa obra de melhoramento politico e de dignidade.
304

Mais uma vez, com base em Araripe, encontramos famosa ligação constante
entre a República e o progresso. Articulações como estas apontam para
questionamentos. Por exemplo: onde entra o povo no arcabouço narrativo aos quais
letrados do IHGB projetavam?305 De certa forma, práticas historiográficas foram
mantidas para costurar essa ligação. A história foi uma grande ferramenta para
estruturar as teleologias filosóficas. Complementando isto, a veracidade da vida dos
biografados, a verossimilhança com que se relatava a vida dos “ilustres homens da

302 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2014, p. 22.
303 HRUBY, Hugo. O século XIX e a escrita da história do Brasil: diálogos na obra de Tristão de Alencar

Araripe (1867-1895). Tese de Doutorado. Porto Alegre, 371 f. 2012, p. 247.


304 ARARIPE, Tristão de A. Três cidadãos beneméritos na Republica. In: RIHGB, tomo 60, parte 1, 1897, p.

358.
305 De acordo com Rodrigo Turin, tendo o indianismo ou o nativismo não obtendo sucesso como fórmula

simbólica do passado nacional, a historiografia voltou-se para o singular-coletivo povo. Este agora
tornar-se-ia nova referência para a produção histórica. Cf. TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil
empresa: o ethos do historiador oitocentista. História da Historiografia, n° 2, março, 2009.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
355

República”, toda eloquência típica do século XIX, fundiam-se elementarmente na


formação da história científica. Buscando-se tal caráter cientifico, pois desde as raízes
da Ilustração a ciência é vista como sinônimo do progresso, debates arrolam dentro dos
institutos e outros espaços de sociabilidade intelectual. Mais um elemento abraçado
pelos letrados é o distanciamento das fábulas, algo que já era debatido com fervor na
filosofia da história voltairiana.306 E que se fazia presente tanto em discursos de
biografias, leituras de memórias ou mesmo os textos comemorativos do Instituto.
Articulando com este ponto das biografias, destaca-se quase imediatamente a
importância da memória nesta discussão. Fixando a vida dos biografados, como lição
de moral, oculta-se um elemento memorial, que é uma relação de herança e dívida para
com o passado. Sergio da Mata aponta o substrato moral que as narrativas trazem. O
fator moral articula-se com determinado contexto e estrutura da narrativa; ganha
novos contornos dependendo de onde e para quem se fala, para não parecer mais do
que uma conversão dos leitores a devotos de um determinado culto. 307 A moral
apresenta-se como ato, escolhas de alguém no passado que pode fazer total diferença
como exemplo no presente e futuro. Traz aqui um conceito antigo, historia magistra
vitae, que perpassa o início da historiografia moderna. Esse topos ciceroniano, faz uma
trilha pelas pontes temporais – passado, presente e futuro – sendo, assim, abordadas
experiências antigas onde possam influenciar o povo, a população, principal referência
dos letrados em seu trabalho, pelo menos no plano ideal.308
Vislumbrando o problema da temporalidade, apresenta-se de forma intensa nos
“textos fundadores” como de Cunha Barbosa, Cunha Mattos, ou mesmo, já na
República, de Araripe Junior, Pedro Lessa, para situar em nosso recorte temporal, a
questão da conservação de fatos. Ora, esse é um jogo mastigado pela consolidação da
história enquanto disciplina no IHGB. Portanto, este trabalho configura-se a partir de
uma eminente operação historiográfica309 tipicamente moderna. Tal atividade formula
uma averiguação do passado, passando pelo leque de problemas e questões do
presente, isto é, da avaliação momentânea, e consagra as histórias engendradas em
direção ao futuro. Assim, apresentava-se boa parte da produção historiográfica do

306 OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. Cit., p. 86.


307 MATA, Sérgio da. Op. Cit., p. 59-65.
308 TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista. História da

Historiografia, n° 2, março, 2009.


309 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 45-108.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
356

IHGB. Inúmeros problemas surgem mediante tal cenário. Para citar apenas dois
exemplos, vejamos o naipe de debates que surgem na própria instituição e como se
apresenta a crise da sociedade em suas páginas.
De forma clara, um debate surge através de falas um pouco distantes, mas com
foco no mesmo objeto, precisamente. Exemplo para isto: Araripe e Pedro Lessa, dois
grandes nomes no IHGB, na Primeira República, trazem a discussão da história em
relação aos heróis e a sociedade. Afinal de contas, quem vem primeiro? Como podemos
tratar o progresso, a ordem e a dita civilização sem entender o passo a passo da
caminhada do país? Araripe traz uma argumentação corriqueira e firme da virada do
século, fundamentada por Thomas Carlyle (1785 – 1881), escocês, que tinha em sua
concepção e filosofia da história, o indivíduo, o herói, como peça central no caminhar e
desenvolvimento da sociedade. A história universal seria remontada através das
biografias.310 Por outro lado, Pedro Lessa, em seu texto Reflexões sobre o conceito da
história, vai de contramão a este ponto, colocando, antes de tudo, o meio social
precedendo o herói, o individual. A máxima do povo estava fortalecida na argumentação
de Lessa.311
Dessa forma, percebe-se o quanto o IHGB focou na discussão da cientificidade
da história. Todavia, uma margem enorme de assuntos ficavam isolados,
principalmente no que diz respeito à atualidade da sociedade brasileira.
A operação historiográfica onde o tempo é uma das principais referências, tal
trabalho de certa maneira encaminha a escrita da história a encontrar um momento
futuro para encaixar a ordem e a civilização, tanto prometida e visada pela ótica do
progresso. E é exatamente isso que tentamos problematizar neste artigo. Pois ao
mesmo tempo em que a ordem é jogada ao futuro mediante o presente, o IHGB se
esforça para concretizar as bases para que este futuro aconteça, certamente na
perspectiva temporal, o futuro justifica o trabalho dos historiadores. Ora, de maneira
complicada, podemos entender que essa civilização estável só chega ao futuro porque
a República passava em um momento conturbado em seu âmbito político-social,
exatamente no interior da nação. Em razão que são perceptíveis uma série de casos, que
podemos chama-los de rupturas, entre esse discurso do progresso e o que de fato

310 ANDRADE, Débora El-Jaick. Escrita da história e política no século XIX: Thomas Carlyle e o culto aos
heróis. História e Perspectivas, Uberlândia (35): Jul.Dez.2006, p. 211-246.
311 LESSA, P. A. Reflexões sobre o conceito da História. RIHGB, t. 69, parte 2, 1908, p. 263.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
357

acontecia no momento da construção desta narrativa. Portanto, olhando mais afundo


neste contexto da Primeira República, entendemos que uma maré de conflitos
atravessa a própria sociedade e o Estado brasileiro.
O IHGB deu rápida atenção à campanha de Canudos (1896-1897). A questão da
imparcialidade mantinha-se presente. Portanto, trabalhar em cima de acontecimentos
recentes era, de certa forma, temerário, pois críticas e juízos surgem de maneira
repentina. Sobre este tema, Dr. Aristides A. Milton elaborou sua memória a respeito do
conflito.312 Logo no primeiro parágrafo temos:

Quando o país, depois de ver julgada a revolta de 6 de setembro, se


repulava livre do pesadelo, que por longos meses o oprimira, e,
restabelecidas afinal a tranquilidade e a ordem, cria – que a Republica
estava definitivamente consolidada, graves e originais acontecimentos,
ocorridos no Estado da Bahia, vieram sobressaltar o espírito público,
abrindo na história do Brasil um novo sulco de lágrimas e sangue.313

O excerto de Milton indica o tom narrativo construído dentro daquele âmbito


intelectual. De caráter conservador, visando uma ordem, perspectiva esta que durante
muito tempo foi ovacionada nos discursos de comemoração, nas sessões trimensais
dos sócios, mas as marcas que essas Revoltas e movimentos deixavam eram
demasiado impactante para um país que se pretendia “civilizado”. Como proceder?
Revolta Armada (a qual Aristides Milton faz menção), Guerra de Canudos, Revolta da
Vacina, Guerra do Contestado, onde o próprio Estado bombardeou gente brasileira,
entre tantos outros casos de desestabilidade não atingem a escrita do IHGB de forma
densa. Tudo isso leva a refletir se esse progresso realmente estava justificando a crise
na sociedade.
Reiterando a problematização, especificamente sobre o caso de Canudos, na
Revista, ela aparece como ato revolucionário.314 Muito pior, o acontecimento em
questão recebeu apoio, pois a linha de pensamento euclidiana era típica do momento,
onde a civilização deveria adentrar nos sertões (bárbaros). Isso complementava de
alguma maneira o raciocínio do processo civilizador e da ordem.

312 Cf. MILTON, Aristides A. A campanha de Canudos. Memória lida no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. In: RIHGB, tomo 63, parte 2, Rio de Janeiro, 1902.
313 MILTON, Aristides A. A campanha de Canudos. Memória lida no Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro. In: RIHGB, tomo 63, parte 2, Rio de Janeiro, 1902, p. 5.


314 Idem, p. 5-6.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
358

Há de lembrar que, assim como a memória, a escrita da história se posicionava


de forma seletiva. Tudo que era apresentado passava por uma comissão, no Instituto.
Aprovado ou negado. Tentando ser o mais imparcial, a escrita da história aparentava
outra coisa totalmente diferente. Falas significativas como a do vice-presidente
Conselheiro Manoel Francisco Correia tem muito a dizer:

As associações que se empenham nos estudos históricos não têm laço


de união nem à religião, nem à política, nem à carreira que cada um dos
membros abraça; mas à comunhão de esforços para alcançar do
melhor modo a meta cobiçada.315

Mas o fato é que a seletividade ocorre. E como toda escolha, uma série de
personagens, acontecimentos e eventos são descartadas.316 O IHGB preferiu focar na
questão da ordem e estabilidade, ou mesmo no caráter científico da história. A crise
política relacionada ao thelos de uma sociedade estável pode ser averiguada um século
antes, de acordo com Koselleck, já no século XVIII. O autor alemão deixa bem claro:

A crise se agravava na mesma medida em que a filosofia da história a


obscurecia. A crise não era concebida politicamente, mas, ao contrario,
permanecia oculta pelas imagens histórico-filosóficas do futuro, diante
das quais os eventos cotidianos esmoreciam. Assim, a crise
encaminhou-se, ainda mais desimpedidamente, em direção a uma
decisão inesperada.317

Para Reinhart Koselleck, a teleologia turva a visão de quem está no presente.


Neste nítido jogo temporal, apropriar-se dessa perspectiva enquanto a sociedade arde
em disputas pelo poder é ignorar o pluralismo de ideias. A modernidade para Koselleck,
metonimizada em liberalismo, marxismo, nazismo, entre tantos outros “ismos” deixou
de lado problemas do presente para focar no futuro, na prosperidade. Ao mesmo passo
que esta seleção temporal culminou no mesmo período de guerras e extrema violência.
As filosofias da história, assim abordada no caso do IHGB neste trabalho, ocultaram
verdadeiras cenas de massacres da história brasileira. Revelada em pequenas frases,
como no trecho de Aristides Milton, o lado da ciência e da Civilização redimiram o

315 Discurso proferido na sessão aniversaria de 15 de dezembro de 1897 pelo vice-presidente. In RIHGB,
tomo 55, parte 2, Rio de Janeiro, 1897, p. 417.
316 TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro: Silvio Romero e a experiência historiográfica

oitocentista. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre, 2005, p. 23.


317 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição a patogênese do mundo burguês. Rio de

Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 13.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
359

cenário de ódio e caos na Primeira República. Em razão que essas utopias eximiam a
responsabilidade, isentando os atores históricos pelos acontecimentos.
Certamente, o horizonte que abrimos aqui dá margem para mais uma pequena
reflexão. Se a violência exacerbada na Primeira República, ou mesmo em boa parte da
história brasileira, é vista com certa naturalidade, ao ponto de não falarmos em “guerra
civil”, por exemplo, isto é, apaziguar, até mesmo, através dos conceitos o caráter de ódio
e violência em nossa história, quer dizer que nossa relação com este tipo de
acontecimento passou por um processo de simplificação e suavização. O centro de tudo
está na crítica que Hannah Arendt faz sobre a política e o pensamento ético. Se nosso
entendimento sobre estas dimensões no contexto de disputas refere-se apenas a
“coação” e “ser-coagido”, ou mesmo de “vitorioso” e “derrotado”, isto pode implicar
numa simplicidade que Arendt enxerga como grande perigo na sociedade. É possível
realizar uma aproximação entre Koselleck e Arendt no que diz respeito a tentar
entender a modernidade e o complexo de violência inscrito dentro dela. 318
De todo modo, o que há de se destacar então é o desencontro entre toda
violência estrutural e sistemática da sociedade brasileira com a escrita da história, com
a produção textual do IHGB, na Primeira República, especificamente entre 1891-1924.
Isto pode ser um sintoma das raízes do ofício do historiador. Pelo menos é um retrato
de como esses letrados levantaram a historiografia brasileira. Este cenário desenhado
leva-nos para mais questões: tornou-se tradição do historiador brasileiro não focar nos
extremos da violência cotidiana da sociedade? Em um plano minimamente ético, como
devemos reagir a momentos de crise política, social, etc.? São perguntas para nos guiar
em outro momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O progresso, tão visado na modernidade, ocultava uma série problemas
arraigado na sociedade. A crise se confundia com os problemas temporais, embrolhos
estes desenvolvidos por rupturas no modo de ver a sociedade. A política é uma esfera

318MAGALHÃES, Teresa Calvet. Ação, Linguagem e Poder: uma releitura do Capítulo V [Action] da obra
The Human Condition. In: CORREIA, Adriano (org.). Hannah Arendt e a condição humana. Salvador-Bahia,
Quarteto Editora, 2006, pp. 35-74; DIAS DUARTE, João de Azevedo e. Tempo e crise na teoria da
modernidade de Reinhart Koselleck. História da historiografia. Ouro Preto, número 8, abril, 2012, p. 70-
90.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
360

significativa para entendermos o caminho turvo da escrita da história na Primeira


República.
Questões se entrelaçavam dificultando a comunicação. Foi o caso da
cientificidade da própria História que desviava os historiadores de outros assuntos. Mas
foi a mesma cientificidade que apaziguou os resultados do ideal progressista e
civilizador que adentrava sertões. Todo este conjunto de pensamentos levou os
letrados a outros assuntos, temas relacionados a história, que como vimos, sofria
críticas intensas, principalmente pela sociologia, no recorte em questão.
Assim, o desencontro entre a escrita da história e o conturbado contexto da
Primeira República expressa o uso arbitrário da história de acordo com autores como
Reinhart Koselleck. De toda forma, pensar nesses desencontros é importante para
rever a posição do pensamento ético do(a) historiador(a).

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Débora El-Jaick. Escrita da história e política no século XIX: Thomas
Carlyle e o culto aos heróis. História e Perspectivas, Uberlândia (35):, Jul.Dez.2006., p.
211-246.

ARARIPE, Tristão de A. Três cidadãos beneméritos na Republica. In: RIHGB. Tomo 60,
parte 1, Rio de Janeiro, 1897, p. 385-396.

_____. Indicações sobre a História Nacional. In: RIHGB. Tomo 57-2, Rio de Janeiro,
1894, p. 259-290

ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na


formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & RothSchild, 2008.

AZEVEDO, Moreira. Amador Bueno – Memória. In: RIHGB. Tomo 50 - 3°folheto, Rio de
Janeiro, 1887.

BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. In: RIHGB. Tomo 1, Rio de Janeiro, 1839.

BREVE NOTICIA sobre a creação sobre a criação do Instituto Historico e Geographico


Brazileiro. In: RIHGB. Tomo 1, Rio de Janeiro,1839.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3° Ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2011.

CEZAR, Temístocles. Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB.


A historiografia brasileira entre os antigos e os modernos. In: GONTIJO, Rebeca (et.
all.). Estudos de historiografia brasileira. Editora - FGV-. 2011, p. 94-114.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
361

COSTA, Bruno Balbino Aires da. “A casa da mem´ria norte-rio-grandense”: O Instituto


Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a construção do lugar do Rio Grande
do Norte na memória nacional (1902-1927). Porto Alegre, Tese de Doutorado, 589 f.,
2017.

DIAS DUARTE, João de Azevedo e. Tempo e crise na teoria da modernidade de


Reinhart Koselleck. História da historiografia. Ouro Preto, número 8, abril, 2012, p. 70-
90.

GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte – MG.


Argumentum, 2009.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Entre o amadorismo e profissionalismo: as


tensões da prática histórica no século XIX. Topoi. Rio de Janeiro, dezembro 2002, p.
184-200.

_____. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro


e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p.
5-25.

HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2013.

_____. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos


para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos
Guilherme (org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo:
Editora SENAC, 2000.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição a patogênese do mundo


burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.

_____. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos; Rio de


Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio, 2006.

MAGALHÃES, Teresa Calvet. Ação, Linguagem e Poder: uma releitura do Capítulo V


[Action] da obra The Human Condition. In: CORREIA, Adriano (org.). Hannah Arendt e a
condição humana. Salvador-Bahia, Quarteto Editora, 2006, pp. 35-74;

MATA, Sérgio da. Historiografia, normatividade, orientação: sobre o substrato moral


do conhecimento histórico. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda;
ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? o passado e o futuro de
uma questão. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 59-77.

MILTON, Aristides A. A campanha de Canudos. Memória lida no Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro. In: RIHGB, tomo 63, parte 2, Rio de Janeiro, 1902.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
362

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em


história. In: Salomon, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó, SC: Argos,
2011.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão


racial no Brasil (1870-19320). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como
problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro: Silvio Romero e a experiência


historiográfica oitocentista. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre, 2005.

_____. Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista. História
da Historiografia, n° 2, março, 2009.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
363

IMPLANTAÇÃO DO ÔNIBUS E A OCUPAÇÃO URBANA:


RELAÇÃO ENTRE ITINERÁRIOS E USO DO SOLO (1950-1960)
Diego Barreto Azevedo319

INTRODUÇÃO
A implantação de um novo modelo ou sistema de transporte em uma cidade, seja
na atualidade ou no passado, tem impacto nas formas e usos do solo (MEDEIROS, 2011.
VILLAÇA, 1998), bem como em sua valorização ou desvalorização (DUARTE; ESTRADA,
2005). Isso se dá, pois, segundo Flávio Villaça, o espaço urbano

É produzido pelo trabalho social despendido na produção de algo


socialmente útil. Logo, este trabalho produz um valor. [...] Há dois
valores a se considerar. O primeiro é o dos produtos em si – os edifícios,
as ruas, as praças, as infra-estruturas. O outro é o valor produzido pela
aglomeração. Esse valor é dado pela localização dos edifícios, ruas e
praças, pois é essa localização que os insere na aglomeração. Tal como
qualquer valor, o da localização também é dado pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para produzi-la, ou seja, para produzir a cidade
inteira da qual a localização é parte. (VILLAÇA, 2011, p. 72)

A cidade de Natal vivenciou de fins do século XIX ao início do século XX a


implantação, o desenvolvimento e o sucateamento, até seu completo desuso, do
sistema de transporte por bonde. Tal processo poderia, a partir de uma análise técnica,
apenas revelar conexões de uma rede técnica e áreas de mobilidade. No entanto, de
acordo com a perspectiva teórica e analítica que se adota aqui, a implantação de um
sistema de transporte é fator de influência das formas de uso e do valor do solo, o que
nos revela que o sistema de transporte, não à toa, é também elemento de disputa social
e de poder pela decisão dos caminhos que este seguirá.
Neste sentido, Gabriel Medeiros ao se propor analisar as relações entre
sociedade, Estado, redes técnicas320 e agentes privados, afirma que

Tomando em conta o fato de que as divisões culturais e sociais não são


voluntárias, percebe-se que a situação da divisão social do espaço é
imposta pelas classes dominantes pelo uso da força – implícita ou

319 Graduado e licenciado em História pela UFRN. Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo
PPGAU/UFRN.
320 Redes técnicas são compreendidas pelo autor citado como “[...] aquelas que dão suporte ao fluxo de

matérias e de informações e consistem em redes de transporte e de comunicação.” (MEDEIROS, 2011, p.


24)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
364

explicitamente, que na sociedade moderna é controlada pelo Estado.


(MEDEIROS, 2011, p. 30)

Este mesmo pesquisador conclui, em sua análise sobre as linhas férreas, que as
redes, estações e caminhos produzidos, não só deram novos usos, funções e valores
para o espaço intra-urbano321, como foram fruto de disputa da atuação de agentes
privados e trouxeram como consequência a segmentação do espaço da cidade.
No século XX, com a implementação dos ônibus como transporte coletivo na
cidade, – De início, segundo os estudos e documentações até então analisadas,
implantação feita sem interferência ou regulação do Estado, mas que não demoram a
começar a surgir – as relações entre sociedade e espaço também aparentam seguir
este mesmo processo, visto que, com o desgaste e posteriormente com o fim do
sistema de bondes, os ônibus irão ter um papel importante de permitir os fluxos em
uma cidade que não mais se organiza em curtas distâncias.
Neste sentido, este trabalho tem por objetivo analisar a implantação dos ônibus
na cidade de Natal a partir de revisão bibliográfica e análise documental para que seja
possível desenvolver uma análise sobre a relação entre a expansão das linhas de
ônibus em Natal e a valorização da terra. Para este fim, o trabalho se dividirá em dois
tópicos. No primeiro, analisando e revisando a implantação e o desenvolvimento do
ônibus e de seus itinerários na cidade de Natal para o período de 1950 a 1960, e o
segundo conectando estes itinerários com o processo de loteamento e valorização do
solo na cidade de Natal para o mesmo período. O período de análise se justifica por se
tratar de um momento em que o sistema de transporte estava regulamentado pelo
Estado, o que permite considerar e analisar as disputas pelo poder de decidir os
caminhos das vias e das conexões. Para esta análise, por fim, se fez uso das
documentações legislativas e jornalísticas disponíveis no Arquivo público municipal, no
arquivo público Estadual, no Arquivo da Câmara Municipal de Natal e na hemeroteca da
biblioteca nacional.

321Considera-se por espaço intra-urbano a configuração do espaço da cidade que tem influências em
escalas para além dela, mas também reside neste espaço uma lógica própria de produção e
desenvolvimento e disputas sociais.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
365

A REDE DE TRANSPORTES NO BRASIL E EM NATAL EM MEADOS DO SÉCULO -


REVISÕES E DELIMITAÇÕES
Primeiramente, mesmo não sendo foco deste trabalho, é importante mencionar
os contextos de desenvolvimento rodoviário nacional não somente para que
comparações possam ser feitas, mas também por existir, como explicitado por diversos
pesquisadores e enfatizado por Villaça, uma influência das vias regionais no
crescimento da cidade e, portanto, o contexto de desenvolvimento viário nacional seria
capaz de afetar até mesmo a escala intra-urbana.

As vias regionais de transportes constituem o mais poderoso elemento


na atração da expansão urbana; note-se que até aqui não se falou em
localização de indústrias, pois a expansão urbana não está
necessariamente correlacionada com a localização de indústrias.
(VILLAÇA, P. 85)

Na escala nacional, e por esta expressão, entendem-se as escalas e redes


nacionais, regionais e interurbanas, o desenvolvimento de um sistema viário se deu
após a segunda guerra mundial e, sobretudo, durante o Governo Vargas. Antes deste
período, eram várias as reclamações e problemas de conexões entre cidades. “O
sistema rodoviário ainda engatinhava. Por sua vez o sistema ferroviário,
completamente insatisfatório, era objeto de lástima constante”. (NETO, 2001, p. 251). É
apenas em meados da década de 50 do século XX que há uma intensificação do
desenvolvimento das linhas e conexões viárias no Brasil. Este fato se dá pela
implantação da indústria automobilística e pela criação de Brasília que fará parte de um
processo de integração nacional. (idém, 2001, p. 259).
Sobre a implantação e disputas em torno do transporte em si, Recife, que segue
o processo nacional, desenvolve linhas de bonde até meados do século XX, mas que
passam a ser substituídos “[...] por um enxame de pequenos operadores autônomos:
em 1953, já eram 128 proprietários, operando, 501 veículos, dos quais a metade possuía
apenas um”. (NETO, 291. apud, Brasileiro e Santos, 1999)

Caminhos dos transportes: o caso de Natal e comparações


O caso de Natal não diverge nas experiências citadas acima. Sabe-se, como já
citado, que houve a implantação dos bondes em fins do século XIX até seu
encerramento em meados do século XX. Sabe-se também, segundo levantamentos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
366

documentais, que por volta de 1930 já haviam ônibus intra-urbanos circulando na


cidade seguindo as mesmas ou linhas próximas às dos bondes. Estas linhas, até a
década de 1950, mas principalmente na década anterior, eram de pequenos
proprietários que tinham uma pequena frota ou mesmo eram motoristas de seus
próprios ônibus, como bem expôs a pesquisadora Jucilene Sousa Silva:

O sistema de transportes coletivos por ônibus foi sendo implementado


aos poucos, paralelo à decadência dos bondes, e a medida em que
pessoas físicas, proprietários de um ou dois veículos desenvolviam o
transporte de pessoas na cidade e realizavam o fretamento para
viagens mais longas. (SILVA, 2002, P. 45-46).

Fala-se de uma implementação gradativa, mas é preciso destacar, no entanto,


que este tema como pesquisa histórica, até então, foi pouco analisado para a cidade de
Natal, principalmente para os períodos anteriores a 1960, mas mesmo para os anos
posteriores, foram poucos os trabalhos encontrados.
Neste sentido, este trabalho apresenta outras questões que são auxiliares para
que se compreenda o contexto e que análises mais profundas possam ser feitas, no
entanto, adianta-se aqui que algumas questões se mantêm em aberto. Sabe-se que no
contexto nacional houve regulamentações das empresas de ônibus em diferentes
períodos e em diferentes níveis e formas de organização.
Em Curitiba, por exemplo, já haviam licitações para ônibus em meados da década
de 1940. Em Porto Alegre, na mesma década houve a regulamentação de empresas de
proprietários que já atuavam anteriormente de forma artesanal. (NETO, 2002, p 293-
292)
Recife, por sua vez, teve uma experiência diferenciada, pois não apenas
regulamentou o transporte, mas abriu uma concessão para uma única empresa com
um prazo de 10 anos a partir de 1947. Após sete anos, no entanto, a empresa teria sido
dissolvida e a prefeitura voltaria a regulamentar os pequenos proprietários. (Idem,
ibidem, p. 291)
Em Fortaleza, em 1930 já havia diversas empresas disputando as linhas de
ônibus atuando na cidade, e já em 1940 havia regulamentações e regulações, como
expõe Patrícia Menezes,

O proprietário dos carros, José Setúbal Pessoa, começara a trabalhar


no transporte público em 1936, fazendo a linha de Otávio Bonfim. Com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
367

poucos ônibus, conseguiu ultrapassar as dificuldades da Segunda


Guerra Mundial e parece ter recebido um impulso no final dos anos
1940, quando a firma foi regularizada e registrada na Junta Comercial
do Ceará (MENEZES, 2013, p. 141)

A partir destas considerações sobre o processo de implementação do ônibus em


diversas capitais do país, levanta-se a questão: Afinal, como e por quais agentes sociais,
foi organizada esta implantação em Natal? Quais as generalidades e particularidades
da experiência local? Algumas respostas podem ser apresentadas com base na revisão
bibliográfica e análise documental.
Na cidade de Natal, o processo que até então pôde ser estudado, tem suas
generalidades, mas também suas particularidades. Em “História da cidade do Natal”,
Luís Câmara Cascudo, aborda pouco sobre o ônibus, mas ainda relata o seguinte:

Em Natal os ônibus foram autorizados a trafegar pelo Decreto nº 415,


de 24 de janeiro de 1929. Eram dois carros de L. Bezerra de Andrade e
Francisco Azevedo Maia. O auto maior, com carroceria ampla,
balouçante e rangedeira, ficou conhecido por “Maria Cancela”.
(CASCUDO, 1999, p. 311).

Tal afirmativa foi corroborada pelos trabalhos posteriores já expostos, mas


mais que isso, Cascudo apresenta uma implantação regulamentada por decreto já em
1929. Esta afirmação é aqui apresentada como indício de uma regulamentação do
transporte desde seus momentos iniciais, o que leva a crer que agentes estatais, ao que
tudo indica, teriam autoridade para definir quem teria permissão para circular. No
entanto, ainda não se sabe se neste momento, se os órgãos de fiscalização e
regulamentação estatais estariam definindo por onde circular.
Sabe-se que duas décadas depois, já em 1950, de acordo com a
documentação analisada, é certo que havia um conjunto de agentes públicos definindo
por onde o ônibus poderia circular e, inclusive, alterando, expandindo e dividindo
itinerários de ônibus. Dentre estes agentes, pode-se citar os vereadores da câmara
municipal que tiveram entre suas pautas de votação desde o preço até as linhas, suas
divisões e alterações.
Também é possível citar a atuação de inspetores de trânsito, seja para mudança
de pontos de ônibus, ou para efetivamente alterar suas linhas e itinerários.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
368

Esta inspetoria avisa que de seu entendimento com a Prefeitura da


Capital, no intuito de atender insistentes apelos de considerável parcela
da população do Tirol e tendo em vista melhor servir à coletividade,
ficou assegurada, a partir do dia 3 do corrente mês, até ulterior
deliberação, a seguinte alteração no itinerário dos onibus da linha
Circular. 322

No entanto, tais agentes públicos, por mais que delimitassem por vias de leis e
decretos, os caminhos dos itinerários, é possível constatar que não controlavam por
completo a prática destes serviços, visto que havia denúncias sobre a atuação irregular
de empresários, seguindo por percursos que fossem mais vantajosos

há certas linhas que constituem verdadeiros monopólios de


proprietários de transportes, como o da av. Quatro e o da Jaguarary, no
Alecrim. Mandam e desmandam, com enorme prejuízo para os
passageiros. [...] E o mais grave, é que não consentem (não se sabe
como) que outras empresas de coletivos coloquem os seus veículos nas
linhas em que impera o monopólio. 323

Este documento, datado de 1958, nos permite inferir não só que havia disputa
pelo poder de definir os caminhos de conexão na cidade, mas também que os ônibus
estariam passando gradativamente por um processo de concentração de propriedade.
Além desses casos de pequenas alterações, havia linhas circulando para além dos
itinerários até então encontrados entre decretos e anúncios de jornais, como neste
exemplo, de 1959:
A Empresa Auto Transporte Ltda inaugurou hoje, às 9 horas uma linha
de ônibus desta feita ligando Natal à Praia de Ponta Negra, o que sem
dúvida constituirá velho anseio dos natalenses [...]324

CAMINHOS DE VIAS E LOTEAMENTOS – O CONTEXTO DO PÓS-GUERRA E AS


DISPUTAS PELA CIDADE
Natal vivenciou um contexto de expansão particular devido aos acontecimentos
da Segunda Guerra Mundial. A intervenção norte-americana na cidade de Natal e em
Parnamirim demandava uma nova estrutura para algumas vias da cidade e,
consequentemente, novos focos de investimento. Este período também foi de intenso

322 NOTA. Inspetoria Estadual de transito em natal. O Poti, Natal, 3 de abril de 1957. Hemeroteca digital.
Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em 16 de julho de 2018
323 AZEVEDO, Benivaldo. Flash da manhã: Coletivos. O Poti. 14 de outubro de 1958. Hemeroteca digital.

Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em 16 de julho de 2018.


324 O Poti. 30 e 31 de agosto de 1959. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso

em 16 de julho de 2018

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
369

crescimento populacional. Segundo Giovana Paiva de Oliveira, as elites governantes


haviam anunciado o desenvolvimento, mas o que ocorria era a desordem do trânsito da
cidade e aumento considerável de acidentes nas novas vias para Parnamirim.
(OLIVEIRA, 2001, p. 203)
É nesse contexto de novas vias e conexões que, segundo a pesquisadora Iapony
Rodrigues Galvão, ao analisar o desenvolvimento dos sistemas de movimento viário na
cidade, afirma que é na década de 50 do século passado que haverá uma mudança nos
caminhos de crescimento da cidade.

É a partir deste período que o capital imobiliário, aproveitando os


direcionamentos lançados pelo plano urbanístico de 1929, começa a
ocupar áreas cada vez mais distantes da região central da cidade,
transformando as propriedades rurais existentes nestes limites da
antiga cidade, em loteamentos habitacionais. (GALVÃO, 2011, p. 78).

A professora Angela Lúcia de Araújo Ferreira em suas pesquisas sobre a


produção do espaço urbano fornece uma análise mais precisa ao afirmar que

Em 1946 empiezan a ser registrados em los cartórios las primeiras


parcelaciones privadas de Natal y se intensifica en las décadas de 50 y
60. Em este período de (1946 a 1969) se registraron el 87,8% del total
de las 22 parcelaciones realizadas em el município de Natal e inscritas
em el Registro de Inmuebles, ocupando uma superfície de 3.952,4 há (el
71,3% de la extensíon parcelada hasta 1989) y alrededor de 35% de la
área actual edificable. (FERREIRA, 1996, p. 142)

É no contexto do pós-guerra, aumento populacional, expansão fundiária e


especulação imobiliária crescente, que os itinerários de ônibus serão alvos da imprensa
(sobretudo da questão tarifária) e de discussões na Câmara de Vereadores. A cidade
cresce e o transporte se mostra ineficiente, sobretudo com o fim definitivo das linhas
de bonde na década de 1950 e um favorecimento do transporte automobilístico para
uma reduzida parcela da população. É nesse contexto que surgirão demandas por
maiores conexões entre os bairros, como expõe em um dos Editoriais, publicado no Poti
em 5 de janeiro de 1957

A cidade cresce e os centros residências se afastam formando-se novos


bairros, surgindo aqui e acolá as populosas vilas. E para atender as
necessidades diárias de seus habitantes, nada se impõe mais do que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
370

meios de transportes rápidos e seguros e, quando possível, a preços


populares. 325

Neste contexto, portanto, a cidade cresce e demanda novas conexões e opções


de deslocamento. Cabe questionar se estas conexões pelas demandas sociais diversas
foram feitas ou se o processo deu continuidade às relações já estabelecidas entre
loteamentos, infraestrutura e deslocamento, como bem expôs Gabriel Medeiros ao
demonstrar que a expansão urbana estava desde décadas anteriores atreladas
primeiramente ao bonde e posteriormente ao “[...] traçado de novas artérias ou ao
investimento aplicado nelas [...]” (MEDEIROS, 2017, p. 195), que por sua vez estariam
ligadas aos aforamentos e loteamentos concentrados em poucos proprietários.. O que
se sabe é que durante a década de 1950, a relação entre itinerários de ônibus e o valor
da terra pode ser percebida como uma relação de valoração do espaço, visto que é
possível encontrar anúncios de jornais que destacam tal elemento em seus anúncios,
como por exemplo, “Aluga-se casa recém-construída ainda não habitada no terminal da
linha petropolis (Em frente a parada de onibus)”326, ou Alugam-se 20 casas, modernas,
saneadas, recem-construídas, e ainda não habitadas, à Av. Rodrigues Alves, próximas à
praça Augusto Leite - Tirol. Onibus à porta [...]327. Se há a transformação da terra em
mercadoria, e dentre os elementos em destaque para a valorização do anúncio, está a
proximidade com os ônibus, considera-se que estes itinerários (e seus pontos de
ônibus) se tornam elementos para a valorização do solo. Neste sentido retoma-se a
questão, os itinerários mantiveram suas rotas, seguiram por novos caminhos conforme
demanda, ou seguiram próximos de loteamentos?

ENTRE USOS, VIAS E ITINERÁRIOS - AS MUDANÇAS DE ITINERÁRIOS E A


VALORIZAÇÃO DA TERRA EM NATAL
Para responder às questões propostas foi necessário um levantamento
documental diverso, mas utilizou-se, sobretudo de fragmentos de jornais e de
documentos legislativos, para que fosse possível fazer a reconstrução dos itinerários

325 EDITORIAIS Transporte. O Poti. 5 de janeiro de 1957. Hemeroteca digital. Disponível em:
<http://memoria.bn.br>. Acesso em 16 de julho de 2018
326 O Poti. 11 de setembro de 1955. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em

16 de julho de 1997)), “Terrenos excelentes e lotes a 5 minutos de ônibus. [...]” (O Poti, 15 de março de
1957. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em 16 de julho de 1997>.
327 O Poti. 7 de fevereiro de 1958. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em

16 de julho de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
371

de ônibus para o período. Como não se tem disponível um documento com os itinerários,
foi preciso catalogar as diversas fontes que apresentavam localizações de linhas de
ônibus para a cidade de Natal no período citado.
A análise documental revelou que, mesmo com a expansão urbana, mesmo com
as demandas sociais por mais transporte, os itinerários de ônibus, no geral, mantiveram
o mesmo padrão das antigas linhas de bonde, concentrando-se em torno das antigas
linhas de bonde e em torno das vias regionais e nas proximidades dos loteamentos
feitos na década anterior e na década de 1950. Com tal catalogação, alcançou-se o
seguinte resultado:

Mapa de elaboração própria. Desenvolvido a partir de tabulação dos itinerários retirados de diversos
fragmentos de jornais disponíveis na hemeroteca nacional

Sendo as linhas e pontos representantes de itinerários e os retângulos em


vermelho, loteamentos durante a década de 1950 de acordo com os levantamentos
feitos no trabalho da pesquisadora FERREIRA (1996), em De la producción Del espacio
urbano a la creación de territorios en la ciudad: un estudio sobre la constitución de lo
urbano en Natal, Brasil.
Destacam-se aqui os documentos que revelam as mudanças nos itinerários de
ônibus. Através deste levantamento, foi possível analisar as mudanças dos itinerários
da linha circular Tirol-Petrópolis, da linha Quintas-Rocas e Cidade-Igapó-Redinha.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
372

Circular Tirol-Petrópolis
Durante a década de 1950 a linha circular Tirol-Petrópolis teve três grandes
alterações. Em 1954 tem-se a informação que a linha Circular-Tirol deixou de andar pela
Jundiaí e passou a andar pela Apodí "[...] sem motivo algum" (1954). Após isso, uma
matéria sobre alteração de preços, anuncia que a linha circulava no seguinte itinerário,

Linha 4, circular, princesa isabel (partida do Botiginha), rua apodi, av.


hermes da fonseca, rua potengi, rua nilo paçanha, rua seridó, av.
floriano peixoto, rua manoel dantas, avenida deodoro, rua ulisses
caldas, e rua princesa isabel, terminal no botilinha, mesmo preço. [...] ”
(MAJORADOS os preços na base decinquenta por cento para onibus e
auto-lotações em todas as linhas desta capital.328

E em 1957 houve uma alteração na linha circular por ordem do inspetor de


trânsito, com o seguinte trajeto,

onibus da linha circular ao atingir o cruzamento da apodi e rodrigues


alves, as viaturas entrarão por esta avenida, rua maxaranguape, av.
hermes da fonseca e continuarão pelo já estabelecido e vice-versa.
inspetor geral Major Arcírio Trigueiro..329

Neste caso, destaca-se que a linha foi expandida cada vez mais durante a década, mas
em 1957 ela recebe uma alteração peculiar, sem razão explicitada, mas dando maior
acessibilidade, e consequentemente, maior valor, aos novos loteamentos surgindo na avenida
Hermes da Fonseca.

A linha Quintas-Rocas
A linha Quintas-Rocas é outra linha que também recebeu alterações durante a
década. Em 1955 a linha quintas-rocas, linha nº 1, atravessava toda a cidade, das quintas
em direção às rocas e vice-versa. O itinerário desta linha, no entanto, permanece
impreciso. Sabe-se que sofreu alterações durante a década, e novamente, se
aproximando de loteamentos, mas não é certo o seu trajeto do início ao fim.

328 O Poti. Sabado, 16 de abril de 1955. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso
em 16 de julho de 2018.
329 DEPARTAMENTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Inspetor Estadual de Transito. Nota. Inspetoria

Estadual de transito em natal, 2 de abril de 1957. Arcyrio alyrio trigueiro. Major inspetor estadual de
transito. O poti, 3 de abril de 1957. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em
16 de julho de 2018

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
373

É importante destacar que este trajeto foi usado como retórica pelos próprios
proprietários de ônibus desta linha para justificar reajustes de preço, pois, segundo os
proprietários da linha, representados por Rivaldo Pacheco, a linha nº é “[...] a de
percurso mais longo da cidade [...]”330,. Em 1958, a partir de lei aprovada pela câmara,
o que novamente revela o caráter regulado do sistema, os itinerários de lotações são
estendidos e os ônibus devem seguir os mesmos itinerários, bem como os preços da
linha 01 foram padronizados.

O preço da passagem direta que compreende 3 seções seria de 4


cruzeiros. Seriam eles - Alecrim: Rua dr mario negócio, São Geraldo na
ida, rua dos pegas, presidente mascarenhas, paiatis, presidente
sarmento e [paianazes] na volta. Para as rocas a extensão vai até a rua
das dunas com campos pinto. Os ônibus fariam o mesmo percurso, para
as quintas, somente permanecendo o mesmo itinerário para as rocas,
ou seja, até o canto do mangue.331

Com estas alterações, novamente, as linhas de ônibus se aproximam de novos


loteamentos do final da década de 1950, e desta vez, a partir de uma interferência da
câmara de vereadores da cidade de Natal.

DO BONDE AO ÔNIBUS – UMA MUDANÇA TECNOLÓGICA E UMA CONTINUIDADE NO


PROCESSO
Antes da implantação e regulamentação dos ônibus na cidade de Natal, sabe-se
que predominava o transporte ferroviário através dos bondes. A mudança tecnológica
para o ônibus e o contínuo investimento na malha viária, poderia possibilitar novos
traçados, novas conexões e fluxos pela cidade. Os ônibus se moveriam pelas vias
seguindo apenas, em teoria, os traçados definidos pela legislação.
Para entender como se expandiram as linhas de ônibus, foi preciso, portanto,
comparar com as antigas linhas de bonde. Tal comparação foi feita a partir do trabalho
já do pesquisador Gabriel Medeiros (2017), que analisa as linhas de bonde e sua relação
com os aforamentos de terra.

330 PACHECO, Rivaldo. Esclarecimentos dos proprietários de ônibus da linha Rocas-Quintas. 6 de abril de
1956. Hemeroteca digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em 16 de julho de 2018)
331 (ITINERARIOS do transporte coletivo para as quintas. o poti. 10 de janeiro de 1958. Hemeroteca digital.

Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em 16 de julho de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
374

Ao analisarmos as linhas de bonde do Mapa 02, produzido a partir dos dados


coletados sobre a década de 1930 e compararmos com as linhas de ônibus do mapa 01,
é possível perceber que há uma expansão interna de circulação, mas no geral, as linhas
de locomoção continuam favorecendo o antigo centro da cidade, a cidade alta e os
novos loteamentos. Além disso, algumas rotas, inclusive, fazem percursos bastante
semelhantes aos antigos percursos de bonde, o que nos induz a pensar, que, ao menos
para a década de 1950, há, com algumas exceções, a manutenção de um favorecimento
de determinadas áreas e ruas da cidade, em detrimento de outras.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
375

MAPA 02: Elaboração de Medeiros. MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de. A cidade interligada:
legislação urbanística, sistema viário, transportes urbanos e a posse da terra em Natal (1892-1930).
2017.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise realizada, foi possível esquematizar os itinerários de ônibus
para a década de 1950, bem como foi possível compara-los com os estudos realizados
sobre os loteamentos na cidade de Natal, contribuindo assim, para o aprofundamento

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
376

da discussão a respeito da questão fundiária em Natal e possibilitando novos estudos


historiográficos a respeito do transporte intra-urbano da cidade.
Através da análise constatou-se uma possível valorização da terra em torno dos
itinerários e uma continuidade nos caminhos e conexões da cidade de Natal de períodos
anteriores até o período estudado. A nova tecnologia de transporte possibilitou que
novos itinerários fossem criados e postos em funcionamento a partir da aprovação de
uma lei, de uma ordem da inspetoria ou da disputa de poder exercida pelos
proprietários. No entanto, como já dito, mesmo diante destas possibilidades, foram
poucos os casos de expansão para além das áreas já valorizadas.
Ainda não é possível, no entanto, compreender a atuação dos agentes sociais
individuais que disputam a cidade e suas conexões. Foi possível apenas categorizar
quem são alguns dos grupos envolvidos nestas mudanças e quem efetivamente se
favorece com elas, o que não significa que tais favorecidos estejam atuando neste
processo. Efetivamente foi possível compreender que já em 1950, inspetores de
trânsito, prefeitura e câmara de vereadores tinham poder para influenciar o traçado dos
transportes coletivos na cidade de Natal. Foi possível, por fim, compreender que
também havia a participação dos agentes privados, no momento em que proprietários
foram denunciados por não cumprir os itinerários estabelecidos.

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. Natal: RN Econômico, 1999.
Estrada, Johann Dilak Julio, and Fábio Duarte. "Transporte e mercado imobiliário:
uma lógica urbana sustentável? Estudo sobre o Transmilênio, Bogotá."
TRANSPORTES 13.2 (2005).

FERREIRA, Angela Lúcia de Araújo. "De la producción Del espacio urbano a la


creación de territorios en la ciudad: un estudio sobre la constitución de lo urbano en
Natal, Brasil." Doutorado (Geografia). Universidad de Barcelona. Barcelona(1996).

GALVÃO, Iapony Rodrigues. Para compreender a fluidez: os grandes sistemas de


movimento viário em Natal/RN. 2011. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
do Rio Grande do Norte.

MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de. A cidade interligada: legislação urbanística,


sistema viário, transportes urbanos e a posse da terra em Natal (1892-1930). 2017.
(Tese)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
377

MEDEIROS, Gabriel LP. Caminhos que estruturam cidades: redes técnicas de


transporte sobre trilhos e a conformação intra-urbana de Natal (1881-1937). 2011.

MENEZES, Patricia. FORTALEZA DE ÔNIBUS: Quebra-quebra, lock out e liberação na


construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960. 2013.
(Dissertação)

NETO, Oswaldo Lima. Transportes no Brasil: história e reflexões. GEIPOT, Empresa


Brasileira de Planejamento de Transportes, Ministério dos Transportes, 2001.

OLIVEIRA, Giovana Paiva de. A elite política e as transformações no espaço urbano:


Natal - 1889/1913. 2001. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade
Federal do Rio Grande do Note, 2001. Orientador: Ilza Araújo Leão de Andrade.

SILVA, Jucilene de Souza. Transformações do sistema de transporte coletivo na


Região Metropolitana de Natal: a inserção do transporte alternativo e suas
implicações para os trabalhadores da categoria. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2002.

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. Studio nobel, 1998.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
378

AS PRIMÍCIAS DA CONVERSÃO (1919-1928): TRISTÃO DE


ATHAYDE, CRÍTICA LITERÁRIA E A NEOCRISTANDADE

Geraldo Quintino da Silva Neto332


Orientador(a): Renato Amado Peixoto

A compreensão da atuação política da Igreja Católica e dos que protagonizaram


sua representação no Brasil durante o século XX é um arrazoado de complexidades. As
próprias definições do político e religioso passam por uma reavaliação conforme nos
dispomos a estabelecer uma análise concisa da trajetória trilhada pela Igreja e suas
organizações de base, de modo que essa relação estreita entre a esfera política e a
religiosidade carece de novas avaliações. Antes de uma trajetória retilínea, o percurso
trilhado pelo catolicismo no Brasil resulta de constantes disputas. Tomando os
contributos da história política para o estudo da religião, evidenciamos as seguintes
reflexões:

Em primeiro lugar, como a filiação a uma Igreja modela as atitudes


políticas dos cristãos? Em segundo, por quais vias as forças religiosas
intervêm no domínio político a ponto de constituir uma dimensão
deste? (COUTROT, 2003, p. 335-336)

Inicialmente, entendemos que existe um fluxo institucional da Igreja que procura


estrategicamente orientar a atuação dos sujeitos que compõem os seus quadros. Para
além da Constituição republicana, promulgada em 1891, que pela destituição do sistema
de padroado assinalou a dissociação entre o Estado e a Igreja333, redefinindo seu
espaço político-social, o anticlericalismo impresso por movimentos modernos, como o
positivismo, comunismo, liberalismo e a maçonaria, resultaram na necessidade de
adequação das formas de atuação da Igreja no universo político-social. De modo geral,
o tom que orienta as ações combativas está vinculado a expugnação das ameaças ao
catolicismo prenunciadas pela modernidade. É nesse sentido que em 1916 D. Sebastião

332 Graduando em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Integrante da
base de pesquisa Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços dentro da linha História do
Catolicismo. E-mail: geraldo.q.dasilva@gmail.com.
333 É interessante frisarmos o anticlericalismo como uma das tônicas que nortearam a instituição da

república. Relevando o fato de que “A sociedade brasileira não se destacava por um espírito clerical.
Muito ao contrário, o que se verificava nos meios mais ilustrados era uma afetação de indiferença e certo
anticlericalismo.” (COSTA, 1999, p. 456).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
379

Leme publica sua famosa carta pastoral que conclamava uma reação católica frente a
sintomática descristianização da sociedade vivenciada no regime republicano. Scott
Mainwaring denominou esse período de efervescência, compreendido entre 1916 e
1955, de Neocristandade334. Esse movimento de retomada do espaço social, nos
ditames da Igreja recristianização, inaugura de forma consistente uma nova fase de
atuação que estimula a constituição de movimentos laicos na promoção da influência
do catolicismo. Além disso, cumpre salientar o processo de expansão organizacional da
Igreja, com a estadualização por meio da disseminação de dioceses que culminaram na
consolidação do Rio de Janeiro como centro administrativo da Igreja à nível nacional
(MICELI, 1988). De modo mais específico, Riolando Azzi denomina o período entre 1920
e 1930 como a Restauração Católica335. De acordo com o autor, este período, pautado
na intensificação da atuação da Igreja na sociedade, está diretamente vinculado a
necessidade de cooptação do laicato para a causa cristã.
Essas observações se fazem necessárias conforme relevamos o intuito do
presente trabalho em estabelecer uma análise do processo de conversão de Alceu
Amoroso Lima (1893-1983) ao catolicismo a partir de sua atuação como crítico literário
sob o pseudônimo de Tristão de Athayde no periódico O Jornal, sediado no Rio de
Janeiro, entre 1919, momento em que se inicia sua carreira, e 1928, quando após a
publicação do artigo Adeus à Disponibilidade, pela revista A Ordem, ingressa na
militância em prol das pautas católicas.
Desse modo, o que se procura é dimensionar a questão da conversão dentro do
universo político e, portanto, concebe-la como uma resultante desse processo de
cooptação da intelectualidade para a militância católica. Se nesse intuito observamos o
esforço da Igreja na eleição da intelectualidade, atentamos para o fato de que Alceu de
Amoroso Lima compunha uma figura de notoriedade nacional no campo da crítica
literária. É precisamente pelo fato de tomarmos os questionamentos anteriormente
lançados por Aline Coutrot ao pensar as formas de ingresso do religioso no campo
político. Cumpre-se também com o trabalho o intuito de sanar lacunas reiteradas pela
própria historiografia, conforme nos aponta Cândido Rodrigues ao se referir a

334 MAINWARING, Scott. A Igreja de 1916 a 1964. In.:_______. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-
1985). São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 41-100.
335 AZZI, Riolando. O início da Restauração Católica no Brasil: 1920-1930. Síntese, Revista de Filosofia, v.

4, n. 10, 1977, p. 61-89.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
380

centralidade que os estudos conferem as cartas trocadas por Alceu Amoroso Lima na
apreciação histórica do legado amorosiano:

Esses estudos [referentes ao Alceu Amoroso Lima] nem mesmo


analisam, de modo específico, as suas obras de caráter político, escritas
no período, alguma delas compostos por artigos lançados em Jornais
como Folhas de São Paulo, Jornal do Brasil, [O] Jornal. Esse assunto
aparece quando muito de forma secundária nos trabalhos em questão.
(2012, p. 68)

Ademais, realçamos os aspectos que escapam aos espaços convencionais de


investigação, conforme compreendemos que o periódico O Jornal, fundado em 1919 por
Renato Toledo e, posteriormente, em 1924, comprado e redigido por Assis
Chateaubriand, se tratar de um veículo que não era considerado como um dos
expoentes da Bôa Imprensa, apesar de possuir entre seus colaboradores figuras de
renome no universo católico, como Jackson de Figueiredo e Carlos de Laet. Além disso,
a própria natureza da documentação em questão, as críticas literárias, precipitam uma
série de implicações e diálogos que permitem correlacionar a conversão de Alceu as
suas disposições quanto ao cenário cultural, político e social.

CONSIDERAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS
Alceu Amoroso Lima nasceu no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1893.
Formado em direito em 1913, mesmo ano em que, numa viagem para França, assiste o
curso do filósofo francês Henry Bergson. Em 1919 tem início sua troca de missivas com
Jackson Figueiredo, este que funda em 1922 o Centro Dom Vital, lócus que servia como
reduto para intelligentsia católica, e a revista A Ordem. Por meio da correspondência
com Jackson de Figueiredo, Alceu paulatinamente inicia sua aproximação com a Igreja
de maneira a se converter em 15 de agosto de 1928. A troca de missivas tem seu fim em
1928, data da morte de Jackson de Figueiredo, ficando sob o encargo de Alceu Amoroso
Lima assumir o legado jacksoniano, com a direção do Centro Dom Vital e a redação da
revista A Ordem336.
A composição historiográfica clivou a trajetória amorosiana em fases que
demarcam a natureza de suas convicções políticas acerca daquilo que deveria ser a ação

336Dados biográficos de Alceu Amoroso Lima retirados a partir de: RODRIGUES, Cândido Moreira. Alceu
Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico militante em perspectiva histórica - 1928-
1946. Tese (Doutorado em História), Faculdade de Ciências e Letras de ASSIS - UNESP, 2006, f. 319.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
381

da Igreja Católica no Brasil republicano. Iniciando nos círculos conservadores e,


paulatinamente, migrando para uma disposição mais democrática. É após sua
conversão, em 1928, que se concentram os esforços de investigação dos contributos
de Alceu para o catolicismo. Em sua tese de doutorado intitulada “Alceu Amoroso Lima:
matrizes e posições de um intelectual católica militante em perspectiva histórica -
1928-1926”, Cândido Moreira Rodrigues discorre sobre a passagem de Alceu Amoroso
Lima da ala conservadora, retido pelo legado jacksoniano que endossou o
reacionarismo católico, à democracia, a partir do seu contato com o filosofo francês
Jacques Maritain. Esse estudo paradigmático nos impõe uma compreensão da fase
posterior a conversão, conforme delimita as contribuições de Alceu Amoroso Lima na
redefinição política dos matizes que serviam de embasamento para a ação do laicato
católico.
Indo por um caminho similar, Guilherme Ramalho Arduini em sua dissertação de
mestrado “Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de
organização social (1928-1945)”, criva a atuação de Alceu na arregimentação da classe
trabalhadora, pela sua participação nos círculos operários dentro da Doutrina Social da
Igreja.
É necessário conceber que fora o próprio Alceu que acompanhou, dentro de uma
rede estratégica de ações em 1933, pela constituição da Liga Eleitoral Católica (LEC), a
colusão do catolicismo com o fascismo, nas aproximações estabelecidas dentro da
Ação Católica. Posteriormente ocorre o seu distanciamento com a elaboração do ideário
vitalista acerca da nação, articulando com uma identidade brasileira católica (PEIXOTO,
2017, p. 315-316). Em 1935, Alceu Amoroso Lima assume a presidência da Ação Católica
Brasileira, cargo que vem a abandonar em 1945, ano em que faz uma viagem a
Montevidéu auxiliando o início do movimento democrata cristão (RODRIGUES, 2006).
O impulso em demarcar a conversão de Alceu Amoroso Lima ao catolicismo tem
como pilar a definição documental imposta pelo seu Adeus à Disponibilidade. Tal
documento serve de garantia ao estabelecimento das balizas temporais que tratam da
trajetória amorosiana, de maneira que deve ser repensado à medida em que as
condições para o papel que Athayde exerceria após 1928 foram se estabelecendo no
período anterior. A conversão surge tanto enquanto uma resposta crítica ao
modernismo literário como à situação política da Primeira República (ARDUINI, 2017),
encontrando espaço de inscrição na prática das críticas literárias. É mister compreender

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
382

que o espaço construído por Alceu entre o meio literário o introduziu em círculos de
sociabilidade que pela definição de aproximações e distanciamentos, o encaminharam
seu despertar para a militância católica.337
É considerável a centralidade que o Centro Dom Vital e a revista A Ordem
encarnam para ação dos intelectuais católicos na tentativa de recristianização da
sociedade, de modo que a ação de Jackson de Figueiredo

tornou possível uma experiência intelectual nova, dando voz e


visibilidade aos que operam em nome de uma visão católica; nesse
sentido, talvez não seja exagero atribuir a seu grupo [Jackson de
Figueiredo] a invenção do intelectual católico. (FILHO, 2007, p. 40).

Essa invenção do intelectual católico, prefigurada sob a defesa dos preceitos


que assinalavam o catolicismo reacionário, como a insígnia da Ordem e Hierarquia,
serviu para injunção e eleição de componentes que servissem a causa cristã. Logo, a
tentativa de converter figuras de renome no meio intelectual compõe uma das
estratégias que procuravam recristianizar os corpos. Paradigmático fica a
compreensão de que o próprio Alceu assinala sua conversão ao catolicismo como
‘reconversão’ (RODRIGUES, 2009, f. 59), i. e., o retorno a uma condição que sempre
esteve presente em sua formação.
A utilização de um pseudônimo para iniciar sua carreira no campo da crítica
literária reincide igualmente sobre a questão da imagem construída por Alceu Amoroso
Lima durante o percurso que antecede sua conversão. Após a sua eucaristia ocorre uma
clara mudança na disposição que a figura de Tristão de Athayde imputava para o
intelectual. Essa mudança passa a ser observada pelos próprios intelectuais que
participavam das redes de sociabilidade do universo literário do Rio de Janeiro. Em uma
publicação de 05 de novembro de 1933, Antônio Alcantâra Machado, na escrita de uma
das suas Reportagens Literárias para o periódico O Jornal, tece a seguinte afirmação:

Afinal de contas, Tristão de Athayde, viveu o drama de todos nós. Numa


entrevista concedida depois de sua volta à Igreja e que (pensou eu)
nunca chegou a ser publicada, fez elle esta declaração a mim

337 Acerca dos contributos da História Política sobre os intelectuais e, especialmente o estudo da prática
empreendida na imprensa e periodismo, considero a seguinte assertiva: “Em suma, uma revista é antes
de tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo viveiro e espaço de
sociabilidade, e pode ser, entre outras abordagens, estudada nesta dupla dimensão." (SIRINELLI, 2003,
p. 249).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
383

transmitida por quem a ouviu: Se não fosse catholico, seria


communista. E que a época é de militantes.”338

O chamado a militância resulta justamente das experiências que se vivenciavam


das transformações operadas pelos círculos literários que Alceu Amoroso Lima
integrava. Essa relação complexa entre o crítico literário e o catolicismo, reincide sobre
a própria natureza de sua produção, de modo que se torna possível conceber uma Crítica
Literária Católica (RODRIGUES, 2009).

JACKSON DE FIGUEIREDO E TRISTÃO DE ATHAYDE


O papel de Jackson de Figueiredo para a conversão de Alceu Amoroso Lima
ocupa um dos elementos centrais na historiografia. Desse modo, é possível
compreender o espaço conferido a essa documentação na intelecção da conversão
amorosiana, conforme nos aponta Leandro Rodrigues:

Há um antes e um depois claramente definidos, pois o processo de


conversão de Alceu foi lento e difícil, aconteceu aos poucos, etapa por
etapa, leitura após leitura, depois de muito questionamento. Esse modo
gradativo de reconsiderar sua fé fica bem claro quando lemos sua
correspondência com Jackson. (RODRIGUES, 2009, f. 60)

Entretanto, seguindo um caminho diferente, podemos conceber tal aproximação


dentro da crítica literária por meio da predileção de temáticas nas publicações que
estivessem em consonância com os ditames católicos. Nesse sentido, se torna possível
compreender um artigo de 15 de setembro de 1919 no qual Alceu elogiosamente tece
comentários acerca de uma palestra sobre a Bôa Imprensa proferida por Jackson de
Figueiredo em Minas Gerais, na cidade de Muzambinho. Segundo Amoroso, “O sr.
Jackson de Figueiredo podia tomar, como divisa, o dístico do poeta. Seu mundo de ideias
é dominado, e pôde ser explica, pelo desejo de ordem e pela tendência à luz.”339. Tal
palestra, em homenagem a colação de grau das professoras do Lyceu Municipal de
Muzambinho, teve uma parte da fala publicada no dia 12 de maio de 1919 pelo Jornal do
Comércio do Rio de Janeiro340. Se utilizando do prisma da moral cristã, Jackson de
Figueiredo alerta as professoras dos perigos que a modernidade espreita para a

338 MACHADO, Antônio Alcanâra. O Jornal, 05, nov., 1933, f. 18.


339 ATHAYDE, Tristão de. O Jornal, 15, set., 1919, f. 6.
340 FIGUEIREDO, Jackson. O Jornal do Commercio, 12, maio, 1919, f. 4.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
384

cristandade. Ainda sobre a palestra, Alceu publica outro artigo no dia 21 de setembro
que reincide sobre a figura de Jackson de Figueiredo, conforme afirma que:

Não somente perdão e caridade, senão e sobretudo “justiça”, eis o fim


ideal da verdadeira educação. As reformas necessárias do mundo só
podem vir do sentimento meditado da justiça, quer trazido pela fé, quer
pela consciencia educada. Só pela verdadeira comprehensão da justiça,
isto é, da relação ideal entre direitos e deveres, poderemos obedecer ao
distico admiravel de Lamartine, que é o do sr. Jackson de Figueiredo,
realizando a “ordem” em caminho para a “luz”.341

A restituição da ordem abre caminho para a luz, que a reinação do racionalismo


ofuscara da modernidade. Cumpre pela fé ou educação restituir a “justiça” usurpada
pelas ameaças da descristianização da sociedade. Já em 1919, Tristão de Athayde
flertava com os preceitos do catolicismo reacionários de Jackson de Figueiredo.
Fato é que a ideia do controle a liberdade de imprensa compunha um dos pilares
que serviam ao discurso do catolicismo reacionário contundentemente defendido por
Jackson de Figueiredo. A apreciação pública de Tristão de Athayde – pseudônimo de
Alceu Amoroso Lima – nas colunas do periódico O Jornal ainda em 1919, implica na sua
disposição simpática as predileções que orientavam a intelectualidade católica. A dita
necessidade da Bôa Imprensa decorre justamente da capacidade da Igreja em tomar
consciência do alcance e da influência que a imprensa passara a ter na sociedade, se
tornando um dos principais mecanismos de combate aos inimigos do catolicismo
(MORAIS, 2017). Nesse influxo, cabe conceber que o anticomunismo tonifica a ordem
dos discursos que são proferidos dentro da imprensa católica, compondo parte de “uma
dialética voltada contra a modernidade” (PEIXOTO, 2017, p. 304).
A própria disposição de Alceu Amoroso Lima nos círculos literários do Sudeste
assinala sua receptividade pretérita ao catolicismo, entrevendo uma disposição que
ocupa um sentido espacial. Conforme verificamos

o Modernismo também foi dividido entre esquerdistas e direitistas, pelo


menos na avaliação de alguns artistas, críticos e historiadores. Assim, a
tendência antropofágica de São Paulo foi associada à esquerda,
principalmente no seu caráter vanguardista e revolucionário. Quanto ao
Rio de Janeiro, este ficou com um Modernismo mais brando, não
primitivista, católica e espiritualista, ou seja, de Direita. Por isso que a
Crítica Literária Católica foi vista por muitos como uma Crítica de

341 ATHAYDE, Tristão de. O Jornal, 21, set., 1919, f. 10.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
385

Direita, com seus próprios organismos divulgadores das suas idéias.


(RODRIGUES, 2009, f. 17)

Essa rede de associações ainda se demonstra mais extensa conforme nos


aproximamos das referências intercruzadas desses intelectuais. No dia 04 de setembro
de 1919, correspondendo aos anseios de sua coluna literária Bibliographia contida em
O Jornal, Tristão publica um artigo referente as publicações da Revista Americana.342
Nesse artigo elogioso, faz a apresentação dos componentes que figuram destaque no
corpo editorial, traçando novamente um elogio para atuação de Jackson Figueiredo,
colaborador da revista, responsável pela discussão bibliográfica. 343
Os diálogos traçados no mundo da imprensa resultantes da posição de crítico
literário que Alceu Amoroso Lima ocupava serviram de carta de entrada nas discussões
e contendas, encontrando reconhecimento em outros periódicos. No mesmo mês é
lançada o segundo número do periódico America Latina: revista de arte e pensamento
filosófico. Cumpre salientar a presença de Tasso da Silveira344 como um dos diretores
da revista, tendo em vista que este era também contribuinte do periódico O Jornal e,
igualmente, estava imiscuído nessa rede de intelectuais de predileção católica. Na
seção denomina de Noticiario é publicado pelo “(...) seu ilustre redactor encarregado da
secção de Bibliographia de O Jornal”345, um artigo que, de acordo com os editores,
definiria a missão do periódico America Latina. De forma curta, Tristão de Athayde
prenuncia um dos intentos da revista: “S. Paulo tem a Revista do Brasil, que é o nosso
melhor ensaio nesse sentido. Ao Rio ainda faltava um gazela literária à altura do seu
meio intelectual.”346. Ora, o que se precipita nesse curto comentário é a dimensão
espacial que contornou o movimento modernista no Brasil.
Durante o largo percurso, entre 1919 e 1928, trilhado por Alceu Amoroso Lima
que findou com sua ascese, Jackson de Figueiredo acompanhou a experiência da crítica
literária de Tristão de Athayde. Meses antes da morte de Jakson de Figueiredo, em 04
de novembro de 1928, Tristão de Athayde publicou uma crítica literária intitulada Um

342 ATHAYDE, Tristão de. O Jornal, 04, set., 1919, f. 4.


343 Nas palavras de Tristão de Athayde, “A bibliographia da “Revista” é feita pelo sr. Jackson de
Figueiredo, que tem para esse mister dois dotes inestimaveis – sinceridade e independencia.” (Ibid., f. 4).
344 A aproximação de Tristão de Athayde e Tasso da Silveira é corroborada pela participação de ambos

na revista Festa que aglutinou os posicionamentos da intelectualidade carioca sobre o Modernismo,


compondo o quadro de intelectuais que estavam imiscuídos na dinâmica espiritualista da modernidade e
crítica literária, reconhecidamente de matrizes conservadoras (RODRIGUES, 2012, f. 101-102).
345 AMERICA LATINA: revista de artes e pensamento filosófico, v. 1, n. 2, set., 1919, p. 216.
346 ATHAYDE, Tristão de. Ibid., p. 216-218.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
386

Realista. Se, inicialmente, deveria ser feita a discussão do livro Jackson de Figueiredo:
o doutrinario catholico de Hamilton Nogueira, como se pretendia a função da coluna
literária, ditas poucas palavras o artigo se transformou num encômio a Jackson de
Figueiredo. Ainda assim, é possível entrever elementos que circunscrevem a dinâmica
do ser um intelectual em militância católica, como afirma Tristão de Athayde:

Quero apenas dizer que as preoccupações políticas do sr. Jackson de


Figueiredo não me parecem apenas uma velleidade a mais do seu
temperamento essencialmente militante. Muito menos uma simples
ambição de sua voracidade de viver e de conquistar. Ou uma
reminiscência organica do seu atavismo de cangaceiro. Ou uma traição
ao poeta que foi, ao romancista que vae ser ao philosopho que ainda é.
Penso que tudo se ligar na sua complexidade, extremada mas logica.347

Ora, esse comentário cumpre uma função exemplar na defesa da imagem


pública de Jackson de Figueiredo. Tristão de Athayde, vulgo Alceu Amoroso Lima, sabia
que sua associação ao catolicismo estava circunscrita na definição da própria imagem
de intelectual que construíra durante sua experiência de crítica literária. Para Jackson
de Figueiredo, o sentido da cristianização consistia na aceitação de que a verdade
suprema é, pois, um caminho para a vida. A crença de que o discurso modernizante
encaminharia a um solipsismo filosófico encarnava a ação desses intelectuais na égide
do Catolicismo brasileiro.
Se, como anteriormente afirmado, o artigo de Alceu Amoroso Lima denominado
de “Adeus à Disponibilidade” constitui um dos elementos que servem a evocação da
militância católica de Tristão de Athayde, a existência de tais diálogos traçados em
outros periódicos pode induzir a reconsideramos o peso e quais elementos foram
acionados nesse documento. Publicado pelo periódico A Ordem, o artigo foi escrito
originalmente como uma carta em resposta às críticas feitas por Sérgio Buarque de
Holanda ao livro Estudos, miscelânea das críticas literárias feitas por Alceu durante os
anos de 1919 e 1920. Alceu Amoroso Lima denúncia a postura de Sérgio Buarque de
Holanda em relação ao “filosofismo cego” (RODRIGUES, 2009).
Devemos observar que Sérgio Buarque de Holanda compunha, junto de
Prudente de Moraes Neto e Manuel Bandeira, uma das figuras responsáveis pela ponte
com a vanguarda modernista paulistana, encabeçadas pela figura de Mário de Andrade

347 ATHAYDE, Tristão de. O Jornal, 18, mar., 1928, f. 4.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
387

e Oswaldo de Andrade (RODRIGUES, 2009). Essa disposição retoma a dimensão


espacial anteriormente mencionada sobre o Modernismo, mas, por outro lado, implica
na adequação da questão do intelectual, esta que passa a ser composta por subtipos,
como o intelectual católico. O elogio de Tristão de Athayde e a crítica de Alceu Amoroso
Lima a Sérgio Buarque de Holanda emula dois lados da mesma moeda, o ingresso no
universo da militância católica sob a insígnia da intelectualidade, submersa nas tensões
modernistas.
O caráter multifacetado da personalidade desse intelectual, dividido entre o ser
Alceu Amoroso Lima, que após 1928 se instaura como uma das grandes personalidades
do catolicismo, e Tristão de Athayde, que está inserido dentro dos círculos de
sociabilidade da intelectualidade carioca, imputa relevar a complexidade da conversão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho compõe um esforço inicial na compreensão da questão da
conversão enquanto um objeto passível de discussão historiográfica, relevando
aspectos que demarcam a trajetória intelectual e a História do Catolicismo. O complexo
percurso trilhado pela Igreja foi acompanhado por aqueles que estavam engajados em
prol da causa missionária, como Alceu Amoroso Lima. O diálogo travado com Jackson
de Figueiredo dentro da crítica literária corrobora uma leitura da conversão enquanto
um processo paulatino, cheio de percalços e angústias. Resta, portanto, assumir que as
primícias da conversão assinalam a dinâmica complexa que perpassa o “Adeus à
Disponibilidade” e a ocupação literária de Tristão de Athayde.

REFERÊNCIAS
ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os
projetos católicos de organização social. (1928-1945). Dissertação (Mestrado em
História) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Campinas, 2009, f. 145.

ARDUINI, Guilherme Ramalho. Os escritos jornalísticos de Tristão de Athayde nos


anos 1920 como matriz interpretativa de sua conversão ao catolicismo. In:_______
(Org.). Tristão de Athayde, Alceu Amoroso Lima. São Paulo: SESC, Coletânea Ciclo,
2017, p. 44-52.

AZZI, Riolando. O início da Restauração Católica no Brasil: 1920-1930. Síntese, Revista


de Filosofia, v. 4, n. 10, 1977, p. 61-89.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
388

COUTROT, Aline. Religião e Política. In: Por uma nova história política. RÉMOND, René
(org.). Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 331-364.

COSTA, Emília V. da. A promoção da República. In:_______. Da Monarquia à


República: momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1981, 447-490.

FILHO, Fernando A. Pinheiro. A invenção da ordem: intelectuais católicos no Brasil.


Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, jun., 2017, p. 33-49.

RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima: cultura, religião e vida literária.
Tese (Doutorado em Letras) – Departamento de Letras, PUC-RIO, Rio de Janeiro,
2009, f. 206.

MAINWARING, Scott. A Igreja de 1916 a 1964. In.:_______. Igreja Católica e Política


no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 41-100.

MICELI, Sergio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A.,
1988.

MORAIS, Patricia W. de. As colunas da Ordem: imprensa, identidade e atuação política


da Igreja Católica norte-rio-grandense (1935-1936). Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Programa de Pós-Graduação em
História e Espaços, Rio Grande do Norte, 2017, f. 172.

PEIXOTO, Renato Amado. Da Liga Eleitoral Católica à Reação Nacionalista: o percurso


do Catolicismo brasileiro rumo à colusão com o Facismo. Revista Brasileira de
História das Religiões, ANPUH, Ano X, n. 29, Set./Dez., 2009, p. 297-332.

RODRIGUES, Cândido Moreira. Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um


intelectual católico militante em perspectiva histórica - 1928-1946. Tese (Doutorado
em História), Faculdade de Ciências e Letras de ASSIS - UNESP, São Paulo, 2006, f.
319.

RODRIGUES, Cândido Moreira. Notas sobre a “fortuna crítica” do Intelectual Alceu


Amoroso Lima. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 5, n. 2, jan./jul., 2012, p.
65-78.

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: Por uma história política. RÉMOND,


René. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 231-270.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
389

MOVIMENTO DE NATAL (1943-1964):


UM BALANÇO HISTORIOGRÁFICO

Cláudio Correia de Oliveira Neto348

INTRODUÇÃO
A Igreja Potiguar na segunda metade do século XX passa por uma experiência
sui generis que modifica todo o pensamento católico (FERRARO,1968). Tal mudança
estava alinhada com as ideias progressistas da Santa Sé como um todo no plano
internacional. A produção historiográfica que estuda a Igreja desse momento histórico
afirma que durante o período há a consolidação e amadurecimento da Igreja Popular
(MAINWARING,1989). Neste recorte temporal a Igreja Brasileira é apontada como uma
das mais progressistas (MAINWARING,1989). É nesse contexto sócio históricos que
Natal, no Rio Grande do Norte, vira protagonista com o Movimento de Natal (1943-
1964), que é a primeira iniciativa da igreja no enfrentamento prático as desigualdade
socais (FERRARO,1968; CAMARGO,1971). Um novo modelo de igreja estava sendo
teorizado e praticado. Uma cosmovisão que está atrelada ao espaço que foi gerado e
que orienta as ações dos sujeitos, incluindo as de cunho político. Ação do Movimento
de Natal modifica o espaço rural: construindo cisternas, poços, currais, casas para
pequenos agricultores, praças e outras obras que auxiliam no combate à desigualdade
social e na conscientização política.
Dentro dos estudos sobre a igreja popular e seus impactos nas comunidades
onde ela estava presente nosso interesse é naqueles que privilegiam a relação entre
política, religião e espaço. As pesquisas com este enfoque foram produzidas
largamente no período de 1970-1980. Elas desejavam analisar a mudança da igreja na
maneira como se relacionava com os problemas sociais brasileiros, especialmente na
região Nordeste.
Os principais pesquisadores que trabalharam o assunto foram Scott
Mainwaring, Luis Eduardo W. Wanderley, Cândido Procópio Ferreira de Camargo e
Alceu Ferraro. As abordagens mais recorrentes na literatura produzidas pelos
supracitados estudiosos são as que enfatizavam as relações sociais, o relacionamento

348Cláudio Correia de Oliveira Neto é mestrando do Programa de Pós-graduação em História pela


Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
390

da igreja com a sociedade civil e a educação como instrumento de mudança social


(FERRARO,1968; CAMARGO,1971; WANDERLEY,1984; MAINWARING,1989). Os autores
que utilizaram a abordagem das relações sociais estabeleceram análises comparadas
entre comunidades que participaram e as que não foram contempladas com a presença
da igreja popular (FERRARO,1968; CAMARGO,1971). Eles mostram o impacto das ações
de conscientização política na maneira como foi alterado o relacionamento entre
patrão-empregado/patrão-cliente, comunidade-políticos e pais-filhos
(CAMARGO,1971). De maneira incipiente apontam modificações do espaço físico da
comunidade como a construção de açudes, pontes, casas, escolas e outras ações de
mesmo tipo (FERRARO,1968; CAMARGO,1971).
Ferraro e Camargo concentraram suas forças nos estudos sobre a relação de
política, religião, desenvolvimento e espaço tendo como objeto principal o Movimento
de Natal. Ferraro em 1968 e Camargo em 1971 lançam obras homônimas, “Igreja e
desenvolvimento”. Nosso objetivo é analisar a produção destas duas obras no contexto
de interesses da Igreja, que naquele período estava preocupada em construir um
arsenal teórico-metodológico que possibilitasse compreender a mudança social e criar
novas formas de ação pastoral (CALDEIRAS,2017:1).

MOVIMENTO DE NATAL: O LABORATÓRIO PARA UMA NOVA IGREJA


O Movimento de Natal constitui um importante objeto de estudo para a História
Política e História do Catolicismo por várias razões, mas iremos elencar três: a) no
contexto do Concílio do Vaticano II (1962-1965) a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) e a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) a elegem enquanto uma
experiência piloto para a reorganização da Igreja do Brasil na forma da 'Pastoral de
Conjunto'; b) a historiografia dedicada a Igreja e Política já rastreou neste mesmo
recorte espacial manifestações da ligação entre o catolicismo e os movimentos de
direita na década de 1930 o que já propicia uma análise comparativa; c) o Movimento de
Natal oferece elementos que podem auxiliar a compreender a aproximação do
catolicismo com a esquerda (PEIXOTO,2017:8).
A particularidade que atraem os estudiosos para o Movimento de Natal é a
integração entre religiosidade e prática social. O Movimento foi o primeiro do gênero
no Brasil a se preocupar com a miséria social e torna-la problema central dentro do
cristianismo (FERRARO,1968). Além de construir uma chave explicativa das questões

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
391

social a partir de uma leitura cristã fundamentada em uma abordagem sociológica


(CAMARGO,1971). Outro elemento atrativo é a própria trajetória do Movimento que vai
de um aspecto assistencialista conservador para um ponto mais reformista
contestador das estruturas.
Ferraro e Camargo elegem o Movimento de Natal enquanto objeto de estudo
pois ambos compreendem que se trata de uma experiência, um laboratório para a
elaboração de um novo modelo de Igreja. Um Igreja distinta da tradicional e renovada
em um compromisso com a mudança social, e não com a manutenção da ordem e do
“status quo” de uma sociedade opressora. Em suas pesquisas eles desejam, cada um
ao seu modo, aferir a potencialidade do Movimento de Natal como modelo a ser
adotado no restante da América Latina. E se não fosse possível ser exemplo, seu estudo
serviria ao menos para entender onde se errou e reformular as diretrizes para sucesso
vindouro.

O padre comunista e a ovelha desencantada


Para compreender melhor os interesses pessoais e científicos que levaram
Ferraro e Camargo ao seu objeto de estudo é valido fazer algumas considerações
biográficas sobre eles.
O padre Alceu Ravanello Ferraro349 nasceu em 1935, no Município de Júlio de
Castilhos, Rio Grande do Sul. Aos 33 anos era um dos poucos doutores da Igreja
Católica Brasileira. Realizou seus estudos de graduação e pós-graduação na Pontifícia
Universidade Gregoriana, em Roma, instituição vinculada à Companhia de Jesus. Passou
alguns anos como professor-pesquisador na Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS até conseguir passar num concurso público e ingressar em 1974 na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde permaneceu até se aposentar em 1991.
Suas pesquisa se concentraram no campo da Educação, onde é considerado uma grande
referência em História da Alfabetização no Brasil.
Cândido Procópio Ferreira de Camargo350 nasceu em São Carlos, São Paulo, em
1922. Foi no Colégio São Luís de São Paulo que cursou o primário e o secundário. Nesta
escola Jesuíta ele foi introduzido ao pensamento católico, que o marcara no restante da

349 A bibliografia sobre a biografia do autor é escassa se resumindo as informações que constam em seu
currículo lattes e poucas entrevistas que ele deu.
350 Sônia Elizabeth Reyes Herrera em sua tese rastreia a produção e biografia do autor para historicizar

a produção do campo de Sociologia das Religiões.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
392

vida. Logo após se formar em Direito (1945) ingressou no Noviciado dos Dominicanos,
ficando por 6 meses como frei Clemente. Fez especialização em Filosofia na Sorbone
entre 1946-1947. Formou-se em filosofia bacharel pela Pontifícia Universidade Católica
(1949). Fez o doutorado (1954) em filosofia pela Universidade de Columbia Nova Iorque.
Lá entrou em contato com as ideias de Jonh Dewey, que o influenciou na concepção do
conceito de internalização, desenvolvido quando Camargo enfrentou a questão da ética
diante da mudança social (HERRERA,2004:87).
Camargo foi um dos percursores do estudos da religião nas ciências sociais
brasileiras. A excentricidade da religiosidade brasileira une os cientistas sociais que
pesquisam religião nos anos 1960. O percurso formativo diferenciado o destaca dos
demais. De início seus estudos se centram na religiosidade urbana emergente
(protestantismos, espiritismo e umbandismo). A sua grande colaboração ao campo da
sociologia das religiões foi promover um estudo da religião em relação a sociedade
global (HERRERA,2004:104). Sua pretensão inicial era delimitar uma clara fronteira
entre os estudos filosófico, teológicos e sociológico. Ele constrói sua produção sobre
um perfil bem analítico, que tem sua fragilidade central na concepção do processo de
modernização como fatalidade inevitável.
Ferraro e Camargo são alvos de perseguição política no período pós-golpe de
1964. Ferraro era uma figura muito visada pelos militares por causa de sua ligação com
a Teologia da Libertação. Ganhou a fama de subversivo justamente pelo período que
ficou no nordeste brasileiro investigando o Movimento de Natal, ganhando a alcunha
de padre comunista. Em 1969 uma das freiras de sua paroquia no Rio Grande do Sul foi
obrigada pelos militares a entregar os catecismos que Ferraro dava para distribuir. No
momento em que soube ele foi tirar satisfação com o militar, que por sua vez tentou
prendê-lo, mas graças ao apoio popular e do prefeito ele não foi preso (PEIXOTO,
2017:8). Mas acabou fichado o que impediu de renovar seu contrato com a Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, só retornando a academia após conseguir
o cargo de professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Com a publicação do Ato Institucional número 5 (AI-5) (1968) vários professores
das Universidade de São Paulo acabaram tendo que se aposentar compulsoriamente, e
alguns outros se desligaram da instituição, entre eles Camargo. Ele e outros ilustres

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
393

colegas351 dissidentes acabam formando o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento


(CEBRAP), que recebeu investimento inicialmente da Fundação Ford. Camargo presidia
o setor de pesquisa de Sociologia das Religiões da CEBRAP. A perseguição que sofria
por parte do governo militar acabou o reaproximando do catolicismo na figura do
Cardeal Arns (HERRERA,2004:118). Camargo era a ovelha desencantada que se
avizinhava da igreja sem voltar a ser rebanho. Esta reaproximação acabou resultando
na elaboração do São Paulo 1975: crescimento e pobreza, pesquisa realizada a pedido
do cardeal. O que teve forte represália com um atentado ao prédio do CEBRAP352.

A pedido da Igreja
Mediante a abertura do Concílio do Vaticano II (1962-1965), na década de 1970, a
Igreja Católica, em especial no Brasil, abre a porta para as ciências humanas e sociais.
Isto ocorre devido à compreensão da Igreja de que tais ciências poderiam municia-la de
instrumental teórico-metodológico que a possibilitasse compreender a sociedade
moderna em processo de mudança, o que levaria a uma melhora das suas práticas
pastorais (CALDEIRA,2017:1). Este contexto foi fecundo para uma produção
historiográfica caracterizada por ter sido elaborada por agentes pastorais imersos nas
concepções teológicas da Igreja.
As obras que retratem a questão da igreja e política neste período no Brasil são
intimamente ligadas à perseguição sofrida pelos autores durante o Regime Militar
brasileiro, que escamoteou os avanços progressistas, levando a um verdadeiro
retrocesso e dificultando a produção intelectual sobre o período. Livros foram
queimados em sua maioria, os poucos exemplares restantes foram salvos
clandestinamente. Há relatos sobre documentações que foram quase que
completamente destruída. Produções que só estão sendo publicados agora, graças aos
esforços da Comissão da Verdade, que entre seus objetivos tem o de resgatar a
memória do período da Ditadura Militar no Brasil. Todas as obras aqui discutidas são
tentativas e resistência ao esquecimento das transformações sociais que o Brasil
passou na década 1960 impulsionado pela Igreja Popular que estava surgindo.
Compreender como o Movimento de Natal transformou fisicamente as comunidades se

351 Entre os renomados que iram compor o CEBRAP está o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
que faz a orelha do livro “Igreja e Desenvolvimento” (1971).
352 Herrera relata que um militar comenta que a verdadeira bomba foi a obra São Paulo 1975: crescimento

e pobreza.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
394

enquadra dentro destes esforços de denunciar o retrocesso causado pela Ditadura


Militar e as consequências disso na atual conjuntura política. É pensar paralelamente
como a ação da Igreja e dos que lhe estudavam na década de 1970 ofereceu resistência
ao conservadorismo.
Na década de 1960 na região Nordeste há a confluência de muitas forças que
estão atuando e disputando aquela região. Ali se tinha ações da igreja, do Estado e até
mesmo forças internacionais atuando (CRUZ, 2000:55). Naquele momento acabara de
ter ocorrido a Revolução Cubana (1959) que causava um furo comunista na área de
influência americana. O temor que o comunismo se alastrasse pela América Latina
como uma peste mortal era imensa. Era então de interesse dos norte-americanos e
aliados a manutenção do sistema capitalista naquela área e também evitar o avanço
comunista. Dentro desta lógica se formulou a hipótese de que a vitória do comunismo
em Cuba só se deu devido o estado de miserabilidade daquele país. Os especialistas,
americanos em especial, acabaram identificando outras áreas em situações de
degradação social e econômica similares a cubana e acabaram indicando o Nordeste
brasileiro como um lugar propicio para a infestação comunista.
É dentro destas conjunturas, que primeiro Alceu Ferraro e posteriormente
Cândido Camargo, são convidados a produzirem suas obras. Ferraro entra em contato
com o Movimento de Natal por meio de Dom Eugênio de Araújo Sales, principal
articulador do Movimento, que participa ativamente do Concílio do Vaticano II em Roma,
onde Ferraro estava se doutorando (PEIXOTO,2017:9). Nas conversas entre o bispo e o
padre, o peixe do Movimento de Natal vai sendo vendido. Ferraro tem vívido interesse
em pensar um novo modelo de Igreja e se encontra entusiasmado com o maior evento
da Igreja Católica do século XX. D. Eugênio por sua vez tem interesse de publicizar a
ação desenvolvida por ele, a qual considerava como uma alternativa eficiente frente ao
comunismo ateu e ao capitalismo liberal. O bispo garante ao padre uma rede de apoio,
financiamento e informações que o possibilita escrever “Igreja e Desenvolvimento – O
Movimento de Natal”.
Enquanto a obra de Ferraro é resultado do esforço de doutoramento, a de
Camargo é parte de um programa de estudos das funções do catolicismo em áreas
subdesenvolvidas financiadas por duas instituições internacionais, o Instituto de
Ciências Sociais de Haia (ICSH) e a Federação Internacional de Pesquisa Sócio
Religiosas de Lovaiana (FIPSRL), uma com sede na Holanda e na Bélgica

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
395

respectivamente (CAMARGO, 1971:6). A ICSH surge em 1952 tendo como proposta a


pesquisa interdisciplinar sobre desenvolvimento voltado para o auxílio a áreas
subdesenvolvidas. A FIPSRL é liga a igreja e suas pesquisas de sociologia religiosa.
Ações em confluência com o contexto a que me referi no começo desta seção. “Igreja e
Desenvolvimento” (1971) recebe também o apoio de D. Arns ligado a resistência à
Ditadura. Os laços com D. Arns são tão fortes que Camargo é convidado a assessora-lo
no plano pastoral de São Paulo e acaba assumindo lugar na pastoral de Justiça e Paz
(HERRERAS, 2004:120).

Duas obras, uma história?


Ferraro divide sua obra em três partes: origem e evolução do Movimento de
Natal; Serviço de Assistência Rural (SAR) e desenvolvimento – verificação da empiria;
relação entre funcionalidade e atitude e entre temporal e religioso, que totalizam doze
capítulos. Já a obra de Camargo é composta de sete capítulos: introdução; Para uma
tipologia do catolicismo brasileiro; métodos e técnicas de pesquisa; História e Estrutura
do Movimento de Natal; Ideologia; Estratégia; Mudança Social.
O objetivo da investigação de Ferraro era aferir a funcionalidade ao
desenvolvimento da ação de Natal e o caráter inovador dela ao se motivada por valores
cristãos de orientação profética que resultaria numa possível desinculturação e crítica
as estruturas sociais. Camargo por sua vez objetivava a construção de um aparato
teórico-metodológico que possibilite aprimorar as pesquisas sociológicas que estudem
as funcionalidades da religião em áreas em vias de desenvolvimento; construir uma
tipologia do catolicismo com base na empiria e por fim realizar uma pesquisa de caso
que possibilite compreender as funcionalidades da religião em espaços
subdesenvolvidos.
Os objetivos se distinguem porque os interesses também diferem. Camargo está
circunscrito em momento onde a academia brasileira está saindo de uma sociologia
religiosa (praticada por religiosos) para uma sociologia das religiões que se pretende
fundamentada em claros princípios sociológicos desinteressados. Ele está preocupado
em construir os parâmetros de sua área, como de fato consegue faze-lo se tornado até
os dias atuais uma referência no campo da sociologia das religiões.
Ferraro por outro lado, enquanto padre, está interessado em pensar a
espiritualidade do evento. Apesar de se apropriar de toda a linguagem sociológica e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
396

construir uma metodologia ligada a ela, as discussões da última parte da obra entrega
sua intenção de enquanto homem da igreja pensar a espiritualidade emergente no
Movimento de Natal. Interesse este que também é partilhado por D. Eugênio que
ressalta o caráter pastoral da ação da arquidiocese de Natal e compreende que a luta
por mudança social se enquadra na missão evangelizadora da própria igreja.
Como ambos os autores bebem de uma sociologia de raízes americanas ligadas
a demografia e a estatística, muito mais próximos das ciências naturais, a metodologia
adotada por eles se assemelha. Eles optam por fazer um estudo comparado entre as
comunidades trabalhadas pelo Movimento e as não trabalhadas. Para tanto os dois se
esforçam em procurar localidades que possuam características sociais e geográficas
em comum que partilhem apenas como diferença a participação ou não nas ações
arquidiocesanas. A escala das comparações também defere uma vez que Camargo
compara sedes municipais (São Paulo do Potengi e Lajes), comunidade rural (Serrote),
município (Gameleiras – que segundo o autor ainda possuía estrutura de comunidade
rural) e Ferraro investe nas comunidades (duas por municípios, sendo exceção o 3º par
que são de municipalidades distintas mas que guardam semelhanças). A opção pela
escala comunidade se deu principalmente devido a presença de outros agentes de
mudança que atuam na municipalidade, o que dificultaria precisar o impacto do SAR. O
golpe de 1964 também influencia a metodologia adotada pelo padre, como o mesmo
explica neste trecho:

Mesmo assim dada a pluralidade de atividades, a extensão da área


atingida e a limitação dos recursos financeiros de que dispúnhamos,
impusemo-nos outras limitações. Na I parte distinguimos duas fases
rurais do Movimento: uma voltada para o desenvolvimento de
comunidade, entendida como pequena cidade, a vila, o povoado, o sítio,
a fazenda; a segunda, extrapolando já o limite da comunidade, voltada
para a “luta pela mudança de estrutura”, entendida esta especialmente
como mudança nos sistemas tradicionais de fidelidades políticas e de
relações de trabalho. Tendo iniciado nossa pesquisa poucos dias após
a Revolução de 31 de março de 1964, não víamos, pelo exposto no
Capitulo IV, parágrafo 3353, condições de levar a bom termo uma
pesquisa de amostragem que visasse verificar empiricamente o
impacto desta “luta pelas mudanças de estruturas”. Para uma tal
verificação a área propicia seriam as grandes fazendas, onde – tudo
indicava- nos depararíamos com a desconfiança dos patrões e o
retraimento dos moradores. Daí termo-nos orientado, seja na escolha
da área, seja na elaboração do questionário, especialmente para uma

353 Neste trecho indicado o autor trabalha as divergências entre o poder local e o Movimento de Natal

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
397

avaliação do programa de ação comunitária, típico da I fase Rural.


(FERRARO,1968:111).

O próprio contexto histórico trata de impor seus limites as pesquisas, não


podendo a obra fugir de seu tempo. Daí a importância da análise historiográfica não se
prender ao conteúdo, mas lê-lo em seu contexto de produção para melhor compreende-
lo, o seu impacto e recepção ao longo do tempo (CALDEIRAS,2017:15).
Pelo que podemos aferir do texto, duas áreas de atuação são comuns a análise
dos autores, as comunidades de Serrote no município de Nova Cruz e a sede de São
Paulo do Potengi. Chegando os autores em conclusões similares sobre as áreas e
destacando o sucesso da empreitada do SAR em Serrote, comunidade que apresentou
mais níveis de desenvolvimento em relação a mudança comportamental aferida pelos
autores.
Ambos fazem usos de técnicas de pesquisa qualitativas e quantitativas, com
aplicação de questionários e entrevistas, um minucioso levantamento estatístico e
detalhada descrição geográfica das áreas estudas, uma vez que tais fatores são parte
do critério de seleção para o estudo. Fazem uso com vigor de tabelas e gráficos
comparativos, compatíveis com o rigor cientifico que empregavam na iludida tentativa
de não se envolver com o objeto de estudo. Camargo e Ferraro usam o argumento
técnico para superar a posição ideológica.
Talvez por ter permanecido mais tempo em campo e ter tido contato direto com
o Movimento e o apoio interessado de D. Eugênio, Alceu Ferraro é o que mais faz uso
de fontes históricas em seu textos, com grande variedade documental, relatórios dos
SAR, notícias do Jornal Diocesano “A Ordem”, decretos e cartas de D. Eugênio. Camargo
limita-se as fontes mais oficiais e genéricas do Movimento de Natal, tais como falas de
D. Eugênio em eventos nacionais, documentos emitidos pela CNBB, entre outros.
As narrativas dos autores se assemelham em personagens e eventos. D. Eugênio
e o SAR são protagonistas da narração. A escrita de Ferraro é mais detalhada e emotiva,
enquanto a de Camargo é mais sintética e analítica. O ponto de virada na narrativa dos
autores diverge, para Camargo é a seca de 1958 que marca a consolidação do
Movimento de Natal. Já para Ferraro a I Semana Rural é o ponto de viragem onde as
ações isoladas da Igreja de Natal passam a se integrar em torno de um Movimento.
Ambos concordam que o início do seu objeto é a saída dos americanos de Natal após a
II Grande Guerra Mundial.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
398

Uma importante divergência entre os autores é a interpretação sobre a


influência das Ligas Camponesas na Sindicalização Rural promovida pela Arquidiocese.
Para Ferraro não há uma relação entre um movimento e outro, tendo em vista que o
contexto do Rio Grande do Norte era muito particular, daí a originalidade do
sindicalismo rural promovido na área. O autor parece se preocupar com uma “pureza”
do movimento que atende a demandas internas da igreja e externas da própria
sociedade rio-grandense sem ser atingido pelas ações da esquerda ligada ao
comunismo. Camargo por outro lado defende que o processo de sindicalização foi uma
resposta direta ao avanço das Ligas Camponesas no Nordeste. Acerca disto D. Eugênio
afirma:

Com sua ideologia e os métodos, as Ligas Camponesas produziram


reações motivadas pelo medo de mudanças radicais. Houve uma grande
resistência por parte do latifundiários a qualquer tipo de união dos
trabalhadores rurais. Com o advento das Ligas agressivas, surgiu
também mais abertura entre muitos proprietários para um
sindicalismo democrático. Dentro da Igreja, muitas pessoas abriram
seus olhos para a sua obrigação de dá uma resposta cristãs justas
reivindicações dos trabalhadores. Ela se envolveu no apoio e na
orientação dos sindicatos cristãos, com enorme sucesso. E é irônico o
fato de os marxistas terem assim motivado tanto o trabalho
construtivo, oposto ao que eles tinham em mente (AMMANN et al,
2015:115)

Fica assim claro que a tese formulada por Camargo é a mais próxima da
concebida por D. Eugênio. Os Sindicatos Rurais católicos mesmo de forma indireta se
relacionam com as Ligas Camponesas enquanto concorrentes.
Os autores em seus livros trabalham muito com a perspectiva do espaço em
escala numa relação centro-periferia bem complexa. Ferraro se esforça pra mostrar
que a experiência de Natal está sintonizada com a influência que esta recebe da Santa
Sé que durante o período que vai de 1930-1960 começa a se voltar progressivamente
para o social. Camargo de maneira mais engenhosa mostra que esta relação do centro-
periferia é mais reflexiva e ativa, ao demostrar que o Movimento de Natal influencia o
poder local e nacional, por exemplo, com a criação do Movimento de Educação de Base
(MEB) e outras políticas públicas. Mas também que o mesmo é resultado direto do
influxo da doutrina social da igreja católica e dos conhecimentos científicos gerados
pelas pesquisas na área social.
Alceu Ferraro formula três hipóteses a serem testadas:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
399

I HIPÓTESE: As atividades temporais empreendidas pela Igreja, através


do SAR, no meio rural da Arquidiocese de Natal, demonstram-se
funcionais ao desenvolvimento, seja 1) conformando concepções e
atitudes com padrões mais funcionais ou mais compatíveis com os
objetivos e o processo de desenvolvimento, seja 2) conformando com
idênticos padrões o comportamento dos indivíduos atingidos e , em
consequência e na medida disto, desencadeando, no mesmo sentido, um
processo de mudança nos sistemas tradicionais de relações do homem
com os meios físicos tradicionais de relações homem com os meios
físico, social e cultural, seja 3) criando condições de vida já identificáveis
com os próprios objetivos do desenvolvimento.
[...]
II HIPÓTESE – O rendimento do líder associado foi maior do que o
rendimento do líder isolado ou não associado (FERRARO, 1968: 7-8).

Posteriormente a conclusão da pesquisa que confrontou as hipóteses anteriores


Ferraro formula uma nova hipótese

III HIPOTESE: Por parte do Movimento e especialmente dos líderes, de


cujas atividades temporais empreendidas no meio rural ficou
demonstrada a funcionalidade do desenvolvimento, corresponde uma
atividade inovadora, motivada por valores e não por interesses
particulares de grupos religiosos, de orientação profética e não ética,
atitude esta resultante de um processo de desinculturação dos valores
cristãos e resultante num descomprometimento do grupo religioso
com “status quo” social e religioso e numa posição em favor da
mudança tanto no setor temporal como no religiosos (FERRARO,1968:
119).

Para checar esta nova hipótese ele faz uso de análise documental do jornal “A
Ordem”, do arquivo privado de D. Eugênio que lhe dá livre acesso, da documentação do
Secretariado Arquidiocesano de Pastoral e do Secretariado Regional dos Bispos do
Nordeste. Além de usar a própria experiência de 2 anos acompanhado em lócus o
desenvolvimento do trabalho do Movimento de Natal. Daí o maior nível de
detalhamento que ele faz se comparado a Camargo.
A hipótese formulada por Camargo é que o Movimento de Natal é uma
expressão de Catolicismo de tipo internalizado em uma área de subdesenvolvimento. O
conceito de internalização é fulcral para a análise deste autor. O catolicismo
internalizado se trata da adesão consciente ao catolicismo de maneira a dá sentido e
organizar as transformações sociais (CAMARGO,1971:23). Esta tendência está
intimamente ligada as situações sociais e fases históricas do desenvolvimento que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
400

colocam as pessoas diante das transformações da modernidade que não se pode


escapar. A internalização é fator crucial para a individualização, que na visão de
Camargo era indispensável para o desenvolvimento pleno da democracia. A abordagem
tipológica de inspiração weberiana é adotada por ele na tentativa de conseguir
relacionar as mudanças religiosas as mudanças na estrutura social propiciada pela
modernização. Sua tipologia leva em conta muito mais as ações e comportamentos
adotados do que as expressões utilizadas. Por isso que ao relatar as entrevistas o autor
confronta discurso e comportamento apresentado, pois as manifestações tipológicas
se apresentam na ação e não na fala.
Outra linha conceitual importante na obra de Camargo é o emprego do conceito
de ideologia, tão caro a sua época. O autor adota a concepção de ideologia enquanto
conjunto de valores, formas e conhecimentos que orientam a compreensão da
realidade e as estratégias de ação do Movimento de Natal (CAMARGO, 1972:79). Por
ser tratar de um Movimento marcado pelo pragmatismo não houve muitas elaborações
teóricas, sendo as ideologias destes caracterizada pelo que o autor chamou de
“concreção valorativa” (CAMARGO, 1971:81). Trata-se de uma tentativa do Movimento
de Natal de construir uma coerência entre valores e normas de conduta social. O
pensamento social da Igreja é portanto uma versão autorizada e formal do sistema de
valores católicos adaptados à modernidade, uma alternativa social de inspiração cristã.
A originalidade do Movimento de Natal é o seu conteúdo ideológico que fornece
uma chave de leitura da miséria como inconcebível diante dos valores cristão, a
tornando intolerável e desejando enfrenta-la. Esta mudança é compreendida como a
igreja que passa a não só cuidar de sua alma, mas também do seu corpo, ou seja, da
espiritualidade e do social. Este conteúdo se elabora de maneira exponencial saindo da
ideia de superação da miséria como caminho para evangelização e chegando a
compreensão de desenvolvimento humano como parte do plano divino. Contudo a
ideologia do Movimento é limitada aos interesses, valores e ortodoxia sintonizada com
os objetivos gerais da Igreja e sua missão salvacionista do mundo.
Alceu Ferraro ensaia e Cândido Camargo enfrenta diretamente a localização do
Movimento de Natal no espectro político brasileiro. As estruturas sociais da época não
possibilitaram a Ferraro tratar tão diretamente do caráter político do Movimento, vide
o episódio que apresentamos ao tratar da influência de 1964 na metodologia do mesmo,
sem falar que na época em que ele escreve acabara de ser lançado o AI-5 e os líderes

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
401

do Movimento estavam sendo vigiados e/ou perseguidos, quando não presos. Camargo
por outro lado estava apoiado em organismos internacionais e D. Arns que enfrentava
vigorosamente a Ditadura. O contexto sócio histórico e o lugar social de produção de
Camargo o permitiu liberdade para tratar do tema. O cientista social localiza o
Movimento de Natal no quadro ideológico brasileiro como centro reformista, que critica
tanto o comunismo ateu quanto o capitalismo liberal e o anticomunismo que barre a
mudança social (CAMARGO,1971: 97). O Movimento de Natal é inovador no local e
conservador no nacional, não radical e consciente de seu centrismo. D. Eugênio em
entrevista concedida ao sociólogo americano e amigo Michael Murphy, quando
interpelado sobre a posição da igreja na luta ideológica assim responde:

Nossa preocupação não é a luta contra o comunismo. A igreja faz a


pregação de reformas sociais. Queremos construir uma sociedade
melhor no Brasil. É um esforço construtivo, repito. Isso é muitas vezes
incompreendido. Certamente a Igreja condena veementemente o
comunismo. Condena-o fortemente, assim como o capitalismo liberal.
Mas nossa preocupação não é o de primordialmente fazer
condenações. Pelo contrário, queremos estabelecer e concretizar, na
prática, uma doutrina social positiva. Acreditamos ser essa a melhor
maneira de impedir o crescimento da influência do comunismo e o
entricheiramento da ordem liberal capitalista injusta.[...]
Eu disse que essa posição é delicada. Eu mesmo tenho sido chamado de
comunista e encrenqueiro. Até, recentemente, na Assembleia
Legislativa. Por outro lado, tem livro escrito por extremistas de
esquerda onde tenho sido acusado de ser um dos três maiores
reacionários do Brasil. Cada lado enxerga como lhe convém, através dos
seus próprios óculos coloridos, sem objetividade. [...] (AMMANN et
al.,2015:48-49).

Ao realizarem as comparações entre as comunidades os autores partiram de


parâmetros muito similares que podemos a grosso modo categorizar como relações de
trabalho; organização e controle social; participação política e questões de gênero. As
conclusões são próximas, mas distintas. Ambos concordam que nas comunidades onde
o Movimento de Natal atuou houve mudanças, ainda que superficiais, nas concepções
de caridade mais voltada para um amor ao próximo no sentido de colaboração social;
maior organização e participação social. Camargo conclui que a ação do Movimento de
Natal não foi suficiente para romper com o catolicismo tradicional caracterizado por
uma ação inconsciente no meio social, fortemente enraizado nas tradições e
manutenção das estruturas sociais. Embora o Movimento seja uma tentativa de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
402

implementar uma internalização do catolicismo não logrou êxito, tendo em vista que o
seu público alvo só o compreendia enquanto instrução clerical e não de maneira
autônoma e consciente. Já Ferraro diante dos resultados obtidos, de maneira animada,
conclui que o a ação pastoral da Diocese de Natal conseguiu nas áreas atingidas de
maneira funcional fomentar o desenvolvimento de espaços subdesenvolvidos.
As conclusões são guiadas não apenas pelos dados empíricos adquiridos com a
pesquisa, mas também pelos interesses pessoais dos autores. Ferraro buscava uma
nova forma de vivenciar a espiritualidade que se adequasse as necessidades modernas
de transformação social, o que encontra no Movimento de Natal, por isso uma
conclusão tão empolgada e o estimula a formular uma nova hipótese que permita
discutir a pastorialidade da ação social a partir da experiência potiguar.
Camargo por sua vez em uma conclusão mais comedida, porém esperançosa,
assim a ela chega pois buscava caminhos mais eficazes de promover uma ruptura com
as estruturas sociais tradicionais. Contudo ele apenas encontra na Igreja potiguar uma
inspiração para pensar uma ação transformadora mais profunda. “Igreja e
desenvolvimento” marca a reaproximação dele com o catolicismo que frutificará em
duas de suas obras mais significativas “Católicos, protestantes, espíritas” (1973) e São
Paulo 1975: crescimento e pobreza (1975), resultado da parceria de Camargo com D.
Arns.
Ao comparar as bibliografias das obras um fato chama atenção, a Camargo não
cita o trabalho de Ferraro, que é a primeira produção acadêmica de folego sobre o
Movimento. Isto pode ser explicado pela própria conjuntura da época como mostra
Peixoto:

Afinal, Ferraro chegou ao Brasil poucos dias de acontecer o Golpe


Militar de 1964 [...] Na manhã mesmo do anúncio do Ato Institucional nº
5 conseguiu retirar duzentos exemplares de Igreja e Desenvolvimento
da gráfica onde seguia a sua impressão; auxiliado por simpatizantes de
sua causa nos Correios, logrou enviar para Roma boa parte dos livros
que lhe restaram, onde estavam sendo aguardados para cumprimento
da exigência de seu doutorado.
A maior parte dos exemplares retirados da gráfica ficou escondida num
porão em Natal para serem resgatados pelo autor apenas vinte anos
depois. Apesar disto tudo, Igreja e Desenvolvimento foi passado de mão
em mão, e, dos militantes do Movimento de Natal até os pesquisadores,
acabando por se tornar um livro bastante citado nas áreas da História
do Catolicismo, da Pedagogia, das Ciências Sociais e da História do Rio
Grande do Norte.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
403

[...]
E, passados mais de cinquenta anos da sua publicação, poucas pessoas
leram ou mesmo pousaram suas mãos sobre um exemplar de Igreja e
Desenvolvimento – O Movimento de Natal, mas, ainda assim, este livro
permanece sendo lembrado e citado (PEIXOTO, 2017:4)

A ausência na bibliografia deve-se a esta impossibilidade de acesso a publicação.


O presente artigo mesmo é escrito baseado na reprografia da obra de Ferraro
disponibilizada no Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de Natal que foi doado por
um ex-participante do Movimento. Se na atualidade já há dificuldade de entrar em
contato com “Igreja e desenvolvimento – O Movimento de Natal”, imagine em plena
Ditadura Civil-Militar.
A bibliografia de Camargo é mais encorpada que a de Ferraro. Isto se deve ao
esforço do sociólogo em fazer de sua obra um exercício de construção de referencial
teórico-metodológico. Por sua vez a bibliografia de Ferraro se concentra nas produções
monográficas e relatórios de estágios produzidos pelos alunos e alunas da Escola de
Serviço Social de Natal, frutos do próprio Movimento de Natal. A única referência
bibliográfica compartilhadas por eles é a Manuel Diégues Júnior, especificamente seu
livro “Regiões Culturais do Brasil “(1960) no qual se apoiam para contextualizar o
Nordeste brasileiro.

CONCLUSÕES
Ao fazer a análise comparativa das obras de Alceu Ferraro e Cândido Camargo
sobre o Movimento de Natal, evidenciar seus contextos de produção e interesses é
possível concluir que:
1. A historiografia sobre o Movimento de Natal está
circunscrita num conjunto de interesses da Igreja Católica e de
organismo internacionais laicos preocupados em compreender a
efervescência das mudanças sociais em curso no período;
2. Os produtos analisados são marcados pelos contextos
pessoais e sociais dos autores que incidem diretamente na obra e
em suas conclusões.

REFERÊNCIAS
AMMANN, S.B. el al. Dom Eugênio Sales em Natal: Fé e Política. Natal: EDUFRN, 2015

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
404

CALDEIRA, Rodrigo Coppe. A recepção do concílio Vaticano II como objeto do


historiador. XXIX Simpósio Nacional de História. Brasília,2017.

CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Igreja e Desenvolvimento. São Paulo:


CEBRAP, 1971.

CRUZ, Dalcy da Silva. Igreja Católica no RN – Participação Política e Social nos anos
60. In: ANDRADE, Ilza Araújo Leão de. (Org.). Igreja e Política no RN. Natal: Sebo
Vermelho, 2010. 41-91p.

FERRARO, Alceu. Igreja e Desenvolvimento – O Movimento de Natal. Natal:


Fundação José Augusto, 1968.

HERRERA, Sonia Elizabeth Reyes. Reconstrução do processo de formação e


desenvolvimento da área de estudos da religião nas ciências sociais brasileiras.
Porto Alegre: UFRGS, 2004.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo:


Brasiliense,1989.

PEIXOTO, Renato Amado. O Movimento de Natal e a gênese da colusão entre


catolicismo e marxismo em meados da década de 1950. XXIX Simpósio Nacional de
História. Brasília,2017

WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educar para transformar: Educação Popular, Igreja


Católica e Política no Movimento de Educação de Base. Petrópolis: Vozes, 1984.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
405

SERTÕES DE NUNCA MAIS


TEMPORALIDADE NOS ESCRITOS DE OSWALDO
LAMARTINE DE FARIA SOBRE OS SERTÕES DO SERIDÓ

Eduardo K. de Medeiros354
Orientador: Prof. Dr. Evandro Santos

INTRODUÇÃO
Esta apresentação é um resultado parcial da pesquisa bibliográfica vinculada à
bolsa de Iniciação Científica oferecida pela Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPESQ) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) sobre histórias dos sertões do
Seridó voltados para estudos historiográficos da memória.
Interessados em entender percepções e reflexos de obras dos memorialistas
potiguares que escreveram e repercutiram com maior alcance os sertões do Seridó no
século XX – em termos geográficos, pela classificação do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), Mesorregião central do Rio Grande do Norte (MACÊDO,
2012, p. 20) –, escolhemos a obra do escritor sertanista Oswaldo Lamartine de Faria
por sua expressividade nos ambientes intelectuais e literários. Apesar do
reconhecimento público de seus trabalhos, trata-se ainda de um autor pouco estudado
pela academia, o que motiva a elaboração e exploração de problematizações em
diferentes frentes de pesquisa. No presente esforço, voltamos nossa atenção à
temporalidade experimentada nas narrativas oswaldianas, buscando identificar as
características que marcam as dimensões de tempo: passado/presente/futuro.
Por se tratar de uma obra diversa, construída ao longo de quase sessenta anos
de produções, composta por uma grande diversidade de textos – livros, discursos,
artigos periódicos, correspondências publicadas, apresentação e organização de livros
de outros autores, entrevistas, ensaios fotográficos, vídeos documentários –, ainda não
nos foi possível acessar todo o conjunto da obra. A pesquisa explorou alguns textos
bibliográficos e audiovisuais do e sobre o autor aos quais se fez possível o acesso até
o momento da elaboração desta apresentação e que aparecem referenciados ao final
deste texto. Porém, decidi concentrar-me na coletânea de ensaios Sertões do Seridó
(1980), cuja composição acredito ser representativa das características principais de

354 Graduando em História – UFRN/CERES/Campus de Caicó.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
406

suas narrativas sobre o Seridó no que diz respeito aos temas, fontes e estilo, servindo,
portanto, aos interesses da pesquisa. Apesar dessa preferência, não foi descartada a
consulta a outros textos.
Partiremos da noção de regimes de historicidade, proposta por François Hartog,
para colocar em foco os modos de relação do autor com o tempo (2014, p. 29);
consultaremos ainda Enzo Traverso (2012) para pensarmos os usos do passado
efetuados pela memória.

APRESENTAÇÃO DO AUTOR
Oswaldo Lamartine de Faria nasceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte
(RN), a 15 de novembro de 1919 – coincidindo com o aniversário de trinta anos da ainda
jovem República brasileira. Filho de uma tradicional família cujas raízes genealógicas
remetem à colonização e povoamento dos sertões do Seridó – recorte espacial
específico dos sertões do Rio Grande do Norte, na concepção oswaldiana –, sua mãe,
Silvina Bezerra de Faria, foi a filha caçula do Cel. Silvino Bezerra de Araújo Galvão, chefe
político de Acari/RN. Seu pai, Juvenal Lamartine, foi ex-governador do RN nos anos de
1928 a 1930, destituído em consequência do golpe de estado liderado por Getúlio
Vargas. Sua família se constitui como uma oligarquia que construiu poder e riquezas
ligadas à grande propriedade rural algodoeira-pecuária, cujas memórias são, ainda
hoje, referência nos espaços públicos e escritos potiguares.
Viveu sua infância na capital, cidade litorânea, que avançava em sua urbanização.
Despede-se do RN em 1931 (tinha então 12 anos de idade), para residir e estudar nos
estados de Pernambuco (PE), Rio de Janeiro (RJ), e Minas Gerais (MG), onde forma-se
na Escola Superior de Agricultura de Lavras,355 em 1940. Trabalhou e administrou
grandes fazendas e colônias agrícolas no RN, RJ e Maranhão (MA). Em 1955, Oswaldo
Lamartine ingressa no Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e vai para Fortaleza/CE,
sendo transferido para o BNB no Rio de Janeiro, em 1957 – no qual se aposentará em
1979. Viverá no Rio de Janeiro até 1996, quando volta em definitivo para o RN, à Fazenda
Acauã, situada na região Agreste. Em 2001 toma posse na Academia Norte-Rio-
Grandense de Letras (ANRL), e em 2005 recebe o título de doutor honoris causa pela

355 “Para essa escola iriam vários filhos de cotonicultores mais afortunados” (MACÊDO, 2012, p. 202).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
407

UFRN. Oswaldo se mata em 28 de março de 2007, com um tiro no peito, em um flat, na


cidade de Natal, onde escolheu viver os últimos anos de sua vida (CASTRO, 2015).
Sujeito cujas vivências estão amplamente localizadas em capitais e outras
importantes cidades do país, esta breve biografia nos serve para pensar os vínculos
que Oswaldo Lamartine constrói com os sertões do Seridó em suas narrativas orais e
escritas no decorrer de sua vida e consequentemente a imagem que se constrói
publicamente a partir destas narrativas.

SERTÕES DO SERIDÓ
A obra principal sobre a qual realizo minha leitura é a coletânea Sertões do
Seridó, impresso pelo então Centro Gráfico do Senado Federal (1980), reúne cinco
ensaios da autoria de Oswaldo Lamartine de Faria. Sertanista condecorado com o título
de pesquisador emérito pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS),
consagrado com o título de doutor honoris causa pela UFRN, imortalizado na literatura
potiguar pela ANRL, o livro, pode-se dizer, é representativo dos caracteres que marcam
a obra de Oswaldo Lamartine por seus métodos e fontes de pesquisa, estilo narrativo
e saberes orquestrados.
A disposição dos ensaios na coletânea é organizada em ordem cronológica
decrescente – entenda-se do mais atual ao mais antigo. O primeiro, Açudes dos sertões
do Seridó, foi publicado inicialmente em Natal, no ano de 1978, pela Fundação José
Augusto, descreve evolução das práticas de açudagem e como ela aponta para uma vida
de fertilidade. O segundo ensaio, Conservação de alimentos nos sertões do Seridó, foi
publicado pela primeira vez em 1965, na cidade do Recife, editado pelo IJNPS, descreve
técnicas de conservação das culturas alimentares características no Seridó. No terceiro
ensaio, Algumas abelhas dos sertões do Seridó, publicado pela primeira vez em 1964,
editado pelo Instituto de Antropologia da UFRN, escrito em parceria com o sobrinho
Hypérides Lamartine, cataloga a apifauna e descreve usos da apicultura local, além de
denunciar a quase extinção das abelhas no Seridó. Intitulado ABC da pescaria de açudes
no Seridó (IJNPS, 1961), o quarto ensaio explica técnicas e tecnologias da pescaria
empregadas nas ribeiras do Seridó, escrito no gênero abecedário, em prosa. O quinto e
último ensaio é A caça nos sertões do Seridó, inicialmente publicado no ano de 1961,
pelo Serviço de Informação Agrícola do Rio de Janeiro – escrito pelo menos desde o ano
de 1958. Ressalta a caça nos sertões do Seridó como necessária aos fazendeiros em

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
408

defesa do rebanho contra os perigosos carnívoros, principalmente a onça; registra


ainda a bravura de caçadores que ficaram marcados na memória local e folhetos de
cordel antes de descrever os instrumentos e métodos de caça utilizados (CASTRO,
2015, p. 142–160).
A abordagem dos temas centrais é fortemente marcada pela descrição de
modos de fazer. Em cada ensaio, à guisa de introdução, é recorrente uma
contextualização espacial do Seridó abordado pelo autor. É principalmente – embora
não unicamente – neste esforço em situar o leitor sobre a região do Seridó que Oswaldo
Lamartine busca localizar a si mesmo.

SERTÕES DE NUNCA MAIS


Os ensaios presentes na coletânea Sertões do Seridó foram escritos no decorrer
de pelo menos vinte anos (1958-78). Considerando esse recorte temporal, realizei uma
leitura cronológica dos textos – lendo-os, portanto, na ordem inversa a que se
apresenta no livro –, com o intuito de verificar possíveis diferenciações na construção
do “projeto literário” do autor, no que obtive pouco sucesso. Nesse sentido, as
impressões mais marcantes foram, em primeiro lugar, o cuidado que o autor parece
empreender em relação ao conteúdo historiográfico, até certa altura do texto de A caça
nos sertões do Seridó. Nos três primeiros tópicos deste ensaio (1. As primeiras datas; 2.
Os currais; 3. A raiz de algodão) é recorrente o uso de citações e referências à
historiografia, assim como questionamentos e contraposição de argumentos de
autores diferentes, ou seja, Oswaldo Lamartine procede à crítica de suas fontes e à
discussão historiográfica. A partir do tópico “4. O Sertão de agora”, esse cuidado parece
arrefecer, e não se faz mais notar da mesma forma nos ensaios posteriores. Em sentido
contrário, aumenta o uso de versos da literatura poética, fontes orais e memórias, além
da atualizada literatura técnica em agronomia.
A segunda impressão está mais diretamente relacionada ao interesse do nosso
objetivo, diz respeito às ocorrências das categorias temporais: passado, presente e
futuro. Fazemos assim uso da noção de regime de historicidade, proposta por François
Hartog, como “uma maneira de engendrar passado, presente e futuro ou de compor um
misto das três categorias” (HARTOG, 2014, p. 11).
Se por um lado me pareceu confuso dissociar passado e presente, assim como
indicar, de imediato, uma categoria predominante, por outro lado, foi notável o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
409

decrescimento de menções ao tempo futuro, sendo o ensaio mais antigo o de maior


volume de ocorrências, e o mais atual aquele que isenta-se do futuro. É possível
também perceber afetos diferentes em diferentes menções ao futuro. Mesmo que em
tom desprovido de ânimos mais intensos, o futuro aparece por vezes como uma
esperança – uma “esperança minguada” (FARIA, 1980, p. 167), é bem verdade – em
instituições públicas e especializadas que, no entender do autor, poderiam fazer do
Seridó um espaço de farturas. Em outros momentos, porém, as previsões são
pessimistas em relação às heranças sertanejas, quanto à sua flora e fauna – e ainda
pior quando se trata da cidade.

Os bangalôs crescendo nas ruas sertanejas – ruas já calçadas de pedra


e clareadas à eletricidade; barulhentas pela boca “estrangeira” do rádio.
As estradas ganhando o chão das caatingas – zoando caminhões.
Caminhão que carregava algodão e depois minério, agora também
carreando “araras”. O sertão crescendo e se descaracterizando,
parecendo hoje ter vergonha de ontem (FARIA, 1980, p. 170).

Oswaldo Lamartine soa contraditório em diversos momentos. A modernidade


que alcança e descaracteriza o sertão em A caça nos sertões do Seridó (1961), será
colocada em tonalidades positivas em outros ensaios – por exemplo, em Conservação
de Alimentos nos sertões do Seridó (1965) – pelos melhoramentos que provoca ao
reduzir as distâncias e conectar os mercados entre os sertões e as capitais de
diferentes estados, diversificando os produtos das feiras locais e espalhando os
produtos sertanejos para além de suas porteiras. E por mais que o barulho dos motores
torne a incomodar em Açudes dos sertões do Seridó (1978), a construção dos grandes
açudes do DNOCS, também vista de forma positiva pelo autor, deverá muito ao
caminhão e estradas. Mas nenhum benefício compensa ou exime a definitiva
responsabilidade do contato entre o “mundo sertanejo” e o “mundo moderno”: quem
acabou com o sertão foi a estrada de rodagem, o telégrafo, o rádio e a televisão
(OSWALDO, 2011, 9 min).
O conflito que o perturba e provoca posicionamentos confusos parece inserir-se
na discussão entre a modernidade e a tradição. No documentário “Oswaldo Lamartine:
tinta de pinhão-bravo”, que apresenta trechos de uma entrevista realizada em
Natal/RN, a 21 de junho de 2005, o autor comenta que “não existe mais sertão”
(OSWALDO, 2015, 25 min), sugerindo que o processo de modernização extinguiu o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
410

espaço sertanejo, pois este é pensado como lugar de tradição: é a sifilização de que
falava Gilberto Freyre. É que os valores são outros (OSWALDO, 2015, 27 min).
Em Cartas e cartões de Oswaldo Lamartine, Veríssimo de Melo apresenta um
texto lido por Oswaldo Lamartine pelo telefone, em 1977, para o prefeito de Acari,
Silvino Bezerra (Bigodão), quando da inauguração do DDD para aquela cidade. Neste
texto o autor deseja que os acarienses “falem com os 4 aceiros do mundo, mas
guardem, religiosamente, o mundo de todos vocês” (MELO, 1995, p. 69), e ao descrever
esse mundo que seria de todos os acarienses cita um par de ‘homens de outrora’ que,
não por acaso, são seus parentes e representantes daquela oligarquia decaída da qual
faz parte. Dentre eles estão:

O mando manso e presente do meu avô – Silvino Bezerra – 50 anos sem


perder eleição. A memória de José Augusto Bezerra de Medeiros – 50
anos a serviço do sertão [...] Otávio Lamartine – vida a serviço do
algodão [...] São todos eles e muitos outros, paisagem e memória de
todos nós (MELO, 1995, p. 69-70).

É representativo que esta mensagem cuja oportunidade se faz pela adesão a


mais um aspecto da modernidade que se instala no sertão do Seridó, seja
essencialmente um apelo pela preservação de uma memória oligárquica, que Oswaldo
Lamartine inscreve e impõe à paisagem e à memória acariense, pois “força e
reconhecimento não são dados fixos e imutáveis, evoluem, consolidam-se ou
fragilizam-se, contribuindo em permanência para a redefinição do estatuto da
memória” (TRAVERSO, 2012, p. 72).
Não é de se admirar que a discussão entre o tradicional e o moderno – ou suas
ressonâncias – que também perpassa a década de 1930, exerça influência sobre
Oswaldo Lamartine. Além do marco histórico que a data de 1930 representa para o
contexto brasileiro com o golpe de estado liderado por Getúlio Vargas – e toda a
bagagem política, ideológica, cultural, material que o evento carrega consigo – a data
também marca a vida pessoal do garoto Oswaldo que, de imediato, tem o pai, então
governador do RN, destituído e exilado fora do país; na escola, o garoto é
continuamente exposto às violências de outros estudantes e por isso transfere-se de
diferentes escolas, em diferentes estados (PE e RJ) até o ponto de abandonar o ensino
básico e, posteriormente, entrar para uma instituição de ensino técnico em Lavras (MG);
mas antes disso, ocorre ainda o assassinato de seu irmão mais velho, no ano de 1935,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
411

ainda em decorrência de disputas políticas ligadas ao golpe de 1930. Este marco, ou


esta marca, manifesta-se constantemente nos textos do sertanista como período que
tenciona o que o autor entende como a decadência do sertão. A partir daí, há em suas
narrativas não uma ruptura, mas o contínuo processo de extinção da fauna, da flora, da
cultura material, de sociabilidades, enfim, de bens e valores simbólicos que são
tradicionalmente mobilizados para caracterizar o sertão.
Como já indicado anteriormente, me pareceu confuso identificar, de imediato,
uma categoria de tempo prevalecente na narrativa oswaldiana. Apesar de sua obra ter
o objetivo declarado de “fazer um registro de etnografia” (OSWALDO, 2015, 2 min), de
anotar costumes e práticas que estão se perdendo – ou seja, em vias de extinção, mas
ainda em uso, portanto, presente –, confluem na narrativa diferentes expressões
temporais (tempo histórico, tempo generalista, tempo natural) que podem mesmo
confundir o leitor sobre o que ficou no âmbito do “nunca mais”.

A imprecisão crônica do termo ‘presente’ sugere que ele não se situa,


talvez nem mesmo possa se situar, no âmbito do conceituável. Certo é
que, indiferente a tais dificuldades, o mundo lá fora segue seu curso.
Com isso se quer dizer que algum tipo de distinção entre passado,
presente e futuro sempre é intersubjetivamente construído (PEREIRA;
MATA, 2012, p. 13; grifos do autor).

Senti então a necessidade de “delimitar o presente oswaldiano” a partir do


nascimento do próprio autor para conseguir melhor me orientar na leitura em relação
às suas categorias de temporalidade. Ao estabelecer um ponto de orientação consegui
lidar melhor com expressões como “dantes”, “para trás”, “de primeiro”, relacionando-
as, concomitantemente, com algum ‘evento’ – uma tecnologia, uma atividade
econômica, ou qualquer referencial histórico que o texto oferecesse – e com a posição
do autor, e assim me reconhecer lendo o passado ou presente de Oswaldo Lamartine.
O passado é tão recorrentemente convocado, e de formas tão bem elaboradas,
que consegue provocar intensas sensações no leitor, como se não só o autor tivesse
realmente vivenciado “aquele tempo” mas também o leitor o pudesse sentir afeta-lo,
agora! Em uma passagem sobre a colonização e povoamento dos sertões do Seridó o
autor escreve, mobilizando discursos que há muito perduram nas narrativas sobre os
sertões nordestinos (os flagelos da seca, a vida árdua no sertão) com o vocabulário que
lhe é singular imprimindo uma prosa em tonalidades de uma poética melancólica:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
412

E principia a luta das cacimbas com o homem cavando e depois


cavoucando o chão em busca do molhado que mais se esconde nas
entranhas da terra. É tempo das vacas magras, das esperanças e das
desesperanças. Esgotado o recurso derradeiro, quando a derradeira
cacimba minguada em água deu no barro de salão, cortado foi o último
feixe de ração e o gado em passos trumbicados se deixa ficar a mugir
pelos pátios das casas ou se afoita, pela caatinga e sem forças caído se
faz carniça viva como pasto de urubus. Resta o amolar das facas para
esfolar os couros, juntar os teréns, atramelar as portas e ganhar as
estradas no ciganismo das procissões flageladas no rumo das
pancadas do mar. Assim foi o sertão e assim é para os minguados de
recursos de água que não ergueram açudes (FARIA, 1980, p. 25; grifo
do autor).

Como se Oswaldo Lamartine insistisse em carregar um passado convalescente


em uma antiga padiola, mimando-o numa rede nas conversas no alpendre, as mínimas
permanências356 podem servir para o autor criar uma situação que mantenha o elo, o
passado presente, não deixando-o passar, estendendo-o o máximo possível,
“anacronizando o passado no presente” (CARDOSO, 2012, p. 126).

Localizar o lugar onde se dá a “emergência” do testemunho na história,


o seu “ponto de surgimento”, é realizar o movimento de uma
localização temporal. Essa noção de lugar não é espacial, mas é o “sítio”
de um acontecimento decisivo na história. O surgimento do testemunho
cria esse lugar: uma dimensão temporal, isto é, histórica, pela tensão
entre tempos produzida a partir dessa emergência. É dentro desse
parâmetro que procuro trabalhar a noção do lugar de “um passado que
não passa”, como o do risco de desaparecimento de uma experiência
histórica, seja em virtude de uma ruptura intempestiva, seguida de uma
normalização cuja condição é a recusa da experiência, seja pela
interdição provocada por um tipo de força mais violenta, seja por uma
diluição devido à passagem do tempo, como se este adquirisse uma
dimensão inercial que produziria o seu esquecimento (CARDOSO, 2012,
p. 125-6).

Porém, essas permanências, por si só, surtem pouco efeito, elas precisam ser
subjetivadas. O sertão de nunca mais, o velho sertão, o sertão primitivo, todos aqueles
distantes sertões, são apropriados na memória dos mais velhos, nos versos de um
folheto de cordel, na aproximação afetiva com a ‘literatura regionalista’, nos
provérbios, enfim, pelo agenciamento de recursos textuais, afetos e sensibilidades
reelaborados pela narrativa do autor e fixados em seu próprio presente.

356Para as distâncias mais pequenas, de poucas braças – arremates ou carreto de pedras – de comum
se valiam e ainda se valem da padiola (FARIA, 1980, p. 30).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
413

O meu pai foi um grande memorialista, tinha uma memória fabulosa, e


os amigos que o visitavam, assíduos e fieis, eram geralmente
sertanejos e conversavam coisas do sertão. E ele puxava conversa
sobre o sertão. E aquilo eu ouvi; e aquilo foi se sedimentando em mim
[...] Naquele tempo não tinha luz elétrica, era o querosene, o candeeiro,
e de noite, acabava de tomar a qualhada, armava a rede, e eu ouvia
aqueles velhos conversando, era a evocação... [corte de edição no vídeo]
(OSWALDO, 2011).

Era e ainda é a evocação de um passado editado a partir de imagens vivas nos


discursos remanescentes, que constitui paisagens, cenários, sociabilidades, culturas
material e imaterial, valores, memórias sobre o Seridó, sobre o sertão como lugar de
memória.

tal «contaminação» da historiografia pela memória se revelou


extremamente frutuosa, não deve no entanto ocultar uma observação
metodológica tão banal como essencial: a memória singulariza a
história, na medida em que é profundamente subjectiva, selectiva,
muitas vezes desrespeitadora da cronologia, indiferente às
reconstruções de conjunto e às racionalizações globais [...] O conjunto
das recordações forma uma parte da memória [...] que o historiador não
pode ignorar e que deve respeitar, que deve explorar e compreender,
mas à qual não se deve submeter. O historiador não tem o direito de
transformar a singularidade dessa memória num prisma normativo da
escrita da história. A sua tarefa consiste muito mais na inscrição dessa
singularidade da experiência vivida num contexto histórico global,
tentando esclarecer as causas, as condições, as estruturas, a dinâmica
de conjunto. Isto significa aprender com a memória depois de a passar
pelo crivo de uma verificação objetiva, empírica, documental e factual,
assinalando, se necessário for, as suas contradições e armadilhas
(TRAVERSO, 2012, p. 26-27; grifos do autor).

É esta, portanto, a importância de se voltar aos estudos historiográficos da


memória, ressaltando as singularidades e subjetividades do texto que se pretende
perenizar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta leitura de Sertões do Seridó, com a atenção voltada às singularidades das
temporalidades experimentadas na obra de Oswaldo Lamartine de Faria, pretende-se
ter colocado em discussão um tema que, pelo próprio volume de produções acadêmicas
realizadas até o momento, ainda não encontra-se definido.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
414

Em síntese, entendo que o presente prevalece na narrativa oswaldiana, embora


ele esforce-se por manter vivo um determinado passado. Enquanto suas raras
previsões acerca do futuro se contradizem a depender do momento e objetivo de sua
narrativa. Se nos ensaios com pretensões etnográficas o futuro aparece por vezes
como uma proposta de atuação política – a argumentação em favor de investimentos
públicos na construção de açudes de pequeno e médio porte em parceria com setores
privados; a defesa dos benefícios dos Serviços de Piscicultura; a proposta de ampliação
das estações experimentais para outras culturas agrícolas além da cotonicultura; a
instalação de um laboratório de minérios na região do Seridó –, em entrevistas o autor
tende a perder a moderação e arriscar críticas mais ásperas ao presente e uma visão
pessimista quanto ao futuro. Não que estes posicionamentos não ocorram em seus
ensaios, mas nestes casos me parecem melhor organizados e manifestos de forma a
justificar as propostas comentadas anteriormente, ou simplesmente tentar intervir no
ritmo e intensidade de exploração e transformação do espaço seridoense.
Estas intenções de intervenção política podem ser sentidas na fala do Pe. João
Medeiros Filho357, no documentário Oswaldo Lamartine: um príncipe do sertão:

Ele disse: nós precisamos de uma faculdade que garanta os valores


culturais, que garanta os nossos produtos, que fixe a mão-de-obra, e
que evite, na verdade, os especuladores de fora. Ele disse: daqui há
cinco anos ninguém sabe mais o que é aluá358. Daqui há dez anos vem
um gringo desses, um japonês, e vai dizer que carne-de-sol é produto
deles. Ele queria essa faculdade de gastronomia, que seria para
melhorar o padrão da alimentação, preservação dos alimentos, o
aspecto cultural, administrativo, e fixação do homem lá (OSWALDO,
2011, 15 min).

Não vejo, portanto, um princípio organizativo ou articulador bem definido acerca


das temporalidades experimentadas nas narrativas de Oswaldo Lamartine de Faria. A
narrativa é construída de forma que as subjetividades se manifestam com intensidade,
principalmente na paisagem e valores atribuídos ao sertão. Por seu caráter
memorialista, suas categorias temporais me parecem orientadas por objetivos
pontuais na tentativa de reelaborar no presente “o quintal de sua infância”.

357 O Pe. João Medeiros Filho escreveu “Seridó – séc. XIX: fazendas & livros” (1987) em co-autoria com
Oswaldo Lamartine de Faria.
358 Bebida refrigerante, feita no NE com farinha de arroz ou milho torrado fermentada com açúcar em

potes de barro, e na BA e MG com cascas de abacaxi, pelo mesmo processo (FERREIRA, 1986, p. 94).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
415

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5.ed.
São Paulo: Cortez, 2011.

AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p.
145–151, 1995.

CARDOSO, Irene. O passado que não passa: lugares históricos dos testemunhos. In:
VARELLA, Flávia [et al.] (orgs). Tempo presente & usos do passado. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2012. p. 125 – 141.

CASTRO, Marize Lima de. Areia sob os pés da alma: uma leitura da vida e obra de Oswaldo
Lamartine de Faria. 172 fl. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem, 2015.

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Sertões do Seridó. Brasília: Senado Federal [Centro Gráfico],
1980.

______. E adonde era sombra se fez sol E adonde era solo se fez chão...: Notas de
carregação para uma aula na ESAM em 1969, desengavetada em 1974. Mossoró: Coleção
Mossoroense, 1987.

______. De Cascudo para Oswaldo. Natal: Sebo Vermelho, 2005.

______. Ferro de Ribeiras do Rio Grande do Norte. Natal: Sebo Vermelho, 2009.

______. Encoramento e arreios do vaqueiro no Seridó. Natal: Sebo Vermelho, 2016.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.

HARTOG, François. O tempo desorientado: tempo e história: “Como escrever a história da


França?”. In: Anos 90. Porto Alegre, jul. de 1997. p. 7 – 22.

______. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:


Autêntica, 2014.

LAMARTINE, Juvenal. Velhos costumes do meu sertão. Natal: Fundação José Augusto,
1965.

MACÊDO, Muirakytan K. de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo


seridoense. Natal: EDUFRN; Campina Grande: eduepb, 2012.

MEDEIROS FILHO, João; FARIA, Oswaldo Lamartine de. Seridó – séc. XIX: fazendas & livros.
Rio de Janeiro: FOMAPE Editora, 1987.

MEDEIROS NETA, Olivia Morais de. Ser(Tão) Seridó: em suas cartografias espaciais. 120 fl.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História, 2007.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
416

MELO, Veríssimo de. Cartas e cartões de Oswaldo Lamartine. Natal: Fundação José
Augusto, 1995.

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal:
EDUFRN, 2007.

OSWALDO Lamartine: Um príncipe do sertão. Direção: Vilma Vitor Cruz. Produção:


NCCEN/UFRN. Roteiro: Humberto Hermenegildo de Araújo; Vilma Vitor Cruz. Natal: TVU;
SEDIS, 2011. DVD VOB File (29 min), son., color.

______. Tinta de pinhão-bravo. Direção: Vilma Vitor Cruz. Produção: NCCEN/UFRN.


Roteiro: Humberto Hermenegildo de Araújo; Vilma Vitor Cruz. Natal: TVU; SEDIS; Museu
Câmara Cascudo, 2015. DVD VOB File (36 min), son., color.

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; MATA, Sérgio da. Introdução: Transformações da


experiência do tempo e pluralização do presente. In: VARELLA, Flávia [et al.] (orgs). Tempo
presente & usos do passado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. p. 9 – 30.

SANTOS, Evandro. Estilo e temporalidades na escrita de Oswaldo Lamartine de Faria: em


busca do tempo perdido no Seridó potiguar. In: Revista Expedições. Morrinhos/GO, v. 9, n. 1,
jan./abr., p. 96-109, 2018.

SCHAMA, Simon. Introdução. In: ______. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. p. 13 – 30.

TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: história, memória e política. Lisboa: edições
unipop, 2012.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
417

UM HOMEM E A SUA TERRA: A PERSPECTIVA DA


TOPOFILIA NA TRAJETÓRIA
DE OSWALDO LAMARTINE DE FARIA

Maria Samara da Silva359

Entender como o espaço é percebido nas mais variadas sociedades é um aspecto


importante para se intender melhor suas dinâmicas de funcionamento. A este respeito
Shama (1996) na mostra de que forma as matas se tornaram na Inglaterra dos séculos
XVI a XVII um símbolo da liberdade do povo britânico e da comunhão que este
desfrutava com seus soberanos ambas invocadas pelo espírito das histórias de Robin
Hood. Enquanto isso nas florestas reais francesas as arvores eram tratadas com
ordenação e cuidado para que cada uma a seu tempo pudesse fornecer sua vida a honra
do Rei tal como qualquer um de seus súditos. Estes dois casos revelam não apenas uma
percepção da natureza como os usos que são feitos dela
Existem pessoas que possuem uma maior sensibilidade aos ritmos da natureza,
para elas esse contato com o natural é como essencial em suas vidas, já para outros,
tal elemento não representa nada além de imagens, odores e roídos, sendo assim
podemos encontrar percepções totalmente divergentes de um mesmo ambiente.
Partindo desta constatação Yi – fu Tuan (1980) constrói seu conceito de Topofilia a qual
define da seguinte forma:

A palavra “topofilia” é um neologismo, útil quando pode ser definida em


sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos
com o meio ambiente material. Estes diferem profundamente em
intensidade, sutileza e modo de expressão. A resposta ao meio
ambiente pode ser basicamente estética: em seguida, pode variar do
efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação de beleza,
igualmente fugaz, mas muito mais intensa, que é subitamente revelada.
A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra. Mas
permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que
temos para com o lugar, por ser o lar, o lugar de reminiscências e o meio
de se ganhar a vida. (1980, p. 107).

359Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Ceres Caicó.
Estudante do Programa de pós - graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
418

Para se compreender como surge esse sentimento é importante discernir


algumas condições. Em primeiro lugar a cultura que, como já comentamos nos casos
citados por Shama, estabelece muitos dos preceitos norteadores de percepção dos
espaços diferindo de sociedade para sociedade. Logo, a depender do tipo da sociedade
em que nascemos e os valores que recebemos em nossa criação teremos um
determinado tipo de atitude para com os espaços.
Como exemplo disso destacamos sociedades camponesas como tem sido o
Brasil em grande parte de sua História. Para muitos brasileiros, em especial os da
região Nordeste, distingue-se uma forte sensibilidade para os ritmos do tempo e da
terra no sentido de perceber a aproximação das chuvas e as melhores épocas para o
preparo da terra, plantio e colheita.
Um segundo ponto é o espaço propriamente dito. A natureza determina também
as formas de ver, de acordo com o meio em que está inserido, o ser humano irá buscar
formas de se adaptar e melhor viver. Assim, a humanidade tem conseguido sobreviver
em ambientes severos tanto nos desertos escaldantes quanto nos ambientes
congelados do hemisfério norte. Essas populações desenvolvem altos graus de
observação da paisagem. Pode-se perceber com isto que cultura e natureza estão
intimamente ligados sendo praticamente indissociáveis.
Como elaboramos acima, existem níveis distintos de percepção do espaço em
cada pessoa e isso depende não apenas da cultura e do espaço ocupado por este
indivíduo, mas também com as experiências vividas com o meio. Durante a vida de um
ser humano os espaços podem oferecer variadas sensações tanto boas quantos ruins.
Podemos falar neste sentido dos jovens que desiludidos com a falta de oportunidades
do campo vão morar nas cidades em busca de novas formas de vida. Para muitos deles
o campo não é visto como algo belo, idílico e sim como um símbolo de dificuldades, de
serem reféns da terra que dita ano após ano a fartura ou a miséria. Temos por outro
lado aqueles jovens que viveram seus primeiros anos em meio a natureza, mas que
foram bem sedo levados a morar em cidades e afastados de seus referenciais
campestres. Para estes o campo representa um passado em que tudo era mais simples
e divertido. Eles almejam emotivos um reencontro com aquele mundo.
Alguém que pode ser colocado nesse segundo grupo foi Oswaldo Lamartine de
Faria, agrônomo e escritor Norte-Rio-Grandense com atuação entre as décadas de 1950
a 2000. Em toda a sua produção intelectual podemos ver despontado em grandes

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
419

quantidades essa atração pelo meio natural. Uma amostra disso se encontra em
Sertões do Seridó (1980) onde ele fala:

Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra adentro a


se perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas
e embastadas, onde touceiras de capim de planta ou madante de hastes
arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes
emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do silencio dos descampados
vem marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em
cardumes comem e vadeiam nas águas beirinhas nas horas frias do
quebrar da barra ou morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus.
Pato verdadeiro putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos
sapos que abraçados se multiplicam em infindáveis desovas
geométricas. Gritos de socó martelam espaçadamente os silêncios. O
mergulhão risca em rasante vôo o espelho líquido das águas. Garças
em branco-noivo fazem alvura na lama. É o arremedar, naqueles
mundos, do começo do mundo... (1980, p. 23).

Antes de mais nada devemos destacar algumas pesquisas dentro da academia


sobre este personagem, tais trabalhos foram produzidos tanto na área de História
quanto na área de Letras. Em primeiro lugar temos Medeiros Neta (2007) que tratou
da Historiografia seridoense a partir de autores como Manuel Dantas, José Augusto de
Medeiros Juvenal Lamartine e próprio Oswaldo Lamartine. Esta pesquisa proporcionou
pensar em como esses autores ligados por laços de parentesco puderam construir o
espaço do Seridó através de seus textos. Já Peñero (2010) procurou fazer uma
comparação entre os textos Sertões do Seridó (1980) de Lamartine e Grande Sertão
Veredas (2011) de Guimarães Rosa buscando traçar uma comparação entre a
construção do Sertão em Rosa e suas aproximações com o Sertão de Oswaldo. No
trabalho mais recente Castro (2015) nos apresenta um panorama sobre a vida de
Oswaldo Lamartine trazendo para tanto uma grande gama de fontes. Todos esses
trabalhos vão investigar de uma forma ou de outra a relação entre Oswaldo Lamartine
e o Seridó, porém quase nenhum deles trata dos outros espaços onde ele viveu bem
como da influência deles na sua visão de mundo.
Com esta motivação tratamos neste trabalho da relação entre Lamartine e o
meio nas diversas espacialidades em que ele viveu tendo sempre em mente sua
profunda ligação com a natureza, com o Seridó e com a memória.
O primeiro passo para se compreender essa relação é tratar da história de vida
de Oswaldo dando ênfase em sua formação familiar e carreira profissional bem como

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
420

no ambiente cultural de sua época. Ele faz parte de uma família tradicional seu pai
Juvenal Lamartine (1874-1956) foi um político oriundo de Serra Negra do Norte um dos
municípios da microrregião do Seridó que desenvolveu carreira nas primeiras décadas
do século XX durante o final da República Velha em um contexto de grandes
modificações políticas e sociais. Ocupando vários cargos políticos, desde 1906 em 1930
Lamartine se põe do lado de Washington Luís e quando tem início a revolução ele é
retirado do posto de governador e forçado a se exilar na Europa360 de onde só retorna
em 1944.
Sendo um dos dez filhos do governador deposto, Lamartine se vê sem o pai. A
partir de 1929 estuda em colégios internos primeiro no Recife e posteriormente no Rio
de Janeiro. Sua formação superior inclui o curso na Escola Superior de agronomia de
Lavras em Minas Gerais, de onde retorna em 1941, após a conclusão do curso e vai
ajudar o pai, que retornou do exilio, na administração da fazenda Lagoa Nova em São
Paulo do Potengi permanecendo nesse lugar até 1948. Durante sua vida profissional
trabalhará como administrador no Núcleo Agrícola de Pium, de 1954 até 1955, e no
Serviço de Colonização do Ministério da Agricultura em Barra da Corda Maranhão de
1951 a 1952. Deve-se acrescentar ainda que durante muitos anos foi funcionário do
Banco do Nordeste sediado no Rio de Janeiro, período que dura de 1957 a 1978. Mesmo
estando tanto tempo afastado ele frequentemente visitava sua terra natal fazendo isso
em seus períodos de férias, tanto na sua faze escolar quanto na de trabalho.
Lamartine nasceu no início do século XX e presenciou uma série de modificações
no Brasil e sobretudo no Nordeste. Albuquerque Junior (2009) analisando o próprio
processo de invenção discursiva dessa territorialidade discute que o Sertão nordestino
por ter a característica de interior de afastado da civilização surge como o espaço da
essência ou da alma nacional bem como do verdadeiro brasileiro. Temos ai um processo
de construção em que o Sertão é colocado, por suas elites econômicas, como um
contraponto a identidade cosmopolita ou moderna identificada com o litoral.
O clima intelectual em que Lamartine cresceu fui muito marcado pelo
movimento folclorista que, conforme mostra Albuquerque Junior (2013), teve um

360 Os relatos da
fuga de Juvenal Lamartine podem ser encontrados tanto no livro Do sindicato ao Catete:
Memorias políticas e confissões humanas (1966) de João Café Filho, quanto no livro Em alpendres d’
Acauã: Conversa com Oswaldo Lamartine de Faria (2001). Encontramos nestes livros visões distintas
sobre o acontecimento, sendo o primeiro escrito por um inimigo político de Juvenal Lamartine e o outro
por seu filho.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
421

grande desenvolvimento durante as primeiras décadas do século XX, sobretudo na


região Nordeste. Foi composto, em sua maioria, por membros de famílias tradicionais
conservadoras e influentes em seus respectivos estados. Entre os nomes importantes
dentro desse movimento estavam, Luís da Camara Cascudo361, Gustavo Barroso e
Mauro Mota362. Algumas das características desse movimento são, a valorização de um
passado agropastoril marcado por um tipo de sociabilidade hierárquica, passado pré –
industrial no qual prevaleciam modos de produção artesanais. A partir desses
elementos esses intelectuais construíram a ideia do que é a cultura popular.
Estas são as condições possibilitaram o desenvolvimento em Oswaldo
Lamartine de uma topofilia em níveis tão fortes que transcenderam as distancias. A
seguir vamos mostrar como esse sentimento vai se construindo e reconstruindo ao
longo da sua vida.

EXPERIÊNCIAS DA INFÂNCIA (1919-1929)


Quando Lamartine nasceu seu pai ocupava o cargo de deputado tendo portanto
uma condição de vida bem elevada para a época. Ele não nasceu no Seridó, interior
nordestino, mas no seu oposto, o litoral em Natal. Seus primeiros anos de vida foram
quase todos passados na cidade com pequenas visitas ao Seridó a terra de seus pais e
avós. Sobre essas visitas ele recorda:

Quando no Sertão, mesminho Casimiro... Da camisa aberto o peito, / -


Pés descalços nus. O dia principiava com a caneca de leite mugido ainda
ao quebrar da barra e se findava com as estórias de Trancoso. Noites
de um sono só parecendo um piscar de olhos. Vadiava-se de boi – de –
osso, cavalo de pau, nadar com cavalete de mulumgu, mergulhar em
desafio à “galinha gorda/ Gorda é ela ...” Jogar canga-pé, tirar caçote,
armar arapuca, fojo e mundé, andar a cavalo enfim, todo esse rico e
sadio viver rural. (2001, p. 16).

Nestas palavras se observa algumas coisas interessantes. A citação a Casimiro


de Abreu deixa clara a influência do romantismo no modo de ver de mundo de

361 Luís da Câmara Cascudo foi um grande amigo de Oswaldo Lamartine. No livro De Cascudo para
Oswaldo publicado 2005 foram reunidas correspondências endereçadas por Cascudo a Lamartine nas
quais podemos observar uma constante troca de informações e referências sobre o folclore e a história
potiguar.
362 No livro Em Alpendres de Acauã: Uma conversa com Oswaldo Lamartine de Faria quando ele cita os

livros mais significativos de sua vida aparecem entre eles, Terra do Sol de Gustavo Barroso, Paisagens
da Seca de Mauro Mota e Vaqueiros e cantadores de Luís da Camara Câscudo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
422

Lamartine. Farias (2007) define a saudade como uma das principais características do
romantismo e muito mais presente em Cassimiro a quem define como o poeta da
saudade.
Essa saudade lhe acompanhará durante todo o seu percurso como escritor,
podemos dizer inclusive que, a saudade é o grande motivador de sua escrita já que é no
período no qual se encontra mais distanciado do Sertão que ele começa a escrever e
pesquisar sobre ele363. Assim como Cassimiro que vivendo em Portugal escreve seu
livro As primaveras (1859) tendo em mente o Brasil, Oswaldo se via como uma espécie
de exilado no Rio de Janeiro que escreveu seus livros com o pensamento focado no
Sertão.
Por falar em Sertão é interessante notar como ele constrói esse espaço. Ao
contrário das descrições convencionais que definem a paisagem sertaneja com
pinceladas de sofrimento e dor, a abordagem de Lamartine é a de um Seridó leitoso e
hídrico. Suas brincadeiras são quase todas na água. Água boa e limpa dos açudes que
vai venerar em seu ensaio Os Açudes dos Sertões do Seridó (1978). Isso se deve talvez
pela posição ocupada por seu pai dentro da hierarquia social daquela época uma vez
que além de político, Juvenal Lamartine também era proprietário rural e pecuarista. A
visão sobre o Seridó seco, pedregoso vai aparecer posteriormente em suas obras.
Com relação a sua infância urbana vivida no número 431 da avenida Rodrigues
Alves esquina com a rua Trairi Lamartine esboça o cenário da seguinte forma:

Quando em natal, manhazinha, apanhar frutas no sitio da casa; caçar


com baladeira; empinar papagaios (raias, bandejas e relógios) de cauda
armadas de rocegas (lascas de fundo de garrafa Cinzano presas por
taliscas; Futebol de botão (ai da visita em dia de chuva que pendurasse
capa no cabide lá de casa); peladas de bola – de – meia na Rua Potengi
e de borracha e couro no campo do Triangulo (onde hoje é o Ateneu).
Ali se amagotavam os meninos que vinham apanhar água em latas,
galões e roladeiras (barris tracionados pelo eixo) e, seduzidos pela bola,
esqueciam da obrigação. A pisa era grande quando voltavam para casa.
Éramos moleques de calça-curta e felizes. Lembro de Zé Tamaru, João
Calango, Baíca, Nazareno, Antônio Scipião e tantos outros humildes
meninos da Solidão... (LAMARTINE DE FARIA, 2001.p. 16).

363Lamartine publica seu primeiro estudo sobre o Sertão intitulado Notas sobre a pescaria de açudes no
Seridó (1950).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
423

Essa infância urbana narrada por Lamartine apresenta uma cidade que ainda
apresenta traços do mundo rural entre eles os sítios onde se pode recolher frutas. Era
uma época em que não existiam tantos muros, onde as crianças tinham plena liberdade
de vivenciar vários espaços desbravando os bairros em diversos tipos de brincadeiras
coletivas que ele cita em múltiplos exemplos.
Ao analisarmos essas duas passagens podemos perceber claramente como se
dá a perspectiva espacial da criança. Sobre isto Yi – fu Tuan (1980) salienta que ao
contrário do adulto a criança tem uma capacidade de percepção dos espaços muito mais
aguçada. Ela não se preocupa tanto com a estética dos lugares mas com as sensações
que estes podem lhe proporcionar através dos sentidos do tato, olfato e paladar. Além
do mais, a criança não está tão ligada as regras e postulados sociais tendo uma maior
liberdade para explorar. Mesmo que a medida que cresce ela seja moldada pelo
imperativo dos pais a se conter.
Na experiência de Lamartine estas atitudes se revelam com bastante clareza.
Tanto no Seridó quanto em Natal suas memorias revelam uma infância a céu aberto em
que o interior da casa não é recordado. Outro ponto notável é como o movimento é
frequentemente mencionado nessas lembranças, são meninos que estão sempre
correndo, andando ou nadando. O ato de apanhar frutas direto do pé nos mostra
também essa forte relação com o meio, nela participam o tato no contato com a planta,
o cheiro da fruta fresca e o paladar do seu gosto. Ao empinar pipas eles também tomam
consciência da amplitude do espaço acima de suas cabeças. Foi dessa maneira,
explorando a terra, a água e o ar que Lamartine passou sua infância, um bicho solto
como gostava de se denominar.

A VIDA NAS FAZENDAS (1940-1955)


A formação básica de Lamartine foi totalmente realizada em colégios fora do Rio
Grande do Norte em função de todas as complicações trazidas pela Revolução de 1930.
Primeiro veio o Ginásio do Recife depois foi para o Instituto Lafayrtte no Rio de Janeiro.
Logo após nos anos de 1937-38 passou a estudar na Escola de Agronomia de Lavras
em Minas Gerais de onde só regressa em 1941.
A partir deste momento, munido de sua formação em Agronomia passa a ajudar
seu pai, recém chegado do exílio na Europa nos afazeres da Fazenda Lagoa Nova,
município de São Paulo do Potengi. Lá ele trabalhará entre 1941 a 1948 e neste período

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
424

convive com Pedro Ourives, Zé Lourenço, Chico Julião, Bonato Liberato Dantas e Olinto
Ignácio todos eles grandes mestres de ofício que serviram de professores para o jovem
Lamartine nas artes da pesca, caça, encouramento, entre outras. Para ilustrar essa
relação citemos Lamartine:

Vivi sob as mesmas telhas com Bonato Liberato Dantas (1897-1955)


quando ele fazia uma tarrafa – veterano pescador de açude que foi.
Espiava, perguntava, rabiscava figuras e anotações. Daí o A.B.C da
pescaria de açudes. A mesma coisa com Pedro Américo de Oliveira,
vulgo Pedro Ourives (1878-1964) seu filho Francisco Lins (1916-1990),
um remontando uma sela roladeira e o outro costurando um
encouramento. Resultante – Encouramento e arreios do Vaqueiro. A
caça nos Sertões consequência de momentos vividos, ouvidos e lidos.
(LAMARTINE DE FARIA, 2001.p. 62).

Mais tarde, na década de 1950, Lamartine irá trabalhar como administrador de


duas colônias agrícolas. A primeira foi no município de Pium – RN e a outra em Barra da
Corda no Maranhão. Esta foi outra oportunidade para vivenciar atividades junto a terra
algo que muito o agradava. Nesta ocasião esteve em contato com os índios Kraô que
assim como os mestres de oficio foram grandes professores de percepção espacial nas
caçadas que faziam juntos. Ele conta que quando um desses formidáveis caçadores se
colocava no rastro de um bicho “podia botar a panela no fogo” tamanha era a sua
capacidade de rastrear, o que revela é claro, um grande conhecimento do território bem
como dos hábitos dos animais da região.
Da mesma forma como o Sertão do Seridó será um espaço importante por ser
um foco de reminiscências da infância, essas fazendas e os núcleos coloniais serão
relevantes por proporcionarem ricas experiências sensoriais em um contato direto com
a terra e com a natureza circundante. Isto é identificado por Tuan como o segundo e o
terceiro estágio da topofilia onde o espaço começa a ser verdadeiramente percebido
para além da mera visualidade. Aqui ele ganha significados e desperta fortes
sentimentos.

O “EXÍLIO” NO RIO DE JANEIRO E O RETORNO A TERRA NATAL (1955-1995


De 1955 a 1979 Oswaldo trabalha no Banco do Nordeste. Um homem como
Lamartine tão afeito a terra e a natureza trabalhando em um banco em afazeres

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
425

burocráticos pode parecer um tanto estranho, entretanto nesta época ele já havia
constituído família e precisava da estabilidade que uma carreira poderia proporcionar.
Os anos que passa como bancário serão muito importantes para definir em
muitos aspectos a sua personalidade saudosista. Vejamos o que Lamartine fala sobre
esse período.

O homem é um animal de grande capacidade de adaptação. E morar no


Rio não é castigo. Eu tinha uma companheira de excelente convívio e
procurei encontrar na cidade grande alternativas do meu agrado –
acesso a boa bibliografia das áreas de conhecimento de minha
curiosidade, aprendizagem com alguns conhecedores daquilo que me
interessava, etc. (LAMARTINE DE FARIA, 2001.p. 58 – 59).

Estando tanto tempo afastado do seu Sertão, Lamartine nunca o tirou da


memória e ainda mais se esforçou para que através do conhecimento, das leituras
realizadas em sebos do Rio de Janeiro, pudesse se manter em contato com os temas
relacionados a esse espaço. Este será o período em que ele escreve a maioria de seus
ensaios o que nos leva a pensar que o afastamento da sua terra natal pode ter sido um
grande catalizador para a sua escrita. Todas aquelas experiências adquiridas nos dias
passados nas fazendas agora poderiam ser transmitidas para o papel tendo “em tudo
certa preocupação de guardar para não ver se perder – usura sem cifrão, a tudo
engavetar – cacoete do pássaro casaca – de – couro que tudo carrega para o
desarrumado ninho” (LAMARTINE DE FARIA, 2001.p.63).
Além da leitura e escrita sobre a cultura e o espaço sertanejo outra forma pela
qual Oswaldo se mantinha entretido era o trabalho em um pequeno pedaço de terra em
Itaipava no Rio de Janeiro. Lá ele podia calejar as mãos e se sujar de terra. A principal
atividade nesse chão era plantar arvores em homenagem a seus entes queridos
falecidos ele explica:

E uma forma de orar para quem não sabe rezar com palavras. Veja que
a gente fica de joelhos para plantar. Em Itaipava/ RJ, onde tive um lenço
de chão, plantei árvores em homenagem aos meus mortos. E ainda hoje
daqui dessas lonjuras, sou capaz de identificar cada uma. Sei onde está
o pé – de – sibipiruna de meu pai, os angicos de minha mãe e Terezinha
(minha babá), o ipê amarelo de Hélio Galvão. Arsênio Pimentel e Erica
filha dele, Isadora e Lucy em araucária. Zila Mamede, Luís Tavares,
Leonardo, Zé Gonçalves e Armando Viana, pinus elioti e thaeda.
Guilherme Azevedo em bordão – de – velho, José Braz em piquiá o Cego
Lula (Luiz Maranhão Filho) em pinho de Riga além dos irmãos e tantos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
426

outros amigos que, nas minhas insônias, ainda daqui os cultivo.


(LAMARTINE DE FARIA, 2001.p. 40).

Sabemos que as arvores tem sido símbolos muito fecundos ao longo do tempo
em variadas culturas. Shama (1996) salienta seu uso como representantes de uma
identidade nacional e cita o caso das sequoias americanas que através de sua
longevidade e grande porte estariam ali desde muito antes do Mayflower a anunciar o
destino manifesto do povo estadunidense, tais plantas serviram de tema para muitos
de seus grandes paisagistas. Mais além de identidades nacionais, arvores tem sido
usada em muitas religiões como no Cristianismo com sua arvore da vida e arvore do
conhecimento. Dentro da iconografia cristã abundam imagens de arvores significando
a ressurreição de cristo como a oliveira.
As arvores plantadas pelas mãos de Lamartine podem ser neste caso símbolos
de memória daqueles que se foram ou até mesmo uma forma de unir essa memória a
terra e torna-la fisicamente permanente, literalmente enraizada na terra.
Certa vez Tacito Costa disse em reportagem da revista Preá:

O Sertão é, antes de tudo, um estado d’alma. Que nem o tempo nem o


exílio podem destruir. A trajetória do escritor potiguar Oswaldo
Lamartine de Faria mostra isso. O Sertão o habita, portanto não faz
diferença que more em Natal ou Rio de Janeiro; numa casa de muros
altos ou num apartamento. Porque o Sertão é onipresente. (COSTA,
2005.p. 8).

E de fato tudo o que vimos até agora nos mostra isso, a força dessa ligação com
a terra natal e o poder das lembranças. Tuan salienta isto como um dos estados mais
avançados da topofilia quando homem personifica seu lugar especial tanto pela força
das lembranças quanto pelas marcas deixadas em seu corpo.
O retorno ao Rio Grande do Norte se dá em circunstancias dolorosas após a
morte de sua segunda esposa Maria de Lourdes Leão Veloso (1917 – 1995). Depois de
tamanha perda sua volta é inevitável. O lugar escolhido foi a fazenda Acauã município
de Riachuelo no sopé da Serra dos Macacos. Lá ele pode novamente desfrutar de uma
vida simples e em suas palavras “lamber suas feridas”. Será o começo de uma vida
ascética quase monacal na solidão quase total quebrada apenas pela presença de seu
fiel cachorro Parrudo e por visitas de amigos e familiares. Lá ele permanecerá como
descreve Vivente Serejo:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
427

Restava, diante dele, o caminho da volta. Não mais para os sertões do


Seridó, a Fazenda Ingá, o país da infância. Mas Lagoa Nova, na Ribeira
do Camaragibe, a fazenda do seu pai. Um mundo sem fim de dez mil
hectares e onde viveria de 1941 a 1947. Para retornar, cinquenta anos
depois, e envelhecer, silencioso e sábio, olhando do seu lenço de terra
os longes do sertão, ou, como ele gosta de dizer, até bater com os olhos
nas paredes do céu. (SEREJO, 2005.p. 13).

CONCLUSÃO
Neste trabalho procuramos explorar aspectos da relação entre o escritor
Oswaldo Lamartine de Faria e alguns dos espaços onde viveu no decorrer de sua vida.
Com intuito seguimos o conceito de topofilia apresentado por Yi – fu Tuan como as
relações afetivas entre o homem e o meio ambiente que o rodeia sendo estas
escalonadas da simples apreciação visual até a noção de formar com a natureza um
todo indivisível.
Tomando esta premissa seguimos para a infância de Lamartine metade urbana
metade rural e vislumbramos como as relações espaciais que ele teve quando pequeno
lhes proporcionou um forte apego ao espaço do Seridó enquanto terra de suas origens
familiares.
Posteriormente mostramos sua vivencia como administrador rural e de que
forma a convivência com homens de oficio das mais variadas artes manuais e técnicas
tradicionais lhe fascinou. Foram anos de muita experiência que depois pode ser
transformada em livros.
Por fim tivemos sua longa estada no Rio de Janeiro, anos de muita saudade da
terra natal que ajudaram a moldar sua personalidade e estilo. Tempo também de
muitas leituras em horas e horas passadas entre os livros dos sebos cariocas reunindo
se alimentando das palavras de grandes escritores. E no final o retorno ao chão natal
machucado pela perda.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed.
Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: A fabricação do folclore
e da cultura popular. São Paulo: Intermeios, 2013.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
428

CAMPOS, Natércia (Org.). Em alpendres d'Acauã: Conversa com Oswaldo Lamartine.


Fortaleza: Imprensa Universitária/UFC- Natal: Fundação José Augusto, 2001.

COSTA, Tácito. Oswaldo Lamartine de Faria: Sob o peso das lembranças. Preá: Revista
de cultura, Natal, v. 1, n. 15, p.8-11, nov. 2005. Bimestral.

CASTRO, Marize Lima de. Areia sob os pés da alma: uma leitura da vida e obra de
Oswaldo Lamartine de Faria. 2015. 171 f. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2015.

FARIA. Oswaldo Lamartine de. Sertões do Seridó. Brasília: Senado federal centro
Gráfico,
1980.

FARIAS, Andressa da Costa. Cassimiro de Abreu e a temática da saudade. Ideias:


Revista do curso de Letras, Santa Maria, v. 1, n. 24, p.72-74, jul. 2007. Semestra

NETA, Olivia Morais Medeiros. Ser (tão) Seridó: Em suas cartografias espaciais. 2007.
111 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Centro de Ciências Humanas Letras e
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007

PIÑEIRO, Daniel de Hollanda Cavalcanti. Multiplicando Veredas entre Guimarães


Rosa e Oswaldo Lamartine. 2014. 157 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Estudos da
Linguagem, Departamento de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2014.

SHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SEREJO, Vicente. Oswaldo Lamartine de Faria: o doutor de Acauã. Preá, Natal, v. 1, n.


15, p.12-15, jul. 2005. Bimestral.

TUAN, Yi – Fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio


ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
429

Simpósio Temático 7
CULTURA E ESPAÇOS
DE PODER NO MUNDO ANTIGO
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
430

“REPRESENTAÇÕES MENTAIS DO (NO) PRINCIPADO


ROMANO”: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OBRA DE TITO LÍVIO

Pedro Gabriel dos Santos Silva364

INTRODUÇÃO
Quando se tem em mente a pesquisa ou até mesmo a história propriamente dita
sobre Roma, a primeira imagem que nos vem à mente é o ideal arquetípico de seu
império. Tal qual semeou sua influência sobre os governos imperiais que seguiram após
a Antiguidade Clássica – um modelo de governo baseado no discurso de dominação;
regado à concessão de títulos e cidadania, símbolos legitimando a autoridade do
governador e a expansão territorial. Então, essa noção do império avançou pela história
europeia, permeando as discussões contemporâneas sobre o fenômeno do
imperialismo através do tempo, associando-se aos modelos da contemporaneidade365.
Não obstante, pensar o nosso enfoque temático, sendo este a instauração do
Principado Augustano (27 a.C – 14 d.C) e a estruturação sociopolítica e econômica de
formação do Imperium 366, apresenta uma necessidade de se discorrer criticamente as
principais questões-problemáticas que culminaram na derradeira queda do sistema
republicano, a Res publica. Um modelo de governo baseado no bem público, regido por
uma legislação muito bem articulada, sendo assim, a soberania das leis (o comando
divino) sobre os homens. No qual, em teoria, certificaria que nenhum indivíduo estaria
acima dos outros. Porém, a legislação estava a comando dos magistrados, conclui-se
então que esta seria o domínio das oligarquias senatoriais perante a sociedade romana.
A decadência do modelo republicano estaria imbricada diretamente a nova
realidade do domínio espacial do Império Romano no Mediterrâneo. A expansão,
juntamente com as integrações provinciais, resultou em um novo contingente de
relações sociais, econômicas e culturais; levando Roma, assim como aponta Norma
Musco Mendes (2006), a se transformar “(...) numa Cosmópolis ultrapassando os

364 Graduando em História (Licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
campus Caicó – CERES.
365 Uma discussão muito válida sobre a nova ordem mundial e os fenômenos imperialistas no mundo

contemporâneo pode ser vista nas obras de Paulo G. Fagundes & Cristina Soreanu Pacequilo (2009); Shu
Changsheng (2009); Francisco Carlos Teixeira da Silva (2009); e Maurício Parada (2009).
366 Sendo que este no governo imperial de Augusto, de acordo com Greg Woolf (2017), adquiriu o

significado de “território total dominado por Roma”, ou seja, o termo “(...) proclamava a hegemonia
mundial e deixava claro que os Estados aliados e os inimigos derrotados estavam totalmente sujeitos ao
comando de Roma.” (WOOLF, 2017, p. 43).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
431

limites institucionais e espaciais característicos das cidades-Estado clássicas,


principalmente, diante da prática de concessão de cidadania” (MENDES, 2006, p. 22).
Portanto, os fatores anteriormente abordados, anexados a desagregação do controle
da tradição, antes concentrados nas mãos da aristocracia senatorial – os nobilitas;
outorgado para as mãos de especialistas em direito, religião e linguagem levou a crise
da autoridade da tradição367 na qual o sistema estava fundamentado.
Aliando-se a fragilização do poder368 das elites romanas, a disputa do triunvirato
de Pompeu, Sila e Júlio César369 almejando o aumento da concentração do poder
pessoal, fez com que a soberania de César sobre os demais o fizesse tentar instaurar
um governo imperial baseado na concentração do poder na figura do imperador – por
meio do acúmulo da glória militar e influência política –, ameaçando todo o sistema
oligárquico senatorial. Então, pode-se concluir que, ainda seguindo pelo viés de Norma
Musco, “César quis mais do que poderia ser, pois o ideal republicano ainda era forte e
incompatível com a existência de um poder absoluto e vitalício, na eminência,
possivelmente, de se tornar uma realeza.” (MENDES, 2006, p. 24), acarretando em sua
morte (44 a.C.). Entretanto, após a batalha do Ácio (31 a.C.), Otávio Augusto ao derrotar
seu concorrente Marco Antônio370 (83 – 30 a.C), concretizou o governo monárquico que
seu pai adotivo tentou proclamar: o Principado; legitimando seu domínio através de um
discurso conservador, alegando ser o restaurador da República 371 Romana.
Subsequentemente, Augusto foi conquistando espaço de governo através da
ressignificação de títulos republicanos anexados a sua fama e carreira política de
acumulação de poder pessoal. Construindo sua influência por meio do domínio das
principais bases da sociedade romana: a religião, a política e o exército. E, ainda pegando
do viés apresentado por Mendes (2006, p. 24), ao assumir os títulos de tribunicia
protesta (controle legislativo e do povo romano), aliado ao pontifex maximus372

367 Na abordagem da problemática, apresento fundamentações teóricas nas teses de Wallace-Hadrill


(1996), propondo-o como uma leitura básica para aprofundamento dos conceitos aqui supracitados.
368 O contexto de crise não se apresentou apenas nos finais da República, era advindo desde as tentativas

de reformas agrárias dos irmãos Tibério e Caio Graco (132 – 123 a.C), intensificando-se com a eclosão das
Guerras Civis do século I a.C.
369 Vide os trabalhos de Norma Musco Mendes (1998).
370 Este seria então o marido de Cleópatra, e sua aniquilação representaria simbolicamente a erradicação

da ameaça oriental ao poderio romano. Concretizando Augusto como defensor da soberania da sociedade
romana ocidental.
371 Construindo a imagem de restaurador do mos maiorum, o costume dos ancestrais.
372 Claudia Beltrão, ao trabalhar os principais aspectos envolvendo a religião romana, afirma que:

“Augusto tomou a si a responsabilidade da restauração de templos e da construção de novos. A ele é


atribuída à restauração de algumas instituições perdidas para nós. Os detalhes podem não nos ser muito

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
432

(assume o controle dos rituais religiosos da pólis, tornando-se a “cabeça” da religião do


Estado; colocando assim, seu governo aliada à vontade divina), o princeps legitimaria
seu governo e poder imperial. Desta feita, conectado a expansão territorial, Augusto
teria controle e influência sobre toda a extensão do Império Romano.
Portanto, para pensar essas questões, centro minha análise teórica
fundamentada as recentes teorias de romanização, anexadas aos estudos
provinciais373 para problematização da dicotomia de Roma, enquanto “centro” –
superpotência militar e cultural – subjugando as “margens”, sendo estas as áreas
conquistadas, resultando no domínio imperial romano374.
Trazendo novas perspectivas de análise em decorrência das teorias pós-
coloniais, as quais, a partir de 1960375, irão apresentar problematizações e quebras de
paradigmas engessados pela historiografia tradicional sobre o que então seria este
Império Romano. Abordado hodiernamente como categoria histórica e presente em
várias fases e temporalidades; pensado como construtivo e ideologicamente fluido, a
serviço de um povo, sendo este a elite no governo – e seus diálogos com as figuras
marginalizadas. Outorgando poder de fala aos personagens antes silenciados pela
descritiva e acumulativa “História dos Grandes”, através da crítica a higienização do
conhecimento (BURKE, 1992).
A posteriori, o mote do presente trabalho objetiva perceber a reverberação dos
acontecimentos e formação do governo de Otávio Augusto a partir de suas
representações nas produções literárias do historiador latino Tito Lívio (59 a.C – 17 d.C).
O desenrolar da análise será orientado diante três perspectivas principais: (1) o
estabelecimento de Otávio Augusto na reconstrução de Roma, aliado a sua propagando

claros, mas o significado geral é: uma vez que detentor do poder religioso é o mesmo indivíduo que
mantem o controle político do novo regime do Império (...)” (BELTRÃO, 2006, p. 147).
373 O presente trabalho trabalhará o desenvolvimento destes conceitos, entretanto, adiantando uma

discussão acadêmica – para aqueles que querem aprofundar-se ainda mais – entre especialistas no
assunto, os “progressistas” do pensamento pós-colonial aplicado a História Antiga, temos a Norma
Musco Mendes (2007); Norberto Luiz Guarinello (2010); e Rafael Scopacasa (2015).
374 Classificado por Regina Maria da Cunha Bustamante (2006), ao abordar os contatos étnicos entre

romanos e norte-africanos, como conceito representando uma ideologia elitista. Colocando Roma ao
centro de todo o processo de expansão colonial e os povos anexados apenas a serviço do império. Mas a
autora discutirá a expansão como um “diálogo entre os poderes imperiais e locais das províncias
africanas”, visando o benefício mútuo entre ambas as partes através de acordos burocráticos e políticos.
(BUSTAMANTE, 2006).
375 Essa data marca uma ruptura no pensamento das ciências centradas nas humanidades, teremos a

partir daí o início dos processos de descolonização da África e Ásia, colocando-os como motores de sua
própria produção historiográfica e mais uma quebra ao temido eurocentrismo. Assim como o
recenseamento destas enquanto áreas de contato com Roma. (GUARINELLO, 2010).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
433

imperial para legitimação de seu governo, juntamente com a mundialização do “ser


romano” estando anexada a expansão imperialista e conquista de territórios
adjacentes; a seguir (2) inserindo assim, no contexto geral, o corpus documental base
para a pesquisa: a obra “História de Roma” (titulada originalmente como “Ab urbe
condita”), do historiador latino Tito Lívio. E, como este se localiza no círculo de poder
imperial em meio sua perspectiva para a construção da legitimação do império através
de suas produções bibliográficas. Por fim, (3) procuraremos analisar e problematizar
como a produção do autor latino visava à construção e legitimação do imperium romano
enquanto fenômeno que marcou a história. Abarcando assim, discussões presentes na
desconstrução da “romanização”, ou seja, ver e construir o império através das
margens para realizar tal feito.
Para conclusão, a metodologia aqui utilizada para problematização do corpus
documental será calcada prioritariamente na Análise do Discurso, proposta por
Laurence Bardin (1977); subsequentemente, explorando a teorização de uma produção
retórica visando o convencimento do interlocutor, utilizando como base A Arte de Ter
Razão, de Arthur Schopenhauer. Pensando as principais questões de estruturação da
imagem de Roma, através de suas produções literárias, como uma cidade-Estado mítica
destinada a mundialização de seu domínio étnico, econômico e político.

O PRINCIPADO AUGUSTANO E A REPAGINAÇÃO DE ROMA


Ao longo do século I a.C. Roma passava por um período marcado por crises
políticas, encontrando-se à deriva de uma desagregação do sistema republicano em
decorrência do contexto antes mencionado ser concomitante recheado por intensas
Guerras Civis que, paralelamente à expansão territorial e domínio das áreas anexadas,
não mais podia suportar as necessidades e anseios de uma civitas376 que estaria se
transformando em uma Cosmópolis. Então, como apontado por Airan Borges & Thiago
Pires (2016), esta acumulou poder e glória militar tornando-se a “capital de um Império
que abarcava não somente a Itália, mas também outras regiões mais distantes do poder
central.” (BORGES & PIRES, 2016, p. 52).

376Pensado na cultura romana como um assentamento intrinsecamente ligado ao meio urbano (URNS)
e rural (AGER), na qual era independente e soberana em relação aos seus indivíduos e bens, além de ser
cunhada na religião e nas leis. Em suma, pode ser classificava como uma união de um determinado
número de homens associados por consenso, no direito e na concordância dos interesses coletivos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
434

Portanto, houve um sobrecarregamento do sistema republicano, culminando em


sua inviabilidade de continuidade devido à nova realidade trazida pelo contexto de
conquistas. Fazendo com que Roma, enquanto capital imperial tivesse que se
ressignificar para abarcar o controle desse novo contingente proposto ao poderio
romano.
A esta nova realidade, aqui nos cabe citar que, o enfraquecimento da República
possibilitou a ascensão de diversos personagens que conquistaram fama e poder
através da carreira militar. Um exemplo claro seria então o de Caio Júlio César (100 –
44 a.C.), que ao tentar instaurar um modelo de governo absoluto e vitalício centrado em
sua figura como governador, sofreu tiranicídio em 44 a.C. Sendo substituído
posteriormente por Otávio Augusto 377, o que mais se destacou nessa cadeia de
homens.
A regência de Augustus foi maturando-se ao longo de seu governo,
apresentando-se como processualmente lenta e gradativa. Entretanto, seguindo pelas
assertivas de Norma Musco Mendes (2006), a construção do novo sistema político
deveria ser feito fora do âmbito republicano, mas centrando-se na repaginação das
instituições e titulações nele existentes; focando sua desenvoltura em torno da figura
do princeps378 e, ademais, na tentativa de reviver a Res publica379, paralelamente ao
esforço para manutenção do status de Imperium. Concomitantemente, o controle dessa
nova forma de governo se deu através da concentração pelo imperator da tribunicia
potestas, pontificatus maximus380 e do imperium majus. Factualmente, Otávio Augusto
“(...) assumiu, assim, uma posição retora para consolidar e integrar o Imperium, cujo
significado se adequa à nova realidade imperial de Roma.” (MENDES, 2006, p. 27).

377 Este apesar de não apresentar uma grande fama como chefe militar, assim como aponta Norma
Musco Mendes (2006), impulsionou sua fama estrategicamente como vingador da morte de seu pai
adotivo Júlio César, aliando-se a figuras influentes dentro da corte senatorial – cita-se Cícero –, para
ganho de apoio ao seu mandato.
378 O mais proeminente cidadão do Estado. A ele caberia à liderança e o status de exemplo perante a

sociedade romana, acumulando popularidade, dignitas e auctoritas. (MENDES, 2006, p. 26).


379 Ponderando assim, um sentido de renascimento sobre as ruínas do velho governo, mas na tentativa

de renovação do antigo regime ao “Preservar a base material mediante a proteção da propriedade


privada, manutenção dos seus privilégios sociais e a garantia de segurança pessoal do indivíduo,
afastando assim os abusos do tempo das guerras civis” (MENDES, 2006, p.26)
380 Para reforçar meu argumento, cito aqui a análise do Dr. Carlos Eduardo Campos, que menciona, dentre

as manobras políticas de Augusto, que o mesmo “(...) buscou no controle da religião formas de expressar
poder e interconectar-se com todas as camadas sociais, como vemos nas moedas, inscrições epigráficas
e literatura (...)” (CAMPOS, 2017, p. 13).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
435

A total aversão da sociedade romana à monarquia, considerada tirânica –


remetendo ao passado de dominação etrusca –, fez com que, teoricamente, em nome e
aparência, ainda houvesse uma exaltação a respeito da derradeira importância
simbólica dada ao Senado e ao Povo presente no novo modelo imperial e nos discursos
de Augusto através da arte da retórica381. E, os poderes subsequentemente concedidos
ao imperador382 vigente nos primeiros anos de Principado não tiveram grandes
contingências de contestações ou revoltas, devido à parcela populacional da geração
que conheceu a ditadura de Sila e a autocracia de César.
Paul Veyne (2009), ao postular afirmações sobre o que seria então a figura de
um imperador no mundo Greco-romano383 durante os anos de Principado, demonstra
que “(...) o principado erguia-se sobre uma ilusão, que postulava que os imperadores
eram escolhidos livremente e ratificados de acordo com preceitos legais” (VEYNE,
2009, p. 7).
Ao final de 27 a.C. o imperador aqui supracitado já acumulava as titulações de
consulado, proconsulado, inviolabilidade tribunicia, áurea religiosa em função do título
de Augusto, e o direito de intervenção nas decisões do Senado. Fazendo com que o
mesmo se tornasse um fenômeno, um arquétipo de governabilidade dentre ordem
social, o tornando um paradigma até os tempos hodiernos para com as sociedades
ocidentais.
Prosseguindo minha análise, é cabível citar os fatores mencionados por Carlos
Eduardo Campos (2017), em sua tese de doutoramento, ao mensurar as políticas
governamentais de Octavianus Augustus, colocadas pelo autor da seguinte forma:

“Esse exemplum político de Augusto pode ser observado nas Res


Gestae, que contêm variados indícios de diversas titulaturas políticas e
sacerdotais de Otávio Augusto. Tais fragmentos nos possibilitaram
observar a existência de redes político-religiosas, as quais atuavam
como instrumento essencial para o processo de apoderamento
sociopolítico de Otávio Augusto sobre Roma” (CAMPOS, 2017, p. 12).

381 Na presente análise aqui contida, serão analisados alguns dos feitos de Augusto para validação e
popularização de seu governo por meio da prerrogativa das produções artísticas e literárias de seu
governo.
382 O engrandecimento de Augusto era visto como necessário para retorno da ordem e estabilidade do

novo sistema.
383 Trabalho o conceito de mundo Greco-romano pensando a formação mesclada entre os povos gregos

e romanos, estando estes conectados pelo Mediterrâneo. Pensando a forte presença helênica na
formação de Roma.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
436

Tornando-se, ao assumir o título de imperador, a reencarnação de todas as virtudes


romanas384.
Hodiernamente, o fenômeno do imperialismo romano instiga os historiadores a
desbravar suas produções acadêmicas sobre o tema, e por parte, também se deve este
fato ao grande número de fontes e produções sobre períodos a partir do Principado que
sobreviveu ao tempo. Concordando com as assertivas de Greg Woolf, observa-se que
“(...) Roma parece ter brotado na história já plenamente formada como poder imperial,
espetacularmente agressiva, com instituições bem desenvolvidas para sobreviver a
derrotas ocasionais e converter vitórias militares em duradoura dominação política”
(WOOLF, 2017, p. 42). Tal perspectiva nos leva a questionar sobre o surgimento de
Roma para além do discurso mitológico de civilização destinada a conquista dos povos
“bárbaros” pela prerrogativa divina. Discurso este, reforçado na alta escala de
produções poéticas, materiais e históricas do período augustano, utilizadas pelo
Princeps como legitimação ideológica de seu governo. Otávio Augusto queria ser
lembrado. Queria marcar a história como o instaurador da pax romana, aquele que
governou por vontade divina, um representante dos deuses na terra, ou seja, o
restaurador da República e da tradição.
Toda a produção literária, assim como o discurso expansionista do governo
imperial de Augusto tiveram como prerrogativa a legitimação da figura do imperador,
e o desenvolvimento do imperium sobre o seu comando.
Assim, pode-se citar a obra Eneida, do poeta Virgílio (70 – 19 a.C.), um dos
componentes da corte senatorial do período augustano. Um poema que, em suma,
relata a história heroica do príncipe troiano Eneias, e sua missão de fundar Alba Longa,
a predecessora de Roma. Apresentando fundações mitológicas associadas à vontade
divina de Roma ser uma cidade-Estado predestinada à glória e ao sucesso por meio da
dominação dos povos vizinhos, instalando o padrão de vida romana como modelo a ser
idealizado mundialmente. Destarte, o poema pode não falar sobre o imperador, mas
Augusto se apropriou da história alegando ser descendente de Eneias e, além disso,
afirmou que sob o seu comando os romanos dominariam o mundo de acordo com os
decretos de Júpiter385.

384ALFOLDY, Géza. História Social de Roma. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p.116.
385Os principais cultos no Império Romano eram destinados a Tríade capitolina (Júpiter, Juno e Minerva).
E na Eneida, o próprio Júpiter estabelece a relação entre Enéias e a família do Príncipe Augusto.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
437

Portanto, ao partir do pressuposto de que um líder político preocupa-se em


centrar em sua figura o estereótipo de exemplo de cidadão, um símbolo perante toda a
sociedade a ser seguido, por fim, utilizando de mecanismos de difusão de seus feitos
para validação de sua autoridade; analisarei aqui, como as obras artísticas no
produzidas período augustano forneceram perante seus contemporâneos e os povos
subjacentes à construção da identidade do governante. Assim como a de toda a
sociedade romana em si.
Abordar a intertextualidade dessas obras nos facilita a compreensão de que,
como afirma Thiago Pires (2014):

“Os poetas na Antiguidade, de maneira geral, forneciam modelos de


comportamento social para os mais jovens, criando assim um consenso
ideológico sobre valores que impregnavam o indivíduo em uma visão de
mundo construída, não só pelo próprio poeta, mas pelo meio social no
qual está imerso, pois é o meio social que fornece os símbolos e
representações que o poeta utilizará” (PIRES, 2014, p. 127).

Voltando a citar o historiador francês Paul Veyne, que ao trabalhar a arte na


Antiguidade Clássica, apresentando-a como um meio de comunicação massificado,
alega que estas produções – principalmente arquitetônicas386 – se manifestam de
forma bastante expressiva perante aqueles que as observam. Propagando uma
mensagem bastante peculiar a respeito de seus responsáveis, ou seja, a manifestação
do próprio ‘eu’, ou, como coloca Veyne, de um cinismo puro, fundamentado em um
narcisismo glorioso. (VEYNE, 2009, p. 204). Grandes obras simbolizavam a
grandiosidade do governador vigente. Um meio amplamente explorado para
propagando política imperial.
O fórum de Augusto, em Roma, construído no ano dois a.C. nos demonstra um
exemplo límpido dessa propaganda. Borges & Reis (2016), ao utilizarem da Arqueologia
Semiótica387 para trabalha-lo, afirmam que em seu interior podemos perceber as
estatuetas de grandes heróis romanos ao lado da figura do princeps. Um citável seria
então, como antes apresentado, o herói troiano Enéias, que projetado carregando seu
pai paralítico nas costas e ao seu lado vem sua esposa, tornar-se-ia um símbolo de

Exemplificando a coluna de Trajano ou o Partenon.


386

Ramo arqueológico que utiliza de diferentes opções de fontes para além das escritas, as encarando
387

como maneira plural de se visualizar diferentes tipos de “textos”.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
438

representação da família, a base388 da sociedade romana. Augusto estaria então


localizado ao centro, significando que todas as figuras importantes da trajetória
romana – os summi viri389 – estariam sendo protegidos pelo imperador. Ademais, ao
proclamar sua glória de governo como vingativa ao assassinato de seu pai, seria
encarada como um ato de pietas, uma forma de honrar a injúria infligida contra sua
família.

TITO LÍVIO, ENTRE A REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA E A RECONSTRUÇÃO DE ROMA


A pesquisa acadêmica e científica sempre se modifica para evoluir, ressignificar
seu objeto de estudo e produzir resultados historiográficos significativos para com
seus contemporâneos, baseados em anseios que condizem à realidade a qual estão
inseridos. Em suma, exprimimos um desejo imbricado à condição humana remetendo a
necessidade de compreensão do nosso tempo histórico e do passado.
Já afirmava Friedrich Nietzsche, filólogo e filósofo alemão, alertando sobre os
usos e desusos da história, que de nada nos serve o estudo desta apenas por luxo do
conhecimento, tornando-se supérflua. O passado nos é dado como objeto passível à
crítica e análises, a partir dele podemos construir uma identidade e repensar
transformações ao longo do tempo. De fato, a história é demasiadamente importante
para a construção do homem e de sua consciência, mas não de forma passiva;
precisamos dela para a vida e para a ação em si, colocada a par-de-ser quase um motor
para nós, homens.
Ademais, a partir dos pressupostos supracitados, pensando o sentido de
alteridade390 e interdisciplinaridade que regem a historiografia contemporânea,
procuro trabalhar o fenômeno imperial romano através das fontes provenientes da
literatura latina. Criando pontes entre a História e a Literatura, ampliando a definição
de fonte histórica para além da História Positivista, dos “grandes homens geram

388 Nesse sentido, acima de tudo teremos os Deuses, depois os mais velhos e, em fim, a família.
389 Não obstante, “Os summi viri eram representações dos homens valorosos que contribuíram para a
grandiosidade de Roma no passado. As séries de estátuas dos summi viri formavam uma espécie de hall
da fama dos valores nacionais, um monumento que visava ensinar aos visitantes os memoráveis feitos
dos grandes romanos do passado” (BORGES & PIRES, 2016, p. 54).
390 Alguns autores responsáveis pela exposição crítica da fundamental importância do ensino e pesquisa

da Antiguidade Clássica no Brasil são, especialmente, Norberto Luiz Guarinello (2006); e Pedro Paulo A.
Funari (1990/1).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
439

grandes fatos”. Não reduzindo a amplitude da crítica histórica simplesmente a


documentos de cunho político.
O historiador latino que centro minha dissertação é o Tito Lívio (Titus Livius), o
qual nasceu em 59 a.C., na cidade de Pádua (atual Itália). Integrando o grupo de
pensadores que ocuparam local de fala dentre a corte imperial no principado de
Augusto (27 a.C. – 14 d.C.). Minha análise será destinada a sua obra intitulada “História
de Roma” (Ab urbe condita), produzida na denominada Fase Clássica391 da Literatura
Latina (81 a.C. – 68 d.C.). Sendo esta uma compilação de 142 livros, aos quais apenas 35
chegaram até nós da modernidade; e que, em suma, se tem uma datação cronológica
especulativa de produção – dos cinco primeiros exemplares – entre 27 a 24 a.C.
Lívio se predispôs a continuar o que todos os historiadores clássicos anteriores
a ele o fizeram, ou seja, construir uma história geral de Roma. Todavia, estimulado pelo
preceito da originalidade, o autor não continuou seus escritos a partir das obras de
quem o precedeu, o mesmo partiu do começo mais remoto da pólis que viria a se tornar
o grande império que hoje temos conhecimento. Destarte, começou seus relatos desde
a fundação mítica de Roma pelo herói Eneias (por volta de 753 a.C), até meados do
primeiro século da era comu. Indo desde o período monárquico do povo romano (livro 1
[753 – 509 a.C]); sucedendo pela independência de Roma e estabelecimento da
República e do consulado, dando início ao período da história de “liberdade do povo
romano” (livros 2 ao 5 [509 – 390 a.C]); até a sucessão de Otávio Augusto como
imperator (27 a.C), e morte de Druso (9 d.C), nos livros 134 a 142. (BASTOS, 2015.)
Juliana Bastos Marques (2015), abordando o gênero literário presente nas
produções de Tito Lívio ao escrever sobre a história de Roma, apresenta que o mesmo
existiu dentre uma liminaridade entre a queda do modelo republicano ao qual Roma
estava instaurada, reverberando em uma crise de identidade cultural, ratificando uma
degeneração do ser romano; por fim, presenciou a reconstrução do “padrão romano”,
seguido pela expansão do “ser romano” pelas políticas governamentais de Otávio
Augusto.
Ab urbe condita teria então fundamental importância na reconstrução religiosa
e política proposta a Roma, para enquadrar-se no novo modelo imperial trazida pelo
Principado. Ajudando-nos a pensar criticamente e compreender o porquê de

391 Obras escritas em Latim ao invés do Grego.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
440

“Tito Lívio, nos livros que chegaram até nós, narra – e louva - a história
da formação de um povo, de contínuos momentos em que a atuação em
prol da comunidade suplanta os mesquinhos interesses particulares,
refletindo-se em última instância em uma força militar irresistível.”
(BASTOS, 2015, p. [2]).

Encaramos assim, qualquer produção simbólica a respeito sobre determinada


realidade social como produzida a partir de um local de fala segmentado, assim como
afirma Michel de Certeau, em a Escrita da História, que qualquer produção histórica tem
como fruto um ‘local social’ que definirá os parâmetros narrativos do autor.
Tito Lívio, ao contrario de seus pares, não entrou e obteve fama por meio da
carreira militar. Isso o fez ser considerado como o primeiro “historiador profissional”,
vivendo em função de suas produções. O trabalho de compilação de 142 livros para a
estruturação de uma história da “formação de Roma” foi deveras demasiadamente
exaustivo; mas como constam algumas deduções de pesquisadores, o mesmo deve ter
utilizado de escravos e copistas para auxílio em seu trabalho.
História de Roma seria então, não apenas uma história de fundação de Roma,
mas também apresenta refundações392 simbólicas/literárias da mesma através da
narrativa épica. (1) Rômulo funda a pólis física e religiosamente; (2) Camilo impede o
abandono dela para ocupação em Veios após o saque dos gauleses em Roma; por fim,
(3) Augusto “refunda” fisicamente, com a força feroz de uma Cosmopólis.
Não obstante, em detrimento as relações estabelecidas entre Augusto e Tito
Lívio, devo apresentar brevemente que, temos poucas passagens nas produções do
historiador latido que remetem a figura de princeps. Porém, utilizo argumentos
apontados por Bastos (2007), na qual a historiadora afirma que:

“(...) o estado atual da questão aponta, a nosso ver, no mínimo uma


confluência de interesses entre Tito Lívio e Augusto. De fato, os
mesmos elementos e conceitos da história romana que são
fundamentais para Tito Lívio, como pietas, fides, mos maiorum,
auctoritas, gravitas e iustitia são também parte essencial das reformas
promovidas pelo imperador durante todo o seu governo.” (BASTOS,
2007, p. 42).

392 A primeira destas renovações seria então a fundação mítica da cidade por Rômulo (753 a.C.), seguida
crise de Roma após a guerra com os gauleses no tempo de Camilo (fins do século IV), e por fim, a sua
refundação por Augusto no Principado.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
441

Tal associação simboliza a tentativa de Augusto em retomar o passado republicano,


assim como toda a história de formação de Roma para seu destino de formação
pessoal.
Ao que concerne o âmbito político da propagando governamental de Otaviano,
penso esta através das associações feitas na história liviana do princeps ao herói
fundador de Roma, sendo este Rômulo393. Um mortal divinizado que teria seus
descendentes imbricados à família imperial de Augusto. Continuando uma tradição de
divinização do governador vigente proveniente desde o século I a.C., a qual ganhou força
a partir da ditadura de Júlio César.
Apresentando os ensaios de Moisés Antiquera (2014) sobre a temática discutida,
podemos concluir que Augusto propôs em conjunto com Tito Lívio, uma ambígua
relação com o fundador394 da pólis romana, sendo assim,

“(...) uma tentativa de se lidar com a própria natureza ambivalente do


regime político que se gestava em torno de Otaviano/Augusto,
caracterizado por gestos e práticas que ora situavam o governante no
mesmo plano que seus concidadão, ora salientava a sua dimensão
sobre-humana, pautada, entre outros, em elementos conectados à
esfera do divino.” (ANTIQUERA, 2014, p. 140 – 141).

Manipulando o passado mítico de Roma para que tivesse lições para o presente,
convergindo com as novas políticas e mudanças395 propostas pelo imperador,
legitimando os atos constitucionais.
Outra formação de Rômulo como ligada a constituição de Roma, é que ele
conquista sua legitimidade através da própria auctoritas. Usada como mais uma forma
por Lívio para estabelecer pontes de conexão com Augusto. Sendo um fator-chave
utilizado pelo imperador dentre suas políticas de governo, principalmente em conexão
com a pietas, valorizando a base familiar que a sociedade romana estava sustentada.
Augusto é visto como um segundo Rômulo396 por refundar os pilares religiosos
identitários da sociedade romana. Paralelamente, como reforço aos fatores citados,

393 As associações entre Rômulo e a família imperial de Augusto estão presentes no Livro I da História
de Roma. (ANTIQUERA, 2014, p. 137).
394 Os elementos descritivos do personagem mítico de Rômulo frisam sua luta em reconstruir um reino

novo enquanto sobrevivente da destruição de Tróia, mas também, como apoiado por Júpiter,
impulsionando divinização.
395 Expressivamente relacionando-se com as relações entre o monarca e os senadores.
396 Juliana Bastos Marques, ao abordar a narrativa de Tito Lívio apresenta que “(...) alguns senadores

tinham mesmo sugerido a Otaviano a adoção oficial de "Rômulo" como título, mas o nome "Augusto" foi

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
442

coube ao Principado augustano o reforço aos cultos de deuses que antes caíram em
desuso e a reconstrução de templos para diversas divindades.
Marco Furio Camilo, senador romano que viveu em meados do século IV,
também é fortemente associado a Augusto. Na regência de Camilo, segundo relatos
presentes nas produções de Tito Lívio, ele foi responsável pela restituição de Roma
após o saque dos gauleses no IV século. O mesmo tem uma presença fortemente
enaltecida na História de Roma, ao realizar um discurso calcado na pietas e fides sobre
a importância simbólica e espacial da cidade-Estado romana, impedindo seu povo de
abandona-la para emigração destinada a Veios397.
Roma não deveria ser abandonada por ser a localidade de moradia dos
Deuses398, sendo a manutenção e retomada do culto aos deuses pagãos que fez com
que os romanos obtivessem a vitória contra os gauleses399. Estar presente e viver
fisicamente em Roma, na presença dos Deuses que lá moravam são encarados como
uma condição sine qua non para a identidade romana.
Camilo realizou seu discurso resgatando a herança troiana como um modelo
abstrato, quebrando o ciclo de destruição das cidades, não fazendo com que Roma
transformasse-se na nova Tróia caída. Não obstante, Roma seria metaforicamente a
Tróia que triunfou sobre os gregos.
Adentro minha análise citando que Augusto também é muitas vezes associado a
Camilo em Ab urbe condita por ambos serem considerados refundadores de Roma. Em
suma, Otaviano pode ser visto na documentação ligada a Camilo porque sua conquista
também se deu frente a um contexto de invasões das Guerras Civis. Então, Bastos
(2004), apresenta que “Se Camilo derrotou os gauleses, Augusto derrota na guerra civil
as forças de Marco Antônio e Cleópatra, que tinham uma forte tendência
orientalizante.” (BASTOS, 2004, p. 9).
Por fim, percebemos com Laurence Bardin (1997) como a estruturação desse
discurso paralelamente a arte da retórica se deu como fator crucial utilizado por

escolhido pelo seu aspecto religioso e de dignidade em relação a santuários e locais consagrados pelos
áugures. Mas os dois nomes ainda estão interligados, quando vemos que Augusto aparece como um
segundo Rômulo no sentido de refundar os pilares religiosos que definiam a identidade própria dos
romanos.” (BASTOS, 2004, p. 435).
397 Importante mencionar que Camilo também liderou expedições militares para a conquista de Veios.
398 Presença dos templos do Capitólio.
399 Podemos concluir então que, a destituição que os romanos sofreram com o ataque gaulês a pólis

seria uma punição divina pelo descaso da tradição e dos costumes perante o culto dos deuses.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
443

Augusto na reafirmação de sua importância, de sua identidade, e na reconstrução


identitária do povo romano. Ele utilizou das crenças religiosas e mitológicas 400 da
sociedade para calcar seu discurso, tornando-se aliado dos deuses, do senado e do
povo. Utilizo dá Análise do Discurso, proposta da psicanálise, agora usada dentre vários
campos das humanidades a partir do século XX, para pensar as mensagens não-ditas
na construção ideológica da Roma de Augusto e Tito Lívio.
A crise de identidade e destituição do governo republicano fragilizou todo o
sistema que o império estava calcado. As reformas do Principado visavam trazer de
volta a grandiosidade da República.
O rigor metodológico que direciono ao discurso supre meus anseios de entender
como essa mensagem, presente na obra aqui analisada, representaria toda uma classe
de elite que através da grandiosidade de seus feitos se manteria no poder. Pensando o
conjunto linguístico presente na narrativa liviana como fator comunicativo com aqueles
atingidos por sua produção. Entendendo e classificando Roma com substantivos
grandiosos, proporcionando aos interlocutores uma mensagem da superpotência que
Augusto transformou o Império Romano; ou como ele queria ser lembrado pelas
gerações futuras.
Arthur Schopenhauer, ao criar estratagemas sobre a manipulação da verdade
para benefício pessoal, afirma que a dialética consiste na arte de disputar. Um meio de
se sair de uma discussão ou pronunciando – propiciado pela comunicação – com a
razão, utilizando de atos lícitos ou ilícitos para realização de seus objetivos. E, não seria
essa a técnica utilizada por Otaviano em seu governo?
O mesmo adequa seus discurso, assim como as Res gestae em conjunto com o
senado e o povo romano, mas ao ganhar o poder de recensear o povo romano em 28
a.C., ele recenseou mais de 4.063.000 cidadãos. Limitou o número de senadores a 600
membros e determinou que só pudesse se alistar a candidatura os ex-magistrados que
possuíssem um censo mínimo de 1.000.000 de sestércios. Não obstante, Norma Musco
Mendes (2006) afirma que “Ao precisar a ordem senatorial e criar condições, através
da concessão de empréstimos financeiros em benefício daqueles que não possuem o

400Vemos aqui como um mito fundador constitui a imagem de um povo. A grandiosidade da fundação da
etnia aqui discutida manterá um discurso de legitimação e construção ideológica de uma cultura.
Augusto apega-se as crenças da sociedade romana, juntamente a seu discurso ufanista para concretizar-
se como continuador do destino glorioso a qual Roma teria sido criada.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
444

censo, Otávio transformou os senadores em clientes do príncipe” (MENDES, 2006, p.


28).
Todavia, o comando militar superior, os poderes de tribuno e o pontificado
máximo tornavam a soberania do imperador ilimitada. Então, analisando a amplitude do
processo absolutista imperial paralelo a centralização administrativa, torna-se
perceptível como à elaboração do direito401 estava atrelada a decisão imperial.
Continuando minha análise centrada em Bardin e Schopenhauer, a razão, assim
como a verdade, se torna objetiva402 e factual. A vaidade própria do ser humano o faz
estruturar discursos direcionados ao bem próprio e enaltecimento do poder pessoal.
Em suma, pensar a narrativa de Tito Lívio associada à divinização de Augusto
esta paralelamente ligada ao enaltecimento de uma figura que foi demasiada
importante, não somente na dialética da retórica, mas sim em transformar Roma de
uma ruína, a um império militar e agrário tão feroz que conquistou diversos povos e
construiu sua fama dentre a História.
Encerro minha análise com uma citação de Juliana Bastos que resume toda a
discussão aqui presente:

“(...) é através da auctoritas, que remete a Rômulo, que Augusto irá


impor suas reformas e legitimizá-las. O texto das suas Res Gestae é
revelador nesse sentido, pois nele Augusto pretende demonstrar que
seus feitos foram voltados nada mais do que para o bom
funcionamento do Estado, e todo o seu poder foi conquistado e
perpetuado apenas para viabilizar a volta à antiga ordem. É pelo
exercício de sua auctorias que ambos os personagens servem de
exemplum, pois o poder para eles não é veículo para seus interesses
pessoais (...) mas sim ferramenta para a maior dedicação possível ao
Estado – função principal e identificadora do romano ideal. E, assim
como o poder é determinado pela auctoritas, ele também determina o
correto equilíbrio pela concordia ordinum, outro conceito muito
importante para Tito Lívio” (BASTOS, 2004, p. 30 – 31).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo das especialidades relacionadas ao Império Romano põe em prática
discussões cunhadas em perspectivas ligadas a identidade, cultura e poder. A expansão

401Mendes cita que “Os senado consultas continuavam sendo as fontes essenciais do direito, porém era
decisiva a intervenção imperial. Entretanto, na medida em que o poder imperial se fortalecia, a fonte
primordial de direito passou a ser representada pelo príncipe. Ou melhor, passou a ser relacionada à
vontade do imperador” (MENDES, 2006, p. 35).
402 A base de estruturação do discurso seria então: O modo [demonstrar como a proposição concorda

com a natureza das coisas]; e os caminhos [ser direto em suas proposições, com argumentações válidas].

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
445

imperialista do Principado, registradas nas fontes literárias, nos mostram como as


políticas de Otávio Augusto propiciaram uma dominação não apenas econômica e
política, mas também no âmbito étnico, advento favorecido pela tentativa de
padronização comportamental e arquitetônica das províncias anexadas ao império,
moldadas aos padrões de sua capital, ou seja, Roma.
O corpus documental nos mostra uma visão homogênea do mundo Greco-
romano, mas esse viés também foi fortificado pela historiografia tradicional do século
XIX e XX. Podemos observar os paralelos entre o Império Romano e as potências
imperialistas do mundo moderno. Estes se tornaram apropriadores da experiência
imperialista romana através de discursos ideológicos legitimadores e justificadores do
direito de conquista colonial de blocos econômicos adjacentes. Atribuindo a ação
conquistadora de potências como a Inglaterra, Itália e França postas como herdeiras
diretas de Roma403. Cumprindo um papel de disseminação entre os nativos explorados
o que os povos romanos classificaram como civilização. (MENDES, 2007, p. 2.).
Até a construção do Império Romano, assim como toda a História Antiga, separa
entre Grécia, Oriente Próximo e Roma apresenta ideologias eurocêntricas de
construção de uma História Universal, que finde nada menos que na formação do
Mundo Europeu Ocidental contemporâneo. Concomitantemente encontramos nas
produções acadêmicas, principalmente do século XIX, de acordo com as assertivas de
Norberto Luiz Guarinello (2010) que, “Ao mesmo tempo, os conceitos que estavam por
trás da criação dessas ‘histórias’, como nação, povo, raça, civilização, são evidentes
projeções anacrônicas de um presente que não é mais o nosso.” (GUARINELLO, 2010,
p.1.).
Devemos buscar a história do Império Romano a partir de suas particularidades,
encarando seus povos de acordo com a realidade ao qual eles estavam inseridos, de
intercâmbio e contato direto entre o Mediterrâneo.
Utilizar as produções da Literatura Latina para estudar a Antiguidade Clássica
nos fornece um paralelo de como esse discurso centrado em Roma, assim como o foco
do projeto imperialista se construiu na historiografia. Não obstante, tendo auxílio dos

403Claude Lepelley (2016) apresenta fortes argumentos para explicar as empreitadas de exploração da
África do Norte por ações imperialistas, legitimadas pela máscara de “retomada das descendências
romanas” que as potências citadas alegavam possuir.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
446

estudos a respeito dos processos de Romanização404, anexados aos estudos


provinciais, podemos nortear a análise a partir de preceitos de encarar o mundo antigo
como um conjunto de sociedades governadas por suas próprias leis, ideais e valores
que denominavam a ação coletiva.
A própria classificação do estudo imperialista direcionado aos povos romanos e
seu império demarca um processo anacrônico. Norma Musco Mendes (2007) apresenta
que, “Neste contexto histórico-cultural foram produzidos esquemas de análises
baseados em abordagens, as quais consideram o Império Romano de “imperialista” no
sentido específico que este termo adquiriu desde o final do século XIX.” (MENDES,
2007, p. 2).
Pensar os “discursos oficiais” juntamente com a realidade histórica, outorgando
poder de fala aos povos ditos “bárbaros405” nos tira da zona de conforto de pensar o
mundo romano a partir de uma visão romano-centrista.
Todavia, a junção entre a literatura e os registros da cultura material mostram
visões contrárias. Apesar de Augusto e Tito Lívio apresentarem um império
homogêneo, os estudos arqueológicos demarcam as relações plurais de Roma com
suas províncias. Pensa-se então que o imperador precisava registrar Roma como centro
dominador, a construção desse discurso legitimaria seu governo e sua fama como
reconstrutor da pólis que estava em ruínas.
Por fim, a dominação romano-centrista se deu como uma forma
institucionalizada de poder, e a resistência proporcionada pelas teorias pós-coloniais
significa uma contraposição organizada ao poder estabelecido.
Encarando assim a formação da identidade romana como construída a partir do
processo expansionista colonial. Perspectiva trabalhada por Guarinello classificando-a
com uma forma de hibridização. Não podemos engessar barreiras construtivas do
Império Romano, este agora é encara como construtivo, sendo assim uma categoria
histórica; porém, acima de tudo, foi organizando-se de acordo com a necessidade do
contato.

404Conceito criado no final do século XIX, a início do século XX que classifica o processo de contato entre
romanos e os povos do mediterrâneo.
405 Estudos sobre a temática em questão, dita esta barbárie versus civilização, são feitos pelo

pesquisador Tvetan Todorov (2010), dita essa distinção sempre pelo dominador; o qual sempre alega que
é superior ao dominado. Temos que pensar o norteamento dessa dicotomia a partir do sentido
etnocêntrico da cultura dominadora, que recenseia tudo aquilo que o outro é a partir do que não tem em
comum com o explorador.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
447

Finalizando, não podemos ter uma “visão geral” do imperialismo romano, porque
mesmo que o Tito Lívio tenha se predisposto a contar a História geral de Roma e tenha
apresentado as discussões entre as elites no poder e controle da expansão romana,
ainda é pelo local de fala e realidade do mesmo. Com fins muito bem recortados.
Podendo assim, nos fornecer uma visão da “Roma de Tito Lívio” e o porquê de sua
construção.
Pensando a realidade do Mediterrâneo como uma confluência de realidades
distintas que formaram a diversidade espacial, sendo assim,

“(...) neste sentido que podemos falar em resistência nos processos de


Romanização, os quais designam as mudanças sócio-culturais
desiguais surgidas através de relacionamentos, também, desiguais
entre o poder imperial dominante e os diferentes grupos sociais das
comunidades submetidas, criando em toda a extensão do mundo
Romano “experiências divergentes”.” (MENDES, 2007, p. 8).

REFERÊNCIAS
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J.
(Coords.). Impérios na História. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 2009. WOOLF,
Greg. Roma: A História de um Império. Tradução: Mário Molina. São Paulo: Editora
Cultrix, 2017.

MENDES, Norma Musco. O Sistema Político do Principado. In. SILVA, Gilvan Ventura
da; MENDES, Norma Musco. (Orgs.). Repensando o Império Romano: perspectiva
socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2006, p. 21 – 51.

WALLACE-HADRILL, A. Mutatium morum: the idea of a cultural revolution. In: Habinek,


Thomas and Schiesaro, A. The Roman Cultural Revolutin. Cambridge University
Press, 1997.

MENDES, Norma Musco. Roma República. São Paulo: Editora Ática S.A., 1998.

BELTRÃO, Cláudia da Rosa. A Religião na Urbs. . In. Repensando o Império Romano:


perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2006, p.
137 – 160.

MENDES, Norma Musco. O conceito de Romanização: Uma reflexão. In. ANPUH – XXIV
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. 24 ed. Anais... São Leopoldo, 2007, p. 1 – 9.

SCOPACASA, Rafael. Repensando a romanização: a expansão romana na Itália a partir


das fontes historiográficas. In. rev. hist. (São Paulo), n. 172, p. 113-161, jan.-jun., 2015.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Ordem, Integração e Fronteiras no Império Romano. Um


Ensaio. In. Mare Nostrum. v.1. São Paulo: USP, 2010, p. 113 – 127.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
448

BUSTAMANTE, R. M. da C. Práticas culturais no Império Romano: entre a unidade e a


diversidade. In: MENDES, N. M.; SILVA, G. V. da (org.). Repensando o Império Romano:
perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro – Vitória: Mauad –
EDUFES, 2006, p. 109-136.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929 – 1989: A revolução francesa da


historiografia. Tradução: Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Tradução: Luis Antero Reto & Augusto
Pinheiro. Edições 70, Press University of France, 1997.

SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Ter Razão (1788 – 1860). 3.ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. – (Obras de Schopenhauer).

BORGES, A. S.; PIRES, T. A. L.C. Arqueologia Semiótica e as artes no Principado: um


estudo de caso do Fórum de Augusto e do Fórum de Augusta Emérita. Hélade, v. 2, n.
1, 2016, p. 52-61.

VEYNE, Paul. O Império Greco-Romano. Tradução: Marisa Motta. Rio de Janeiro:


Elsevier, 2009.

CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Otávio Augusto e as suas redes-político


religiosas nos quattuor amplissima collegia sacerdotum romanorum (29 AEC- 14
EC). 2017. 394 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017.

CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A Literatura Latina como Documentação nas


Pesquisas Históricas: Um Estudo de Caso em Tito Lívio. In: NETO, José Maria Gomes
de Souza (Org.). Antigas Leituras – Diálogos entre a História e a Literatura.
Pernambuco: Edupe, 2012, p. 107-116.

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e


desvantagem da história para a vida. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2003.

GUARINELLO, Luiz Norberto. O Império Romano e Nós. In. SILVA, Gilvan Ventura da;
MENDES, Norma Musco. (Orgs.). Repensando o Império Romano: perspectiva
socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2006, p. 13 – 19.
FUNARI, Pedro Paulo A. R. História, São Paulo, nº 123 – 124, p. 143 – 219, ago./jul.,
1990/1991.

MARQUES, Juliana Bastos. A ideia de História em Tito Lívio. In: SILVA, Glaydson José
da (org.). A ideia de História na Antiguidade Clássica. São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2015.

MARQUES, Juliana Bastos. Tradição e renovações da identidade romana em Tito


Lívio e Tácito. São Paulo: USP, 2007, 258 p.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
449

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,


2008

ANTIQUERA, Moisés. Augusto, Tito Lívio e as ambiguidades do divino Rômulo. In.


CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; CANDIDO, Maria Regina. (Orgs.). Caesar Augustus:
Entre práticas e representações. Vitória/Rio de Janeiro: DLL-UFES/UERJ-NEA, 2014, p.
129 – 151.

TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: Para além do choque das civilizações.
Tradução: Guilherme João de Freiras Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

LEPELLEY, Claude. Os romanos na África ou a África na romanização? Revista


Heródoto. Unifesp. Guarulhos, v. 01, n. 01. Março, 2016. p. 418-437.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
450

AS EPÍGRAFES FUNERÁRIAS E O ESTUDO DAS ELITES


PROVINCAIS ROMANAS: O CASO DA PROVÍNCIA DA LUSITÂNIA
(SÉCULOS I E II E. C.)
Matheus Vinícius de Araújo406 – UFRN
Orientadora: Airan Borges de Oliveira407 – UFRN

INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado do desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado
"Pedras, Letras e Memórias: a cultura material e o estudo das elites provinciais
romanas", coordenado pela professora Drª Airan dos Santos Borges de Oliveira do DHC
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus Ceres – Caicó e está
vinculado ao Laboratório de História e Práticas de Pesquisa (LHCP).
O objetivo central do projeto de pesquisa supracitado consistiu em analisar o
fenômeno imperialista romano a partir da perspectiva provincial, isto é, enfatizando as
relações entre as áreas anexadas ao Império, transformadas em províncias, e o centro
imperial, a cidade de Roma. Nesse sentido, optamos por centrar nossos estudos na
província de Lusitânia, localizada na Península Ibérica, entre os séculos I e II d.C., período
em que, de acordo com os dados arqueológicos, formou-se a chamada ‘sociedade
provincial’ – fruto das interações entre as populações locais e os colonos italianos.
Para isso, catalogamos e inventariamos epígrafes funerárias encontradas na cidade de
Mérida (atual território espanhol e que foi a cidade de Augusta Emérita no período
augustano) a partir do catálogo virtual Hispânia Epigraphica Online Database408 e
desenvolvemos um catálogo específico para onde as epígrafes foram destinadas.
Em relação à documentação, escolhemos a cultura material produzida nos
espaços provinciais, sobretudo, a Epigrafia. De acordo com José d’Encarnação (2010, p.
17) “epigrafia é a escrita (grafia) sobre (epi) determinado suporte”. Os textos
epigráficos poderiam ter as seguintes tipologias: funerárias, honoríficas, votivas,
administrativas e jurídicas. Assim, a escrita poderia indicar informações que deveriam
ser perenizadas (dados biográficos dos mortos, acordos políticos, dados
administrativos, dedicações aos deuses, etc.).

406 Aluno de graduação em História e bolsista de Iniciação científica (PIBIC), Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Ceres – campus Caicó. E-mail: mxtheux@gmail.com.
407 Professora de História no Departamento de História do Ceres (DHC), UFRN, Ceres, campus Caicó. E-

mail: borgesairan@gmail.com
408 Disponível em: http://eda-bea.es/ acesso em 08/08/18, às 18h25min

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
451

Neste estudo, direcionamos nossas análises para as epígrafes funerárias já que


essa tipologia documental nos fornece dados significativos a respeito dos indivíduos,
das famílias, das associações políticas e religiosas que compunham os diversos grupos
sociais que deram forma à sociedade provincial. É pelas epígrafes funerárias que se
tornou possível identificar o perfil social, econômico e político dos indivíduos, dados
estes que nos auxiliaram a compreender como os agentes presentes na província da
Lusitânia se auto-representavam.

O IMPÉRIO ROMANO A PARTIR DAS PROVÍNCIAS


A expansão romana, iniciada no fim do período republicano, fez com que o
Império Romano entrasse em contato com diversas áreas do mundo mediterrâneo. Por
muito tempo, a historiografia especializada (sobretudo a partir do século XIX)
privilegiou o binômio conquistadores versus conquistados, na análise das relações
entre Roma e as áreas anexadas, respectivamente. Nessa lógica, os povos então
conquistados eram retratados como indivíduos passivos de dominação, ou seja, Roma
era caracterizada como a nação civilizadora que levaria a ordem e, dentre outros
aspectos, a cultura para os outros povos (MENDES, N. & ARAÚJO, Y. 2007, p. 258).
Entretanto, entre as décadas de 1960 e 1970, com o avanço das pesquisas
historiográficas (período este que representa as novas abordagens em relação às
interações entre Roma, como centro imperial, e as diversas áreas em contato), esta
perspectiva cêntrica foi revista.
Dialogando com as chamadas Teorias Pós-Coloniais, autores como Greg Woolf
(2015), Norma Musco Mendes (1999) e, dentre outros, Norberto Luiz Guarinello (2010)
problematizaram as relações entre Roma e as áreas mediterrânicas, repensando,
sobretudo na relação de domínio estabelecida entre ambas. Nessas análises, as
relações entre as populações locais/provinciais e o centro imperial não foram mais
vistas a partir da lógica da dependência passiva, como se fossem meros espectadores.
Outrossim, os estudos passaram a se interessar pela identificação dos povos que
habitaram as áreas provinciais, suas dinâmicas sociopolíticas internas, seus interesses
econômicos, assim como também as estratégias e táticas desenvolvidas pelos
indivíduos enquanto agentes ativos de suas próprias histórias.
Os primeiros contatos de Roma com a Península Ibérica, área de nossos estudos,
datam nas Guerras Púnicas, uma série de conflitos que marcaram a disputa pelo

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
452

controle do Mediterrâneo Ocidental, entre Roma e a cidade de Cartago ocorrido ao


longo do século III a.C. Após a vitória romana, a região foi anexada ao Imperium, dando
origens a duas províncias, a saber, a Hispânia Citerior, ao norte, e a Hispânia Ulterior, ao
sul.
Contudo, nos últimos 30 anos do século I a.C., ainda existiam focos de resistência
ao domínio romano, sobretudo no noroeste peninsular, com os povos Cântabros e
Austures. Frente a isso, foi apenas sob o comando do Princeps Augusto, na década de
20, que as legiões X Geminae e VII Alaudae consolidaram a conquista do noroeste
peninsular, o que deu início a outra fase na relação entre Roma e a Península. A partir
da consolidação das conquistas pela atuação militar, a região passou por uma reforma
administrativa operacionalizada pelo Princeps Augusto, em 27 a.C., sendo reorganizada
administrativamente em três províncias, a saber: Tarraconense, ao norte; Bética, ao sul
e a Lusitânia, que compreendia as regiões oeste e sudoeste peninsular (isto é, a fachada
atlântica e parte da atual Extremadura espanhola). Esta reorganização materializou um
projeto de intensificação das relações entre a cultura política italiana e os contextos
políticos locais. (BORGES, A., 2014, p. 76). Abaixo, podemos observar no mapa como
ficou a Península Ibérica com a divisão feita pela reorganização administrativa de
Augusto.

Mapa 1 – O Império Romano durante o Principado de Augusto409.

409Imagem retirada da obra de WATTEL, O. Petit atlas historique de I’Antiquité. Paris: Armand Colin,
1998, p. 61.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
453

Depois dessa reorganização, a província da Lusitânia passou a ser uma das três
áreas centrais para a administração da Península Ibérica, recebendo a fundação de
várias cidades e a ressignificação de cidades que já existiam (e que passaram a ser
administradas de acordo com as leis romanas). Devido a sua localização estratégica
(mantinha contato com o mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico), constitui-se em uma
área de intenso comércio e foi palco de relações políticas, religiosas e sociais entre as
cidades que a conformaram, conjuntamente com as demais províncias e entre Roma.
Nesse contexto, a cidade de Augusta Emérita foi fundada em 25 a.C. por Otávio
Augusto para ser a capital administrativa da província da Lusitânia e para centralizar as
relações entre os povos locais e os romanos daquela região. Isso ocorreu dentro da
reorganização administrativa e urbana feita pelo Princeps na tentativa de unificar a
administração local, uma vez que a diversidade cultural e social estava fortemente
presente neste território e Augusto queria consolidar a dominação romana nessa
também nessa localidade.
Tendo em vista este contexto, nos dedicaremos ao estudo da sociedade
provincial através das epígrafes funerárias encontradas na cidade de Augusta Emérita,
com a finalidade de examinarmos a formação desta sociedade provincial. Em linhas
gerais, as epígrafes funerárias se caracterizam pela forma jurídica Hic Situs Est Siti Tibi
Terra Levis que significa “Aqui jaz, que a terra te seja leve” e tinham como o objetivo
identificar o morto, localizando-o em suas relações familiares, além de apresentar toda
a trajetória que percorreram em vida (tais como os cargos políticos desempenhados, as
atividades econômicas e profissionais, as relações pessoais e religiosas).
Sobre isso, Helena de Carvalho (1992, p. 28 – 35), ressalta que as inscrições
serviam como pequenas bibliografias dos mortos nas quais eram representadas as
suas relações nos diversos meios da sociedade seja ele religioso, jurídico ou político.
Além disso, também localizavam o local em que o morto estava enterrado para que este
recebesse as cerimônias religiosas ligadas ao culto à memória dos mortos.
A partir dos dados apresentados pelos monumentos fúnebres e suas epígrafes,
podemos identificar detalhes sobre a composição social das cidades provinciais, como
aconteciam as diversas relações entre os grupos sociais locais e suas interações com
grupos de outras regiões do Império. Assim, a cultura material nos auxiliará a mapear
as relações entre os diversos agentes envolvidos na dinâmica cotidiana local e
provincial. Dessa maneira, os estudos de Helena de Carvalho (1992, p. 39 – 44) e de José

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
454

Remesal Rodríguez (2016, p. 27 – 31) demonstram que a cultura material tem grande
importância na construção de novas teorias que valorizam a atuação ativa desses povos
na construção de sua sociedade e apontam como a epigrafia funerária contribui para
que possamos entender, de certa maneira, como aconteciam as relações entre os
indivíduos.Dessa maneira, com a discussão feita por Remesal (2016) podemos
identificar que as práticas funerárias romanas foram disseminadas, na medida em que
Roma entrava em contato com as diversas áreas.

PERCURSO METODOLÓGICO PARA UM ESTUDO EPIGRÁFICO: AS ANÁLISES DA


SOCIEDADE PROVINCIAL LUSITANA APARTIR DO CASO DA COLÔNIA DE AUGUSTA
EMÉRITA
O presente projeto se desenvolveu através de reuniões periódicas dentro do
grupo de estudos sobre o Império Romano que visavam discutir e analisar como
manusear, catalogar e utilizar os documentos trabalhados sejam escritos ou materiais.
No caso da documentação material, o principal aporte foi a epigrafia funerária. Ao longo
do trabalho foram levantadas e catalogadas 150 do catálogo online Hispânia Epigráfica
em um banco de dados no programa Access, elaborado especificamente para a
catalogação das epígrafes levantadas neste trabalho, no qual 71 epígrafes eram
funerárias. Logo após este trabalho de levantamento e catalogação, foi feita a tradução
do latim para o português. Depois da tradução das epígrafes foi gerado os devidos
gráficos que representavam as disposições das epígrafes funerárias nas cidades da
província da Lusitânia. A seguir podemos identificar as disposições das epígrafes
funerárias encontradas na província da Lusitânia.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
455

Gráfico 1 – Disposição gráfica das epígrafes funerárias na província da Lusitânia. Gráfico elaborado por Airan
dos Santos Borges de Oliveira em maio de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
456

Neste trabalho, optamos por apresentar as epígrafes funerárias encontradas na


cidade de Augusta Emérita, centro administrativo, comercial e político da província da
Lusitânia. Dentre os dados agrupados, observamos que ao identificar o morto, muitas
epígrafes apresentam não apenas os dados autobiográficos, mas incluem também,
informações sobre os locais de nascimento e do desempenho de suas funções públicas.
Em nosso estudo, nos dedicamos aos Topônimos de Origem, isto é, as informações que
identificam a origem dos indivíduos. Esse aspecto foi importante para entendermos a
circulação dos grupos entre as cidades e, até, entre as províncias. Dentre o
levantamento realizado foi possível encontrar 26 topônimos de origem diferentes. No
caso da cidade de Augusta Emérita, identificamos 12 topônimos de origem que remete
a 12 cidades distintas, vide o gráfico abaixo.

Gráfico 2 – Representação gráfica dos topônimos de Origem na cidade de Augusta Emérita410.

Frente a esses dados, é possível construir a hipótese de que tratar-se-iam de


indivíduos que nasceram em outras regiões e, por diferentes motivos (que, na maioria
dos casos, não nos é possível compreender) migraram para a capital provincial.
Apresentaremos, agora, uma representação gráfica dos topônimos de origem
identificados em Augusta Emérita e, logo após, analisaremos dois casos que

410 Gráfico gerado a partir do catálogo do Access elaborado por Airan dos Santos Borges.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
457

exemplificam o que já foi exposto, a saber, o monumento funerário de Quinto Licinio


Paterno e Tito Mânlio, ambos datados entre os séculos I e II d.C. através desses dois
monumentos podemos identificar as relações que os indivíduos possuíam em vida.
Vejamos a ficha catalográfica dos documentos:

Ficha 1 – Epígrafe Funerária de Quinto Licínio Paterno411

Procedência: Mérida, Badajoz, Extremadura, Espanha.

Paradeiro: Madrid - Museo Arqueológico Nacional.

Número de registro: 329

Inscrição Latina:

D(is) M(anibus) s(acrum) / Q(uintus) Licinius Pa/ternus


Inter/anniensis / ann(orum) LXXV Licinia / Paterna patri / et
Licinia Fla/vina marito optimo f(ecerunt)

Transcrição:

Consagrado aos deuses Manes, Quinto Licínio Paterno,


Interaniense de 75 anos, Licinia Paterna, ao pai, e Licinia
Flavina, ao ótimo marido, mandaram fazer.

411 Imagem disponível em: http://eda-bea.es acesso em 08/08/18, às 18h35m.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
458

Imagem 2 – Epígrafe funerária de Tito Manlio Lucio 412.

Procedência: Mérida, Badajoz, Extremadura, Espanha.

Paradeiro: Museo Nacional de Arte Romano – Mérida.

Número de registro: 327

Material: Mármore.

Inscrição Latina:

T(itus) Manlius L(uci) f(ilius) / Segobrigens(is) / hic


s(itus) e(st)

Transcrição:

Tito Manlio filho de Lucio, Segobrigense, aqui jaz.

A partir da análise dessas epígrafes podemos identificar com quem eles se


relacionavam, quais famílias eles integravam e qual a suas origens. a partir do topônimo
de origem podemos identificar que a referida cidade representada na epígrafe mantinha
relações com a cidade de Augusta Emérita e assim surge algumas inquietações, que
poderão vir a ser elementos centrais de pesquisas posteriores, a saber: qual era a
importância da cidade (representeada através do topônimo de origem) para a província?
Qual a dependência desta cidade em relação a Augusta Emérita ou virse e versa? Enfim,
essas questões serão norteadoras para análises mais aprofundadas sobre as
dinâmicas existentes na província da Lusitânia.

412 Imagem disponível em: http://eda-bea.es. Acesso em 08/08/18, às 19h00

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
459

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vias de conclusão, de acordo com o que já foi apresentado anteriormente,
podemos identificar que as diversas etapas da conquista romana na Península Ibérica
foram caracterizadas pelas divisões deste território em províncias, a saber: Hispânia
Ulterior e Hispânia Citerior até o século I a. C. e, após a instituição do principado de
Otávio Augusto em 27 a.C., Tarraconense, Bética e Lusitânia.
O maior objetivo da reorganização das províncias por Otávio foi a tentativa de
unificação administrativa, política e jurídica para a consolidação do domínio romano nas
novas áreas em contato com o Império. Entretanto, como Airan Borges (2014, p. 79) e
Vasco Gil Mantas (2004, p. 75), essa reorganização administrativa tinha caráter único,
mas não compreendia toda a diversidade existente na província, pois, os povos
autóctones da península possuíam as suas organizações estabelecidas antes dos
contatos com Roma. Desse modo, a diversidade local mesmo sendo negligenciada pelo
centro imperial, que queria consolidar o seu domínio também nesta área da Lusitânia,
conseguiu resistir a completa dominação romana. Assim, Mantas (2004, p. 75) e Borges
(2014, p. 78) consideram que a consolidação administrativa feita por Augusto
caracterizou-se como uma construção artificial, pois não compreendia toda a
diversidade e a realidade das populações locais.
O que podemos concluir, a partir das discussões de Mantas (2004, p. 75 – 77) e
Borges (2014, p. 79) é que a reorganização provincial por Augusto em 27 a.C. levou para
Península Ibérica novas culturas e isso intensificou o contato entre traços identitários
romanos, mediterrânicos, locais e indígenas. É por isso que podemos compreender a
formação da sociedade provincial a partir dessas interações entre as populações locais
e os romanos, mas não podemos desconsiderar o fato de que os povos da província da
Lusitânia já possuíam as suas próprias maneiras de viver com administração, política e
organizações próprias.

REFERÊNCIAS
Catálogos Epigráficos
Hispânia Epigraphica Online Database.

Corpus Inscriptionum Latinarum

Bibliografia Consultada
BORGES, Airan dos Santos. Espaço e poder no principado augustano: a criação da
província da Lusitânia em perspectiva. In: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa;

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
460

CANDIDO, Maria Regina (Orgs.). Caesar Augustus: Entre práticas e Representações.


Vitória/Rio de Janeiro: Dll-UFES/UERJ-NEA, 2014. p. 65 – 82.

BORGES, Airan dos Santos. A paisagem imperial em cidades da Lusitânia: Um estudo


comparado das formas de integração da elite provincial entre os séculos I a. C. e III d.
C.. 2016. 491 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História
Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2016.

CARVALHO, Helena Paula Abreu de. A escultura romana em Portugal: Um ensaio de


Arqueologia Social. 1992. 250 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arqueologia Social,
Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
Universidade dos Açores, Ponta Delagada, 1992

GUARINELLO, N. Ordem, Integração e Fronteiras no Império Romano: um ensaio. In.


Revista Mare Nostrum, ano 2010, v. 1, p. 113-127.

MENDES, N. Romanização: cultura imperial In. Revista Phoînix, Rio de Janeiro, 5: 307-
324, 1999.

REMESAL – RODRÍGUEZ, José. Aspectos legais do mundo funerário romano. OMENA,


Luciene Munhoz de; FUNARI, Pedro P. A. (Orgs.) Práticas funerárias no Mediterrâneo
Romano. Paco Editorial: São Paulo, 2016, p. 25 – 46.

WATTEL, O. Petit atlas historique de I’Antiquité. Paris: Armand Colin, 1998, p. 61.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
461

Simpósio Temático 8
MEMÓRIA, ORALIDADE E HISTÓRIA POLÍTICA
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
462

REDEMOCRATIZAÇÃO E PODER LOCAL: A OLIGARQUIA


ROSADO NO PAÍS DE MOSSORÓ – 1945-1964
Dr. Lemuel Rodrigues da Silva413
Dr. Marcílio Lima Falcão414

O objetivo do artigo é analisar a trajetória da família Rosado, a partir da


implementação de estratégias, isto é, o cálculo e as relações de força empregados
pelos Rosados a partir das instituições que estavam sob sua influência política e que
nortearam as articulações em determinadas conjunturas políticas, permitindo ao grupo
a consolidação no comando da política mossoroense no período da redemocratização
(1945-1964).415 Pertencentes a uma cultura política, cujas práticas e representações,
partilhadas historicamente, assentaram-se no uso do assistencialismo e paternalismo
como meio de transformar o público em privado, a família Rosado se apropriou do
discurso que, desde a segunda metade do século XIX, narrou Mossoró como empório
comercial e, posteriormente, como cidade industrializada.416
Esse discurso de modernização, além de produzir uma memória oficial sobre os
chamados “heróis-civilizadores” (comerciantes e industriais), foi sustentado numa
política corporativista que usou verbas públicas, especialmente, nos períodos de
estiagem, como meio de ampliar o domínio político local através do controle e
exploração da mão de obra dos flagelados das secas, utilizada, essencialmente, em
obras públicas e nas salinas a um custo baixíssimo para os empresários.
Tal situação revela outro aspecto importante das relações da família Rosado
com os trabalhadores, marcada pela cooptação ou coerção, onde a atuação do Partido
Comunista na organização do movimento sindical expressa as tensões diante da
efetivação das estratégias de mando que propiciaram a manutenção do poder local
pelos Rosados.

413 Professor adjunto do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
414 Professor adjunto do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
415 Sobre o conceito de estratégia ver: CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1 As artes de fazer.

13 ed. trad. Ephraim Ferreira, Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 99.


416 MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas Políticas na História: novos estudos. 2 ed. Belo Horizonte,

MG: Fino Traço, 2014, p. 21.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
463

OS HERDEIROS DE JERÔNIMO ROSADO ENTRAM EM CENA


A vitória do Partido Popular em 1934 é a vitória do conservadorismo e do
mandonismo, que sofreram com a Revolução de 30 um revés, mas que, por conta da
própria contradição do movimento e da ausência de um grupo revolucionário forte no
Estado, essas práticas políticas voltam com a vitória de Rafael Fernandes em 1934.417
Em Mossoró, Fernandes e Rosados se fortaleciam cada vez mais, montados numa
estrutura econômica que lhes garantiam a manutenção do poder e com o alijamento
dos grupos oposicionistas em consequência do fracasso do Movimento de 1935.418
Conforme Brasília Carlos, “o início do processo de organização dos
trabalhadores, levaria as elites locais a sentirem-se ameaçadas em seus privilégios e a
colocarem-se desde logo frontalmente contrárias a qualquer iniciativa nesse
sentido”.419 Assim, a derrota da Intentona fortaleceu o governo culminando com uma
maior articulação com a elite empresarial e política local, pois inicia-se uma verdadeira
caça às bruxas e, os operários das salinas seriam os mais sacrificados, uma vez que “o
fracasso do levante de Novembro ofereceu, enfim, o pretexto que os proprietários
ansiavam para arrasar com os sindicatos”.420 Foi nesse clima político de final da
década de 1930, que os herdeiros de Jerônimo Rosado passam a ter uma maior
participação na vida pública de Mossoró; primeiro, apoiando candidaturas,
posteriormente suas próprias, sempre respaldados pela condição financeira da família,
atuando em conformidade com seus interesses e, buscando se adaptar às novas
situações políticas.421

417 O termo mandonismo é usado tendo como referência as relações de poder entre as famílias
tradicionais, representado pelo coronel, que atua na sua região com poder de Estado, criando uma
dependência do homem do campo ou da cidade com a sua pessoa. Dessa ação do Coronel nasce o
Mandonismo, o Paternalismo, o Filhotismo. Esses conceitos são trabalhados em obras como
Coronelismo, Enxada e Voto de Victor Nunes Leal, página 41, 3ª edição, 1997 e O Mandonismo na Política
Brasileira e outros Ensaios de Maria Isaura Pereira de Queiró, Rio de Janeiro: Difel, [s.d.p.]. t. III, v. 1, p. 155-
190 e CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão conceitual.
Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n.2, 1997. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003#*. Acesso em:
07/ago/2000
418 FERREIRA. Brasília Carlos. O Sindicato do Garrancho – 2 ed. Mossoró-RN: Departamento Estadual de

Imprensa, p. 138-140. (Coleção Mossoroense, Série C; v. 1014); COSTA, Homero. A Insurreição Comunista
de 35: Natal – O primeiro Ato da Tragédia. São Paulo: Editora Ensaio, 1995, p. 69-77; SPINELLI, José
Antônio. Getúlio Vargas e a Oligarquia Potiguar (1930-1935). Natal: Editora da UFRN, 2010, p. 203;
VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 1935: sonho e realidade. São Paulo: Expressão
Popular, 2011, p. 247-252.
419 FERREIRA. Brasília Carlos., op. cit, p. 88.
420 Idem, p. 140.
421 FELIPE, José Lacerda Alves. Memória e imaginário político na (re) invenção do lugar: os Rosados e o

“País de Mossoró”. Tese (Doutorado) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
464

Com a crise do Estado Novo, consolida-se o discurso de redemocratização, onde


as forças anti-getulistas, já organizadas em partidos, se articulam para derrubar o
ditador. É nesse contexto que velhas e novas forças políticas se unem por meio de um
rearranjo político, cuja finalidade é a manutenção das estruturas de poder,
especialmente no nível local. As oligarquias tradicionais do Nordeste,
ultrapassadas nas suas práticas coronelistas, paternalistas e assistencialistas de
fazerem política, buscam na adesão de novos discursos uma alternativa que lhes
garantissem a continuidade no poder. No Rio Grande do Norte, UDN e PSD incorporam
velhas lideranças com novos quadros e fazem o seu melhor exercício político que é
buscar a renovação sem mudanças.
Nessas articulações, a participação da família Rosado na organização da UDN
em Mossoró, mostra a sua capacidade de adaptação às novas conjunturas, mesmo que
não valorize os posicionamento ideológicos que devem direcionar as ações dos partidos
políticos, os Rosados mantiveram-se agregados a um projeto de sociedade voltado a
preservação dos interesses das camadas mais ricas.422 Um exemplo é a trajetória
política de Jerônimo Dix-Huit Rosado entre 1930 e 1945. Nos vários episódios que
ocorreram no governo Vargas, a sua posição é contrastante, se em 1930, participa da
formação do chamado “Novo Brasil”, cujo discurso era fazer acreditar que o Brasil
estava liberto da política dos coronéis, em 1932, atua ao lado dos paulistas, contra a
estrutura que ele ajudou a montar; Já em 1935, na Intentona Comunista se posiciona
contrário, até porque sendo integrante de uma família tradicional, dificilmente apoiaria
um movimento comunista. Em 1937, justificou sua adesão ao Estado Novo por
acreditar que a solução “... pela revolução, pelo golpe... fosse o melhor” para resolver as
dificuldades administrativas”.423
O mesmo Dix-Huit Rosado, revolucionário de 1930, constitucionalista de 1932 e,
golpista de 1937, surge como democrata em 1945, fazendo parte da UDN e, portanto,
integrante do grupo anti-getulista que lutava para derrubar toda a estrutura que havia
ajudado a construir. A explicação para as mudanças encontra-se no personalismo
utilizado por Dix-Huit tanto para caracterizar Getúlio Vargas como inspiração política,

422 Sobre a importância e a função da dimensão ideológica nos partidos políticos ver: BERSTEIN, Serge.
Os partidos. In: REMOND, René (org.). Por uma História Política. 2 ed. trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2003, p. 57-60.
423 LIRA, Carlos (Org.). Memória Viva de Dix-Huit Rosado. Natal: Editora Universitária da UFRN, 1986. p.

21. (Coleção Mossoroense, v. CCCXXVII)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
465

quanto por ver em Eduardo Gomes uma figura exponencial no cenário político
brasileiro.424
As mudanças de Dix-Huit e, portanto da família, mostram uma postura
reacionária e conservadora, tipicamente dos grupos que buscam os caminhos mais
adequados para ascender ou permanecer no poder. A expectativa da vitória de Eduardo
Gomes para Presidente da República nas eleições de 1945, dava ao grupo uma certa
segurança, quanto ao seu projeto de assumir o controle político da cidade.
O resultado das urnas adia tal projeto, e a oligarquia assiste a ascensão do PSD
local sob a liderança de a liderança de Vicente da Mota Neto, sobrinho do Padre Mota,
que a exemplo das famílias Rosados e Fernandes, havia se filiado a UDN, mas que
aceitara a proposta de liderar o partido situacionista na cidade. Portanto, rompe com
seus aliados tradicionais e passa a apoiar a candidatura do General Eurico Gaspar Dutra
a Presidência da República. Mesmo não conseguindo eleger seu candidato à presidente,
o grupo saiu fortalecido, pois elegeu Dix-Huit Rosado para a Assembleia Legislativa
Estadual e no ano seguinte Vingt Rosado para a Câmara de Vereadores.
Em 1948 começaria o processo que levaria à consolidação do mando rosadista
na política de Mossoró. A campanha de 1948 é marcada por uma grande disputa entre
as elites mossoroenses ligadas à UDN e ao PSD. A candidatura de Jerônimo Dix-Sept
Rosado é apresentada ao povo como a redenção dos problemas da cidade, o
memorialista Hélio Galvão apresentou Dix-Sept como um “jovem empresário, homem
de negócios” que carrega na ancestralidade a dedicação às causas do povo e que foi
convocado do ambiente de sua jazida de gesso para a atividade política.425
A produção do discurso de que os Rosados eram chamados para assumirem as
causas sociais dos mossoroenses se configurou como estratégia política à medida que
os distinguia dos adversários e os eximia da inconstância de seu lugar no jogo político-
partidário do período. Durante a campanha de 1948, a estratégia foi reproduzir o
discurso de mudanças iniciado em 1945 e, da mesma forma como o Brigadeiro Eduardo
Gomes em 1945, Dix-Sept em 1948 surge como o grande nome para salvar Mossoró do
atraso, do conservadorismo, do provincianismo e do isolamento.426

424 Idem. p. 21.


425 GALVÃO, Hélio. Dix-Sept Rosado. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, ESAM, 1982. p. 12. (Coleção
Mossoroense, v. CLXXXIX).
426 O PROBLEMA da água em Mossoró. O Mossoroense, Mossoró, 25 jul. 1948, p. 01.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
466

A boa relação de Dix-Sept com a classe trabalhadora lhe renderá muitos votos,
era hábil, “fez ambiente lá no sindicato, penetrou, político novo, mais experiente, e
conseguiu dominar a classe”.427
Postos na ilegalidade durante o governo Dutra, os comunistas tiveram que se
adaptar às novas circunstâncias.428 Em Mossoró vários militantes do Partido
Comunista lançariam candidaturas a cargos eletivos usando outras siglas, o que
contribuiu para acordos com os partidos mais fortes e com boa estrutura econômica. É
neste contexto que os comunistas seriam cooptados para votarem no candidato da
UDN, não pelo partido, mas pelo candidato.
Assim, como em 1948, na campanha de 1950, na qual se elegeu Governador, Dix-
Sept Rosado usaria a mesma estratégia: discurso de mudanças, populismo, cooptação
e a velha prática do assistencialismo. Dix-Sept Rosado, segundo o sindicalista
Francisco Guilherme, “foi um elemento que se prontificou muito, e disse se o Ministério
do Trabalho fechasse a sede ele arranjaria um local para os trabalhadores se reunirem,
nem que fosse debaixo das árvores”.429
A vitória no pleito municipal, portanto, foi justificada como o triunfo das
“mudanças”, que dentro da prática costumeira das oligarquias significava renovar os
discursos para se adaptar as novas situações. Dessa forma os herdeiros de Jerônimo
Rosado atingem mais um degrau na escalada pelo poder local. Dix-Sept Rosado,
Prefeito; Dix-Huit Rosado, Deputado Estadual e Dix-Sept Rosado e Vingt Rosado
eleitos, respectivamente, prefeito e vereador em 1948.

A CONSOLIDAÇÃO DO MANDO: ESTRATÉGIAS E INSTRUMENTOS DA DOMINAÇÃO


A posse de Jerônimo Dix-Sept Rosado na prefeitura inaugura uma das mais
longevas oligarquias da política brasileira. Em sua gestão, merece destaque a Batalha
da Cultura, uma ação “que partiu do esforço conjunto da prefeitura de Mossoró, que

427 Francisco Guilherme de Souza. Ex-sindicalista e um dos fundadores do Sindicato Salineiros da região
de Mossoró, Grossos e Areia Branca no Estado do Rio Grande do Norte e ex-militante do PCB. Entrevista
concedida no dia 18.10.2000, em sua residência, cito: Av. 13 de maio, s/n, centro, Mossoró/RN.
428 FRANCHETTI, Claudinéa Justino. Propaganda comunista e anticomunista no governo Dutra, entre os

anos de 1948 e 1950. In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História: conhecimento histórico e diálogo
social. Natal, 2013, p. 03.
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1370800534_ARQUIVO_ANPUH-TEXTOANAIS-
ENVIADO.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2018; SILVA, Heber Ricardo da. Democracia Ameaçada:
repressão política e a cassação do PCB na transição democrática brasileira (1945-1948). In: Histórica –
Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n. 39, 2009, p. 01-11.
429 Francisco Guilherme de Souza. Id., 2000.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
467

liderou o movimento, e da colaboração de vários segmentos da sociedade mossoroense


e de outros lugares do país, para o desenvolvimento cultural da cidade”.430 A batalha
pela cultura “representou um movimento cujo objetivo uma identidade para o espaço
mossoroense”, daí a importância de fazer circular o Boletim Bibliográfico – publicação
responsável pelas atividades da Biblioteca e do Museu, bem como pela divulgação de
textos e documentos sobre a história de Mossoró.431 Tinha o selo da Editora Coleção
Mossoroense e se constitui num dos principais instrumentos de produção e circulação
de sabres sobre a cidade e região oeste do Rio Grande do Norte. A função da produção
sobre a história da cidade – dentre outros temas – ia para além da fabricação do
passado da cidade. O contato com letrados e políticos ampliou o contato político dos
Rosados à medida que as imagens dos “heróis” do passado se associavam a produção
das ações dos “heróis” do presente.432
A Coleção Mossoroense, tornou-se símbolo de uma estratégia política, onde os
membros da família Rosado são mostrados como figuras fundamentais no processo de
formação histórica da cidade. Além disso, as obras passam uma idéia de ligação dos
Rosados com os “heróis” do passado, como se eles fossem predestinados a cumprir
uma ordem divina.433 A proposta da Coleção Mossoroense em enaltecer os Rosados se
insere no campo político no momento em que as publicações direcionam-se, em grande
medida a resolução de problemas urbanos como o abastecimento de água ou na
propagação dos avanços sociais e culturais da administração Dix-Sept Rosado, como a
construção da Biblioteca e Museu Municipal.
Essa dupla função do Boletim Bibliográfico caracterizava sua função social
dentro da engrenagem montada pelos Rosado. Se, por um lado, Dix-Sept montou uma
estrutura política para dar ao grupo um suporte que garantisse a perpetuação no poder.
Criou uma “equipe funcional”, baseada na divisão do trabalho político onde cada

430 COSTA, Bruno Balbino Aires da. Mossoró não cabe num livro: Luís da Câmara Cascudo – Historiador
da cidade. João Pessoa: Ideia, 2012, p. 53.
431 COSTA, Bruno Balbino Aires da. O seu incentivador e colaborador maior: Luís da Câmara Cascudo e a

batalha da cultura em Mossoró. In: BALBINO, Bruno; ESTEVAM, Saul (org.). História do Rio Grande do
Norte: novos temas. Natal, RN: EDUFRN, 2014, p. 159; FERNANDES, Paula Rejane. A escrita de si do
intelectual Jerônimo Vingt-un Rosado Maia. Arquivos pessoais e relações de poder na cidade de
Mossoró-RN 1920-2005. Vitória, 2014. 210 f. Tese (Doutorado)- Universidade Federal do Espírito Santo –
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, 2014, p. 89-90.
432 FALCÃO, Marcílio Lima. No Labirinto da Memória: fabricação e uso político do passado de Mossoró

pelas famílias Escóssia e Rosado (1902-2002). 2017, 320f. Tese (Doutorado em História Social) –
Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo – USP, 2017.
433 PAIVA NETO, Francisco Fagundes de. Mitologias do “País de Mossoró”. Mossoró: Fundação Vingt-

un Rosado, 1998, p. 52. (Coleção Mossoroense, Série C, v. 1056)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
468

membro possuiu um lugar definido na estrutura de poder.434 A Dix-Huit e Vingt coube


a participação nas assembleias legislativas, enquanto Jerônimo Vingt-un Rosado seria
o responsável pela implementação do que denominaram de desenvolvimento cultural
da cidade.
Com o fortalecimento do grupo a partir da vitória no pleito municipal e uma
administração vista como boa até pelos adversários, os Rosados passam a ocupar um
lugar de destaque no cenário político estadual, a ponto de participar diretamente das
negociações da indicação do nome do candidato a sucessão do governo do Estado.435
As articulações para a sucessão estadual, giraram em torno de uma possível
aliança entre os dois partidos mais fortes no Estado, o PSD, governista, e a UDN,
oposição, liderado pelo Deputado José Augusto e Dinarte Mariz. Na verdade, a UDN
através de Dinarte Mariz havia proposto ao governador uma virada de mesa, dando ao
governador o direito de indicar a cabeça da chapa. A proposta de pacto envolvia a
candidatura a governador do Deputado Manoel Varela, primo do Governador. Essa
proposta criou tanto dentro da UDN como do PSD dissidências lideradas por forças
tradicionais contrárias a esta candidatura436.
Os Rosados não aceitavam o nome do Deputado Manoel Varela. Essa rejeição,
segundo Aluízio Alves justifica-se pelo episódio em que envolveu Manoel Varela
quando era secretário de segurança do Estado e a empresa da Família Rosado.437 então
secretário mandara cercar minas de gesso do industrial e prefeito Dix-Sept Rosado pela
madrugada, causando constrangimento e “uma grande inimizade”438. Essa atitude teria
sido justificada a partir de denúncias de que operários da industria de gesso da família
estaria sofrendo maus tratos nas minas de gesso439.
Diante do impasse na UDN em relação ao nome do candidato, a família Rosado
busca uma saída fundando no Estado o PR, partido criado pelo ex-presidente da
República Arthur Bernardes. Em 2 de junho de 1950 é lançado o Manifesto do Partido

434 FELIPE. José Lacerda Alves. A (Re)Invenção do Lugar: Os Rosados e o País de Mossoró. 1 ed. João
Pessoa: Grafset, 2001, p. 84
435 O FUTURO governador do estado. O Mossoroense, Mossoró, 26 jun. 1950, p. 01.
436 Entrevista de Café Filho, então Deputado Federal ao Jornal O Mossoroense em 08 de janeiro de 1950.
437 ALVES apud Revista Dix-Sept Rosado – 90 Anos – 1911-2001 – Suplemento histórico – Jornal de Fato

2 de Abril de 200l. p. 24.


438 ALVES apud Revista Dix-Sept Rosado, Id., 2001.
439 ALVES apud Revista Dix-Sept Rosado, Ibid., 2001

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
469

Republicano onde os dissidentes justificam a ruptura com a UDN e lançam a nova


agremiação440.
A criação do PR divide as forças políticas do Estado. Naquele momento a UDN, o
PSD, o PSP e o PR articulam-se em torno das candidaturas de Manoel Varela e Duarte
Filho pela ala governista e Dix-Sept Rosado e Silvio Pedroza pela oposição. Estas duas
candidaturas colocam de um lado as velhas lideranças da República Velha como José
Augusto e do outro Georgino Avelino e as novas forças como Dix-Sept e Silvio.
Se em 1945, a política de Getúlio Vargas não mais satisfazia os anseios da família
Rosado, por isso articularam apoio a Eduardo Gomes, a frustração da derrota do
Brigadeiro fizera com que o grupo redimensionasse suas articulações no sentido de
ampliar sua participação no oeste do Estado. A política era manter aberto os contatos
com os partidos que dirigiam o país e, na medida do possível, atrair grandes lideranças
nacionais para compor as alianças e plataformas eleitorais. Assim, o apoio integral a
Vargas garantiria a Aliança Democrática (PR, PSD, PSP) o respaldo popular que gozava
o velho caudilho gaúcho. A prova disso foi a recepção mossoroense com “um grande
cortejo até a cidade. (..), levando em seu seio, entre aplausos que se confundiam desde
o aeroporto à praça Vigário Antônio Joaquim, o Senador Getúlio Vargas”.441
O apoio de Getúlio Vargas a candidatura de Dix-Sept Rosado foi fundamental
para sua vitória. Dix-Sept contou também com o apoio de alguns líderes sindicais como
Francisco Guilherme e José Moreira. A aproximação dos comunistas justifica-se pela
própria orientação do PCB de se aliar a candidatos que representassem a burguesia
nacional, por isso Dix-Sept articulava com as lideranças sindicais esse apoio. É inegável
que algumas candidaturas à Câmara de Vereadores de Mossoró de integrantes do PCB
usando outra sigla partidária, possam ser explicadas a partir dessa orientação.
Eleito Governador, não conseguiu por em prática seu projeto administrativo.
Morto num desastre de avião em 12 de julho de 1951, com apenas cinco meses de
governo, deixou a família sem uma liderança expressiva. Portanto, era preciso
urgentemente repensar o futuro político da família, afinal de contas, o projeto de
consolidação do mando havia sido adiado, mas não por muito tempo, pois a ausência
física de Dix-Sept Rosado, não impediria o uso de sua imagem nas campanhas para
prefeito da cidade.

440 Jornal O Mossoroense 11 de junho de 1950.


441 O Mossoroense, Mossoró, 27 ago. 1950.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
470

O comando ficaria nas mãos de Dix-Huit ou Vingt Rosado, era preciso urgência
na “fabricação” do novo líder que tivesse as características de Dix-Sept, ou seja
representar os interesses da elite local ao mesmo tempo manter uma boa relação com
a classe operária. Foi nessa direção que a campanha para prefeito em 1952, levou mais
uma vez à prefeitura um Rosado, desta vez o vereador Vingt Rosado pela coligação
Aliança Democrática (PR e PSD), o que consolidou a nova reorganização dos Rosado
diante do poder municipal em Mossoró.442
Apresentado como uma referência, tal qual seu irmão Dix-Sept, Vingt Rosado foi
adjetivado por Luís da Câmara Cascudo como um administrador “incansável, fulminante
nas decisões do esforço em que é o primeiro a dar exemplo, olhando com os olhos
limpos e atuais os problemas que devem ser solucionados”.443 No entanto, alguns
depoimentos contrariam a visão de Câmara Cascudo, uma vez que a gestão de Vingt
Rosado foi considerada verdadeiro “fracasso” e a sua política assistencialista
“terminou comprometendo a administração”.444 Para garantir o controle sobre o poder,
comprometia-se a estabilidade financeira da prefeitura, através do empreguismo, como
afirma Antônio Rodrigues de Carvalho, prefeito de Mossoró em duas gestões, 1954 a
1964 e 1969 a 1973. Vingt, por exemplo gostava muito de fazer favor, empregando os
filhos dos correligionários nas repartições públicas que ele exercia influência. E
segundo o Sindicalista José Canário, “como Prefeito Vingt abandona a prefeitura (...) os
funcionários ficaram abandonados, passando fome, porque a prefeitura não tinha
dinheiro para pagar”.445
Essa política assistencialista se contrasta com atitudes repressivas de Vingt
Rosado para conseguir apoio dos trabalhadores. Se Dix-Sept os cooptou através do
financiamento das campanhas de líderes sindicais e práticas assistencialistas, Vingt
usaria outras estratégias para conquistar a direção dos sindicatos, como foi o caso dos
salineiros.
O sindicato dos salineiros sempre se destacou pela crítica às condições vida e
trabalho nas salinas, controlá-lo seria uma estratégia de dominação dos trabalhadores

442 VINGT fala aos mossoroenses. O Mossoroense, Mossoró, 19 out. 1952, p. 01.
443 BRITO, Raimundo Soares de. Legislativo e executivo de Mossoró numa viagem mais que centenária.
Mossoró: ESAM, 1985. (Mossoroense, v. CCLXXXVII).
444 Francisco Guilherme de Souza. Ibid, 2000.
445 Antônio Rodrigues de Carvalho. Prefeito de Mossoró nos períodos de 1958-1964 e 1969-1973

Militante do PTB. Entrevista concedida no dia 10.01.2001 em sua residência à rua Dionizio Filgueira, sn,
Centro, Mossoró/RN

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
471

pelos patrões. As visões sobre a marcante atuação de Vingt na história deste sindicato
são díspares. Para Antônio Rodrigues, “Vingt era muito hábil, sempre teve sua
influência dentro do sindicato, na salina, por exemplo, ele tinha aquele grupo e esse
grupo às vezes brigava até à bala dentro do sindicato, disputando o controle do
sindicato”.446
José Canário – líder sindical e integrante do Partido Comunista -, não
compartilha desse posicionamento sobre Vingt Rosado, uma vez que sua atuação nas
disputas pelo controle do sindicato era marcado por truculências que ia desde à coerção
de sindicalizados a tiroteio na sede do sindicato, como ocorreu durante a disputa no ano
de 1962 entre seu apoiante “José Barbalho e o candidato dos trabalhadores, Joel
Martins”.447
Essa prática política é negada pelos Rosados, que sempre apresentam seus
líderes como verdadeiros democratas e defensores dos interesses de Mossoró e,
justificam que a consolidação do poder da família não teria sido às custas de cooptação,
coerção, muito menos pressão sobre o eleitorado e sim, fruto de uma dedicação da
família à Mossoró, obedecendo às ordens do líder Jerônimo Rosado. Por isso é preciso
o cumprimento do vaticínio e, para que isso ocorra, cada mossoroense tem que se sentir
um Rosado, estar ao lado dos Rosados, numa típica política de parentela. Confirmando-
se assim uma dominação tradicional, através de uma política de clientela. Portanto, a
relação existente entre a oligarquia e o povo, e o que caracteriza este domínio é a troca
de favores e, do povo vem o principal rendimento para a oligarquia que é o eleitoral.
Além destas práticas, os Rosados agiam em conformidade com o governo
federal, buscando estar ao lado dos grupos que estivem no poder, mesmo que para isso
fosse preciso mudar de partido, como já havia ocorrido em outras ocasiões. A relação
entre os Rosados e o poder central pode ser vista através da apropriação das
repartições públicas federais no município, onde exercem total influência na nomeação
dos cargos nos diversos escalões, fortalecendo assim, a prática do empreguismo.
Dessa forma o emprego público vira mercadoria valiosa em época de eleição e coloca
nas mãos da família uma poderosa arma contra àqueles que pretendem um dia chegar
ao comando do município.

446 Antônio Rodrigues de Carvalho. Id., 2001.


447 José Canário, Entrevista concedida no dia 16.05.2001.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
472

A preocupação em manter o controle do poder local, pode ser mostrada em


diversas ocasiões, como por exemplo, em 1964 - depois de uma trajetória político-
partidária pelo PP, UDN, PR, PSD - os representantes defendiam a bandeira do
trabalhismo, mas antes de aderir ao governo de João Goulart suas posições eram
outras como diz o próprio Dix-Huit Rosado em pronunciamento no Senado Federal, logo
após o retorno da visita que Goulart fez aos países asiáticos - “ Não tivera antes
contatos com o Dr. Goulart e não poderia fazer o julgamento que estou habilitado a
fazer neste instante. Jamais o encontrei medroso ou intimidado. Sereno e disposto a
assumir as suas responsabilidades integralmente”.448
Com a renúncia de Jânio Quadros, a pretensão em aderir politicamente ao novo
governo é tônica no discurso de Dix-Huit Rosado. Afinal de contas, a posse de João
Goulart seria a volta da UDN à oposição e isso, não estava nas pretensões do senador
mossoroense, pois fazer oposição ao Governo Federal era abdicar das instituições que
sustentavam o controle do poder local em Mossoró e oeste do Rio Grande do Norte.

REFERÊNCIAS
BERSTEIN, Serge. Os partidos. In: REMOND, René (org.). Por uma História Política. 2
ed. trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

BRITO, Raimundo Soares de. Legislativo e executivo de Mossoró numa viagem mais
que centenária. Mossoró: ESAM, 1985. (Mossoroense, v. CCLXXXVII).

CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão


conceitual. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n.2, 1997. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52581997000200003#*. Acesso em: 07/ago/2000.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1 As artes de fazer. 13 ed. trad. Ephraim
Ferreira, Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

COSTA, Homero. A Insurreição Comunista de 35: Natal – O primeiro Ato da Tragédia.


São Paulo: Editora Ensaio, 1995.

COSTA, Bruno Balbino Aires da. Mossoró não cabe num livro: Luís da Câmara Cascudo
– Historiador da cidade. João Pessoa: Ideia, 2012.

_____________________________. O seu incentivador e colaborador maior:


Luís da Câmara Cascudo e a batalha da cultura em Mossoró. In: BALBINO, Bruno;
448 DIÁRIO DO CONRESSO NACIONAL. Pronunciamento do Senador Jerônimo Dix-Huit Rosado no Senado
Federal. 01 set. 1961: Pub. DCN Seção II 02 set. 1961. p. 1901.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
473

ESTEVAM, Saul (org.). História do Rio Grande do Norte: novos temas. Natal, RN:
EDUFRN, 2014.

FALCÃO, Marcílio Lima. No Labirinto da Memória: fabricação e uso político do


passado de Mossoró pelas famílias Escóssia e Rosado (1902-2002). 2017, 320f. Tese
(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo – USP, 2017.

FELIPE, José Lacerda Alves. Memória e imaginário político na (re) invenção do lugar:
os Rosados e o “País de Mossoró”. Tese (Doutorado) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.

FELIPE. José Lacerda Alves. A (Re)Invenção do Lugar: Os Rosados e o País de


Mossoró. 1 ed. João Pessoa: Grafset, 2001.

FERNANDES, Paula Rejane. A escrita de si do intelectual Jerônimo Vingt-un Rosado


Maia. Arquivos pessoais e relações de poder na cidade de Mossoró-RN 1920-2005.
Vitória, 2014. 210 f. Tese (Doutorado)- Universidade Federal do Espírito Santo –
Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, 2014.

FERREIRA. Brasília Carlos. O Sindicato do Garrancho – 2 ed. Mossoró-RN:


Departamento Estadual de Imprensa, p. 138-140. (Coleção Mossoroense, Série C; v.
1014).

FRANCHETTI, Claudinéa Justino. Propaganda comunista e anticomunista no governo


Dutra, entre os anos de 1948 e 1950. In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de
História: conhecimento histórico e diálogo social. Natal, 2013, p. 03.
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1370800534_ARQUIVO_ANPUH
-TEXTOANAIS-ENVIADO.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2018.

GALVÃO, Hélio. Dix-Sept Rosado. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, ESAM, 1982.
p. 12. (Coleção Mossoroense, v. CLXXXIX).

LEAL, Victor Nunes, Coronelismo, Enxada e Voto. 3ª edição, 1997.


LIRA, Carlos (Org.). Memória Viva de Dix-Huit Rosado. Natal: Editora Universitária da
UFRN, 1986. p. 21. (Coleção Mossoroense, v. CCCXXVII).

MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas Políticas na História: novos estudos. 2 ed.
Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2014.

PAIVA NETO, Francisco Fagundes de. Mitologias do “País de Mossoró”. Mossoró:


Fundação Vingt-un Rosado, 1998, p. 52. (Coleção Mossoroense, Série C, v. 1056)

QUEIRÓZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo na Política Brasileira e outros


Ensaios. Rio de Janeiro: Difel, [s.d.p.]. t. III, v. 1, p. 155-190.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
474

SILVA, Heber Ricardo da. Democracia Ameaçada: repressão política e a cassação do


PCB na transição democrática brasileira (1945-1948). In: Histórica – Revista Eletrônica
do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n. 39, 2009.

SILVA, Lemuel Rodrigues da, Os Rosados encenam: estratégias e instrumentos da


consolidação do mando. – Mossoró: Queima Bucha, 2004.

SPINELLI, José Antônio. Getúlio Vargas e a Oligarquia Potiguar (1930-1935). Natal:


Editora da UFRN, 2010.

VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 1935: sonho e realidade. São


Paulo: Expressão Popular, 2011.

FONTES
DIÁRIO DO CONRESSO NACIONAL. Pronunciamento do Senador Jerônimo Dix-Huit
Rosado no Senado Federal. 01 set. 1961: Pub. DCN Seção II 02 set. 1961. p. 1901.

O PROBLEMA da água em Mossoró. O Mossoroense, Mossoró, 25 jul. 1948, p. 01.

O FUTURO governador do estado. O Mossoroense, Mossoró, 26 jun. 1950, p. 01.

Entrevista de Café Filho, então Deputado Federal ao Jornal O Mossoroense em 08 de


janeiro de 1950.

ALVES apud Revista Dix-Sept Rosado – 90 Anos – 1911-2001 – Suplemento histórico


– Jornal de Fato 2 de Abril de 200l. p. 24.

Jornal O Mossoroense 11 de junho de 1950

O Mossoroense, Mossoró, 27 ago. 1950

VINGT fala aos mossoroenses. O Mossoroense, Mossoró, 19 out. 1952, p. 01.

ENTREVISTAS
Francisco Guilherme de Souza. Ex-sindicalista e um dos fundadores do Sindicato
Salineiros da região de Mossoró, Grossos e Areia Branca no Estado do Rio Grande do
Norte e ex-militante do PCB. Entrevista concedida no dia 18.10.2000, em sua
residência, cito: Av. 13 de maio, s/n, centro, Mossoró/RN.

Antônio Rodrigues de Carvalho. Prefeito de Mossoró nos períodos de 1958-1964 e


1969-1973 Militante do PTB. Entrevista concedida no dia 10.01.2001 em sua residência
à rua Dionizio Filgueira, sn, Centro, Mossoró/RN.
J

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
475

José Canário. Lider Sindical e integrante do Partido Comunista. Entrevista concedida


no dia 16.05.2001.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
476

FILHAS DO SOL: MEMÓRIA E ORALIDADE NAS NARRATIVAS


DO GRUPO DE MULHERES AIYRA’S D’ARAM SOBRE A
(RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA DO AMARELÃO

Sílvia Letícia Bezerra Santos449


Maria Letícia Nascimento Freitas450

INTRODUÇÃO
Um dos traços que permeiam à identidade indígena na Comunidade do Amarelão
é a relação entre memória e oralidade. A comunidade indígena do Amarelão encontra-
se na cidade de João Câmara, especificamente na zona rural, distante aproximadamente
72,45 km da capital do estado do Rio Grande do Norte. Dentro do Amarelão vivem 280
famílias e ao todo, somam-se 1100 habitantes, um número bastante significativo.
O Amarelão aos poucos foi se ampliando, se estendeu dando origem a outras
comunidades, o Serrote de São Bento e o Assentamento Santa Terezinha, ficam nas
proximidades do Amarelão e também se assumem indígenas. É importante salientar
que o movimento sem terra (MST) esteve presente dentro destes processos, auxiliando
na construção destas outras comunidades e os dando suporte.
O Assentamento Santa Terezinha recebeu esse nome como forma de uma
singela homenagem a Irmã Terezinha Tessele Galles, uma senhora simples que
dedicou boa parte da sua vida a realizar evangelismos no Amarelão e auxiliou os
indígenas a reaverem os seus direitos e lutarem bravamente por eles. Por meio dos
relatos orais de alguns membros da comunidade, compreende-se que a irmã Terezinha
desempenhou um grande papel no Amarelão, se fez presente no campo religioso,
educacional e também no que diz respeito à economia. Sua atuação na comunidade foi
de suma importância, marcou positivamente a vida de muitos “Mendonças”.
Tayse Michele Campos, uma das grandes lideranças do Amarelão e graduanda
no curso de História, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Núcleo
avançado de João Câmara, afirma que o nome “Amarelão surge por causa de um ritual
onde o sol é cultuado. Os Mendonças, eles adoravam ao sol, o deus do nosso povo é o
sol. Eles chamavam de yjuasu que quer dizer amarelo grande, ficou Amarelão”, desta

449 Ambas são Graduandas do curso de Licenciatura em História pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
477

forma, fica mais claro a origem do topônimo dado a comunidade.


Dentro da comunidade do Amarelão, existe a predominância de uma forte cultura
religiosa. Podem ser encontradas pessoas pertencentes a divergentes denominações
religiosas (católicos, espíritas, protestantes, os que cultuam ao Sol, entre vários
outros). É importante destacar o fato de que o culto ao sol continua sendo bastante
comum entre eles, como foi dito anteriormente, remete a uma das práticas que eram
realizadas pelos primeiros indígenas que deram origem ao Amarelão. O índio carrega
em suas veias uma forte herança religiosa e o desejo de perpetuar as tradições dos
seus antepassados, rememorar as manifestações sagradas dos seus ancestrais é uma
forma de dar continuidade à cultura indígena. O sagrado pode ser considerado como
um grande símbolo de resgate da memória dos primeiros habitantes do Brasil. Dentre
as várias comunidades indígenas presentes no país, nem todas vão possuir o mesmo
sistema religioso, cada comunidade mantem uma cultura religiosa divergente. A única
semelhança presente entre elas são as manifestações mediadas pelos elementos da
natureza. A natureza é tida como sagrada.
A Comunidade do Amarelão tem em seu exercício cotidiano, a busca por um
passado indígena. Estes afirmam que seu passado indígena surge por meio do processo
migratório de famílias vindas do Brejo da Paraíba no século XIX, eram chamados de
“Mendonças”, ancestrais dos índios Tapuias. Os Mendonças saíram do seu lugar de
origem para se refugiarem das grandes secas que assolavam a região. Boa parte dos
moradores do Amarelão buscam dar continuidade ao seu passado, resgatar a memória
dos ancestrais é manter viva a grande herança cultural deixada pelos seus
antecessores.
Nota-se claramente a existência de uma grande resistência entre eles, à
resistência que representa a força do Amarelão, a determinação de um povo que tem a
convicção de que precisam defrontar a sociedade e romper com todos os paradigmas
impostos pelo senso comum que desvalorizam a figura do índio no século vigente. Os
índios vão simbolizar fortemente uma parte da população do Brasil, justamente pelo
seu grande histórico de lutas. Sua heterogeneidade cultural, sabedoria e valores que
foram extremamente fundamentais na construção do Brasil.
A antropóloga Jussara Galhardo relata que a organização social do Amarelão é
caracterizada como uma “grande família”, na qual as uniões endogâmicas e o uso
coletivo da terra são formas de coesão do grupo, reforçada por uma expressividade

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
478

identitária (Os Mendonça) que remete o grupo a seus antecessores indígenas. (2003,P.
194). Pode-se afirmar que a Comunidade do Amarelão preza bastante pela união em
torno da família.
Diante das pesquisas realizadas dentro do Amarelão e pela História Oral da
comunidade, é notório o fato de que os moradores da comunidade tentam viver
harmonicamente, nutrindo uma relação familiar entre boa parte daqueles que residem
na mesma. Mostram-se dispostos e aptos a lutarem para garantirem os seus direitos
indígenas e na defesa da preservação dos seus traços culturais.

A LUTA FEMININA NO AMARELÃO


A questão central desta discussão é conseguir entender a importância das
narrativas orais em relação ao processo de (re)construção da identidade indígena do
Amarelão e retratar que, por meio desta, o passado se tornou mais cognoscível e
compreensivo. Partindo das narrativas orais de algumas das mulheres moradoras do
Amarelão, foi possível reestruturar uma parte da História Social daquele grupo,
moldando os traços culturais dos mesmos. A oralidade é o suporte para o historiador
problematizar sobre a memória.
A História Oral vai possibilitar o desencadeamento das inúmeras memórias
relacionadas aos momentos de resistências, das lutas, das junções de emoções
divergentes ou mostrar o outro lado, as formas de combater as lutas e resistências. Ela
abraça justamente aqueles que foram esquecidos. Os sujeitos além de protagonizarem
as suas próprias histórias, vão se tornar os narradores.
Diante do grande papel que as mulheres do Amarelão ocupam dentro do grupo,
foi de suma importância buscar trabalhar com as vozes das mesmas. A luta feminina
presente nesta comunidade tem auxiliado fortemente no processo de resgate da
cultura concernente aos seus antepassados. A ativa participação das mulheres nesse
espaço, é de fato, algo de extrema importância. Seus históricos de conquistas estão
sempre associados à luta feminina em prol de seus direitos e os da comunidade. É
relevante destacar o fato de que as maiores lideranças da comunidade são compostas
por mulheres.
Elas se disponibilizam a estarem à frente de grupos que são essenciais no
processo de preservação da identidade indígena, como o grupo de Mulheres "Aiyra's
d'Aram" que se trata da cozinha comunitária do Amarelão, onde são feitas as comidas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
479

que, em sua maioria, são típicas da cultura indígena e o grupo de artesanato “Motyrum
Caaçu” que representa a materialização da cultura indígena através da confecção de
utensílios domésticos e de assessórios de uso pessoal.
Vale ressaltar o fato de que mesmo em meio a uma sociedade machista e que
ainda mantem traços de uma imagem negativada em torno da figura feminina, existem
mulheres dispostas a romperem com paradigmas impostos pelo senso comum,
desfazendo-se de ideias cobertas de preconceito e mostraram que o papel da mulher
não se limita somente na função de mãe ou dona de casa. É necessário pensar o “sexo
frágil” na contemporaneidade como símbolo de resistência e identidade. Algo que vai
contrapor ao convencional:

Um papel feminino estabelecido culturalmente, até a atualidade, é o da


mulher como esposa. O aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho
fabricados e manejados por homens, deu ao marido um motivo de
acúmulo de bens. Isto levou à inversão da estrutura familiar, passando
a mulher para o clã do marido. Da antiguidade à idade média, os
casamentos eram combinados sem o consentimento da mulher e, a
união, não consagrava o amor e sim um contrato entre o pai da noiva e
a família do pretendente. (SILVA et al., 2005, p.73).

A mulher indígena do Amarelão vem lutando para conquistar o seu espaço


dentro da sociedade, muitas delas se fazem presentes nos vários movimentos sociais
que são executados na comunidade, desconstruindo o senso comum sobre as suas
políticas de igualdade de gênero. “Nas últimas décadas, os povos indígenas têm
demonstrado grande poder de organização e mobilização através do Movimento
Indígena. Neste ponto reside a perplexidade da sociedade não índia”. (JESUS, 2011, p.07).
As políticas de gênero tem chamado atenção na comunidade, uma característica
marcante desta, é o empoderamento feminino. A mulher é sinônimo de igualdade e
respeito, são vistas com bastante apreço.
Existe um grande respeito dos homens em relação às mulheres, os próprios
homens vão reconhecer que a força feminina prevalece dentro da comunidade. As
mesmas se mantem aptas a romperem com os inúmeros paradigmas que permeiam a
sociedade. Damiana Barbosa do Nascimento que é moradora do Amarelão, relata que o
papel da mulher dentro da comunidade é de grande destaque. Para ela, praticamente
todas as mulheres são responsáveis por algum trabalho na comunidade. A mesma

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
480

relatou que a associação existente é liderada por uma mulher e, a pequena cozinha
comunitária é formada somente por senhoras.
Os papeis desempenhados pelas mulheres são bastante significativos dentro do
espaço comunitário, muitas delas lutam para garantirem o direito de todos, também se
fazem presentes dentro do campo educacional, vão possuir cargos de liderança e
promovem diversos movimentos sociais voltados as reinvindicações indígenas. Mesmo
não tendo como cacique uma figura feminina, percebe-se que as mulheres se mantem
presentes no campo político. Possuem voz e a liberdade de opinarem nas decisões
relacionadas a questões do Amarelão, vale ressaltar o fato de que historicamente estes
papeis só eram desempenhados por homens.
Quando se faz uma análise olhando para o passado, fica claro que as mulheres
indígenas e não indígenas para obterem a sua independência, necessitavam passar por
uma infinidade de obstáculos. Essa independência tão desejada era rompida por conta
do casamento, elas tinham que casar precocemente e logo eram mães, algo que foi
visto por muitos e muitos séculos. Questões como estas vão sendo descontruídas ao
longo do tempo e a figura feminina vai ganhando mais autonomia.
O discurso construído que vai retratar que as mulheres são mais engajadas nos
projetos relacionados ao Amarelão, surge no momento em que os homens passam a se
dedicar mais ao trabalho e as mulheres sentem a necessidade de adentrar-se no campo
político. Indo buscar meios que pudessem trazer melhorias para dentro da comunidade,
atualmente, os próprios homens assumem que as mulheres são mais ativas no
Amarelão e que elas são fundamentais para a comunidade. Além de serem as maiores
lideranças, ainda ajudam na organização da comunidade e cuidam de suas famílias.
A maior parte dos homens que se consideram indígenas e residem no Amarelão,
preferem se manter afastados da administração da mesma e optam por se dedicarem
a produção da castanha, a caça ou a qualquer outra atividade. É importante esclarecer
que se trata de homens que reconhecem e acreditam que as mulheres são, assim como
qualquer figura masculina altamente capacitadas a assumirem tais cargos. Apoiando
as decisões das mesmas.
Ser mulher representa motivo de discriminação pelo fato da condição social que
é designada ao gênero. A mulher indígena sofre opressão não somente por ser mulher,
mas é submetida à exclusão pela questão da etnia. Mesmo em meio a preconceitos e
constantemente sendo oprimidas, desde o ponto de vista sexual e político, as mulheres

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
481

do Amarelão enriquecem o desenvolvimento do feminismo.


Apesar de nenhuma das moradoras falarem abertamente acerca de feminismo,
as práticas de democracia e igualdade desempenhadas por elas, trazem à discussão
uma nova perspectiva dentro do engajamento feminino, diversificando o movimento de
reação aos privilégios que são proporcionados aos homens. O termo empoderamento
designado às que “dominam” o Amarelão, pode ser entendido como lutas e força
feminina na vida cotidiana. Dando um novo enfoque aos Novos Movimentos Sociais e
diversidade cultural brasileira. Atribuindo valor e reflexão às narrativas e personagens
identitárias.

A IDENTIDADE MOLDADA PELOS PROJETOS


Graças ao esforço e dedicação de um grupo de mulheres do Amarelão, alguns
projetos sociais foram se moldando, dentre eles, encontra-se o Motyrum Caaçu. Este
projeto visa resgatar a cultura indígena por meio do artesanato, um forte elemento de
materialização e identificação da memória e da cultura, uma ferramenta fundamental
no processo de resgate da identidade indígena. O grupo de artesanato passou a ganhar
força e reconhecimento, passando a ser comercializado fora da comunidade em
grandes feiras na capital do estado do Rio Grande do Norte.
O motyrum Caaçu era composto apenas por mulheres indígenas e residentes do
próprio Amarelão, reuniam-se para produzirem as peças e o lucro das mesmas acabava
auxiliando na manutenção dos trabalhos e no sustento de várias famílias. Francisca
Evânia do Nascimento, professora e moradora do Amarelão relata que são produzidos
colares, filtros dos sonhos, arcos, maracás, panela de barro e outros utensílios de barro.
Os materiais utilizados eram adquiridos dentro da própria comunidade, tais
como: penas de aves, palhas, sementes entre vários outros. Elas também costumavam
receber doações de outros materiais. Caracterizando assim a conservação do trabalho
indígena por meio da técnica humana. O grupo Motyrum Caaçu com a produção de
utensílios de uso pessoal e doméstico, vão proporcionar o enriquecimento da sua
cultura e com a venda do mesma nas grandes feiras realizadas na capital do estado, o
grupo passa a ser visto de forma mais abrangente.
Diante de alguns fatores internos, o grupo parou a sua produção.
Hodiernamente, algumas mulheres ainda produzem individualmente e vendem para
turistas ou membros da comunidade. Outro grande projeto a ser destacado, é a cozinha

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
482

comunitária Aiyra’s d’Aram, o mesmo objetiva realizar a produção de alimentos de


origem indígena, simbolizando fortemente a sua cultura. O grupo Aiyra's d'Aram se
inicia no ano de 2013, passando a auxiliar na movimentação econômica do Amarelão,
com a ajuda da CONSUL, acabaram ganhando reconhecimento e vários prêmios que
iriam ajudar na manutenção do trabalho. O nome do grupo é de origem Tupi significa
“filhas do Sol”, uma representação da lenda que gerou o topônimo dado à comunidade.
O festival da castanha também vai abrindo espaço para as pequenas artesãs
mostrarem o seu trabalho. Esta festa ocorre anualmente no mês de agosto, um projeto
que possibilita que as pessoas possam chegar até a comunidade e tenham a
oportunidade de conhecer a história dos indígenas do Amarelão desde a sua trajetória
inicial por meio de exposições, de trilhas e das narrativas orais do grupo. Neste festival,
o grupo de artesanato Motyrum Caaçu e a cozinha comunitária Aiyra's d'Aram tem a
chance de fazer a exposição e a comercialização das suas produções para pessoas que
não residem na comunidade.
Um evento que reúne diversas pessoas que residem dentro e fora do Amarelão.
Por meio desta festa, as pessoas passam a conhecer o que acontece dentro do
Amarelão e entendem como se deu o processo de formação da mesma. Um meio de
propagar e expandir a cultura indígena do Amarelão. Vão ter a oportunidade de mostrar
para as pessoas que o índio moderno ainda busca preservar a cultura e as tradições dos
seus ancestrais Tapuias, tentando realizar uma desconstrução da imagem
estereotipada e caricaturada que foi idealizada por muitos séculos no que se refere ao
indígena. É importante trazer meios que os façam enxergar a grande importância que
estes povos têm, tentando construir uma sociedade que preze e respeite a grande
diversidade cultural presente no Brasil.
Além destes projetos citados, o grupo realiza oficinas de resgate da língua
materna da comunidade, o Tupi. Tayse Campos menciona que dentro do Amarelão
existem aulas de Tupi dentro da escola e contam com a ajuda do ancião na formação
das lideranças para repassar os conhecimentos das lutas que vieram antes dos
membros mais novos.
O Brasil possui uma grande diversidade de linguagens indígenas divergentes,
mas diante do contato com o homem branco, os povos indígenas vão perdendo o
costume de colocar a sua língua raiz em prática. Mas no caso da comunidade do
Amarelão, houve resistência e os mesmos buscam em seu exercício cotidiano, dar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
483

continuidade as heranças deixadas pelos seus antepassados. O Toré também pode ser
considerado como um grande fortalecedor da cultura indígena do Amarelão, o uso dos
rituais possibilita a manutenção deste passado indígena.
O grupo de artesanato, a escola de ensino indígena, a Associação Comunitária do
Amarelão, os rituais, o Festival da Castanha e vários outros grandes projetos que vão
revigorar e fortificar o processo identitário do grupo. O uso do passado indígena implica
na (re)construção da identidade do Amarelão.
A finalidade destes projetos é trazer a valorização da história e memória dos
Mendonça do Amarelão, os diversos projetos existentes na comunidade indígena visam
à preservação da cultura dos seus antepassados e trazê-la para o presente. Por meio
disto, haverá um agregamento histórico concernente aos seus costumes e vai
configurar a cultura local deste grupo. Estes projetos são importantes para que a
memória dos seus antepassados continue viva, um meio de poder garantir que esta
herança cultural permaneça e seja repassada a cada nova geração. A memória coletiva
tem a função de dar continuidade ao que foi vivenciado em tempos passados.

Viver a memória dos ancestrais significa projetar o futuro a partir das


riquezas, dos valores, dos conhecimentos e das experiências do
passado e do presente, para garantir uma vida melhor e mais
abundante para todos os povos. Mas essa abundância de vida buscada
por todos os povos do mundo, para os povos indígenas passa
necessariamente pela manutenção dos seus modos próprios de viver, o
que significa formas de organizar trabalhos, de dividir bens, de educar
filhos, de contar histórias de vida, de praticar rituais e de tomar
decisões sobre a vida coletiva. (LUCIANO, 2006. P.18)

Neste contexto, pode-se enfatizar a existência da memória herdada, onde vão


ser reproduzidas as reminiscências do passado que vão ser repassadas desde os
indígenas mais velhos da comunidade aos mais novos. A memória coletiva tem o papel
de fortalecer o sentimento de apropriação a um grupo, onde a mesma vai compartilhar
as memórias entre eles, despertando a identidade dos indivíduos. Conclui-se que a
memória coletiva vai respaldar-se na preservação dos acontecimentos e experiências
vivenciados coletivamente pelos indígenas e que a mesma vai ajudar a compreender
como foi à construção desta identidade.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
484

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que seja essencial uma reflexão acerca da construção da
identidade indígena por meio dos projetos sociais que englobam o Amarelão,
principalmente pelo fato de que estes projetos são idealizados e reproduzidos por
mulheres. É de suma importância tratar do “sexo frágil” na contemporaneidade como
um grande símbolo de identidade e resistência. São estas mulheres que se identificam
enquanto indígena que vão trabalhar na preservação material e cultural do grupo.
Os projetos tem a função de trazer uma reeducação étnica aos mesmos,
mostrando a importância das práticas culturais dos seus antecessores, não deixando a
cultura indígena se extinguir. O etnocídio existe desde a formação inicial do Brasil, os
poucos índios que sobraram, vão sentindo na pele o preconceito por assumirem sua
identidade. Buscar meios de resgate da cultura é uma forma de preservar e manter a
memória destes povos que tanto contribuíram com a construção do país. Sabe-se que a
história indígena vem sendo apagada e que boa parte das suas bases foram esquecidas
ao longo da história, quando esta diversidade cultural é preservada, a trajetória deste
povo passa a se fortalecer.

A Historiografia Brasileira vem incorporando diversos grupos sociais


que antes eram completamente ignorados e as populações indígenas
fazem parte desses grupos, porém, por muito tempo foram
considerados como a históricos e deixados à margem da História do
Brasil enquanto sujeitos. Em muitos estudos, foram vistos apenas
como vítimas que a partir do contato com europeus no período colonial
e os “brasileiros não-índios” em outros momentos da história do país,
foram, ao longo do tempo, sendo dizimados, assimilados, enfim
entrando em extinção. Hoje, os mais de duzentos povos indígenas
espalhados por todo o país desmentem claramente todas as
abordagens, teorias e políticas que preconizaram seu fim. Fortalecidos
pelo crescimento vegetativo e pelos movimentos de autodeterminação,
diversos povos vem se organizando e exigindo da sociedade brasileira
respeito à diferença ao mesmo tempo em que reivindicam direitos
comuns aos cidadãos brasileiros. Afirmando suas identidades, vários
povos têm tomado cada vez mais consciência de que podem lutar por
seus direitos, suas terras, afirmação das suas identidades, manutenção
de seus territórios e valores culturais, etc. (JESUS, 2011, p.3-4).

É preciso reconhecer que o índio foi um grande protagonista no processo de


construção da identidade do povo brasileiro, os mesmos executam um papel essencial
na sociedade que aqui se construiu, estes influenciam fortemente na cultura do Brasil.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
485

No momento em que se percebe a importância da conservação da História indígena no


Brasil, os costumes destes grupos isolados e excluídos passam a ganhar força e
resistência.
A História indígena deve ser enaltecida e ampliada, sabe-se que o Brasil abarca
uma grande diversidade de etnias que passam a compor a cultura do país. As
comunidades indígenas contribuem fortemente com a constituição da matriz étnica
nacional. Deste modo, é imprescindível que a sociedade brasileira passe a valorizar a
figura do índio e toda a sua trajetória de lutas, passando a incluir o mesmo na sociedade.

REFERÊNCIAS
GUERRA, Jussara Galhardo. Os Mendonça do Amarelão: identidade, memória e história
oral. Mneme: Revista de humanidades, Caicó, v. 4, n. 8, p.182-197, set. 2013.

SILVA, Glauce Corrêa da et al. A mulher e sua posição na sociedade: da antiguidade


aos dias atuais. Revista da Sbph, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p.65-76, jan. 2005.

JESUS, Zeneide Rios de. Povos indígenas e história do Brasil: invisibilidade,


silenciamento, violência e preconceito.2011. Elaborado por Biblioteca Virtual DAHISFJ.
Disponível em: <https://bibliotecaonlinedahisfj.wordpress.com/2015/02/19/povos-
indigenas-e-historia-do-brasil-invisibilidade-silenciamento-violencia-e-preconceito-
zeneide-rios-de-jesus/>. Acesso em: 03 de setembro de 2017.

LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: O que você precisa saber sobre os
povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Coleção educação para todos, 2006.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
486

ENTRE O PAÇO E O ALTAR: A FABRICAÇÃO DA MEMÓRIA


BIOGRÁFICA SOBRE O PADRE MOTA

Maria Leticia Nascimento de Freitas451


Silvia Letícia Bezerra Santos452

FABRICANDO A MEMÓRIA
Apesar da história e memória apresentar semelhanças, como insistem em dizer,
realmente há algo que as fazem ser igual: o passado. Apresentamos então o passado
como temporalidade, pois ajuda na construção da memória ou na operação histórica. É
possível perceber que existe um grande controle para que possa existir um contato
entre o passado e o presente, pois a memória histórica nasce da narrativa histórica,
para que a lembrança possa ser vivida. A memória apresenta-se diferente da história
pela forma de mostrar as manifestações sobreviventes de um passado que da maioria
das vezes é sepultado, ou seja, separado do presente por muitas transformações e pela
maneira que é fragmentada no tempo. As marcas que o presente ou o passado não
apagam são mostrados como subjetividade, para que no decorrer do tempo o passado
não se possa perde-se com o caos da história acelerada do presente.
A memória ajuda a recuperar a história vivida como uma temporalidade, pois na
operação histórica o passado é baseado no racional, no conhecimento, na
representação. “A memória migra para além da história, assumindo dimensões
psicológicas, intimas e subjetivas”453. A aceleração da história partiu a história-
memória, como a memória é subjetiva apresenta como resposta possível frente à
ameaça de dissipação do passado. Não é mais a história problematizada ou crítica, mas
a memória que faz a conexão com o homem contemporâneo, ligado à modernidade,
enquanto o passado é fonte de origem e de identidade. A memória reconstrói a
discussão sobre a importância da narrativa, pois serve de referência para a história. A
história e memória conciliam-se para fazer historiografia, mas não se perdem na
distinção de origem, em que a história da historiografia clássica ajuda nas
investigações selecionadas aos fatos.

451Graduanda do curso de Licenciatura em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
– UERN
452 Graduanda do curso de Licenciatura em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

– UERN
453 Pinto, Júlio Pimentel. Proj. História, São Paulo, (17), Nov. 1998. p.209.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
487

Diante da memória apresentamos o Padre Mota, que foi o prefeito e cidadão


mossoroense, em que se pode dizer que deu pontapé inicial a obras e projetos
aperfeiçoados pelas administrações posteriores, mesmo numa época em que
campanhas políticas que não apresentavam estabilidade necessária para crescimento
político. A sua vocação sacerdotal do jovem Luiz Mota foi um pouco tardia, pois tinha o
desejo de cursar agronomia. Padre Mota foi um sacerdote que soube exercer o seu
sacerdócio como Vigário, Cura e Pároco que na época se chamava Freguesia de Santa
Luzia, e logo depois a Catedral da Diocese, e quando voltou de Roma passou a ser
capelão da igreja se São Vicente.
O Padre Mota foi uma das figuras mais simbólicas da história de Mossoró.
Simbólica, apresentando suas várias qualidades: humildade, determinação, coragem,
seriedade, honradez, grande senso de humor, probidade e obediência. Mas a história
dessa figura tem sido negligenciada.
É complicado ter conhecimento de algo que existe, então fica visivelmente difícil
dizer ou mostrar alguma coisa sobre um tema efetivamente ausente que é o passado
na história, nenhum historiador consegue abarcar e recuperar a totalidade dos
acontecimentos é praticamente limitado. Não importando o quanto a história seja
autenticada, aceitável e visível, ela esta fadada a ser um construtor pessoal, um
movimento da perspectiva do historiador como narrador. Ao contrário da memória que
em si já é suspeita, a história depende dos olhos e da voz de outrem. A história é menos
que o passado, ou seja, a ideia que os historiadores só conseguem recuperar
fragmentos, mas graças à possibilidade de ver as coisas no retrospecto, nós de certa
maneira sabemos mais sobre o passado que as pessoas viveram, a história sempre dá
nova feição as coisas, ela exagera ou muda aspectos do passado, a história é a maneira
pela qual as pessoas criam, em parte suas identidades. A história é produzida por um
grupo de operários chamados de historiadores quando eles vão trabalhar, e quando
eles vão trabalhar, eles levam consigo certas coisas identificáveis. Em primeiro lugar,
levam a si mesmos: seus valores, perspectivas ideológicas, posições, em segundo
lugar, levam seus pressupostos epistemológicos. Grande parte nem são conscientes,
mas os historiadores terão em mente maneiras de adquirir conhecimentos, pois a
história é o que os historiadores fazem. Os historiadores tem a articulação entre o
natural e o cultural e a seleção de suas fontes com as quais pretende trabalhar.
Podemos perceber que a escrita da história não pode ser fruto de apenas desejos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
488

pessoais sem uma relação com o lugar social onde estamos inseridos.
O registro da história e da memória, atualmente e em grande parte, por meio dos
documentos gerados pelas atividades desenvolvidas por determinada organização,
família, ou pessoa. Esses registros passam a ser de extrema importância e rica fonte de
informação, as construções historiográfica muitas vezes precisa e necessita de
informação primária, ou seja, precisa se retirada de suas fontes originais. Compreende-
se que a memória é representada por meio de registros de informação, qualquer que
fosse o suporte em que esta contida e que seja passível de recuperação. Assim, a
história acontece nas ações diárias independente do sujeito da execução. A história
conhecida produzida pelos historiadores em suas pesquisas é operação que trabalha
análise e discurso, não é nosso instrumento para ação e trabalho critico, a história
liberta, mas pode oprimir também. A memória pode aprisionar, mas, às vezes torna-se
o lugar das possibilidades de resistências. Quando referimos à história estamos
concebendo-a numa perspectiva de movimento, de ordem que organiza de modo
contingente a própria realidade, a partir daí surge à questão da memória, pois o que
trazida à lembrança decorre de uma memória que se atualiza e se ressignifica a cada
retomada. Nesse sentido, podemos pensar a memória nos seus efeitos silenciadores,
ou seja, aquilo que é trazido à lembrança faz com que outras versões de um mesmo
acontecimento histórico sejam silenciadas.
A história e a memória entrelaçam-se nas memórias históricas para preencher
uma função importante, quando a memória viva de determinados acontecimentos e
processos começam a se desaparecer pelo sentido natural das gerações que os
vivenciaram, começa a se tomar ainda mais necessário um movimento de registro
destas memórias. Ainda entre os pequenos objetos de memória, existe um movimento
que realiza função das práticas comemorativas.
A prática do historiador se concentraria em transformar um objeto em histórico,
para que pudesse historicizar um elemento. Certeau fala que a pratica do historiador se
assemelha a de um operário, dessa forma ele informa que o historiador trabalha sobre
um material, o que teria como objetivo transformar ele em história, a escrita da história
faz parte de uma prática social, pois existe diversos interesses do lugar social. “A maior
parte das sociedades considera o passado como modelo do presente. Nesta devoção

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
489

pelo passado há, no entanto fendas através das quais se insinuam a inovação e a
mudança.” 454 Mudanças que até hoje se compara com os dias atuais.

A BIOGRAFIA PRESENTE NA MEMÓRIA

No século XIX, as biografias tiveram


importante papel na construção da ideia de
“nação”, imortalizando heróis e monarcas,
ajudando a consolidar um patrimônio de
símbolos feito de ancestrais fundadores,
monumentos, lugares de memória, tradições
populares etc. Esta concepção foi retomada
pela corrente positivista. A biografia assimilou-
se à exaltação das glorias nacionais, no cenário
de uma história que embelezava o
acontecimento, o fato.455

Foi na Escola dos Annales que ocorreu a mudanças de alto a baixo relacionados
aos métodos de trabalho do historiador, ou seja, um especialista escrevendo para
outros especialistas, pois o que deveria ser uma ciência, não deixa o espaço para a arte,
em que impõe menos espaço para uma nova orientação que excluísse a biografia, que
é mostrado como narrativa por excelência. Mas a reabilitação da biografia histórica
juntou-se as aquisições da história social e cultural, ofertando aos diferentes atores
históricos uma importância diferente, individual, como não se tratava de realizar
simplesmente a história dos grandes nomes. É possível mostrar que a biografia na
história é um instrumento útil, para que possa haver um crescimento no sentido de
“fazer história”. Pois ela auxilia e ajuda a resolver alguns problemas práticos dos
historiadores.
Então o historiador refaz as coisas do passado, mas faz o trabalho de imaginar
como se tivesse visto. O fato é que as biografias continuam a mostrar referências
básicas do historiador, mas que no decorrer ganha público leigo leitor. Mas a biografia
e história entrar em um conjunto de várias contradições opõe indivíduo a sociedades,
social a particular, estrutura a contexto, ação individual a ação coletiva. Uma outra
perspectiva que vem sendo utilizados é os estudos voltados a confecção de biografias
em que vocaciona não grandes nomes, ou seja, personagens menores, subalternos,

454 Le Goff, Jacques. História e memória, p. 213.


455 Del Priore, Mary. Biografia: Quando o indivíduo encontra a história, p.8.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
490

mais obscuros, pois ajuda a iluminar experiências sociais de época. É bem possível que
existam dificuldades do gênero da biografia às vezes seja no próprio pesquisar, pois no
decorrer do tempo acaba criando um vínculo ou amigo íntimo de seu biografado, porém
muitos historiadores sentiam-se insatisfeitos com os limites impostas pelas correntes
historiográficas que eram tradicionais que acabaram excluindo barreiras, mostrando
novas maneiras de explicar e expressa o passado e seus sujeitos, define-se a biografia
como a história de indivíduo redigida por outro, com o objetivo e a preocupação de
revelar não apenas a vida do sujeito biografado, mas também baseado nas suas ações
com fatos históricos. Pois a biografia é auxiliada pela presença do pesquisador e com o
escrito que é feito a partir de arquivos, documentos e relatos das pessoas próximas do
sujeito pesquisado. É feita a concretização através de um texto narrativo onde irá
possuir montagens, recortes, depoimentos. Porém, isso não exclui os problemas do
historiador na escrita de biografias, pois bate de frente com a complexidade da
identidade dos sujeitos, e a sua formação progressiva com as suas contradições.
O nosso trabalho do Padre Mota é de história e memória, que aparece na
biografia, que existir o lembrar e o esquecer que vai estar dentro da biografia, pois a
construção da memória é através da biografia.
Luiz Ferreira Cunha da Mota nasceu no dia 16 de abril de 1897, na cidade de
Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte. É o filho mais novo de Vicente Ferreira da
Mota e Filomena Ferreira Cunha da Mota. Começou os seus estudos muito cedo, onde
passou a estudar em um dos colégios mais importantes da cidade de Mossoró, o
Colégio Diocesano Santa Luzia nos anos de 1906 a 1908, logo após passou a estuda no
Grupo Escolar Trinta de Setembro, pois o Diocesano fechou o seu estabelecimento, no
Trinta de Setembro foi nos de 1909 e 1910. No ano seguinte foi morar em Natal a capital
do estado, e em 1912 foi estudar no Recife, a capital de Pernambuco. Mas em abril do
mesmo ano abandona o colégio, ele escreve para o pai se justificando: “Ontem, sai do
colégio por estar perdendo tempo, isto é, estudando aquilo que estudei. Se eu
continuasse lá, ainda passaria três anos para matricular-me em qualquer
estabelecimento superior. Cousa que faço neste ano, assim o senhor conceda estudar
particular. Estou definitivamente resolvido a seguir agronomia”. O seu irmão mais velho
Vicente Ferreira Filho (o Ferreirinha) iria residir em Natal, então o Luiz Mota argumenta
na carta ao seu pai: “Pois se ele for morar em Natal, eu posso ir para casa dele, e lá
continuarei os estudos, contando que, no princípio do ano viradouro eu faça exame de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
491

admissão na escola de agronomia”.


Sendo que acontece totalmente o inverso, Luiz Mota acaba voltando para
Mossoró no mesmo ano, e novamente foi estudar no Colégio Diocesano Santa Luzia, e
o mais interessante é que ele volta como aluno interno, pois a alimentação do local de
ensino era boa e isso acaba lhe atraindo. E acaba sendo um dos registros e
características marcantes de Luiz Ferreira da Mota que é a de comilão, comia muito e
com avidez.
Em 1913 volta para Recife e foi estudar no Colégio Salesiano, mas Luiz Mota
tinha o desejo de cursa agronomia, pois tinha o desejo de ajudar o desenvolvimento
rural da sua região. Então fica a pergunta, como surgiu a sua vocação sacerdotal? Ela
não surgiu de repente, no decorrer do tempo adquiriu a certeza e a vontade de desfrutar
as coisas materiais, e se sentido mais próximo da elevação espiritual, de início ele ficou
receoso, pois achava que não teria a capacidade de ser sacerdote. Abandonou
novamente os estudos em Recife, mudou-se para João Pessoa, e deu entrada no
Seminário da Paraíba, no mês de abril de 1914, ele tinha o objetivo de ir para o seminário
Pio Latino-Americano em Roma. Mas existia um porém, a língua oficial do colégio era
italiano, mas todas as aulas, trabalhos e provas eram em latim, língua essa que Luiz
Mota não sabia , com o desejo de entrar no seminário em Roma passou a estudar essa
língua e fez estudo com professores particulares, ou seja, em dois meses ele aprendeu
o latim, e depois de dois meses após ele se muda para Itália, no dia 09 de julho de 1914
chega em Roma e depois de dez dias recebe a batina de seminarista do Colégio Pio
Latino-Americano.
No dia 16 de abril de 1922, Padre Mota manda uma carta para o seu pai
informando da sua ordenação sacerdotal. Vejamos a seguir:

“Meu Pai, Saúde e Paz no Senhor. Até que enfim chegou o grande
dia esperado de tanto tempo. Ontem, 15, como já foi dito, recebi a
ordenação de Presbiterado e, portanto, já sou sacerdote para todo
sempre. Oh! Como devemos todos da família dar infinitas graças a
Nosso Senhor, que se dignou elevar-me a tanta dignidade, não merecida
de minha parte e só graça de sua infinita bondade, misericórdia e
generosidade! ... Que honra para a nossa família; que prazer para Você
e Mamãe, terem um filho padre ministro do Senhor, dispensador das
suas graças, as quais recairão, em grande parte, sobre vocês que lhe
consagraram um filho. Estou tão contente; sinto-me tão feliz, que não
sei como manifestar o que vai n’ alma nestes momentos de tanta
ventura.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
492

Fui ordenado pelo cardeal Basílio Pompili456, Vigário de Sua


Santidade o Papa Pio XI, na basílica de São João de Latrão457, igreja
catedral do papa. A função começou às 7 e meia da manhã e terminou a
1 (uma) hora da tarde; foi bastante longa pelas cerimônias do Sábado
de Aleluia, que precederam às ordenações. Fomos 36, os ordenados na
sagrada ordem do presbiterado, sendo todos dos vários colégios
eclesiásticos de Roma; havendo muitas outras ordenações nas ordens
inferiores. Do nosso colégio, fomos somente 5 os sacerdotes, sendo
que um nosso colega que também devia ordenar-se, caiu enfermo
poucos dias antes e não pode receber as ordens; já está, porém, quase
restabelecido e se ordenará em breve. Logo depois da ordenação, dei a
primeira benção para todos da família, representados na pessoa do meu
amigo Padre Chanaya, meu padrinho na ordenação. Hoje, às 9 horas em
ponto da manhã, cantei minha primeira missa aqui, em nossa capela.
Assistiram os Exmos. Snrs. Dom Vicentini, arcebispo Núncio Apostólico
da Holanda; D. Francisco Maia, arcebispo de Nicópolis458 e ex- bispo de
Belém do Pará; Dom Fuenzálida459, bispo de Conception, no Chile; D.
Vasconcelos, arcebispo de Damietta460; Dr. Magalhães de Azevedo,
nosso embaixador junto a Santa Sé e outras pessoas amigas e
conhecidas. O Dr. Sousa Dantas, embaixador no Quirinal461, escreveu-
me uma atenciosa carta, pedindo-me desculpas por não haver assistido
ao ato, porque, naquela mesma hora, partia para Gênova. Depois da
missa, e às 12 horas, o colégio ofereceu aos nossos sacerdotes, como
sempre faz, um jantar ao qual assistiram o Cardeal Billot462, os bispos
supra ditos, e mais convidados. Tocou-me, como o mais antigo da turma
dos ordenados, responder aos vários brindes que nos foram feitos, o
que fiz em italiano, língua oficial do colégio. O resto do dia foi de festas
e prazer.
Amanhã, direi a segunda missa sobre o túmulo de S. Luiz de
Gonzaga, na igreja de S. Inácio; depois de amanhã, direi a terceira missa
na basílica de Santa Maria Maior, no altar onde se conserva uma grande
relíquia do presépio de Nosso Senhor. Hoje, ofereci a primeira missa
cantada segundo a intenção que Você me mandou, isto é, por Você e
Mamãe; amanhã direi por todos da família, que estão vivos; e a terceira

456 Cardeal Basílio Pompili era presidente da “Obra Romana para a preservação da Fé”.
457A Basílica de São João de Latrão, localizada na praça de mesmo nome em Roma, é a catedral do Bispo
da Cidade Santa, o Papa. Seu nome oficial é Archibasilica Sanctissimi Salvatoris (Arquibasilica do Santo
Salvador) e é considerada a “mãe” de todas as igrejas do mundo. Como catedral da diocese, contém o
trono papal, que coloca acima de todas as igrejas do mundo, inclusive da Basílica de São Pedro.
458 Cidade de Macedônia onde foi escrita a Epístola de Apóstolo S. Paulo a Tito.
459 Gilberto Fuenzalida Guzmán.
460 Cidade localizada ao Norte do Egito.
461 O monte Quirinal é uma das legendárias sete colinas de Roma, que durante séculos protegeu a capital

do Império Romano. Como este nome é também indicada a residência oficial do Presidente da República
Italiana e o Palácio do mesmo nome.
462 Jesuíta e Professor da Universidade Gregoriana de Roma, nomeado cardeal em 1911. Era simpatizante

da Action Française, um movimento nacionalista radical Francês, contrário à democracia parlamentar e


favorável à monarquia hereditária. Quando o Papa Pio XI condenou esse movimento, em 1926 (pois os
sem partidos queria embasar suas teses na doutrina católica), o cardeal Billot renunciou ao Cardinalato
e se retirou para a casa de Noviciado Companhia de Jesus, onde nasceu.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
493

por todos os que já morreram. Aceite um saudoso abraço e abençoe o


filho que muito o ama. Pe. Luiz Mota.”463

A carta nos mostra o prazer que ele tinha em apresentar a sua maior realização
da sua vida, que é a de ser padre. Foi a partir dai que começa a surgir o grande homem
que iremos biografar nesse trabalho.
A escrita biográfica esta sempre preocupada com as continuidades e
descontinuidades de sua experiência de vida, a preocupação constante desses autores
em perceber seus personagens como sujeitos múltiplos, entrecortados por decisões
muitas vezes incertas. Mas existe uma perspectiva dos biógrafos do nosso tempo, ou
seja, o trabalho de reconstruir uma história de vida, em que o sujeito a ser biografado
também tem uma interação social. Analisar e identificar as relações sociais oriundas de
um indivíduo em seu mundo é colocado como de extrema importância em seu trabalho
biográfico. O trabalho de escrever uma história de vida é estar atento a relação no qual
o sujeito biografado esteve envolvido, pois também depende da realização ou não de
projetos individuais ou coletivos, porque narrar uma vida é sempre lembrar.
E é no lembrar que o Padre Mota se faz presente na sociedade de Mossoró, um
homem que esteve presente no cotidiano da cidade deixando sempre as suas marcas
de sabedoria. Marcas essas que foram iniciadas com as suas ações paroquiais
principalmente catequizando a população, pois na época estava havendo um
desequilíbrio de fiéis da igreja católica, na cidade estava começando a aparecer igrejas
evangélicas e isso preocupava tanto os padres da diocese como o bispo. Realizando
batizados, missas em vários bairros e construindo capelas, para que pudesse ter um
grande número de fiéis, mas o seu grande desenvolvimento começou quando ele
assume a Prefeitura de Mossoró em que foi dívida em três etapas.
O Padre Mota assume a prefeitura no dia 19 de janeiro de 1936 a setembro de
1397, assumindo o cargo de prefeito provisório, a segunda etapa, a de prefeito eleito
pelo voto popular é de 07 de setembro até 30 de dezembro de 1937, ele foi candidato a
prefeito nas eleições que foram realizadas em 16 de março daquele mesmo ano, onde
saiu vitorioso nas urnas, recebendo 1.486 votos, foi prefeito constitucional apenas por
três meses e onze dias, pois foi interrompido pelo golpe de Getúlio Vargas que criou o
Estado Novo. A terceira etapa, o de prefeito nomeado foi de 30 de dezembro de 1937 a

463 Femenick, Tomislav R. Padre Mota. p. 66-67, 16/04/1992. Carta

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
494

03 de abril de 1945, voltou a prefeitura por decisão do Interventor da época que era o
Rafael Fernandes Gurjão, e só saiu da prefeitura quando pediu demissão. Quando
prefeito o padre Mota acaba dividindo o seu tempo entre as funções de vigário da Igreja
de Santa Luzia e de prefeito, dando expedientes com horários estabelecidos entre a
prefeitura e a matriz, coisa que ele cumpria rigorosamente.

O Padre Mota era conhecido pelo seu humor fino e pela veia
satírica, como se evidencia na última frase dessa sua declaração
sobre as coisas públicas. Ainda hoje, ele é considerado por todos
o melhor prefeito da história de Santa Luzia de Mossoró. Isso sem
considerar os demais e nem desmerecer os seus méritos. É
preciso compreender que a análise das administrações públicas
deve ser efetuada considerando-se vários fatores, entre eles o
contexto político, social e econômico, a ambivalência histórica e
as condições concretas para a efetivação dos atos
administrativos. Nesse sentido, a administração de Luiz Ferreira
da Cunha Mota teve que enfrentar dificuldades em cada um
desses aspectos. Havia, na época, uma grave crise institucional no
país que se estendia por todas as unidades da Federação que, por
sua vez, atingia todos os Municípios. A crise política se juntou a
instabilidade econômica da depressão econômica mundial, com
seus efeitos perversos sobre a sociedade como um todo, porém,
especialmente sobre os mais pobres. Desse modo, o seu governo
se iniciou sob o espectro de desequilíbrio político e
socioeconômico. 464

Femenick mostra detalhadamente como era mostrado o Padre Mota prefeito e


sobre as dificuldades encontradas nas suas gestões, mas que no decorrer das suas
gestões mostra que é possível ter equilíbrio principalmente nas finanças públicas e
funcionalismo.
A luta pela água na cidade de Mossoró foi um dos seus grandes projetos quando
prefeito, pois o problema de seca era constante na cidade, numa região do semi-árido
nordestino, então começou a realizar perfurações de poços, logo depois instalações de
rede de esgotos e construção de uma estação de tratamento e de uma lagoa de
decantação e separação de dejetos. Também trabalho pela urbanização da cidade,
apenas quatros ruas da cidade eram pavimentadas com pedras calcarias irregulares,
havia poucas praças com algumas plantas e muito lixo, então fez o projeto de
urbanização é que mais de seis mil e quinhentos metros de meio- fio de pedra granítica

464 Femenick, Tomislav R. Padre Mota, pág. 147

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
495

e também construiu cinco jardins. Solucionou o problema da limpeza pública,


estabelecendo algumas regras para a limpeza e higiene da cidade de Mossoró, na
educação ele fez mais de 12 escolas municipais, perfeitamente aparelhadas e com
professores habilitados, outro projeto interessante foi a amplificadora mossoroense,
inaugurada no dia 14 de julho de 1938, fazia programações curtas e também serviço da
prefeitura.
Fizemos uma exploração do Padre Mota até o seu momento como prefeito, mas
iremos explorar mais na frente o Padre Mota que sabia fazer as pessoas rirem. Mas no
entanto o método biográfico se apresenta como mais um recurso para interpretação
histórica, as fontes devem ser exploradas de modo que possa contribuir as múltiplas
dimensões do indivíduo para que não ocorra a ilusão biográfica, ou seja, acreditando
que determinadas fontes são realmente prontas e capazes de mostrar o que realmente
aconteceu, porque existe casos de registros que na grande maioria não pode se
classificar como verdadeiro, então cabe ao historiador não aceitar como verdade
absoluta. Biografias fascinam. A forma de optar a cronologia da vida do biografado na
biografia histórica pode levar o pesquisador a uma visão de tratar o indivíduo como uma
personalidade coerente, ou seja, responsável por ações pontuais e isentas de
incertezas. Pierre Bourdieu mostra os riscos de narrativas biográficas, que de forma
cronológica apresentam ao leitor uma vida marcada de uma identidade coerente, que
pode-se dizer livres de contradições. Atualmente o gênero biográfico em história
recupere a tensão que existia entre as vivências objetivas e a relação com o subjetivo,
realizando assim uma problematização singular quanto a dimensão mais simbólica
dessas vivências, não levando a um trabalho mais restrito a informação. O Femenick
mostra o lado bem humorado do Padre Mota, e também um homem de muita cultura,
lia de tudo. O vigário criou uma espécie de espaço democrático, que foi a sua calçada,
como a sua residência ficava na praça principal da cidade, os vizinhos e as pessoas
passavam e sentavam para conversar com ele e a partir daí a calçada do Padre Mota
ficou sendo o ponto de encontro, ali se discutia de tudo como política, religião,
positivismo, economia, ateísmo, governo, e também a algumas piadas picantes, falavam
também da vida alheia, e ficou conhecida como uma calçada democrática.
A biografia, para os historiadores está entre o particular e o coletivo ajudando a
viabilizar a identificação de um indivíduo, permitindo, através da análise de uma vida,
grupos, partidos, movimentos religiosos e várias outras organizações. Pois o Femenick

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
496

mostra meios que possa identificar o Padre Mota não só na posição de padre mas
também como qualquer outro cidadão.

No sentido do senso comum, a biografia é hoje certamente considerada


uma fonte para se conhecer a História. A razão mais evidente para se
ler uma biografia é saber sobre uma pessoa, mas também sobre a
época, sobre a sociedade em que ela viveu. Mas, de forma não tão
evidente, a biografia tem sido considerada uma fonte de conhecimento
do ser humano: não há nada melhor para se saber como é o ser humano
do que se dar conta de sua grande variedade, em espaços e tempos
diferentes.465

Quando se narra os acontecimentos de uma vida, ao fato passam por uma


seleção permanente, apesar dessa seleção não ser evidente essas escolhas parecem
ser mais fáceis como, por exemplo: o nascimento, a vida do personagem, a origem social
e familiar, isso sempre serão fatores importantes. “Como em qualquer trabalho de
História, a vida do biografado terá o sentido que o historiador lhe conferir.” 466. Quando
se procura explicar e entender a vida de uma pessoa, devem-se analisar todos os seus
aspectos.

O DESENVOLVIMENTO BIOGRÁFICO
Pode-se afirmar que não existem vidas coadjuvantes, pois cada uma delas
apresentam um papel importante na sua configuração relacional mais ampla. É possível
identificar a posição do biógrafo-fonte em relação ao seu biografado é o trabalho
importantíssimo para o historiador. Para-se construir uma biografia existe a
necessidade de construir um diálogo entre o indivíduo e a sociedade de sua época, pois
esse indivíduo biografado acaba sendo o ponto de encontro de muitos imaginários, de
representações e práticas.
O Femenick apresenta a morte do Padre Mota como uma figura do homem-
herói, ele tinha uma saúde delicada, sempre obeso, hipertenso, diabético, glaucoma,
levava uma vida sedentária e com o passar dos anos isso foi se agravando, e em meados
de 1966, as complicações de saúde do Padre Mota já eram preocupantes, e foi em uma
grande crise que o fez se hospitalizar e a falecer, o próprio Femenick presenciou, pois
é sobrinho do Padre Mota.

465 Borges, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia, pág.215.


466 Borges, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia, pág. 225.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
497

O Padre Mota, morreu pobre, mesmo depois de ocupar tantos cargos


importantes. Seus tesouros eram seus livros e amigos, livros esses que foram doados
uma parte para o Seminário Santa Terezinha e parte para a Biblioteca Pública
Municipal. Luiz Ferreira da Cunha Mota faleceu as cinco horas da manhã no dia 27 de
agosto de 1966, no Hospital de Caridade de Mossoró, o seu corpo foi levado para a
Catedral de Santa Luzia, foi celebrada a missa de corpo presente por Dom Gentil Diniz
Barreto, que na época era o bispo da Diocese, após a missa partiu o cortejo fúnebre até
o Cemitério São Sebastião, foi considerado um dos mais enterros da cidade naquela
época.

Monsenhor Mota venceu as dificuldades naturais do semi-árido


nordestino, onde nasceu, venceu a barreira linguística para se torna
padre, ajudou a derrotar cangaceiros, construiu igrejas. Eleito e cassado,
voltou a governar a sua cidade e fez de sua administração um exemplo a
ser seguido, um motivo de orgulho para seus conterrâneos. Com poucos
recursos, realizou milagres com o dinheiro público, mas fez da probidade
e da honestidade as suas bandeiras. Ajudou a construir hospitais, a
combater a mortalidade infantil, ergue pontes e a edificar sua Diocese.
Além disso, defendeu a ecologia antes que ela transformasse em
modismo. Rigoroso com os faltosos, também sabia perdoar as faltas.
Amigos das autoridades, ele mesmo uma delas, sempre foi mais amigo
do povo. Democrata convicto, sabia que a democracia não depende de
poucos, mas da maioria. Culto e religioso, usava do humor como
elemento para mostrar que cultura e religião não são sinônimos de cara
feia, pois a pose e a carranca podem esconder a ignorância, quando não
há intolerância.
Padre Mota morreu sem bens materiais, pobre, mas foi herói da sua
gente, do povo da terra de Santa Luzia de Mossoró. 467

O autor mostra em simples palavras toda a trajetória do Padre Mota, que na


visão dele atualmente esta manchada, pelo espetáculo Chuva de Bala no País de
Mossoró, mostrando uma figura grosseira, cômica e até pornográfica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A biografia tem o objetivo de facilitar o futuro, satisfazer no presente, a tarefa
do historiador, e que existe uma consideração que a biografia é um produto fabricado.
O biografo acaba se entregando ao processo de construção e desconstrução, de seu
ícone. O historiador filtra os momentos vividos como diretrizes da temática biográfica,

467 Femenick, Tomislav R. Padre Mota, p.189.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
498

mas a absorção feita pelo historiador é metodológica e não deixa de ser notável, para
que possa abrir um campo de possibilidades de análise, pois a tarefa de construção de
biografias coloca em questão direcionamentos a serem observados desde a escolha do
personagem, tal constatação não implica o uso exclusivo do método discursivo
relacionado na existência individual.
Porém, a questão da ética é essencial, independentemente das ameaças no
âmbito da justiça, é necessário ser levadas em conta, pois o historiador acaba se
apropriando da memória do biografado, expondo suas mazelas, seus segredos, suas
contradições.

A biografia refere-se não só aos comuns, mas sim a um


sujeito privilegiado e distinguido, cujo destaque é dado
por grupos específicos da sociedade que controlam ou
delimitam o fluxo dos acontecimentos – seja ele o
biografado ou o biógrafo. 468

Concluindo, o uso da biografia como fonte histórica não significa o retorno da


história dos grandes homens, dessa forma ela se solta do ultrapassado estudo das
ações individuais e abre espaço para a investigação das ações coletivas. Isolando as
ações do biografado de seu contexto social, o historiador realiza a desmedida
valorização da ação individual, dando-lhe o papel de agente da história, ou seja,
colocando em segundo plano as influências das ações coletivas. Observando o contexto
social que a biografia atua, vemos os valores e os costumes de vários grupos sociais, e
uma organização deles na sociedade, na busca por novas fontes, o atual ressurgimento
do gênero biográfico apresenta-se na medida em que retrata o pano de fundo do
personagem que na maioria das vezes esquecidos ou suprimidos pela história oficial, a
proposta é sempre de ampliar e enriquecer as interpretações dos acontecimentos
históricos.

REFERÊNCIAS
Le Goff, Jacques, 1924- História e memória/ Jacques Le Goff; tradução Bernardo Leitão.
4 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.

Pinto, Júlio Pimentel. Proj. História, São Paulo, (17), Nov. 1998.

468Chaia, Miguel. “Biografia: método de reescrita da vida”. In: Fani Hisgal (org) Biografia: sintoma de uma
cultura. São Paulo: Hacker/ Cespuc, 1996, p.76.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
499

Jenkins, Keith. A história repensada – São Paulo: Contexto, 2011.

Rossi, Paolo, 1923 - O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história


das ideias / Paolo Rossi; tradução Nilson Moulin. – São Paulo: Editora UNESP, 2010.

Bloch, Marc Leopold Benjamin, 1886-1944. Apologia da história, ou, O oficio de


historiador / Marc Bloch; prefácio, Jacques Le Goff; apresentação à edição brasileira,
Lilia Moritz Schwarcz; tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

História, Memória e Comemorações – ANPUH- PB / Rodrigo Ceballos; Josineide da


Silva Bezerra (orgs.). Campina Grande: EdUFCG, 2012.

Certau, Michel de. A escrita da História; tradução de Maria de Lourdes Menezes;


*revisão técnica [de] Arno Vogel – Rio de Janeiro: Foresense Universitária, 1982.

Del Priore, Mary. Biografia: Quando o individuo encontra a história. Topoi, V. 10, n. 19,
jul.- dez. 2009.

Fontes Históricas / Carla Bassanezi Pinsky, (organizadora). 2. Ed. - São Paulo:


Contexto, 2006.

Barros, José D´ Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens / José


D´Assunção Barros. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

Chaia, Miguel. “Biografia: método de reescrita da vida”. In: Fani Hisgal (org) Biografia:
sintoma de uma cultura. São Paulo: Hacker/ Cespuc, 1996.

Femenik, Tosmilav R. 1939- Padre Mota/ Tosmilav R. Femenik. Natal: Fundação José
Augusto, 2007.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
500

“JÁ NÃO BASTA A RÚSSIA!”: O JORNAL A ORDEM


E A PRODUÇÃO DO DISCURSO ANTICOMUNISTA
NO RIO GRANDE DO NORTE (1935)

Micarla Natana Lopes Rebouças469

Conhecer para negar. Esse foi, sem dúvida, o ponto nevrálgico do discurso
anticomunista veiculado pelos intelectuais católicos que gravitaram no jornal A Ordem.
Dizer o outro, como sugeriu Hartog (1999), seria enunciá-lo como diferente e encontrar
nessa diferença a forma de reafirmar a perspectiva de quem a enuncia. Nesse sentido,
os dois verbos exigem, antes de qualquer coisa, a confecção de fronteiras nítidas entre
o que propunham os lados em oposição, na medida em que a representação de si
tornava-se um exercício de contrapor-se.
Essa retórica da alteridade (HARTOG, 1999, p. 229) mobilizada pela relação
fundamental que a diferença entre as duas perspectivas instaura serviria como um dos
principais subsídios a constituição do imaginário anticomunista nas páginas do jornal.
O cerne da distinção – comunismo/ anticomunismo – seria encontrado, sobretudo, na
diferença evidente entre as visões do social oferecidas pelas duas perspectivas. Diante
da (contra) posição quanto a temas delicados em relação ordenamento social
(revolução, luta de classes, expropriação, emancipação da mulher, divórcio, ensino laico,
etc.), o comunismo ganhou contornos ameaçadores para a hierarquia católica, na
medida em que colocava em cheque valores e práticas convencionados como
naturalmente estabelecidos nas hostes católicas.
A elaboração do inimigo e a mobilização de todas as forças para seu combate
exigiu a composição de uma gama variada de construções imagéticas que investiram
na representação do comunismo como uma ameaça que congregaria grande parcela
dos males que acometiam a sociedade.
No espaço discursivo da imprensa, os intelectuais católicos se dedicaram a dar
feições ao inimigo, torná-lo legível em suas fraquezas e contradições e, sobretudo, a
frisar sua incompatibilidade com o mundo cristão. Sob essa perspectiva, alertar os
leitores contra a astúcia do inimigo, expor didaticamente seu programa e meios de ação,

469 Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
501

enquadrá-los como maléficos e perniciosos ao ordenamento social, fariam parte da


tarefa de se posicionar diante do outro, estranho e incompatível com a ordem
estabelecida.
A produção do outro, em sua expressão imaginária, por sua vez, se tornou
inteligível e comunicável pela produção de discursos (BAZCKO, 1985, p. 311) em torno
da “ameaça vermelha”. Nas páginas do A Ordem, encontra-se um conjunto valiosos de
representações que convergem para a produção de sentidos em torno do comunismo
em um jogo de designar, descrever e qualificar, próprio do fazer jornalístico. Como
assinala Mariani (1998):

[...] o discurso jornalístico atua na institucionalização social dos


sentidos, buscando promover consensos em torno do que seria a
verdade de um evento. Para tanto, o discurso jornalístico assume um
caráter didático, em que as explicações têm a forma de causa/efeito,
aparecendo pontuadas com exemplos (MARIANI, 1998, p. 145).

Esse processo de institucionalização está intimamente relacionado ao caráter


didático assumido pelo discurso jornalístico e as formas que este assume para tornar
inteligível e convincente aquilo sobre o que se fala. No que concerne ao comunismo,
esse didatismo marcou notadamente o arsenal anticomunista presente no A Ordem que
lançou mão de diferentes recursos didáticos na composição da imagem do comunismo
como inimigo social.
O papel do jornal como agente social ganha feições ainda mais complexas na
medida em que sua veiculação à instituição católica matiza fortemente seu conteúdo
com elementos doutrinários, decisivos no programa e nas visões de mundo
disseminados em suas páginas. Ao mesmo tempo, como nos lembra Bourdieu (1997), é
preciso atentar para os produtores dessa mensagem religiosa, os interesses e
estratégias que alimentam essa produção e o seu uso simbólico. Nesse sentido, o jornal
se torna uma malha sinuosa desenhada por contornos religiosos, políticos e midiáticos
e pela produção simbólica que surge desse desenho. Por sua vez, a atuação dos
intelectuais católicos, enquanto atores do político e artífices dessa composição, se
mostra valiosa em tempos de combate.
Fundado em 14 de julho de 1935, o jornal A Ordem fez parte de uma série de
iniciativas, que tinham como objetivo o crescimento e o fortalecimento da imprensa

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
502

católica no Rio Grande do Norte. A obra de difusão da Boa Imprensa nas terras norte-
rio-grandenses foi confiada aos jesuítas a partir do acordo firmado entre D. Marcolino,
então Bispo de Natal, e o Centro de Imprensa da Congregação Mariana dos Moços, em
19 de março de 1933.
Como representante da Boa Imprensa nas terras potiguares e, portanto, porta-
voz do catolicismo oficial, o A Ordem vai se colocar como referencial seguro aos
leitores, buscando legitimar seu lugar enquanto promotor do “bom combate”. A partir
desse papel, o jornal se constituiu num dos principais canais de atuação da
intelectualidade católica potiguar, tendo em seu quadro intelectuais como Otto de Brito
Guerra, redator-chefe do jornal e uma das principais lideranças do Integralismo no
estado, Ulisses de Gois, presidente da Congregação Mariana dos Moços, principal
reduto do laicato católico norte-rio-grandense, bem como colaboradores como Pe.
Herôncio e P. J. Cabral, principais responsáveis pela confecção do discurso
anticomunista no estado. O jornal contou também com a colaboração de articulistas
dos principais centros do laicato católico nacional, como Alceu do Amoroso Lima,
Jônatas Serrano e Perillo Gomes.
A partir da prática escriturária de seus intelectuais, o jornal A Ordem cimentou
em suas páginas o discurso institucional dos documentos oficiais, integrando e
envolvendo “a sociedade dentro de uma abordagem totalizante do catolicismo”
(GONÇALVES, 2008, p.108).
Disposto a travar os combates pela fé, esses intelectuais fazem parte do grupo
que Pinheiro (2007) classificou como aquele que converte o catolicismo no princípio
gerador de seus trabalhos, em nome do qual intervêm nas disputas estéticas e políticas.
Intelectuais que não tem localização difusa no tempo e no espaço, e se constituem
propriamente como grupo, ou seja, um conjunto de indivíduos dotados de um carisma
coletivo que permite o reconhecimento recíproco, “e que atua programaticamente a
partir de um conjunto de crenças e valores que se firmam como consenso” (PINHEIRO,
2007, p. 01).
Nesse sentido, a partir da análise da prática escriturária desses intelectuais
católicos tornou-se possível compreender os matizes da produção discursiva do
pensamento católico nas páginas impressas a partir da constituição de um imaginário
anticomunista que agregou e mobilizou as forças católicas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
503

Para compreender a elaboração ideológica em torno do comunismo e a sua


veiculação nas páginas impressas, nos debruçamos sobre o repertório anticomunista
do A Ordem anterior ao Levante comunista, em Natal, em novembro de 1935. Naquele
momento, a produção discursiva do jornal se direcionou a ameaça externa representada
pela URSS. O repertório de imagens pejorativas em torno da realidade soviética,
depositado diariamente nas páginas do jornal, seria decisivo no recrudescimento do
discurso anticomunista posterior aos levantes.

“UMA AURORA QUE GOTEJA SANGUE”


A medida que a propaganda comunista rompia as fronteiras de Moscou e
espalhava-se pelo mundo, inclusive no Brasil,470 as ressonâncias do modelo soviético
tornavam-se alvo da preocupação da Igreja. Esse temor alimentou a produção de um
imaginário antissoviético apoiado na descrição exaustiva do que seria a “pátria do
socialismo” e passou a ser um dos principais elementos da propaganda anticomunista
presentes no jornal A Ordem.
Desde 1917, com a efetivação das propostas revolucionárias, os mistérios que
cercavam a “pátria de Lênin” despertavam a curiosidade daqueles que pouco sabiam
sobre a realidade do novo Estado soviético e cujas poucas informações a que tinham
acesso chegavam ao Brasil de forma confusa e bastante deturpada (KONDER, 2009, p
151). Entre livros, notícias e relatos, as impressões em torno da URSS estavam
polarizadas entre as descrições simpáticas ao regime e as de caráter anticomunista,
que alimentavam debates acalorados em torno do projeto bolchevista. Foi, entretanto,
somente a partir da década de 1930, que se acentuou a circulação de ideias e textos em
torno do “experimento soviético”, graças, sobretudo, ao aumento de livros publicados
em português, tanto traduções como obras de autores nacionais (MOTTA, 2006, p.136).
Entre estas últimas, destacamos a publicação, em 1933, de A miragem soviética pelo
sacerdote norte-rio-grandense, Pe. J. Cabral.
No livro, Pe. J. Cabral se dedicou a desmistificar a propaganda em torno do
modelo soviético, apontado pela propaganda comunista como um “prototipo dos
governos do futuro”. O proselitismo comunista, segundo o sacerdote, atingiria tanto
aqueles que de fato simpatizavam com o regime bolchevista, como também, os

470 A respeito da recepção das ideias de Marx, no Brasil, ver Konder (2009).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
504

“incautos” e de “boa fé” que acham que “o diabo não é tão feio quanto se pinta”
(CABRAL, 1933, p.7-8).
Em sua introdução, a obra do sacerdote norte-rio-grandense fornece um
exemplo valioso dos matizes que a elaboração do imaginário anticomunista vai se valer,
no jornal:

Exemplo de como se faz a propaganda comunista temo-lo pessoal.


Em fevereiro de 1932, viajavamos pela Great Western, no trecho de
Natal a João Pessoa.
Para amenizar o calor de um dia escaldante, dirigimo-nos ao carro-
restaurante, à procura de algum refresco.
Aí conversavam, à meia voz, dois individuos, e dessa palestra
guardamos um pouco que infra reproduzimos:
– A Rússia é assim: ninguem tem nada; tudo é do govêrno, do Estado.
– E como se vive, então?
– O governo dá tudo de que a gente precisa.
– ?...
– Foi um russo que me informou.
– Quem não ha de gostar disso são esses fazendeiros, senhores de
engenho e proprietários.
Aí temos uma explicação simples e terminante que é dada,
frequentemente, a quem pergunta algo sobre o comunismo.
Essa falsa noção de comunismo é que pretendemos combater
(CABRAL, 1933, p.8, grifos do autor).

No campo de disputa em torno de qual moldura seria dada ao retrato da “Rússia


Vermelha”, os intelectuais católicos se dedicaram a composição de um retrato
fantasmagórico da experiência soviética. Caberia aos articulistas do jornal “inverter a
ordem” da propaganda comunista e mostrar que “o diabo não é tão bonito quanto se
diz...”. Esse esforço se verifica já nas primeiras edições do A Ordem, numa tentativa clara
de demonstrar a ineficiência do regime soviético, e de produzir uma (contra)
propaganda:

Nossos impagaveis communistas têm a mania de engrandecer tudo


que se faz na Rússia. Para elles a felicidade alli é completa e a perfeição
absoluta. O peor é que às vezes os proprios chefes communistas russos
se encarregam de estragar a propaganda deslavada...
No seu ultimo relatorio, o novo Commissario do Povo para os
transportes, o sr. Kaganovith expõe a atual situação, verdadeiramente
desastrosa, em que se encontram as estradas de ferro da URSS,
declarando-a um ‘fracasso militar, do qual convem aproveitar os
ensinamentos’.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
505

Segundo suas proprias declarações houve em 1934, naquele paiz,


62.000 accidentes. Nos dois primeiros mezes de 1935 a proporção dos
acidentes tinha augmentado ainda mais. O numero de mortos foi de
centenas e o de feridos de milhares. Mais de 5.000 locomotivas e mais
de 64.000 vagões tinham sido destruidos. A produção annual de
vagões, entretanto era apenas de 19.000.
Aqui é o caso de inverter a ordem: o diabo não é tão bonito quanto de
diz... (NO PARAIZO..., 1935, p. 04).

Era, de fato, como uma “miragem” que os intelectuais católicos pretendiam que
a realidade russa fosse encarada pelos leitores. Para isso, os articulistas do jornal se
dedicaram, quase que diariamente, a exposição das características do regime soviético
em um encadeamento associativo de imagens pejorativas, que envolviam desde as
“impossibilidades práticas” do modelo comunista à chamada “propaganda deslavada”
dos revolucionários. Houve, sob esse intuito, uma minuciosa seleção de notícias que
pudessem destratar a revolução, seus líderes e o regime por eles estabelecido. Nessa
seleção, a imagem depreciada de Moscou expõe o regime soviético como um
antimodelo, “incompatível”, “alheio” e “absurdo” aos olhos da civilização-cristã-
ocidental.
Em artigo, de 09 de outubro, intitulado Communismo é aquilo?, assinado por Pe.
Herôncio, o jornal lançou mão de um recurso persuasivo bastante enfático para
demonstrar ser o regime bolchevista “absurdo”. O título em forma de interrogação
demonstra o questionamento constante a realidade soviética, na mesma medida em
que o pronome demonstrativo “aquilo” vem carregado de uma conotação depreciativa.
A explicação para o questionamento e o suporte semântico de desprezo a ele
emprestado aparecerá na divulgação das chamadas “páginas de sangue” do regime
soviético, cujo cenário de caos e barbárie descrito explicariam a incredulidade presente
no questionamento.
O sacerdote norte-rio-grandense investiu na imagem de uma “infeliz Rússia”
tomada pelo derramamento de sangue de inocentes, como a expressão do horror
vivenciado no regime bolchevista. A exposição dos supostos fuzilamentos em massa,
com a explanação de números expressivos de assassinatos praticados pelos sovietes
são expostos como forma de reafirmar o “instinto sanguinário” dos comunistas,
expresso através do caráter repressivo do “extremismo soviético” que promoveria
verdadeiros massacres. Bastante ilustrativo nesse sentido, a composição da imagem

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
506

dos seguidores de Lênin como “abutres sanguinários” que sobrevivem da carnificina ao


qual o regime submete “operarios, velho, mulheres e creanças” reforça o repertório de
imagens da contra-propaganda empreendida pelo jornal na medida em que retiram do
inimigo a sua condição humana.

A historia do regime bolchevista se resume na destruição em massa


dos operarios, camponezes, intellectuaes, de gente de toda casta.
Passemos em revista as paginas de sangue do anno communista na
infeliz Rússia. 1919. As tchekas executaram 11.891 pessôas conforme
dados officiaes, 20.000 segundo dados naõ officiaes. Em Arkhangelsk,
800 officiaes foram fuzilados de uma vez só, à metralhadora, e em
outra ocasião, 1200 officiaes foram postos em um harco sobre o qual
as metralhadoras despejaram morte. Em Nicolevsky, houve dentro de
tres meses, 6.000 fuzilamentos. Em Astrakan 10.000 operarios que
pacificamente faziam um comicio, reclamando seus direitos tantas
vezes prometidos, foram metralhados morrendo cerca de dois mil. Isso,
naturalmente em nome das liberdades e das reivindicações do
operariado!...No Turquestan Russo, na noite de 20 de janeiro foram
assassinadas 2.500 pessôas, sendo os cadaveres atirados à rua. No
mesmo mês, em Moscou, mais de 300 pessôas foram batidas, como
rêzes no matadouro, como testemunhou a revolucionaria socialista
Uzmailovitch. Em Odessa foram mortas 7.000 pessôas, sendo que uma
noite o numero de victimas chegou a 400, fuziladas a metralhadora; por
causa da difficuldade de executar cada uma de per si. Em Sebastopol, a
mortandade chegou a 20.000. Na Georgia, em uma noite foram
massacrados operarios, velhos, mulheres e creanças, em numero de
300, sendo os cadaveres amontoados na praça da Cathedral, chegando
a barbaria ao ponto de ficarem muitos corpos sem braços ou com
cabeças arrancadas [...] (HERÔNCIO, 1935a, p. 01).

Não é difícil imaginar o impacto provocado e quão chocados ficariam os leitores


ao se depararem com o cenário macabro descrito pelo sacerdote. Os números de
mortos, dignos de um cenário de guerra, fazem do horror causado a substância
indispensável a condenação do inimigo, taxado de “friamente criminoso”. A organização
discursiva do artigo torna evidente a estratégia de “encenação da informação”471
descrita por Charaudeau, na medida em que na construção da notícia, o articulista lança
mão de um determinado modo discursivo em que descreve o fato com minúcia,

471 Ao trabalhar com o processo de construção da notícia, Charaudeau (2015, p. 129) expõe o que
denomina de “estratégias de encenação” da informação enquanto desdobramentos do modo de
organização do discurso em virtude da inteligibilidade do conteúdo veiculado pela mídia. Desse modo, o
sujeito informante “procederá a uma determinada construção da notícia e tratará a informação de acordo
com certos modos discursivos em função dos dispositivos pelos quais ele passa”. “Ou seja, ele pode usar
estratégias em função dos desafios de credibilidade e de captação que escolhe para si”.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
507

produzindo um efeito de objetividade (visto principalmente no uso de dados


numéricos), mas também como uma descrição dramatizante, produzindo um efeito
emocional” (CHARAUDEAU, 2015, p. 129).
O encadeamento de causa e efeito, tão caro ao repertório anticomunista, conflui
aqui para reforçar a imagem do comunismo como um regime inconcebível. Nesse
sentido, ao fazer uso de imagens fortes na descrição do que seria uma matança
generalizada, com corpos amontoados “sem braços e com as cabeças arrancadas”, o
religioso procurou demonstrar ao leitor o quão absurdo seria se “iludir” com o
“programa de morte” dos comunistas e suas “ordens sangrentas” e o quanto perigosa
seria a infiltração das “ideias subversivas” no Brasil, sobretudo, entre os “pobres
operarios”.
Uma das questões mais preocupantes à hierarquia católica, dentro dessa
campanha de desconstrução, era a imagem veiculada pela propaganda comunista que
apontava a URSS como a “pátria do operariado”, apoiada na construção de um
imaginário bastante difundido, desde a experiência revolucionária de 1917, de que o país
seria um paraíso para o operário, haja vista que encontraria lá o fim da exploração
burguesa e condições de igualdade. Na contramão dessa propaganda, em matéria de
19 de julho, o A Ordem deu destaque a fuga de alguns operários da URRS para São
Paulo. O episódio será providencial na tarefa de desmistificar a propaganda soviética,
uma vez que, endossaria a máxima tão divulgada na retórica anticomunista de que o
“communismo é o inimigo do proletariado” (A Ordem, 19 jul. 1935, p.2) e de que no
sistema soviético não haveria “uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura sobre
o proletariado” (CABRAL, 1933, p. 48). A fuga da “caravana de emigrados russos” foi
explorada com riqueza de detalhes pelo jornal, que lançou mão do recurso da chamada
“entrevista testemunho” como forma de tornar mais persuasivas as teses em torno do
“inferno russo”. A divulgação na íntegra do depoimento de um dos trabalhadores, que
na ocasião falou ao jornal Diário de São Paulo, teria como objetivo, como é próprio
desse gênero jornalístico, “confirmar a existência de fatos e despertar a emoção,
trazendo uma prova de autenticidade pelo ‘visto-ouvido-declarado’” (CHARAUDEAU,
2015, p.216), de modo que a dramaticidade garantida pela densa descrição das precárias
condições de vida a que estariam submetidos os operários garantiam argumentos
sólidos à tese de que a realidade da classe trabalhadora russa não era condizente com
o que propagandeava os soviéticos:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
508

–Viviamos na Russia sob um regimen de trabalho intenso. Alguns de


nós trabalhavam nas fabricas, sempre vigiados. Outros moravam nas
aldeias. Os que trabalhavam nas fabricas ganhavam 200 rublos por
mes, tendo como ração diaria 200 gramas de pão (mistura de trigo com
milho e batatas), 100 gramas de toucinho e ½ litro de aguardente.
Os que trabalhavam nas aldeias – prossegue nosso informante – não
tinham vida melhor. Semeavam e colhiam guardados por soldados de
armas embaladas. Depois do trabalho de mezes, o camponez tinha o
direito de ir até a cidade, com o cartão do comissario, reclamar a parte
de trigo destinada ao agricultor.
Viviamos descontentes com o regimen. Ainda assim, durante o anno de
1933 suportamos a existencia nessas condições. Um dia resolvemos
fugir (COMBATE..., 1935, p. 02).

Nesse sentido, a insatisfação declarada por um operário que havia


“experienciado” o regime russo, traria um exemplo sólido das inúmeras denúncias
feitas pelo jornal em torno condições de vida dos operários, constituindo-se em um
argumento de autoridade ao qual o jornal soube explorar didaticamente. Para reforçar
ainda mais o drama vivenciado pelos emigrados, a entrevista explorou as penosas
condições que os fugitivos enfrentaram durante a fuga. A partir da realidade descrita
seria possível demonstrar que tamanha eram as condições insalubres em que viviam
que valeria a pena se aventurar em uma fuga repleta de perigos:

A jornada foi penosa. Das 45 pessoas que deixaram o acampamento,


chegaram a aldeia de além-fronteira apenas cinco. O resto morreu.
Encontramos nos caminhos, perdidos no matto, cadaveres gelados,
indicio certo que antes de nós outros fugiram e pereceram.
Não há palavras que possam descrever a terrivel jornada. O vento, o
frio, as trevas, a fome e a morte!
Quanto tempo andamos não podíamos calcular. Tinhamos perdido a
noção do tempo e do espaço. Mas iamos sempre para diante. [...] ‘O mais
horrivel foi a passagem pelos montes Pamir. Quatro dias gastámos
para atravessar as montanhas. Mulheres e creanças não podendo
supportar a marcha, morriam. Os nossos pés sangravam. Quatro longos
mezes gastámos nessa peregrinação, por desertos e montes,
marcando o caminho com o proprio sangue’ (COMBATE..., 1935, p. 02).

A imagem do rastro de sangue que demarca a “terrível jornada” confere ao


depoimento um forte apelo emocional, que por sua vez funciona como importante
estratégia persuasiva pra o argumento que encerra a matéria: “Teem ahi os leitores de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
509

A Ordem uma prova de que o ‘Paraizo Russo’ é tão bom (?) que os operarios estão
fugindo delle...” (COMBATE..., 1935, p. 02).
As promessas em torno de uma ordem social suprimida de desigualdades,
funcionavam como o epicentro do poder de atração do comunismo, sobretudo, nas
camadas proletárias, o que segundo o jornal, facilitava a infiltração dos “emissários de
Moscou”. Tornava-se premente demonstrar as contradições do proselitismo
comunista, investindo, para isso, na imagem de que a tão propagada igualdade coletiva
seria uma ilusão. Valia, nesse intuito, negar a “irremediavel hostilidade aos habitos
burguezes” por parte dos comunistas, afirmando, ao contrário, a sua “extraordinaria
capacidade de se aburguezar”:

Basta ver o que são as suas embaixadas no estrangeiro. Muitas se


apresentam mais luxuosas, protocollares e formalistas do que as
embaixadas russas da epoca do tzarismo.
Mas na propria capital da Rússia communista a opolulencia burguesa
por vezes assignala a hypocrisia do officialismo...plebeu.
O sr. Pierre Laval teve agora em Moscou uma recepção e festas
pomposas. Antes dele, sir. Eden, lord do Sello Privado da Inglaterra, fôra
objeto de festas com um cunho de burguezismo elegantissimo.
Conta um jornal de Paris que por toda parte só se viam casacas, fracks,
sobrecasacas, polainas, chapéos altos – ‘todo o arsenal desusado das
antigas civilizações’ (como teria rosnado um diario moscovita) (OS
SOVIETS..., 1935, p. 05).

Sob o mesmo propósito, o periódico esforçou-se em atestar que no “decantado


paraizo do operario”, enquanto a “massa proletaria vive em grande miseria material e
moral” seus “dominadores são mais ricos de que os nobres dos tempos dos czares”.
Em matéria intitulada A fortuna de Stalin, de 14 de julho, o jornal expõe dados quanto
ao que seria a fortuna acumulada pelo líder soviético, avaliada, segundo o jornal, entre
10 a 20 milhões de dólares. O fato foi explorado no sentido de evidenciar mais uma vez
a chamada “hipocrisia” envolta nas propostas revolucionárias, em que “por traz da
fachada de abnegação”, “os comunistas não se descuidam de seus interesses
particulares”.
Questiona-se, portanto, como o líder comunista dispõe de tamanho patrimônio
se para ele “a propriedade privada é um furto!” A pequena matéria assumiu um tom
provocativo, lançando mão de um importante recurso didático que apareceu
constantemente nas matérias/artigos que tratam do comunismo: a ironia, em seu tom

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
510

mais ácido: “é bom reter que esse Stalin, tyrano soviético que arranca do pobre povo
russo o pão e o faz morrer à fome em massa, tem em lugar seguro um capital pessoal
de 10 milhões de dólares. É essa a abnegação, o desinteresse, a sinceridade comunista”
(HERONCIO, 1935e, p.06). A figura de linguagem, nesse caso, foi utilizada para
demonstrar as incoerências da propaganda comunista e para ratificar sua
impossibilidade prática.
Neste aspecto, o imaginário anticomunista tocava num ponto sensível da
propaganda revolucionária que negava veementemente a noção de propriedade privada
e investia na estratégia de minar a propaganda comunista pela ilustração das
discrepâncias entre as promessas pré-revolucionárias e a realidade pós-revolucionária.
Investe-se, portanto, na imagem do “credo vermelho” como uma doutrina
falaciosa, fundada em falsas promessas. Ilustrativo, nesse sentido, o artigo Cordeiros
Vermelhos, publicado em 2 de agosto, investindo em um forte tom de deboche,
demonstra a intenção de ridicularizar o comunismo, expondo sua propaganda como
uma “anedota”. As expressões como “histórias de trancoso”, “conversa fiada”, “leseira
terrivel”, “trapalhada” confluem para o argumento de ser o comunismo, com suas
“promessas absolutamente irrealizáveis”, uma grande ilusão:

Os communistas, parece, é que ainda permanecem na doce ilusão de


que até os homens barbados viraram crianças. Vêm com suas historias
de trancoso para cima do povo, enchendo-lhes os ouvidos de muita
conversa fiada e de promessas absolutamente irrealizaveis.
Sabidos que só elles, procuram vez por outra, disfarçar seu nome. E o
gigante papão da III Internacional passa a se chamar como sucede
também no Brasil, ora Frente Unica anti-guerreira, ora Aliança Nacional
Libertadora. Os rotulos mudam. Mas se esquecem de mudar as figuras,
sempre as mesmas. Leseira terrivel.
Se não fosse a sem cerimonia com que os communistas da Alliança
Libertadora (de que) procuram a todo momento negar suas proprias
doutrinas e actos, nitidamente subversivos, anarchicos, bolchevistas,
extremistas, não perderiamos tempo de em afirmar com a mais
absoluta segurança, um facto sufficientemente provado.
É admiravel a capacidade ‘tapeadora’ dos communistas. Mas o peor é
que elles mesmo estragaram as combinatas. O senhor Cascardo, por
exemplo, teima em sustentar que a Alliança não é communistas. Mas
vae e insensa, como agora mesmo, ao partir para Santa Catharina, o seu
chefe de honra, o cavaleiro da desesperança, Carlos Prestes, o qual, por
seu lado, teima em sustentar que é communista, e dos vermelhões,
pregando saques e depredações. A trapalhada é medonha
(CORDEIROS..., 1935, p. 01).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
511

A imagem dos comunistas como traiçoeiros foi bastante explorada no apanhado


de representações anticomunistas. Didaticamente, o artigo busca persuadir o leitor
sobre a chamada “capacidade ‘tapeadora’ dos communistas”. Esse argumento se faz
presente desde o título do artigo bastante sugestivo nesse sentido, cujo o uso
conotativo da parábola bíblica do “lobo em pele de cordeiro” se encaixaria
perfeitamente com a denúncia frequente de que os “extremistas vermelhos”
recorreriam a disfarces e esconderiam seus reais planos, criando falsas imagens no
intento de ludibriar suas vítimas.
Está presente, também, no artigo, outra imagem bastante evocada na
construção do “inferno russo”: a temática da infância comunista supostamente
sacrificadas “aos caprichos de homens desalmados!” (HERONCIO, 1935c, p.1) e a quem
restaria somente o caminho da marginalidade dentro das perspectivas oferecidas pelo
regime soviético. Em outro artigo, de 26 de julho, o jornal voltará a recorrer a temática
como forma de sensibilizar os leitores ao drama sofrido pelas crianças soviéticas a
quem o jornal chama de “infelizes”, que abandonados à própria sorte pelo Estado,
viveriam em “antros de perdição, donde saem para o roubo e para crimes de toda
especie”. A formação do “bando sinistro de miseraveis e salteadores” é apontada como
consequência “da educação sem Deus”.
Mais uma vez o encadeamento entre causa/efeito será explorado pelo jornal
como ferramenta didática. O sofrimento e a criminalidade infantil, com destaque dado
pelo artigo ao decreto472 que instituía a pena de morte para criança aos doze anos de
idade, abrem precedentes para que se questione o modelo educacional soviético, onde
a “educação é ministrada pelo Estado”, os “filhos são propriedade do governo”, e as
escolas seriam “verdadeiras cathedras de perdição” em que “campeam o impudor e a
imoralidade” responsáveis pela “dissolução dos costumes” e pelas, consequentes,
“proporções tão assustadoras” da criminalidade infantil. Questiona, então, o articulista:
o que se poderia esperar de um modelo de ensino em que os “professores devem fazer
desaparecer da alma da creança qualquer sentimento de religião e de amôr aos
progenitores”? Abre espaço ainda para outro questionamento: Que sociedade se vai
alicerçar nessa base assim carcumida? Que terrivel futuro aguarda a Russia?

472 Referência ao Decreto Lei n. 3/598, de 07 de abril de 1935, “Sobre os meios de luta contra a
criminalidade entre os menores”, que previa a pena capital as crianças maiores de 12 anos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
512

Entra em cena aí outro importante argumento utilizado na campanha


anticomunista católica, a associação ente comunismo e ateísmo. O A Ordem atribuiu ao
comunismo “todos os grandes males do mundo moderno”, elencando, como um dos
mais graves, as investidas comunistas contra a religião, marcadas, sobretudo, pela
intensa propaganda antirreligiosa. A temática foi alvo de editorial, de 01 de outubro,
assinado por Pe. Cabral, intitulado Comunismo e atheismo. No texto, o religioso
demonstra preocupação quanto as supostas tentativas por parte dos comunistas em
declinar de sua ruptura direta com catolicismo, concentrando-se em negar
veementemente a noção de que o comunismo não seria contra a religião, mas somente
ao capitalismo:

Segundo informações seguras, que nos foram transmitidas, os


coripheus do sovietismo russo entre as massas da população
brasileira, procuram convencer nosso povo de que o communismo nada
tem de contrario a religião.
Particularmente nos estados do Nordeste, os emissarios de Moscou,
tentam estabelecer à base de sua propaganda este principio: o
communismo não combate o catholicismo e, sim, os capitalistas.
Bêm se vê, mais uma vez, que os filhos das trevas são mais prudentes
que os filhos da luz...Podera não...Se é assim que lemos no Evangelho...
Honra lhes seja, aos assalariados de Moscou. Redem homenagens aos
sentimentos religiosos de nosso povo e bem compreendem quanto
seria dificil fazer vingar sua campanha contrária, ao mesmo tempo, à
Pátria e à Igreja.
É assim que, à sombra de pretensa conciliação do communismo com o
catholicismo, procuram levar avante sua campanha de desagregação
do nosso paiz (CABRAL, 1935, p. 01, grifos do autor).

Seria inadmissível, portanto, que houvesse uma possível aproximação entre


inimigos irreconciliáveis. Para afastar qualquer possibilidade nesse sentido, o
sacerdote se dedicou a esmiunçar as práticas do que chama de “atheismo official russo”
e a descrever o “modo como o sovietismo se conduz em face do problema religioso”,
numa tentativa de demonstra, com base em exemplos práticos e dados estáticos, essa
impossibilidade.
Para reiterar seu posicionamento, o sacerdote recorreu as apreciações de
Joseph Doullet, que no livro Moscovo sem máscaras,473 trata das modalidades

473Traduzido do original francês Moscou sans voilles e publicado, em 1931, pela Editora Globo, o livro é
um dos mais conhecidos na série de livros dedicados a descrição da “Rússia Vermelha”. Como parte da
Coleção Inquérito sobre a Rússia, da mesma editora, o livro escrito por Joseph Doullet, ex- Cônsul da

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
513

lançadas pelos comunistas na “perseguição movida contra a religião”. Entre as


modalidades, o religioso deu destaque a chamada “propaganda systematica contra a
religião”, frisando, ainda, que seria uma prática corrente no modelo soviético, em que o
Estado financiaria prontamente as principais organizações que visassem difundir o
ateísmo.
Outro elemento utilizado para corroborar a tese defendida, foi a atividade da
chamada “imprensa athea”, cujos os indicadores bibliográficos das principais
organizações de publicidade indicariam uma atividade organizada e sistemática. A
exposição dessa gama variada de informações em torno da “guerra declarada” do
comunismo à religião, abriria espaço para o questionamento implícito na
argumentação: como poderiam os representantes de um ateísmo militante tão
organizado, negarem sua oposição a religião? Questionamento, esse, que fica claro no
tom imperativo que finaliza o artigo: “Venham communistas dizer ao povo brasileiro
que o communismo não é inimigo da religião” (CABRAL, 1935, p. 01).Na mesma direção
didática, em editorial de 06 de setembro, Pe. Herôncio expõe os posicionamentos de
algumas lideranças comunistas a respeito da relação entre o materialismo e a religião.
As afirmações, cujas fontes não são citadas, trazem opiniões veementes em torno da
negação da religião por parte do comunismo, que assumem, claramente, um tom
insultuoso em relação à Igreja. Não cabe aqui discutir a veracidade de tais afirmações,
mas sim perceber como a narrativa jornalística faz uso destas para persuadir o público
leitor.
Chama a atenção, por exemplo, o uso da suposta afirmação do ministro de
instrução pública russo, Lunatcharssky, de que Deus seria “um espectro repugnante,
causador de diabolicos males a humanidade”, na ocasião a autoridade russa teria
acrescentado ainda que se deveria “ter odio ao christianismo a aos christãos, inimigos
que são do communimo, porque pegam o amôr e a misericordia ao próximo” e
exclamando em tom imperativo: “Abaixo a caridade ao proximo. O que precisamos é de
odio. Devemos aprender como se odeia. Somente assim conquistaremos o mundo”
(HERONCIO, 1935b, p. 01).
O que o autor chama de “espetaculo de blasphemias e maldições” seria utilizado
no sentido de demostrar serem as lideranças comunistas, como o título do artigo

Bélgica em Rostov, possui uma versão marcadamente anticomunista e um tom inquisidor em relação ao
Regime Soviético.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
514

sugere (Estultos e blasphemos), verdadeiros “estultos” que a partir dos intentos do


internacionalismo soviético empreenderiam uma ofensiva “irracional” contra Deus. A
consternação que a associação de Deus a um “espectro repugnante” e “diabólico”
provocaria nos leitores, abriria precedentes valiosos a batalha contra “os inimigos da
fé”, de maneira que o articulista suscitaria a inversão de papeis, ao provocar repulsa
imediata do público católico, e tornar o próprio comunismo “repugnante”, frisando,
nesse sentido, o caráter irrevogável da atitude anticomunista por parte da Igreja.
O artigo investe ainda em um outro exemplo para reforçar a dinâmica
anticomunista, sublinhando os métodos da “propaganda contra Deus entre as crianças”
feita pelos “agentes do mal” em um “processo diabolico de perversão das almas”,
retirado novamente da obra de Joseph Douillet:

Joseph Douillet nos conta um episodio da propaganda contra Deus


entre as crianças. Um mestre-escola e um secretario da celula
communista interrogam a uma creança, de nome Jeannete, se Deus lhe
dá o que pede. A creança tem fome. Pede pão ao teu Deus, dizem elles.
A creança se ajoelha e reza. Os renegados continuam a interrogar
Jeannet – Teu Deus te deu pão? A resposta, cheia de timidez é
naturalmente negativa. Os agentes do mal aproveitam o momento –
Pede agora ao teu camarada communista, diz um delles, e vê como
terás o pão. A creança se volta para um dos camaradas, faz o pedido e
recebe immediatamente um pedaço de pão acompanhado da
observação de que se Deus não attendeu a sua supplica, nem é visto
por Jeannet, é porque não existe. [...] (HERÔNCIO, 1935b, p. 01)

Mais uma vez não é difícil imaginar o quanto seria impactante, sobretudo, ao
leitor católico, criado em uma atmosfera imbuída pela religião, depara-se com tal
prática. Por conseguinte, esses recursos persuasivos ajudariam a fixar a imagem do
comunismo como um desafio a sobrevivência da religião, que seria alvo de uma
perseguição atroz por parte dos comunistas e deveriam, portanto, promover a
resistência considerável dos cristãos a essa “militância ateia”. Diante do argumento de
autoridade, presente nas afirmações, já não caberia mais aos católicos ou aos “homens
de boa fé”, concessões, indiferença e neutralidade diante do avanço das ideias
comunistas.
O imaginário antissoviético será também um dos principais subsídios à defesa
do corpus social católico, encarada como um dos pontos mais sensíveis ao discurso
anticomunista de matriz católica. Segundo Motta (2002, p. 20), o “despertar da

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
515

hierarquia católica para o problema social e a consequente proposição de programas


visando à ‘justiça social’ decorreu fundamentalmente, embora não exclusivamente, da
percepção de que os comunistas ameaçavam a cidadela católica”.
A questão social, por conseguinte, foi um dos temas que mais adensou o embate
entre catolicismo e comunismo nas páginas do A Ordem. Nesse sentido, a medida em
que se trabalhava para apontar a realidade soviética como exemplo dos erros
incorridos pelo chamado “determinismo econômico marxista”, investia-se na doutrina
social católica como a única capaz de promover a “verdadeira justiça social”. Haveria,
portanto, dois direcionamentos para a resolução do quadro social de injustiça atribuído
ao liberalismo econômico: o materialista e o espiritualista, respectivamente associados
ao comunismo e ao catolicismo. Caberia aos articulistas do A Ordem, nesse sentido,
apontar, dentro da perspectiva de um ordenamento social cristão, alternativas
concretas às promessas comunistas, recorrendo para isso à divulgação das premissas
contidas nas encíclicas sociais. Esse direcionamento partiria do argumento de que a
saída para a realidade de desigualdade e injustiça provocada pela lógica do liberalismo
econômico não se daria apenas no plano econômico e social, mas também, no campo
moral e ético, ou mesmo espiritual, a partir do restabelecimento do espírito cristão na
sociedade. Nesse sentido, a renovação do espírito cristão deveria preceder à
restauração da ordem social, pregando-se, portanto, a cristianização da vida econômica.
Nessa perspectiva, o exemplo russo, é encarado pelo jornal como a
demonstração de que a falta de “principios solidos, ethicos, methaphysicos” e acima de
tudo “genuinamente cristãos” (OS SOVIETS..., 1935, p. 05) conduziria a um quadro de
profunda desordem social e econômica, perpetuadas pelas teses materialistas do
comunismo. Abrir-se-ia espaço, portanto, para que se traçasse-se as fronteiras entre
as duas perspectivas de conceber o social, na mesma medida em que a exposição das
“delícias infernais” do “paraíso russo”, endossaria a perspectiva cristã como a mais
eficaz, dada a “constatação” do “fracasso moral, social e econômico do comunismo”,
materializado nas imagens negativas do experimento soviético.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como “objeto e lugar dos conflitos sociais”, o imaginário social se coaduna com
os interesses e as reivindicações de segmentos sociais rivais, “uma vez que as
condutas, ações, discursos, imagens, disputas desses agentes sociais estão

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
516

subjacentes a esse imaginário”. (DUTRA, 2012, p.40). Nas batalhas anticomunistas, a


produção imagética-discursiva em torno do inimigo mais do que responder a esse
embate “pretende elaborar a partir da posição dos conflitantes e da consequente
adesão a normas e valores” (DUTRA, 2012, p.40) o que Baczko (1985, p.309) expôs como
“representação global e totalizante, como uma ordem em que cada elemento encontra
o seu lugar, a sua identidade, a sua razão de ser”.
Nesse sentido, o repertório de imagens degradantes em torno do regime
soviético, enquanto modelo trágico de organização social, faria da contraimagem do
regime um dos principais subsídios ao projeto de fortalecimento da presença católica
em todas as instâncias do social. A apresentação do exemplo russo, a partir de sua
experiência revolucionária, aparece como a materialização dos males que
acompanhavam a realização prática do comunismo e serviria, nesse sentido, como
alerta aos perigos que rondavam a realidade brasileira. Como o prefácio de um livro de
páginas negras, o exercício de composição da imagem negativa da “pátria dos
vermelhos”, traria uma prévia aos leitores dos desfechos que se ofereciam a realidade
brasileira caso o comunismo chegasse ao país.
Ao urdir o imaginário antissoviético com os matizes da conspiração e do medo,
os intelectuais católicos aliaram o combate veemente ao bolchevismo à necessidade
de fortalecimento das bases católicas da sociedade brasileira, como freio a uma
possível “bolchevização” do país. Nesse sentido, à medida que tentavam desmistificar
o mito do “paraíso do operariado”, alertando os leitores sobre as supostas “astúcias”
do proselitismo comunista, os articulistas do A Ordem reforçavam o projeto de nação
católica encontrando na figuração do inimigo um dos principais impulsos para as
propostas de recatolização no estado.
A figura do inimigo, sob essa perspectiva, seria essencial, pois, nesse momento,
serviria “para fornecer ao povo a consciência de sua unidade, e ao poder que conduz o
combate, a legitimidade” (DUTRA, 2012, p. 46). Reforça-se, pois, a assertiva de Baczko
(1985, p.310), de que “quando uma coletividade se sente ameaçada por forças externas,
ela operacionaliza o seu dispositivo imaginário com a finalidade de unir, criar um espírito
de corpo entre seus membros e possibilitar uma linha de ação conjunta”. Com efeito:

[...] o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo


em que constitui um apelo a acção, um apelo a comportar-se de uma
determinada maneira. Esquema de interpretação, mas também de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
517

valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de


valores e intervém eficazmente nos processos da sua interiorização
pelos indivíduos, modelando os comportamentos, capturando as
energias e, em caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma
ação comum (BACZKO, 1985, p. 311).

Em nome da fé, foi produzido um rico material imagético, veiculado


pedagogicamente por meio de variadas estratégias discursivas que tornaram
indissociáveis o combate ao comunismo e as teses em torno da religião como a base da
organização social. Em sua grande maioria, a propaganda anticomunista veiculada por
meio do jornal A Ordem possuía uma carga emotiva que visava construir no leitor um
forte repúdio aos ideais comunistas e encontrava nessa confecção a chave para
reafirmar a doutrina católica como antídoto aos males do bolchevismo.
Operando em nome de uma visão de mundo essencialmente católica, os
intelectuais católicos apostaram no alinhamento entre o discurso anticomunista e o
projeto recatolizador que, por sua vez, fez da simbiose entre o discurso religioso e o
combate ao comunismo a evidência de que a causa anticomunista deveria ser, a cima de
tudo, uma causa cristã.
Nesse contexto, portanto, evidenciaram-se esforços para aumentar a
“divulgação dos argumentos anticomunistas de base religiosa” (MOTTA, 2002, p. 211),
recorrendo-se, nesse sentido, a tradição cristã da Nação. Sob essa perspectiva, o jornal
defendeu que para além dos motivos de ordem social e política, haveria “motivos de fé”
para o combate intransigente ao “extremismo soviético”. Havia, portanto, um duplo
dever a cumprir: o de patriota e o de cristão. Amalgamados ao discurso anticomunista
veiculado no A Ordem, esses deveres se traduzem no exercício cotidiano de combate ao
comunismo e de defesa das tradições cristãs.

FONTES
CABRAL, Padre J. Communismo e atheismo. A Ordem. Natal, v. 01, n. 65, p. 01, 01 out.
1935.

Combate ao extremismo: o communismo é o inimigo do proletariado. A Ordem. Natal,


v. 01, n. 04, p. 02, 19 jul. 1935
.
Cordeiros vermelhos. A Ordem. Natal v. 01, n. 16, p. 01, 02 ago. 1935.

HERÔNCIO, P. Communismo é aquillo? A Ordem. v. 01, n. 72, p. 01, 09 out. 1935a.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
518

HERÔNCIO, P. Estultos e blasphemos. A Ordem. Natal, v. 01, n. 45, p. 01, 06 set. 1935b.

HERÔNCIO, P. Juventude Sacrificada. A Ordem. Natal, v. 01, n. 10, p. 01, 26 jul. 1935c.

No paraizo russo. A Ordem. Natal, v. 01, n. 01, p. 04, 14 jul. 1935.Os soviets por dentro.
A Ordem. Natal, v. 01, n. 01, p. 05, 14 jul. 1935.

REFERÊNCIAS
BAZCKO, Bronnislaw. Imaginação social. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional; Casa da Moeda, 1985.

CABRAL, Padre J. A Miragem soviética. Petrópolis: Vozes de Petrópolis, 1933.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo, 2015.

DUTRA, Eliana de Freitas. O Ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos de
1930. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

GONÇALVES, Marcos. Missionários da “boa imprensa”: a revista Ave Maria e os


desafios da imprensa católica nos primeiros anos do século XX. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 28, n. 55, p.63-84, jan./jun. 2008.

KONDER, Leandro. A Derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até
o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais


(1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Unicamp, 1998.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo


no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.

PEIXOTO, Renato Amado. Por Deus, pela pátria e pelo rei: os holandeses no Rio
Grande e a fabricação dos conceitos acerca do espaço na década de 1930. Revista de
História Regional. Ponta Grossa, v. 2, n. 20, nov. 2015.

PINHEIRO FILHO, Fernando Antônio. A Invenção da ordem: intelectuais católicos no


Brasil. Tempo Social, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 33-49, jul. 2007.

SERVICE, Robert. Camaradas: uma história do comunismo mundial. Tradução Milton


Chaves de Almeida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2015.

SILVA, Carla Luciana. Onda vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-


1934). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
519

A MEMÓRIA E A SAUDADE NA MÚSICA DE LUIZ GONZAGA


José Cunha Lima474

O historiador é aquele que impede a


história de ser somente história. (NORA,
1993)

INTRODUÇÃO
O termo saudade, expressão de origem latina, oriunda de ‘solitate’ ou ‘soledade’,
que é uma derivação da palavra solidão. Embora, no senso comum o termo saudade só
exista na língua portuguesa e, por isso, podendo ser um dos vocábulos mais bonitos e
expressivos de nossa língua, sabe-se que o sentimento é universal e que é percebido e
expressado mundialmente de forma diferente.
Como narra Lourenço (1999, p. 15) “sob outros nomes ou sem nomes, a saudade
é universal, não apenas como desejo de eternidade, mas como sensação e sentimento
vividos de eternidade”. Sendo assim, todo ser humano sente falta de algo ou alguém,
ou até mesmo de reviver determinado momento de nossa vida, que indubitavelmente
não volta mais.
Esse tempo tão cheio de recordações também está retratado em inúmeras
manifestações sociais em várias categorias da cultura brasileira (como por exemplo: a
música), sugerindo que estamos diante de um tema que marca profundamente a
construção das nossas biografias a partir da memória individual e paulatinamente
coletiva.
A saudade expressa, portanto, uma categoria sociológica que pode ser
historicamente estudada. Estão relacionadas às vivências e as mudanças, e são
apreendidas e construídas socialmente ou historicamente, a partir de várias fontes e
experiências, pois a existência social da saudade como foco ideológico e cultural vai nos
permitir a percepção aguda do sentimento. Desse modo, a saudade é uma construção
individual, coletiva e fragmentada de um povo que está presente na memória individual
e/ou coletiva dos que sentem falta de algo, ou seja, estão incompletos.

474 Professor
de História do Ensino Fundamental no município de Araruna-PB, e mestrando do Programa
de Pós-Graduação em História da UFPB. Email: jscunhalima@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
520

MEMÓRIA, ENTRE SIGNIFICADOS...


O termo “memória” na escrita científica ou na linguagem cotidiana refere-se a
um amplo conjunto de fenômenos não completamente homogêneos. Segundo Le Goff,
(2003, p. 453) “A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual
reevocamos as coisas passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras,
graças à sua semelhança com as passadas”.
Em amplo significado, memória pode ser considerada como a capacidade de
relembrar os eventos acontecidos e as informações resultantes da estrutura de
resposta a determinados momentos. Sobre isso Meneses nos diz:

A caracterização mais corrente da memória é como mecanismo de


registro e retenção, depósito de informações, conhecimento,
experiências. Daí com facilidade se passa para os produtos objetivos
desse mecanismo. A memória aparece, então como lago concreto,
definido, cuja produção e acabamento se realizaram no passado e que
cumpre transportar para o presente. (MENEZES, 1992, p. 10).

Em um sentido mais compreensível, memória significa a necessidade humana de


preservar determinados conteúdos e/ou experiências passadas, de dar acessibilidade a
fatos por meio das lembranças. “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a
alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos
trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a
servidão dos homens”. (LE GOFF, 2003, p. 477). A relação história – memória é
discutida por Nora.

Tudo o que é chamado hoje de memória não é, portanto, memória, mas


já história. Tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização
de seu desaparecimento no fogo da história. A necessidade de memória
é uma necessidade da história. (NORA, 1993, p. 14)

Segundo Halbwachs (1990) A história não é todo o passado, mas também não é
tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escrita,
há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível
encontrar um grande número dessas correntes antigas que haviam desaparecido
somente na aparência.
Sendo que a memória se auxilie em conjunto com a dos outros, não basta que
ele (o entrevistado) nos traga seu depoimento (memória individual) é necessário ainda

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
521

que o declarado concorde com as lembranças de outros (memória coletiva), e que haja
bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos
recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. “A memória, como
propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um
conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas”. (LE GOFF, 2003, p. 423).
Sobre o tema Le Goff nos diz:

No estudo histórico da memória histórica é necessário dar uma


importância especial às diferenças entre sociedades de memória
essencialmente oral e sociedades de memória essencialmente escrita
como também às fases de transição da oralidade à escrita. (LE GOFF,
2003, p. 426)

Sendo interessante para essa (re) construção da memória tem que se processar
a partir de dados (baseados em documentos) ou de conhecimento em comum, que se
ratifica tanto no depoimento de um como no dos outros, e a memória precisa de algo
que a oficialize ou a legitime. Para Nora (1993) esse lugar é a história ou a literatura.

Elas foram, aliás, exercidas paralelamente, mas, até hoje,


separadamente. A fronteira hoje desaparece e sobre a morte quase
simultânea da história – memória e da história – ficção, nasce um tipo
de história que deve seu prestígio e sua legitimidade à sua nova relação
com o passado, um outro passado. (NORA, 1993, p. 28).

Com a inserção da história e da literatura como elemento incessantemente da


memória é possível construir e reconhecer acontecimentos que fizeram parte da
sociedade. Assim pode-se compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo
individual, e se ratificada pelos fatos, passa a ser memória coletiva.

MEMÓRIA INDIVIDUAL E/OU COLETIVA


Nora (1993) nos diz que memória e história estão longe de serem sinônimos,
tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada
por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética
da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas,
vulnerável a todos os usos e manipulações, suceptível de longas latências e de
repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre atual, um elo vivido no

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
522

eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica,


a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças
vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas
as transferências, cenas, censura ou projeções.

A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e


discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a
liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que
ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez que há tantas
memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e
desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário,
pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o
universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às
evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a
história só conhece o relativo. (NORA, 1993, p. 9)

Segundo Halbwachs (1990) Haveria então memórias individuais e, se o


quisermos, memórias coletivas. Em outros termos, o indivíduo participaria de duas
espécies de memória. Sendo que a memória coletiva envolve as memórias individuais,
mas não se confunde com elas. “Ela evolui seguindo suas leis, e se algumas lembranças
individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam
recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal”. (HALBWACHS,
1990, p. 53-54).
A memória desempenha o papel fundamental de dar coerência à história,
primeiro de um indivíduo e depois para um grupo, e se o passado é entendido como
“fixo” e imutável, a memória, ao contrário não é fixa. Por isso que, “a memória é um
elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja
busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na
febre e na angústia”. (LE GOFF, 2003, p. 476).

Já a memória nacional que não é a somatória das diferentes memórias


coletivas de uma nação apresenta-se como unificada e integradora,
procurando a harmonia e escamoteando ou sublimando o conflito: é da
ordem da ideologia. Por isso mesmo, o estado e as camadas
dominantes – mas nem sempre – são, como interessados na
reprodução da ordem social (a que ela induz e que simbolicamente
realiza), os principais responsáveis pela sua constituição e circulação.
(MENEZES, 1992, p. 15)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
523

As lembranças coletivas viriam aplicar-se sobre as lembranças individuais, e nos


dariam assim sobre elas uma tomada mais cômoda e mais segura, mas será preciso
então que as lembranças individuais estejam lá primeiramente, senão nossa memória
funciona sua causa. (HALBWACHS, 1990, p. 62)

Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a


memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A
memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra como
vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de
reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre
coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas,
aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado
serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem
uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK,
1989, p. 9)

A memória coletiva se distingue da história pelo menos sob dois aspectos. É uma
corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, já
que retém do passado somente, aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na
consciência do grupo que a mantém. (HALBWACHS, 1990, p. 81-82).

De todo o exposto até aqui evidencia - se como imprópria qualquer


coincidência entre memória e História. A memória, como construção
social, é formação de imagem necessária para os processos de
constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. Não
se confunde com a História, que é forma intelectual de conhecimento,
operação cognitiva. A memória, ao invés, é operação ideológica,
processo psicossocial de representação de si próprio, que reorganiza
simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e
relações, pela legitimação que produz. A memória fornece quadros de
orientação, de assimilação do novo, códigos para classificação e para o
intercâmbio social. (MENEZES, 1992, p. 22)

Todo documento tem em si um caráter de monumento e não existe memória


coletiva bruta. Neste tipo de documento a escrita tem duas funções principais: "Uma é
o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do
espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro"; a
outra, "ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual", permite "reexaminar,
reordenar, retificar frases e até palavras isoladas". (LE GOFF, 2003, p. 433).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
524

Finalmente, a heterogeneidade que pode estar presente na memória individual


e, mais amplamente, na de grupos e coletividades, torna seu resgate uma ilusão.
(MENEZES, 1992, p. 11).
Portanto, a memória é um elemento diretamente relacionado a uma forma mais
idealizada de reconstruir o passado de forma individual e/ou coletiva, é com isso, uma
espécie de discurso de memorialistas ou saudoso, e que tem sido encarado como
sentimento crucial para a própria articulação da memória social e cultural do Brasil.

SAUDADE, ENTRE SIGNIFICADOS...


Embora, no senso comum o termo saudade só exista na língua portuguesa, e por
isso parece ser um dos vocábulos mais bonitos e expressivos de nossa língua, sabemos
que o sentimento é universal e que é percebido e expressado mundialmente de forma
diferente. Para Houaiss e Villar (2001) a saudade é um sentimento melancólico de
incompletude, ligado pela memória a situações de privação de presença de alguém ou
de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas
experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa
como um bem desejável.
A saudade vem do sentido isolamento, e tem como sinônimos termos abstratos,
mas repleto de afetos como: ausência, abandono, falta, míngua (penúria), carência, não
só de pessoas, mas também de coisas necessárias ou desejadas, e o de desamparo,
tristeza e melancolia. Sobre esses sentimentos Walton (2007, p. 144) ratifica: “O fato
de que há tanta tristeza no mundo, e que ela se acumula na vida dos indivíduos como
musgo na pedra úmida”. A melancolia é entendida como a saudade aprofundada na
memória triste e doentia, àquela dor na alma que se costuma apoderar de quem está
só. Por extensão designa o mal de ausência, a nostalgia que é o anseio de (re) ver.

Toda infelicidade – ou melancolia – em uma sensação de carência, mas


atribui não ao senso primário de algo que está faltando, mas à perda do
que um dia desfrutamos, um senso que surge na primeira infância, à
medida que nos separamos gradualmente dos laços maternos. A perda
do amado por abandono ou distância física, todas as separações de
relações íntimas, é o que sustenta a melancolia sob a qual todos
devemos viver. (WALTON, 2007, p. 145).

Emergindo com isso, todos os desabrimentos, cuidados, e desejos de solidão e


mágoa, de já não se gozar um bem de que em tempos se usufruiu, a vontade de voltar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
525

a desfrutá-lo no presente ou futuro. São lugares, com efeito nos três sentidos da
palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos.
(NORA, 1993, p. 21).
Observar-se que o estar saudoso exprime psicologicamente um estado em que
a consciência, presente na memória ou no espírito, sendo ratificada pelo sentimento.
Contrapondo-se a experiência presente no vivido e no ausente. Com isso, o passado e
presente são representados em conexão cuja dimensão afetiva está inserido.
E é a memória individual e/ou coletiva que faz esses sentimentos serem
revividos. “Nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual” (LE
GOFF, 2003, p. 426). A saudade não basta ser sentida para existir, ela deve ser, antes
de tudo, conceituada como tal, deve ser nomeada, chamada de saudade e materializada
em gestos, ações, reações, performances.
Aliás, como esse conceito é específico da língua portuguesa, é um sentimento
específico dos povos que falam essa língua, sem ignorar que o sentir falta, o sentir
tristeza ou melancolia pela falta, pela ausência de algo ou alguém, seja um sentimento
partilhado por todos os humanos; mas, ao serem nomeados com outros conceitos,
outros sentidos adquirem (ALBUQUERQUE JR; 2013, p. 156).
A história da saudade começa em Portugal. Segundo Lourenço (1999, p. 31): “da
saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do seu sentimento, a ponto de a
transformarem num mito”.

Raridade do termo, raridade do sentimento: quanto basta para que no


espírito dos portugueses tome forma a ideia de que a alma portuguesa
vive e experimenta, com deleite e intensidade sem par, um estado que
só nessa palavra intraduzível é possível exprimir. Com a ajuda dos
poetas, a cultura portuguesa irá inscrever-se, com uma espécie de
complacência, no círculo da saudade, e Portugal torna-se miticamente
a terra da Saudade (LOURENÇO, 1999, p. 23).

Para Jorge Dias (1995) a saudade é um sentimento poético de fundo amoroso ou


religioso, que pode tomar a forma panteísta de dissolução na natureza, ou se compraz
na repetição obstinada das mesmas imagens ou sentimentos. Outras vezes é a ânsia
permanente da distância, de outros mundos, de outras vidas. Botelho e Teixeira (1986)
corroboram dizendo:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
526

É a saudade uma mimos paixão da alma, e por isso tão sutil, que
equivocamente se experimenta, deixando – nos indistinta a dor da
satisfação. É um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece: quando
fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que
formalmente se extingue: porque se sem melhoria se acaba a saudade,
é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro. Não é assim com a
pena; porque quanto é maior a pena maior a saudade, e nunca se passa
ao maior mal, antes rompe pelos males; conforme sucede aos rios
impetuosos, conservarem o sabor das águas, muito espaço de
misturar-se com as ondas do mar, mais opulento. Pelo que diremos que
ela é um suave fumo do fogo do amor, e que do próprio modo que a
lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim a saudade,
modesta e regulada, dá indícios de um amor fino, casto e puro. Não
necessita de larga ausência; qualquer desvio lhe bata, para que se
conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as
coisas amáveis e semelhantes; ou ser aquilo falta, que da divisão
dessas tais coisas procede. Compete por esta causa aos racionais, pela
mais nobre porção que há em nós; e é legítimo argumento da
imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos
está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor
que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais
subida das saudades humanas, como se disséssemos: um desejo vivo,
uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que
não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente, o que
está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre debaixo das
premissas de bom e deleitável. Esta é em meu juízo a teórica das
saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora
humana, agora divina. (BOTELHO e TEIXEIRA, 1986, p. 20).

Pode-se afirmar que a saudade comporta uma grande variedade de sentidos,


afetos e sentimentos, apontando uma estreita ligação da saudade, a partir da percepção
da passagem do tempo, ou seja, enquanto mais o tempo passa mais fica evidente a
eclosão do saudosismo.
Trazendo para a História do Brasil, o termo saudade, também está presente em
nossa produção literária, poética e musical. Sendo que esse sentimento nunca foi ligado
à identidade nacional, como em Portugal. Destacam-se os trabalhos de Gilberto Freyre
e Luís da Câmara Cascudo como resgatadores de saudade em suas obras. “Em Freyre,
a saudade seria, portanto uma atitude existencial, uma forma de viver o tempo e de se
relacionar com a vida, uma forma de reação ao caráter passageiro e efêmero do existir
humano e das ações que pratica”. (ALBUQUERQUE JR, 2006, 135).
Para Roberto Da Matta (1993), a saudade é uma categoria do espírito humano e
tem dentro de si uma mistura luso-brasileira repleta de valores ideológicos, históricos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
527

e sociais. A memória nacional é o caldo de cultura, por excelência, para a formulação e


desenvolvimento da identidade nacional, das ideologias da cultura nacional e, portanto,
para o conhecimento histórico desses fenômenos. Daí ser a questão da identidade
nacional, em sua natureza problemática, o tema melhor estudado dentre todos os que
se referem à memória social. (MENEZES, 1992, p. 15).
Sendo que a saudade é um sentimento universal, pois trata da experiência da
mudança, da duração, da demarcação e da consciência reflexiva do tempo e espaço, que
é inerente ao ser humano. “O sentir saudade implica adotar uma dada gramática de
gestos, de práticas, de reações, de comportamentos, mas também dado conjunto de
enunciados e imagens que estão social e culturalmente a ela ligados em um dado
contexto” (ALBUQUERQUE JR. 2013, p. 165).
Em síntese, o lugar onde se nasceu, cresceu e se divertiu, são os espaços de
saudade, que estão repletos de emoções, falas, costumes, e das pessoas que
conviveram, as amizades de infância, os afetos na adolescência, tudo o que pode objeto
da paixão, admiração e/ou afeição todos de algum modo estão ligados a emoção e a
memória estão ligadas a saudade e suas nuances.

A MEMÓRIA E SAUDADE NA MÚSICA DE LUIZ GONZAGA


De início convém esclarecer que esse trabalho não tem o intuito de ser uma
pesquisa biográfica. Outro fato a ser destacado é que a temporalidade escolhida que
vai de 1942 a 1952. Assim, ao estudar a musicografia de cantor e compositor Luiz
Gonzaga, logo, observa-se que memória e saudade são temas centrais, pois são
presentes nas vidas dos migrantes nordestinos. “A gente (o migrante) queria ouvir
alguma coisa Nordeste, que fale da terra, da saudade da serra e do sentimento daquilo
que é nosso. Nós somos frutos da saudade” (OLIVEIRA, 1991).
Sendo assim, Luiz Gonzaga, um nordestino-migrante nas cidades do Sudeste, e
conhecendo bem a realidade dos “nortistas” ao qual, obrigava os seus próprios “filhos”
a saírem de seu lugar de origem, buscou relatar também o retorno, o reviver do seu
espaço e de sua afetividade

Perante o lugar revisitado uma nostalgia saudosa, o que mostra bem


que a saudade se enraíza numa outra experiência, que é ao mesmo
tempo a mais universal e a mais pessoal, como filhos nascidos no
coração do tempo e expulsos do seu lugar de nascimento. Os que nunca

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
528

mudaram de lugar, levados pela mão do acaso ou da necessidade, não


sentem nostalgia dele (LOURENÇO, 1999, p. 34).

Com o passar dos anos as ondas migratórias não cessaram, pois era necessário
ir em busca de “novos horizontes” ou oportunidades, procurando sustento para suas
famílias. Entretanto, a saudade estava presente, em versos tristes, em olhares que não
conseguiam disfarçar o sentimento gerador de angústia, repleto de ausências: onde
emerge a saudade, a partir da memória do que deixou-se no lugar de origem. Para
Oliveira (1991, p. 68): “a saudade é o sentimento que não falta nas canções de Luiz
Gonzaga”.
Halbwachs (1990) descreve a importância da música para a memória.

A música é, para dizer a verdade, a única arte em que se impõe essa


condição, porque se desenvolve totalmente no tempo, porque não se
prende a nada que dura, e porque, para retomá-la é preciso recriá-la
sempre. É porque não há exemplo onde percebemos mais claramente
que não é possível reter uma massa de lembranças em todas as suas
sutilezas e nos mais precisos detalhes, a não ser com a condição de
colocar em ação todos os recursos da memória coletiva. (HALBWACHS,
1990, p. 187)

Nas músicas do “Rei do Baião”, a saudade da terra, do lugar, dos amores, da


família, dos animais de estimação, do roçado, tudo isso faz parte da memória.
Albuquerque Jr. (2009, p. 177) complementa dizendo: “Luiz Gonzaga se tornou aquele
artista capaz de atender à necessidade do migrante de escutar coisas familiares, sons
que lembravam sua terra, sua infância, sons que o levavam até este espaço da saudade
em meio a toda a polifonia do meio urbano”. Sobre a importância da música Walton
(2007) afirma:

A música tem um poder maravilhoso de lembrar, de forma vaga e


indefinida, aquelas emoções fortes que são sentidas durante épocas
muito passadas. E como várias de nossas emoções mais intensas –
tristeza, grande alegria, amor e simpatia – levam à secreção livre de
lágrimas, não é de surpreender que a música deva ser capaz de levar
nossos olhos a se encher de lágrimas. A música sempre produz outro
efeito peculiar. Sabemos que toda sensação, emoção ou excitação forte
todas têm uma tendência especial a levar ao tremor dos músculos; e o
arrepio ou leve tremor que desce pela espinha e pelos membros de
muitas pessoas quando são poderosamente afetadas pela música
parece ter a mesma relação com o tremor do corpo, assim como um

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
529

leve acúmulo de lágrimas vindas do poder da música relacionar-se com


chorar por qualquer emoção forte e real (WALTON, 2007, p. 164).

Por isso, as canções ‘gonzagueanas’ são sempre um elo entre esse “espaço
afetivo” que ficou no passado, que só a saudade faz reviver. Um espaço em que o ser
humano e a natureza se entrelaçam até no sofrimento. “Tristeza, alegria, amor,
projetos, esperança, qualquer que seja nossa disposição interior, parece que toda
música, em certos momentos, pode mantê-la, aprofundá-la, aumentando sua
intensidade” (HALBWACHS, 1990, p. 181-182).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa propor-se a inserir a afetividade como um objeto historiográfico e
passível de ser estudado a partir dos conceitos de memória. E a saudade pode ser um
sentimento individual ou coletivo, e “pode afetar toda uma comunidade que perde suas
referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que perdeu historicamente
a sua posição, que viu os símbolos de seu poder, esculpido no espaço, serem tragados
pelas forças tectônicas da História” (ALBUQUERQUE JR, 2008, p. 127). A música de Luiz
Gonzaga emerge como uma representante de uma região produtora de cultura, ligada
a questões humanas, sociais e políticas.

Fizeram de Gonzaga um ídolo daquelas populações nordestinas que


viviam nas grandes cidades do Sul e que sentiam enorme saudade dos
lugares de onde haviam saído, tema privilegiado de suas músicas, onde
o sertão aparecia idealizado e este desejo de voltar era
permanentemente repetido (ALBUQUERQUE JR. 2007, p. 120).

O povo nordestino foi sempre afetado pela saudade que está presente em sua
memória coletiva e individual, e que foi muito bem expresso em toda produção musical
de Luiz Gonzaga, o qual teve que migrar, ou seja, mudar de lugar para ser invadido pelo
sentimento da ausência, para então, de forma afetiva produzir o seu trabalho musical.
E ao analisar as musicas do Rei do Baião, observa-se que “a saudade é um tema
renitente e presente na vida do migrante e do sertanejo que fica esperando a notícia do
parente que se foi em busca de “melhores” condições de vida, ou esperando pelo
retorno” (LIMA, 2016).
Portanto, “a saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo
espaços queridos de seu ser, dos territórios que construiu para si” Albuquerque Jr.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
530

(2001, p. 65), ou dos territórios que foram criados para o ser humano. Como é o exemplo
da instituição da Região Nordeste, enquanto espaço de memória e saudade. Sendo
assim, Luiz Gonzaga, demarcou uma das fronteiras afetivas, a partir da memória de um
povo, do território nordestino.
Segundo Pollak (1989, p. 10) “o que está em jogo na memória é também o sentido
da identidade individual e do grupo”. E “é através desse trabalho de reconstrução de si
mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros”.
(POLLAK, 1989, p. 13).
Em síntese, o Nordeste brasileiro é a região em que a saudade e a memória se
manifestam há muito tempo, é um espaço em que essa afetividade é um delimitador do
regional, sendo um símbolo onde a história – memória - serve para conectar
temporalidades e espacialidades múltiplas, interpretando representações culturais e
sociais a partir dos discursos presentes na música e no sentimento de saudade.
Nesse contexto, Luiz Gonzaga com sua produção musical ajudou a construir
esse Nordeste mítico, no imaginário dos nordestinos que têm as marcas da saudade
arraigadas em seu ser e construídas por intermédio da memória coletiva e/ou individual.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e Outras Artes. 2ª ed.
São Paulo: Cortez, 2001.

______________________________. As Sombras do Tempo: A saudade como


maneira de viver e pensar o tempo e a história. In: Marina Haizenreder Ertzogue e,
Temis Gomes Parente (orgs.). História e Sensibilidade. Brasília: Pararelo 15, 2006.

_______________________________. Preconceito contra a origem geográfica


e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007. (Coleção Preconceitos;
V. 03).

______________________________. História a arte de inventar o passado:


Ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007.

_______________________________. Nos Destinos de Fronteiras: história,


espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008.

_______________________________. Pedagogias da Saudade: a formação


histórica de consciências e sensibilidades saudosistas. A vida e trabalho do poeta e
professor português António Corrêa D’Oliveira. Revista História Hoje, v. 2, nº 4, 2013.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
531

BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz. (Orgs.). Filosofia da Saudade. Lisboa:


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.

BOTELHO, Afonso. Da Saudade ao Saudosismo. Lisboa: Ministério da Educação –


ICALP, 1990. (Série Pensamento e Ciência).

CHAGAS, Luiz. Luiz Gonzaga. São Paulo: Martin Claret, 1990. (Coleção Vozes do Brasil).

COSTA, Antonio Francisco e MEDEIROS, José Nobre. Porque o Rei É Imortal!.


Salvador: Paginae, 2011.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2ª Ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

DAMATTA, Roberto. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio


de Janeiro: Rocco, 1993.

DIAS, Jorge. O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa.


Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995.

DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga. 3ª ed. São Paulo:
Editora 34, 2012.

ECHEVERRIA, Regina. Gonzaguinha e Gonzagão: Uma História Brasileira. São Paulo:


Ediouro, 2006.

FERREIRA, José de Jesus. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, sua vida, seus Amigos, suas
Canções. São Paulo: Ática, 1986.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2ª Ed. Tradução de Laurent Léon


Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990.

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua


Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. 5ª ed. Tradução de Bernardo


Leitão et al. Campinas, SP: UNICAMP, 2003.

LIMA, José Cunha. Luiz Gonzaga, o Baião e o Nordeste: Construção da Identidade


Nordestina na década de 1950. Monografia (Licenciatura Plena em História – UEPB,
Centro de Humanidades, Guarabira/PB), 2008.

_________________. “Saudade o meu remédio é cantar”: um estudo sobre a


saudade na música de Luiz Gonzaga. Monografia (Especialização em História Cultural
– UEPB, Centro de Humanidades, Guarabira/PB), 2011.

_________________. De Portugal ao Nordeste: “Saudade o meu remédio é


cantar”. XVII Encontro Estadual de História – ANPUH - PB: I Encontro Estadual do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
532

PIBID em História. Guarabira, 2016. Disponível em:


http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/xviieeh/xviieeh/paper/view/3260.

LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade: Seguindo de Portugal como destino. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999.

__________________. Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino


Português. 10ª Ed. Lisboa: Gradiva, 2007.

MADUREIRA, Delfina de Araújo. Sehnsucht e Saudade: para uma história comparada


do pathos. Tese (Doutorado em Ciências da Literatura). Braga: Universidade do Minho,
2008.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória?: Para um


mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros - USP, São Paulo, n. 34, p. 9-24, 1992.

NORA, Pierre. Entre História e Memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto
História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.

OLIVEIRA, Gildson. Luiz Gonzaga: O Matuto Que Conquistou O Mundo. Recife:


Comunicarte, 1991.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

SILVEIRA, Leonardo L. P. Azevedo da. Em busca do tempo querido: um estudo


antropológico da saudade. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Rio de Janeiro:
PUC, 2007.

WALTON, Stuart. Uma História das Emoções. Tradução Ryta Vinagre. Rio de Janeiro:
Record, 2007.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
533

Simpósio Temático 9
HISTÓRIA DAS PRÁTICAS DE CURA NO BRASIL
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
534

O RÁDIO, O MEB E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM SAÚDE NA


CONSTRUÇÃO DE UMA CONSCIÊNCIA SANITÁRIA: CAICÓ, RN,
(1970-1980)

Juciene Batista Felix Andrade475


Juciene Raquel de Lima Siqueira476

DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM SAÚDE


Ao longo da trajetória da política de saúde no Brasil, as práticas educativas em
saúde foram sendo moldadas sobretudo por uma dinâmica de constituição de um
trabalho de coletividade envolvendo diversos atores sociais. Além disso, essas práticas
circulam em diversos espaços e atingem nossa cotidianidade. O nosso texto busca
trazer à tona a experiência de construção do que nomeamos de consciência sanitária e
de práticas educativas em saúde, por meio da análise da documentação referente a
programação da Rádio Rural da cidade de Caicó, Rio Grande do Norte, nos anos de 1970
e 1980. A programação da Rádio Rural naquele momento, possibilitou uma
compreensão de que o projeto de construção de uma consciência sanitária, passava
sobretudo, pela programação diária/cotidiana da Rádio Rural, a exemplo do “Aprenda
em sua casa” MEB Caicó, assunto Higiene e saúde de 1 de setembro de 1973. Dessa
forma:

As práticas educativas em saúde foram influenciadas ao longo da


trajetória da Política de Saúde no Brasil, tanto de modelos educativo-
assistenciais cunhados numa postura biologicista quanto em modelos
baseados numa visão humanística e ampla da saúde, levando-se em
consideração os determinantes sociais. Estes modelos se aportam em
conceitos distintos de saúde e educação que foram sendo modificados,
muitas vezes não sucumbindo o outro totalmente, ao longo do
tempo.477

Na programação da Rádio Rural, na documentação do Movimento de Educação


de Base – MEB é perceptível o compromisso com essa política de saúde no que diz

475 Professora do DHC-CERES-UFRN.


476 Bolsista PIBIC.
477 GUEDES, Heloisa Helena da Silva; GUEDES, Ronaldo Franco; GUEDES, Raquel Franco. Conteúdos

formadores da prática educativa em saúde no Brasil: o papel da Educação em Saúde e da Educação


popular. In: Convibra saúde - Congresso virtual Brasileiro de Educação, gestão e promoção da saúde, 1,
2012. p. 01

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
535

respeito a uma educação assistencialista, destacando-se dentro das temáticas “Saúde


popular – A terra e a adubação” em 25.03.1987, os agricultores e seus riscos à saúde
ao entrar em contato com agrotóxicos, por exemplo.
As práticas educativas em saúde são conceituadas a partir da inserção do
indivíduo como sujeito da ação do processo saúde-doença, ou seja, quem educa deve
mostrar ao indivíduo que este também pode interferir nas práticas de cura, de
prevenção e cuidados que vão para além das intervenções de médicos e demais
profissionais da área da saúde. Para isto, é importante entender que há dois tipos de
prática educativa em saúde: a ampla e a restritiva. A última, voltada para o prescritivo,
é a prática mais aceita até meados década de 1950, quando os métodos curativistas
eram basicamente os únicos nos diagnósticos e cuidados com a saúde, colocando o
portador da doença “X” na condição de dependência para seguir a prescrição
profissional que dita as providências a serem tomadas.
As práticas educativas em saúde amplas, surgem com o pensamento de que há
uma capacitação do sujeito e dos grupos para o enfrentamento dos seus problemas, e,
portanto, começa a surgir dentro delas uma instrução ao indivíduo que atente para a
compreensão da sua situação e condição de vida. No entanto, para a construção coletiva
destas práticas educacionais há empecilhos, pois por mais que a medicina tenha
ampliado suas esferas para o campo das relações sociais, esse processo de
coletivização dos saberes em saúde ainda está dependente da tecnologia que atua
diretamente no corpo do indivíduo de forma a discipliná-lo e regulá-lo, como por
exemplo as questões de comportamento de risco.

DA EDUCAÇÃO POPULAR
Ligada às novas práticas educativas em saúde, a educação popular se caracteriza
pela educação de massas/educação coletiva como também se destaca a participação e
a luta do indivíduo pelo direito à saúde. A cultura e o saber popular estão inteiramente
ligados a educação popular em saúde, pois promove o pensamento no sujeito de que
por meio da sua rotina, do dia-a-dia, podem-se construir aprendizados que forcem a
descoberta de ações para a promoção da saúde, como por exemplo a prevenção de
doenças comuns. Portanto as experiências adquiridas em saúde, principalmente a
coletiva, estão intrínsecas à cultura popular, ao trabalho profissional e à própria
educação.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
536

A educação popular surgiu no final da década de 1950 e início de 1960 a partir de


profissionais como professores e padres que estavam preocupados com a questão
social vinculados a profissionais da saúde. Surge, pois, com o objetivo de transmitir uma
educação mais emancipadora do que disciplinadora, que incluísse as classes populares
em atuações e lugares na sociedade que até então estavam marginalizados. Além do, a
educação popular também propunha mudanças sociais nas práticas mercantis que
promoviam a desigualdade, incluindo a saúde neste quadro.
Para alguns autores que falam sobre as práticas educativas e a educação
popular como Stotz e Bornstein, o objetivo desta é transmitir à população a vontade de
busca pelos seus interesses, mas como um objetivo político, que na saúde isso significa
as pessoas terem consciência do seu lugar social e dos problemas que são enfrentados
em consequência disso, e, portanto, atentar para a busca de saúde nas comunidades e
lugares de moradia marginalizados, mas também de raça e gênero, dentre outros. É
importante atentar também, para o que os pedagogos afirmam quando dizem que
educação popular não é sinônimo de educação informal, é, na verdade um processo que
busca valorizar os saberes como também as práticas dos sujeitos populares, pois o ato
de educar não é conceituado apenas nas instituições formais, mas também está
presente nas relações entre os homens e suas experiências. E, portanto, os programas
sociais que surgem com a finalidade de difundir a educação popular objetivam a
educação libertária que seja capaz de emancipar, sabendo, dessa forma, que a educação
formal por si não é capaz de viabilizar a libertação.
A partir dos trabalhos educativos surgidos nas décadas de 50-60, surgem
programas como o Centro de Cultura Popular (CPC), o De Pé No Chão Também Se
Aprende A Ler e o Movimento de educação de Base (MEB) com o objetivo de construir
uma sociedade mais democrática.

DA CONSCIÊNCIA SANITÁRIA
A noção do conceito de consciência sanitária no Brasil surge com a participação
efetiva do italiano Giovanni Berlinguer (1924-2014) na construção de uma saúde
coletiva. Berlinguer era médico, socialista, sanitarista e humanista e nele havia grande
preocupação com a saúde de qualidade que não chegava até certa parte da população
italiana. Militou no PCI (Partido Comunista Italiano) e a partir de então teve grande
influência na política nacional, que o possibilitou escrever inúmeros livros sobre saúde

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
537

e política. Suas produções acadêmicas sempre estiveram ligadas à política, iniciando


com estudos sobre as condições de saúde nas fábricas e as desigualdades sanitárias
entre os bairros de Roma. No Brasil, suas obras impulsionaram diretamente a
construção de uma Reforma Sanitária, e, portanto, o autor supracitado pôde participar
ativamente da construção e do desenvolvimento.
Seus pressupostos eram de que a sociedade (italiana) só poderia alcançar um
nível de igualdade quando a saúde fosse direito universal e público, portanto, o poder
político e de militância de Berlinguer o fez relator da lei que liberou o aborto, por
exemplo, com o argumento de que estava defendendo a vida e a proteção da mulher.
Define então, que o conceito de consciência sanitária é a ação individual e
também coletiva para alcançar o objetivo de fazer com que a consciência de saúde seja
um direito de todos os indivíduos, o que viabilizou o despertar de uma consciência nos
trabalhadores e no movimento sindical em relação aos problemas de saúde nas
fábricas. Isso porque o objeto de estudo e trabalho de Berlinguer atenta para as
condições de saúde nas fábricas na segunda metade do século XX, afirmando que
naquele espaço tudo é mais agitado e violento, entendendo que, o maior agente nocivo
dentro das fábricas é o parcelamento de trabalho a exploração e sobretudo a busca
pelo capital. Tudo isso adoece os trabalhadores não só fisicamente, mas mentalmente
também pela excessiva carga de horário de trabalho e também pela cansativa mão-de-
obra abundante que os trabalhadores devem desempenhar. E essas doenças são
intituladas de doenças profissionais que tendem a se tornar sociais também, pois há
outros fatores externos que também afetam a saúde do trabalhador, como o trânsito,
a poluição e a educação. Nesse interim:

(...) o conceito de consciência sanitária se torna indelevelmente ligado


ao processo da reforma como luta social que envolve a construção de
sujeitos políticos e a transformação da falsa consciência sanitária na
nova versão, científica e política do processo de produção e reprodução
da saúde e doença. Mais ainda, implica o reconhecimento da
heterogeneidade desse sujeito, mesmo que seja a classe trabalhadora
e o movimento sindical, e das suas limitações ideológicas e políticas
para construir alianças e definir táticas e estratégias que avancem na
direção da emancipação dos trabalhadores.478

478FLEURY, Sonia. Giovanni Berlinguer: socialista, sanitarista, humanista! In: Revista Ciência e Saúde
Coletiva, vol. 20, nº11, 2015, p. 3557

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
538

Muitas dificuldades surgiram na emancipação social em defesa da consciência


sanitária no Brasil segundo a Freury, a partir do exemplo italiano em que os
movimentos sindicais seguiram um caminho diferente do propostos. Transformando
as condições de perigo em compensações, em que, os trabalhadores no lugar de
exigirem melhores condições de trabalho, recebiam, por falta de medidas preventivas,
uma contrapartida em dinheiro: quantias quase sempre necessárias para alcançar o
mínimo vital salaria, mas que impediam a proteção da própria vida.

DO MEB
O MEB ou Movimento de Educação de Base, surgiu a partir de um convênio do
Governo Federal brasileiro juntamente com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil) em 1961, com o objetivo de desenvolver uma educação de base por meio de
escolas radiofônicas atuando diretamente nas regiões do Centro-Oeste, Norte e
Nordeste, pois eram áreas em que o índice de analfabetismo superava o das outras
regiões, além do que a carência educacional nos mais diversos âmbitos, inclusive na
saúde também eram grandes entraves ao crescimento da região. O MEB também
objetivava conscientizar a população do meio rural por meio da educação, e seu ideal
era que a educação fosse considerada com comunicação capaz de transformar o mundo
e no Brasil era necessária essa transformação que viesse para conscientizar.

A partir de então, definia-se o MEB como um movimento ‘engajado com


o povo nesse trabalho de mudança social’, comprometido com esse
povo e ‘nunca com qualquer tipo de estrutura social ou qualquer
instituição que pretenda substituir o povo’. Para o MEB, a
conscientização é intrínseca à própria educação, pois ela significa
ajudar alguém a tomar consciência do que é (consciência de si), do que
são os outros (comunicação entre sujeitos) e do que é o mundo (coisa
intencionada).479

Dos principais feitos do MEB, a cartilha Viver é Lutar tem grande importância,
pois surge em 1962 como leitura de conscientização para os recém-alfabetizados que
os fazem questionar o meio social em que vive, tomar consciência e consequentemente
ter atitude de mudar a sua realidade. Bem aceita e difundida até então, a cartilha é

GÓES, Moacyr. De Pé no Chão Também Se Aprende a Ler (1961-64): uma escola democrática. O
479

Movimento de Educação de Base (MEB). In:____. Vol. 3. Civilização Brasileira, 1980 p. 55

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
539

apreendida pela polícia durante a ditadura Civil-Militar no mandato do governador de


Carlos Lacerda em 1964 sendo acusada de ser uma cartilha que difundia o comunismo.
Desde então houveram muitas paralisações do MEB que ainda conseguiu sobreviver ao
golpe de Estado devido seu contrato ir dos anos de 1961 a 1965, como também por ter
grande influência da igreja Católica por meio da CNBB.

DA PESQUISA PRÁTICA
Considerando os critérios expostos no título e a programação da Rádio Rural,
foram encontradas descrições da programação “Caminho da libertação” com o assunto
“Saúde Popular”, “Aprenda em sua casa” que em tese ia ao ar todas as sextas-feiras. O
Saúde Popular, o aprenda em sua casa tinha como objetivo conscientizar à população
rural das mais variadas formas de prevenção de doenças comuns, da importância da
vacina e uso de determinados medicamentos, do atentar para cuidados com
lavoura/agricultura, problemas que causam a desnutrição brasileira e suas causas
sempre relacionadas as diferenças de classes sociais. Portanto, é sempre muito variado
e abundante os conteúdos em Saúde Popular ou Aprenda em sua casa.
Abaixo, no programa, “Aprenda em sua casa”, no tema Higiene e saúde, tem-se a
discussão do “assunto” verminose:

Aprenda em sua casa, programa apresentado todos os sábados, a partir


das 18 horas e 5 minutos, onde conversamos um pouco sobre a
importância da saúde para nossa vida. Essa conversa tem como
finalidade de levar aos nossos ouvintes orientações sobre doenças
mais comuns em nosso meio como prevení-las e também as medidas
que deverão ser tomadas procurando remediar quando não for possível
prevenir.
Máscara Negra
Existem vários tipos de verminoses, cujos nomes as vezes são difíceis
de pronunciar (...)
Por exemplo, vocês conhecem muito bem a doença chamada Amarelão
e ouvem falar muito sobre solitária. (...)
Idem
Existe uma tal doença/chamada amarelão
que deixa a gente arrasada/ com muita indisposição.
Dá fraqueza, diarreia/ gosto de comer torrão
E até falta de apetite/ anemia e inchação (...)

Acima, trechos do programa “Aprenda em sua casa”. O intuito dos variados


programas é educar a população por meio do rádio, que tinha a função de mediar o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
540

diálogo entre o locutor, a proposta do MEB que era levar uma educação de consciência
para a população do interior. Nesse caso, a discussão é sobre duas
doenças/verminoses, o Amarelão e solitária, suas consequências e formas preventivas.
Em mais um texto que segue, o exercício de educar para saúde ou a educação
sanitária, segue no “Aprenda em sua Casa” do dia 03 de novembro de 1973:

(...) Este programa é uma ajuda a cada um a aprender a ter saúde.


Aprenda em sua casa, onde você tem a oportunidade de receber
orientações sobre educação e saúde.
A higiene e saúde, são duas coisas que precisam andar juntas pois uma
depende da outra.
(...)
Em nosso encontro passado, conversamos sobre várias doenças que
podem ser transmitidas através do leite.
Dissemos que no leite podem ser encontradas os micróbios da
Tuberculose, crupe, brucelose, aftosa, disenteria, hepatite, e febre
tifoide.
E a maneira mais fácil da pessoa pegar essas doenças, vocês já sabem
qual é.
Tomando o leite cru, é mais fácil as pessoas pegarem todas as doenças
transmitidas pelo leite mal cuidado.

No trecho acima, verifica-se como o programa buscou trabalhar a relação entre


higiene e saúde, por meio do exercício associativo entre o par. Além disso, o fragmento
aponta que a discussão é uma continuidade de reflexões anteriores. O foco, agora
mantem-se não apenas nas doenças, mas também como o descuido de conservação de
alimentos, também como um meio propagador de doenças. O repertório das doenças
segue muito o cotidiano dos habitantes do interior. Algumas delas, relacionadas
diretamente a uma possível higiene deficitária, como a disenteria, e outras marcam um
contato dos habitantes desse espaço com animais, a exemplo da brucelose, que pode
ser transmitida ao homem por meio do contato com caprinos, bovinos, suínos e cães,
animais que fazem parte do dia a dia dessas pessoas. Portanto, o programa, aponta que
ao não conservar adequadamente o leite, este passa a ser um meio transmissor de
doenças.
O que não é essa programação se não um exercício de educar para a construção
de uma consciência sanitária ou de uma educação sanitária?
Nota-se então que a educação popular dentro da programação da Rádio Rural tem
efetivado seus objetivos, a conscientização de cuidado com a saúde e de consciência

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
541

sanitária estão intrínsecas dentro do ato de educar. Considerando que o objetivo do


MEB foi atingido ao trazer a comunicação para veicular a conscientização através da
educação, houve, em decorrência disso o “comer também é remédio” em Mundo Jovem
(1986) que aborda as vitaminas e sais minerais essenciais para o corpo humano, dentre
eles a hortaliça Alcachofra que é saudável para problemas de fígado, assim como para
os órgãos digestivos e a insuficiência renal. Também dentro do trabalho de
conscientizar número diminuído de algumas doenças comuns também foi relatado por
alguns ouvintes por meio de cartas, até porque algumas revistas como O farol, o
Companheiro e Mundo jovem sempre atentavam para a importância das plantas
medicinais e a prática de atividades físicas, alertando que a falta delas pode causar
lentidão no processo digestivo, flacidez, atrofiamento muscular e a presença de
atividades físicas facilita o bombeamento do sangue para o coração, menos acumulo de
gordura nos órgãos e ainda aumenta a capacidade pulmonar. Em relação ao uso das
plantas medicinais se podem destacar tratamentos para a tosse mastigando um
pedaço de gengibre, para a pressão alta a partir de alguns chás que levam alho e
chuchu, sinusite, febre e gripe dentre outros sintomas comuns.
Outro fator bastante evidenciado a partir da análise da transcrição das
programações é a preocupação do MEB em mostrar para a população rural que muitas
dificuldades que os perseguem pelas condições de pobreza podem mudar através de
políticas públicas. Em saúde, essas políticas são prioritárias aos postos de saúde no que
diz respeito a qualidade do posto que atende à essa população e a distribuição de
remédios.
Outra forma interessante que o MEB aborda isso é mostrando o
reconhecimento que a população rural deve ter do lugar social em que ela está inserida.
Na programação do dia quinze de julho de mil novecentos e oitenta e sete em “saúde
popular: A doença como resultado de uma estrutura social injusta”, já pelo título é
notória a difusão do despertar do pensamento através desse veículo comunicativo.
Mostra constantemente que a maioria das doenças que ameaçam a saúde é resultado
do modelo de sociedade em que vivemos. Uma sociedade dividida entre ricos e pobres
em que uns têm o poder econômico e político e outros produzem a riqueza com seu
trabalho, mas não têm direito de usufruir dessas riquezas produzidas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
542

A maioria das doenças que ameaçam a nossa saúde nos dias de hoje, é
resultado do modelo de sociedade em que vivemos. Isto porque a
sociedade atual é uma sociedade capitalista, uma sociedade dividida
entre ricos e pobres; em poderosos e fracos. Nesta sociedade se pensa
somente em lucrar; em tirar proveito, em concorrer e ter mais (...) E
assim, nessa sociedade capitalista em que vivemos, os trabalhadores
passam a vida produzindo enormes riquezas, e recebendo baixos
salários. Se falta terra para o trabalhador plantar e dela tirar o seu
alimento e de sua família. E se falta também um salário justo, vai faltar
alimentação, vem os aperreios da vida e a FOME. E da fome nascem as
doenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a pesquisa, os objetivos foram atingidos ao buscar diagnosticar como a
educação popular participou diretamente da vida das pessoas do meio rural. A
conscientização da saúde sanitária investe principalmente em meios sociais, e portanto,
percebe-se que novas descobertas para a abordagem do processo saúde-doença foram
feitas: a programação do MEB investe em uma leitura marxista para conscientizar à
população do seu lugar social e como isso está inteiramente ligado à propagação de
doença mais nas pessoas pobres (aquelas que produzem, mas não têm acesso ao que
é produzido) do que nas ricas (que têm acesso aos meios de produção e ao que é
produzido com abundância).

FONTES CONSULTADAS:
Movimento de Educação de Base – MEB/ Sistema de Caicó. Programa “Aprenda em sua
Casa”, Higiene e Saúde, 03 de novembro de 1973, Doenças provocadas pelo leite mal
cuidado, Setor de promoção Humana. 8º programa.

Movimento de Educação de Base – MEB/ Sistema de Caicó. Programa “Aprenda em


sua Casa”, Higiene e Saúde, 08 de dezembro de 1973, Verminose, Setor de educação de
adultos. Setor de promoção Humana. 11º programa.

REFERÊNCIAS
BAGNATO, Maria Helena Salgado; BASSINELO, Greicelene Aparecida Hespanhol;
MISSIO, Lourdes; RENOVATO, Rogério Dias. Práticas educativas em saúde: da
fundamentação à construção de uma disciplina curricular. In: Escola Anna Nery
Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n 3, p. 651-656, 2009.

FLEURY, Sonia. Giovanni Berlinguer: socialista, sanitarista, humanista! In: Revista


Ciência e Saúde Coletiva, vol. 20, nº11, 2015, p. 3553- 3559.

GUEDES, Heloisa Helena da Silva; GUEDES, Ronaldo Franco; GUEDES, Raquel Franco.
Conteúdos formadores da prática educativa em saúde no Brasil: o papel da Educação

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
543

em Saúde e da Educação popular. In: Convibra saúde - Congresso virtual Brasileiro de


Educação, gestão e promoção da saúde, 1, 2012.

GÓES, Moacyr de. De Pé no Chão Também Se Aprende a Ler (1961-64): uma escola
democrática. O Movimento de Educação de Base (MEB). In:______. Vol. 3. Civilização
Brasileira, 1980.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
544

OS FORMULÁRIOS MÉDICOS E A AUTOMEDICAÇÃO NO BRASIL


EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

Profº Drº Carlos Eduardo Martins Torcato480

Boa tarde. Gostaria de agradecer a presença de todos que fizeram esse simpósio
acontecer, principalmente ao colega de Departamento Professor André Victor
Cavalcanti Seal da Cunha. Nós dois olhamos no tema da cura e das terapias uma
possibilidade de diálogo entre nossas pesquisas; a cura é uma especificidade do
espiritismo brasileiro. Ele falou da difusão de romances escritos por Bezerra de
Menezes, ou seja, da propagação do ideário espírita através de um vigoroso mercado
editorial. A presente exposição, intitulada "Os formulários médicos e a automedicação
no Brasil em perspectiva histórica" vai discutir os efeitos de um outro tipo de mercado
editorial.
No século XVI ocorre o nascimento do mercado editorial moderno. Desde seus
primórdios a principal obra e maior sucesso comercial foi a Bíblia, traduzida em vários
idiomas depois de muito derramamento de sangue. Marca inalcançável até hoje. Mas o
mercado editorial não se resumia a esse gênero. Os jornais, por exemplo, mudaram o
alcance do debate público; lembremos da importância deles para a formação do
sentimento nacional. Além dessas de grande impacto, muitas outras iniciativas
editoriais procuravam afetar diferentes públicos, difundindo informação. Um dos
estudos pioneiros sobre as drogas no Brasil foi a análise sobre o gênero literário
herbários, produzidos com forte viés iluminista. A Tese Afrodisíacos e alucinógenos nos
herbários modernos: a história moral da botânica e da farmácia dos séculos XVI ao
XVIII, defendida em 1997 na USP e depois tornada livro em 2002 (com o título Amores
e sonhos da flora: afrodisíacos e alucinógenos na botânica e na farmácia) mostra a
difusão, a circulação e a apropriação do saber botânico produzido no mundo colonial
ibérico. Os compêndios agregavam informações de todos os continentes, enriquecendo
o repertório psicoativo da modernidade.
Ouvimos na fala do Professor André Victor Cavalcanti Seal da Cunha a grande
aceitação e o desafio que o espiritismo representava para as práticas médicas

480 UERN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
545

reconhecidas legalmente. Na Mesa da Manhã, intitulada A legitimação religiosa face ao


Estado – os casos do Espiritismo e do Santo Daime, podemos apreciar a pesquisa do
Professora Adriana Gomes mostrando a atuação do juiz Francisco José Viveiros de
Castro em casos ligados à prática espírita. A não legitimidade pública tornava
necessária a repressão legal, com forte ressentimento da população que ansiava por
outras formas de se relacionar com suas enfermidades. Muitas pessoas buscavam
alívio para seus infortúnios em práticos reconhecidos que poderiam ter ou não
inclinação religiosa em seus métodos. Eram diversas as formas não oficiais preferidas
pelas pessoas. O livro da Professora Grabriela Sampaio da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) é uma coletânea de curandeiros e práticos de cura que faziam imenso
sucesso em fins do século XIX. Os desafios dos "homens da lei" para moralizar as
práticas de cura na época não eram poucos.
Uma das estratégias mais antigas da classe médica oficial, em si muito dividida,
para combater a descrença da população em geral em seus métodos era apelar para
livros de difusão do conhecimento médico e higiênico. Desde o século XVI os manuais
práticos de medicina tornam-se um segmento relevante no mercado editorial – que tem
nas obras religiosas seu maior filão. Muitos autores de manuais se tornaram
mundialmente conhecidos, conforme vou mostrar mais na frente. É possível perceber
então uma vigorosa tradição de circulação de manuais médicos, terapêuticos, botânicos
e de outros conhecimentos sobre cura. Pode-se dizer com segurança que um mercado
consumidor de obras autodidatas de medicina perdurou largos séculos, permitindo às
pessoas acesso às informações sobre o cuidado e o autocuidado, fomentando práticas
de consumo de bens médicos desvinculados da medicina oficial.
No Brasil a difusão de obras sobre doenças locais e seus tratamentos pode ser
percebida desde o século XVII. Essas obras eram construídas em um contexto de forte
intercâmbio de informações entre físicos espanhóis, portugueses, ingleses, franceses
e holandeses; informações adquiridas a partir do contato com diferentes regiões e seus
peculiares traços nosológicos. O ímpeto imperialista tinha como um dos seus principais
desafios lidar com contextos epidemiológicos bastante hostis em muitos casos; mais
soldados europeus morriam de doença do que em conflito com os nativos dos outros
continentes. Na América Portuguesa, o primeiro livro que encontrei sobre doenças
brasileiras foi o Tratado Único das bexigas e sarampos escrito por João Galrão
oferecido ao D. João de Sousa em 1683. Seguindo esse temos também o conhecido

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
546

Erário Mineral do cirurgião Gomes Ferreira a partir de suas experiências nas Minas
Gerais, publicado em 1735. Esse livro traz vários elementos da farmacopeia e da
terapêutica colonial.
Os dois tratados citados foram importantes como fonte, pois são capazes de nos
mostrar vários tipos de práticas terapêuticas e concepções de cura e doença que
circulavam na época. Como sucesso editorial, entretanto, não podemos dizer o mesmo.
É provável que este livro tenha ficado restrito a poucos especialistas e diletantes. Ao
contrário deles circulava na época, e também na América portuguesa, alguns manuais
que eram verdadeiros sucessos editoriais, traduzidos para mais de 40 idiomas e
vendido em vários países. Tratava-se das obras de William Buchan, intitulada Medicina
Doméstica, e de William Cullen, intitulada Aviso ao povo a respeito de sua saúde. Esses
livros eram comprados por donas de casa, por fazendeiros, por industriais, ou por
quaisquer indivíduos que tinham necessidade de lidar com as doenças de seus
dependentes. Esses livros são fontes valiosas para conhecer as diferentes concepções
de doenças e as soluções curativas desta época.
Esses livros são fontes muito relevantes, sem dúvidas. Eu acabei chegando a
eles porque procurei entender, ao longo da minha pesquisa de doutorado, a origem de
uma forma específica de difundir conhecimento farmacêutico: os formulários médicos.
A grande maioria dos livros citados acima possui, na sua parte final, uma parte
intitulada "Formulário". O que é isso? É nesta parte do livro que são divulgadas as
receitas de remédios que deveriam ser usados para amenizar os infortúnios produzidos
pelas diversas enfermidades.
Todos esses tratados, sendo populares ou não, tinham uma limitação bastante
importante no que se refere ao seu grau de difusão durante o período colonial: a
tipografia era proibida na América portuguesa. Essa restrição fazia parte do conhecido
Pacto Colonial. Com a chegada da Corte portuguesa, em 1808, esse cenário se
modificou. Até meados do século XIX inicia-se aquilo que podemos chamar de mercado
editorial no Brasil. Jornais, revistas, romances, manuais, livros de todo o gênero passam
a circular e serem produzidos nas tipografias locais.
Entre os vários gêneros que passaram a circular no Brasil oitocentista, quero
fazer um destaque para as revistas voltadas para os interessados nos temas da
medicina. Nestes veículos eram travados vários debates entre o público leigo
interessado e os doutores das Faculdades de Medicina criadas naquele período. Toda

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
547

essa literatura está disponível na Hemeroteca Digital Brasileira mantida pela Fundação
Biblioteca Nacional. Sabe-se, pela leitura dos editoriais, que estas revistas passavam
por dificuldades financeiras e eram de pouca regularidade. Existem algumas
especulações para explicar esse fracasso na obtenção de assinantes – uma delas é
apontar o baixo número de escolarizados capazes de ler as revistas.
Contrariamente a estas revistas, outro empreendimento editorial dentro da
mesma linha temática (saúde e higiene) acaba tendo um sucesso de público maior se
considerarmos as sucessivas edições e atualizações que estas obras sofreram. Muitos
professores médicos, vindos da Europa para construir a ciência médica no Brasil, se
lançaram como empreendedores editoriais. Obras foram publicadas objetivando
alcançar aquilo que era considerado os rincões ignorantes do país, mantendo o mesmo
espírito iluminista da tradição europeia. Eram, nas palavras de Jean-Baptiste A. Imbert
– fundador da Academia Imperial de Medicina (AIM) e autor de Manual do fazendeiro
ou tratado doméstico sobre a enfermidade dos negros (1839) – associar "a filantropia
leiga dos reformadores europeus aos interesses bem entendidos dos escravocratas
brasileiros". Ele também foi responsável por outras duas obras: o Ensaio Higiênico
sobre o clima do Rio de Janeiro, de 1837, e Guia Médico das Mães de Família, de 1843.
Outro autor, bastante polêmico por se posicionar em discussões médicas da época, foi
Luiz Francisco Bonjean – também fundador da AIM. Ele lançou o Médico e cirurgião da
roça e Primeiros Socorros ambas em 1866.
Dessa lista dos pioneiros gostaria de destacar ainda Theodoro Langaard, outro
membro da AIM. Ele escreveu vários livros, um deles, intitulado Formulário Médico, se
tornou obrigatório nas farmácias na segunda metade do século XIX enquanto o
governo não lançava a farmacopeia oficinal. Além desses, traduziu o Atlas de Anatomia,
publicou o Dicionário de Medicina Popular e Doméstica e Sucintos conselhos a jovens
mães para o tratamento racional de seus filhos.
O mais conhecido desses médicos autores, sem sombra de dúvidas, foi o Pedro
Luiz Napoleão Chernoviz, que escreveu o Formulário e Guia Médico e o Dicionário de
Medicina Popular. O primeiro, voltado para o público acadêmico; o segundo, para os
leigos. O Drummond escreveu posteriormente sobre Chernoviz, o tal "Doutor Pedro
Luiz Napoleão Chernoviz/ Não atende a domicílio/ Ninguém lhe vê a cara/ Misterioso

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
548

doutor da capa preta".481 Ele é polonês, veio para o Brasil e fez parte da AIM, morando
na América alguns anos. Depois voltou para a Europa e se estabeleceu em Paris,
trabalhando nas novas edições de seu livro a partir da capital da França. É importante
destacar que seus livros, a cada edição, passavam por atualizações de acordo com as
últimas descobertas científicas. Suas obras seguiram sendo editadas até o início do
século XX, alcançando mais de vinte edições – incluindo três em espanhol.
Todos esses livros destacados tinham como característica comum o forte
sentido iluminista; visavam o público carente de assistência médica oficial, ensinando
alguns preceitos que deveriam ser adotados na ausência de um profissional. Apesar do
constante apelo para a necessidade de procurar um profissional habilitado, na prática
eles ensinavam até as operações mais complexas da época – cirurgia de amputação.
Esses manuais eram vistos com grande apreço pelos membros da comunidade
acadêmica ne primeira metade do século XIX, pois a disputa com os terapeutas práticos
e populares era ainda muito desfavorável. Eles eram necessários, porque a população
era inculta e acabava refém dos curandeiros, aproveitadores e charlatões de todo o
gênero.
Com o passar das décadas e o aumento do número de formados, assim como o
relevante papel que essa impressa exercia na formação de práticos autodidatas, tais
livros passaram a ser desprestigiados pelos profissionais formados, porém adotados
pelos leigos. Nesse ponto é preciso termos um cuidado. É muito fácil cairmos na
tentação de visões dicotômicas que colocam, de um lado, as práticas populares
difundidas e amadas pela população, de outro lado a ciência dos doutores alheia à
cultura da maioria da população. O que a análise desses manuais mostra, pelo contrário,
é a preocupação dos médicos com a difusão de técnicas oficiais para práticos que não
foram legalmente instituídos para praticar as artes médicas. Não existe uma oposição
e sim diferentes formas de circulação e intercâmbio entre os dois campos. Muitos
terapeutas populares, criticados pela medicina, andavam com seus manuais debaixo do
Brasil, os consultando sempre que necessário. As fórmulas, portanto, alimentavam um
caldo cultural que se expandia além da restrita comunidade dos terapeutas oficiais. É
interessante percebermos a prática de itinerâncias de muitos desses curandeiros, indo

481MOREIRA, Paulo. Os clowns de Machado de Assis, Lima Barreto e Monteiro Lobato. Machado Assis
Linha v.7, n.14, 2014, p.119.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
549

de cidade em cidade no interior, providos de seus manuais e sua experiência na clínica


diária.
A crítica proveniente dos meios médicos oficiais não se limitava aos curandeiros
e as práticas de cura não oficiais. Existiam as fórmulas publicamente conhecidas e
divulgadas nos manuais, guardadas em pecúlios, que faziam parte de um repertório
farmacológico difundido. Ao lado desse circuito também eram populares os remédios
de fórmula secreta: índios, escravos, reis, médicos, santos e outras figuras infalíveis.
Parte-se de uma leitura suprema do direito de propriedade; os inventores de uma
receita médica podem explorar economicamente o remédio produzido sem conceder a
'patente' ao Estado. Os jesuítas, por exemplo, lutaram muito tempo para esconder a
fórmula da Triaga Brasílica.
Voltando ao século XIX, era alardeado pelos veículos médicos oficiais os
diversos problemas que essa situação criava: adulterações, ausência de padronização,
dificuldade de controle. Foi com intuito de minimizar esses efeitos que o governo
passou a tomar algumas medidas diminuir a competência das câmeras municipais –
controladas por leigos – no tocante ao comércio de vinhos e compostos terapêuticos.
São marcos desses esforços a criação da Junta Central de Higiene Pública, em 1850, e
sua reformulação em fins da década de 1880 – antes do fim do Império.
A chegada da República altera essa política. Em vez de um esforço de
centralização – em nível nacional – era permitida autonomia aos Estados nas políticas
da área de saúde pública e saneamento. Com tais liberdades São Paulo tomou a posição
de vanguarda nacional, imprimindo uma política sanitária nos moldes vigentes na
Europa e nos EUA. O Distrito Federal no Rio de Janeiro também se pretendia um modelo
para o restante da nação. Na minha Tese, recentemente defendida na USP, mostrei que
essa situação motivou a promulgação das primeiras leis que restringiam a circulação
de substâncias de qualidades entorpecentes, assim como a proibição parcial dos
remédios sem fórmula pública. Essa política atuante do Rio de Janeiro e de São Paulo
não foi percebida no Rio Grande do Sul. Pegando o exemplo do curador que utiliza
pipocas em seu método de cura, usado pela Professor Adriana Gomes na Mesa pela
manhã, ele foi perseguido pela polícia no Distrito Federal, como vimos. No Rio Grande
do Sul ele poderia exercer sua prática livremente, desde que devidamente cadastrado
nos órgãos competentes. Podia existir, portanto, discrepância em relação às políticas
sanitárias nos Estados.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
550

Teria o século XX acabado com a cultura farmacológica calcada nas fórmulas


consagradas? Vou procurar mostrar aqui que não. Em 1917, nós temos a primeira
farmacopeia oficial publicada no Brasil pelo Estado de São Paulo. O que é uma
farmacopeia oficial? É a lista de todas as receitas que fazem parte do repertório
terapêutico de uma sociedade. A farmacopeia paulista foi seguida pela farmacopeia
brasileira, publica em 1926, 1943 e 1959. O que esses livros nos mostram é a pretensão
estatal de imprimir em um único compêndio todas as combinações medicamentosas
válidas e legítimas dentro do território nacional. Além da publicação das farmacopeias
oficiais, uma demanda que atravessou todo o século XIX e só foi concretizada no século
XX, também temos algumas iniciativas no mercado editorial privado. Uma obra
emblemática é o Formulário de Terapêutica Infantil, publicado em 1920 e voltado
exclusivamente para o uso pediátrico. Vejam, heroína, cocaína, morfina, ópio sintético e
todas as substâncias hoje demonizadas faziam parte deste repertório terapêutico. Em
1930 nós temos o Manual de Cirurgia de Augusto Paulino, que mantém referências aos
velhos métodos de anestesia geral, com clorofórmio e éter, e local, com cocaína e
similares. Em 1940, é publicado o Tratado de Anestesia do italiano Achille Mario
Dogliotti, fundador da Anestesiologia. Foi durante o conflito da segunda guerra
mundial que esta especialidade teve seu impulso inicial, com grande desenvolvimento
posterior. Isso está ligado à decadência das velhas práticas popularmente conhecidas
e a ascensão da indústria estadunidense. Por último, ainda localizei o livro
Medicamentos Novos da Clínica Diária de Mário Rangel, publicado em 1950; ele ensina
algumas dicas de como usar cocaína para realizar anestesia local.
O receituário como linguagem e a prática de manipulação de ingredientes para
formular remédios é uma tradição que remonta ao nascimento da imprensa e perdura
até meados do século XX, conforme vimos. Essas práticas quase caem em desuso a
partir de meados do século XX, pois a química moderna e os remédios a granel
produzidos pela indústria farmacêutica expropriam, de certa forma, esse saber
farmacológico; reduzindo os sujeitos a pacientes e a consumidores de produtos
industriais. Nesse novo cenário aquilo que é conhecido como "pecúlio" perde o sentido.
É preciso salientar que ainda existe um pequeno resquício desta tradição: as farmácias
de manipulação ainda existem e com uma receita elas preparam o remédio de acordo
com o pedido do cliente. Embora o sentido e a forma de adquirir receitas, hoje em dia,
sejam bem diferentes do início do século XX.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
551

Para finalizar é preciso salientar que não cabe à História apenas identificar
tradições e apontar as suas permanências ao longo do tempo. É preciso apontar como
isso foi se transformando ao longo do tempo. Desde o século XVI até o XX, são várias
as tradições terapêuticas que disputavam hegemonia. Na lista de tendências e escolas
que vou apresentar agora não incluirei algumas correntes heterodoxas, como a
homeopatia. Vejam, a magia e o sobrenatural, o hipocratismo em suas diferentes
formas, o vitalismo, a geografia médica, a anatomopatologia (descrita brilhantemente
por Foucault no Nascimento de Clínica), o experimentalismo, as bactérias, o ceticismo
terapêutico (que apresentei no comentário que fiz na fala do Professor André) e, por
fim, a consolidação das especialidades. A pediatria, a cirurgia são exemplos de
especialidades que se consolidaram no começo do século XX. A Anestesiologia, falada
anteriormente, se consolidou na segunda metade do século XX. Ou seja, as formas de
pensar a doença e a cura mudaram muito ao longo do tempo.
Nesta história dos manuais apresentada é possível perceber que, apesar de
mudar as concepções de doenças, as possibilidades de tratamento e os contextos
sociais, econômicos e culturais, o receituário popular permaneceu durante todo esse
período. E essas receitas permitem aos indivíduos terem seu próprio repertório
terapêutico, independente da classe médica. Essa tradição é a base de uma cultura de
automedicação. A questão que coloco, para finalizar e lançar ideias para o debate, é
como devo denominar essa tradição. Já pensei em mentalidade, por ser algo que
atravessa diversos segmentos sociais, além de ser algo que pode ser inscrito na longa
duração; porém, não me parece adequado porque não se trata de uma linguagem
dominada por todos. Pelo contrário, alguns especialistas, diletantes e práticos
dominavam essa técnica. Eu acabei optando por denominar 'cultura farmacológica', um
termo que pretende nomear essa rede de compartilhamento de receitas, essa
linguagem comum que transpassava diversos tipos de terapeutas. Meu tempo já
encerrou. Eu agradeço a oportunidade e estou aberto para o debate. Obrigado.

REFERÊNCIAS:
ABREU, Jean Luiz Neves. O corpo, a doença e a saúde: O saber médico luso-brasileiro
no século XVIII. Tese. (PPG - História/Universidade Federal de Minas Gerais), 2006.

ALVES, Mariana Da Hora. Junta Central de Higiene Pública: ações, estigmas e conflitos
sociais (1850-1889). XV Encontro Regional de História - Ofício do Historiador: Ensino e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
552

Pesquisa. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) - São Gonçalo (RJ). 2012.
Anais. 01-10 p.

ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática,1989.

BENCHIMOL, Jaime Larry. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e revolução
pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz,1999.

CAMARGO, Maria Thereza Lemos De Arruda. Garrafada na medicina popular: uma


revisão historiográfica. Dominguezia, v.27, n.1, p.41-49, 2011.

CARNEIRO, Henrique. Amores e sonhos da flora: afrodisíacos e alucinógenos na


botânica e na farmácia. São Paulo: Xamã,2002.

DELAMARQUE, Elizabete Vianna. Junta Central de Higiene Pública: Vigilância e


Política Sanitária (antecedentes e principais debates). Dissertação. (PPG em História
das Ciências e da Saúde/FIOCRUZ), 2011.

EDLER, Flavio Coelho. O debate em torno da medicina experimental no segundo


reinado. História, Ciência e Saúde – Manguinhos, v.3, n.2, p.284-299, 1996.

______. A escola tropicalista baiana: um mito de origem da medicina Tropical no


Brasil. História, Ciência e Saúde – Manguinhos, v.9, n.2, p.357-385, 2002.

______. Boticas & Pharmacias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra,2006.

______. Pesquisa clínica e experimental no Brasil oitocentista: circulação e controle


do conhecimento em helmintologia médica. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
v.17, n.3, p.739-755, 2010.

EDLER, Flavio Coelho; GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Chernoviz e a medicina no


Império. Insight Inteligência, v.23, p.128-146, 2003.

FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. O doutor capa preta: Chernoviz e a Medicina no


Brasil do século XIX. Revista Estudos, v.1, n.1, p.95-101, 2001.

______. Os manuais de medicina e a circulação do saber no século XIX no Brasil:


mediação entre o saber acadêmico e o saber popular. Educar, n.25, p.59-73, 2005.

______. A Arte de Curar: Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX


em Minas Gerais. Belo Horizonte: Argymentvm,2008.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-


Universitária,1977.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
553

GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Civilizando as artes de curar: Chernoviz e os


manuais de medicina popular no Império. Dissertação. (Programa de Pós-Graduação
em História das Ciências da Saúde/Fundação Oswaldo Cruz), 2003.

______. Os manuais de medicina popular de Chernoviz na sociedade imperial.


Cantareira, v.1, n.5, p.01-20, 2004.

______. Chernoviz e os manuais de medicina popular no Império. História, Ciências,


Saúde – Manguinhos, v.12, n.2, p.501-514, 2005.

HOCHMAN, Gilberto. A Era do Saneamento: As bases da política de Saúde Pública no


Brasil. São Paulo: Hucitec, 2006.

KUMMER, Lizete Oliveira. A medicina social e a liberdade profissional: os médicos


gaúchos na primeira república. Dissertação. (PPG - História/UFRGS), 2002.

MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em Boiões: medicinas, boticários no Brasil


setecentista. Campinas: UNICAMP,1999.

MOREIRA, Paulo. Os clowns de Machado de Assis, Lima Barreto e Monteiro Lobato.


Machado Assis Linha, v.7, n.14, p.99-119, 2014.

PIMENTA, Tânia Salgado. Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28).


História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.5, n.2, p.349-372, 1998.

______. Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a


primeira metade do Oitocentos. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. v.11,
n.(suplemento 1), p.67-92, 2004.

SAMPAIO, Gabriela Dos Reis. Nas trincheiras da cura: As diferentes medicinas no Rio
de Janeiro Imperial. Campinas: EdUNICAMP,2001.

SANTOS, Fernando Santiago Dos. As plantas brasileiras, os jesuítas e os indígenas


do Brasil: história e ciência na Triaga Brasílica (séc.XVII-XVIII). São Paulo: Caso do
Novo Autor Editora,2009.

SAYD, Jane Dutra. Mediar, Medicar, Remediar: aspectos da terapêutica na medicina


ocidental. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,1998.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
554

Simpósio Temático 10
A HISTÓRIA E EDUCAÇÃO NO BRASIL:
HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E EXPERIÊNCIAS DE
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
555

O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E O ENSINO DE HISTÓRIA

Anna Gabriella de Souza Cordeiro482

INTRODUÇÃO
A elaboração do Plano Nacional de Educação brasileiro foi um processo iniciado
com a promulgação da Constituição de 1934 e previsto também pela Constituição
vigente desde o ano de 1988. Entretanto, o primeiro PNE só foi efetivamente
homologado através da Lei nº 10.172/2001, este vigorou de 2001 a 2010. Hoje, a
educação é regida pelo segundo PNE, Lei nº 13.005/2014, que propõe ações para o
período que compreende os anos de 2014 a 2024.
Neste estudo, tem-se por objetivo analisar a influência direta que o PNE exerce
sobre o Ensino de História. O PNE é uma Lei e será analisada com base nas concepções
de Lei fornecidas por Thompson (1987) e Stamatto (2012). Para entender o ensino de
história, foi de fundamental importância o entendimento de disciplina fornecido por
Chervel (1990) e a concepção de ensino de história de Bittencourt (2008).
Na relação do PNE com o Ensino de História foram identificados dois pontos
diretos de intersecção, o primeiro refere-se ao fomento do ensino da história e das
culturas afro-brasileira, africana e indígenas, e, o segundo, à elaboração da Base
Nacional Curricular Comum - BNCC. Para tanto, foram analisadas a produção
legiferante, a bibliografia correlata as temáticas e as manifestações institucionais
vinculadas no âmbito digital.

LEI, PNE E ENSINO DE HISTÓRIA


Para iniciar esta reflexão, vale salientar que o Plano Nacional de Educação é uma
Lei. O representante da escola neomarxista inglesa, Edward Palmer Thompson,

482Historiadora, Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – PPGH / UFRN,
(2010-2012). É doutoranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte PPGED / UFRN.
Tendo como áreas de interesse: História da Educação, Ensino de História, Fundamentos da Educação,
Educação Brasileira, História Urbana, Patrimônio, História Social do Brasil, Historiografia, Teoria da
História, História Econômica, História das Ciências e Arquitetura. Trabalhou no mestrado com o
movimento de degradação social, econômica e física do Bairro Histórico da Ribeira em Natal. Faz parte
do grupo de estudo "A educação e a Lei", coordenado pela Profª Drª Maria Inês Sucupira Stamatto. É
colaboradora externa (convidada/voluntária) do Laboratório de Estudos da Cidade, Urbanismo e
Território LaUrbe - UFERSA. No doutorado pesquisa a atuação do Estado na construção do imaginário
da cultura escolar durante a Primeira República.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
556

entende que “[...] não é possível conceber nenhuma sociedade complexa sem lei”
(THOMPSON, 1987, p.351). A Lei pode ser interpretada como sendo um instrumento que
media e reforça as relações entre as classes sociais, dos dominantes e dos dominados.
Para tanto, a Lei também atua, ideologicamente, na legitimação da dominação.

Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada,


contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição
prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de
que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e
pareça ser justa. (THOMPSON, 1987, p. 354)

No tocante apontado por Thompson, a Lei precisa ter um caráter de


universalidade e igualdade, devendo atender todos os tipos de homem, para que possa
atuar de modo eficiente na legitimação dos pressupostos almejados pelos dominantes.
A Lei caracteriza-se por uma dicotomia, ao mesmo tempo em que pressupõe a
dominação e a desigualdade, carece ainda parecer igualitária para ser legitimada
socialmente.
O autor entende que a legislação se consolida como um importante instrumento
da classe dominante, que através do Estado, realiza suas pretensões com relação à
constituição da própria sociedade. “[...] a lei é por definição, e talvez de modo mais claro
do que qualquer outro artefato cultural ou institucional, uma parcela de uma
“superestrutura” que se adapta por si às necessidades de uma infra-estrutura de forças
produtivas e relações de produção” (THOMPSON, 1987, p. 349-350).
Assim, a Lei atua na defesa e na definição dos anseios da classe dominante, como
por exemplo, na busca pela transformação do súdito imperial em cidadão republicano,
o que figurou como uma ação civilizatória da sociedade através da instrução. Já que a
Lei determinava que só seria considerado cidadão quem fosse alfabetizado. O que
provoca uma discursão acerca da utilização da legislação educacional no
desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a educação. Assim sendo, é
importante entender a “[...] a legislação educacional como um corpus documental que
permite perceber e compreender o processo da instalação do sistema escolar no país e
as modificações referentes às políticas educacionais implementadas” (STAMATTO,
2012, p. 280).
Na concepção da historiadora Inês Stamatto, pelo fato da Legislação
Educacional conter em seu âmago uma intencionalidade, com base nela pode-se

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
557

fomentar a compreensão da ação histórica continuada de uma determinada sociedade.


Embora deva o historiador estar atento ao fato de que é preciso reconhecer “as
implicações da legislação nas políticas educacionais” (STAMATTO, 2012, p. 280), apesar
do cumprimento ou não das determinações propostas pelo documento, já que ele não
pode ser considerado como reflexo da realidade.
Com base no entendimento de que a norma comporta as ações que incidem
diretamente no real, incentivando-as ou proibindo-as a partir do poder centralizado no
Estado, este dispositivo legal tem como uma de suas intenções a organização das
políticas educacionais. Nesse sentido, “A lei normatiza e direciona ações do poder
instituído; limita poderes discricionários; permite e delimita ações de agentes sociais;
garante direitos e cria possibilidades para ação de indivíduos e grupos sociais”
(STAMATTO, 2012, p. 281).

Não podemos entender um sistema de educação sem a sua


regulamentação. Tomamos a lei como um indicador da forma como se
organizava juridicamente uma dada sociedade, como produto desta
sociedade, em um dado contexto histórico e, portanto, fazendo parte da
cultura que a instituiu (STAMATTO, 2012, p. 181).

Deste modo, Stamatto relaciona a legislação com a cultura que a produziu. Este
pressuposto fomenta uma interpretação, que busca na legislação, os elementos que
consolidam a cultura escolar e que incidem diretamente na maneira que é ofertado o
ensino, tanto de modo geral quanto no tocante específico de cada disciplina.
No decurso da história brasileira, principalmente a partir da independência,
observa-se a busca pela organização do ensino no país. Destarte, a primeira tentativa
de criação de um Conselho Educacional, na estrutura da administração pública,
aconteceu na Bahia, no ano de 1842. Já em 1846, a Comissão de Instrução Pública da
Câmara dos Deputados propôs a criação do Conselho Geral de Instrução Pública. A ideia
de um Conselho Superior somente seria objetivada em 1911 (Decreto nº 8.659, de
05/04/1911) com a criação do Conselho Superior de Ensino. A ele seguiram-se o
Conselho Nacional de Ensino (Decreto nº 16.782-A, de 13/01/1925), o Conselho Nacional
de Educação (Decreto nº 19.850, de 11/04/1931).
A grande repercussão do Manifesto de 1932 influenciou a Constituição de 1934,
que, em seu art. 150, dispunha que era competência da União “fixar o Plano Nacional de
Educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
558

especializados; e coordenar e fiscalizar sua execução, em todo o país” (BRASIL,


Constituição Federal, 1934). Através da Lei nº 174, de 6 de janeiro de 1936, é nomeado
o Conselho Nacional de Educação. No Art. 2º, que determinava as atribuições do
referido conselho, que tinha como principal objetivo: “1º, elaborar o plano nacional de
educação, para ser approvado pelo Poder Legislativo (Constituição Federal, artigo 152)”
(BRASIL, Lei nº 174, de 6 de janeiro de 1936).
O Plano foi elaborado pelo conselho no prazo previsto por Lei e entregue para
votação na Câmara dos Deputados pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas.
Na Câmara dos Deputados, o primeiro PNE brasileiro encontrou certa resistência,
contudo, a votação não prosseguiu, devido à dissolução deste órgão público no ano de
1937 (CURY, 2013). É importante ressaltar que a necessidade de implantação de um
PNE remonta às primeiras décadas do século XX. Entretanto, o Primeiro Plano Nacional
de Educação brasileiro só foi efetivamente sancionado no século seguinte, no ano de
2001 (Lei 10.172/2001), vigorando até 2010. Este foi precedido por importantes
disposições legais, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1961 e Lei
nº 9.394/1996) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998).

O atual PNE (Lei n. 10.172, de 9/1/2001) é resultado das ações da


sociedade brasileira para garantir as disposições legais contidas no
artigo 214 da Constituição Federal, de 1988, o qual sinaliza que “A lei
estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual,
visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino, em seus
diversos níveis, e à integração das ações do poder público que
conduzam à: I – erradicação do analfabetismo; II – universalização do
atendimento escolar; III – melhoria da qualidade do ensino; IV –
formação para o trabalho; v – promoção humanística”, e das
disposições transitórias da LDB que, em seu artigo 87, parágrafo 1º,
preconiza que a União deveria, no prazo de um ano, encaminhar ao
Congresso Nacional proposta de PNE, indicando diretrizes e metas para
os dez anos seguintes (Década da Educação), em sintonia com a
Declaração Mundial sobre Educação para Todos (DOURADO, 2010, p.
682).

Ao analisar o primeiro PNE, embasado nas premissas do materialismo histórico


dialético, o autor destaca que as políticas públicas voltadas para a educação podem ser
consideradas uma tradução político-pedagógica, atentando ao fato de que as referidas
políticas se inscrevem com base nas relações político-ideológicas, já que refletem
concepções de mundo, sociedade e educação. Entendendo a educação como “[...] um ato

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
559

político que expressa diferentes concepções e não por acaso as políticas educacionais,
na qualidade de políticas públicas, traduzem tais disputas” (DOURADO, 2010, p. 680).
De acordo com Dourado, o primeiro PNE apresentou um descompasso entre o
proposto e o efetivado, tendo em vista que as políticas educacionais adotadas pelos
governos não consideraram o PNE enquanto a principal diretriz das ações político-
pedagógicas realizadas no âmbito educacional. Ressaltando-se as diferenças
estruturais das políticas de Estado implantadas pelos presidentes Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, durante a vigência do primeiro PNE, o que contribuiu,
mormente, para o não cumprimento de suas proposições. Dito isto, é destacado o
grande desafio, incumbido à sociedade civil e política no tocante a elaboração do novo
PNE, no qual deve ser considerada a necessidade do novo documento superar os limites
e entraves vivenciados pelo primeiro.
A construção do novo PNE contou com a participação ampla da sociedade,
especificamente dos agentes envolvidos na educação através da criação do Fórum
Nacional de Educação, da realização de duas Conferências Nacionais de Educação
(CONAE 2010 e 2014), sendo estas precedidas por amplos debates municipais,
estaduais e distritais, coordenados pelos respectivos Fóruns.

A expectativa é que essa ampla participação resulte em ações político-


pedagógicas que interfiram, ainda mais, na cultura dominante nas
políticas educacionais, ainda predominantemente restritas à dimensão
governamental, visando a instituição de políticas de Estado que
traduzam as lutas da sociedade brasileira por uma educação inclusiva,
democrática, de qualidade social para todos na educação básica e
superior, bem como nas diferentes modalidades educativas por meio da
instituição de um Sistema Nacional de Educação (DOURADO, 2014, p.
39).

Conforme exposto, a elaboração do novo documento foi composto por diversas


etapas que objetivaram a ampla participação da sociedade. De maneira que a realização
de inúmeros fóruns e de duas CONAE representam o esforço coletivo em prol do
melhoramento educacional brasileiro, cumprindo assim um importante papel na
democratização das políticas de Estado. O atual PNE, Lei nº 13.005/2014, foi
homologado em 2014, com vigência de dez anos. Na apresentação, assinada pelo
presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, lê-se:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
560

O Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005/2014, é um


instrumento de planejamento do nosso Estado democrático de direito
que orienta a execução e o aprimoramento de políticas públicas do
setor. Neste novo texto, fruto de amplos debates entre diversos atores
sociais e o poder público, estão definidos os objetivos e metas para o
ensino em todos os níveis – infantil, básico e superior – a serem
executados nos próximos dez anos. O PNE 2014-2024 traz dez
diretrizes, entre elas a erradicação do analfabetismo, a melhoria da
qualidade da educação, além da valorização dos profissionais de
educação, um dos maiores desafios das políticas educacionais. De
acordo com o art. 7º dessa nova lei, a União, os estados, o Distrito
Federal e os municípios atuarão em regime de colaboração para atingir
as metas e implementar as estratégias previstas no texto.

Entender o PNE enquanto Lei remete à concepção de Thompson no que se refere


ao fato dela precisar parecer justa para toda sociedade, a fim de que seja
ideologicamente incorporada ao contexto social de seu pertencimento. Nesse sentido,
as diretrizes do PNE 2014-2024 refletem os anseios de várias camadas sociais em
disputa no cenário brasileiro, ainda a adoção de um processo democrático participativo
na elaboração do documento corrobora com essa perspectiva.
Como o PNE abarca, de modo geral, todo o ensino ofertado no país, ele também
se relaciona com as disciplinas ofertadas nas escolas. O historiador francês André
Chervel (1990) entende que as disciplinas foram produzidas pelas escolas com o
objetivo de transformar o ensino em aprendizagem. As disciplinas ofertadas
relacionam-se diretamente com a cultura escolar e com a legislação educacional, de
maneira que a constituição de uma disciplina é permeada por momentos de
continuidade e de ruptura, seja através do impacto ocasionado pelas reformas
educacionais, pela reorganização curricular, ou, pela mudança dos métodos de ensino.
Por versar sobre o ensino de uma disciplina, o ensino de história é influenciado
pela produção historiográfica; pelas instituições (ex. IHG, Universidades, PPGs,), pelas
revistas especializadas, pelos anais de eventos, pelo material didático, pelo estado,
dentre outros (ANDRADE; STAMATTO, 2009). Desta maneira, o ensino de história, no
Brasil, passou por diversos momentos. Como ponto de partida, destaca-se a influência
do ensino de história na formação do Estado Nacional brasileiro, quando o Brasil
libertou-se de Portugal e tornou-se uma monarquia. Nas antigas escolas de primeiras
letras, conforme os planos de estudos dispostos no ano de 1827, o professor deveria
utilizar nas lições de leitura, dentre outros textos, “A constituição do Império e História
do Brasil”. Na década de 1870, o ensino de história foi adquirindo importância, por

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
561

figurar “como um instrumento pedagógico significativo na constituição de uma


identidade nacional” (BITTENCOURT, 2008, p. 60). Este objetivo aferido ao ensino de
história pode ser observado, inclusive, no século XXI, como evidencia o PNE 2014-2024,
na estratégia 7.34 que deixa claro que será imprescindível “instituir, em articulação com
os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, programa nacional de formação de
professores e professoras de alunos e alunas para promover e consolidar política de
preservação da memória nacional”.
Assim sendo, propõe-se aqui tecer uma reflexão sobre a relação do PNE com o
ensino de história. No PNE 2014-2014, na Meta 7, que propõe: “fomentar a qualidade da
educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da
aprendizagem” de modo a melhorar as médias nacionais na avaliação do IDEB. Foi
observado na estratégia 7.25, a relação direta do documento com o ensino de história.

7.25. garantir nos currículos escolares conteúdos sobre a história e as


culturas afro-brasileira e indígenas e implementar ações educacionais,
nos termos das Leis nos 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10
de março de 2008, assegurando-se a implementação das respectivas
diretrizes curriculares nacionais, por meio de ações colaborativas com
fóruns de educação para a diversidade étnico-racial, conselhos
escolares, equipes pedagógicas e a sociedade civil.

É relevante destacar a referência feita as Leis 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e


11.645, de 10 de março de 2008, que foram acrescidas à LDB, Lei 9.394/96, no que tange
ao Artigo 26-A. Em ambas as versões, o conteúdo deve ser explorado em todo o
currículo, mas, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras. Contudo, na versão inicial da LDB, esta temática referia-se apenas ao ensino
de história, conforme é possível ler no Art. 26, §4: “o ensino de História do Brasil levará
em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo
brasileiro, especialmente das matrizes indígenas, africana e europeia” (LDB, 1996).
Considerando assim a concepção das raças formadoras da nação, que vem se
desenhando desde a década de 30 do século passado, com os estudos de Gilberto
Freyre, Caio Prado Junior e Darcy Ribeiro.
Nesse sentido, também é válido acrescentar que a Lei de 2003 contempla
apenas a história e a cultura afro-brasileira, enquanto que, na Lei de 2008, é
determinado o estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena. O que
corrobora com as premissas do Estado Brasileiro presentes na Constituição de 1988,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
562

que enfatiza ser dever do Estado proteger as “manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional” (CF, 1988, art. 215, §1º).
Desta maneira, é perceptível que as questões relacionadas ao ensino da história
e cultura afro-brasileira, africana e indígena, assim como a educação para as relações
étnico-raciais aparecem como estratégias operativas para o cumprimento de metas
consideradas prioritárias. No entanto, outras estratégias do PNE 2014-2024 referem-
se ao combate às desigualdades étnico-raciais (Estratégias: 11.13; 12.15; 13.4; 14.5),
porém, não se relacionam ao ensino de história.
Para que os conteúdos referentes ao estudo da história e das culturas afro-
brasileiras e indígenas sejam abordados de forma eficiente, esta temática precisa
compreender também a formação dos professores. Esta relação foi exposta no PNE
2001-2010, sendo o único momento em que efetivamente é abordada a questão étnico-
racial de valorização da história e da cultura afro-brasileira e indígena.

21. Incluir, nos currículos e programas dos cursos de formação de


profissionais da educação, temas específicos da história, da cultura, dos
conhecimentos, das manifestações artísticas e religiosas do segmento
afro-brasileiro, das sociedades indígenas e dos trabalhadores rurais e
sua contribuição na sociedade brasileira (BRASIL, 2001, item 10.3,
objetivo e meta 21).

Nesse sentido, o PNE 2014-2024 corrobora com o anterior, já que dispõe:

13.4. promover a melhoria da qualidade dos cursos de pedagogia e


licenciaturas, por meio da aplicação de instrumento próprio de
avaliação aprovado pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação
Superior (Conaes), integrando-os às demandas e necessidades das
redes de educação básica, de modo a permitir aos graduandos a
aquisição das qualificações necessárias a conduzir o processo
pedagógico de seus futuros alunos(as), combinando formação geral e
específica com a prática didática, além da educação para as relações
étnico-raciais, a diversidade e as necessidades das pessoas com
deficiência; (BRASIL, 2014)

Estas estratégias expõem formulações que ainda foram indicadas pela


Resolução do CNE/CP Nº 01, de 17 de junho de 2004, que instituiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. No Art. 2, do referido documento, lê-se:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
563

§ 2º O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por


objetivo o reconhecimento e valorização da identidade, história e
cultura dos afro-brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e
igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao
lado das indígenas, europeias, asiáticas (BRASIL, CNE/CP Nº 1, de 17 de
junho de 2004).

Na Resolução ainda é estabelecido que as instituições de ensino superior com


oferta de cursos voltados para a formação de professores observem as suas
normativas, aspecto a ser considerando no processo de avaliação dos cursos. De
maneira que, mediante todas as discursões voltadas para as relações étnico-raciais e
ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, mencionar este aspecto de forma
diluída e no corpo de uma estratégia do PNE (uma diretriz do Conselho Nacional de
Educação que já existente desde 2004) compromete a centralidade necessária que tal
política deveria ter no contexto dos novos Planos, inclusive para potencializar a sua
efetividade.
Outro ponto da relação do PNE com o Ensino de História diz respeito à
elaboração da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, conforme previsto no PNE
(2014), pela Constituição e pela LDB. Contudo, deve-se destacar que desde o ano de
1998 existem os Parâmetros Curriculares Nacionais e que, boa parte do currículo
nacional tem sofrido forte influência das editoras de livros didáticos e dos processos
avaliativos como o ENEM. O currículo dispõe sobre as formas de conhecimento e de
saber, que resultam em divisões e antagonismos culturais e sociais.
Com base nas discussões atuais é perceptível que o currículo também é produtor
de identidades culturais, de gênero, religiosas, étnico-raciais, sexuais. Sendo assim,
conhecimento e currículo podem ser abordados enquanto “campos sujeitos à disputa e
à interpretação, nos quais diferentes grupos tentam estabelecer sua hegemonia”
(SILVA, 1999, p. 135). Já que desempenham o papel de poder regulador, no qual se
confrontam opções e se produzem consensos possíveis (SACRISTÁN, 2013). Ao tratar
especificamente do Ensino de História no currículo, a Profª Flávia Caimi atenta para a
especificidade da disciplina no que tange a construção da memória coletiva.

A História é um campo privilegiado em que as discussões curriculares


incidem fortemente sobre as demandas sociais, uma vez que se trata
de disputas pela memória coletiva, de operações históricas que dão
visibilidade a diferentes posições enunciativas e pontos de vista sobre
o passado e, consequentemente, sobre o tempo presente. Com isso,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
564

temos de reconhecer o campo da História, notadamente a História


escolar, como um locus de contradições, de pluralismo de ideias, de
provisoriedade explicativa e de dinâmica interpretativa acerca da
experiência humana no tempo (CAIMI, 2016, p. 87).

Ao compreender que a história ensinada na escola como um importante meio de


elaborar, construir e difundir a memória coletiva, que se relaciona diretamente com a
construção do nacionalismo, conforme aponta Bitencourt, torna a disciplina alvo dos
poderes públicos, que através da implantação do BNCC decide o que deve ser ensinado
às futuras gerações.

É interessante notar quanto interesse, quanta vigilância e quantas


intervenções o ensino de história suscita nos mais altos níveis. A
história é certamente a única disciplina escolar que recebe
intervenções diretas dos altos dirigentes e a consideração ativa dos
parlamentos. Isso mostra quão importante é ela para o poder”
(LAVILLE, 1999, p. 130).

Tanto é que o componente da disciplina, no âmbito da elaboração do BNCC, foi o mais


polêmico, tendo três diferentes versões até a homologação do documento em 2017. É
apontado que uma das principais críticas ao componente curricular de História diz
respeito à subordinação a uma perspectiva estritamente nacionalista. O que trás
prejuízos, até mesmo, ao ensino de História do Brasil, limitando a compreensão da
pluralidade concernente aos processos históricos. A homologação do BNCC deu-se sob
o protesto de importantes instituições, como a ANPUH, que publicou diversas cartas
abertas sobre a temática. Dentre elas, destaca-se a carta assinada por sete importantes
pesquisadores no âmbito nacional (Cacilda da Silva Machado; Eduardo França Paiva;
Gian Carlo de Melo Silva; Isnara Pereira Ivo; Marcia Amantino; Márcio de Sousa Soares;
e Maria Lemke). Em meio aos diversos pontos elencados na carta, destaca-se:

Realçar as presenças indígenas e africanas, mesmo que se evoque a lei


10.693, não pode ser base para minimizar outras manifestações
identitárias, inclusive mestiças, em suas dimensões sociais, culturais,
políticas, econômicas, religiosas e familiares, e tampouco as matrizes
europeias da formação histórica plural do Brasil. Em nome da
diversidade, da alteridade e do respeito à diferença, sugerimos o
aprimoramento da proposta no sentido de salientar a contribuição
europeia e os complexos processos de mestiçagem que estiveram
longe de se resumir ao racismo científico oitocentista, às ideologias de
mestiçagem do século XX e à falsa associação entre as dinâmicas de
mestiçagens ocorridas historicamente e a leitura a posteriori, detratora

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
565

da harmonia social que elas teriam pretensamente forjado. Antes de


tudo, foram processos históricos plurais e variáveis no tempo e no
espaço. (https://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3365-
carta-de-pesquisadores-sobre-a-bncc-enviada-a-anpuh-brasil)

Na concepção dos pesquisadores, a valorização das presenças africanas e


indígenas, como aponta o PNE, não deve obscurecer outros diversos pontos
importantes da história mundial e nacional. Os pesquisadores atentam para o fato de
que não se deve pormenorizar importância do europeu, que de igual modo pertence ao
processo de formação do Brasil, conforme apontam importantes estudos iniciados no
início do século XX. Assim como é relevante considerar a miscigenação não apenas
racial como também cultural, processada no âmbito da história nacional. Na carta
assinada pelo Fórum dos Profissionais de História Antiga e Medieval, observa-se:

A Base, portanto, limita a pluralidade dos passados ao partir da


centralidade da ideia de nação. O sintoma mais claro disto é a omissão
de temas relativos a passados distantes, cuja análise permitiria aos
estudantes refletirem acerca de experiências diversas daquelas em que
estão diretamente envolvidos, tanto cronológica quanto
geograficamente. Dessa forma, é igualmente empobrecedora, por
exemplo, a exclusão de História Antiga e Medieval, baseada na falsa
assunção de que só é possível pensar a Antiguidade e o Medievo sob o
ponto de vista eurocêntrico. É necessário colocar essas histórias em
uma perspectiva mais ampla, que inclua experiências anteriores ao
século XVI, tais como a dos povos nativos das Américas, da África e de
outras sociedades, para desta maneira permitir a construção de
narrativas que justamente questionem o eurocentrismo. O mesmo
princípio se aplica à subordinação, à história nacional do Brasil, de
temas ligados a temporalidades posteriores ao século XVI.
(https://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3127-carta-de-
repudio-a-bncc-produzida-pelo-forum-dos-profissionais-de-historia-
antiga-e-medieval)

Apesar das críticas tecidas com relação à última versão do BNCC, foi observado
que parte a história da Europa volta a compor o currículo, que mantém também a
antiquada ordem cronológica. Entretanto, o documento figura nos moldes de um
currículo mínimo, o que resulta na limitação da autonomia pedagógica dos educadores
da área de História.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
566

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decurso desta pesquisa, buscou-se evidenciar o processo de construção
histórica do PNE e sua relação com o Ensino de História, nesta intercessão foi
observada a valorização da história e da cultura afro-brasileira, africana e indígena, que
incidiu na formação dos professores e resultou na polêmica consolidação do Base
Nacional Comum Curricular. O BNCC figura nos moldes de um currículo mínimo, o que
resulta na limitação da autonomia pedagógica dos educadores da área de História.
Enfim, ao procurar parecer justa, a Lei que pretendeu valorizar a história das
raças subjugadas durante o processo de colonização, escondia em suas entranhas um
forte teor nacionalista/retrógrado, o que confirma a existência de interesses políticos
no momento em questão, considerando que o próprio PNE tem sua efetivação
ameaçada pela Emenda Constitucional nº 95/2016.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de
outubro de 1988. Brasília, 1988.

BRASIL, Lei nº 174, de 6 de janeiro de 1936, disponível em:


http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-174-6-janeiro-1936-556088-
publicacaooriginal-75752-pl.html, acesso em 15/03/2018.

_______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, de 20 de


dezembro de 1996. Brasília, 1996.

_______. Lei Federal nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001, aprova o Plano Nacional de


Educação. Brasília, 2001.

_______. Congresso Nacional. Lei Federal n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que


altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras
providências. Brasília, 2003.

_______. Conselho Nacional de Educação/Câmara Plena. Resolução CNE/CP n. 1, de


17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana. Brasília, 2004.

_______. Congresso Nacional. Lei Federal n. 11.645, de 10 de março de 2008, que


altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
567

incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e


Cultura Afro-brasileira e Indígena”. Brasília, 2008.

_______. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC/SECAD/SEPPIR, 2009.

ANDRADE, João Maria Valença; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (orgs). História
ensinada e a escrita da história. Natal: EDUFRN, 2009.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos.


São Paulo: Cortez, 2008.

CAIMI, Flávia Eloisa. A História na Base Nacional Comum Curricular: pluralismo de


ideias ou guerra de narrativas? Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.4, vol.3, jan/jun.
2016.

CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de


pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990.

CURY, Carlos Roberto Jamil. O Plano Nacional De Educação De 1936/1937. VII


Congresso Brasileiro de História da Educação. Circuitos e Fronteiras da História da
Educação no Brasil. Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá – MT. 20 a 23 de
maio de 2013. Disponível em: http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01-
%20ESTADO%20E%20POLITICAS%20EDUCACIONAIS%20NA%20HISTORIA%20DA
%20EDUCACAO%20BRASILEIRA/O%20PLANO%20NACIONAL%20DE%20EDUCACA
O%20DE%201936%20-%201937.pdf

DOURADO, Luiz Fernandes. Avaliação do plano nacional de educação 2001-2009:


questões estruturais e conjunturais de uma política. Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 112,
p. 677-705, jul.-set. 2010. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br.

LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de


História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, p. 125-138. 1999.
SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto
Alegre: Penso, 2013.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do


currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
568

ENSINO DE HISTÓRIA: O USO DE NOVOS RECURSOS DIDÁTICOS


PARA A CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

Sérgio Medeiros de Almeida483

INTRODUÇÃO
Considerado como um momento de novas descobertas, desafios, e de até
mesmo para superar seus medos e temores, o Estágio Supervisionado surge nos
cursos da licenciatura como também um dos momentos mais importantes para a
formação e de crescimento para aqueles alunos que pensam em seguir na área de
ensino e se tornarem futuros professores.
Por outro lado há também aqueles que pensam ou consideram a cada entrada
em sala de aula como se fosse à entrada num campo de guerra, mas, o Estágio
Supervisionado, pode ser ou se tornar um divisor de águas, é um momento especial que
deve ser desfrutado com alegria mesmo que para alguns, essa seja a fase e uns dos
momentos principais de vencer seus maiores medos sejam quais eles forem; uma fase
excepcional para a descoberta de seu futuro acadêmico e profissional; uma fase de
desafiar-se a si mesmo e observar até onde vai sua organização, criatividade,
sensibilidade e paciência de escutar e trabalhar lado a lado com pessoas, em sua
maioria de uma faixa etária jovem e das várias camadas sociais da sociedade, que
trazem consigo suas vivências, interesses, saberes e histórias de vida diferentes.
Esse trabalho parte do componente curricular de Estágio Supervisionado II do
Curso de Graduação em História Licenciatura, do Centro de Ensino Superior do Seridó,
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da professora
Juciene Batista Félix Andrade; através das experiências que foram vivenciadas em sala
de aula do mês de setembro à outubro de 2017, na turma do 9º Ano B, do turno
vespertino, da Escola Estadual Dom José Adelino Dantas, que está localizada no Bairro
Walfredo Gurgel, município de Caicó-RN, feito sob a supervisão do Professor
Veranilson Santos Pereira.
Esse artigo busca mostrar como o estágio supervisionado pode ajudar na
formação dos alunos da licenciatura em História a se reinventar na utilização de vários

483SérgioMedeiros de Almeida é graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do


Norte – UFRN e Bolsista de Monitoria em História. E-mail: sergioalmeida94@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
569

recursos didáticos e midiáticos para tornar as aulas de história mais atrativas e


interessantes. Também buscaremos discutir sobre a história da escola para perceber
os recursos físicos, materiais e pedagógicos disponíveis atualmente; caracterizaremos
o professor orientador buscando compreender suas práticas educacionais como
docente de história; traçaremos um breve perfil da turma, analisando as questões
locais e socioeconômicas; bem como problematizaremos as aulas que foram
ministradas e os recursos didáticos utilizados, e por fim, utilizaremos o aporte teórico
de alguns estudiosos da área do Ensino de História para fundamentar este trabalho e
pensar a própria prática docente em suas várias fases de planejamento e execução.

CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA CAMPO DE ANÁLISE


A respeito da escola que foi realizada o Estágio Supervisionado a Escola
Estadual Dom José Adelino Dantas fica localizada na Rua Projetada S/N, no Bairro
Walfredo Gurgel, que é tida como uma zona periférica da cidade de Caicó-RN e onde os
índices de violência e do crime há aumentado muito nos últimos anos. A Escola foi
construída no governo de José Agripino Maia, tendo como prefeito de Caicó Vivaldo
Silvino da Costa, mais conhecido como (Papa Jerimum), sendo criada através do
decreto, N° 9234 de 12 de Abril de 1985, iniciando também neste mesmo ano as suas
atividades. Recebeu esse nome em uma homenagem feita ao 2º bispo de Caicó, Dom
José Adelino Dantas.
Atualmente a escola conta com um quadro de 44 funcionários e 203 alunos
matriculados, do 4º ao 9° ano, distribuídos em dois turnos. À frente da Direção está a
professora Maria Francineide e a professora Luciene Lucena de Araújo. É considerada
uma escola de médio porte e comporta os níveis de ensino fundamental I e II,
funcionando em seis salas disponíveis, nos horários da manhã com sete turmas e a
tarde com mais quatro turmas.
Um dos diferenciais da escola é que cada sala é ambientada para uma matéria
específica e todas as salas são climatizadas. Na área das dependências administrativas
e de apoio pedagógico, a escola dispõe de sala de direção, secretaria, arquivo, sala de
professores, biblioteca, sala de leitura, laboratório de informática, cozinha, refeitório,
área de recreação e um ginásio poliesportivo. Referente a recursos humanos a escola
dispõem de um quadro completo de professores e funcionários, e recentemente
recebeu um profissional para trabalhar com os alunos com dificuldades de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
570

aprendizagem ou com alguma necessidade especializada, bem como em toda sua


estrutura física possui rampas de acesso para os alunos deficientes físicos ou com sua
mobilidade reduzida.
Sobre os recursos materiais da referida instituição, ela possui nas salas de aula
mesas e cadeiras em bom estado de conservação e nas dependências administrativas,
dispõe de equipamentos como: computadores, televisão, retroprojetor, impressora,
câmera fotográfica, DVD, aparelho de som, jogos didáticos e instrumentos musicais. O
acervo bibliográfico da biblioteca é um pouco insuficiente e não está tão atualizado por
a falta de recursos financeiros. Já a merenda escolar é de boa qualidade e nutritiva. Em
relação aos aspectos pedagógicos da escola, possui um Projeto Político Pedagógico
(PPP) atualizado, e no ano corrente está desenvolvendo um trabalho voltado para
desenvolver a “Cultura de Paz”, bem como periodicamente se realizam reuniões
administrativas e encontros pedagógicos com professores e a equipe técnica da escola.
Através da experiência vivenciada no Estágio Supervisionado II, foi possível
perceber que mesmo que a escola analisada estivesse localizada numa zona onde é tida
como uma zona “periférica” da cidade e onde o crime e a violência hajam aumentado
muito nos últimos anos, a Escola Estadual Dom José Adelino Dantas e sua equipe, tem
buscado se sobressair desses estereótipos buscando oferecer uma acolhedora
recepção aos alunos e visitantes que frequenta esse estabelecimento de ensino, que
apresenta o seu espaço físico em bom estado de conservação e manutenção e que ainda
conta com um ótimo quadro de professores e funcionários, altamente comprometidos
em fazer um trabalho para tornar a escola referência na área da educação pública de
ensino básico e na formação de cidadãos.

CARACTERIZAÇÃO DA TURMA
Mais especificamente já abordando sobre a turma que foi feita o estágio, o 9º
Ano B, do turno vespertino, com apenas 14 alunos, um número pequeno, se comparado
a outras turmas da escola. Desde o primeiro momento os alunos se mostraram ser bem
receptivos e tranquilos, por outro lado, demonstraram um pouco que apáticos e
envergonhados, sem quererem participar das aulas. Para quebrar um pouco o gelo, foi
realizado no primeiro momento um breve questionário para saber o nome, sua idade,
um pouco dos gostos de cada um e se eles gostavam da disciplina de história.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
571

Por meio da coleta e análise desses dados foi possível traçar um pequeno
panorama do perfil da turma, que era composta de alunos da faixa etária de 14 a 17
anos, que em sua maioria gostavam estudar e de utilizar o seu celular, e algo
surpreendente é que mais de 70% afirmaram ter começado a gostar de estudar a
disciplina de história após a chegada do novo professor e que havia alguns que lhes
interessavam conhecer os acontecimentos do passado, enquanto que os outros 30%
disseram que não gostavam da disciplina por muitas vezes não entender o que era
ensinado, de ser chata ou por não gostar de coisas antigas. A respeito do livro didático
usado nas aulas percebemos que ele continha muitos conteúdos e temáticas
importantes para serem debatidas, mas que ao mesmo tempo deixava a desejar no
quesito de como eram apresentados esses conteúdos, de maneira bem resumida e sem
fazer grande discussão sobre o assunto, ficando a cargo do professor em utilizar outros
meios e recursos didáticos para tornar o assunto mais fundamentado teoricamente e
de fácil compreensão do aluno.
Pelo que foi possível identificar boa parte dos alunos eram residentes nas
proximidades da escola e o restante morava nos bairros das redondezas. Sobre o
aspecto socioeconômico não foi possível traçar um perfil minucioso a esse respeito,
mas pelo que foi observado em sala de aula e até do público que frequentava a escola,
percebemos que boa parte desses alunos fazia parte das classes sociais
desfavorecidas. E em relação ao nível de aprendizagem e compreensão dos conteúdos
ministrados, percebemos inicialmente a carência que muitos deles tem com a escrita,
leitura e interpretação de textos.

CARACTERIZAÇÃO DO PROFESSOR
Já a respeito do perfil que podemos traçar do professor Veranilson Pereira dos
Santos, ele é Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e tem especialização em
Geopolítica pela FIP com ênfase em História. Com vinte anos em sala de aula, de uma
trajetória exitosa, o professor mostra o quanto está capacitado e comprometido para
seguir realizando um excelente trabalho como professor de história na rede pública e
privada de ensino.
Mesmo sem ter muito o apoio da coordenação da escola para o planejamento
e execução de sua prática como docente, ele por conta própria estuda e prepara as suas
aulas nos momentos livre em sua casa devido o pouco tempo que há disponível quando

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
572

está na escola. Nas suas práticas de ensino, usualmente busca a participação dos
alunos por meio de perguntas e algumas brincadeiras, faz o uso do livro didático,
Datashow, computador, caixa de som, do próprio uso do quadro de escrever e outros
recursos didáticos quando necessário. Quase sempre ministra suas aulas no próprio
espaço da sala de aula, mas em alguns momentos busca usar o espaço do pátio da
escola, da biblioteca e quando necessário para realizar alguma atividade mais
elaborada, utiliza-se do espaço de um estúdio de rádio que existe na instituição. Em
relação às atividades externas ou de campo para análise de questões da história local
ou do espaço que estão inseridos os alunos, pelo que observamos, elas quase não são
feitas devido a fatores econômicos, à distância e a própria segurança dos alunos.
Ainda podemos perceber pelo discurso do professor que ele tem uma postura
mais conservadora e tradicional e não é adepto das novas inovações. No que se diz
respeito à questão de indisciplina em sala de aula ele mostrou-se ser bem impositor
com as regras que estabelece em sala de aula desde o início de cada ano letivo, para
aqueles alunos que fogem à regra, ele faz uso de métodos como o de encaminhar o
aluno para a sala da coordenação, para que lá ele realize alguma atividade preparada
pelo professor com antecedência.
Em relação às dificuldades de aprendizagem, o professor, geralmente no início
de cada ano busca receber das mães desses alunos algum relatório médico para que
esse aluno possa ter um atendimento especializado no horário oposto, ou se não, ao
longo do ano o professor junto com a coordenação buscam identificar os outros alunos
que tenham algum outro tipo de déficit de aprendizagem, para assim tomar as medidas
cabíveis para auxiliar em sua aprendizagem e inclusão.
Um dos pontos que mais nos chamou atenção foi no que se diz respeito ao
processo de avaliação do ensino-aprendizagem e os critérios utilizados pelo professor.
Percebe-se que ao longo do bimestre o professor faz uma diversidade de avaliações,
como por exemplo: “atividade de pasta” (uma espécie de minipesquisa sobre alguns
assuntos trabalhados em sala de aula) que no final do bimestre o professor faz o
sorteio daquelas atividades que serão avaliadas por ele; dependendo do tempo
disponível se realiza apresentação de um seminário ou de uma paródia sobre o assunto
da matéria e para completar a nota quantitativa do bimestre se realiza uma prova
subjetiva e um simulado objetivo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
573

Algo que não se pode deixar de citar é que o professor para além do método
quantitativo busca observar aqueles alunos que participam nas aulas, interagem,
aprendem e estão acompanhando bem a matéria; ele faz a dispensa de suas avaliações,
mas que na realidade não é algo que sempre ocorre e são poucos os alunos em toda a
escola que entra dentro desse critério, que mais que tudo serve como um tipo de
incentivo para os demais quererem participar e aprender o que é ensinado em sua
disciplina.
Como critérios básicos para avaliar cada aluno ele não só observa sua
aprendizagem, mas também a responsabilidade de cada aluno em cumprir com os
prazos de entrega de trabalho, e, acima de tudo, observa como é o caráter do aluno (se
ele colou ou fraudou em algum exame), caso o aluno desrespeite esse critério, o
professor dá algumas punições como uma forma de buscar ajudar esse aluno na
construção de seu caráter como um indivíduo consciente de seus atos dentro da escola
e na sociedade.

AULAS DE OBSERVAÇÃO E DE PARTICIPAÇÃO


Muita ansiedade e expectativas foram geradas para o primeiro dia de
observação das aulas. Sobre as primeiras impressões, percebemos que o professor
estava dando uma aula sobre o período da Era Vargas. Ele fez uso do projetor de slides
e do livro didático. Abordou de maneira geral e mais específica o conteúdo. Prendia
bastante a atenção dos seus alunos, pois boa parte deles faziam anotações da matéria,
por outro lado, a turma não participava da discussão e nem realizava perguntas ou
comentários sobre o que estavam aprendendo, eram todo tempo muito calados.
O professor a cada momento buscava trazer o assunto que estava trabalhando
mais próximo da realidade do aluno, mesmo que às vezes utilizasse alguns conceitos
que já estão em quase desuso na história como, por exemplo: “a Velha República”. No
geral esse primeiro contato foi muito importante para conhecer um pouco da turma e
de como o professor ministrava suas aulas.
Na seguinte aula o professor passou uma atividade no quadro para que os
alunos realizassem em sala, percebia-se o interesse da maioria dos alunos em fazer a
atividade, devido um dos métodos avaliativos utilizados pelo professor ser a
participação nas atividades em sala de aula e trabalhos de pesquisa feitos em casa.
Mesmo que tenha sido só apenas dois momentos para observar as aulas do professor

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
574

e a turma, eles foram essenciais para traçar um breve perfil de ambas as partes e assim
planificar os próximos encontros.
Para se pensar como planificar e preparar as aulas que seriam ministradas no
Estágio Supervisionado de História, ao ler a introdução do livro “História na sala de
aula”, escrito por Leandro Karnal, percebemos que ele aborda sobre a questão de se
pensar a renovação do ensino de História,

Há algumas décadas, houve um equívoco expressivo na modernização


do ensino. Julgou-se que era necessário introduzir máquinas para se ter
uma aula dinâmica. Multiplicaram-se os retroprojetores, os projetores
de slides e, posteriormente, os filmes em sala de aula. [...] Que seja dito
e repetido à exaustão: uma aula pode ser extremamente conservadora
e ultrapassada contando com todos os mais modernos meios
audiovisuais. Uma aula pode ser muito dinâmica e inovadora utilizando
giz, professor e aluno. Em outras palavras, podemos utilizar meios
novos, mas é a própria concepção de História que deve ser repensada.
(KARNAL, 2009, p.9)

Ou seja, é de suma importância que sempre o professor de História possa está


pensando enquanto sua ação pedagógica e de que maneira pode tornar suas aulas mais
dinâmicas, atrativas e compreensivas para os seus alunos. Mas especificamente
tratando da temática de Planejamento de Ensino, a autora Crislane Barbosa Azevedo
afirma que,

É importante, do ponto de vista do ensino, que o professor planeje,


reflita sobre sua ação, pense sobre o que faz, antes, durante e depois.
Planejar no ensino significa, portanto, pensar sobre a própria ação,
pensar refletidamente. [...] Refletindo sobre os objetivos, os conteúdos,
a contextualização da matéria, os procedimentos metodológicos, a
avaliação do aluno e do próprio professor. (AZEVEDO, 2013, p.5)

Ainda a autora mostra que o planejamento tem como características básicas:


“estabelecer caminhos que possam nortear mais apropriadamente a execução da ação
educativa, prever o acompanhamento e a avaliação da própria ação e, obviamente,
evitar a improvisação” (2013, p.7). Pautado por essas perspectivas buscamos fazer a
cada semana o planejamento de um Plano de Aula que pudesse contemplar os
objetivos, os conteúdos e as atividades condizentes com os interesses e as
necessidades de aprendizagem da turma; deve-se ressaltar que como sempre os

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
575

imprevistos acontecem, tentamos ser flexíveis com os planos, caso ocorresse alguma
mudança.

A ação do professor atento às particularidades dos seus alunos e da


escola de Educação Básica na qual atua, vai muito além do trabalho com
os conteúdos específicos da sua disciplina escolar. Ser docente é ser um
profissional que constrói planejamento para suas atividades, executa
metodologias, reproduz conteúdos, interpreta conteúdos e produz
conhecimentos, observa e interpreta comportamentos, avalia
processos, elabora e põe em prática ações que levam seus alunos a
diferentes processos de apropriação de conhecimentos, observa e
avalia assim como produz diferentes experiências cognitivas junto a
seus alunos. A complexidade que caracteriza o sujeito como um
profissional de docência não pode restringir-se à saberes disciplinares.
(AZEVEDO, 2013, p.22-23)

Tendo em vista que o planejamento é uma fase muito importante para o


docente tomar várias decisões acerca dos recursos e procedimentos técnicos, didáticos
e metodológicos que irá lhe orientar em suas aulas; escolhemos por em cada encontro
realizar aulas expositivas que favorecessem a participação e o debate dos alunos nas
temáticas trabalhadas; na sua aprendizagem e apropriação dos conteúdos e buscando
que eles tivessem experiências satisfatórias nas aulas de História. Optamos por
também em cada aula fazer o uso de fontes como um recurso didático em suas
diferentes linguagens e possibilidades metodológicas.
A respeito das duas primeiras aulas que ministramos, trabalhamos com a
temática “A Era Vargas e a construção de um sentimento nacionalista.” Ao longo da
aula (que foi feita com o auxílio do livro didático, do computador e do projetor de slides),
buscamos identificar os motivos que desencadearam a entrada de Getúlio Vargas no
poder em 1934 e as principais ações desenvolvidas em seu primeiro governo provisório.
Depois, demonstramos como foi o Golpe que Vargas executou para permanecer no
poder e instaurar uma ditadura no Brasil; problematizando as consequências trazidas
para a população dessa época.
Realizamos uma atividade dividindo a turma em grupos de três componentes
cada um, para fazer a análise das músicas “Sob o mesmo céu”(2004) de Lenine, e da
música “Aquarela do Brasil”(1939) de Ary Barroso, para eles compararem como em
diferentes temporalidades a música foi usada para representar um sentimento
nacionalista, ora unificador ora cheio de diversidade. A respeito do uso da música no

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
576

ensino das aulas de História, o autor Marcos Napolitano, mostra que a música popular
tem sido preferida pelos professores pela sua característica indubitável de ser “a
intérprete de dilemas nacionais e veículos de utopias sociais; canta o futebol, o amor, a
dor, um cantinho e o violão.” (NAPOLITANO, 2002, p.7)
E ao final da atividade cada grupo teve que responder a pergunta “O que é Ser
Brasileiro?”, em uma folha de cartolina, expressando sua opinião livremente sobre o
assunto. Pelos trabalhos que foram entregues, dava-se para perceber o quanto os
alunos estavam atentos e eram críticos ao que tem acontecido na atual crise política
que vive o país, dificultando a eles distinguirem apenas uma coisa que caracterize o “Ser
Brasileiro”. Como se tratou de uma atividade grupal, os alunos foram avaliados de
acordo com sua participação e desempenho na execução da atividade proposta.
Já na semana seguinte por motivo de uma reunião administrativa não foi
possível ministrar aula, mas podemos participar dessa reunião e ao longo dela foram
abordados temas referentes ao desempenho e comportamento dos alunos em cada
turma/ disciplina, como também observaram os desafios que a escola, os funcionários
e os alunos hão sofrido nos últimos tempos com a forte ameaça das drogas e do crime
organizado, muito presente nas redondezas da própria instituição. Nesse encontro foi
possível ter um panorama geral dos vários desafios e problemas que um professor vai
encarar dentro e fora da sala de aula ao longo de sua trajetória como educador.
Na seguinte aula tratamos de debater sobre a “Segunda Guerra Mundial”, sob
um olhar mais social e percebendo as principais vítimas desse conflito. Além da
explanação oral do conteúdo programado, utilizamos o auxílio do Datashow para
mostrar relatos de sobreviventes e vítimas da Segunda Guerra Mundial e algumas
imagens do período da II Guerra Mundial, como também problematizamos e discutimos
a letra da música “A Rosa de Hiroshima” (2000) de Ney Matogrosso, para fazer os
alunos refletirem como esse período da Segunda Guerra Mundial deixou marcas de
destruição e horror que jamais serão apagadas da história da humanidade. Ainda
buscamos evidenciar e dar voz aquelas pessoas que foram as principais vítimas desse
grande conflito, tentando relacionar e debater como muito do que as vítimas do
Holocausto sofreram se assemelha com o que tem acontecido diariamente há milhares
de pessoas que são vítimas de algum tipo de preconceito, perseguição ou massacre,
seja por sua cor, etnia, religião, opção sexual ou ideologias políticas ou filosóficas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
577

Percebemos ao ministrar essa aula o quanto os alunos estiveram atentos e


quiseram participar da discussão. Esse interesse de querer participar da aula, a autora
Flávia Eloisa Caimi mostra que muitas vezes por o professor querer abarcar “toda
história”, é comum que eles abdiquem das metodologias participativas, dialogadas e
em grupo, por querer um melhor aproveitamento do tempo em sala de aula, mas que
na verdade o professor deve possibilitar que esse aluno seja um sujeito ativo e construa
suas próprias formas e categorias de pensamento. (2006, p.25-26)
Podemos dizer que um dos momentos mais marcantes do debate que
propomos na aula, foi quando uma das alunas levantou a mão e na frente de toda a
classe expressou os desafios que ela própria passava, até mesmo em sua família,
quando abordou sobre a escolha de sua opção sexual. Nesse momento vimos o quanto
é importante o professor trabalhar em suas aulas a questão do respeito às diferenças
dentro da sociedade, seja qual for à cor, a etnia, o sexo, a religião, o credo, o seu poder
aquisitivo ou alguma limitação física, auditiva, visual ou intelectual, que uma pessoa
venha apresentar.
Também nesse momento podemos perceber o quanto o professor e educador
devem possibilitar o interesse de participação de seus alunos, de ser sensíveis e está
preparado para trabalhar com temáticas que muitas vezes na sociedade é visto com
certos “tabus”. A respeito da própria formação docente Caimi chama a atenção dos
professores para as algumas coisas que são requeridas deles, tais como:

1.Conhecer os interlocutores em aula, reconhecer seu lugar social, suas


experiências prévias, suas práticas cotidianas, suas referências
culturais, seus saberes cognitivos, para constituir uma proposta de
trabalho que lhe seja significativa; 2.Conhecer diversas possibilidades
de produção e de expressão do conhecimento histórico, de modo a
operacionalizar diferentes estratégias para viabilizar as
aprendizagens em sala de aula e fora dela, superando os limites
impostos pelo exclusivo uso do livro didático e pelo verbalismo vazio;
3.Conhecer os estudos sobre desenvolvimento cognitivo e
aprendizagem no campo da sociologia, da psicologia e da antropologia,
para entender como as crianças e os adolescentes pensam, aprendem,
se comportam, constroem conceitos e noções espaços-temporais.
(CAIMI, 2006, p.30-31)

Ou seja, a autora deixa claro que a formação docente é algo que requer tempo
para se consolidar e o comprometimento do professor em conhecer seu alunado, de
está sempre buscando renovar-se enquanto sua prática educativa através da busca de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
578

outros referenciais teóricos que lhe ajude a construir e consolidar suas práticas
cotidianas no espaço educacional.
Dando continuidade a nossa discussão, em uma aula posterior, que foi uma das
mais desafiantes e exaustivas, por se tratar sobre “A participação do Brasil na II Guerra
Mundial” e da “Guerra Fria”, buscamos abordar os vários acontecimentos desse período
que o mundo esteve dividido entre um lado Capitalista liderado pelos EUA e um lado
Socialista sob a liderança da ex-URSS, como também buscamos mostrar as várias
mudanças culturais e sociais que estavam ocorrendo nessa época na sociedade.
Por se referir de temas e acontecimentos que estão presentes nos livros
didáticos, mas que quase sempre é difícil o professor da rede básica de ensino chegar a
debatê-los pela falta de tempo, suas próprias escolhas e os atropelos que sempre
existem no calendário escolar. E em nossa prática de ensino, logo depois que
debatemos sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, buscamos inovar
um pouco, de uma maneira não tão casual apresentamos para os alunos um episódio
do “Pica-Pau”484 sobre a corrida espacial para então começar a falar do momento
histórico denominado como a Guerra Fria. Era possível perceber o estranhamento
inicial dos alunos, mas ao propor uma atividade de análise do episódio em questão, eles
começaram ao longo da aula relacionar uma coisa com a outra, possibilitando uma
melhor compreensão e fixação do conteúdo.
Trabalhando nessa mesma perspectiva de utilização de outros recursos
didáticos nas aulas de História, a autora Circe Bittencourt485, mostra que a concepção
de documento abarca uma variedade de marcas e registros produzidos pelas diversas
sociedades ao longo do tempo, e, que o professor na atualidade pode fazer o uso de
uma infinidade de recursos disponíveis, como por exemplo: livros didáticos, filmes,
excertos de jornais e revistas, histórias em quadrinhos, músicas, mapas, pinturas,
cartas e etc. Em relação a escolha de quais materiais o professor deve escolher
Bittencourt, aborda que a escolha dos materiais vai depender das concepções que o
próprio educador tenha sobre o conhecimento e da maneira como os alunos irão
aprender e a formação que lhe está sendo oferecida. (2011, p.333)

484 Episódio do Pica-pau na Lua, Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=2s7Tsp0VRAI&t=4s Acesso: 09 de outubro de 2017.
485BITTENCOURT, Circe. Usos didáticos de documentos. In:__ Ensino de História: fundamentos e

métodos. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2011. p.327-350.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
579

Após o entendimento da importância do uso de outros materiais didáticos para


tornar o assunto que estávamos debatendo ainda mais atraente e próximo dos alunos,
apresentamos algumas capas de Histórias em Quadrinhos (HQ’s)486 da Marvel e da D.C.,
que foram lançadas e publicadas no período da Guerra Fria, para assim debatermos
como historicamente alguns personagens foram heroicizados e construídos para
fundamentar e difundir a ideologia politica e social de determinado governo ou
instituição no período pós-guerra. Mesmo que o tempo tenha sido pouco para trabalhar
na análise de dos principais HQ’s desse período, percebemos o interesse e atenção que
os alunos tiveram quando levamos algo mais próximo de seus gostos.
Nas duas semanas seguintes não foi possível ministrar as últimas aulas, pois o
professor realizou uma avaliação de encerramento do bimestre para avaliar o
rendimento dos alunos, que por sinal, os alunos não se saíram tão bem quanto o
esperado. E na outra, devido à falta de água, não houve aula, mas a Coordenação
Pedagógica da escola realizou uma reunião para se debater algumas questões pontuais
da escola e sobre a realização no mês de novembro de uma Mostra à comunidade
escolar do “Projeto Cultura de Paz nas Escolas” que foi desenvolvido nos últimos
meses na referida escola.
Como cada coisa um dia chega ao seu fim, à última aula foi muito aguardado
por mim e pelos alunos, pois era o momento onde iriamos ter o privilégio de ensinar
sobre o período transitório dos governos democráticos passando para a Ditadura Civil-
Militar do Brasil e mostrando de maneira geral o processo de redemocratização do
Brasil. Por se tratar de temas amplos e de várias discussões buscamos mais em
trabalhar com o período da Ditadura Militar no Brasil, buscando perceber quais foram
os motivos, os participantes e que mudanças ocorreram na sociedade brasileira nesse
período.
Logo para dar início a aula, fizemos a seguinte indagação: “Será que não houve
Ditadura Militar no Brasil?” e depois perguntamos a cada aluno se eles eram a favor ou
contra a volta de um regime de governo de caráter militar e ditatorial. No momento
inicial do debate, muitos se mantiveram calados sem expressar suas opiniões,
enquanto que outros utilizaram alguns argumentos para defender ou ser contra a esse
tipo de governo. Após esse debate inicial e do uso do próprio Datashow para auxiliar na

486 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/quadrinhos-e-guerra-fria-gibis-


retratam-o-conflito-entre-eua-e-urss.htm Acesso: 09 de outubro de 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
580

explanação da aula; também levamos para a sala de aula relatos de algumas vítimas de
tortura da Ditadura Militar no Brasil para que eles lessem. A respeito de como os alunos
reagiram e se sentiram no decorrer dessa atividade, percebia-se o quanto eles estavam
assustados e impressionados com tantas torturas e atrocidades que foram aplicadas
nesse período a aquelas pessoas que eram contrárias aos ideais do regime militar.
E, ao final da aula, dividimos a turma em dois grandes grupos para poder
escutar e fazer a análise das letras das canções de protesto, “Pra não dizer que não
falei das flores” (1968) de Geraldo Vandré e da música “É proibido proibir” (1968) de
Caetano Veloso, buscando perceber de que maneira esses cantores e outros
compositores dessa época através do uso de alegorias e metáforas nas letras das
músicas, fizeram críticas contra o governo da Ditadura Militar sem que fossem pegos
pelos censores do Estado. Pelo pouco tempo que eles tiveram para realizar a última
atividade, ainda assim percebemos o quanto os alunos estavam interessados em
compreender e aprender sobre esse período tão sombrio da História brasileira, tendo
em vista que nos últimos tempos se há acirrado muito o debate na mídia e nas redes
sociais pela defesa da volta desse tipo de regime de governo.
A Professora Maria Auxiliadora Schmidt quando escreveu sobre a importância
do ensino da História Local para falar sobre do processo de construção da consciência
histórica fez uso do que o historiador Jörn Rüsen propôs, quando afirmou que a
consciência histórica funciona como um “modo específico de orientação” nas situações
reais da vida presente, tendo como função específica ajudar o aluno e o professor a
compreender a realidade passada para compreender a realidade presente.

Portanto, a consciência histórica tem uma “função prática” de dar


identidade aos sujeitos e fornecer à realidade em que eles vivem uma
direção temporal, uma orientação que pode guiar a ação,
intencionalmente, por meio da mediação da memória histórica. (RÜSEN,
1992, p.29)

Como futuros professores e educadores, é de fundamental importância levar


para a sala de aula e fazer esse e outros tipos de debates, para que possibilite ao aluno
conhecer a sua História e se construir sua consciência como um sujeito histórico, crítico,
responsável e consciente pela sua própria trajetória e pela defesa dos direitos
fundamentais de cada cidadão.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
581

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, este segundo Estágio Supervisionado de História foi de fundamental
importância para a nossa formação como um futuro docente na área de Ensino de
História. A pesar de todos os desafios que tivemos ao longo dessa maravilhosa
experiência de entrar em sala de aula e se desbravar no mundo de jovens adolescentes
em sua fase de formação; sentimentos de gratidão, felicidade, saudade, realização e
dever cumprido são o que mais sentimos neste momento.
Sabemos que essa foi apenas uma fase curta de aprendizagem e novas
descobertas, se comparado ao longo caminho que ainda a carreira de Professor de
História nos aguarda. Com os avanços tecnológicos e midiáticos, nas últimas décadas,
aumentaram as discussões sobre o Ensino de História, vimos e atestamos o quanto o
professor de História deve-se está reinventando enquanto a sua prática educativa, na
maneira como faz o planejamento de suas aulas, no modo como ele trabalha com as
diferenças sociais e culturais existentes no entorno da comunidade e de seus alunos, e
as formas e métodos que ele utiliza os novos recursos didáticos e metodológicos em
suas aulas de História, com o intuito de gerar o debate e interesse de seus alunos, sua
apropriação dos conteúdos e mais que tudo, sua aprendizagem e reconhecimento como
um sujeito histórico.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Crislane Barbosa. Planejamento docente na aula de história: princípios e
procedimentos teórico-metodológicos. In: Revista Metáfora Educacional, Feira de
Santana, n.17, jun. 2013.p.4-28.

BITTENCOURT, Circe. Usos didáticos de documentos. In:__ Ensino de História:


fundamentos e métodos. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2011. p.327-350.

CAIMI, Flávia Eloisa. Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões sobre ensino,
aprendizagem e formação de professores de História. In: Revista Tempo. V. 11, nº 21, 2006.
p. 17-32

KARNAL, Leandro. Introdução. In:__ História na sala de aula: conceitos, práticas e


propostas. 5;ed., 2ª reimpressão- São Paul: Contexto, 2009.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.

RÜSEN, John. El desarrollo da la competência narrativa em el aprendizaje histórico. Uma


hipótesis ontogenética relativa a la consciência moral. Propuesta Educativa, Buenos
Aires, n. 7, out. 1992.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
582

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. O ensino de História Local e os Desafios da Formação da


Consciência Histórica. In GASPARELLO, Arlete Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza;
MONTEIRO, Ana Maria (orgs.). Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de
Janeiro: Mauad X 2007. p.187-198.

Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/quadrinhos-e-guerra-fria-


gibis-retratam-o-conflito-entre-eua-e-urss.htm Acesso: 09 de outubro de 2017.

BARROSO, Ary (1939). “Aquarela do Brasil”. Ary Barroso.

LENINE (2004). “Sob o mesmo céu”. Lenine.

MATOGROSSO, Ney (2000). “A Rosa de Hiroshima”. Ney Matogrosso.

PAU, Pica. Episódio de Pica Pau na lua. Youtube. 6 de fev de 2016. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=2s7Tsp0VRAI&t=4s> Acesso: 9 de out de 2017 .

VANDRÉ, Geraldo (1968). “Pra não dizer que não falei das flores.” Geraldo Vandré.

VELOSO, Caetano (1968). “É proibido proibir”. Caetano Veloso.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
583

EM DEFESA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:


A CONTRIBUIÇÃO DO PIBID NA PERMANÊNCIA
UNIVERSITÁRIA

Isabela da Silva Ferreira487


José Ricardo Paulo de Lima488

INTRODUÇÃO
O processo de formação de alunos nas universidades trás a tona o debate acerca
da construção da identidade deste para com a sua futura profissão e os meios por quais
a graduação contribuirá nesse transcurso durante a vida universitária. São diversos
debates, experiências, questionamentos, exemplos, aprendizagens, etc. ao longo do
curso superior que farão com que o aluno se reconheça e seja reconhecido pelos seus
pares enquanto profissional da sua área específica.
Pensando isto, diferentes espaços vinham refletindo sobre a formação
profissional dos universitários de forma mais qualitativa. Dentre estes, o avanço em
políticas públicas para a formação superior, principalmente no Governo Lula (2002-
2010) trouxeram contribuições de grande relevância para um ensino superior mais
democrático e com a preparação de futuros profissionais qualificados que estejam
inseridos na sociedade brasileira. Programas como o ProUni (Universidade para Todos),
a Universidade Aberta do Brasil (UAB), o Reuni (Programa de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais) e para o caso desta pesquisa, o PIBID (Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência), revelam a necessidade de se expandir
os limites da universidade e de se pensar a formação destes recentes graduandos.
Entretanto, a conjuntura do Brasil mudou. O atual Presidente da República,
Michel Temer, tem assumido políticas neoliberais no seu governo, que se apresentam
para a sociedade com privatizações de empresas estatais, afrouxamento das leis
trabalhistas, não diálogo com os movimentos sociais e a PEC do teto dos gastos
públicos que congela por vinte anos os investimentos nas áreas da saúde, segurança e
educação e que já começa a reverberar no dia a dia. Nas universidades, bolsas de

487 Licencianda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e ex-bolsista de
iniciação à docência - PIBID\UFRN\História.
488 Licenciando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e ex-bolsista de

iniciação à docência - PIBID\UFRN\História.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
584

assistência estão sendo reduzidas, setores estão recebendo menos verbas e os


estudantes que já possuíam dificuldades em conseguir concluir seu curso superior,
agora, sentem ainda mais empasses na concretude da graduação.
Neste sentido, essa pesquisa se coloca a partir da necessidade de se defender
políticas públicas voltadas a uma educação de qualidade para os graduandos, neste
caso, para formação de professores de História a partir das experiências enquanto
bolsistas do PIBID. Existe uma necessidade de se repensar a formação dos professores
nas licenciaturas e carecemos de relatos como este para refletirmos a experiência do
PIBID nesse processo de formação. É a partir disso que, lançamos a problemática sobre
como o programa PIBID - Subprojeto História contribui para a compreensão do
exercício docente em História e consequentemente para a permanência dos
graduandos na licenciatura.
Para responder tal questionamento partiremos da análise de estudos referentes
à formação de professores de História na atualidade e de documentos relativos aos
objetivos e funcionamento do PIBID, além de relatar nossas experiências enquanto
bolsistas do projeto no período de 2015 a 2017 na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte - UFRN - Campus Central, Natal- RN.
Nosso objetivo ao realizar esse estudo, reside em ponderar sobre a formação de
professores na graduação em História e principalmente, compreender como o
programa de iniciação à docência pode contribuir na permanência universitária dos
licenciandos em História, na medida em que ele passa a compreender o exercício da
docência na área.

CONHECENDO O NOVO MUNDO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR


Entrar na universidade ainda não é uma tarefa fácil, permanecer nela também
não. Na sociedade que vivemos, da juventude é exigido decidir qual profissão irá seguir
logo após concluir o Ensino Médio. Apesar de não ser apenas este o perfil que está na
universidade, são os jovens que ocupam um significativo espaço universitário. Estes
entram na universidade ainda sem ter as certezas que a sociedade exige deles e passam
a vivenciar dessa forma os desafios da vida acadêmica.
Muitos destes ingressos vão para a área da licenciatura. Segundo a pesquisa
realizada em 2016 pelo Instituto Nacional de Estudo e Pesquisas Educacionais (INEP),
estes representaram um quinto das matrículas totais na graduação, somando 20%

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
585

desse total489. Estes matriculados, agora estudantes da graduação, deverão estar se


preparando para o exercício docente na Educação Básica e deverão ter uma base
durante seu curso que os auxilie na construção da sua identidade e prática profissional
enquanto professor.
Entretanto, o que se tem avaliado no cenário brasileiro, é a dificuldade que se
tem tido na formação dos professores. Se detendo à área da História, diversos
trabalhos vêm sendo desenvolvidos por doutores, graduandos, bolsistas PIBID, etc.
sobre a formação de professores em História. Oliveira (2003); Costa (2010); Cerri (2013);
Schimidt (2015) avaliam como está se dando essa formação nas licenciaturas em
História nas universidades brasileiras.
Oliveira (2003) em seu trabalho, pondera que:

Na sua maioria, os cursos de graduação têm assumido uma forma de


leitura/interpretação/debate de textos, e não de pesquisa – e isto tem
transformado o programa da disciplina em algo determinado desde
sempre, pronto e acabado (...) Assim, currículos e programas são
entendidos como informações buscadas em lugares estabelecidos que
os determinam. Cada disciplina daria conta de uma parte que, somada a
outras, dar-nos-ia todo o conhecimento pretendido de um formado em
História. (OLIVEIRA, 2003: 241).

A historiadora ao fazer tal análise, indica que existem problemas na atual


formação de professores relacionados principalmente a duas questões. A primeira diz
respeito à dicotomia das disciplinas da graduação estarem divididas em dois grupos
principais: as matérias de “conteúdo” ou “específicas” da história e aquelas ditas
“pedagógicas”. As primeiras, no caso da UFRN, são oferecidas pelo Departamento de
História, as segundas, pelo Departamento de Educação. O diálogo entre estes dois
grupos é quase inexistente, enquanto os docentes da História dão a teoria, os
conteúdos conceituais, os docentes da Educação dão as práticas desse conteúdo
aprendido.
Tal lógica dificulta o aprendizado do aluno, porque este, muitas vezes, não
consegue visualizar o diálogo destas matérias na sua prática docente. Sobre isso,
Oliveira (2003) ainda contribui:

489 INEP. Censo Educação Superior 2016. Disponível em:


http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/apresentacao/2016/apresentacao_ce
nso_educacao_superior.pdf. Acesso em: jun. 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
586

Também os profissionais de História, responsáveis pelas, assim,


erroneamente, chamadas disciplinas de conteúdo, não se preocuparam,
na sua imensa maioria, em debater, ver a importância e produzir
algumas reflexões sobre como o conhecimento histórico definiria, a
partir da sua própria produção, o que e como deve ser ensinado e
aprendido esse conhecimento. (OLIVEIRA, 2003:242).

Ou seja, além da prática e teoria do ensino de história estarem separados, muitos


professores das disciplinas “conteudistas” não se atentam para pensar conjuntamente
com os alunos sobre como o método e o conhecimento histórico são basilares para um
ensino de História significativo na Educação Básica, na medida em que são estes que
ditam quais devem ser os objetivos do profissional de História em suas áreas de
atuação, incluindo o ensino.
A segunda questão diz respeito a produção do conhecimento durante a
graduação. Os discentes ao adentrar o espaço da universidade têm novos conteúdos e
formas de aprender. Entretanto, o que tem se visto no curso de História é uma extensão
dos problemas no ensino de História na Educação Básica. Os discentes não
compreendem porque estão estudando determinado assunto. Como tal conteúdo
contribui na minha formação profissional? Assim como os alunos da Educação Básica
não têm compreensão de como a história auxilia na sua formação social, os licenciandos
não vêm a utilidade de alguns conteúdos debatidos na graduação para a sua educação
profssional.
Podemos dizer que isso é culpa dos estudantes? Se o aluno não se sente sendo
preparado para a sua profissão ele é o culpado do processo? As licenciaturas em
História precisam formar estes futuros profissionais. As avaliações passadas para os
alunos que exercitam a prática enquanto futuros docentes não adiantam se durante
todo o semestre não foi debatido como a nossa ciência de referência é fundamental
para a construção de uma produção de conhecimento, tanto na Educação Básica como
Superior, que seja investigativa, problematizadora e que traga contribuições para a
realidade dos sujeitos.
Uma pesquisa realizada pelo Centro Acadêmico de História Potiguaçu (CAHISP),
do curso de História da UFRN, realizada em 2017, revelou alguns dados importantes
sobre a formação de graduandos do curso. A pesquisa tinha como objetivo avaliar a
saúde mental dos estudantes a partir de um formulário na ferramenta do Google e que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
587

deveria ser levado ao Departamento de História da UFRN com o objetivo de se conhecer


o perfil da graduação e se repensar a formação no curso a partir dos relatos dos
estudantes. A pesquisa não chegou a ser publicada, mas os docentes tiveram acesso a
ela. Responderam 114 alunos da graduação em História - UFRN.
Alguns dados da pesquisa mostram o nível de desânimo dos licenciandos com a
atual forma com que a graduação segue. Mais de 50% dos alunos já pensaram em
desistir do curso, entre os principais motivos se encontra a desmotivação com o curso,
a sobrecarga de trabalhos, atividades, leituras, etc.

Somadas as respostas “sim” e “na maioria das vezes”, a taxa de alunos que já pensaram em
desistir do curso chega a 67,5%.

Ao serem questionados sobre o que eles, enquanto discentes, sentiam falta na


graduação, as respostas principais foram aulas que objetivem a sua formação
enquanto profissional de História, outras metodologias de aula e discussões que
dialoguem com a atualidade e com a sociedade fora da academia.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
588

O
Gráfico apresenta dos temas que os alunos sentem falta em sala de aula.

Muitas respostas a estas questões aparecem de forma desmotivadora por parte


dos alunos. A resposta seguinte resume um pouco das problemáticas que viemos
apontando sobre a formação de professores no curso de História, neste caso, na UFRN:

O curso de história, da forma que está estruturado, forma leitores e


só. Falta discussão com a atualidade, falta incentivo ao uso da história
na vida prática, falta formação política para o uso da história, falta
dedicação para formação de educadores, falta diálogo entre
pedagogia e teoria da história, falta práxis, falta incentivo à pesquisa,
falta incentivo à pesquisa em ensino de história, falta conexão entre
os componentes curriculares, falta trabalho interdisciplinar entre os
professores, faltam incentivos à produção local (de produtos, de
narrativas históricas para fora da academia, de reflexão, de eventos),
faltam cursos de extensão profissionalizantes, falta diálogo com
mercado de trabalho (como professor ou como historiador), (...) falta
diversidade metodológica nas aulas, as vezes parece que falta até
planejamento, etc. (ANÔNIMO).

Resposta anônima para o questionário elaborado pelo Centro Acadêmico de


História Potiguaçu - UFRN

Considerando todos esses impasses e dificuldades que as graduações vêm


passando na formação de futuros professores, iniciativas de políticas públicas como a
do PIBID se colocam como importantes para repensarmos a educação de profissionais

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
589

que compreendam o seu ofício e seu objetivo, que no caso do professor de História na
Educação Básica, reside na formação de cidadãos conscientes do seu tempo.

O PROGRAMA DE INICIAÇÃO À DOCÊNCIA


O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) é uma política
pública fomentada pela Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) que tem como objetivo o aperfeiçoamento na formação de
professores, incentivando o diálogo entre as licenciaturas e as escolas públicas do
Ensino Básico. O programa também concede bolsas remuneradas para os alunos
participantes do projeto, o que acaba por ser também uma política de permanência
estudantil importante para o graduando conseguir se dedicar às atividades do
programa.
Os objetivos do programa são assim apontados pela CAPES:

● Incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação


básica;
● contribuir para a valorização do magistério;
● elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de
licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e
educação básica;
● inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de
educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e
participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas
docentes de caráter inovador e interdisciplinar que busquem a
superação de problemas identificados no processo de ensino-
aprendizagem;
● incentivar escolas públicas de educação básica, mobilizando seus
professores como coformadores dos futuros docentes e tornando-as
protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério; e
● contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à
formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas
nos cursos de licenciatura (CAPES).

A partir disso, observamos como o PIBID visa refletir sobre a formação de


professores e a sua valoração. Ser professor não é um “talento” com qual nascemos:
construímos esse saber a partir da reflexão e prática do exercício docente. Dessa forma,
entende-se como o projeto de iniciação à docência auxilia os novos licenciandos que
acabaram de se inserir na universidade a estarem refletindo e conhecendo a prática do
ser professor. Neste espaço, os graduandos vivenciam a experiência da comunidade

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
590

escolar já no início do curso, algo que o estágio supervisionado de formação de


professores só irá trazer no final da graduação.
O projeto no qual nós, ex-bolsistas PIBID, participamos, é referente ao edital da
CAPES 01\2013. O projeto se deu no início de 2014 e durou os quatro anos referentes
ao edital, até o início de 2018. As coordenadoras que submeteram o projeto referente
ao PIBID\História\UFRN foram as professoras doutoras do Departamento de História
da UFRN, Juliana Teixeira Souza e Margarida Maria Dias de Oliveira. Ao indicarem o
Plano de Trabalho e os objetivos do projeto, as coordenadoras estabelecem:

O princípio para a formação do licenciando apresentado no Projeto


Pedagógico do Curso de História está de acordo com as Diretrizes
Curriculares e é coerente com a posição defendida pela Associação
Nacional de História no sentido de considerar que a produção do
conhecimento histórico deve nortear a atuação do profissional de
História em todas as suas dimensões. Isso significa ensinar História
como se faz História, seguindo o princípio que rege a produção
metodizada da pesquisa histórica, e orientando as problemáticas de
ensino-aprendizagem na perspectiva do tempo presente, em
consonância com a experiência local dos alunos. (EDITAL 01\2013 -
PIBID\UFRN\HISTÓRIA).

Ao afirmarem que o professor de História deve ensinar História como se faz


História, o subprojeto PIBID\UFRN\História toma um posicionamento de como se deve
se dar a formação dos docentes em História e consequentemente o ensino de História
na Educação Básica: ensino-aprendizagem a partir da especificidade da construção do
conhecimento histórico.
A construção do conhecimento histórico é dotada de sentido. Entendemos que a
sociedade apresenta demandas de orientação no tempo e de compreensão de sua
própria realidade, e que a história é o meio pelo qual os historiadores lançam perguntas
visando respostas para essas carências. Portanto, estes desenvolvem seu trabalho
condicionando-o a investigar o passado, refletir sobre o presente e dar projeção ao
futuro a partir da investigação de fontes. Nessa prática do profissional da história,
compartilhamos da assertiva de Antoine Prost de que:

Qualquer questão histórica é, de fato, formulada [...] em uma sociedade.


Mesmo que pretenda voltar-lhe as costas e atribuir à história uma
função de puro conhecimento desinteressado, ele não consegue
abstrair-se de seu tempo. Todas as questões são formuladas a partir
de determinado lugar (PROST, 1996: 84).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
591

Tal método serve a todas as formas de atuação do profissional de História,


incluindo no ensino. A especificidade na Educação Básica se dará pelo objetivo que o
professor de História tem nesse espaço: a formação de cidadãos e é exatamente nessa
perspectiva que o programa de iniciação à docência trabalha.

A EXPERIÊNCIA COMO BOLSISTAS DO PIBID


Com o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência, entramos em
contato com uma série de oportunidades de aprimoramento acadêmico, pessoal e
profissional. É certo que a função primeira do PIBID esteve voltada a fornecer
experiências aos graduandos, futuros docentes, favorecendo assim a formação de um
profissional melhor preparado, mediante as vivências no dia a dia escolar.
A formação do futuro docente, capaz de promover um ensino diferenciado, ocupou
local de destaque dentro do subprojeto. Para tanto as coordenadoras buscavam nos
estimular a pensar as práticas em sala de aula, o uso dos livros didáticos, o
desenvolvimento de um ensino significativo, pensar que o ensino de história deve ser
feito a partir da sua ciência de referência – com o uso do método, entre outros pontos.
Tais elementos foram trabalhados durante todas as reuniões e também, com mais
ênfase, durante as realizações de oficinas temáticas.
Outra característica interessante a ser citada, está na preocupação das
coordenadoras do PIBID-História em nos preparar, não só metodologicamente, mas
também nos embasar legalmente. O ensino de determinados conteúdos devem-se por
si só, por seu estudo ter significado e ser necessário para os estudantes. No entanto,
para além dos principais motivos para se abordar determinados conteúdos deveríamos,
ter a base legal para justificar os temas trabalhados em sala, o estudo da legislação
referente a educação, como a Constituição da República federativa do Brasil (1988), Lei
de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (1996), Parâmetros Curriculares Nacionais
(1997) entre outros.
Durante todo o período que integramos o PIBID ocorreram diversas reflexões
acerca do Ensino de História. Pensar o porquê de se ensinar História, qual a função dela
na vida dos estudantes, para quer trabalhar determinados assuntos, qual a contribuição
tal conteúdo teria na vida dos alunos, qual o significado do ensino, entre outros pontos
que se mostraram pertinente a reflexões. Uma das grandes contribuições do PIBID, nas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
592

futuras vidas profissionais de seus bolsistas, foi o fator “dar sentido ao que se ensina”.
Para se ensinar História a alguém devemos antes conhecer esse alguém, conhecer sua
realidade para assim tornar o estudo dos conteúdos importantes para aqueles que os
realizam.
As vivências no dia a dia escolar se apresentam como uma forte característica do
PIBID. Garantir aos graduandos uma primeira experiência, antes dos estágios, mostra-
se uma excelente oportunidade de descobertas e crescimento dos discentes
possibilitando um grande desenvolvimento, antes de sua inserção na docência.

A CONTRIBUIÇÃO DO PIBID NA PERMANÊNCIA UNIVERSITÁRIA


Ao escolhermos tal título para nossa pesquisa, muitos primeiramente, poderão
relacionar a contribuição do PIBID como uma forma importante de assistência
estudantil para licenciandos. Obviamente, o programa tem seu mérito nesse sentido
sem gerar dúvidas nenhuma. Em uma conjuntura em que poucos têm acesso a
universidade e menos ainda a permanência nela - pelos gastos e dedicação que se
exigem dos graduandos - em uma universidade que ainda é excludente, é fato que uma
bolsa remunerada na sua área profissional, contribui para que o estudante possa se
dedicar minimamente a sua formação.
Entretanto, não queremos justificar a importância do PIBID apenas nesse
sentido. Ao visualizarmos um cenário em que as licenciaturas brasileiras se centram em
modelos fadados para a formação de futuros professores, em que graduandos se
sentem desmotivados com seu curso e que não conseguem ver a sua formação na
prática enquanto profissional da História, o PIBID surge como uma alternativa
imprescindível à formação de professores.
Podemos apontar isso a partir de duas questões centrais, tomando como
exemplo o PIBID\UFRN\História\Natal. A primeira diz respeito a um objetivo geral do
programa: elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de
licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e educação básica. Os
licenciandos ao terem a experiência do PIBID logo no início da sua graduação passam a
vivenciar o espaço que será referente a sua atuação profissional. Isso faz com que os
alunos logo possam pensar e exercitar sua prática enquanto professores de História.
São exercícios de análise de fontes, critérios de seleção de conteúdos,
diagnósticos de escolas e turmas, o uso de ferramentas tecnológicas, planejamentos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
593

de aula, sequências didáticas, elaboração de materiais didáticos, etc. que auxiliam a


formação docente, na medida em que “aprender a ser professor” não se restringe a
aprender a usar um quadro branco, um livro didático e explicar o conteúdo histórico. A
formação de professores exige a mobilização de diversos saberes para a construção de
um processo de ensino-aprendizagem em que o aluno da educação básica possa ser
bem orientado pelo professor na construção do conhecimento histórico.
A segunda questão toma como especificidade a formação de professores de
História. Na medida em que o PIBID\UFRN\História\Natal assume que a produção do
conhecimento histórico deve nortear a atuação do profissional de História em todas as
suas dimensões, construímos um novo perfil de professores de História. O perfil desse
professor, se coloca a partir do objetivo da formação do cidadão e que para isso, fornece
ao aluno da Educação Básica, as situações para que o conhecimento histórico lhes
proporcione condições mais amplas de leituras do mundo. Dessa forma, o PIBID se
torna um meio importante para se repensar a formação de professores e o ensino de
História.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir deste relato de experiência das nossas vivências enquanto bolsistas do
PIBID, podemos inferir como o programa possui uma importância para a formação dos
licenciandos em História, na medida em que a experiência no projeto permite que os
discentes possam construir sua identidade como profissional da História que tem sua
especificidade para a construção do conhecimento histórico. No PIBID, o graduando
tem a oportunidade de vivenciar a sua prática docente, interagir, refletir, dialogar sobre
e com a comunidade escolar.
É a partir da experiência do PIBID que nós, licenciandos em História, pudemos
construir uma postura investigativa e reflexiva sobre a nossa prática docente,
compreender qual a nossa função social enquanto professores de História e a
importância que temos para a formação de cidadãos conscientes do seu tempo,
condições estas, imprescindíveis para entendermos o sentido na nossa formação
profissional e consequentemente para a nossa permanência universitária.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
594

REFERÊNCIAS
CERRI, Luis Fernando. A formação de professores de história no Brasil: antecedentes
e panorama atual. História, histórias. Brasília, vol. 1, n. 2, p. 167 - 186, 2013.

COSTA, Aryana Lima. A formação de profissionais de História: o caso da UFRN (2004


- 2008). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Paraíba,
João Pessoa.

EDITAL 01/2013 - PIBID/UFRN/HISTÓRIA. Disponível em:


http://www2.pibid.ufrn.br/subprojeto/historia_natal/documento.php?c=2&id=126167
481. Acesso em: jun. 2018.

INEP. Censo Educação Superior 2016. Disponível em:


http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/apresentacao/2016/
apresentacao_censo_educacao_superior.pdf. Acesso em: jun. 2018.

POTIGUAÇU, Centro Acadêmico de História. Mapeamento – Universidade e saúde


mental: Como nós, estudantes, nos sentimos no curso de História? Disponível em:
https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSc8m2GMUd0twHu8MSARFQFzTTYBu
w4q-v4KoHyGUEYjUTrUqA/viewform?usp=pp_url. Acesso em: jun. 2018
.
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O direito ao passado: uma discussão necessária à
formação do profissional de História. 2003. Tese (Doutorado em História) -
Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; FREITAS, Itamar. Formação do profissional de


história na contemporaneidade. Mouseion. Canoas, n.19, p. 109 - 125, dez. 2014.

PROST, Antoine. As questões do historiador. In: Doze lições sobre a história [tradução
de Guilherme João de Freitas Teixeira]..— Belo Horizonte : Autêntica Editora , 2008.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. Formação do professor de história


no Brasil: embates e dilaceramentos em tempos de desassossego. Educação. Santa
Maria, v. 40, n. 3, p. 517-528, set./dez. 2015.

ANEXOS
Roteiro de questionário aplicado pelo Centro Acadêmico de História da UFRN
(CAHISP)
1. Qual período você está cursando?
2. Qual a sua idade?
3. Qual seu gênero?
4. Qual sua cor\etnia?
5. Qual sua renda familiar?
● Até um salário mínimo
● Até dois salários mínimos
● Até três salários mínimos
● Até quatro salários mínimos
● Mais de cinco salários mínimos
6. Os professores tratam os alunos com educação?

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
595

● Sim
● Não
● Na maioria das vezes
● Nunca
7. Há critérios claros de avaliação das atividades requeridas?
● Sim
● Não
● Na maioria das vezes
● Nunca
8. Você considera que há conexão entre as disciplinas?
● Sim
● Não
● Na maioria das vezes
● Nunca
9. O que mais foi difícil no semestre do curso?
● Entender os textos
● A quantidade de textos
● A quantidade de atividades e avaliações
● A dificuldade em entender os professores
● Outros
10. Você já teve vontade de desistir do curso?
● Sim
● Não
● Na maioria das vezes
● Nunca
11. Se a resposta anterior foi afirmativa, qual o motivo?
● Professores
● Aulas
● Curso
● Demanda fora da academia
● Outros
12. O que você sente falta nas aulas do curso?
● Discussões que dialoguem com a atualidade e a sociedade fora da academia
● Aulas que objetivem a sua formação enquanto profissional de História
● Outras metodologias de aula
● Outros
13. Suas expectativas foram atendidas ao entrar no curso?
● Sim
● Não
14. Se quiser, comente mais sobre:
15. Há diferença em como você se sentia em relação ao curso quando calouro e como se
sente no atual semestre?
● Sim
● Não
16. Se quiser, comente mais sobre:
17. Você acha que uma mesma atividade poderia servir para avaliação de duas ou mais
disciplinas?
● Sim
● Não
● Talvez
18. Você acha que ajudaria a mudança de horário da manhã (Exemplo: as aulas começarem
às 07:50 e se estenderem até as 11:30)?
● Sim

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
596

● Não
● Talvez

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
597

HISTÓRIA E MEMÓRIA DA EDUCAÇÃO: INCURSÕES SOBRE O


CURSO NORMAL REGIONAL DE ASSÚ/RN (1951 A 1961)
Ana Sara Cordeiro de Almeida490
Franciely de Lucena Medeiros491
Rosenilson da Silva Santos492

INTRODUÇÃO
Esse texto é fruto direto das experiências e aprendizagens que vivenciamos ao
longo da disciplina Estágio Supervisionado I, do curso de História da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte. Essa Cadeira tem por objetivo fazer os alunos
refletirem sobre os usos possíveis das fontes históricas no ensino e na pesquisa em
História. O seu desenvolvimento, além da carga horária teórica, se dá em um arquivo e
no contato direto com as fontes, por isso, a depender de que maneira e nível de
organização em que esteja o arquivo, os discentes podem ter noções básicas de
manuseio, higienização e conservação de diferentes tipologias documentais.
Essa exitosa experiência de Estágio ocorreu no arquivo da Estadual Juscelino
Kubistchek, localizada no município de Assú, no Estado do Rio Grande do Norte. Através
dela percebemos a importância da preservação e manutenção dos arquivos escolares,
uma vez que esses significam a possibilidade de reapresentar a história da própria
instituição, bem como da sociedade da qual ela é parte. Em contato com seu arquivo
pudemos observar os diversos cursos que já foram oferecidos pela instituição, que
públicos e faixas etárias já foram alvo das práticas educativas desenvolvidas por aquela
escola e, de modo especial, nos interessamos pela história do Curso Normal que a
referida escola ofertou em meados do século XX.
Neste sentido, este texto se deterá em uma reflexão sobre o contexto em que
essa modalidade foi fomentada pelo Estado brasileiro, mas de modo mais específico,
nos concentraremos na reverberação disso no município de Assú através do curso que
aí foi implantado. A fonte privilegiada para esse ensaio foi localizada no Arquivo da

490 Discente do curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, Campus de
Assú. E-mail: saracordeirorn@gmail.com
491 Discente do curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, Campus de

Assú. E-mail: francielymedeiros98@gmail.com


492 Discente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília – PPGHIS/UNB. E-

mail: rosenilsonsantos@yahoo.com.br

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
598

Escola, o Livro de Posse do “Curso Normal de Assú, datado do ano de 1952, ano de
ingresso da primeira turma do referido curso.
Para efeito de organização, esse texto se subdivide em três seções. Na primeira
discutiremos o início do processo de formação docente através das primeiras escolas
Normais no Brasil. Na segunda, trataremos do advento da República no Brasil e de suas
ressonâncias sobre a educação Normal no país, destacando as medidas adotadas pelo
Estado e procurando compreender o contexto político-histórico do país durante a
década de 1950 no sentido de pensar um “síntese da evolução do Ensino Normal da
perspectiva da ação do Estado e da política educacional por ele desenvolvida” (TANURI,
2000, p. 61). e, na terceira e última seção, dialogaremos sobre o Curso Normal Regional
do Assú, estabelecendo uma zona de intersecção entre as referências bibliográficas
trabalhadas e as fontes localizadas no processo de Estágio antes referido.

O “ENSINO NORMAL” NO BRASIL


A preocupação em relação a formação dos professores surgiu no Brasil ainda
durante o Império, mais especificamente, segundo Dermeval Saviani (2009), foi logo
após a promulgação da Lei da Escolas das primeiras Letras, aprovada em 15 de outubro
de 1827, que surgiram as primeiras preocupações no que diz respeito a formação dos
alunos do ensino primário. A Lei determinava que os professores deveriam “ser
treinados” as custas de sua própria remuneração, de acordo com método de ensino
mútuo nas capitais de suas respectivas províncias.
No que diz respeito a ordem instituída em relação as Escola das Primeiras Letras,
Tanuri afirma que “pouco resultou das providências do Governo central referentes ao
ensino de primeiras letras e preparo de seus docentes de conformidade com a Lei geral
de 1827”. (2000, p. 63).
Saviani ressalta também que, somente depois da promulgação do Ato Adicional
de 1834, “que colocou a instrução primária sob responsabilidade das províncias, estas
tendem a adotar, para formação dos professores, a via que vinha sendo seguida nos
países europeus: a criação de Escolas Normais”. (2009, p. 144).
Com a nova medida adotada, as primeiras Escolas Normais brasileiras surgiram
por iniciativa das províncias. A primeira instituição de Ensino Normal com a recente
adoção deste modelo foi a Escola Normal na província do Rio de Janeiro, mais
especificamente na cidade de Niterói, por meio da Lei n° 10, de 1835, que determinava

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
599

responsabilidade da província.“Em tais circunstâncias, desde a sua criação, as escolas


normais brasileiras fizeram parte dos sistemas provinciais” de educação (TANURI,
2000, p. 63). Esta Lei possibilitava as pessoas, a habilitação que os professores leigos
necessitavam para exercer o magistério do ensino primário e habilitação aos que
pretendiam atuar enquanto professores no referido sistema de ensino.
Mesmo com os esforços do Governo Central para implatação de um modelo
preparatório para formação dos professores, segundo Tanuri, pouco resultou em
termos de providências adotadas pelo mesmo.

O Governo Central passou a ocupar-se apenas do ensino de todos os


graus na capital do Império e do superior em todo o país, ficando as
províncias responsáveis pela instrução primária e secundária nos
respectivos territórios. (TANURI, 2000, p. 63).

Savani, relata também, que ao adotar este novo modelo, outras províncias
passaram a seguir por este mesmo caminho ainda no século XIX, na ordem a seguir:

Bahia, 1836; Mato Grosso, 1842; São Paulo, 1846; Piauí, 1864; Rio
Grande do Sul, 1869; Paraná e Sergipe, 1870; Espírito Santo e Rio
Grande do Norte, 1873; Paraíba, 1879; Rio de Janeiro (DF) e Santa
Catarina, 1880; Goiás, 1884; Ceará, 1885; Maranhão, 1890. (2009, p. 144).

No entanto, a permanência destas Escolas Normais nas províncias se tornou


inconstante, sendo em sua maioria fechadas e reabertas com grande frequência.
Mesmo com a “substituição” da Escola das primeiras Letras, pelas Escolas
Normais, ideia adotada pelas províncias brasileira, elas contrariavam as ideias
propostas, transmitindo os mesmos conteúdos relacionados a primeira Escola aqui
referida, instituídas pelo governo central.

A escola seria regida por um diretor, que exerceria também a função de


professor, e contemplaria o seguinte currículo: ler e escrever pelo
método lancasteriano; as quatro operações e proporções; a língua
nacional; elementos de geografia; princípios de moral cristã. (TANURI,
2000, p. 64).

Contudo, as Escolas Normais não alcançaram os objetivos desejados, a autora


citada anteriormente, argumenta que, devido ao caráter simplista em relação a didática,
conteúdos de estudo rudimentares e a frequência reduzida nas Escolas, acarretaram
no fechamento de várias escolas normais. Dando ênfase aqui, a primeira escola normal

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
600

do Brasil, fechada em 1849 e reaberta em 1859, mesmo com a aparentes dificuldades


enfrentadas durante este período, as instituições de ensino normal se mantiveram
inconstantes até a sua institucionalização em 1870.
Tanuri (2000) destaca que no Brasil, somente a partir do começo do ano de 1870
que tais escolas começaram a dar resultados, pois, transformações de ordem
ideológica, política e cultural destinaram profundas mudanças ao setor educacional,
levando uma importância até então nunca vislumbrada para as escolas normais.
“Paralelamente à valorização das escolas normais, ocorre também o enriquecimento
de seu currículo, ampliação dos requisitos para ingresso e sua abertura ao elemento
feminino” (TANURI, 2000, p. 66).

O ADVENTO DA REPÚBLICA E A EDUCAÇÃO NORMAL


Contudo, o surgimento de um novo regime governamental, Tanuri destaca, não
traz para o Brasil uma diferenciação no que se refere as normas das Escolas Normais,
segundo essa autora a República:

não trouxe alterações significativas para a instrução pública, nem


inaugurou uma nova corrente de idéias educacionais, tendo significado
simplesmente o coroamento e, portanto, a continuidade do movimento
de idéias que se iniciara no Império, mais precisamente nas suas últimas
décadas. (TANURI, 2000, p. 68).

Se o novo regime político não inaugurou profundas mudanças na educação, por


outro lado, nos últimos anos do Império uma mudança se processou na cultura
ocidental e na brasileira: a figura da mulher teria uma importância cada vez maior no
ensino brasileiro e essa ampliação da participação feminina se relacionou com a ideia
de que sua presença nos primeiros anos de aprendizagem dos alunos teria um caráter
materno. Tanuri relata, que segundo os governantes da época o magistério seria a única
profissão que conciliava as funções domésticas da mulher, com a profissionalização da
mesma, o que favoreceu essa ascensão feminina.
Destacar o papel da mulher na educação e profissionalização docente se tornou
uma inquietação. Enquanto se destacava que esse “ofício” se relacionava muito bem
com as tarefas domésticas é interessante apontar que o fato delas representarem,
naquele momento, a utilização pelo Estado de “mão-de-obra mais barata” que a dos
homens, esses recorrentemente mais relutantes em assumir a carreira docente no
ensino primário, carreira essa cada vez menos valorizada. Tanuri, reforça que: “[...] o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
601

magistério feminino apresentava-se como solução para o problema de mão-de-obra


para a escola primária, pouco procurada pelo elemento masculino em vista da reduzida
remuneração” (2000, p. 66).
Após a consolidação da República, as escolas normais deixaram de ser uma
responsabilidade completa dos estados e municípios, e passaram a ser
responsabilidade do governo central. Segundo Tanuri:

A ausência do governo central quer na manutenção quer na


organização da educação popular e o desequilíbrio financeiro entre os
estados acabaram por propiciar um movimento de chamada de
participação do governo central já desde a primeira década do presente
século, movimento este que incluía especificamente as escolas
normais. (2000, p. 68).

É importante frisar que apesar de toda mobilidade do governo para participar da


elaboração de uma formação de melhor qualidade aos professores e professores, essa
não foi de fato efetivada na Primeira República.
Mesmo que essas escolas estivessem sob o teto do governo central, elas não
eram padronizadas. Segundo Morais e Silva o Curso Normal Regional do Assú, por
exemplo,

Ao longo da década em análise, a instituição em foco era diferente das


Escolas Normais do estado e dos Institutos de Educação, como, por
exemplo, o do Rio de Janeiro, distinguia-se, sobretudo, nos programas
de ensino lecionados, no tempo de escolarização e na especificidade do
diploma concedido às formandas. Por ser considerado Curso de 1º Ciclo
do Ensino Médio, exigia-se das candidatas, como requisito no ato da
matrícula, o certificado de conclusão do Ensino Primário e a habilitação
no Exame de Admissão. (2011, p. 221).

A década de 1950 foi um período “[...] marcado por grandes agitações nos
âmbitos políticos, econômicos e educacional no cenário brasileiro”. (VIEIRA, 2005, p.
42), vivia-se o governo de Getúlio Vargas, contexto no qual o nacionalismo e o
trabalhismo eram fortemente difundidos. Segundo Daniela Vieira, é um momento no
qual também se difunde a ideia de que “Deveria, ainda, fazer-se do Estado o maior
responsável pela distribuição da educação para as classes mais populares.” (2005, p.
43). Nesse sentido, Vargas tentou elevar os investimentos relacionados à educação, no
entanto, sua preocupação maior se deu em direção ao ensino superior no país, deixando
em segundo plano o ensino primário.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
602

Para compreendermos como Curso Normal foi inserido na região do Vale do Açú,
além de tratar da legislação que possibilitou sua oferta, se faz necessário entendermos
também o contexto político-histórico no qual o Brasil se encontrava na época, ou seja,
durante a década de 1950.
Entendemos que o Curso Normal, consistiu em um grande processo de formulação da
prática docente organizada pelo Estado, de forma regional e no Brasil, de uma forma mais
abrangente, não foi contudo, algo totalmente exitoso. Os Cursos Normais surgiram em uma
época em que o país passava por um momento relativamente instável, quando vivia-se um
período de transição de uma sociedade rural para um modelo mais urbano, na qual exigia-se a
ampliação da educação de uma forma urgente, se fazia necessária, a Lei Orgânica de 1946,
nesse contexto, se tornou um meio para reorganização do ensino normal em todo o país,
tornando-se um parâmetro a ser seguido em todo o Estado.
Nesse sentido os Estados acabaram por aprovar leis próprias que regulamentavam a
oferta desse tipo de formação, tendo por parâmetro a Lei Orgânica n° 8. 530 de 21 de janeiro de
1946:

A Lei Orgânica do Ensino Normal não introduziu grandes inovações,


apenas acabando por consagrar um padrão de ensino normal que já
vinha sendo adotado e vários estados. Em simetria com as demais
modalidades de ensino de segundo grau, o Normal foi dividido em dois
ciclos: o primeiro fornecia o curso de formação de ‘regentes’ do ensino
primário, em quatro anos, e funcionaria em Escolas Normais Regionais;
o curso de segundo ciclo, em dois anos, formaria o professor primário e
era ministrado nas Escolas Normais e nos Institutos de Educação. Além
dos referidos cursos, os Institutos de Educação deveriam ministrar os
cursos de especialização de professores – para a educação especial,
curso complementar primário, ensino supletivo, desenho e artes
aplicadas, música e canto – bem como cursos de administradores
escolares, para habilitar diretores, orientadores e inspetores. (TANURI,
2000, p. 76)

De acordo com essa referida lei, em seu Art. 2° o Ensino Normal era ministrado
em dois ciclos. O primeiro dará o curso de regentes do ensino primário, em quatro anos,
e o segundo, o curso de formação de professor do ensino primário em três anos. O que
também foi decretado através da Lei Orgânica do Ensino Normal foi a segurança para
os alunos que concluíam o segundo ciclo do curso normal, o que daria a eles o direito
de ingressarem nas faculdades de filosofia, as principais finalidades desta lei orgânica
era:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
603

O Curso Normal buscava atender aos decretos da lei orgânica do Ensino


Normal n° 8. 530 que tinha como principais finalidades:
1. Prover à formação do pessoal docente necessário às escolas
primárias.
2. Habilitar administradores escolares destinados às mesmas
escolas.
3. Desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à
educação da infância493.

A Lei orgânica permitia aos futuros “regentes” do primário, basicamente, uma


espécie de Curso Técnico profissionalizante. A formação dos “professores primários”
se dava, também, através do Curso Normal.
Os anos 1950, destacam-se também, por uma “euforia desenvolvimentista”,
Leonor Tanuri (2000) também vai perceber isto e argumenta “as tentativas de
‘modernização’ do ensino, que ocorriam na escola média e na superior, atingem também
o ensino primário e a formação de seus professores.” (p. 78).

A INTERIORIZAÇÃO DO ENSINO NORMAL: O CURSO NORMAL REGIONAL DO ASSÚ E


A FORMAÇÃO DOCENTE NO RN
Percebendo a insuficiência das Escolas Normais de Natal e Mossoró, a primeira
criada no Rio Grande do Norte no ano de 1873, nas dependências do prédio Atheneu
Norte Rio Grandense, segundo Maria da Conceição da Silva, “diplomou três
professores, ensinando as matérias de estudo: Português, Aritmética, Gometria,
Geografia, caligrafia e pedagogia”. (2011, p. 40).
Quase como um reflexo da abertura, fechamento e reabertura da Escola de Natal
(duas vezes após a sua primeira inauguração), as Escolas Normais somente se
consolidariam no Estado no ano de 1908.
No entanto, apesar de ter a fundação oficial datada do final do ano de 1951, e
tendo entrado em funcionamento em 1952. Silva detectou que:

Na década de 1930, um Curso Normal feminino em nível ginasial foi


aberto nesta escola cofessional. No acervo da instituição, há registros
que em 1937 funcionava uma turma de 3°, cuja formatura realizou-se
no final de 1938. (2011, p. 57).

493 Disponível em: www.soleis.adv.br – BRASIL. Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-Lei Nº 8.530,
de 2 de janeiro de 1946). Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-
lei-8530-2-janeiro-1946-458443-publicacaooriginal-1-pe.html

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
604

A instituição em foco referida pela autora é o Colégio Nossa Senhora das


Vitórias, fundado em 1927 pelas irmãs religiosas da Congregação Filhas do Amor
Divino, objetivando, principalmente, educar e instruir as mulheres, normalmente filhas
das elites regionais, para desempenharem as tarefas de mãe e dona de casa com
melhor desenvoltura. Segundo Silva, a fundação do Curso Normal na cidade de Assú
nesse Colégio pode ter ocorrido no ano de 1935, tendo em vista, que os primeiros
registros de professoras diplomadas na escola do município, datam de 1938,
justamente no Nossa Senhora das Vitórias.
Mesmo que algumas instituições privadas oferecessem essa formação para os
professores, no quadro geral do Brasil o número de docentes atuando sem a formação
Normal era muito grande, o que se reproduzia no Estado do Rio Grande do Norte onde
existia, nessa primeira metade do século XX, um grande número de mestres não
diplomados em exercício no ensino primário. Visando minimizar essa situação e diante
da impossibilidade das Escolas Normais das cidades já citadas atenderem as demandas
das escolas primárias o então, presidente Getúlio Vargas tomou medidas que com
vistas a expandir a formação docente.
Atendendo as diretrizes legais adotadas desde 1946, segundo o Decreto-Lei
Federal n° 8. 530/1946

as Escolas Normais e os Institutos de Educação ofereceriam o ensino


em nível de 2° Ciclo ou Colegial, os Cursos Regionais, a formação em 1°
Ciclo ou primária. (SILVA, 2011, p. 41)

O Curso Normal Regional do Assú ofertado pelo Estado, segundo Morais e Silva
(2011), apesar de sua criação datar de 1949, através da Lei n. 204 de 1949, só se
concretizou na cidade por meio da Lei Estadual N° 621 de 06 de dezembro de 1951. Essa
lei estadual, por sua vez, atendia aos requisitos impostos pela Lei Orgânica do Ensino
Normal (Decreto-Lei Nº 8.530, de 2 de janeiro de 1946), que normatizou o Ensino
Normal, nacionalmente instituindo três tipos de estabelecimentos, a saber: o instituto
de educação, a escola normal e os cursos normais regionais., com o principal intuito de
formar profissionais docentes do ensino primário e diminuir os números de mestres
leigos nas salas de aula. O “Curso Normal” funcionou com essa nomenclatura até a
promulgação da lei n° 4.024 de 20 de dezembro de 1961, através da qual foi renomeado
para Curso Normal Ginasial.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
605

Até dezembro de 1951 o Rio Grande do Norte era o único estado do Nordeste que
não possuía uma modalidade do Ensino Normal mantida pelo Estado. Nesse mesmo
ano foram criados 14 Cursos Normais regionais, em cidades que eram consideradas
pontos estratégicos no interior do Estado: Martins, Pau dos Ferros, Santa Cruz, Santana
do Matos, Florânia, Nova Cruz, Angicos, Macau, Currais Novos, Alexandria, Apodi, Ceará-
Mirim, Caraúbas e Assú494.
No que diz respeito ao curso da cidade de Assú, encontramos um documento em
específico no arquivo da Escola Estadual Juscelino Kubistchek, intitulado “Livro de
posse do Curso Normal Regional do Assú”, datado de 04 de março de 1952. O
documento trata-se do termo de posse de oito professores do Curso Normal Regional,
os mesmos atendendo pelos nomes de: Márcia Gilzete Souza, Eurenice da Silva
Rodrigues, Maria José Medeiros, Teresinha de Sá Leitão, José Mariano da Fonsêca, José
Herminegildo de Medeiros, Osvaldo de Oliveira Amorim e Cristovam Thomás Dantas e
Ponto Diário dos professores do curso já mencionado.
Segundo os registros analisados, a primeira turma era contemplada com as
seguintes disciplinas: Trabalhos manuais, economia doméstica, desenho, caligrafia,
português, educação física, canto orfeônico e matemática.
Já retomadas as atividades de formação docente na cidade de Assú, a primeira
turma iniciou suas aulas nas instalações do prédio do Grupo Escolar Tenente José
Correia, no período noturno, tendo em vista que o prédio se mantinha ocupado nos
turnos matutino e vespertino com o ensino primário. Silva relata que, devido aos
inúmeros blecautes que ocorriam durante a noite, estes interrompiam a turma em suas
atividades. Devido a falta de espaço para realização das atividades do grupo de alunas,
se fez necessário a criação de um prédio próprio para o Curso.
A autora cita também, que as obras se iniciaram durante o governo de Sílvio Pizo
Pedroza, no ano de 1952, porém não foram concluídas de imediato por falta de recursos.

494 Antes da criação dos curso oficiais na década de 1950 o governador do RN, Rafael Fernandes, instituiu
a Lei nº 82 de 10 de dezembro de 1936, que em seu Artigo primeiro estabelecia que o curso normal
mantido pelo Colégio N. S. das Vitórias, da cidade de Assú, dirigido por irmãs religiosas da Ordem do Amor
Divino “[...] fica equiparado à Escola Normal de Natal, sujeitando-se à fiscalização necessária e de acordo
com as exigências legais, podendo o referido estabelecimento fazer a expedição dos diplomas.” (RIO
GRANDE DO NORTE, 1936, p. 151). AQUINO, Luciene Chaves de; NETA, Olivia Morais de Medeiros. O Curso
Normal Regional de Pau dos Ferros (RN): a inauguração da formação docente no Alto Oeste Potiguar
(1951-1961). Disponível em: http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/05-
%20HISTORIA%20DA%20PROFISSAO%20DOCENTE/O%20CURSO%20NORMAL%20REGIONAL%20D
E%20PAU%20DOS%20FERROS%20(RN).pdf

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
606

A obra foi retomada somente no ano de 1955, pelo bispo da Diocese de Mossoró, D.
Eliseu Simões Mendes, ao perceber a urgência para conclusão de tais obras.
Silva e Morais (2011) vão detalhar este ponto da História referente ao Curso da
seguinte forma:

O bispo de Mossoró, D. Eliseu Simões Mendes, assessorado pelo padre


Américo Simonetti, responsabilizaram-se pela fiscalização do término
do prédio escolar, negociando junto à Secretaria de Educação e Cultura
do Estado, que se denominasse Centro de Formação e Apoio de Assú e
não Escola Normal Rural de Assú. (p. 226).

O prédio foi então inaugurado no ano de 1958, registrado como “Centro


Educacional Juscelino Kubistchek”. Essa nomeação da instituição se deu em
homenagem ao presidente do Brasil na época, eleito para o mandato de 1956 a 1961. A
partir de então o Curso Normal Regional passaria a funcionar nas acomodações do
referido prédio.
No ano de 1955 concluía a formação a primeira turma do “Curso Normal Regional
de Açú”. O ato solene foi registrado em uma Ata que localizamos no arquivo em já
referido, atrelada ao Livro de Posse do Curso. No documento, lê-se:

Aos dezoito dias do mês de dezembro do ano da graça de mil


novecentos e cinquenta e cinco, às 8, 15 horas foi iniciada a sessão
solene da formatura da 1ª turma de professoras do “Curso normal
regional de açu” (1955, p. 23).

O documento continua, com a descrição da entrega dos diplomas aos seguintes


formandos: Nair Fernandes Rodrigues, Libânia Lopes Pessoa, Maria de Sallete Soares,
Sabastiana de Oliveira Cruz, Nilda Maria de França, Maria Haidê Oliveira, Teresinha
Varela Dantas, Cornélia Dantas de Macêdo, Maria Salomé de Moura e Terezinha Caldas
de Medeiros, todas aplaudidas.
Segundo Silva e Morais “O público principal matriculado na primeira turma do
Curso Normal Regional de Assú era de adolescentes, moças com 13, ou 14 anos, por
exemplo, recém-saídas da escola primária”. (2011, p. 231).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos neste artigo, realizar uma breve contextualização acerca do processo
de formação docente no Brasil, através do Ensino Normal, enfatizando a emergência

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
607

das chamadas Escolas Normais, fruto da estratégia adotada pelo Estado brasileiro,
visando a melhoria na formação dos professores do ensino primário, que a princípio foi
deixado a cargo e sob a responsabilidade das províncias.
O surgimento de um novo regime político no Brasil, a República, não é sinônimo
de muitas transformações no âmbito da educação. Uma das únicas modificações
aparente no universo da educação formal no país foi a inserção da mulher na formação
docente. Acabamos por perceber, que mesmo com a instalação destas instituições e
dos cursos Normais o processo de substituição dos mestres sem formação foi muito
lento, por fatores que a pesquisa histórica vem levantando.
No Rio Grande do Norte, por causa da distância das cidades do interior em
relação as duas Escolas Normais existentes no Estado, que estavam situadas em Natal
e Mossoró, durante o governo Vargas criou-se os Cursos Normais Regionais, estes
localizados estrategicamente em cidades do interior do Estado para formar
professores para o ensino primário.
Por fim, ainda podemos considerar a importância do Arquivo da Escola JK para a
ampliação dos nossos conhecimentos sobre o Curso Normal que foi oficializado na
cidade do Assú na década de 1950, lançando luzes sobre seus professores/as,
alunos/nas e as disciplinas que eram ofertadas e cursadas à época.

REFERÊNCIAS
Arquivo Histórico da Escola Estadual Juscelino Kubistchek, Assú/RN. Caixa: 05.
envelope: 01. Livro de posse do Curso Normal Regional de Assú de 04 de março de
1952.

DERMEVAL, Saviani. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do


problema no contexto brasileiro. Rev. Bras. de Educ., Rio de Janeiro, v. 14, n. 40, p. 143-
155, jan./abr. 2009.

MORAIS, M. A. C; SILVA, M. C. F; Curso Normal Regional em Assú/Rio Grande do Norte


(1950). Revista Educação em Questão, Natal, v. 40, n. 26, p. 220-245, jan./jun. 2011.

SILVA, Maria da Conceição Farias da. O Curso Normal de 1° Ciclo em Assu/RN (1951 a
1971). 2011. 170 f. Tese (Doutorado em educação) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, 2011.

TANURI, Leonor Maria. História da formação de professores. Revista Brasileira de


Educação. Rio de Janeiro, Mai/Jun/Jul/Ago, n. 14, 2000.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
608

VIEIRA, Daniela Fonsêca. As mudanças da educação do RN nos idos de 1950 e 1960:


A prática de Lia Campos. 2005. 103 f. Tese (Mestrado em educação) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
609

TRILHANDO SABERES, PENSANDO A HISTÓRIA: CAMINHOS E


PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
COMO OBJETO DE PESQUISA NA UFRN

Angélica Lopes Bulhões495


Érica Ricelle Costa e Silva496

INTRODUÇÃO
Essa pesquisa foi realizada na disciplina “Historiografia e Pesquisa do Ensino de
História”, durante o semestre de 2018.1.497. Estudar o ensino de história vem se
constituindo um objeto de pesquisa em crescimento nos pós-graduações de História e
Educação no país, e para isso tivemos como inspiração o trabalho realizado por Flávia
Caimi, “Investigando os caminhos recentes da história escolar: tendências e
perspectivas de ensino e pesquisa”, para fazer um esboço do que vem sendo produzido
na UFRN e que está disponível para acesso no repositório institucional.498. O critério de
seleção foi o de busca no Repositório a partir da palavra-chave “ensino de História”.
Assim, partindo dos títulos dos trabalhos, escolhemos as pesquisas que se encaixavam
nesse filtro. Cabe aqui mostrar as especificidades dos dois programas que
apresentaram trabalhos de pesquisa voltados para a pesquisa em ensino de história.
Primeiramente, o PPGH tem como categoria central a discussão do espaço e
possui três linhas de pesquisa: Linha I: Formação, Institucionalização e Apropriação dos
Espaços; Linha II: Espaços de Memória, Cultura Material e Usos Públicos do Passado e
Linha III: Linguagens, Identidades e Espacialidades. Vale salientar que essas linhas de
pesquisas foram alteradas no edital para ingresso em 2018. No edital de seleção para
2017, as linhas eram: Linha I: Relações Econômico-sociais e Produção dos Espaços e
Linha II: Cultura, Poder e Representações Espaciais. Dado o período em que as
dissertações foram produzidas, os trabalhos sobre ensino de história do repositório
estão especialmente na linha de Cultura, poder e representações espaciais. A grade
curricular vigente no curso é de 2016.2, com carga horária mínima total de 300 horas e
optativa de 120 horas.

495 Graduanda em História-Licenciatura pela UFRN. Contato: angelicaalopes@hotmail.com


496 Graduanda em História-Licenciatura pela UFRN. Contato: ericaricellty@hotmail.com
497 O estudo foi orientado pelo Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos (UFRN).
498 Todos os materiais consultados estão disponíveis no site: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/>.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
610

O PPGED, por sua vez, funciona há 39 anos nessa universidade e possui sete
linhas de pesquisa: educação e inclusão social em contextos escolares e não escolares;
educação matemática e ensino de ciências; educação, linguagem e formação do leitor;
estratégias de pensamento e produção de conhecimento; formação e
profissionalização docente; história da educação, práticas socioeducativas e usos da
linguagem; política e práxis da educação e política e práxis da educação. O PPGED
possui um maior banco e opções de linhas de pesquisa, pois oferta doutorado e
mestrado.
Buscamos observar, a partir do resumo e da introdução dos trabalhos, como eles
diferem entre si, dentro dos demais do próprio programa e em relação ao outro
programa. Também identificamos os objetos de investigação, as fontes e metodologias
utilizadas, os recortes temporais e as possíveis linhas de pesquisa para estudo do
ensino de história. Dessa forma, observamos apenas o que os autores quiseram
destacar no próprio trabalho e não sua abordagem e discussão como um todo.
Definimos aqui como pesquisas de ensino de história as que buscaram
compreender como o ensino e o conteúdo de história se desenvolvem como processo
de aprendizagem, formação e espaço escolar, tanto para o professor quanto para os
alunos.

O ENSINO DE HISTÓRIA NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA


Propomos analisar as três dissertações em ordem cronológica, a fim de
perceber as diferenças e similitudes entre os trabalhos. O primeiro que consta no
repositório é o de Leda Potier, que foi escrito em 2014, intitulado “História para ‘ver’ e
entender o passado: cinema e livro didático no espaço escolar (2000-2008)”. Ela
analisou até que ponto os filmes são uma narrativa de entretenimento e quando pode
ser um conhecimento histórico escolar, uma vez que a narrativa cinematográfica causa
um impacto na compreensão na vida dos sujeitos, através das imagens em movimento,
influenciando na forma que vemos o passado.
Por achar inviável a pesquisa de campo com os professores de história, devido
ao curto período de tempo, ela optou por investigar em livros didáticos as
recomendações e orientações de filmes. Ela utiliza como fontes cinco coleções de livros
didáticos aprovados nos PNLD de 2005 e 2008 (a partir do Edital de 2004), do Ensino
Fundamental II; o manual e livro do professor e do aluno; os editais de convocação do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
611

PNLD; os guias do livro didático e suas resenhas. Um elemento facilitador da pesquisa


é o fato de que essas fontes se encontram no Memorial PNLD, localizado na própria
UFRN.
Um dos objetivos que perpassam a pesquisa dela é de entender o propósito do
uso de filmes no livro didático e se este é consonante com a teoria da história. Para isso,
deve ser levado em consideração que os filmes são utilizados no cotidiano dos alunos,
já que é uma narrativa de entretenimento. Os filmes históricos, os mais selecionados
nos livros didáticos, também contribuem para a formação da consciência histórica,
sendo testemunhos de época ou representações do passado.
A autora disserta sobre a dicotomia do uso dos filmes em sala de aula, que é a
narrativa cinematográfica como um entretenimento, correspondente a um anseio de
mercado; e a narrativa histórica, que utiliza os propósitos da ciência da história,
trilhando caminhos sobre como utilizar desses filmes e propondo atividades para os
alunos. Dessa forma, é possível perceber o caminho teórico que a autora utiliza de Jörn
Rüsen, visto que ela está preocupada em tratar da formação da consciência histórica
dos alunos e sua orientação no tempo, como um meio de entender seu presente e
pensar no futuro, estruturando seu conhecimento histórico (RÜSEN, 2006, p.14).
Além disso, Leda Potier utiliza como suporte teórico os conceitos de espaço
escolar, enquanto constituído em um espaço simbólico, que ultrapassa a estrutura
física da escola. Para tratar do campo da Didática da História, utiliza Jörn Rüsen,
Bergmann e Rafael Saddi. No campo da Teoria da História, destaca Michel Foucault,
abordando a escola como uma instituição moderna, e Certeau, mostrando que alunos
são sujeitos que podem oferecer resistências. No que se refere ao uso de filmes e
ensino de história, destaca, entre os principais autores, Marc Ferro, Robert Rosenstone
e Francisco Santiago.
A segunda dissertação produzida no PPGH acerca do ensino de história foi o de
Katiane da Silva, “Os usos e funções do ensino de História a partir da disciplina ‘Cultura
do RN’ (2007 a 2013)”, finalizada em 2015. A problemática de Katiane se refere a como
o ensino de história está sendo utilizado para construir uma identidade local no Rio
Grande do Norte. Ela parte das carências de orientação de grupos ligados à oligarquia
do estado para definir a herança cultural do RN, bem como para refletir sobre a função
social da história na construção da identidade. Também nesse trabalho é possível ver a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
612

influência do filósofo e historiador alemão Jörn Rüsen ao tratar da carência de


orientação e da função da história.
Katiane da Silva utiliza como suporte teórico Pierre Bourdieu e Michel Foucault
para se referir ao campo de produção dos intelectuais que estão inseridos nesse espaço
de disputa e que utilizam estratégias de dominação, as quais legitimam valores e
práticas no sistema escolar. Para a melhor compreensão do espaço escolar, ela destaca
especialmente Jörn Rüsen, Margarida Dias e Flávia Caimi. Também cita Michel de
Certeau para tratar da formação de identidade. Percebemos que ela utiliza alguns
autores em comum com Leda Potier, mas trabalha com eles de forma diferente.
No primeiro capítulo, Katiane Silva também discute espaço escolar, mas utiliza
autores diferentes (Antônio Viñao Frago e Augustín Escolano), pensando a escola
enquanto um constructo social e cultural, além das questões cognitivas e educacionais.
Diferentemente do trabalho de Leda Potier, a qual pensa o espaço escolar além dos
muros da escola, Katiane da Silva cita outros autores e pensa o espaço como objeto de
disputa e que vão além de estratégias de dominação.
Katiane Silva utiliza também dois livros didáticos sobre cultura do RN que foram
para avaliação do PNLD 2010 e 2007 e foram rejeitados. Porém, sua principal fonte é o
livro Introdução à cultura do Rio Grande do Norte, escrito por Tarcísio Gurgel, Vicente
Vitoriano e Deífilo Gurgel. Esse livro foi distribuído para as escolas e ela observou como
a narrativa vincula um projeto de identidade local, pensada a partir do lugar social dos
autores. Ela também analisa documentos oficiais, como as Diretrizes Curriculares
Estaduais para o Ensino de Cultura do RN e o Projeto Para o Desenvolvimento do
Componente Curricular Cultura do RN, produzidos durante o governo de Vilma de
Farias em 2007.
Diferentemente dos outros trabalhos do PPGH-UFRN, Katiane Silva realizou
uma pesquisa de campo na Secretaria de Estado da Educação e da Cultura e em cinco
escolas estaduais de Ensino Fundamental em Natal. Ela questiona o porquê da
disciplina ser dada pelo professor de história, pensando como a cultura se relaciona
com o ensino de história na formação da identidade. Para isso, utiliza especificamente
autores que trabalham com a tradição, patrimônio e políticas públicas, enquanto Leda
Potier utiliza uma bibliografia específica sobre cinema e ensino de história.
O último trabalho que consta no repositório é o de Jandson Soares, “Espaço
escolar e livro didático de história no Brasil: a institucionalização de um modelo a partir

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
613

do Programa Nacional do Livro Didático (1994 a 2014)”, escrito em 2017. O autor


historiciza a instituição do PNLD e também utiliza o conceito de espaço escolar,
segundo Margarida Dias. Importante destacar que ele menciona e discute os trabalhos
de Leda Potier e Katiane da Silva, mostrando como elas analisaram o espaço escolar,
ultrapassando a dimensão física da escola, bem como suas colaborações para a
construção de entendimentos que vão além dos já desenvolvidos por Foucault e
Bourdieu.
O quadro teórico é um pouco diferente, pois o autor discute o conceito de
habitabilidade de Michel de Certeau, mostrando os signos e significados, os elementos
e demarcam as fronteiras do espaço escolar e como isso está ligado às ações dos
sujeitos que vivenciam a escola. A partir desse conceito e dos usos e funções do
conhecimento histórico, ele destaca a especificidade do livro didático de história.
Diferentemente das autoras, Jandson Soares também disserta sobre a Didática
da História na Alemanha e no Brasil, visto que ele pretende retomar essas discussões
da década de 80 e que tiveram pouca repercussão. Para ajudar a pensar na narrativa
histórica do livro didático de história, ele também dialoga com Kátia Abud e Carlos
Vesentini. A metodologia que ele utiliza é de análise de conteúdo segundo Laurence
Bardin, uma vez que ele trata dos critérios de qualidade dos livros didáticos de história.
O quadro a seguir mostra os principais aspectos utilizados por cada pesquisador
nas suas pesquisas.

QUADRO 1 - Trabalhos referentes ao Ensino de História no PPGH


disponíveis no Repositório Institucional da UFRN
Autor Período Conceitos Orientador Fontes Acervos
consultados

Leda 2000 a Espaço Margarida Dias Livros didáticos NEAHD e


Potier 2008 escolar presentes no Memorial PNLD
(OLIVEIRA, Memorial do PNLD,
2013) e aprovados nas
Didática da edições de 2005 e
História 2008; editais de
(RÜSEN, Convocação e Guias
2006). do Livro Didático do
PNLD.

Katiane 2007 a Campo de Francisco Projeto para o Livro Introdução


da Silva 2013 produção Santiago desenvolvimento do à Cultura do Rio
(BOURDIEU, componente Grande do
1998) e curricular Cultura Norte, o Projeto
função social do RN; as Diretrizes e as Diretrizes

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
614

Autor Período Conceitos Orientador Fontes Acervos


consultados

da História Curriculares
(RÜSEN, Estaduais para o
2010). Ensino de Cultura do
RN, e o livro
Introdução à Cultura
do Rio Grande do
Norte (GURGEL;
VITORIANO;
GURGEL, 2003).

Jandson 1994 a Espaço Margarida Dias Definição de Memorial PNLD


Soares 2014 escolar Critérios para
(OLIVEIRA, Avaliação dos Livros
2013) e Didáticos –
Habitabilidad Português,
e (CERTEAU, Matemática,
2013). Estudos Sociais e
Ciências/ 1 ª a 4 ª
(1994);
Recomendações
para uma política
pública de Livros
Didáticos (2001) e os
Editais do Programa
Nacional do Livro
Didático para o
Ensino
Fundamental entre
os anos 2000 e
2014.
Quadro I: Teses e Dissertações sobre Ensino de História na UFRN. Elaborado pelas autoras. Fonte: Banco
de Teses e Dissertações do PPGH, PPCS e PPGED.

A partir do quadro, é possível perceber que em todas as dissertações é visível a


influência de Jörn Rüsen, uma vez que tratam da função social da história e das
carências de orientação do homem no tempo (RÜSEN, 2001). As três dissertações
utilizam suportes teóricos bem semelhantes, mesmo trabalhando conceitos diversos,
com predominância de Michel de Certeau, Michel Foucault, Margarida Dias e Pierre
Bourdieu. Todos os autores utilizam livros didáticos de História em algum momento da
pesquisa e cada um traz uma bibliografia específica: como o cinema, no caso de Leda
Potier; a tradição e o patrimônio, no caso de Katiane Silva e, para Jandson Soares, a
análise de conteúdo segundo Laurence Bardin.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
615

O ENSINO DE HISTÓRIA NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO


Na investigação feita no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN,
encontramos cinco trabalhos voltados para o ensino de história, sendo três teses e
duas dissertações. As dissertações produzidas no programa têm como principal
característica o campo de análise o ambiente escolar. Sendo possível perceber que os
esforços das pesquisas estão voltados para a compreensão de ensino de história no
ambiente escolar e o professor como objeto principal de análise, buscando saber como
se dá o processo de ensino de conceitos, a aplicação da teoria da história juntamente
com demandas escolares e a utilização dos livros pelos professores.
Já as teses produzidas no programa se voltam ao discurso do livro e do
professor, como é esse diálogo no processo de ensino, percebendo a atuação docente
e os materiais de apoio como objeto principal de questionamento. Sendo assim, no
primeiro momento iremos analisar os trabalhos de dissertação em ordem cronológica,
em segundo momento iremos trazer os trabalhos de teses seguindo o mesmo
ordenamento. Possibilitando a observação de um processo de rupturas e continuidades
nas abordagens nas pesquisas de ensino de história.
Na dissertação de Eden Lemos. “Relações entre teorias da história e ensino de
história: a compreensão dos professores” de 2009, busca olhar o professor sobre sua
atuação de como relaciona a teoria da história e a prática docente. Focando dessa forma
na formação do professor que como sua abordagem pode refletir aspectos da teórica
história. O autor utiliza como referência Flick, Ardoiono, Frijof Carpa e Marli André. No
entanto, é notável que o pesquisador trata a relação ensino de história e teoria da
história como áreas distintas, mas que se influenciam. O que entra em discordância com
a teoria de Jörn Rüsen, muito bem ilustrada na sua matriz disciplinar (Figura 1) que
enxerga a teoria e ensino da história como parte de um mesmo ciclo de conhecimento.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
616

FIGURA 1 - Matriz Disciplinar no Pensamento Rüseniano (RÜSEN, 2001, p. 35)

Desta forma, LEMOS (2009) acaba tratando a pesquisa olhando a formação do


professor, avaliando como deficiente o entendimento sobre a teoria da história, mesmo
eles tendo entendimento dessa importância, sendo claramente uma queixa sobre a
formação docente. Sendo uma pesquisa que utiliza o diário de campo e entrevistas
como fonte, reconhecemos a fala dos professores pesquisados no processo, suas
posições com relação à formação docente assim como a formação continuada no meio
profissional.
Ao observamos o trabalho de Diego Firmino, “Ensinar/aprender a gostar de
história: saberes docentes e construção do conhecimento histórico escolar com
professores de Arez-RN”, de 2013, temos uma pesquisa sobre aprendizagem
significativa (SCHMIDT, 2015). Buscando entender como os professores pesquisados
faziam para os alunos se interessarem pelo conhecimento histórico escolar, tendo um
olhar para o método de ensino e aprendizagem, no processo aluno-professor de uma
relação menos opressiva. Perceber o interesse do aluno para a apresentação da
informação (Figura 1). Como forma de exercício de autonomia e criticidade para o
ambiente escolar.
Utilizando-se de conceitos e abordagens como de Lee Shulman, Maurice Tardiff,
Bernard Charlot, Elsa Garrido e Selma Pimenta, o trabalho foi realizado a partir do
método qualitativo de investigação, através de entrevistas individuais e coletivas, diário
de campo, sessões reflexivas. Possibilitando a coleta de dados não só dos professores
pesquisados, mas dos sujeitos que compõe o espaço escolar.
Como já dito, as teses observadas neste trabalho tem como principal foco de
pesquisa a prática e a formação do docente. No trabalho de José Evangelista Fagundes
“A história local e seu lugar na história: histórias ensinadas em Ceará-Mirim”, de 2006,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
617

propõe a investigação sobre o ensino de história local no ensino fundamental, como é


abordado pelo professor e qual o espaço desse conteúdo na formação escolar. O autor
utiliza do método qualitativo, trabalhando com entrevistas durante quatros anos.
Tendo como principal referencial teórico Jacques Le Goff e Marc Ferro. Sendo uma
pesquisa pautada na importância de se ensinar a história local, a hierarquização do
conteúdo e o lugar marginalizado. Mas não aborda como os alunos recebem o
conteúdo, como processo de formação do aluno que perpassa o saber conteudista ou
saudosista para um saber significativo, de construção de identidade, de espaço, de lugar
do aluno-cidadão.
No trabalho de Suelidia Maria Calaça “O processo ensino-aprendizagem de
história no ensino fundamental: seus limites, suas possibilidades”, de 2008, a autora
faz umas pesquisa de dez anos na Escola Municipal de Ensino Fundamental Zumbi dos
Palmares da cidade de João Pessoa - PB, de 1996 a 2006, com objetivo que
compreender o processo de ensino e aprendizagem dos conceitos de história, tempo,
sociedade e cultura. Utilizando como método de pesquisa a pesquisa qualitativa e vários
instrumentos, como: entrevistas, questionários, etnografia. Apresenta-se como
principal suporte teórico Carlos Rodrigues Brandão, Michael W. Apple, Janaína Amado
e Circe Bittencourt.
CALAÇA (2008) propõe uma pesquisa aprofundada sobre o processo
aprendizagem, um acompanhamento cauteloso sobre a abordagem de conceitos que
ela considera importante no ensino de história. No entanto seu estudo se apresenta de
forma pedagogizada (MUNAKATA, 2009). Mesmo se atendo ao processo temporal, ela
se utiliza do olhar didático, de como foi ensinado e aprendido. Tendo a ausência
historicidade do processo educacional.
Já o trabalho de Antônia Batista Marques “A formação da habilidade de explicar
no contexto do ensino médio: o que dizem os livros? o que pensam os professores?”,
de 2014, nos deparamos com um novo objeto de análise, o livro didático, como material
autônomo e sua relação com o professor. A autora tem como objetivo investigar como
se explica o conceito de revolução social pelo professor e pelo livro, dessa forma ela
volta o olhar para a análise de discurso, tendo como principais autores Eni Orlandi e
Bardin, assim como a pesquisa qualitativa no qual se utilizou de protocolo das análises
dos livros, elaborado para esse estudo, e a entrevistas com professores.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
618

Os resultados apresentados por Antônia Batista nos mostra um novo olhar para
o livro didático e a formação do professor, já que ela coloca o discurso do docente como
responsável pela formação e explicação do conceito não de forma epistemológica, mas
sim significativa aos alunos, e coloca o livro como um importante auxiliar no processo
de entendimento e aprendizagem. No entanto, temos mais uma vez um estudo que se
volta ao “ensinar história” com o olhar didático, metodológico, distante da reflexão de
historicidade.
O quadro seguinte contém os aspectos principais das pesquisas, possibilitando
uma observação comparativa. Podendo notar que a metodologia das pesquisas parte
da mesma proposta, e a diferenciação dos trabalhos está nas questões de aprendizado:
Como se aprende? - tempo, revolução social, história local, conhecimento de mundo,
conteúdo histórico – E essa especificação é que passa a nortear os quadros teóricos e
suas conclusões.

QUADRO 2 - Trabalhos referentes ao Ensino de História no PPGED


disponíveis no Repositório Institucional da UFRN
Autor Período Conceitos Orientador Fontes Acervo
Consultados
Eden 2007 a Ecologia João Maria Entrevista Acervo produzido
Ernersto de 2009 profunda Valença de e diário de pelo pesquisador
Lemos Silva (Frijof Capra); Andrade campo no processo de
Artesanato metodologia
intelectual qualitativa
(Charles
Wright Milles,
1982).
Diego 2011 a “O saber do João Maria As fontes O acervo foi
Firmino 2013 professor” Valença de foram produzido a partir
Chacon (Tardiff, 2011, Andrade produzida das fontes
p. 18), “História s pelo coletadas a partir
escola” pesquisad do método
(Monteiro, or a partir qualitativo
2007, p. 228) do colaborativo na
método Escola Estadual
qualitativ Jacumáuma.
o
colaborati
vo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
619

Autor Período Conceitos Orientador Fontes Acervo


Consultados
José 2002 a História Local Maria Sucupira Depoimen A pesquisa foi feita
Evangelista 2006 Stamatto tos e através de
Fagundes entrevista entrevistas.
s
individuai
s com
três
professor
es-
colaborad
ores
sobre as
concepçõ
es de
historiogr
afia, de
história
como
disciplina
e da
história
local.

Maria 1996 a História, Maria Sucupira


Como foi O trabalho foi
Suelidia 2006 tempo, Stamatto utilizado realizado a partir
Calaça sociedade e do do método
cultura. método qualitativo e as
qualitativ fontes foram
o, o produzidas e
pesquisad consultadas em
or campo.
produziu
suas
fontes a
partir do
método
etnográfic
o.
Antônia 2010 a Revolução Isauro Muniz Entrevista Livros do PNLD
Batista 2014 Social; Ñunes s e fichas utilizados na escola
Marques Histórico de e entrevista
Cultural. análises desenvolvida pelo
de livros, pesquisador.
utilizando
o método
qualitativ
o.
Quadro II: Teses e Dissertações sobre Ensino de História na UFRN. Elaborado pelas autoras. Fonte:
Banco de Teses e Dissertações do PPGH, PPCS e PPGED.

O quadro seguinte contém os aspectos principais das pesquisas, possibilitando


uma observação comparativa. Podendo notar que a metodologia das pesquisas parte
da mesma proposta, a diferenciação dos trabalhos está nas questões de aprendizado

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
620

“Como se aprende?”. Direcionando aos conceitos: tempo, revolução social, história


local, conhecimento de mundo, conteúdo histórico. E essa especificação é que passa a
nortear os quadros teóricos e suas conclusões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas análises dos diversos trabalhos, é possível notar que no PPGH
prioriza-se trabalhar com o saber histórico escolar, tanto no PNLD como nos livros
didáticos de História. Também é presente a relação com a Didática da História, ao tratar
da formação do conhecimento histórico, da aprendizagem histórica e da função social
da história. Além disso, observamos a influência de cada trabalho sobre o outro,
inclusive ao mencionar a contribuição dos demais no Programa. Dada a área do
Programa ser de História e Espaços, as três dissertações partem da compreensão do
espaço escolar, partindo das contribuições de Margarida Dias, Antônio Frago e
Augustín Escolano.
Já no PPED podemos notar um padrão de metodologia de pesquisa, tanto os
trabalhos de mestrado como os de doutoramento, já que tinham como fonte e acervo
o espaço escolar e consequentemente se utilizava do método qualitativo, se valendo de
entrevistas, cadernos de campo, questionários. Sendo importante notar também que o
olhar para o ensino de história em todos os trabalhos partiu da questão metodológica,
de como se aprende, como se ensina, o processo de explicar, como se fazer gostar do
conteúdo de história. Se voltando para pedagogia do ensino de história e se
distanciando da historicidade do ensino de história, da compreensão do saber histórico
e sua função.
Dessa forma, de maneira comparativa, podemos afirmar a partir dos trabalhos
aqui observados que ambos trabalham com o espaço escolar, mas enquanto no PPGED
é priorizado as entrevistas e a ida à campo, no PPGH, o espaço é pensado enquanto uma
dimensão física, além dos muros da escola.
Vale destacar que está ocorrendo na UFRN o desenvolvimento de outras linhas
de observação do ensino de história, a partir do programa nacional de Mestrado
Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA), coordenado pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na UFRN, é chamado de Programa de Pós-graduação
em Ensino De História (PPGEH) e contém três linhas de pesquisa: Saberes históricos
no espaço escolar; Linguagens e narrativas históricas: produção e difusão e Saberes

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
621

históricos em diferentes espaços de memória. O edital para ingresso em 2018 foi


lançado na data de 17/07/2017. Devido a recente criação do programa, este ainda não
conta com defesa de dissertações, mas já existem 19 bancas de qualificações marcadas
no período de março a abril de 2018.
O Mestrado Profissional traz para o espaço acadêmico o professor de história,
seja de escola pública ou particular, com o olhar atuante em sala de aula para produzir
sua pesquisa de ponta. Vale ressaltar a importância do novo Programa para o
desenvolvimento das pesquisas, pois traz para a discussão pessoas para falar do seu
lugar de fala, do processo de ensino e formação que eles vivenciam, partindo de uma
percepção prática do ensino de história.

REFERÊNCIAS
CAIMI, Flávia Eloisa. “Investigando os caminhos recentes da história escolar:
tendências e perspectivas de ensino e pesquisa”. In: ROCHA, Helenice. MAGALHÃES,
Marcelo. GONTIJO, Rebeca. (org.). O ensino de história em questão: Cultura histórica,
usos do passado. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.

CALAÇA, Suelidia Maria. O processo ensino-aprendizagem de história no ensino


fundamental: seus limites, suas possibilidades. 2008. 178 f. Tese (Doutorado em
Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008.

CHACON, Diego Firmino. Ensinar/aprender a gostar de história: saberes docentes e


construção do conhecimento histórico escolar com professores de Arez-RN. 2013. 212
f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2013.

FAGUNDES, José Evangelista. A história local e seu lugar na história: histórias


ensinadas em Ceará-Mirim. 2006. 195 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.

LEMOS, Eden Ernersto da Silva. Relações entre teorias da história e ensino de


história: a compreensão de professores. 2009. 167 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2009.
MUNAKATA, Kazumi. Devem os livros didáticos de história ser condenados?. In:
Helenice Rocha; Marcelo Magalhães; Rebeca Gontijo. (Org.). A escrita da história
escolar: memória e historiografia. 1ed. Rio de Janeiro: FGV, 2009, v. 1, p. 281-292.

POTIER, Leda Virginia Belarmino Campelo. História para "ver" e entender o passado:
cinema e livro didático no espaço escolar (2000-2008). 2014. 151f. Dissertação
(Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
622

RÜSEN, Jörn. Razão histórica - Teoria da história: fundamentos da ciência histórica.


Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: UnB, 2001.

_____. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso


alemão. Práxis Educativa. Ponta Grossa, PR. v. 1, n. 2, p. 07 – 16, jul.-dez. 2006.

SCHMIDT, Maria A. Consciência histórica e aprendizagem: teoria e pesquisa na


perspectiva e da educação histórica. In: ROCHA, Helenice. MAGALHÃES, Marcelo.
GONTIJO, Rebeca. (org.). O ensino de história em questão: Cultura histórica, usos do
passado. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015, p. 36-54.

SILVA, Katiane Martins Barbosa da. Os usos e funções do ensino de História a partir
da disciplina “Cultura do RN” (2007 a 2013). 2015. 153 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, 2015.

SOARES, Jandson Bernardo. Espaço escolar e livro didático de história no Brasil: a


institucionalização de um modelo a partir do Programa Nacional do Livro Didático
(1994 a 2014). 2017. 187f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
623

A DIVERSIDADE ÉTNICA E CULTURAL DO RIO


GRANDE DO NORTE EM PERSPECTIVA: O PIBID
INTEGRANDO TEORIA E PRÁTICA.

Bárbara Silva Araújo499


Gustavo Ítalo Freire500

FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A PROPOSIÇÃO DA ATIVIDADE


Ensino, pesquisa e extensão são as bases que compõem o funcionamento das
universidades públicas no Brasil. Nesse sentido, a extensão aparece como instrumento
de aproximação do ambiente acadêmico com a comunidade, interligando-os. É um dos
caminhos que visa desenvolver uma formação acadêmica completa, integrando teoria
e prática. As experiências adquiridas através de projetos de extensão permitem ao
aluno da graduação potencializar o conhecimento produzido, integrando-o a uma
função social.
Nas licenciaturas objetiva-se a formação docente, no entanto, conforme nos
revela a pesquisa de Gatti e Nunes (2009), as propostas curriculares de cursos de
licenciatura em todo o Brasil mantêm-se em modelos idealizados, predominando os
estudos teóricos e as disciplinas de formação genérica. No que diz respeito à formação
para a prática docente, a relação teoria-prática é quase ausente nas dinâmicas
curriculares.
A sala de aula é sempre um desafio, mas também um laboratório de
experiências, afinal, não se aprende a ser professor apenas estudando teorias e
orientações didáticas, mas adequando-as a uma práxis. Isso envolve planejar, executar,
refletir, experienciar. Dentro de sala de aula o mundo é completamente diferente. Em
um espaço menor convergem todas as complexidades do mundo que se reflete na
dinâmica do processo de ensino-aprendizagem. Menor em tamanho, mas gigante diante
de sua complexidade, a sala de aula é a árvore da nossa floresta. É neste pequeno
mundo que o aluno licenciado, ao concluir a graduação, encara o desafio da docência e
vivencia com outros olhos o papel da educação. Concordamos, nesse sentido, com
Pimenta (2005, p. 26) quando nos diz que:

499 *Graduanda em História (UFRN). Bolsista Capes. E-mail: barbara.araujo18@hotmail.com


500 Graduando em História (UFRN). Bolsista Capes. E-mail: gustavo.italo.freire@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
624

A formação inicial só pode se dar a partir da aquisição da experiência


dos formandos (ou seja, tomar a prática existente como referência para
a formação) e refletir-se nela. O futuro profissional não pode construir
seu saber-fazer senão a partir de seu próprio fazer, não é senão sobre
essa base que o saber, enquanto elaboração teórica, se constitui.

Para os cursos de licenciatura, pois, “a extensão favorece o contato direto para


o desenvolvimento da prática docente, que possibilita o desenvolvimento de
metodologias de ensino que potencializam a sua formação acadêmica” (MANCHUR,
SURIANI, CUNHA, 2013, p. 335). Nesse contexto, o Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID) surge como um projeto de extensão desenvolvido a fim de
possibilitar ao licenciando o contato com a escola, com a sala de aula ainda durante a
formação inicial.

O Pibid [...] é uma proposta de incentivo e valorização do magistério e


de aprimoramento do processo de formação de docentes para a
educação básica. Os alunos de licenciatura exercem atividades
pedagógicas em escolas públicas de educação básica, contribuindo
para a integração entre teoria e prática, para a aproximação entre
universidades e escolas e para a melhoria de qualidade da educação
brasileira. (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2014, p. 05)

O PIBID, ao garantir este contato prévio, tem se mostrado de fundamental


importância na formação dos estudantes dos cursos de licenciatura. É, dessa forma, a
fim de explicitar este diálogo entre educação superior e educação básica que
apresentamos neste texto a experiência de uma atividade desenvolvida pelos bolsistas
do subprojeto do PIBID História/Natal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) na Escola Estadual Zila Mamede (EEZM). Pretendemos, também, através do
relato de experiência, demonstrar a relevância do PIBID no processo de formação de
alunos-futuros-professores, como instrumento potencializador da integração entre
teoria e prática.
Relatar uma experiência não consiste apenas em narrar e descrever o desenrolar
dos acontecimentos. Um relato de experiência implica contribuir de forma relevante
para a sua respectiva área de atuação. Afinal, é preciso divulgar para somar, contribuir,
compartilhar. Divulgar (e ter conhecimento sobre) experiências em sala de aula permite
suscitar reflexões sobre o ensino de forma geral, mas também discutir outras
possibilidades de metodologias a serem utilizadas no ambiente escolar.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
625

Historicamente, o ensino no Brasil sempre foi um desafio. Diversos projetos e


leis foram instituídos ao longo do tempo a fim de sistematizar e melhorar a qualidade
do ensino no país. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/06),
um marco na história da legislação que regulamenta a educação no país, afirma que:

a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de


liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1996, p. 07, grifo
nosso)

Desde sua institucionalização no Século XIX até os dias atuais, o ensino de


história sofreu grandes modificações. Conforme nos informa Oliveira (2010, p. 23):

os conteúdos tradicionais trabalhados no ensino fundamental


começam a sofrer alterações significativas em meados do século XX. A
renovação temática e a inclusão de novos objetos proporcionaram
mudanças significativas no entendimento do que vêm a ser conteúdos
em História.

Pressionada pela luta do Movimento Negro no Brasil, a LDB foi alterada pela Lei
nº 10.639 de 2003, tornando obrigatório no ensino de história o estudo da História e
Cultura Africana e Afro-brasileira, e posteriormente substituída pela Lei nº 11.645 de
2008, inclui a História e Cultura Indígena. Por meio da educação e valorização da história
e cultura dos povos afro-brasileiros e indígenas, objetiva-se transformar as relações
étnico-raciais e assim combater o racismo, bem como qualquer outra forma de
discriminação.
A escola, nesse sentido, “constitui-se como um espaço garantidor dos desejos e
direitos que a sociedade considera como fundamentais” (SILVA, 2015, p. 22). E o ensino
de história deve estar, portanto, voltado

a compreensão e a preparação para o exercício da cidadania, em torno


do que se articulam temáticas presentes [...] na atualidade, tais como a
do respeito à diversidade de comportamentos culturais; a liberdade de
afiliação e escolha política e religiosa; a compreensão das
desigualdades sociais; a situação da criança, da mulher, do idoso, dos
negros e dos indígenas na sociedade brasileira etc. (GATTI JÚNIOR,
2010, p. 105-106)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
626

Apesar das significativas mudanças ainda persiste nas práticas escolares e nos
livros didáticos uma abordagem predominantemente etnocêntrica, visão esta marcada
“pelos pressupostos de uma ideia de História universalizante, cronológica e
eurocentrada” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 24).
No caso da história do Rio Grande do Norte, grupos indígenas e afro-
descendentes sofrem, historicamente, com um processo de silenciamento de suas
memórias. É uma constante nas narrativas históricas a afirmação de que negros
tiveram uma presença irrelevante na composição e construção da sociedade potiguar.
No entanto, “quando examinamos de perto a tradição oral, verificamos a existência de
elementos recorrentes que, apreendidos conjuntamente, terminam por informar sobre
um passado que não foi registrado nos livros de história” (CAVIGNAC, 2003, p.2).
Diante deste aspecto da historiografia sobre o Rio Grande do Norte e com base
nessas concepções do ensino de história e sua função na educação básica, o grupo de
bolsistas do PIBID de História da UFRN realizou com os alunos da Escola Estadual Zila
Mamede a produção de uma sala temática, intitulada “Comunidade Quilombola de
Capoeiras”501. Concordamos, nesse sentido, com a historiadora Maria Telvira Conceição
(2015) ao defender que não basta inserir no currículo escolar conteúdos que façam
alusão aos povos africanos, é preciso antes que se tenha uma nova visão sobre como
se escrevem (e foram escritas) essas narrativas, posto que a omissão historiográfica
também interfere diretamente no processo de construção de identidades.
Por meio da atividade proposta (e aqui relatada) tínhamos como objetivo
principal incentivar o questionamento sobre os elementos que integram a identidade
étnica e cultural no Rio Grande do Norte. Ao possibilitar às alunas e alunos conhecerem
outras narrativas possíveis sobre a experiência histórica potiguar, pretendíamos fazê-
los perceber que existem discursos sobre a história e cultura do Rio Grande do Norte
que silenciaram (e silenciam) a contribuição de diferentes grupos para a formação do
Estado.

501A sala temática foi apresentada a comunidade escolar durante a Semana da Cidadania, evento
igualmente pensado e organizado pelos bolsistas do PIBID História/Natal da UFRN. Com duração de três
dias, a Semana da Cidadania consistiu na apresentação de trabalhos, bem como rodas de conversas, cujos
temas eram inclusão social, gênero e consciência negra.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
627

RELATO DA EXPERIÊNCIA: AÇÕES POR UMA NOVA ESCOLA


Antes de adentramos na descrição do processo de produção da sala temática,
cabe apresentarmos o contexto da escola onde a atividade foi realizada. A Escola
Estadual Zila Mamede fica localizada na Rua Maracai, s/n, bairro Pajuçara, Zona Norte
de Natal. Trata-se de uma escola com 11 (onze) salas de aula, funcionando nos turnos
matutino, vespertino e noturno; seu público provém, em sua maioria, do bairro onde a
escola está localizada. Dessa forma, os alunos da Escola Estadual Zila Mamede estão
inseridos em contextos sociais marcados pelas desigualdades, compondo classes
historicamente afastadas do exercício da cidadania e da historiografia.
A região onde a instituição está localizada é marcada pela desigualdade social,
de modo que os moradores convivem diariamente com a violência e demais problemas
de estrutura e desenvolvimento. A referida escola, assim como tantas outras da rede
pública, enfrenta fortes dificuldades por conta da omissão dos gestores do Estado,
sendo uma escola que carece de profundas melhorias na infraestrutura, como por
exemplo, a ausência de laboratórios de ciências e informática; a falta de carteiras, entre
outros.
Foi diante deste cenário e com base nas orientações legais sobre a educação
básica e nos dados levantados no diagnóstico – primeira atividade que realizamos na
escola - que decidimos promover a produção da sala temática, cujo ponto de partida
seria a visita a Comunidade Quilombola de Capoeiras, localizada na zona rural do
município de Macaíba/RN, a 23 km da Capital.
Reunidos em um grupo de 20 (9º ano a 3ª série do ensino médio), os estudantes
foram divididos em três grupos, a partir do tipo de material a ser produzido: mini
documentário, exposição fotográfica e zine502. Cabe aqui ressaltar que nossa escolha
pela produção de três tipos de materiais se deu, primeiramente, com base na concepção
de que se deve ensinar história como se produz História503. É certo que precisamos
levar em conta que há especificidades entre o conhecimento histórico produzido na

502 Um zine consiste num meio de comunicação independente não profissional e não oficial, que
funciona como divulgação de conteúdos e materiais diversos, tratando especialmente de temas que a
imprensa oficial não aborda com profundidade.
503 Conforme Oliveira (2010, p. 11), para que a pesquisa histórica seja produzida: 1) elege-se uma

problemática (tema, período histórico); 2) tem-se o tempo como categoria principal (como o assunto em
estudo foi enfrentado por outras sociedades); 3) dialoga-se com o tempo por meio das fontes (utiliza-se
o livro didático, mapas, imagens, músicas, documentos); 4) utilizam-se instrumentos teóricos e
metodológicos (conceitos, formas de proceder); 5) constrói-se uma narrativa/interpretação/análise
(pede- se um texto, um debate, uma peça teatral, uma redação, uma prova).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
628

pesquisa acadêmica daquele produzido na educação básica – não se pretende


transformar o aluno num “pequeno historiador”. Optamos por tal direcionamento
porque partimos do pressuposto que a

forma de produção do conhecimento histórico compreendido pelo


ensino e construído como conhecimento pelos alunos é que diferencia
esse conhecimento dos outros e que dá condições ao ser humano de
pensar historicamente e de reconhecer-se como sujeito de uma
sociedade diferente de outras sociedades que convivem no mesmo
tempo ou que se construíram em tempos históricos diferentes
(OLIVEIRA, 2010, p. 11-12).

Ademais, além de trabalhar com a diversidade de linguagens (imagem, texto


escrito e audiovisual), procuramos desenvolver certas competências, priorizando,
assim, “processos capazes de gerar sujeitos inventivos, participativos, cooperativos,
preparados para diversificadas inserções sociais, políticas, culturais, laborais e ao
mesmo tempo capazes de intervir e problematizar as formas de produção e de vida.”
(BRASIL, 2013). Vejamos agora as etapas do processo de desenvolvimento da atividade.

Primeira fase
A primeira fase da atividade consistiu nas reuniões do PIBID de História,
realizadas uma vez por semana junto aos demais bolsistas – atuantes em outras
escolas do Estado - e as coordenadoras do subprojeto, responsáveis por nos orientar
nas nossas atividades, priorizando a formação de professores compromissados em
formar cidadãos e não meros reprodutores dos conteúdos curriculares. Durante as
reuniões, debatíamos sobre o contexto da escola e nossas expectativas quanto a
realização da atividade aqui relatada.
Nosso projeto era desafiador. Tínhamos um grupo de 20 alunos de diferentes
turmas. Diante de nós surgiam questionamentos: como definir objetivos em comum?
Como alcançá-los? Foram a partir desses encontros que tivemos a possibilidade de nos
reinventar sempre que necessário. Foram nessas reuniões que colegas e
coordenadoras nos sugeriam ideias, referências bibliográficas mas, sobretudo, nos
encorajavam a seguir adiante.
Semanalmente, os bolsistas que atuavam na Escola Estadual Zila Mamede
também se reuniam. Era preciso estabelecer nossos objetivos, bem como determinar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
629

os mecanismos a alcançá-los. Definido o nosso planejamento, partimos para a segunda


etapa.

Segunda fase

Para que a atividade fosse bem sucedida, os alunos foram orientados e acompanhados
antes, durante e após a visita. Inicialmente, nos reunimos com o grupo de alunos para
discutir seus conhecimentos prévios acerca da temática que seria abordada.
Debatemos questões sobre identidade, perguntamos o que sabiam sobre a
participação do negro na formação do Estado potiguar, se conheciam ou se tinham
conhecimento do que era uma comunidade quilombola e qual a sua importância na
história da população afrodescendente no Brasil.

Imagem 1: Reunião com os estudantes para orientação e discussão da atividade.

Debatemos também a oralidade como fonte histórica, assim como orientamos


acerca dos produtos que construiriam como resultado das informações levantadas.
Além, claro, de discutir com eles os objetivos da atividade, a fim de evidenciar os
motivos de nossas escolhas quanto à visita e os materiais que seriam produzidos por
eles. Como os alunos iriam realizar entrevistas e registrar a visita em vídeo e
fotografias, orientamos ainda acerca da forma como deveriam dirigir-se aos moradores
da comunidade, sempre tentando deixar claro que éramos “intrusos” em um espaço
aberto a visitantes e que, portanto, era essencial que fossemos respeitosos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
630

Os estudantes foram divididos em três grupos por tipo de material a ser


produzido: mini documentário, exposição fotográfica e zine. Cada grupo ficou sob a
supervisão de dois bolsistas, responsáveis por acompanhá-los em todo o processo da
atividade. In loco, o grupo fez entrevistas com lideranças e moradores, coletou falas,
observou o espaço, registrou momentos e paisagens, participou de rodas de conversa,
de capoeira, como também de apresentações culturais.

Imagem 1: Roda de capoeira na comunidade Capoeiras.


Registro feito pelos alunos e exibido na exposição de fotos da sala temática.

Terceira fase
Após a visita e com bastante material coletado, o grupo deu início ao
desenvolvimento dos produtos. Para tanto, realizamos na escola reuniões semanais
com a finalidade de acompanhá-los nesse processo, desde a seleção das fotos ao
processo de edição do vídeo, e escrita dos relatos apresentados no ZineZila.
A exposição fotográfica objetivava lançar um olhar sobre outras realidades a fim
de valorizar a diversidade a partir da experiência, percebendo a existência de múltiplas
experiências históricas e reconhecendo as diversas identidades que compõem a
sociedade brasileira (OLIVEIRA, 2010, p. 64).
O mini documentário, por sua vez, procurou mostrar como se dá o processo de
resistência de uma comunidade quilombola, apresentando as entrevistas com as
lideranças e cenas registradas, como as apresentações de danças e a roda de capoeira.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
631

Os textos do ZineZila foram produzidos a partir das entrevistas, bem como da


observação atenta e dos olhares questionadores dos alunos. O resultado é reflexo de
suas impressões, de modo que identificaram nas fontes orais dados referentes à
historicidade, economia e cultura da comunidade. Além de escreverem os relatos, os
alunos também tiveram que selecionar fotografias que ilustrassem o que estava sendo
dito no texto escrito, estabelecendo um diálogo entre texto e imagem. Buscou-se
principalmente valorizar o esforço e trabalho realizado pelos estudantes envolvidos na
produção do ZineZila, divulgando seus nomes na ficha catalográfica como
colaboradores do material. Não somente, o desenho da capa é de autoria de um dos
alunos.

Imagem 2: Capa e ficha catalográfica do ZineZila

Quarta fase
Com todo o material devidamente sistematizado, era hora de apresentar para a
escola a Sala Temática “Comunidade Quilombola de Capoeiras”. Os alunos decidiram a
organização do espaço da sala, assim como determinaram os componentes de cada
grupo, responsável por expor o material produzido. Durante a exposição, deveriam
explicar o processo de produção do material, além de relatar suas impressões sobre a
comunidade e a atividade em si.
Cabe ressaltar que a sala temática, apresentada na “Semana da Cidadania”,
estava atrelada as discussões sobre consciência negra. Nesse sentido, os alunos foram

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
632

incentivados a pensar de que modo a visita a comunidade, as informações coletadas e


os materiais por eles produzidos poderiam contribuir para o debate em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: BALANÇO E PERSPECTIVAS


O trabalho do professor na sociedade contemporânea certamente tem exigido
competências e habilidades que muitas vezes não são desenvolvidas nos cursos de
licenciaturas. O PIBID, nesse sentido, foi de importância ímpar para que pudéssemos
articular teoria e prática durante a graduação, objetivando contribuir na formação
cidadã dos nossos alunos, que atuaram sempre como construtores do conhecimento.
Longe de ser apenas um projeto que insere o aluno licenciando em sala de aula, O PIBID
nos permitiu arriscar, no sentido de oferecer instrumentalização teórica e
oportunidades para desenvolvê-las na prática, no chão da sala de aula.
Diante do contexto da Escola Estadual Zila Mamede, os bolsistas do subprojeto
do PIBID de História da UFRN se viram desafiados a fazer escolhas que fossem
significativas para os alunos, mas, sobretudo, que corroborassem com os objetivos do
ensino de história na educação básica. Por meio da visita a Comunidade Quilombola de
Capoeiras buscou-se não apenas a valorização da história e cultura dos povos afro-
brasileiros, mas também revelar narrativas que foram silenciadas historicamente.
Durante a visita a Comunidade e posteriormente durante todo o processo de
produção dos materiais que seriam apresentados na sala temática, os estudantes
foram incentivados a pensar na importância do conhecimento histórico como
fundamental ao ser humano para reconhecer-se como sujeito, responsável por
construir e transformar a sociedade em que vive.
Ao optarmos pela produção de três tipos de materiais, incentivamos os nossos
alunos a serem inventivos em suas produções. Eles precisavam (e desejavam) ser
criativos, uma vez que seus trabalhos seriam exibidos para toda a escola. Desse modo,
eles foram não só participativos, mas cooperativos, ajudando uns aos outros em
diversas situações.
Através das entrevistas realizadas com líderes e membros da comunidade, os
estudantes conseguiram perceber a importância da tradição oral na perpetuação e
manutenção de um passado que, por vezes, não foi registrado nos livros de história.
Além do que, ao identificarem nessas falas a presença dos negros na composição e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
633

construção da sociedade potiguar, passaram a problematizar porque sabiam tão pouco


da história dos negros no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte.
Isso significa dizer que os objetivos propostos foram alcançados. Ao
conhecerem outras narrativas possíveis sobre a experiência histórica potiguar, os
estudantes perceberam que existem discursos sobre a história e cultura do Rio Grande
do Norte que silenciaram (e silenciam) a contribuição de diferentes grupos para a
formação do Estado. Enfatizamos, portanto, o sucesso da atividade, haja vista o
empenho dos alunos, sua disposição em realizar este trabalho, além da qualidade de
suas produções e riqueza das discussões. Ao problematizarem a história dos negros no
Brasil, os estudantes demonstraram maior criticidade, por exemplo, quanto ao uso (e a
necessidade) de cotas nas universidades.
Por meio do trabalho investigativo e fazendo uso dos procedimentos
elementares da pesquisa histórica, os estudantes da Escola Estadual Zila Mamede
demonstraram a potencialidade do conhecimento produzido na educação básica, ao dar
voz a uma história de resistência e de valorização étnica e cultural, evidenciando a
pluralidade de saberes, narrativas e formas de experimentar e sentir o vivido. Afinal,
como afirma a professora Elza Nadai (1991, p. 16):

estuda-se história para poder pensar o outro. Para entender a dialética


da mudança e da permanência. Ver que a vida não é retilínea e que o
futuro pode ser diferente do presente. Mais do que entender o
passado, estudar a história é trabalhar a diferença, a tolerância.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consituicao/constituicao.html>.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. LDB– Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro


de 1996. Brasília: MEC, 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes


Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

CAVIGNAC, Julie. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte.


Mneme – Revista de Humanidades/UFRN. Rio Grande do Norte, v.4, n.8, abr/set. 2003.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
634

CONCEIÇÃO, Maria Telvira. Interrogando discursos raciais em livros didáticos de


História: entre Brasil e Moçambique -1950-1995. Tese (Doutorado em História) –
Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2015.

FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. Um estudo avaliativo do Programa Institucional de


Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid). / Bernardete A. Gatti; Marli E. D. A. André;
Nelson A. S. Gimenes; Laurizete Ferragut, pesquisadores. – São Paulo: FCC/SEP, 2014.

GATTI JÚNIOR, Décio. Demandas sociais, formação de cidadãos e ensino de História. In:
OLIVEIRA, Margarida Marias Dias de (coord.) História: Ensino Fundamental. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o
Ensino; v. 21)

GATTI, B. A.; NUNES, M. (Org.). Formação de professores para o ensino fundamental:


estudo de currículo das licenciaturas em pedagogia, língua portuguesa, matemática e
ciências biológicas. São Paulo: FCC, 2009. (Textos FCC, n. 29).

MANCHUR, Josiane; SURIANI, Ana Lucia Affonso; CUNHA, Márcia Cristina da. A
contribuição de projetos de extensão na formação profissional de graduandos de
licenciaturas. Revista Conexão. Ponta Grossa, v. 9, n. 2, p. 334-341, 2013.

NADAI, Elza. apud. Lagoa, Ana. História. O bonde que a escola perdeu. In:Revista Nova
Escola. (São Paulo: Abril, n. 53, nov. 1991, p. 16).

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (coord.) História: Ensino Fundamental. Brasília:


Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o
Ensino; v. 21)

PIMENTA, Selma Garrido. (Org.). Saberes pedagógicas e atividade docente. 4ed. São
Paulo: Cortez, 2005.

RIO GRANDE DO NORTE. Secretaria de Estado da Educação e da Cultura. Diretrizes


Curriculares Estaduais para o Ensino de Cultura do RN, 2007. (Documento
preliminar).

SILVA, Katiane Martins Barbosa da.Os usos e funções do ensino de História a partir
da disciplina “Cultura do RN” (2007 a 2013). 2015. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
635

LIBERDADE PARA A CIDADANIA:


EM BUSCA DE UMA OUTRA REALIDADE

Jonatas Ezequiel Silva Duarte 504


Tiago do Nascimento Silva505

QUEM SOMOS
Além de estudantes do curso de Licenciatura plena em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, fomos bolsistas do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) durante o ano de 2016 no qual
foi concluído essa experiência. Tendo em vista que o PIBID atua em algumas escolas da
rede Estadual de ensino, nós, supervisionados pela Professora Verbena Nidiane de
Moura Ribeiro, estávamos inseridos na Escola Estadual Professor José Fernandes
Machado onde acompanhamos e intervimos nas aulas da turma do 8 ano A nas sextas-
feiras no horário a partir das 13:35 às 14:45.

NOSSO PÚBLICO
A turma na qual atuamos pelo PIBID era composta por 27 alunos na qual 14 são
meninas e 13 são meninos. Partindo do pressuposto que planejamos nossa prática
escolar a partir da realidade dos alunos, listaremos agora os motivos responsáveis por
nossas seleções de conteúdo, de metodologias, de avaliações e de discussões
problematizadoras. 1º). Tendo em vista que Natal é uma cidade praieira e que o
Machadão (nome pelo qual chamaremos a partir de agora a Escola Estadual Professor
José Fernandes Machado) está localizado no bairro de Ponta Negra, e que fica
aproximadamente quatro quilómetros da praia de ponta negra. A praia é uma fonte de
renda complementar para muitas famílias da região, e muitas delas são compostas
pelos nossos alunos, dessa maneira quando o período de alta estação começa, nos
meses de junho e julho, e final de ano, sem contar as festas, feriados prolongados etc.,
há uma grande evasão por parte dos alunos que deixam a escola por algum tempo para
ajudar os pais nas atividades comerciais. 2º) A desmotivação dos alunos para com aulas
tradicionais expositivas. 3º) A não participação de boa parte dos alunos ás atividades,
mesmo quando estipulam nota avaliativa no bimestre.

504 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). jhonnyyzel@gmail.com.


505 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). tiagosilva.ufrn@gmail.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
636

NOSSO DESEJO
Partilhamos do pensamento que o ensino de História deve encontrar sentido no
cotidiano de nossos alunos, não podemos problematizar o conteúdo pelo conteúdo,
sonegando assim, a realidade dos sujeitos participantes do processo ensino-
aprendizagem e não levando em consideração o contexto social no qual então inseridos.
Queremos que os alunos a partir do debate sobre o conceito de liberdade, de como ele
está posto em nosso cotidiano e como funcionou em outra temporalidade, possa
enxergar a possibilidade da existência de outra realidade. Não queremos construir
“experts” em iluminismo ou antigo regime, mas usaremos esse recorte do passado
para que eles percebam que em uma outra época o conceito de liberdade foi importante
para a mudança de uma sociedade, e que tal como aconteceu nesse passado não muito
distante, pode também acontecer agora.
Na busca para alcançarmos nosso objetivo junto aos alunos, usaremos como
parâmetros norteadores, um pequeno recorte das Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Básica, alguns recortes dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o livro
Fundamentos Teórico Metodológicos para o Ensino de História (anos iniciais) do Prof.
Dr. Itamar Freitas de Oliveira e a participação da Profa. Dr. Maria Margarida Dias de
Oliveira na coordenação da coleção explorando o ensino de 2010.
Sobre as DCN, escolhemos um pequeno recorte que define nossa escolha de
partir primeiramente da realidade social a qual o aluno está inserido para planejar
nossa prática, escolher os conceitos e valores que serão problematizados e por fim, que
conteúdos trabalharemos em sala de aula.

Em um contexto marcado pelo desenvolvimento de formas de exclusão


cada vez mais sutis e humilhantes, a cidadania aparece hoje como uma
promessa de sociabilidade, em que a escola precisa ampliar parte de
suas funções, solicitando de seus agentes a função de mantenedores
da paz nas relações sociais, diante das formas cada vez mais amplas e
destrutivas de violência. Nessa perspectiva e no cenário em que a
escola de Educação Básica se insere e em que o professor e o estudante
atuam, há que se perguntar: de que tipo de educação os homens e as
mulheres dos próximos 20 anos necessitam, para participarem da
construção desse mundo tão diverso? A que trabalho e a que cidadania
se refere? Em outras palavras, que sociedade florescerá? Por isso
mesmo, a educação brasileira deve assumir o desafio de propor uma
escola emancipadora e libertadora (DCN, 2013: 19).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
637

Nesse trecho destacamos as palavras; cidadania, emancipadora e libertadora


para reforçar a ideia de que, se queremos realmente formar cidadãos críticos e
reflexivos para a vida em sociedade, e que essa educação seja de fato emancipadora e
libertadora, é extremamente importante que o professor historiador não se prenda
apenas conteúdos tradicionalmente passados na escola, mas que encontre no ensino
de história, relevância para a vida dos alunos. Por isso acreditamos que, não apenas
definir o que é Liberdade, mas vive-la e incorpora-la é base para uma educação que
emancipa e liberta.
No livro Fundamentos Teórico Metodológicos para o Ensino de História (anos
iniciais) do Professor Itamar Freitas de Oliveira, escolhemos a discussão proposta no
capítulo 11, A Aprendizagem Histórica das Crianças para tomar como base em nossa
produção. Neste capítulo, o professor Itamar expõe uma série de teorias que
desenvolvidas sobretudo a partir do século XIX influenciaram o ensino de história ao
longo do século XIX e XX. No tópico deste capítulo chamado Do Construtivismo À
Educação Histórica, o autor fala de como o Historiador Jörn Rüsen denunciou a distância
dos historiadores em relação aos processos cognitivos dos alunos, e em contrapartida
o não conhecimento dos didáticos e professores em relação à pesquisa histórica. Itamar
Freitas nos mostra que para Rüsen, a pesquisa não pode de maneira nenhuma se
separar do ensino.

“Para Rüsen (2007), aprender História é pensar (e aprender a pensar)


historicamente no sentido de constituir a consciência histórica, ou seja,
desenvolver as capacidades de rememorar experiências, interpretá-las
sob a forma de uma história e utilizá-las para um propósito prático em
sua vida. Dizendo de outro modo, aprender História não significa,
apenas, apropriar-se dos fatos históricos objetivamente (reter
substantivos próprios e datas significativas sobre o passado do país,
por exemplo, relacionados por um historiador. ” (FREITAS, 2010: 175).

Em consonância com esse pensamento, acreditamos que nossa intervenção em


sala de aula não será uma rememoração do passado com o uso de imagens ilustrativas.
Acreditamos que ao problematizar o conceito de liberdade em nossa realidade e
compreender como ele funcionou em outra temporalidade, esse debate encontrará
ressonância na vida prática dos alunos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
638

Sobre a participação da Profa. Dr. Maria Margarida Dias de Oliveira na


coordenação da coleção explorando o ensino de 2010, ela apresenta a maneira como o
professor historiador produz conhecimento na academia e no ensino:

“Produzir conhecimento histórico na dimensão do ensino escolar é


construir coletivamente conhecimentos históricos (que serão novos
apenas para os alunos) a partir do conjunto de saberes aceitos pela
tradição historiográfica. É preciso ter em mente que a forma de
construção do conhecimento histórico na pesquisa serve como
referência na produção do conhecimento histórico escolar. Suas
particularidades justificam sua necessidade como saber específico, que
dialoga com um código disciplinar construído pela tradição escolar. ”
(De Oliveira, 2010: 11).

De acordo com que Margarida fala, uma série de características em relação a


escola merece ser levada em consideração na hora de planejar aulas e atividades; o
conhecimento de mundo dos alunos, a tradição historiográfica e a tradição escolar.
Muitas vezes nos perguntamos porque uma determinada teoria “brilhante e
revolucionária” que mudou a maneira de olharmos a história não chega à educação
básica, a resposta é simples, os sujeitos que compõem(?) a educação básica são
diferentes da academia, e se os sujeitos são diferentes, são diferentes os objetivos, a
maneira de se relacionarem com determinada disciplina e a importância que lhe é
atribuída. Tudo isso constitui a tradição escolar.

ANTECEDENTES IMPORTANTES
Vale salientar ainda, que tivemos uma experiência anterior com a turma, a qual
teve importância direta para intervenção que embasou este artigo. Nesta experiência
anterior, buscamos trabalhar com os alunos a permanência de práticas escravocratas
em nossa sociedade, principalmente em relação ao trabalho análogo à escravidão. A
maneira como escolhemos para problematizar esse tema, foi a partir da definição do
conceito de Escravidão, como a lei da sociedade brasileira atual se relaciona com o
trabalho análogo a escravidão, e apresentando aos alunos as causas e consequências
da escravidão contemporânea. Em seguida, abordamos como a lei brasileira no período
colonial e imperial se relacionava com a escravidão, as formas de resistência dos
escravos e como se configurou a abolição da escravatura.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
639

Porque essa aula não foi interessante na perspectiva de um ensino de história


libertador e que proporcione uma outra realidade social para os alunos? Porquê dessa
maneira, o ensino de história não teve sentido na vida prática dos alunos na medida em
que só problematizamos como determinada característica funciona hoje, e como ela
funcionava no passado. O passado aqui foi usado apenas como comparação de
temporalidades tendo como base as práticas escravocratas e a maneira que a
escravidão ainda permanece na nossa sociedade, mesmo que seja condenada por lei.
Diferentemente da aula que embasou este artigo, aqui, não levamos em conta a
realidade social e econômica a qual os alunos estão inseridos, e sendo assim, a
participação deles nessa aula foi basicamente alguns poucos comentários sobre algo
que tinham presenciado e era parecido com o que estavam vendo em sala de aula.

DA TEORIA À PRÁTICA
É preciso ressaltar ainda, o quanto a LDB de 1996, mais precisamente o artigo
27º, foi importante para a nossa prática metodológica:

Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão,


ainda, as seguintes diretrizes:
I – A difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos
direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem
democrática;
II – Consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada
estabelecimento.

Estando de acordo coma LDB, os assuntos, temáticas e conteúdos que


escolhemos para trabalhar em sala de aula, observou, como já foi citado, as realidades
econômicas e sociais as quais os alunos estão inseridos, a maneira que se relacionam
com a escola, e a maneira pela qual o ensino de história pode contribuir para a melhoria
de suas realidades.
Decidimos então que, para o ensino de história ser significativo para os alunos e
apresentar-lhes a possibilidade de uma outra realidade social, econômica e política,
seria extremamente importante apresentar, debater e historicisar o conceito e o
significado da palavra “liberdade”, todavia, decidimos que essa problematização
deveria ser feita com base nas respostas prévias dos alunos. Dessa maneira, dividimos
nossas intervenções em dois encontros. No primeiro encontro, que tínhamos apenas 1

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
640

horário de 50 minutos, dividimos a turma em dois grupos de cinco e de seis alunos, com
o propósito de gerenciar melhor o material, e em seguida distribuímos revistas, cola,
papeis A4 e tesoura. Feita a divisão e entregue os materiais, pedimos que cada um
recortassem uma imagem que expressasse o que significava para eles a ação de
liberdade e de não liberdade. Para a escrita deste artigo decidimos mostrar apenas três
das onze respostas.

Figura 1. Emilly Sabrina escreveu a seguinte legenda: “Liberdade de poder estudar sem depender de
ninguém. Liberdade para ser alguém na vida e se esforçar para no futuro ter muitas conquistas”

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
641

Figura 2. A aluna Amanda da Costa Silva escreveu a seguinte legenda: “Liberdade para o trabalhador,
sendo negro ou sendo branco, sendo homem ou sendo mulher, o importante é ter estudo, não importa a
cor, raça e sexo”

Figura 3. A resposta do aluno Fabricio de Souza Junior: “Muitas pessoas não podem expressar suas
opiniões, ou serem o que gostam de ser, na foto abaixo, mostram duas pessoas serem mortas no Irã,
porque eles não são homens.”

No segundo encontro possuíamos 2 horários neles tínhamos a intensão de


inicialmente de compartilhar e discutir os trabalhos dos alunos entre eles e a partir
desse dialogo trazer a problemática “Você acha que é livre, por quê?”, com o auxílio de
Slides trouxemos imagens de manifestações contra e a favor do Impeachment da então

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
642

presidente Dilma Rousseff, essas imagens tinham a intensão de trazer a ideia de


liberdade de expressão que temos atualmente e foi perceptível o entendimento do
alunado a esse sentido.
Após compreenderem a existência dessa liberdade de expressão, seguimos para
mais uma pergunta à turma, “ Mas será que sempre foi assim? ”. Seguido de indagações
dos alunos que viam essa liberdade como algo comum, foi então onde apresentamos o
período do antigo regime francês, a estrutura social dividida em primeiro, segundo e
terceiro estado e seus respectivos integrantes.
Tendo explanado o panorama da França naquele período, iniciamos a falar sobre
a luta contra o antigo regime e o papel dos Iluministas trazendo os principais ideais
defendidos por eles como Universalidade, Individualidade e Autonomia, conceituando-
os durante o diálogo com a turma.
Foi dado uma ênfase em Voltaire e em sua celebre frase “Posso não concordar
com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de
dizê-lo.” E com isso voltamos brevemente a lembrar do trabalho feito pelos alunos e
mostrando assim que alguns dos exemplos de liberdade que eles recortaram das
revistas eram os mesmos que Voltaire defendia, como incentivo à ciência, liberdade
econômica e religiosa.
Por último, foi trazido uma notícia do Rio de Janeiro que tratava de violência
causada por intolerância religiosa a uma jovem umbandista de 15 anos que voltava de
um culto religioso e veio a ser agredida com uma pedrada na cabeça. A jovem continua
a professar sua fé, no entanto disse que deixaria de utilizar vestimentas características
da sua religião por medo de que ocorra eventos semelhantes. Houve dois alunos
contaram que já presenciaram esse preconceito de forma verbal nas suas famílias,
mostrando que esse comportamento é mais comum que o que aparenta. Finalizamos
mostrando como o estado trata questões de intolerância religiosas ao apresentar o Art.
1° da LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989. Que diz “Serão punidos, na forma desta
Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional.”.

O QUE CONCLUÍMOS COM ESSA EXPERIÊNCIA?


Concluímos que foi uma experiência exitosa, pois foi perceptível que para os
alunos o ensino de história foi útil para compreender questões da vida pratica. Eles

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
643

viram que além de assimilar o conceito de liberdade em nossa temporariedade é


possível historicisar esse conceito, como no caso da aula na influência do Iluminismo
na Revolução Francesa que mostrou como um ideal de liberdade foi alcançado através
de manifestações populares.
Era nossa segunda intervenção com a turma e com ela ficou claro algumas
particularidades de nossos alunos que não conseguimos observar nas aulas da
professora Verbena e também na nossa primeira intervenção, portanto essa
experiência foi imprescindível para conhecer melhor os alunos do 8º “A” auxiliando
assim o planejamento das futuras intervenções.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
644

REFORMAS URBANAS NO TABULEIRO: UMA EXPERIÊNCIA DE


PRODUÇÃO E UTILIZAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

Bruna Gonçalves de Brito Dias506


Érica Ricelle Costa e Silva507
Angélica Lopes Bulhões508

INTRODUÇÃO
Buscando discutir acerca de novas metodologias usadas em sala de aula para o
ensino de História, pensamos na elaboração de um jogo que servisse como uma
ferramenta que buscasse autonomia, a formação cidadã e estimulasse o pensamento
crítico do aluno, relacionando com a sua realidade. Como destacou Maria Fermiano,
alguns objetivos de se trabalhar com jogos no ensino de história são de

Buscar diferentes informações para compreender um fato, identificar


semelhanças e diferenças entre ações ou observações, atentar-se às
permanências e mudanças que ocorrem à sua volta, buscar coerência
nas respostas considerando o que já ocorreu, antecipar ações,
estabelecer estratégias [...] (FERMIANO, p.9).

Para isso, dividimos as turmas em grupos nos quais as professoras se colocaram


numa posição de mediadoras do conhecimento, dando autonomia aos alunos para
participarem das discussões e perceberem seus papéis como sujeitos históricos. Dessa
forma, através do conteúdo do jogo - Revoltas urbanas no Rio de Janeiro - foi possível
mesclar diferentes espaços e tempos, além de construir “noções de temporalidades,
comparações, noções de processos e transformações, operações de identificação e
diferenciação que lhes permitem conhecer diferentes realidades históricas e refletir
sobre sua própria realidade” (ANDRADE, p.94). A prática do jogo foi um momento no
qual os alunos assumiram papéis, atuaram como os atores que estavam designados
nas cartinhas, perceberam as intenções que perpassavam a dinâmica planejada e
criticaram a invisibilidade das camadas populares pelo Estado. Assim, foi possível a

506 Estudante do curso de Licenciatura plena em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail: brito.bruna@live.com
507 Estudante do curso de Licenciatura plena em História pela Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. E-mail: angelicaalopes@hotmail.com


508 Estudante do curso de Licenciatura plena em História pela Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. ericaricellty@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
645

reflexão sobre “a natureza do conhecimento histórico e seu papel como ferramenta


para análise da sociedade e como recurso para a construção da consciência histórica e,
portanto, como formação para a cidadania” (SCHMIDT, p.50).
Desse modo, o jogo estimulou a imaginação, o desenvolvimento de
competências e habilidades da disciplina História e o pensamento dos alunos sobre o
mundo e sobre si mesmos, bem como a as situações atuais, o espaço e a realidade onde
vivem. Segundo Fernando Seffner, é relevante que o aluno “perceba que as situações
que ele está estudando foram construídas historicamente por indivíduos determinados,
alguns lutando a favor, outros contra, muitos indiferentes, mas jogando um papel
importante [...]” (SEFFNER, p.55). Pensando em quais seriam as possibilidades do uso
de outros recursos didáticos no nosso trabalho, optamos pelo jogo por este:

Ganha um espaço como ferramenta ideal da aprendizagem, na medida


em que propõe estímulo ao interesse do aluno. O jogo ajuda-o a
construir suas novas descobertas, desenvolve e enriquece sua
personalidade e simboliza um instrumento pedagógico que leva o
professor à condição de condutor, estimulador e avaliador da
aprendizagem (MORATORI, p.02).

Vale ressaltar que fomos além da imaginação e do divertimento do uso de jogos


em sala de aula, não ficando apenas no lúdico. O objetivo principal foi o de proporcionar
aos alunos a vivência daquele contexto, exercitar a empatia, se colocar no lugar deles,
participar ativamente do processo histórico e formar valores de respeito ao próximo.
Como mostra Itamar Freitas, “os valores são históricos e funcionam em nosso
cotidiano como fundamentos da crítica. Mas os valores são também elementos
passíveis de hierarquização” (FREITAS, p.03), logo, escolhemos determinados valores
como válidos para a aprendizagem histórica. A formação cidadã consta nos conteúdos
curriculares a serem trabalhados na Educação Básica, na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, a qual explicita valores que “são citados como elemento mediador
da ‘formação básica do cidadão’. Eles são conteúdo, da mesma maneira que os
‘conhecimentos’, ‘habilidades’ e ‘atitudes’.” (FREITAS, p. 05). Assim, o estudante
relaciona o passado ao momento atual, pensando em problemas urbanos, e se mostram
ativos, reclamando por direitos e sobre a opressão sofrida pelas classes dominantes.
Como mostra Estevão Rezende Martins,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
646

“Esse ‘dizer respeito a’ começa por uma circunstância de ser afetado


emocionalmente. O interesse do grupo é despertado, pois, por uma
identificação (mesmo se superficial) com a questão suscitada pela
reflexão histórica. Dessa identificação inicial evoluir-se-ia para a busca
de respostas críticas na história que contribuam para a elaboração ou
expansão da identidade singular ou coletiva” (MARTINS, p.56).

Com essa interferência no emocional, o alunado se interessa pelo desenvolver


do jogo, pela trama e pelas perguntas reflexivas que constam nas cartas. Ao buscar
respostas, é possível criar um sentido, uma consciência histórica que aborda a
realidade, a historicidade, a consciência do tempo, entre outras dimensões atuantes,
visando a formação cidadã.

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO JOGO


Na disciplina de História do Brasil República I, lecionada pela professora Juliana
Teixeira Souza, durante o primeiro semestre do ano de 2017 na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, a atividade avaliativa proposta pela professora para a segunda
unidade desafiava a turma a pensar o ensino numa perspectiva em que o processo de
aprendizagem não se concentre na figura do professor. Além disso, a docente orientava
que os trabalhos deveriam responder: por que estudar História? Qual sua relevância e
contribuição para a formação cidadã? Na produção da aula deveríamos escolher
também uma ou mais revoltas que ocorreram durante a Primeira República.
A partir das orientações e exigências da disciplina, o grupo deliberou a
elaboração de um jogo. Quando pensamos em elaboração de jogos didáticos para
História, normalmente produzem-se atividades de perguntas e respostas com
informações sobre o passado, buscando revisar conteúdo e criar algum tipo de
competitividade entre os alunos para tornar a aula mais lúdica e interessante. Nosso
desafio, no entanto, era mais complexo, pois a proposta não era puramente narrar os
fatos sobre o passado, mas sim a formação cidadã.
Para elaborar o jogo, utilizamos o método histórico como base para o ensino
de História, como coloca Margarida Oliveira. Ela sugere o seguinte processo
metodológico para o ensino de História:

“1. elege-se uma problemática (tema, período histórico); 2. tem-se o


tempo como categoria principal (como o assunto em estudo foi
enfrentado por outras sociedades); 3. dialoga-se com o tempo por meio

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
647

das fontes (utiliza-se o livro didático, mapas, imagens, músicas,


documentos); 4. utilizam-se instrumentos teóricos e metodológicos
(conceitos, formas de proceder); 5. constrói-se uma
narrativa/interpretação/análise (pede-se um texto, um debate, uma
peça teatral, uma redação, uma prova).” (OLIVEIRA, 2010, p. 11).

Assim, partimos da problemática “De que forma a política de higienização


influenciou a vida da população mais pobre no início da República?” elaboramos um
jogo em que houvesse personagem, movimento, informação, interação, discussão,
relação com o presente, além da competitividade.
A justificativa da elaboração do jogo com a temática específica das Reformas
Urbanas no Rio de Janeiro levou em consideração as orientações das leis e documentos
norteadores da Educação Básica, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), que traz, em seu 27º artigo, “I - a difusão de valores fundamentais ao
interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à
ordem democrática;” isto é, dever da escola, de acordo com a LDB, difundir o respeito
ao bem comum e à ordem democrática, desta forma, ao discutirmos o processo de
higienização durante a Primeira República e a desigualdade social, explicitamos que
esses discursos são construídos historicamente e através do jogo de poder em questão.
Além disso, a Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN), informam
sobre o artigo 1º da Constituição Federal, sendo este o que informa sobre os objetivos
nacionais e, por consequência, o projeto educacional brasileiro. De acordo com as
Diretrizes, o conjunto de compromissos discriminados no artigo 1º da Constituição
Federal “[...] prevê também a defesa da paz; a autodeterminação dos povos; a
prevalência dos direitos humanos; o repúdio ao preconceito, à violência e ao terrorismo;
[...]”. (DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA, 2013, p. 17).
Sendo assim, ao analisarmos a violência com que foram tratadas as populações
habitantes dos cortiços, também cumprimos com o objetivo das Diretrizes no repúdio
à violência e injustiça, buscando construir uma sociedade livre, justa e solidária, como
nos propõe o artigo terceiro da Constituição Federal de 1988.
Os objetivos com o material produzido eram os de analisar a desigualdade
social e a maneira com que os sujeitos vivenciaram o processo de higienização
urbanística; relacionar os problemas daquele momento com os problemas atuais no
Rio Grande do Norte, aproximando-se de seu contexto histórico e social; exercitar a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
648

empatia, colocando-se no lugar do outro e discutindo formas de lidar com os problemas


sociais existentes naquele contexto histórico e em seu contexto atual.
A proposta, portanto, foi utilizar um tabuleiro com quatro grupos, em que cada
grupo seria um personagem nas Reformas Urbanas no Rio de Janeiro, foram eles:
médicos, políticos, polícia e população pobre. Elaboramos um tabuleiro tendo por base
o jogo Ludo, adaptando para as nossas necessidades. Pensamos que o tabuleiro por si
só não seria o suficiente para trabalhar História, então elaboramos cartas informativas,
e cartas interrogativas, de ligação com o presente, que relacionavam o conteúdo das
Reformas Urbanas no Rio de Janeiro com a vida dos alunos. Como exemplo de cartas
de ligação com o presente, podemos citar “Como você se sente em relação as politicas
publicas da sua cidade? Converse com a sua turma para continuar o jogo”, “O que você
acha dos bairros sem saneamento básico? Dê sua opinião para continuar o jogo”, “Você
conhece algum caso de desapropriação? Conte sobre ele para continuar o jogo”, “Você
conhece situações em que a polícia usou de violência com a população mais pobre? Cite
exemplo para continuar no jogo”, dentre outras.
No total, elaboramos 68 cartas divididas igualmente para todos os
personagens. Cada um dos personagens era, também, uma das cores do tabuleiro.
Após a produção das cartas, percebemos que poderíamos deixar o jogo ainda mais
dinâmico. Assim, acrescentamos movimentos em várias cartas, usando dizeres como
“ande duas casas”, “ande três casas”, “volte duas casas” e assim por diante.
Para definir os grupos que seriam utilizados como representação no tabuleiro,
buscamos identificar os principais agentes históricos do período proposto.
Identificamos então quatros classes: os médicos, que participaram do processo de
vacinação obrigatória, juntamente os agentes de segurança pública, os politicas que
foram os idealizadores das políticas de restruturação urbana da cidade e
consequentemente uma higienização da população pobre, que foi a classe mais afetada
e que promoveu a articulação da revolta da vacina. Cabe, portanto, analisar que cada
uma dessas classes foi trabalhada nas cartas do jogo, demonstrando como foi sua
intervenção, qual a importância deles no período, por quais motivos eles então como os
principais agentes desse evento.
No grupo dos pobres buscamos utilizar os espaços sociais que eles ocuparam
no decorrer deste período. Como a situação de moradia, como Sidney Chalhoub destaca
como o governo denominava, valhacouto de desordeiros, como também buscar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
649

descrever a derrubada do cortiço cabeça de porco que é considerado o maior cortiço do


centro do RJ, chegando ao numero não confirmado de 4 mil pessoas. Chalhoub
descreve:

Mulheres e homens que saíam daqueles quartos "estreitos e infectos"


iam às autoridades implorar que "os deixassem permanecer ali por
mais 24 horas". Os apelos foram inúteis, e os moradores se
empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outros objetos de
uso. (CHALHOUB, p 17).

Esse momento de desapropriação é os números de afetados, assim como a


qualidade da moradia foram conteúdos que buscamos colocar nas cartas, para que o
aluno reconheça como foi esse processo de reurbanização como também compreender
um outro fenômeno resultante desse processo, que são as favelas. Chalhoub se utiliza
da pesquisa Lilian Fessler Vaz para demonstrar o possível surgimento do Morro da
Favela, em que ele afirma:

O destino dos moradores despejados é ignorado (...) O prefeito Barata,


num magnânimo rompante de generosidade, mandou "facultar à gente
pobre que habitava aquele recinto a tirada das madeiras que podiam ser
aproveitadas" em outras construções. De posse do material para
erguer pelo menos casinhas precárias, alguns moradores devem ter
subido o morro que existia lá mesmo por detrás da estalagem. Um
trecho do dito morro já parecia até ocupado por casebres, e pelo menos
uma das proprietárias do Cabeça de Porco possuía lotes naquelas
encostas, podendo assim até manter alguns de seus inquilinos.
(CHALHOUB, p 17).

Sendo possível, a partir desses momentos, abordar questões para os alunos


sobre como eles compreendem as favelas hoje, por qual motivo elas são carentes de
serviços básicos, quem mora nas favelas e qual a imagem que nos é passada. No qual
Sidney Chalhoub fala, que tal evento caracteriza-se como o inicio do mito de origem de
gestão das diferenças sociais da cidade, fomentando a imagem do pobre como sujo e
perigoso, como a margem da sociedade e se faz necessária administrar a cidade para
mantê-los longe. Mas também reconhecer como a população pobre teve que buscar
sobreviver, e como se deu suas ações de resistência, como a não aceitação da
truculência do estado no que dizia respeito às vacinas, como articulação da identidade
de classe e mobilização política.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
650

O que passa a ser importante mostra o que foi esse momento histórico na esfera
política. Nesse sentido as cartas relacionada à classe política trouxe o conteúdo de
quem eram esses políticos, quais ações eles tomaram, qual o projeto eles queriam
implementar. Partido dessa ideia, tivemos como personagem principal o prefeito
Barata Ribeiro, 1892 a 1893, que foi responsável pelo decreto de demolição do cortiço
Cabeça de Porco, Pereira Passos engenheiro e prefeito do Rio de Janeiro entre 1902 e
1906, que buscou “ fazer da cidade suja, pobre e caótica réplica tropical da Paris
reformada por Haussmann” (CARVALHO, p. 95).
Como também as ideias de higienização social sustentada nesse processo,
Carvalho trás um projeto do vereador Pereira Rego para demonstrar como se
constituiu a ideologia higienista:

O aperfeiçoamento e progresso da higiene pública em qualquer pais


simboliza o aperfeiçoamento moral e material do povo, que o habita; é
o espelho, onde se refletem as conquistas, que tem ele alcançado no
caminho da civilização.(CHALHOUB, p. 34).

Ideologia que deu espaço politico para os médicos e higienistas procurarem


intervir no processo de “civilização” da cidade do Rio de Janeiro. E é nas cartas dos
agentes de saúde que nós buscamos mostrar quais os objetivos da vacinação. Trazendo
o questionamento de porque foi tão rejeitada? O que levou a população de revoltar e a
cidade do Rio de Janeiro entrar em estado de sítio? Nesse sentido tratamos de
caracterizar tanto a necessidade real que se tinha e aplicar a vacina, como também a
técnica aplicação, como era o contato com a população pobre, como Oswaldo Cruz
definiu a vacina de maneira obrigatória e imediata.
Nesse processo sanitarista os alvos principais eram os pobres, no qual
moravam em moradias “perigosas” e propícias a doença. O que se destaca a
manutenção do mito problematizado com Challoub, do lugar social da população pobre,
pelo risco que ela representa a sociedade, mas também buscamos demonstrar a tensão
que essa população convive com relação as forças de higienização do estado, no caso
os delegados da saúde e os mata-mosquitos. Como no seguinte relato de um Delegado
da Saúde utilizado por João Murilo de Carvalho:

"Em todas as ruas foram feitas rigorosas visitas, exigindo-se toda a


sorte de melhoramentos necessários. Nas habitações coletivas, então

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
651

procurei sempre, por meio de rigorosas intimações, extinguir muitas


que funcionavam irregularmente, quer se por falta de condições
higiênicas, quer por não possuirem licença da Prefeitura". (CARVALHO,
p.94).

E nos trás os seguintes números:

Cerca de 2 500 mata-mosquitos espalharam-se pela cidade. Para


prevenir resistências dos moradores, as brigadas faziam-se
acompanhar de soldados da polícia. Pode-se ter ideia da dimensão do
esforço através da seguinte estatística: só no segundo semestre de
1904 foram visitadas 153 ruas; foram feitas no primeiro semestre,
110224 visitas domiciliares, 12971 intimações, 626 interditos.
(CARVALHO, p.94).

Podendo ser observado como essa população pobre era tratada, as exigências
que eram impostas a ela diante a um precarização habitacional que era
responsabilidade do estado. O rigor para o pobre permeia nas relação estado e
sociedade, e a rejeição das politicas sanitárias pela classe pobre se deu principalmente
pelo modo que as políticas publicas chegam nesse espaço, do rigor, da intimação, da
violência gratuita. Sendo um tema bastante fértil no espaço da sala de aula.
E para a manutenção da ordem e imposição do rigor, a polícia passa a ser
utilizada. Dessa forma, termos como ultima classe a das forças de segurança. Como
essas forças foram utilizadas pelo estado para a manutenção dos seus projetos.
Destacamos para essa classe as ações que elas tiveram nas intervenções sanitaristas,
como já relatado no trecho a cima de José Murilo de Carvalho, mas também tratamos
de mostrar como ela foi utilizada no processo do bota abaixo, como no momento já
comentado que foi a destruição do cortiço Cabeça de Porco:

O prefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Às sete


horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro batalhão de
infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu a estalagem,
proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Piquetes de cavalaria
policial se posicionaram nas ruas transversais à Barão de São Félix, e
outro grupo de policiais subiu o morro que havia nos fundos da
estalagem, fechando o cerco pela retaguarda (CHALHOUB, p 15-16).

Tendo como exemplo também a revolta da vacina, no qual foi instituído estado
de sítio e houve conflitos e prisões deliberadas. E mesmo quando as tensão estavam se

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
652

normalizando as intervenções policiais mantiveram seu alvo nas regiões pobres, como
no seguinte trecho de Carvalho:

Como ato final, no dia 23, a polícia fez grande batida no morro da Favela,
mobilizando 180 soldados. Os 100 casebres do morro foram varejados,
sem que fosse encontrada uma só pessoa. Para não perder a viagem,
na volta a tropa revistou casas de cômodos e prendeu várias pessoas.
(CARVALHO, p. 113).

Sendo possível trazes questões com os alunos de como vemos e vivenciamos a


segurança publica nos dias atuais. Para quem a polícia funciona, como se deu esse
“etiquetamento” dos alvos da polícia. Fazendo com que as classes trabalhadas no jogo
façam parte da realidade dos alunos e do seu pensamento histórico.

APLICAÇÃO DO JOGO
Após a produção do material didático na disciplina de História do Brasil
República II e apresentação na disciplina, nós tivemos a oportunidade de aplicar o jogo
no contexto de uma turma de Ensino Médio na Escola Estadual Professor Antônio Pinto
de Medeiros, campo de atuação escolhido para a disciplina de Estágio Supervisionado
para Formação de Professores II.
No dia 22 de maio de 2017, na turma do terceiro ano “A” de Ensino Médio
regular, no turno noturno, levamos o jogo Ludo para aplicação como forma de
intervenção do Estágio. A turma possuía um perfil bastante adulto, em que a maior
parte possuía empregos formais durante o dia e utilizavam o turno noturno para
concluir os estudos.
Levamos dois tabuleiros para separar a turma em dois grandes grupos. A
execução das atividades foi realizada pela dupla de estagiárias Bruna Gonçalves de
Brito Dias e Erica Ricelle Costa e Silva, em que cada uma das estagiárias ficou
responsável por um tabuleiro. Após a separação da turma em dois grandes grupos,
solicitamos que fossem formados quatro grupos menores, de modo que cada grupo
seria responsável por um personagem do jogo (médicos, políticos, agentes de
segurança e população pobre), a cor e os pinos dos respectivos personagens.
Eles foram bastante competitivos e participativos. Nos preocupamos em
explicar o contexto de cada carta e questionávamos sempre a eles se aquele discurso

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
653

era distante deles ou não. Eles perceberam por conta própria que o jogo colocou a
população pobre em desvantagem, observando que apesar dos esforços da população
pobre naquele contexto, a força da elite unida em prol da demolição dos cortiços e da
associação das classes pobres ao perigo e à marginalidade era algo presente no
cotidiano daquela população. Ao perceber a desvantagem da população pobre causada
pelos movimentos nas cartas que sempre indicavam que eles deveriam voltar casas ao
invés de avançar, eles se sentiram injustiçados, mas a reação não foi desistir do jogo. A
reação foi de propor união para lutar contra as classes dominantes que estavam
ganhando por possuir privilégios. Isso demonstra que eles tiveram um sentimento de
empatia com os grupos atuaram naquele contexto e, como cidadãos ativos, desejaram
transformar a sua realidade.
A maior dificuldade para a execução do jogo na turma foi o barulho, já que os
dois tabuleiros foram colocados na mesma sala de aula e a medida que os alunos
torciam e vibravam, aumentava a dificuldade na leitura das cartas e promoção do
debate. Apesar disso, os estudantes entenderam o conceito de higienização e o jogo de
forças de poder, isto é, o discurso utilizado pela elite e de que forma este discurso
influenciava a vida da população mais pobre. Também compreenderam o contexto
histórico vivenciado pelas populações urbanas por meio do jogo e percebem que os
problemas daquele momento ainda são problemas atuais no RN. Além disso,
enxergaram-se como sujeitos históricos e exercitaram empatia, colocando-se no lugar
dos personagens do jogo e atuando como se estivessem vivendo naquele contexto,
inclusive planejando revoltas populares ao perceber as injustiças impostas à
população pobre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho pretendeu explicitar a experiência de produção e utilização um
jogo como recurso didático. Percebemos que o uso dessa metodologia, associada aos
objetivos de ensino estabelecidos desde o início contribuíram fortemente para a
motivação e interesse dos alunos para o ensino de História, além de perceberem-se
enquanto sujeitos históricos ativos no processo de ensino e aprendizagem. Também foi
uma experiência essencial para a formação das graduandas, que tiveram a
oportunidade de produzir novos materiais didáticos e com novas abordagens que,
apesar do recorte temporal e relato de experiência da produção para uma temática

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
654

específica, pode ser utilizados por qualquer profissional de História sobre qualquer
temporalidade. Desta forma, a divulgação de nossas experiências também pretende
contribuir para o campo do ensino da História.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Débora El-Jaick. O lúdico e o sério: experiências com jogos no ensino de
história. História e Ensino, Londrina, 2007, v.13, p.91-106.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:


Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.


DOU 23.12.1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino


Médio. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília, 2013.

CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1983.

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

FERMIANO, Maria A. Belintane. O jogo como um instrumento de trabalho no ensino


de História. Disponível em: www.anpuh.org.

FREITAS, Itamar. Valores como objeto de aprendizagem histórica. II Simpósio


Eletrônico Internacional do Ensino de História. Anais. União da Vitória: Unespar, 2016.

MARTINS, E. C. R.. História: consciência, pensamento, cultura, ensino. Educar em


Revista (Impresso), v. 42, p. 43-58, 2012.

MORATORI, P.. Por que utilizar Jogos Educativos no Processo de Ensino


Aprendizagem. Rio de Janeiro, 2003 (Relatório de Pesquisa).

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (coord.). História: ensino fundamental. (Coleção


Explorando o Ensino; v. 21). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2010, p. 11.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Consciência histórica e aprendizagem: teoria e pesquisa


na perspectiva da educação histórica. In: Helenice Rocha; Marcelo Magalhaes; Rebeca
Gontijo. (Org.). O ensino de historia em questão: cultura histórica, usos do passado.
1ed.Rio de Janeiro: FGV, 2015, v. 1, p. 37-54.

SEFFNER, F.. Aprendizagens significativas em História: critérios de construção para


atividades em sala de aula. Revista História (UNICRUZ), Cruz Alta / RS, v. 2, p. 18-23,
2001.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
655

TERRA, PROPRIEDADE E CONFLITO SOCIAL:


CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA PARA A FORMAÇÃO CIDADÃ

Dickson Melo de Morais509


Gustavo Ítalo Freire Martins510

INTRODUÇÃO
A história agrária brasileira é marcada por um processo de grilagem, conflito e
violência. Nos rincões da expansão fundiária do nosso país, emergem sujeitos que se
fazem ver e ouvir não apenas na História, mas no chão das salas de aula da rede pública
do Brasil. Nesse sentido, a escola, ao pensar a formação cidadã, deve contribuir para a
construção de uma narrativa na qual os alunos remanescentes desse passado histórico
enxerguem a si próprios e os indivíduos em situação de conflito por terras como
sujeitos capazes de agenciar seus próprios interesses e justificarem suas ações por
meio de suas próprias visões de mundo.
Itamar Freitas (2010) defende que a presença da temática indígena na sala de
aula, é um compromisso que deve ser assumido para além das questões legais, sendo
também um dever ético. Entendemos aqui que estas proposições se alargam também
para a experiência das populações sem terras e dos pobres do campo, haja vista que,
assim como os grupos indígenas, estes também sofrem historicamente com a exclusão,
a violência e a perspectiva sempre presente da perda do que, para eles, é um direito. É,
portanto, o dever de um país que se propõe democrático: a tolerância, o respeito e a
convivência com as diversidades que compõem o povo e precisam ser contempladas no
projeto de identidade nacional. A História, nesse sentido, contribui para esse dever ético
ao dar voz a esses grupos através do estudo do seu passado, reconstituído com o fim
de viabilizar uma melhor compreensão das tensões e disputas do tempo presente.
No seu artigo 3º, a Constituição Federal de 1988 define os objetivos que guiam
o projeto da nação brasileira, sendo este fundamentalmente baseado na construção de
uma nação livre, justa, solidária, sem preconceitos de qualquer tipo e que se propõe a
erradicar a pobreza, a marginalização e a desigualdade. A educação, destarte, insere-se
de forma vital nesse contexto a partir do momento no qual está preocupada com uma
educação de qualidade social, focada na formação cidadã dos educandos. As Diretrizes

509 Discente do curso de licenciatura em História pela UFRN – dicksonmelo@gmail.com


510 Discente do curso de licenciatura em História pela UFRN – gustavo.italo.freire@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
656

Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNs), como pareceres para a experiência


do ensino, explicam que:

A orientação estabelecida por essas Diretrizes, no que se refere às


responsabilidades dos diversos sistemas de ensino com o atendimento
escolar sob a ótica do direito, implica o respeito às diferenças e a
política de igualdade, tratando a qualidade da educação escolar na
perspectiva da inclusão.” (DNC, 2001, p. 1)

Ademais, o referido documento propõe que se pense o campo de forma a


percebê-lo como espaço de possibilidades, no qual se evidenciam uma série de
“conflitos que mobilizam as forças econômicas, sociais e políticas em torno da posse
da terra no país” (p. 267). Na verdade, essa é uma demanda que parte principalmente
dos movimentos sociais do campo, defendendo a educação como direito subjetivo que
independe da geografia, aplicando-se ao urbano e ao rural, conforme está posto na
Constituição de 1988. Faz-se necessário, dessa forma, incluir os saberes, vivências,
cotidianos e práticas das comunidades rurais no ambiente escolar.
Essas demandas e proposições não surgem sem razão. Conforme os dados
publicados na Notas Estatísticas do Censo Escolar 2016, apesar do aumento do número
de matrículas, a estrutura das escolas rurais ainda é precária:

“Na zona rural, 7,4% das escolas não possuem energia elétrica, 12,7%
não têm esgoto sanitário e 11,6% não têm abastecimento de água. Na
zona urbana, apenas seis escolas não possuem energia elétrica, 0,2%
não têm esgoto sanitário e 0,2% não têm abastecimento de água”.
(NOTAS ESTATÍSTICAS DO CENSO ESCOLAR DE 2016, 2017, p. 6)

Ainda segundo o mesmo censo, 89,8% das escolas com ensino médio estão na
zona urbana e apenas 10,2% na zona rural e na maioria das escolas do campo a apenas
um docente assumindo a responsabilidade de todas as funções concernentes aos anos
iniciais. A discrepância gritante entre a estrutura escolar das zonas rural e urbana é
reflexo de uma dura realidade na qual as populações do campo são constantemente
negligenciadas em seus direitos pelo governo e sociedade em geral. É espantoso
perceber que cerca de 30% da população do estado do Rio Grande do Norte é rural e
mesmo assim as políticas públicas para promover melhoria de vida para esses grupos
ainda são tão ausentes.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
657

O CAMPESINATO NO BRASIL
Para José de Souza Martins (1998) a vida privada nas áreas de expansão da
sociedade brasileira é marcada pelo espectro da fuga, da perspectiva sempre constante
de saída ou da expulsão, de modo que “para os pobres, é o movimento de fuga das áreas
que os grandes proprietários e as empresas vêm ocupando progressivamente. Para os
ricos, é um território de conquista.” (MARTINS, 1998, p. 664). Nesse sentido, o autor
ainda defende a persistência de modos de vida que sobrevivem mediados por novas
relações sociais, mas que carregam marcas arraigadas no passado: “paisagens, fugas,
medos, linguagem, lendas, histórias, mentalidades, classificações e diferenciações de
coisas e pessoas” (MARTINS, 1998, p. 664)
Essa população, em constante estado de deslocamento ou na perspectiva de ter
de migrar, são os diretamente atingidos pelo que o autor supracitado chama de “versão
moderna da Conquista”. Não se trata, todavia, de assumir forçosamente que essas
comunidades são completamente subordinadas e despossuídas, relegadas às vontades
dos senhores de suas terras. Na verdade, Hebe Maria Mattos (2001) propõe um visão
de relativa autonomia desses sujeitos frente às elites latifundiárias. Ao estudar as
populações do campo no Brasil Colônia e Império, a autora propõe que as
características idiossincráticas do campesinato brasileiro permitiram certa autonomia
para esses atores sociais no que se refere ao acesso à terra e organização de suas
próprias vidas. Os pobres do campo constituem para si um microcosmo que, social e
culturalmente, escapava do controle dos poderosos.

Desse modo, quando se utiliza a noção de camponês, é possível romper


com a difundida noção de “despossuídos” com que se procura
caracterizar o pouco preciso conjunto de homens libres pobre do
período, ao mesmo tempo em que se ressalta uma certa singularidade
econômica e cultural que está no cerne da estranheza e do preconceito
com que foram apreendidos pelas elites coloniais e oitocentistas.
(MATTOS, 1991, p. 340)

A noção de camponês está, portanto, ligada a uma experiência histórica


específica que põe em xeque o binômio autonomia/subordinação. Há que se perceber
as formas com que esses grupos marcavam suas maneiras de ver o mundo, ter voz e
assenhorar-se (ainda que minimamente) de suas vidas. Ora, tanto Mattos (2001) quando
Martins (1998) apontam a permanência de noções de justiça e direito profundamente

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
658

enraizadas no passado colonial brasileiro e na política sesmarial da coroa portuguesa.


A separação mantida durante o período colonial entre direito e posse da terra faziam
com que, nas palavras de Martins, “um caipira pobre de São Paulo ou um sertanejo da
Amazônia ou do Nordeste podia ter direito de propriedade sobre seu rancho de pau a
pique, ou sua casa de adobe em terra alheia” (1998, p. 666).
Para o autor, essa noção de direito à terra ligado a posse e, consequentemente,
ao trabalho, permanecem no cerne da mentalidade das populações nas zonas de
expansão do Brasil. O legal está constantemente contrapondo o legítimo, de modo que
este último carrega os traços de um costume historicamente construído e
culturalmente enraizado que legitima o direito pelo trabalho sobre a terra. Mesmo a lei,
quando não favorece os interesses dos pobres da terra, é espaço onde as normas
sociais, a cultura camponesa e as aspirações dos latifundiários entram em conflito,
também havendo espaço para negociação e acomodação. Para Edward Thompson,

[...] a “lei” estava profundamente imbricada na própria base das


relações de produção, que teriam sido inoperantes sem ela. E, em
segundo lugar, essa lei, como definição ou regras (de execução
imperfeita através das formas legais institucionais), era endossada por
normas tenazmente pela comunidade. Existiam normas alternativas, o
que é evidente; era um espaço não de consenso, mas de conflito.
(THOMPSON, 1997, p. 352, grifos nossos)

A lei está, portanto, no centro de um debate no qual as classes subalternas não


serão subordinadas e passivas diante dos mandos e desmandos dos grandes
proprietários, mas sujeitos que buscam agenciar os dispositivos para benefício próprio,
negociando com as classes dominantes – embora em condições absolutamente
desiguais.

O SILÊNCIO DA HISTORIOGRAFIA
Nas obras clássicas da historiografia produzida pelo estado não é diferente.
Seguindo a tendência das produções já publicadas na época, a historiografia norte-rio-
grandense dificilmente dá a devida importância para os homens pobres que habitam o
solo potiguar, priorizando a romantização dos costumes do campo, ao invés de um
estudo sobre sua vulnerabilidade social e a verdadeira origem de sua pobreza. O
violento processo de grilagem na história da expansão da fronteira agrícola no Rio

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
659

Grande do Norte não encontra lugar nas páginas escritas pelos historiadores
renomados do estado.
O esquecimento – deliberado ou não – da história desses indivíduos é um
processo constante, pois os mesmos não são patrocinadores de obras historiográficas
e suas ações e anseios são minimizados com um sistema político e social que parece
pouco preocupar-se com a injustiça e o descaso para com essas populações. Muitas
vezes esses indivíduos destituídos estão longe dos centros, longe das capitais, com
dificuldade de acesso à justiça e com difíceis modos de mobilidade entre as cidades,
permanecendo às periferias que não são visitadas e sequer lembradas pelos donos do
poder.
A população sem-terra sequer é mencionada nos clássicos de Rocha Pombo,
Tavares de Lyra e Câmara Cascudo, o que em parte poderia explicar a visão
estereotipada que permeia a consciência histórica da sociedade urbana e “esclarecida”
quando percebe-se seu repúdio pelas as ações e motivações desses grupos
subalternos. E isso segue a interesses específicos. O apagamento das lutas históricas
das populações pobres rurais e sem-terra, bem como suas conquistas, alinha-se com o
interesse de grandes latifundiários e proprietários de terra em desacreditar os
movimentos – organizados ou não – que lutam intensamente pelo seu direito à terra.
Ao passo que sabemos que Tavares de Lyra era político, proprietário de terras e cheio
de alianças políticas e negociações com grandes latifundiários, torna-se claro que não
seria de seu interesse evidenciar as demandas desses povos. Da mesma forma, Rocha
Pombo atém-se aos evento de grande porte que, em sua opinião, seriam os mais
importantes para forjar uma história do Rio Grande do Norte, inspirado pela
compreensão do “espírito do tempo”. Câmara Cascudo, por sua vez, com suas estreitas
ligações políticas com o prefeito de Natal, também não deu lugar à voz contrária ao
status quo, pois esta voz chocava-se diretamente com os interesses de Sylvio Pedroza,
que estava no final de seu mandato e pretendia eternizar seus feitos numa obra que
agradasse, evidentemente, aos mais poderosos.
Entendemos que o ensino de história, nesse caso, faz-se extremamente
necessário e tem função dupla: promover a empatia e o entendimento tolerante sobre
as exigências e formas de mobilização dos sem-terra. Além disso, funciona para alargar
a experiência temporal desses sujeitos, de modo que se dê voz às suas próprias
reivindicações, situando-as num contexto histórico de demandas, vitórias e lutas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
660

O PROCESSO CRIMINAL C12V23: O USO DE FONTES NA PRODUÇÃO DE MATERIAL


DIDÁTICO
Pensando, portanto, o papel do ensino de história na formação cidadã dos
alunos, a importância da inclusão de temas acerca da população livre e pobre no Brasil,
bem como das disputas em torno da terra, analisamos um processo criminal do acervo
do Laboratório de Imagens (LABIM) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e,
com o intuito de produzir um material didático que pudesse ser utilizado pelos
professores da rede básica de ensino.
Os processos criminais têm mostrado bastante eficiência no estudo do passado,
especialmente quando pretende-se resgatar a história das classes subalternas. Ou
seja, é nos processos criminais onde podemos encontrar as motivações, ideias e
exemplos de auto agenciamento desses sujeitos históricos que não tiveram lugar na
historiografia tradicional. A importância desse tipo de documento e suas possibilidades
de análise tem sido explorados nas produções de historiadores brasileiros. É o caso,
por exemplo, de Chalhoub (2001, 2011), Abreu (1989) e Fausto (1984).
De fato, a análise de processos criminais para produção historiográfica de
qualidade é um processo minucioso. É um processo de garimpagem à medida que as
palavras, expressões, frases e concepções presentes no emaranhado de juridicidades
terão que passar pela peneira do método histórico para que sejam escolhidos os
trechos mais valiosos para atingir os objetivos que se pretende no estudo ou ensino de
determinado tema. Apesar de complexo, entendemos que os resultados são de suma
importância, sobretudo em situação de ensino e aprendizado, pois o aluno entrará em
contato com contextos e ideais que fazem-se presentes no cotidiano desses discentes
no contexto de suas práticas sociais.

MANOEL DE BRITO, MANOEL VICTOR E O “LUGAR COMMUM”


Nos debruçamos, portanto, sob o sumário crime C12V23, disponível no acervo do
LABIM – UFRN, proveniente da comarca de São José de Mipibú, e que remete ao ano de
1891, tratando-se de um episódio de agressão entre dois homens por uma questão de
terras: o dia era 18 de Setembro de 1891, o escrivão do cartório de São José de Mipibú
autua uma petição de denúncia contra Manoel Victor. Na petição, assinada pelo juiz

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
661

municipal, consta o inquérito contra o mesmo Manoel, acusado de no dia 7 de Setembro


do mesmo ano, por volta das cinco horas da manhã, ter atentado contra a vida de
Manoel de Brito.

Figura 1: Início do processo criminal C12V23, de 1891, disponível no acervo do LABIM - UFRN.

Procuramos, na análise do processo, observar os depoimentos dos personagens


presentes da trama, de modo que tanto as falas das testemunhas, quanto do réu e da
vítima foram cuidadosamente analisadas. Em decorrência desse procedimento,
encontramos no texto integral algumas pistas que nos mostram visões de mundo
daqueles agentes históricos sobre um mesmo tema: terra e propriedade. Percebemos,
portanto, que as versões desse sujeitos presentes no processo abrem verdadeiras
janelas para o entendimento de um conjunto de valores próprios dessas pessoas, além
de aspectos de sua forma de experimentar o vivido.
Assim, somos personagens principais são Manoel Victor, 24 anos, jornaleiro,
recém comprador de uma casinha que localizava-se atrás da casa e terreno de Manoel
de Brito, de 51 anos – mais ou menos –, apontado como tio segundo de Manoel Victor.
Indo Brito buscar um tição de fogo na casa de um vizinho, encontrou-se com Victor no

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
662

meio do caminho e perguntou-lhe: “Cabocolo tu ainda botas o matto abaixo?”511, ao que


o jovem respondeu afirmativamente. Insatisfeito, o mais velho inicia uma discussão que
culmina numa briga, encerrando quando o pai de Manoel Victor vem e os aparta.
“Colocar o mato abaixo” para nosso personagem mais velho, é o motivo que o
leva a iniciar a altercação, por quanto diz respeito ao direito de uso do solo. Manoel de
Brito, nascido antes da promulgação da lei de terras, entende que, pelo tempo que
reside naquela localidade, a casa e o terreno circunvizinho – é sua propriedade por
direito. Também as testemunhas convocadas para depor parecem compartilhar a
mesma concepção de Brito, defendendo seu direito ao uso da terra alegando maior
tempo de estadia. Todavia, nenhuma delas chega a atacar Manoel Victor, preocupando-
se principalmente em dar legitimidade à insatisfação e Manoel de Brito.
Nosso personagem mais novo, nascido após a aprovação da Lei de Terras,
concebe sua compra como legítima e além de sua casa, entende que o terreno que fica
atrás da casa de Manoel de Brito também faz parte de sua propriedade. É essa diferença
de visões, idades e costumes que, aparentemente, motiva o conflito entre esses dois
indivíduos. O jovem Victor acredita no seu direito de manipular aquela parte do terreno
sem a permissão de Brito uma ter comprado o lugar por 3 mil réis. Manoel Brito, por
sua vez, interpreta aquela parte do terreno como sendo de seu domínio. Porém, a lei não
alinha-se com o pensamento de nenhum do dois. Para a legislação, aquele terreno não
poderia tornar-se propriedade de nenhum dos moradores, não importando a
quantidade de dinheiro investido ou o tempo de uso da terra.
O conflito ocorre no que tanto as testemunhas, quanto a Justiça chamam de
lugar “Commum”, entendido como uma terra que foi ocupada por homens pobres livres
sem compra legal, cuja regulamentação de posse é feita pelo Estado, na legislação.
Este tipo de terreno, segundo o Art. 5º e parágrafo quarto da lei de terras de 1850 512,
esses “campos de uso comum” são de uso de todos os moradores, ou seja, não há um
dono, nem é permitido comprar parte dessas terras. Além disso, tempo de uso não
caracteriza posse privada da mesma. Antes da aprovação da lei, cultivar e cuidar,
produzir a partir da terra e dar para o campo onde reside um uso eram motivos
suficientes para qualquer indivíduo tornar-se dono legal daquele terreno em questão.

1 Trecho retirado do processo criminal C12V23, do Laboratório de Imagens da UFRN, Acervo de São José
de Mipibu – Ações Criminais
512 Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
663

Um costume que, como visto, remonta à política sesmarial de destruição de terras.


Porém, com a aprovação da referida lei em 1850, a única forma da adquirir a posse
fundiária no Brasil torna-se a compra.
A Lei de Terras atendia aos interesses das elites agrárias brasileiras da época,
haja vista que com o fim do tráfico negreiro ocorrido no mesmo ano, a quantidade de
escravos vindos de fora só diminuiria e o número de homens pobres livres (filhos de
escravos, alforriados, fugitivos, etc) aumentaria cada vez mais. Isso significa que as
terras nas quais esses homens se estabelecessem seriam zonas conflituosas para os
latifundiários. Numa época na qual a terra ainda era um dos maiores (se não o maior)
bens de consumo de um indivíduo, a lei viria para coibir a perca de poder desses homens
da elite.
Por fim, a sentença dada no processo é em favor de Manoel de Brito e seu
adversário é condenado pelo crime de agressão. Apesar de a questão da terra não ser o
foco do documento enquanto ação legal, a forma como Manoel de Brito, que tinha
iniciado a briga, consegue agenciar seus conhecidos e a maneira como estes justificam
as ações dele são janelas para enxergar aspectos da mentalidade e dos costumes
dessas pessoas. No fim, o costume vence a lei. É possível, portanto, perceber como as
pessoas pobres procuram meios de assediar a lei e nesse terreno obter vitórias.

MATERIAL DIDÁTICO
A partir das análises e discussões feitas através a partir da fonte supracitada,
elaboramos a charge apresentada a seguir, com a qual pretende-se sugerir uma
sequência didática a ser utilizada em sala de aula, mais especificamente em turmas do
oitavo ano do ensino fundamental ou da segunda série do ensino médio, como forma de
iniciar uma discussão. Serão apresentados, também, objetivos, conteúdos e estratégias
a serem pensados pelo professor com sua turma. Trata-se, portanto, da análise da
charge como fonte, como também uma maneira de acessar o cotidiano das pessoas
pobres do Rio Grande do Norte oitocentista, como também pensar a forma como esses
sujeitos agenciavam a lei conforme achavam justo, realizavam disputas e lutas.
Os objetivos da aula seriam, a priori, três:
a) Entender o terreno da lei como campo de disputa e não apenas como máscara
de dominação de classe;

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
664

b) Perceber que numa mesma sociedade existem diferentes concepções de


justiça, que dizem respeito à cultura e aos costumes de um grupo;
c) Exercitar o uso do conhecimento histórico na interpretação de um
acontecimento.
No que diz respeito aos conteúdos, o recorte temporal das vidas dos
personagens do processo C12V23¸ como também o recorte temporal do documento
permitem explorar alguns conteúdos tradicionalmente abordados nos livros didáticos
das turmas a que se destinamos a aula (oitavo ano e segunda série). É possível discutir
o contexto da aprovação Lei de Terras em 1850, suas reverberações na vida das
pessoas e sua relação com o declínio do sistema escravista no Brasil. Pode-se, também,
pensar a charge a partir de sua espacialidade: como viviam os grupos mais pobres no
Rio Grande do Norte do século XIX? De que forma suas lutas cotidianas ressoam ainda
na sociedade potiguar de hoje? A discussão permite, assim, integrar elementos da
chamada “história nacional” – tradicionalmente associada ao eixo Rio-São Paulo-Minas
Gerais – com aspectos da chamada “história local”, ao perceber aspectos do cotidiano
da sociedade norterriograndense.

Figura 2: Charge elaborada a partir da fonte e com a ajuda do artista Um Antônio, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
665

Para tanto, o professor pode iniciar a aula com algumas perguntas norteadoras,
tais como: como se estrutura a distribuição de terras no Brasil? Quais formas foram
usadas pelas pessoas mais pobres para a garantia do direito à terra? Esperamos que a
partir dessas discussões, os alunos percebam o quão desigual é a distribuição de terras
no país e que esse é um processo histórico marcado por muitas lutas e tensões. Em
seguida, o professor pode convidá-los para analisar um caso real, aqui transformado
em charge (Figura 2) no qual dois homens pobres disputaram pelo direito a terra.
Na charge, os elementos visuais auxiliam na discussão: as roupas dos homens
parecem indicar sua classe social, ao que as feições permitem ter uma ideia da diferença
de idade entre eles. A querela parece acontecer por conta do pequeno pedaço de terra
que disputam, um de cada lado. Contudo, a justiça intervém ao fincar sua espada no
meio da confusão. Nas falas encontra-se a grande questão em jogo: a quem pertence a
terra? De um lado, Manoel de Brito defende sua posse por conta do tempo em que vive
no lugar; de outro, Manoel Victor defende seu direito alegando ter comprado o terreno,
tendo nas mãos o que seria um documento comprobatório. Aparentemente impassível,
a lei dá o veredito: a terra não pertence a ninguém.
A essas conclusões os alunos podem chegar ao serem interpelados a
questionarem a charge. Conforme avançarem as discussões, o professor pode ir
revelando detalhes do processo que já foram aqui discutidos, trazendo para o debate a
contextualização dos dois personagens, suas noções de Justiça, o confronto disso com
o discurso oficial e a maneira como Manoel de Brito obteve vitória. Pode-se perceber,
dessa forma, como a lei para essas pessoas é um espaço de disputa onde costumes e
interesses entram em conflito. Apesar de ser quase sempre entendida como máscara
de dominação de classe, a lei também pode ser apropriada pelas classes populares
como forma de obtenção de vitórias cotidianas.
Por fim, o professor pode levantar a discussão acerca da legislação brasileira
atual sobre o uso de terras, levantando, por exemplo, a conquista obtida através da Lei
do Usucapião, que prescreve a legitimidade da posse de uma terra rural a todo aquele
que provar tê-la utilizado, tornado produtiva e nela viver, no período de cinco anos.513
Os alunos podem perceber, dessa forma, que os costumes pelos quais sujeitos como

513 BRASIL. Lei Nº 6.969, DE 10 DE DEZEMBRO DE 1981. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6969.htm. Acesso em: 16/11/2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
666

Manoel de Brito lutaram e esses valores que compartilhava com sua comunidade
tornaram-se leis, oficialmente reconhecidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, após tudo que foi lido, pesquisado, discutido, debatido e analisado,
entendemos que o papel da história na formação cidadã dos alunos da rede básica de
ensino dá-se a partir do alargamento da experiência temporal desses sujeitos, a medida
em que são estimulados a pensar historicamente sua própria realidade. O uso das
fontes em sala de aula permite explorar janelas históricas para entendermos como os
seres humanos de outrora lidaram com carências e problemas que nós também
lidamos. Faz-se necessário perceber de que forma a luta dessas pessoas modificou e
transformou suas próprias realidades, ajudando a tornar possível a sociedade que
temos hoje.
A discussão sobre a questão de terras no Brasil é um tema que, em grande
medida, é parte das tensões reais encontradas nas lutas de muitos sujeitos dos rincões
do país: crianças, adolescentes e adultos que vivem em lugares onde das disputas em
torno da terra afetam de modo contundente suas vidas. Entendemos que, ao
instrumentalizarmos a partir da história os alunos, eles terão condições de tecer
interpretações mais complexas acerca de sua própria realidade, tornando-se sujeitos
críticos e cidadãos atuantes, conforme estabelecido na legislação brasileira.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal: promulgada em 05 de outubro de 1988. 6. ed.

________. Lei Nº 6.969, DE 10 DE DEZEMBRO DE 1981. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6969.htm. Acesso em: 16/11/2017.

________. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm. Acesso em: 16/11/2017.

CASCUDO, Luís da C. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

_________. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na


Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no


Rio de Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
667

FAUSTO, Boris. (1984). Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924) .


São Paulo: Brasiliense.

LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, 2 ed. Natal: EDUFRN,
2008.

MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e Escravidão. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira
da; MATTOS, Hebe Maria; FRAGOSO, João (Org.). Escritos sobre História e Educação.
Rio de Janeiro: Mauad, 2001. p. 331-350.

MARTINS, José de Souza. A vida privada nas áreas de expansão da sociendade


brasileira. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da Vida Privada no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 659-726.

POMBO, José Francisco da Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro:
Annuario do Brasil, 1922.

THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
668

A HISTÓRIA LOCAL COMO UM CAMINHO PARA O ENSINO


SIGNIFICATIVO DE HISTÓRIA NOS ANOS INICIAIS

Olga Suely Teixeira514


Orientadora: Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRN

APRESENTAÇÃO E JUSTIFICATIVA DA PESQUISA


Esse texto compartilha as ideias iniciais de uma pesquisa que foi pensada a partir
de observações pessoais em relação à forma como se desenvolvem as aulas de História
nos anos iniciais (1º a 5º Anos do Ensino Fundamental) e de alguns questionamentos
das professoras orientadoras dessas turmas à pesquisadora, enquanto Licenciada em
História.
Desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Ensino de História
(ProfHistória) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e ligada à Linha de
Pesquisa Saberes Históricos no Espaço Escolar, sua realização pode ser justificada
primordialmente, pelo fato de as pesquisas ligadas à área de História, produzidas nos
Mestrados Acadêmicos - em sua maioria - não terem como objeto de estudo o processo
ensino-aprendizagem dessa disciplina; o tema é mais árido, ainda, no tocante ao ensino
de História nos anos iniciais.
Além disso, a situação paradoxal que vivencio na Escola onde leciono -
instituição que, na teoria, procura orientar o trabalho no sentido de transformar o aluno
no sujeito do conhecimento, mas na prática segue a ideia de transposição didática, tão
comum no dia-a-dia educacional – e que acabou motivando as observações
mencionadas no início desse texto, me levaram a querer entender, de fato, o que se
passava com as aulas de História nesses primeiros contatos dos alunos com a disciplina
e, se possível, auxiliar na resolução das problemáticas encontradas.
Ao me preocupar com o ensino de História nos anos iniciais – campo de atuação
no qual a reserva de mercado prevê o trabalho do Pedagogo e não do professor
licenciado em História – estou buscando um caminho que torne real o que orienta a

514Mestranda no Programa de Pós Graduação em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade


Federal do Rio Grande do Norte. Professora da rede Particular de Ensino Básico na Cidade de Natal/RN.
E-mail: olgasuelyt@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
669

Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Fundamental (2017) em relação à


disciplina História nos anos iniciais:

Para se pensar o ensino de História, é fundamental considerar a


utilização de diferentes fontes e tipos de documentos [...] capazes de
facilitar a compreensão da relação tempo e espaço e das relações
sociais que os geraram (BNCC, 2017, p. 348).

O tipo de procedimento explicitado pelo documento oficial requer a ação


reflexiva do professor e um tipo específico de saber, oferecido pela ciência de referência
da disciplina; talvez esse fator, por si, já justificasse o meu interesse em investigar
como estão sendo ministradas as aulas de História nesse segmento, levando em
consideração que os saberes docentes adquiridos pelo pedagogo diferem daqueles que
são prerrogativas do profissional licenciado em História.

OBJETIVOS
Nesse sentido, o objetivo da pesquisa seria investigar as práticas de ensino
desenvolvidas nessas salas de aula para sugerir estratégias que favorecessem a
construção do conhecimento histórico.
Pensando em tornar real o que está posto na Constituição Federal (1988), em
seu art. 205 – a Educação como um direito de todos -, a discussão proposta visava à
solução de algumas dificuldades observadas no processo ensino-aprendizagem da
disciplina, tais como as dificuldades evidenciadas pelas professoras no que diz respeito
à problematização dos conteúdos e/ou a distância entre os alunos e o entendimento
dos conteúdos ministrados – seja pelas pedagogas, seja pelas professoras licenciadas
em História.
Tendo em vista o interesse em colaborar com a promoção da qualidade
educacional no país, o trabalho levou em conta o que está posto na legislação
pertinente a essa dimensão social; as afirmações e pressupostos desses documentos
funcionaram como fio condutor das investigações procedidas a partir da realidade
escolar vivenciada por mim.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
670

IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA E HIPÓTESES DE SOLUÇÃO


A partir das primeiras observações, ainda de caráter informal, a questão
problema foi se delineando, acabando por se tornar clara no momento em que percebi
o tipo de trabalho desenvolvido nas aulas de História; com pouquíssimas exceções, as
professoras apenas abriam o livro, seguiam o sumário e realizavam uma leitura
exaustiva e os exercícios ali propostos, sem nenhuma tentativa de refletir sobre o
conteúdo que era apresentado às crianças.
Tornava-se relevante, dessa forma, responder à pergunta “como tornar
significativo o processo ensino-aprendizagem em História nos anos iniciais?”, dando
ênfase ao que ocorre nas salas de 4º e 5º Anos, uma vez que ao ampliar-se o leque de
conteúdos, introduzindo aqueles que a tradição escolar instituiu como sendo de
História do Brasil, as crianças se sentem perdidas, alheias a todos aqueles temas que
tratam de acontecimentos e sujeitos tão distantes delas no tempo e no espaço.
As colegas professoras dos anos iniciais me procuravam angustiadas - às vezes
querendo entender o conteúdo que estava posto no livro de História, às vezes querendo
que eu sugerisse uma forma de “passar” o assunto de forma inteligível para as crianças.
Quando não havia mais argumentos para explicar a situação, a queixa das professoras
se voltava contra os alunos - indisciplinados, desrespeitosos e que “não querem nada
com os estudos”, segundo elas.
Algumas hipóteses poderiam explicar tal estado de coisas; uma primeira
questão era a formação inicial das profissionais, que talvez não tivesse lhes capacitado
para desenvolver aulas problematizadoras das questões da História, portanto, não
conseguiam atingir o objetivo desejado pela Direção da Escola (fazer com que o aluno
se sinta parte integrante do processo ensino-aprendizagem).
Ou eu poderia inferir que o problema estaria na tradição de formação docente
que preza por transmitir e não mediar/construir o conhecimento junto ao aluno, já que
não estava tratando apenas com profissionais da Pedagogia – havia no grupo uma
professora licenciada em História que apresentava as mesmas dificuldades.
Ainda outro ponto a ser considerado era o que dizia respeito à problematização
dos conteúdos, procedimento que exige um planejamento à base de pesquisa e
avaliação do trabalho que está sendo desenvolvido; isso demanda tempo e desejo de
fazer – elementos que, às vezes, são inexistentes no cotidiano docente.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
671

Mediante tais constatações percebi que seria importante discutir sobre o que se
tem feito nas aulas de História para estimular o aluno a fazer suas próprias
descobertas, apreendendo a forma pela qual acontecimentos passados se ligam uns
aos outros e aos dias atuais e, como essa relação pode influenciar nos dias que ainda
estão por vir.
Na verdade, seria necessário saber se esse estímulo vem sendo dado e como
isso vem sendo feito, uma vez que “[...] antes de ser uma disciplina científica, a História
é uma forma de os seres humanos se enxergarem no tempo, de definirem a si mesmos
e aos outros [...]”, conforme o pensamento de Caio Rodrigo Carvalho Lima (2016, p. 12),
e problemas em seu ensino e aprendizagem podem comprometer seriamente o
entendimento das crianças sobre os tempos e espaços onde necessitam desenvolver-
se enquanto sujeitos históricos.
Considerando os variados fatores envolvidos na discussão, sejam aspectos
ligados à formação do profissional que ministra a disciplina (currículos), sejam as
condições (materiais, psicológicas, sociais) nas quais se desenvolvem as ações de
professores e alunos e as minhas próprias experiências com uma turma de 5º Ano, a
hipótese que me pareceu mais viável para solucionar as dificuldades de ambos os
sujeitos – professores e alunos - foi a realização de um trabalho que relacionasse os
conteúdos históricos ao cotidiano vivenciado pelas crianças.
Falar de cotidiano apontava para o trabalho com história local; sendo assim,
concordando com Helder Alexandre Medeiros de Macedo (2017, p. 61) quando afirma
que “conhecer a história local [...] contribui para o fortalecimento das identidades das
pessoas para com os lugares onde nasceram/habitaram” – e porque os alunos e alunas
saberão que o seu lugar se liga a outros contextos bem maiores e que, na maior parte
das vezes, as problemáticas enfrentadas ali também são objeto de preocupação em
outras partes do mundo, imaginei que esse caminho favoreceria a significação dos
conteúdos pelas crianças.

PARA ENTENDER O OBJETO DE ESTUDO


Entender as formas pelas quais os objetos pesquisados se constituem ao longo
do tempo contribui para que se obtenha as respostas necessárias à pesquisa – sejam
elas afirmativas ou negativas das hipóteses pensadas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
672

Dessa forma, vemos que apesar de, já no século XVIII, o estudo da História -
como elemento de formação do caráter humano e não como disciplina escolar
autônoma – ter passado a fazer parte das preocupações da administração
metropolitana do Marquês de Pombal no que dizia respeito aos cursos superiores515
ministrados nas Universidades Portuguesas, a bibliografia consultada dá conta de que
podemos falar sobre a constituição de História como disciplina escolar no Brasil,
apenas, a partir das primeiras décadas do Século XIX.
Antes disso, no período colonial de nosso território, a Educação apresentava
caráter específico, produto dos interesses comuns ao Estado Português e à Igreja
Católica, representada, em território brasileiro, prioritariamente, pela Companhia de
Jesus.
Com a criação do Império Brasileiro, quando passou a ocorrer também a
estruturação de um sistema de ensino, História passou a se constituir como uma
disciplina escolar com objetivos definidos. O ensino de História no Brasil nascia, dessa
forma, atrelado à construção da identidade nacional. Nesse contexto, a Escola já era
vista como o local onde, a priori, se aprendia a ser cidadão, uma vez que, como reflete
Maria Inês Sucupira Stamatto (1997, p. 704), para se atingir tal status, não se dependia
mais apenas “[...] do nascimento e da fortuna [...]”, mas havia a necessidade de ser
alfabetizado.
Mais tarde, a ocorrência da proclamação da República agregou novas
preocupações ao cenário: discutia-se, agora, acerca dos métodos empregados para
ensinar História, porque esse ensino deveria, mais do que nunca, criar e reforçar os
sentimentos patrióticos. Chegamos aos anos 1990 com profundas mudanças nos
paradigmas historiográficos internacionais de História; o Brasil acompanhou esse
panorama, incorporando as novas tendências aos programas curriculares e aos
materiais didáticos e paradidáticos; esses últimos começavam a aparecer no mercado
editorial. As salas de aula se transformaram em laboratórios e os professores
passaram a experimentar diversos modelos metodológicos.
Esse longo percurso revela problemas sempre presentes no ensino de História.
A constatação apareceu nos anos 1970, quando as primeiras gerações de professores
formados pelos cursos superiores recém-abertos na USP (Faculdade de Filosofia,

515Para aprofundamento desse aspecto ver FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & Ensino de
História. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 37-89 (Coleção História & Reflexões).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
673

Ciências e Letras) e na Universidade do Brasil (Rio de Janeiro) começaram a chegar às


escolas, uma vez que em períodos anteriores, o processo ensino-aprendizagem da
disciplina não integrava as preocupações dos profissionais dessa área.
Como resultado da chegada dessas novas mentalidades ao campo de trabalho,
o cenário se transformou em finais dos anos 1970 e início dos anos 1980 do Século XX,
acompanhando o mundo inteiro, que passava por mudanças significativas em relação à
concepção de temas como cultura, educação, escola, família (Costa; Oliveira, 2007, p.
148).

PERCURSO METODOLÓGICO
Após essa fase de inferências, chegamos à organização da metodologia para o
desenvolvimento da pesquisa. Foi realizada, inicialmente, uma pesquisa bibliográfica,
com o objetivo de entender a constituição do campo de pesquisa no qual eu estava me
propondo a atuar – o Campo do Ensino de História.
Tendo sido considerado área de formação até a década de 1960, desenvolveu-se
lentamente, pois mesmo com o surgimento de vários Programas de Pós-Graduação a
partir dos anos 1970, pesquisa em Ensino de História era área de especialização das
Ciências da Educação.
Além disso, o campo é muito amplo, acolhendo pesquisas que se dedicam aos
temas da formação de professores, do processo ensino-aprendizagem, dos materiais
didáticos, da memória docente, além da história do ensino e dos cursos de História.
O campo de pesquisa sobre o ensino de História está em expansão no Brasil e
em outros países. Desde os anos 1960 até os dias atuais muito se tem escrito nesta
área, mas Aryana Lima Costa e Margarida Maria Dias de Oliveira (2007, p. 150)
destacam que os estudos mais recentes é que trazem a preocupação de discutir “[...] as
relações entre a produção do conhecimento histórico e a produção do conhecimento
histórico escolar”.
Pensar essas relações se torna relevante, se levarmos em consideração o fato
de que a produção do conhecimento histórico se dá no âmbito acadêmico,
representando um “[...] campo de pesquisa [...] do domínio dos especialistas” (PCN, 1988,
p. 29) e a produção do conhecimento histórico escolar permite que professores e
estudantes:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
674

[...] selecionem e se apropriem de partes dos resultados acadêmicos,


articulando-os e reelaborando-os de acordo com os objetivos de ensino.
Nessa reelaboração agregam-se as representações sociais, do mundo
e da história [...]” carregadas por esses personagens (PCN, 1988, p. 35).

Dessa forma, o ensino de História em nossas salas de aula, marcado por uma
trajetória peculiar - na qual a prática simplista da transposição do saber acadêmico para
outro ambiente parece natural - nem sempre apresentou aprendizagem real,
significativa; seus resultados, em geral, apontam mais para uma conformação dos
alunos do que para o envolvimento destes com o que está sendo ministrado pelo
professor, situação que merece ser observada, analisada, discutida e, se possível,
modificada.
Havia, portanto, a necessidade de ouvir outras vozes a respeito do tema . Assim,
busquei o que já se tinha publicado sobre o tema, elaborando uma revisão bibliográfica
no intuito de evitar a repetição de ideias que já estavam postas.
Com o objetivo de perceber o que é relevante para o ensino de História nos anos
iniciais, importantes colaborações foram dadas pela leitura dos trabalhos de Sandra
Regina Ferreira de Oliveira (2006) e Marta Margarida de Andrade Lima (2013), pois ao
refletirem sobre várias facetas do processo de aprendizagem infantil em História,
observando alunos e professores, as mesmas lançam olhares que acabam explicando
a ocorrência de determinadas situações percebidas durante as incursões que realizei
na escola campo de minha pesquisa.
Do ponto de vista de Oliveira (2006, p. 50), “[...] o ensino de História nos anos
iniciais não é a transposição didática dos saberes científicos (re) adaptados para um
novo nível de escolarização”, contudo o que a tradição escolar convencionou foi esta
ideia e as observações que fiz me permitem afirmar que é justamente isso o que as
professoras consideram que deva ser realizado.
Outro aspecto que pede atenção é o que se refere aos saberes dos professores
quanto à História a ser ensinada. Na pesquisa realizada pela autora, a maioria dos
docentes não soube dizer qual a finalidade de ensinar História nos anos iniciais. Em seu
texto ela explica:

A noção que as professoras passam sobre a aprendizagem em história


é marcada pela ideia de passividade do aluno frente a um conteúdo a
ser aprendido, qualquer livro ensina. Este aprender pelos/nos livros

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
675

caminha lado a lado com uma ideia de aprendizagem natural do tempo


e da história (OLIVEIRA, 2006, p. 89).

Essa é a realidade que vivencio e que deu origem à problemática desse trabalho;
para complicar ainda mais a situação, é apresentado por Oliveira (2006) um paradoxo
que também faz parte do meu dia-a-dia: as professoras voltam-se prioritariamente para
o processo de alfabetização nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, porém
reclamam que os alunos do 4º e 5º Anos não aprendem História porque não sabem ler.
Para consulta e análise das fontes – fase posterior do trabalho – parti do
tratamento oferecido pelo método histórico, que enfoca os dados da pesquisa sob uma
perspectiva histórica, acompanhando a evolução do objeto pesquisado através e/ou ao
longo do tempo.

IDENTIFICAÇÃO DAS FONTES DE PESQUISA


Além da Constituição Federal de 1988 e dos Documentos pertinentes à
legislação da Educação brasileira no que diz respeito aos anos iniciais (Lei de Diretrizes
e Bases, Parâmetros Curriculares Nacionais, Diretrizes Curriculares para a Educação
Básica e Base Nacional Comum Curricular), foram elencados como fontes de
investigação para essa pesquisa o Projeto Político-Pedagógico do Colégio Essencial,
questionários realizados com as professoras atuantes nas turmas de 1º a 5º Anos,
planos de aula elaborados pela professora do 5º Ano neste ano letivo de 2018 e um
Diário de Campo516 feito por mim, agora como observadora oficial das aulas de História
do 5º Ano.
Os documentos oficiais provocam a reflexão a partir dos caminhos que orientam,
normatizam, instituem o fazer cotidiano na escola; foi a partir da inferência dos

516O Diário de Campo foi elaborado a partir de observações feitas na turma do 5º Ano, cujas aulas de
História ocorrem nos primeiros horários da manhã de terça feira (02 aulas de 45min cada). Estive
presente nessas aulas no período de 15 de Maio a 05 de Junho de 2018. Fiz anotações em rascunhos e
posteriormente organizei as informações em arquivos digitados e impressos para fins de arquivo
pessoal. O material consta de 04 fichas descritivas das aulas do dia, identificando o tema da aula, os
objetivos e a metodologia utilizada pela professora. Também fazem parte das fichas registros
fotográficos feitos por mim, que mostram os planos de aula de cada dia, páginas do livro didático
utilizadas nas respectivas datas e a sistematização de um trabalho realizado sobre os indígenas. Há,
ainda, nas fichas, o registro da fala de alguns alunos durante a roda de conversa que sistematizou esse
trabalho e algumas observações pessoais da pesquisadora acerca do planejamento das aulas e da
utilização do material didático adotado pela escola.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
676

resultados esperados em seus textos que pude questionar o que se estava fazendo nas
aulas de História.
É relevante, por exemplo, entender o que está sendo feito no chão da escola –
nas aulas de História dos anos iniciais - para se garantir “[...] o pleno desenvolvimento
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho” (LDBN 9394/1996, Título II, Art. 2º), pois são aspectos para os quais o cidadão
deve ser orientado desde a mais tenra idade.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de História para o Segundo Ciclo
do Ensino Fundamental - 4º e 5º anos iniciais (1988):

[...] os conteúdos enfocam as diferentes histórias que compõem as


relações estabelecidas entre a coletividade local e outras coletividades
de outros tempos e espaços, contemplando diálogos entre presente e
passado e os espaços locais, nacionais e mundiais (PCN, 1998, p. 46).

O Projeto Político-Pedagógico da Escola se configura em fonte primordial para


a verificação da equidade entre esse discurso e a prática do que acontece no ambiente
escolar pesquisado; quando se examina mais detalhadamente a grade curricular de
História nesse documento, percebe-se o descompasso.
A prática docente orientada é no sentido de entender que:

[...] o perfil de formação dos alunos Essencial tem como pedra angular
a inserção social de crianças e jovens como seres atuantes na
construção de seus grupos sociais definidos.
Esta perspectiva requer da instituição o uso de práticas educativas
consonantes com as mudanças percebidas no cenário educacional
contemporâneo; isto significa dizer que o Colégio Essencial se propõe
a trabalhar de forma que o seu corpo funcional se mantenha atualizado
e, prioritariamente, que o professor acolha a realidade do aluno em seu
cotidiano letivo.
As práticas adotadas mediarão a evolução de um educando que saberá
conviver com erros e acertos em todas as situações, abolindo de vez a
“pedagogia da resposta”, na qual o aluno não é estimulado à pergunta,
não desenvolve a curiosidade de aprender.
Contrário a este estado de coisas, o Colégio Essencial pensa na
formação de um aluno que construa seus próprios conceitos e
considere os erros como degraus para os futuros acertos; para isso,
orienta suas práticas de forma que o pensar do aluno seja valorizado e
que ele se sinta desafiado a encontrar respostas diferenciadas.
Essa é a essência da aprendizagem real pela qual a escola se pauta em
suas ações (PPP ESSENCIAL, 2017, p. 12-13).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
677

Porém, quando se trata de definir a partir de que esse trabalho deve tomar
forma, define uma listagem de conteúdos substantivos que ilustram os livros didáticos
– não só de História, mas de todas as outras componentes curriculares – há décadas.
Não há direcionamentos específicos em relação a práticas problematizadoras
nos variados campos de conhecimento e da realidade em que o aluno circula.
Assim, torna-se relevante para o desenvolvimento da pesquisa verificar essa
dinâmica de funcionamento, no intuito de sugerir alterações significativas na realização
do ensino-aprendizagem, pelo menos em História.
Os questionários realizados com as colegas professoras dos anos iniciais são
fontes que podem indicar a origem de vários dos problemas identificados no âmbito do
ensino de História nesse segmento da educação básica.
Foram entrevistadas cinco professoras, sendo quatro pedagogas e uma
licenciada em História, que atuam nas salas dos anos iniciais do Colégio Essencial.
Desse total, três estão na faixa etária entre 41/45 anos e duas entre 31/35 anos. Três
professoras são licenciadas em Pedagogia, uma ainda está em processo de formação e
uma é licenciada em História, sendo que uma das pedagogas possui especialização em
Psicopedagogia.
As profissionais são graduadas/graduandas em Universidades/Faculdades da
rede particular de ensino na cidade de Natal; com exceção da professora que ainda está
cursando a licenciatura em Pedagogia, as demais concluíram os cursos há menos de
cinco anos, embora duas pedagogas já atuem em sala há mais de dez anos, uma entre
cinco e dez anos. Uma pedagoga e a professora licenciada em História desenvolvem a
docência há menos de cinco anos.
Do universo de quatro pedagogas, apenas uma afirmou ter cursado, durante a
graduação, uma disciplina específica sobre o ensino de História, porém não lembrou o
nome, nem o conteúdo de tal disciplina. A professora licenciada em História afirmou não
ter cursado nenhuma disciplina específica em relação ao aspecto questionado.
Todas afirmaram ser professoras por escolha própria. Quanto às impressões
sobre as aulas de História quando ainda eram alunas da Educação Básica, duas
pedagogas e a professora licenciada em História responderam que se sentiam curiosas
durante essas aulas e duas pedagogas definiram-nas como decorativas e cansativas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
678

Quando perguntadas se sentem dificuldades em ensinar História, registrou-se


um paradoxo; informalmente, responderam que sim, encontravam inúmeras
dificuldades, porém, por escrito, apenas duas pedagogas mantiveram essa resposta,
explicitando que não conseguem planejar aulas com conteúdos dinâmicos que possam
ser ministradas de forma interessante.
Nesses documentos, selecionados como fontes para a pesquisa, é clara a lacuna
provocada pela falta dos conhecimentos da Ciência de referência da disciplina, se
observadas as respostas dadas às duas últimas questões (Como você costuma
organizar suas aulas de História? Para você, qual é a função do Ensino de História?).
Em relação aos planos de aula da professora do 5º Ano, eles são fontes a partir
das quais se pode inferir como o trabalho docente em História está sendo realizado nos
anos iniciais, colocando em prática muitos dos caminhos idealizados há décadas para o
ensino de História, embora a professora licenciada em Pedagogia responsável por essa
turma consiga, vez ou outra, ministrar algumas aulas que se aproximam das atuais
propostas para o ensino de História.
O Diário de Campo aparece como uma fonte complementar para a corroboração
de algumas informações coletadas nos questionários e nos planos de aula.
Sendo assim, o esperado foi que essas fontes dialogassem com as dúvidas
iniciais que moveram a realização do trabalho, mesmo que ora confirmassem, ora
negociassem os pontos de vista aqui apresentados.

RESULTADOS INICIAIS
Os resultados iniciais da pesquisa apontam que esse tema parece não despertar
interesse – quer seja por se considerar que não é o campo de atuação do profissional
licenciado em História, quer seja pela visão de “que ensinar crianças é fácil” -, sendo
relevante, nesse sentido, que se proponha um número maior de discussões acerca do
assunto.
Porém, nesse momento, não se pode apresentar um pensamento conclusivo,
uma vez que a fase final do trabalho se encontra em desenvolvimento, podendo-se
apresentar algumas inferências, entre elas a de que o ensino de História nos anos
iniciais – da forma como vem sendo desenvolvido - não concorre para a consecução dos
objetivos elencados nos documentos nacionais de Educação.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
679

Porém, nesse momento, não se pode apresentar um pensamento conclusivo,


uma vez que a fase final do trabalho se encontra em desenvolvimento.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
história e geografia / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Base Nacional Comum Curricular:


Educação Infantil e Anos Iniciais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:
MEC/SEF, 2017.

BRASIL. Lei Federal Nº 5.692, de 11 de Agosto de 1971. Lei de Diretrizes e Bases para o
Ensino de 1º e 2º Graus.

BRASIL. Lei Federal Nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. Lei de Diretrizes da


Educação Nacional.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de


Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câmara
Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação
Básica / Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de
Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

COSTA, Aryana Lima; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O Ensino de História como
objeto de pesquisa no Brasil: no aniversário de cinquenta anos de uma área de
pesquisa, notícias do que virá. Saeculum, Revista de História [16]; João Pessoa, jan/jun.
2007. p. 147-160.

GIL, Carmem Zeli de Vargas; PEREIRA, Nilton Mullet; PACIEVITCH, Caroline; SEFNER,
Fernando. Ensinar, Pesquisar, Ensinar: a experiência dos Mestrados Profissionais.
Revista Percursos, Florianópolis, v. 18, n. 38, p. 08-32, set./dez 2017.

LIMA, Caio Rodrigo Carvalho. Além dos Muros da Academia: sentido da história e
trauma histórico na obra de Jörn Rüsen (1983-2013). Dissertação Mestrado.
Universidade de Brasília. Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em
História, 2016. p. 12.

LIMA, Marta Margarida de Andrade. As Tessituras da História Ensinada nos Anos


Iniciais: pelos fios da experiência e dos saberes docentes. Campinas, SP: 2013. Tese
(Doutorado).

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. De como se constrói uma história local:
aspectos da produção e da utilização no ensino de História. p. 57-81. In: ALVEAL,
Carmem Margarida Oliveira [et al]. Reflexões sobre história local e Produção de
Material Didático. Natal: EDUFRN, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
680

OLIVEIRA, Sandra Regina Ferreira de. Educação Histórica e a Sala de Aula: o processo
de aprendizagem em alunos das séries iniciais do ensino fundamental. Campinas, SP:
[s.n.], 2005. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.

Projeto Político-Pedagógico Colégio Essencial. Natal, 2017. p. 12-13.

STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Entre a escrita e a oralidade: o voto e a escola


(Brasil, 1875-1904). IV Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História,
Sociedade e Educação no Brasil”. 14 a 19 de dezembro de 1997. Unicamp, Campinas,
SP.

Site Consultado
www.dicio.com.br/localismo

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
681

Simpósio Temático 11
BIOGRAFIAS E HISTÓRIA:
A CONSTRUÇÃO DE VIDAS
E O TRABALHO DO HISTORIADOR
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
682

A CONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA DE LUIZ CARLOS PRESTES (DA


DITADURA MILITAR ATÉ A SUA MORTE) NAS OBRAS DE
MARIA PRESTES E ANITA LEOCÁDIA PRESTES

Francisco Iarlyson Santana de Andrade517

LUIZ CARLOS PRESTES, UM PERSONAGEM HISTÓRICO ELEITO PROTAGONISTA


No século XX, no Brasil, as ideias de esquerda entraram na pauta do dia no
cenário político. Entretanto não foram só as ideias que ganharam espaço, mas como
também seus líderes. Entre esses líderes um deles acabou ganhando mais destaque no
campo historiográfico, nós referimos ao personagem histórico Luiz Carlos Prestes, que
é o objeto de pesquisa desse trabalho.
Luiz Carlos Prestes foi um personagem que teve uma vida de diversas
transformações políticas e ideológicas. Com isso, ficando cada vez mais difícil definir as
suas ideias um sentido lógico. Muito pior as suas atuações, “Já que não se pode definir
o político por uma coleção de objetos ou um espaço, somos levados a definições mais
abstratas.” (RÉMOND, 2003, p.443-444).
O personagem necessariamente teve a iniciação política em outro campo, que
era especificamente o movimento tenentista. Movimento esse, que era um pouco longe
da esquerda, porém inquestionavelmente preocupado com as mazelas que o povo
brasileiro passava nos princípios do século XX. Não temos como objetivo no trabalho
classificar o movimento tenentista como da esquerda política e nem como do campo
progressista. Longe também de classificá-lo como um processo evolutivo do
personagem até chegar a futuras ideologias e concepções políticas.
O movimento tenentista era formando em seu quadro por militares
inconformados com o cenário político e social do Brasil. “O tenentismo recebeu esta
denominação uma vez que teve como principais figuras não a cúpula das forças
armadas, mas oficiais de nível intermediário do Exército - os tenentes e os capitães.”
(FEREEIRA; PINTO, 2008, p.400). Os principais inimigos desse movimento eram a
Primeira República e seus representantes, que em suas impotências em resolver os

Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Federal de Campina Grande,


517

Campus CFP-Cajazeiras. (Iarlyson.Santana@outlook.com)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
683

problemas nacionais e, em sua manutenção dos privilégios de poder, provocaram nos


militares de baixa patente o desejo de mudar o Brasil.
Entre esses militares supracitados, estava o Luiz Carlos Prestes. Esse não
demorou em ganhar protagonismo no tenentismo, logo uma das colunas de subversão
foi batizada em seu nome; A Coluna Prestes. Perante alguns meses de revolta, sua
coluna se saiu invicta, assim como também, seu enorme destaque conquistado.
Por mais que tenha se saído invicto nas batalhas travadas que cortaram o Brasil,
também não conseguiu derrubar os seus oponentes. A saída ao exilio dos seus
liderados, e também o seu, não demoraram a provocar transformações na mentalidade
política de Luiz Carlos Prestes. Novamente deixo claro que não vejo a trajetória política
do personagem como destino traçado ou processo evolutivo. O vejo mais como uma
atuação oportunista de quem lutou para alcançar seus objetivos, sejam eles nobres ou
não. Segundo Rémond (2003, p.449):

A política não segue um desenvolvimento linear: é feita de rupturas que


aprecem acidentes para a inteligência organizadora do real. O
acontecimento introduz nele, inopinadamente, o imprevisível: é a
irrupção do inesperado, portanto do inexplicável, a despeito do esforço
que os historiadores possam fazer para reabsorvê-lo e integrá-lo numa
sucessão lógica.

Por isso a importância de apresentar o personagem em suas transformações, ou


melhor, em suas rupturas políticas. A vida toda do Luiz Carlos Prestes se daria por
intermédio dessas descontinuidades em meio a sua atuação política e ideológica,
rompendo e construindo novos horizontes a partir de sua visão oportuna focada na
visualização de novas conjunturas.
No exílio, o personagem Luiz Carlos Prestes rompeu definitivamente com o
tenentismo, logo depois passou a se aproximar da literatura Marxista e a formar novas
concepções políticas. De fato, alí marcaria sua aproximação com ideias mais
direcionadas a Esquerda Política, porém não foram suficiente para o PCB518 o aceitar
como filiado.
Como dito/narrado anteriormente, sua primeira ruptura política, junto com fama
de líder da coluna invicta e o seu interesse pelo marxismo não foram peças suficientes
paras os dirigentes do PCB o aceitarem. Eles ainda desconfiavam do caráter burguês

518 Partido Comunista Brasileiro

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
684

das antigas ideias do Luiz Carlos Prestes, da mesma forma que não estavam
convencidos da transformação política do antigo militante tenentista. Porém a sua
aceitação foi imposta pela Internacional Comunista que não fez muita questão para a
preocupação dos dirigentes comunistas brasileiros.
Depois desses longos anos no exílio o último país que o passou antes regressar
ao Brasil foi a União Soviética. Quando retornou para o Brasil já veio como dirigente do
PCB e presidente de honra ANL519 em 1934. A sua fama no antigo movimento de tenente
serviu para promover o seu destaque nessas duas organizações, com elas militou e
lutou contra o governo de Getúlio Vargas, assim como também foi derrotado e posto
na ilegitimidade.
Passaram se anos e o Luiz Carlos Prestes viu sua imagem se cristalizar para os
comunistas assim como tinha sido para os tenentes. Os anos que passou na prisão,
serviram como meios de panfletagem e engajamento para O PCB. Campanhas em prol
de sua liberdade, e a produção cultural e literária diversa contribuíram para a sua
transformação em mito.
As décadas de 1940 e 1950 reservaram para Luiz Carlos Prestes a liberdade, uma
vaga no senado e o retorno da ilegalidade de seu partido. Foram anos de idas e vindas,
sucessos e fracassos, mas o pior quadro de isolamento político do personagem ainda
estava por vir.
Luiz Carlos Prestes, a partir da década de 1960, notaria o declínio de sua atuação
política no cenário brasileiro. Isso se daria primeiro pela eclosão do fechamento e
cerceamento de sua esfera de atuação política, o PCB, proporcionada pela Ditadura
militar que daria seus primeiros passos no ano de 1964. Em um segundo momento pelo
o seu isolamento ao público e cenário brasileiro, os anos do seu segundo exilio na União
soviética o fizeram tornar alheio às realidades vivenciadas no cenário brasileiro em seu
novo governo autoritário, conservador, militar e alinhado aos interesses norte-
americanos dos Estados Unidos. E por último, a própria idade do Luiz Carlos Prestes já
demonstrava um claro e comum desgaste humano em relação a sua atuação política.

519 Aliança Nacional Libertadora

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
685

OS BIÓGRAFOS E SUAS OBRAS EM DIVERGÊNCIAS, LIMITES E ESCOLHAS


Dada às proporções do personagem biografado, partimos agora para as
dificuldades que o rodeiam em sua construção biográfica. A apresentação do Luiz
Carlos Prestes no nosso primeiro tópico partiu de escolhas que tivemos que fazer
durante o percurso de nossa própria escrita e narrativa. A partir desses meios de escrita
e narrativa construímos um especifico personagem protagonista (o Luiz Carlos
Prestes) que poderia ser tanto construído como herói ou como também por
oportunista. Não cabe aqui falar para que se elege a nossa narrativa, fica apenas como
um meio de apresentação do personagem.
Relatar, construir e narrar à vida de um personagem histórico é tarefa
complicada, tendo em vista principalmente as escolhas quase obrigatórias que o
narrador precisa fazer. Muito pior é a completa produção de uma biografia, não tem
como deixa de lado a complexidade de ser elaborar esse tipo de obra, já que ele tem
uma particularidade ao que referem à tentativa “[...] de ‘defender’ nossas ‘obras’,
acabamos por criar heróis – paladinos em sua coerência – e poucas vezes nos
contentamos em deixar brotar ambivalências tão próprias às vidas dos outros, que são
também nossas.” (SCHWARCZ, 2013, p.52), é um dos pecados ou riscos que o autor
comete quando se propõe a escrever sobre um personagem.
Apesar da complexidade, os autores biográficos também não deixam de
desfrutar certos e grandiosos poderes sobre os personagens. Entre eles estão os
recortes, escolha das fontes, escolha das palavras, dos fatos narradas, e ainda são eles
que elegem ou classificam os personagens heróis, mitos ou violões. Não obstante a
isso, ainda se posicionam sobre a obra, colocam suas intepretações dos fatos e suas
leituras de mundo sobre o que escrevem. Não deixa de ser uma atuação dentro da
própria história, afinal, o autor parte de sua subjetividade ao escrever e narrar à atuação
do personagem. Tanto que o autor Borges fala que (2015, p.220, grifo do autor):

Ao narrar os acontecimentos de uma vida, seja em um verbete para uma


enciclopédia, seja em uma biografia do tipo “mergulho na alma”, os
fatos passam por uma seleção permanente, pois não há outra forma
para narrar uma vida a não ser selecionando o que nos parecer
significativo.

Inegavelmente o autor biográfico parte de uma “seleção” na produção de sua


obra, seleção essa, que remete a recortes e escolhas de fatos, situações e momentos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
686

que permeiam o ator histórico. É o autor que narra e tenta dar sentido à vida de um
preciso protagonista biográfico, como ele tem esse poder; acaba se utilizando das
formas mais fácies para narrar e assim tenta fugir das polêmicas e conflitos existentes
na vida do personagem.
Segundo Schwarcz (2013, p.52) “Em primeiro lugar, é fácil cair na tentação de
tentar dar unicidade e ‘inventar’ trajetórias contínuas para nossos objetos de estudo,
os quais, por sinal, insistem em não se comportar como prevíramos ou gostaríamos que
se conduzissem.”. É a tentativa de criar e atribuir um sentido, ordem, lógica e
uniformidade a vida de um personagem, esse também é um dos grandes pecados que
rodeiam a produção biográfica e que muito provavelmente também fizeram parte do
circulo de produção das biografias que aqui analisaremos. Segundo Schmidt (2003,
p.69) é aquela velha “[...] ilusão de que a vida tem um sentido imanente, uma coerência
e um fim.”.
Por isso, levando em conta um determinado ponto da vida Luiz Carlos Prestes
na sua atuação política e social, que corresponde dos princípios da Ditadura Militar até
a sua morte, buscamos mostrar um embate em sua narrativa biográfica existente em
volta de duas especificas obras. Principalmente como essas biografias ajudaram a
construir um determinado protagonismo no biografado, apesar de que, em alguns
momentos, elas estivessem se distanciado narrativamente ou o envolvimento da obra
não estivesse em harmonia em seus tratos, aspectos e personagens.
Dentro da própria historiografia não é surpresa encontramos diversas
divergências em volta do Luiz Carlos Prestes e de sua atuação em eventos históricos.
De certa forma, as biografias atraíram a nossa atenção por tentaram aos escritores os
seus grandes limites na produção biográfica; que é o desafio de construir ou
testemunhar a vida de um ator histórico em um único livro.
Foi a partir desses questionamentos que nos interessamos em buscar e analisar
duas biografias específicas sobre o personagem supracitado. Mas para isso devemos
levar em conta também que a escrita, assim como a narrativa, parte de escolhas e
limites que abrangem todos os campos de escrita; dos livros de ficção aos de história.
Também não seria diferente em relação às biografias, diria que até mais, uma vez que,
não é possível escrever e narrar à vida de um personagem protagonista sem selecionar,
escolher, recortar e editar. “Talvez uma das maiores dificuldades do gênero da biografia
esteja no próprio pesquisador que com o correr do tempo vai virando amigo íntimo de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
687

seu biografado, parente longínquo ou próximo, amante, fiel confidente, quando não
conselheiro.” (SCHWARC, 2013, p.71).
As duas obras biográficas analisadas, foram construídas por pessoas próximas
ao personagem, mas especificamente ao nível parental. Uma dessas biografias fora
feita pela sua última mulher, na qual passou junto seus últimos 40 anos de vida, a Maria
Prestes, e a outra, pela filha que teve no relacionamento com Olga Benário, a Anita
Leocádia Prestes. A Maria Prestes lançou a biografia do seu marido/companheiro em
1992, tendo o título de Meu companheiro: 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes,
deixando claro no título um caráter mais pessoal e íntimo em volta do protagonista
biografado. Já Anita Leocádia Prestes lançou a biografia sobre seu pai em 2015, com o
título Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, no título é possível perceber certa
preocupação em destacar o posicionamento político do personagem. Não podemos
deixar de destacar que a primeira autora é madrasta da segunda, então existe
interligação familiar e mútua em todos os sentidos.
Fora esse ponto de parentesco presente na produção dessas obras, devemos
analisar como as autoras descrevem e narram umas às outras em volta de suas
próprias obras. É nesse ponto que começamos a enxergar as divergências e conflitos
em volta da disputa narrativa da vida de Luiz Carlos Prestes. Segundo Levillain (2013,
p.174):

A biografia hoje é um modo de escrita da história fortemente


hierarquizado. Ela pode ser probatória. Trata-se essencialmente, nesse
caso, de biografias de contemporâneos vivos. Num período opaco da
história, isto é, sobre o qual o conhecimento história depende da
observação e de uma cronologia recente ou aberta, ela consiste em
ordenar, em função de uma vivência, documentos (que podem provir do
testemunho) para uma história a ser feita.

Apesar das obras terem sido escritas depois da morte de Luiz Carlos Prestes,
não se nega o fato de muita coisa sobre a vida do personagem continuar em duvida e/ou
em aberto. Não é por menos que temos no mercado acesso a diversas biografias sobre
o protagonista, inclusive duas escritas por pessoas próximas ao mesmo.
Na biografia construída por Maria Prestes, podemos perceber que a obra é
construída em volta das escolhas que a mesma faz em sua narrativa. A autora se
preocupa muito em traçar o ponto mais íntimo da vida do personagem, algo que Anita
Leocádia Prestes não fez e nem se preocupa em fazer. De certa forma, esse se torna o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
688

caráter da obra, tendo um foco mais para questões pessoais do Luiz Carlos Prestes do
que política.
Interessante lembrar que na obra, a Maria Prestes cita Anita Leocádia Prestes, e
já deixa um claro certo embate existente entre as duas. Segundo Maria Prestes (1992,
p.102):

A Clotilde, que chegou a freqüentar com regularidade essa chácara,


contou para mim que a Anita teve que fazer um esforço sobrenatural
para aceitar o segundo casamento do pai. A notícia tinha lhe deixado
trise. Pois não era só um novo casamento, era também o surgimento de
cinco irmãos com quem ela deveria começar a dividir o pai.

A autora deixa claro em sua citação o incomodo que causara na vida de Anita
Leocádia Prestes, principalmente em provocar menor atenção do pai sobre a filha do
relacionamento mitificado com Olga Benário. Porém, a obra não deixa de citar Anita em
nenhum momento oportuno, nem mesmo em suas divergências com a autora.
Maria Prestes também via em Luiz Carlos Prestes certa preocupação em relação
à criação de sua primeira filha, segundo ela Luiz Carlos Prestes “Sabia que a separação
criaria dificuldades no futuro. Entendia o quanto os camaradas do PCB exageravam ao
falar de Prestes, sentia que suas irmãs o cultuavam como a um semideus. Isso mexeria
com a formação da menina.” (PRESTES, M., 1992, p.66).
Interessante que na obra a autora não nega a sua admiração em relação ao
personagem, inclusive relatando que na sua “[...] juventude, na época da legalidade do
PCB, em 1945, eu via Prestes como um deus, uma personalidade que se tinha que
cultuar.” (PRESTES, M., 1992, p.32).
A obra da Maria Prestes tem algumas claras particularidades em relação à de
Anita Leocádia Prestes. Primeiro que ela se volta principalmente para os últimos 40
anos da vida do personagem, anos esses em que esteve ao lado do Luiz Carlos Prestes.
“Muitas vezes, o biógrafo opta por analisar apenas um ou alguns dos períodos para ela
mais significativos, ou ainda as encruzilhadas decisórias.” (BORGES, 2015, p.221).
Segundo que a obra é mais um depoimento de vida da autora sobre a do personagem.
Essa opção por dar seu depoimento sobre a vida do personagem permitiu a Maria
Prestes, por exemplo, criticar, se posicionar e narrar um pouco sobre sua história
dentro da própria obra.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
689

Já na Biografia construída pela filha e historiadora Anita Leocádia Prestes, ela


também fez algumas escolhas, porém essas são recortes demais destaque. Entre elas
a de não se utilizar da Maria Prestes como referência, e nem de cita-la em volta de sua
atuação na vida do seu pai. Segundo ela, Maria Prestes e seu núcleo familiar 520, mente
demasiadamente sobre a vida e trajetória do seu pai, e como ela produz uma biografia
política, não tinha necessidade nenhuma dela e sua família ser citada como referência
(VENCESLAU, 2015). Clara diferença em relação à produção da Maria Prestes, que não
deixou de mencioná-la e de destacar a divergência existente entre as duas.
Em algumas partes da biografia é como se o próprio Luiz Carlos Prestes
estivesse narrando sua própria história. A autora demostra saber bem dialogar com as
fontes, ou, fazer uma boa defesa do legado do pai utilizando-se da biografia como
plataforma.
A biografia de Anita Leocádia Prestes ainda reservaria algumas diferenças em
relação à outra biografia, entre elas a de ter um caráter mais acadêmico e não de
depoimento, sendo carregada de citações, referências e fontes, coisa bem diferente da
obra de Maria Prestes que tem um caráter mais pessoal. A autora, por ocupar um cargo
acadêmico em uma universidade pública, acabou priorizando um caráter mais cientifico
em sua obra, isso claro, na tentativa de passar uma imagem de mais autoridade frente
às outras biografias sobre o seu pai, inclusive sobre a escrita por Maria Prestes. Outro
ponto é que a obra é sobre toda a totalidade da vida do Luiz Carlos Prestes, e não
somente de um determinado recorte da vida do personagem como foi à obra da sua
madrasta.
Essa gama de diferenças entre as biografias dar-se principalmente por não
existe modelo único. “Pode-se, hoje, afirmar que não há regras ou métodos indiscutíveis
para se escrever a história de uma vida, ou seja, para se produzir uma biografia.”
(BORGES 2015, p. 216), por isso temos dois modelos diferentes de biografia sobre Luiz
Carlos Prestes, ou como era comumente chamado pelas autoras, O Velho.
Ambas seguem uma linha cronológica em volta do protagonista biografado.
Borges, por exemplo; acredita (BORGES, 2015, p.221) “[...] na importância da cronologia
– na importância da ordenação dos fatos –para o historiador e, posteriormente, para o
leitor. Para uma compreensão inicial é sempre preciso ordenar os acontecimentos no

520 Segunda família do seu Pai com Maria Prestes.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
690

tempo.”. Já para Schmidt (2003, p.65) “Nesse sentido, uma das críticas mais comuns
dirigidas às biografias é a de que elas seriam meras narrativas cronológicas, fatuais,
sem preocupações explicativas e analíticas.”, ou seja, uma crítica a um suposto limite
que a biografia ficou viciada.
Como vemos aparentemente, esse conflito se perpetuou até mesmo para o
campo da escrita, onde não só as biografias, mas como também o seu envolvimento,
não deixaram de demonstrar os conflitos familiares que passaram da luta pela atenção
do personagem para a luta pela hegemonia da narrativa da vida de Luiz Carlos Prestes.

OS BIÓGRAFOS NARRANDO E CONSTRUINDO LUIZ CARLOS PRESTES


Existem claras divergências em relação às autoras e os seus tratos ao
personagem. Uma dela é referente à relação de Fidel com o Velho. Quando Maria
Prestes fala sobre essa relação, ela cita o momento de diálogo entre os dois no pós-
processo revolucionário cubano, onde:

O debate sobre essas questões entre o Velho e Fidel continuo até o


início de 64, quando viajamos para a URSS em visita oficial a convite de
Kruchov, e Prestes clandestinamente foi a Cuba. Mas após o golpe
militar no Brasil, Fidel fez vários ataques em direção ás lideranças do
PCB. As informações que chegavam eram de que ele afirmava coisas
desagradáveis, dizia que se fosse brasileiro facilmente derrubaria o
Castello Branco. Essas brincadeiras justificaram mais ainda a
repressão no Brasil e o clima anti-cubano. (PRESTES, M., 1992, p.123-
124)

Claramente Fidel também debochou de Luís Carlos Prestes, já que este também
era um dos dirigentes do PCB. Maria Prestes não foge de apresentar esses momentos
de desprestigio do Velho. Já Anita Leocádia Prestes, por exemplo, cita os depois sempre
em momentos de comparação, como em: “As posições de Prestes, em sua luta contra
o reformismo dominante no Comitê Central do PCB, são semelhantes às defendidas por
Fidel Castro [...]” (PRESTES, A., 2015, p.420), a autora busca essa comparação como
forma de grandeza para o personagem.
Maria Prestes deixa claro que existia uma visão de grandiosidade exagera em
cima do seu companheiro, tanto que ela achava que:

[...] esses companheiros tinham até razão. A imagem estereotipada que


carregavam do Velho é que os enganava. Tentavam, ao bisbilhotar a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
691

vida de nossa família, achar algo de ideal, pronto e acabado. Ficavam


decepcionados ao perceber que a minha relação com o velho não tinha
de épico, como a relação que Prestes teve com Olga Benário. (PRESTES,
M., 1992, p.112).

A autora não escondia a intimidade do personagem, principalmente aquilo que


poderia destruir a imagem mitificada.

Embora alguns parentes e amigos de Prestes insistam em descrevê-lo


como uma figura franciscana, que comia apenas o necessário, ele
também cometia alguns pecadinhos gastronômicos. Adorava um bom
queijo importado, especialmente o roquefort. (PRESTES, M., 1992,
p.142-143)

Anita Leocádia Prestes, por exemplo; descrevia o pai como homem de intuições,
como a que teve segundo ela sobre sua ida ao exílio.

Embora houvesse informações de que os órgãos de repressão iriam


concentrar esforços para golpear profundamente o PCB e sua direção,
Prestes teve a sensação de que a decisão sobre sua saída do país visava
também a afastá-lo da direção, abrindo caminho para o avanço das
posições oportunistas de direita, ou seja, para o reformismo que vinha
se acentuando a partir do VI Congresso. (PRESTES, A., 2015, p.435)

A autora em nenhum momento cita algo mais íntimo do protagonista, porém


sempre o evidenciando em questões políticas e em nada mais. Em outras partes da obra
ela volta a reforçar o combate do pai em disputas internas do partido, como quando
(PRESTES, A., 2015, p.464, grifo do autor):

Prestes mantinha-se firme no combate ás tendências reformistas,


defendendo permanentemente a tese de que, na luta pelas liberdades
democráticas, os comunistas deveriam bater-se por um regime mais
avançando, que permitisse criar as condições para a revolução
socialista.

Durante toda a obra ela busca apresentar esse enfoque maior do pai sobre o
Partido Comunista Brasileiro. Com essa escolha ela acaba presa mais na relação Luiz
Carlos Preses, PCB e Brasil na obra. Claro que isso foi uma das escolhas da autora em
ter na biografia esse enfoque mais político da vida do seu pai, porém inegavelmente
apresenta algumas lacunas, como não citar a relação do pai com Maria Prestes no exilio

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
692

e sequer sua segunda família nesse cenário político, porque querendo ou não, eles
também fazem parte da atuação política do Velho.

Para Prestes, mais uma vez, o importante para os comunistas dever ser
o empenho na organização e na mobilização das massas para que a
derrota do fascismo não significasse a volta a um tipo de democracia
liberal-burguesa, como afinal acabou acontecendo, dada a debilidade e
a desorganização do movimento popular no país. (PRESTES, A., 2015,
p.467).

Como podemos notar a autora realmente narra até mesmo os posicionamentos


do personagem. Em outros momentos a autora destaca a relevância do Velho em
relação à impressa.

Reflexo do desgaste do regime ditatorial e da intensa movimentação


pré-eleitoral no país, a imprensa brasileira passou a revelar interesse
crescente pelas opiniões de Luiz Carlos Prestes. Inúmeros jornalistas o
procuraram, e diversas entrevistas foram publicadas à época, enquanto
outras eram vetadas pela Censura. (PRESTES, A., 2015, p.471)

Ou como também, do forte interesse do público em conhecer a opinião do Velho,


“Durante os anos de 1983, Prestes viajou a diversos estados do Brasil, sempre a convite
de setores da vida nacional interessados em conhecer sua orientação política.”
(PRESTES, A., 2015, p.519). Claro que com essa narração o interesse de Anita Leocádia
Prestes era enaltecer de forma grandiosa a imagem do seu pai como homem de
relevância para opinião pública.
Quando era narrado o caso das cadernetas do PCB, que entregaram muitos
militantes comunistas às forças de repressão durante a Ditadura Militar. A Maria
Prestes (1992, p.122) diz:

Não se imaginava que o processo de liberdade democrática que estava


em avanço seria interrompido. Tanto que o companheiro que ficou
responsável pela retirada de muitos documentos do gabinete do Velho
não julgou que essas cadernetas poderiam comprometer alguém, pois
eram de uma época quando vivíamos legais, em pleno gozo dos nossos
direitos civis.

Essa narrativa, que está mais para depoimento, tentar tirar a responsabilidade
do Velho no maior golpe sofrido pelo PCB nos anos que percorreram a Ditadura Militar.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
693

Como vemos, por mais que a Maria Prestes apresente um Luiz Carlos Prestes mais
humanizado, cometedor de erros e alvos de críticas, ela também tenta defender o legado
do Velho assim como Anita Leocádia Prestes.
Ela não deixou de mostrar o Luiz Carlos Prestes como homem destemido e de
coragem, como na (PRESTES, M., 1992, p.173-174):

[...] decisão de abandonar o PCB era um ato de coragem. Com mais de


80 anos de idade, o Velho dependia da estrutura partidária para tudo.
Sair como ele saiu foi uma forma radical de repensar sua trajetória
pessoal, coletiva e teórica. Mas tudo era insignificante perante a
necessidade de defender seus ideais revolucionários, pois ele era e
continuava sendo um homem de princípios inquebrantáveis.

Claro que essas inúmeras qualidades apresentadas sobre a atuação do Luiz


Carlos Prestes provocaram o fortalecimento do seu mito, o transformando em alguns
casos em herói. Para reforçar ainda mais, a autora chega ao ponto de narrar um relato
do próprio personagem aos filhos, “Saibam que seu pai é um comunista, um homem de
idéias, que colocou a vida a serviço da revolução. Nunca aceitei qualquer proposta de
espionagem a favor da URSS. Antes de mais nada, sou um patriota, um cidadão
brasileiro.” (PRESTES, M., 1992, p.176).
Para Maria Prestes (1992, p.178):

Suas cabeçadas eram a utopia de um dia construir uma sociedade justa,


igualitária, em que não existisse a exploração do homem pelo homem.
Cabeçadas de não encontrar entre os soviéticos simpatizantes ao seu
desprendimento e ao seu desapego a tudo na vida.

A narração de suas cabeçadas eram na verdade sua teimosia em romper quando


não se sentia correspondido em seu idealismo. Assim foi com o tenentismo e com o
PCB. A autora apenas trata o fato de maneira delicada, como foi de praxe em outros
fatos durante toda a obra. Por mais que Maria Prestes fizesse críticas, ela sabia bem
quais palavras usar. Inegavelmente a citação a cima construiu um personagem na luta
por coisas justas, Anita Leocádia Prestes também faria o mesmo a dizer que (PRESTES,
A., 2015, p.541):
:
Luiz Carlos Prestes foi um revolucionário que dedicou a vida à luta por
justiça social e liberdade para o povo brasileiro, um comunista convicto
de o socialismo ser o único caminho para a humanidade sair da pré-

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
694

história, conforme postulou Karl Marx, e chegar ao comunismo – um


regime efetivamente igualitário em que cada um irá contribuir de acordo
com sua capacidade, recebendo segundo suas necessidades.

No final das duas obras podemos ver pontos em comum, como do mesmo modo
as divergências. Ambas as narrativas evidentemente colaboram para heroificam o mito
sobre Luís Carlos Prestes, entretanto no final vemos uma clara divergência. Para Anita
Leocádia Prestes (2015, p.541) “Luís Carlos Prestes foi um revolucionário que dedicou a
vida à luta por justiça social e liberdade para o povo brasileiro, um comunista convicto
de o socialismo ser o único caminho para a humanidade [...]”, mas já para Maria Prestes
(1992, p.182) Luiz Carlos Prestes “Nunca se considerava o dono da verdade, sabia que
ainda cometeria muitos erros ao tentar apresentar soluções, mas o importante era não
parar. Como um homem de ação, Prestes queria sempre seguir em frente, não estagnar,
não se acomodar.”, para uma, o personagem era convicto, para outra, o personagem era
um admitido perseverante.
Anita Leocádia Prestes (2015, p.541) diz que “Da mesma maneira que Fidel
Castro e os revolucionários cubanos ao lutarem pela emancipação do seu povo se
apoiaram na herança de José Martí, a revolução brasileira não poderá avançar sem
resgatar o legado de Luiz Carlos Prestes.”. Como podemos notar, a autora volta a fazer
uma comparação, uma clara forma de medir uma suposta importância ao personagem.
Já para Maria Prestes (1992, p.188):

Meu companheiro Luiz Carlos Prestes nunca foi governo. Ao longo de


sua vida de 92 anos elaborou o mito do herói trágico do nosso século.
Nunca abrindo mão de suas idéias, se fez igual àqueles que souberam
levar adiante o sonho da irmandade espiritual da humanidade. Conhecer
a experiência de quem seguiu seus passos na intimidade é se aproximar
dos segredos dos homens que ao morreram se transformaram em
estrelas.

Como a própria autora diz “mito do herói trágico”, contudo, como todo mito ele
foi construído, e em grande parte por sua própria narrativa. Realmente nessa citação o
personagem é construindo como incorruptível e destinado herói.
Durante todo esse processo narrativo, apesar das biografias aqui estudadas
terem divergências e diferenças metodológicas, as duas autoras e suas duas
respectivas obras tiveram uma convergência para construção de um personagem de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
695

importância, heroísmo, relevância e erro sem culpa. Uma clara forma de perpetuar o
eleito legado mito do Luiz Carlos Prestes.

CONCLUSÃO
Luiz Carlos Prestes teve uma vida bastante complicada e conturbada para ser
entendida de uma forma lógica, dada principalmente as suas escolhas e atuações no
cenário político. Compreendendo esse desafio; as duas autoras tentaram dar sentido de
forma cronológica a sua própria imagem de vida a parti de recortes e escolhas, que em
grande parte, contribuíram para perpetuação de sua imagem de mito.
A biografia como questão teórica também teve grande participação nesse
processo, já que como gênero de escrita está carregada de possibilidades e de limites.
Isso acabou permitindo esses dois autores construírem essas “histórias” ou narrativas,
partindo, como já citado, de escolhas, recortes, pontos de vistas e posicionamentos
sobre o personagem.
Os autores, como apresentado, tem conflitos e divergências internas e externas
no envolvimento que as obras têm, não obstante, isso não bloqueou a possibilidade de
determinadas convergências narrativas que heroificam o protagonista biografado.
Em suma, as duas biografias, e suas duas autoras, construíram em sua narração
um Luiz Carlos Prestes “importante”, “relevante”, “incorruptível” e “nobre”. E por mais
que a Maria Prestes pontuasse características mais humanas do personagem, ela
também acabou fazendo parte do coro que enobrece o personagem. Já a Anita Leocádia
Prestes em nenhum momento deixou de defende o legado do personagem, essa se
manteve constante na construção épica do Luís Carlos Prestes.

REFERÊNCIAS
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla
Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2015, p. 201-233.

FEREEIRA, Marieta de Morais; PINTO, Sumara Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a
Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de A. N (org). O Brasil
Republicano - O Tempo do Liberalismo Excludente. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008, v. 1, p. 387-416.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma
História Política. 2. ed. Rio Janeiro: FGV, 2003. p. 141-184.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
696

PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2015.

PRESTES, Maria. Meu Companheiro: 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992.

RÉMOND, René. Do político. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma História Política. 2. ed.
Rio Janeiro: FGV, 2003. p. 441-454.

SCHMIDT, Benito Bisso. Biografia e regimes de historicidade. Métis: história & cultura,
Caxias do Sul, v. 2, n. 3, p.57-72, 2003.

SCHWARC, Lilia Moritz. Biografia como gênero e problema. História Social, Campinas,
v. 24, p.51-74, 2013.

VENCESLAU, Pedro. Biografias azedam clã do 'velho' comunista. 2015. Estadão


Política. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,biografias-
azedam-cla-do-velho-comunista-imp-,1621399>. Acesso em: 30 jul. 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
697

Simpósio Temático 12
O PATRIMÔNIO CULTURAL
EM LUGAR DE FRONTEIRA:
HISTÓRIA, EDUCAÇÃO, ARQUITETURA,
ANTROPOLOGIA, TURISMO, GEOGRAFIA E OUTRAS
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4

ÁREAS CORRELATAS
698

O PROFISSIONAL DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL:


TEORIA E PRÁTICA

Hozana Danize Lopes de Souza521


Diógenes Santos Saldanha522
Orientador: Abrahão Sanderson F. N. da Silva523

INTRODUÇÃO
Institucionalmente o conceito de patrimônio é definido a partir do estabelecido
na Constituição brasileira de 1988, que abrange e confere as formas de expressão, os
modos de fazer, criar e viver, criações científicas e artísticas, edificações e outros
espaços destinados as manifestações artísticas e culturais além de conjuntos urbanos
e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico,
paleontológico e cientifico. Esses bens sejam material ou imaterial possui referências
da identidade e memória dos diferentes grupos sociais formadores da sociedade
brasileira (MALTÊZ, 2013). Esse entendimento de patrimônio consiste como
abrangente, se diferenciando de uma concepção que perdurou até o início da década de
1980, na qual colocava como patrimônio apenas monumentos e edificações que
possuíam notabilidade histórico-artística valorizando assim uma noção mais elitizada.
A percepção de patrimônio deve ser conectada diretamente com a identidade
pois é através dela que pode ser possibilitado o desenvolvimento de aspectos como
reconhecimento e valorização, seja individualmente ou em conjunto, nesse sentido, o
patrimônio cultural contribui para a caracterização, diferenciação e definição dos
grupos sociais. Com isso, fomentar processos de conscientização para proporcionar
ações de preservação além de incentivar o indivíduo a se identificar como sujeito
histórico deve ser estimulado. Para isso, como forma de possibilidade de ações
interventivas para sala de aula temos a Educação Patrimonial.
A terminologia educação patrimonial se origina a partir da expressão inglesa
heritage education, sendo caracterizada essencialmente pela alfabetização cultural.
Esse termo adentra ao Brasil através do I Seminário sobre “O Uso Educacional de

521 Graduada em História (Licenciatura). CERES – UFRN – Caicó/RN – Brasil; E-mail:


hozanadanize.l@gmail.com
522 Graduado em História (Licenciatura). CERES – UFRN – Caicó/RN – Brasil; E-mail:
Diogenes.Saldanha@hotmail.com
523 Docente do Departamento de História do CERES – UFRN – Caicó /RN – Brasil; E-mail:

abrahaosanderson@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
699

Museus e Monumentos” realizado pelo Museu Imperial em 1983. Esse encontro


contribuiu para o surgimento de novas práticas e experiências que envolveram um novo
olhar acerca do patrimônio cultural possibilitando discussões pautadas na inserção da
educação patrimonial nos currículos.
As reformulações conceituais acerca do patrimônio bem como a inserção da
educação patrimonial a ser trabalhada em sala de aula incorporada no ensino de
história fazem parte de um processo de redemocratização do ensino da década de 1990
que envolveram reformulações no âmbito político e educacional. Ainda nessa
perspectiva, a associação entre Ministério da Educação com os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
foi criada a lei nº 9.394/96 que esteve em consonância com a perspectiva de reformas
no ensino sendo relacionada com a proposta da História Nova.
Com isso o ensino de história passou por reformas marcada pela inclusão de
novas temáticas a serem abordadas como, por exemplo, o homem comum, história
local e lugares de memórias. Dessa forma, os currículos da educação básica deveriam
ser compostos pela diversidade destacando características regionais e locais da
sociedade e da cultura buscando assim uma proposta de ensino voltada para a
divulgação do acervo cultural dos estados e municípios (ORIÁ apud CHAVES, 2013).
Através dos temas transversais à educação patrimonial se relaciona de forma
interdisciplinar com o ensino de história onde possibilita ações que proporcionem o
educar para o patrimônio, voltados para a promoção de aspectos que envolvam a
conscientização, valorização, preservação e difusão dos bens culturais. Sendo assim, os
educandos devem ser envolvidos diretamente nesse processo para que percebam e que
identifiquem seus bens culturais como parte de seu cotidiano.
Contudo, as discussões e a execução da educação patrimonial estiveram por
muito tempo associada aos profissionais de áreas como a museologia e a arqueologia,
principalmente no âmbito do licenciamento ambiental. A partir disso se torna
perceptível a existência de um distanciamento entre os profissionais de história para
com a educação patrimonial, tanto na sala de aula quanto em produções bibliográficas,
por exemplo. Somente com a instrução normativa Nº_001 de 2015 do IPHAN (Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ficou determinado que a execução desta
deve ser realizada pelos profissionais que possuam licenciatura, isso evidencia que a
preocupação em envolver os profissionais licenciados ficou por responsabilidade do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
700

órgão. A partir disso, é perceptível o distanciamento do profissional de história no que


se refere ao licenciamento ambiental, que está ligado com a arqueologia, mas também
de outras categorias como o ensino e produção científica. Levando isso em
consideração, é importante perceber a atuação do profissional de história na
abordagem de questões práticas e teóricas que envolvam o patrimônio cultural
principalmente pela vinculação existente entre educação patrimonial com o ensino de
história.

EDUCAÇÃO, PATRIMÔNIO E A INTERDISCIPLINARIDADE


Na LDB e nos PCNs é proposto para a educação básica temáticas que são
consideradas como transversais se concentrando, especialmente, naquelas que lidam
com o meio ambiente e pluralidade cultural, isso permite que a escola trabalhe com o
patrimônio cultural. Então, deve fazer parte do currículo temas que se associe aos bens
culturais onde eles devem ser organizados de forma sistemática e facilitadora se
relacionando especialmente com a história local já que o universo cultural se torna
mais perceptível quando parte da localidade dos grupos sociais.
Nesse sentido, é importante que os alunos possam entender que não é apenas
por meio do documento escrito e oficial que se compreende as sociedades passadas. A
materialidade como ponto de partida fornece dados para a compreensão dos modos de
vida incorporando desde o social até o cultural. Como aponta Meneses, “estamos
imersos num oceano de coisas materiais, indispensáveis para a nossa sobrevivência
biológica, psíquica e social. A chamada "cultura material" participa decisivamente na
produção e reprodução social” (MENESES, 1994, p. 12).
Por muito tempo os historiadores desprezaram o vínculo entre a materialidade
e a vida social, a própria historiografia em si não soube adequar-se à incorporação das
fontes materiais em suas produções. Enquanto a arqueologia, por exemplo,
compreende que através da materialidade obtém dados precisos quanto à forma, estilo,
materiais, técnica e tipologia de grupos sociais (REDE, 2011).
Ulpiano Menezes (1983) reforça a ideia de que a materialidade fornece um grau
considerável de informações de natureza relacional remetendo às formas de
organização da sociedade que a produziu e consumiu. Ainda estabelece que os objetos
podem transcender a esfera de satisfação de necessidades e se inferir na significação
de valores sociais, constituindo e operando um sistema de comunicação. Ainda na

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
701

perspectiva do autor, é através do patrimônio material que podemos vislumbrar o


passado, pois é na materialidade que estão as impressões grafadas de suas épocas
desde estrutura social, economia, moda, etc., uma gama de informações que quando
estruturadas revelam um panorama social.
Tal ponto é completado Macêdo (2015), a materialidade é uma forma de
recuperar o passado, pois nela está contido o cotidiano das sociedades passadas
impressas nos objetos que explicam as vivencias e as passagens do tempo, assim como
suas significações e ressignificações. Assim, partindo das concepções de Menezes
(1983) e Macêdo (2015), os bens culturais patrimoniais, atualmente, são considerados
por possuir acesso a memórias e identidades de diferentes aspectos da sociedade.
Com base no IPHAN, o patrimônio se configura “[...] de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira” (IPHAN, Artigo 216). Ele é o órgão responsável pela preservação e
gerenciamento dos bens patrimoniais brasileiros procurando desenvolver atividades
que buscam a expansão e consolidação do reconhecimento do patrimônio pela
sociedade.
É dentro dessa perspectiva que se configura a educação patrimonial, ela se
constitui por meio de processos educativos formais e não formais tendo como foco o
patrimônio cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-
histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, colaborando para
seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera-se, ainda, que os
processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do
conhecimento a partir da participação efetiva das comunidades detentoras e
produtoras das referências culturais onde convivem diversas noções de patrimônio
cultural. Nesse sentido, o IPHAN busca formas de implementar uma postura educativa
em todas as suas ações institucionais. Com o objetivo de possibilitar um bom
funcionamento do órgão em todo território nacional como centro do diálogo e
construção conjunta com a sociedade para políticas de identificação, reconhecimento,
proteção e promoção do patrimônio cultural
(http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218).
Ao se trabalhar questões referentes ao patrimônio na escola, por meio da
associação entre educação patrimonial e ensino de história, estamos oferecendo

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
702

possibilidades para a construção do conhecimento, da valorização e preservação


desses bens culturais, sejam eles materiais, imateriais ou arqueológicos. Ações
educativas nesse sentido são importantes na medida em que os indivíduos precisam
perceber traços identitários que os caracteriza reconhecendo-se, assim, como agente
que define e é definido por traços simbólicos sociais. Assim, a Educação Patrimonial
converge para a integração entre teoria e prática, entre a ciência e o conhecimento
empírico, providenciando a formação integral na perspectiva da totalidade através da
ligação dos conhecimentos (TECHEIRA, 2008).
São com base nessas considerações que evidenciamos a importância do
profissional de história na atuação em ações relacionadas com a educação patrimonial
tanto nos aspectos teóricos quanto em práticas interventivas. Desta forma, se ter um
panorama acerca do desenvolvimento de reflexões que envolvam o patrimônio cultural
com ações educativas é fundamental, para isso, foram utilizadas as ações realizadas
em abril de 2018, em duas escolas municipais localizadas em Eusébio/CE, por meio do
Programa de Educação Patrimonial Núcleo Urbano Ceará – Eusébio/CE.

INTERVENÇÕES E A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL


Do conteúdo
Os temas desenvolvidos nas oficinas tiveram o objetivo apresentar sobre a
educação patrimonial, para explanar o que seria a educação patrimonial utilizamos a
definição trazida por Horta (1999), como um processo de aprendizagem permanente e
sistemático que possui como ponto de partida e centro o patrimônio cultural em suas
diversas manifestações. Para desenvolver melhor o que seria os bens culturais foi
elucidado acerca do patrimônio material, como aquilo que é físico seja ele um bem
móvel ou imóvel, e o patrimônio imaterial configurado nas formas de expressão e os
modos de fazer. Partindo dessa noção destacamos que o significado de patrimônio é
amplo, uma vez que as formas de expressão e de fazer e os objetos são composições
de manifestações artístico-culturais identitárias de um grupo e/ou comunidade que
concedem um simbolismo representacional definidor que caracteriza o patrimônio ao
mesmo tempo que caracteriza e define também o grupo e/ou comunidade.
Deste modo, procurou evidenciar acerca do patrimônio do Ceará procurando,
com isso, desenvolver uma metodologia de envolver os conteúdos partindo de uma
história local e regional como forma de melhor sistematizar e facilitar o entendimento

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
703

sobre o tema. Também tratamos do patrimônio arqueológico cearense que é


considerando importante e grande potencial arqueológico. O estado conta com uma
significativa quantidade de sítios arqueológicos que incorporam o período pré-histórico
e colonial. Fazem parte dos sítios pré-históricos grande quantidade de lítico e cerâmicas
além dos grafismos rupestres (portal.iphan.gov.br/ce/pagina/detalhes/542).
Com o intuito de perceber a assimilação e o desenvolvimento da compreensão
por parte dos alunos procuramos, com base em questionamento girados em torno da
conscientização, reconhecimento, valorização e preservação do patrimônio ouvir acerca
da relevância e importância do mesmo. Salientamos ainda a relação que está presente
entre patrimônio e identidade, ou seja, ele pode ser objeto pessoal e/ou público e,
consequentemente, atua na definição de um indivíduo e de um grupo.
Ainda explorando as metodologias que compõe a Educação Patrimonial e para
finalizar a parte teórica da exposição mostramos uma série de fotografias sobre o
patrimônio material, imaterial e arqueológico para que os alunos pudessem melhor
visualizar. Como proposta para as oficinas seguiu o método de registrar através de
desenhos e uso da massa de modelar a percepção dos alunos sobre o patrimônio com
o objetivo de fixar o conhecimento e perceber interpretação e internalização do
conteúdo apreendido.

Caracterização das Escolas e da Turma


Escola de Ensino Fundamental Evandro Ayres de Moura
A primeira intervenção de educação patrimonial foi realizada na Escola de
Ensino Fundamental Evandro Ayres de Moura, localizada em Eusébio/CE, com duas
turmas do ensino fundamental. A primeira sala que ocorreu a exposição do tema foi a
turma do 7°ano "A", turno matutino, que era composta por trinta e três (33) alunos em
faixa etária de 12 a 13 anos. Durante a exposição da aula sobre educação patrimonial
eram pouco participativos, no entanto, todos apresentavam curiosidade sobre a
temática, provavelmente por estarem presenciando pela primeira vez como o estado
deles é repleto de historicidade além de possuir bens culturais que grande parte não
conhecia, isso demonstrou como conteúdos relacionados com o patrimônio e educação
patrimonial eram poucos abordados em sala de aula. Após a parte expositiva, foi
proposto aos alunos que expressassem, por meio de uma oficina de pintura a dedo, o
que eles consideravam patrimônio levando em consideração conceitos de identificação

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
704

e reconhecimento bem como a noção de patrimônio como objeto e/ou prática que se
relaciona de forma individual ou coletivamente. Portanto, os alunos foram deixados
todos livres para pintarem aquilo que viessem a suas cabeças e após o desenho está
finalizado expressassem o que tinham representado e o porquê da escolha, todos
foram muito participativos gerando resultados positivos.

Foto 01: Vista geral da Escola Evandro Ayres de Moura. Foto: Willy Edgar, 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
705

Foto 02: Vista geral da intervenção com a turma do 7º ano ‘A”. Foto: Willy Edgar, 2018.

Foto 03: Vista geral da oficina de pintura e desenho com a turma do 7º ano “A”.
Foto: Willy Edgar, 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
706

Foto 04: Aluno da turma do 7º ano “A” na oficina de desenho e pintura. Foto: Willy Edgar, 2018.

Foto 05: Aluno da turma do 7º ano “A” na oficina de desenho e pintura. Foto: Willy Edgar, 2018.

A segunda turma onde executou a educação patrimonial foi o 6° Ano "C", uma
turma composta por trinta e dois (32) alunos em faixa etária de 11 a 12 anos. Durante a
exposição do conteúdo eles foram bastante participativos comentando e questionando
sobre o tema demonstrando também curiosidade. Como na turma anterior estavam

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
707

presenciando pela primeira vez uma discussão voltada para o patrimônio cultural de
seu estado. As maiores perguntas vieram sobre o patrimônio arqueológico,
principalmente quanto a dúvida se arqueologia e paleontologia são a mesma coisa.
Após toda explicação do conteúdo e da exibição de um vídeo demonstrando a produção
de cerâmica da aldeia Assurini do Xingu, também foi proposto uma oficina para a turma
em que os alunos deveriam utilizar massa de modelar que foi distribuída tentar recriar
e expressar, através dela, o que seria patrimônio. Como na atividade com a turma
anterior, os alunos ficaram totalmente livres para expressar aquilo que eles
acreditaram que seria patrimônio aquilo que eles acreditavam que possuíam um vínculo
identitário.

Foto 06: Visão geral da intervenção com a turma do 6º ano “C”. Foto: Willy Edgar, 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
708

Foto 07: Detalhe da oficina com massa modelar na turma do 6º ano “C”. Foto: Willy Edgar, 2018.

Foto 08: Aluno da turma do 6º ano “C” na oficina de massa modelar. Foto: Willy Edgar, 2018.

Algo a ser destacado nessa escola é que em ambas as turmas haviam alunos
com necessidades especiais, mas segundo o corpo docente que acompanhou os alunos
durante a intervenção, ficaram surpresos o quanto eles interagiram durante as aulas
fazendo perguntas ou durante a oficina. Segundo a professora os alunos autistas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
709

sempre ficam sempre muito quietos não interagindo em suas aulas. Mas como diz Serra
(2004), a educação de uma criança autista portadora de autismo representa um desafio
para todos da escola. A singularidade sobre a síndrome faz os educadores percorrer
caminhos ainda desconhecidos e incertos sobre a melhor forma de educar essas
crianças. Nas palavras do autor, "o autismo é considerado uma condição não
progressiva. Porém, existe dificuldade em estabelecer um prognóstico preciso, devido
às variáveis ambientais, maturacionais e do próprio desenvolvimento do indivíduo"
(SERRA, 2004, p. 13).

Escola Moacir Ferreira da Silva


A segunda intervenção de educação patrimonial foi realizada na Escola Moacir
Ferreira da Silva, também localizada no município de Eusébio/CE, para participarem das
ações foram selecionadas três turmas do 5º ano.

Foto 09: Vista geral da Escola Moacir Ferreira da Silva. Foto: Willy Edgar, 2018.
A primeira turma foi o 5°ano "A", turno matutino, composta por trinta e seis
(36) alunos em faixa etária de 10 a 11 anos. Durante a intervenção eles se mostraram

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
710

muito bem-comportados, simpáticos e empolgados com a aula além de participativos


e cooperativos. Como na escola anterior, os alunos dessa estavam presenciando
também pela primeira vez uma discussão que relacionasse o patrimônio do Ceará com
a educação patrimonial. Nessa turma, adotamos como metodologia para a oficina a
massa de modelar onde a proposta consistia em demonstrar a noção de patrimônio e
evidenciar sua importância.

Foto 10: Visão geral da intervenção com a turma do 5º ano “A”. Foto: Willy Edgar, 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
711

Foto 11: Visão geral da oficina com massa modelar com a turma do 5º ano “A”. Foto: Willy Edgar, 2018.

As últimas turmas que realizamos as ações de educação patrimonial foram


com 5° ano "B" e do 5°ano "C", turno vespertino, cada uma das turmas composta por
trinta e três (33) alunos em faixa etária de 10 a 11 anos. A exposição foi executada com
as duas turmas unidas devido a um pedido da diretora da escola, mas cada sala tinha
seu próprio representante do corpo docente da escola que ajudavam a acalma-los. Em
ambas as turmas os alunos se mostravam frenéticos e pouco interessados, houve um
pouco mais de entusiasmo quando as primeiras imagens explicando o que era
patrimônio arqueológico foram mostradas, principalmente no que se refere a
armamento lítico e as urnas funerárias, assim como a passagem do vídeo que mostra o
processo de fabricação da cerâmica da aldeia Assurini do Xingu. Não houve qualquer
intervenção ou questionamento dos alunos durante a aula, alguns por timidez outros
porque realmente não estavam afim de estar ali.
Por lidarmos com duas turmas numa única intervenção, aproveitamos disto
para lhe explicar mais a fundo o que seria identidade. Através de exemplos como duas
turmas da mesma escola, no mesmo nível escolar, são diferentes pois cada uma possui
características e individualidades especificas e diversificadas. A proposta para a oficina
consistiu em realizar pintura a dedo tendo também o objetivo de que os alunos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
712

representassem sua noção de patrimônio de forma livre e após a finalização


explicassem sua escolha.

Foto 12: Visão geral da intervenção com as turmas do 5º ano “B” e “C”. Foto: Willy Edgar, 2018.

Foto 13: Detalhe da oficina de desenho e pintura com as turmas do 5º ano “B” e “C”. Foto: Willy Edgar,
2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
713

Foto 14: Detalhe da oficina de desenho e pintura com as turmas do 5º ano “B” e “C”. Foto: Willy Edgar,
2018.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Educação Patrimonial no Ensino de História permite a formação de indivíduos
capazes de conhecer a sua própria história através do patrimônio cultural. Por
conseguinte, ao se trabalhar questões referentes ao patrimônio no ambiente escolar
construímos subsídios para o conhecimento, valorização, preservação e difusão dos
bens culturais. O não conhecimento acerca do patrimônio cultural, evidentes com
algumas das turmas onde foram realizadas as ações, demonstraram como o tema é
pouco abordado dentro do ensino, seja na história ou em disciplinas correlatas. Essa
ausência pode ser explicada por alguns fatores como, por exemplo, a falta de recursos
para que os alunos realizem aulas de campo e também o fato da escola em conjunto
com o corpo docente priorizar as aulas de disciplinas como português e matemática,
pois são consideradas como mais importantes no processo de alfabetização, esse fato
ficou bem visível nas duas turmas de 5º ano da escola Moacir Ferreira.
Tal situação experienciada na Moacir Ferreira infelizmente é uma realidade que
atinge inúmeras escolas brasileiras que para alcançar números exigidos pelos órgãos
que devem ser responsáveis pelo sistema educacional priorizam uma formação nas
áreas de português e matemática esquecendo a necessidade das reflexões que fazem
parte das ciências humanas. Assim, os profissionais ligados as ciências humanas,
especificamente da história, tendem a adaptar-se e voltar suas ações fomentando a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
714

práticas metodológicas que levem em consideração a importância da experiência


cotidiana dos alunos construindo um conhecimento em conjunto. Com isso,
observamos um sistema que se adequa as necessidades exigidas para educação
patrimonial com o ensino de história, essas duas áreas associadas podem promover
discussões reflexivas acerca das realidades experienciadas pelos próprios educandos
possibilitando uma melhor formação mais cidadã aos indivíduos.

REFERÊNCIAS
ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso. Ensino de
História. São Paulo: Cegage Learning, 2011.

BITTECOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos.


2°.ed. São Paulo: Cortez, 2008.

CASCO, Ana Carmen Amorim Jara. Sociedade e educação patrimonial. Disponível em:
<www. portal. iphan. gov. br>. Acesso em 16 Abril 2018.

CHAVES, Elisgardenia Oliveira. Educação patrimonial e ensino de história: potenciais


do uso de documentação arquivística. História & Ensino, v. 19, n. 2, p. 59-85, 2014.

FUNARI, Pedro Paulo et al. Os historiadores e a cultura material. In: PINSKY, Carla
Bassanezí et al. Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. Cap. 4. p. 81-110

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane


Queiroz. Guia básico de educação patrimonial. Iphan, 1999.

LIMA, Tania Andrade. Patrimônio Arqueológico, Ideologia e Poder. Revista de


Arqueologia, 1988.

MACEDO, Muirakytan K. de. Rústicos cabedais: Patrimônio e cotidiano familiar nos


sertões da pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal, RN: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.

MALTÊZ, Camila Rodrigues et al. Educação e Patrimônio: O papel da Escola na


preservação e valorização do Patrimônio Cultural. Pedagogia em ação, v. 2, n. 2, p. 39-
49, 2013.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra. A cultura material no estudo das sociedades


antigas. Revista de História, n. 115, p. 103-117, 1983

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a


exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: história
e cultura material, v. 2, n. 1, p. 9-42, 1994.

REDE, Marcelo. História e cultura material. Novos Domínios da História, v. 1, p. 133-150,


2011.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
715

SERRA, Dayse Carla Genero. A inclusão de uma criança com autismo na escola
regular: desafios e processos. Programa de pós-graduação em Educação. Centro de
Ciências e Humanidades. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004.

TEIXEIRA, Cláudia Adriana Rocha. A educação patrimonial no ensino de História.


Biblos, v. 22, n. 1, p. 199-211, 2008.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
716

SERRA NEGRA DO NORTE/RN – BERÇO DE UM PATRIMÔNIO


HISTÓRICO-CULTURAL-NATURAL ADORMECIDO

Rita de Cássia Dantas de Oliveira524

INTRODUÇÃO
Despertar no homem a valorização por sua cultura e espaço e fazer com que o
mesmo enxergue a importância e riqueza que um bem histórico, cultural e natural
possui é um dos fatores essenciais para a promoção do desenvolvimento de
determinada localidade, pois o fará desenvolver ações que leve a tal finalidade.
Assim, à luz deste entendimento e a fim de implantar atividades turísticas, as
quais são uma das ferramentas de divulgação dessas riquezas mencionadas, no
município de Serra Negra do Norte/RN, abordaremos aspectos que demonstrem a
carga histórico-cultural-natural que o mesmo detém. Para tanto, voltamos o olhar para
seu contexto histórico, economia, aspectos geográficos e levantamento turístico local,
apresentando também informações pertinentes no que diz respeito a importância
turística, em seu âmbito geral.
Desse modo, esperamos com isso, buscar um novo formato para o
desenvolvimento econômico do município, gerando mais empregos e,
consequentemente, o aumento de sua arrecadação tributária, bem como promover um
maior interesse em todos os envolvidos nesse processo de uma exploração
sustentável. E ainda proporcionar aos moradores locais e demais enxergarem o grande
potencial histórico-cultural-natural que o município carrega e favorecer para o seu
despertar.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE SERRA NEGRA DO NORTE


Entender o contexto histórico de uma localidade, primeiramente, é interessante
ter o conhecimento histórico do espaço ao qual a mesma se encontra. Saber os motivos
aos quais levaram a sua existência e desenvolvimento.

524Pedagoga, Especialista em Gestão e Supervisão Educacional, Supervisora Pedagógica no Serviço


Nacional de Aprendizagem Comercial. E-mail: ritinhacdo@gmail.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
717

Deste modo, contextualizar a história de Serra Negra do Norte remete-se a fazer


uma reflexão sobre como se configurava o território brasileiro na época de seu
surgimento, bem como o desenvolvimento do seu espaço.
A ânsia pela conquista sempre foi característica marcante do ser humano, na
maioria das vezes, o levando a trilhar longos caminhos. E o território brasileiro foi alvo
dessa conquista. Nos séculos XVII e XVIII, o referido território sofre uma intensa
colonização desenvolvida pelos portugueses. Estes, por sua vez, estavam ligados à
expansão marítimo-comercial europeia atuante, na época, no sistema capitalista. Deste
modo:

[...] a ocupação das terras assumiu um caráter econômico que reservou


para o Litoral e para o Sertão diferentes funções na estrutura mercantil
de produção que se instalava no Norte, na fração territorial hoje
identificada como Região Nordeste. Obedecendo ao padrão de
ocupação regional, a Capitania do Rio Grande foi alvo de uma divisão
territorial do trabalho que estabeleceu para Zona da Mata (litoral) a
função de produzir cana-de-açúcar e para o Sertão (interior) o papel de
criador de gado (MORAIS, 2005, p. 60).

Assim demarcada, o Sertão da Capitania do Rio Grande (atualmente, Sertão do


Seridó) passou a configurar-se como o “território dos currais”, ocupando o lugar dos
indígenas que ali viviam, provocando, assim, um violento combate entre colonizadores
e indígenas. Mas, a ampliação desse combate e a resistência surgida por parte dos
índios, apenas adiou a ocupação do Sertão, não impedindo o processo colonizador. Após
a resistência indígena, começou a ocupação do território por meio dos currais de gado,
tidos como “embriões da estrutura de fazendas que viriam a se tornar marcantes no
cenário da organização sócio-espacial seridoense” (MORAIS, 2005, p. 61).
Nesse contexto histórico ergue-se o município de Serra Negra, originado de uma
fazenda de criar (criação bovina), da ribeira do rio Espinharas, no sertão seridoense,
implantada no século XVIII. E para melhor entendimento de sua origem, Lamartine
(2000) enfatiza em seus relatos que a ocupação da ribeira do Espinharas inicia-se na
Bahia, através do Sr. Theodósio de Oliveira Ledo, dos irmãos e do alferes João de Freitas
da Cunha com a conquista da maior Sesmaria de que se tem notícia na história do
Nordeste, a qual “começava no pé da Serra do Teixeira e chegava à foz do Espinharas,
no rio Piranhas” (FARIA apud LAMARTINE, 2000, p. 18).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
718

Desta grande Sesmaria, houve uma divisão de terra, a qual a área


correspondente ao que hoje se encontra a sede do município de Serra Negra ficou com
o alferes João de Freitas da Cunha, que por decorrência de sua morte passou para seu
irmão Domingos Freitas da Cunha e este, por sua vez, vendeu para um cunhado dos
Oliveira Ledo, Manoel Barbosa de Freitas, implantando, neste local, uma fazenda. Mas,
não tendo fontes da causa, Manoel Barbosa de Freitas doou a fazenda para seu
sobrinho Manoel Pereira Monteiro, dando início a povoação da localidade.
Desde então, Manoel Pereira Monteiro (possivelmente português, Juiz Ordinário
de Órfãos e capitão das ordenanças no Arraial da Nossa Senhora do Bom Sucesso do
Piancó, hoje Pombal/PB) se estabeleceu com a fazenda de gado em Serra Negra, no
ano de 1728. Trouxe consigo a família e seus agregados. Ao chegarem à ribeira do
Espinharas, a localidade era conhecida como “Os Currais do Espinharas”, primeiro nome
do local. Anos depois, certamente em 1741, Manoel Pereira Monteiro requereu sobras
de terra ao redor da fazenda, e neste pedido ele a chamou de Serra Negra.
E é nesse recorte temporal, que vale ressaltar a origem do nome do município, a
qual existe duas versões: a impressão dada pelo aspecto sombrio da mata fechada que
cobria a “Serra Velha” (um grande rochedo que se projeta sobre a cidade, tendo como
nome atual, Serra Negra) vista à distância, bem como a lenda da escrava de Manoel
Pereira que teria ido pegar lenha no pé da serra e a onça a teria devorado. Destas duas
versões, prevalece a primeira.
Assim, em meio a esses acontecimentos, a fazenda foi se desenvolvendo e se
expandindo. E, dentro desta expansão, uma construção é merecedora de destaque: a
Capela de Nossa Senhora do Ó, a qual fora fundada, primeiramente, em 1735 e
posteriormente demolida em 1774, pois Manoel Pereira queria erguer uma capela em
honra a Nossa Senhora do Ó, e a mesma precisaria ser erguida em um lugar que
oferecesse segurança. Nesse propósito, ele, juntamente com seus filhos padres João
Pereira Monteiro e Fernando Pereira Monteiro, mandou vir de Portugal João Isidoro e
Tomás Aquino, artista que traçou o plano da Igreja e mestre de pinturas e dos desenhos,
respectivamente, para poderem edificar a nova capela, em estilo da época (barroco) e
posteriormente tornando-se Matriz. Sua construção foi concluída em 1781 e deste feito
surgiu a Freguesia de Nossa Senhora do Ó, através da Lei 106 de 1º de setembro de
1858, pelo presidente da Província da época, Dr. Antônio Mardelino Nunes Gonçalves,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
719

tornando-se a vigésima quinta do Rio Grande do Norte e uma das mais belas e antigas
construções da região.
Portanto, foi a partir dessa edificação que a localidade foi palco de novas
construções, expandindo assim seu espaço territorial. E, consequentemente, graças a
todo esse desenrolar histórico, Serra Negra, através da Lei Provincial nº 688, de 03 de
agosto de 1874, tornou-se município e em 29 de março de 1938, através do Decreto 457,
obteve a predicação de cidade. Porém, neste meio tempo, em 1932, o município teve sua
sede administrativa transferida para São João do Sabugi, cidade que faz limite com a
mesma, por motivo de imposições do movimento revolucionário da época, mas voltou
a sua sede anterior por força do Decreto nº 43, de 13 de dezembro de 1935.
E a partir deste decreto, Serra Negra do Norte segue, definitivamente, seu
percurso como município, com uma sede administrativa própria e mostrando-se como
exemplo de determinação, pois a exemplo de muitos, a partir de uma fazenda de criar,
se expandiu em expansão territorial e populacional.

ASPECTOS GEOGRÁFICOS
O município de Serra Negra do Norte está localizado geograficamente no
paralelo 6º 39’ 56” de latitude Sul e 37º 23’ 50” de longitude Oeste, possuindo o fuso
horário UTC - 3 ( Tempo Universal Coordenado), estando inserido na Mesorregião
Central Potiguar e na Microrregião do Seridó Ocidental, totalizando uma área de cerca
de 518 km² à 167 metros acima do nível do mar. Seus limites são delimitados ao Norte
com o município de Jardim de Piranhas, ao Sul com São João do Sabugi e o estado da
Paraíba, a Leste com Timbaúba dos Batistas e Caicó, e a Oeste mais uma vez com a
Paraíba, estando localizado em uma posição privilegiada para escoamento (pelas BR-
110 e BR-427, e pela RN-118) de suas mercadorias agrícolas e industriais tanto para
Natal, distante 323 km, como também, para Campina Grande na Paraíba, um dos
principais polos comerciais, industriais e tecnológicos da Região Nordeste, distante
222 km de Serra Negra do Norte.
Quanto às características físicas de sua geografia, o município possui um clima
semiárido, com temperaturas anuais máximas de 32º C e mínimas de 18º C. A
precipitação pluviométrica anual é de 744,7 mm, sendo a ocorrência da estação
chuvosa entre os meses de fevereiro a maio. Possui umidade relativa do ar de 59% em
média. O revelo da área territorial encontra-se entre 100 a 200 metros de altura, em

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
720

plena depressão sertaneja, estando cercada pelo Planalto da Borborema e os pontos


mais altos da Chapada do Apodi. A composição dos seus solos é formada por solos do
tipo Bruno Não Cálcico Vértico e Solos Litólicos Eutróficos, ambos com uma alta
fertilidade, apresentando uma variedade de cores preta, roxa, vermelha e amarela,
ocupando 60% da área do município. A vegetação é predominantemente do tipo
Caatinga Hiperxerófila formadas por plantas de baixo porte, e isoladas uma das outras,
destacando-se como principais espécies, a jurema-preta, mufumbo, faveleiro,
marmeleiro, xique-xique e facheiro.

O TURISMO COMO ALTERNATIVA PARA O DESENVOLVIMENTO


A necessidade de buscar novas alternativas para a promoção do
desenvolvimento de pequenos municípios do Brasil fez com que o turismo fosse visto
com solução para esse objetivo, principalmente naqueles municípios que por ventura
não apresentam meios suficientes para ocupar seus munícipes em postos de trabalhos
no setor secundário, ficando restritos apenas a agricultura, ao comércio varejista e os
empregos públicos temporários nas prefeituras municipais, prática tão comum no
estado do Rio Grande do Norte. Essas relações de trabalho estão determinadas pelo
fluxo de dinheiro provenientes dos aposentados e pensionistas, além das vontades
políticas locais. Assim, com essa triste realidade, somada ao fato de que a maioria
desses lugares estão localizados na região do semiárido - em especial a Região do
Seridó - o que ajuda a agravar mais ainda devido a situação em decorrência da escassez
de chuvas, que impactam diretamente na produção agrícola local.
Contudo, da mesma forma que a natureza impôs limitações climatológicas que
prejudicaram a agricultura, ela também, em contrapartida, foi bastante generosa em se
tratando de belezas naturais, com uma magnífica cadeia de formações rochosas,
cânions, rios e lagos, além de riqueza da flora e fauna. Somando-se a isso incluímos as
intervenções racionais ocasionadas pelo homem no espaço, com as construções de
açudes e barragens, bem como de monumentos e edificações que foram os marcos do
registro de sua história e cultura nestes lugares. É aproveitando todo esse potencial
que a atividade turística surge como alternativa de geração de emprego e renda. O
desenvolvimento do turismo deve, além de captar recursos financeiros para o
município, deve também propiciar uma melhoria da qualidade de vida ao alcance de
todos os membros da comunidade. (OLIVEIRA, 2005).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
721

Isso será possível, na medida em que o turismo seja praticado de forma


sustentável, levando em consideração a valorização de seu patrimônio turístico
existente, proporcionando uma utilização tanto do turista, como também dos
habitantes locais, maiores interessados nesta sustentabilidade responsável por gerar
o desenvolvimento local, fazendo com que haja uma melhor distribuição de renda.
Para tanto, se faz necessário que o poder público busque disciplinar, e ao mesmo
tempo provir dos meios de incentivos capazes para consolidar o turismo local, com um
planejamento voltado atrair investimentos privados na área turística, de hospedagem,
transporte, alimentação e entretenimento (pilares fundamentais do turismo), bem
como de dotar de infraestrutura necessária para fixar esses investimentos privados.
Mas, antes da garantia desses fundamentos, o município deverá estar de posse
dos estudos comprobatórios da existência dos aspectos microeconômicos que
norteiam o ramo de turismo, como “[...] a demanda turística ou procura turística, definida
como sendo a quantidade de bens e serviços turísticos que os consumidores desejam e
estão dispostos a adquirir por um dado preço e em um dado período de tempo.” (LAGE
e MILONE, 2000, p. 26). Sendo o número de movimentação de turistas que chegam a
um determinado destino, que consomem produtos e serviços, sejam eles de
hospedagem, alimentação, transporte, entre outros. O segundo requisito é a oferta
turística, que ainda segundo Lage e Milone, (2000, p. 27) é “[...] a quantidade de bens e
serviços que os produtores desejam vender por um dado preço em um dado período de
tempo”. Estão inclusos neste item os produtos postos a venda como passagens, diárias
de hospedagem, refeições, pacotes de viagem, artesanato, etc. E por fim, o conceito
chave do turismo, que é o mercado turístico, que é nada mais que “[...] a interação da
demanda e da oferta de produtos relacionados com a execução e operacionalização das
atividades que envolvem bens e serviços de viagens e afins.” (LAGE e MILONE, 2000, p.
29). É na verdade a consolidação do negócio turístico entre empresa turística e o turista,
atendendo os seus próprios interesses, que vão ocasionar uma rede produtiva de total
dependência entre si, já que para isso envolve o setor agrícola e industrial na produção
de bens de consumo, que serão vendidos no comércio varejista, que por ventura, uma
parte é vendida para o setor de serviços (hotéis, bares, restaurantes etc.), que depende
juntamente com os outros do setor público para provir às políticas e infraestrutura
básica para execução da demanda turística, que, assim como os outros, serão fontes de
arrecadação de impostos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
722

O segundo passo é determinar qual tipo de turismo se pretende praticar na área,


levando em consideração todos os fatores que justifiquem a execução do projeto.
Felizmente, a Região do Seridó possui inúmeras características que naturalmente
podem atrair outros tipos de públicos de vários outros seguimentos de turismo, que
buscam nas atividades propostas, a razão de seu deslocamento e dos recursos
financeiros aplicados para tal. Sendo assim, a possibilidade de atração do turista que
fica apenas no litoral torna-se possível.
Dentre as diversas formas de turismo que podem ser aplicadas, destacamos o
Geoturismo, que segundo Ruchkys (2005), (apud AZEVEDO, NASCIMENTO; NETO,
2007, p. 3), é

[...] um segmento da atividade turística que tem o patrimônio geológico


como seu principal atrativo e busca sua proteção por meio da
conservação de seus recursos e da conservação de seus recursos e da
sensibilização do turista, utilizando, para isto, a interpretação deste
patrimônio o tornando acessível ao público leigo, além de promover a
sua divulgação e o desenvolvimento das ciências da Terra.

A justificativa para a adoção desse tipo de turismo é exatamente devido a região


ser dotada de inúmeras feições geológicas, as quais possuem características próprias,
além pela sua própria constituição do relevo, repleto de serras, afloramentos de rochas
e cavernas, ideias para clientes que buscam atividades de aventura (bike, exploração de
caverna, rapel, treeking, etc.) e recreação, o chamado de Turismo de Aventura. Um outro
segmento do turismo que tem vínculo com o Geoturismo é o Turismo Arqueológico, que
buscam nos sítios arqueológicos para conhecer os vestígios das antigas sociedades
históricas e pré-históricas, caracterizando um turismo de forma pedagógica.
(MANZATO, 2005 apud MANZATO, 2007, p.100). Estão inclusos nesta forma todos os
sítios arqueológicos da região, onde apresentam vasta diversidade de figuras rupestres
da subtração Seridó, na maioria dos municípios, além dos centros históricos e
edificações que conservam as linhas tradicionais do passado, com suas características
peculiares.
Ainda com relação ao Geoturismo, na visão de conservadorismo presente na sua
doutrina, associam a ele o Ecoturismo como atividade de apreciação dos ecossistemas,
em seu estado natural, aproveitando o que a fauna e a flora das áreas de conservação
do Seridó tem de melhor; o Turismo Cientifico destinados a pesquisa de campo e o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
723

Turismo Pedagógico, um novo segmento que ganha cada vez mais espaço devido a
grande competitividade das instituições de ensino particular, que realizam a atividades
educativas, de forma a alcançar finalidades pedagógicas, por meio da experiência
turística.
E por fim, concluindo essa seção, não poderíamos deixar de citar uma forma de
turismo que valoriza a cultura e a história de um povo, que neste caso a população
seridoense tem muita bagagem neste contexto. O Turismo Cultural é definido por
Barret (2000, apud, MANZATO, 2007, p. 100), como sendo “todo o turismo em que o
principal atrativo não seja a natureza, mas algum aspecto da cultura humana e esse
aspecto pode ser a história, o cotidiano, o artesanato”. Neste contexto, onde está
incluído o Turismo Arqueológico (anteriormente visto) tem no Seridó um seleiro repleto
de alternativas capazes de viabilizar essa forma de turismo, seja por meio de roteiros
destinados nas antigas fazendas de gado, onde guardam a história das antigas
oligarquias e coronéis seridoense do passado, passiveis de práticas de Turismo Rural
(turismo comprometido com a atividade produtiva, agregando valor a produtos e
serviços e resgatando o patrimônio natural e cultural da comunidade), nas festas
populares das cidades, como festas de padroeiros (Turismo Religioso) e aspectos
ligados as tradições econômicas, como o bordado, carne de sol e a fabricação de queijo.

A LEI 11.771/08 COMO INSTRUMENTO REGULADOR E DE PROMOÇÃO DO TURISMO


Com o propósito de alavancar o turismo no Brasil, o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva promulgou em 17 de setembro de 2008, a lei nº 11.771, que trata sobre a
política nacional do turismo, dando as devidas atribuições a União, Estados e
municípios, no tocante ao planejamento, desenvolvimento e estímulo do setor turístico,
para que tanto grandes e pequenos municípios, em especial estes últimos, possam
estruturar e incrementar esta atividade que no ano de 2008, segundo o próprio Governo
Federal, faturou uma arrecadação recorde de US$ 5,78 bilhões apenas com os turistas
estrangeiros, numa taxa de crescimento duas vezes maior (16,8%, apenas em relação
ao ano de 2007), que a média mundial que chega apenas em 7%, demonstrando uma
rentabilidade extraordinária quando bem planejada, aproveitando ao máximo todo o
potencial turístico de uma determinada área, com suas atrações, disponibilidade da rede
de hospedagem (hotéis, pousadas, albergues e similares), restaurantes, guias
turísticos, enfim, tudo aquilo que for necessário para atender de forma saciável o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
724

turista. Tudo isso, com o objetivo de incrementação da economia local, gerando


trabalho, emprego e renda para todos os seus moradores, e consequentemente,
permitindo uma maior arrecadação fiscal sobre os produtos e serviços prestados pelo
turismo na região, que serão revertidos ao beneficio próprio de todos os munícipes por
meio de obras e programas implantados pelos gestores municipais.
Outros fatores que podem ser associados com o beneficio que essa lei oferece,
além do desenvolvimento econômico e social, é a preocupação de dar mais acesso ao
turismo a todos os brasileiros, apostando no turismo local, e interiorano, e a divulgação
e disseminação da história e cultura dos destinos, como também, a preservação por
meio da conscientização, dos seus acervos, culturais, históricos e, principalmente
ambientais através do ecoturismo e turismo pedagógico.
Para atingir essa meta, a Política Nacional de Turismo, em seu artigo 5º, usará
dos princípios constitucionais visando o desenvolvimento econômico-social e
sustentável, tendo como seus principais objetivos:

I-democratizar e propiciar o acesso ao turismo no País a todos os


segmentos populacionais, contribuindo para a elevação do bem-estar
geral;
II-reduzir as disparidades sociais e econômicas de ordem regional,
promovendo a inclusão social pelo crescimento da oferta de trabalho e
melhor distribuição de renda;
III-ampliar os fluxos turísticos, a permanência e o gasto médio dos
turistas nacionais e estrangeiros no País, mediante a promoção e o
apoio ao desenvolvimento do produto turístico brasileiro;
IV-estimular a criação, a consolidação e a difusão dos produtos e
destinos turísticos brasileiros, com vistas em atrair turistas nacionais e
estrangeiros, diversificando os fluxos entre as unidades da Federação
e buscando beneficiar, especialmente, as regiões de menor nível de
desenvolvimento econômico e social;
V-propiciar o suporte a programas estratégicos de captação e apoio à
realização de feiras e exposições de negócios, viagens de incentivo,
congressos e eventos nacionais e internacionais;
VI-promover, descentralizar e regionalizar o turismo, estimulando
Estados, Distrito Federal e Municípios a planejar, em seus territórios,
as atividades turísticas de forma sustentável e segura, inclusive entre
si, com o envolvimento e a efetiva participação das comunidades
receptoras nos benefícios advindos da atividade econômica;
VII-criar e implantar empreendimentos destinados às atividades de
expressão cultural, de animação turística, entretenimento e lazer e de
outros atrativos com capacidade de retenção e prolongamento do
tempo de permanência dos turistas nas localidades;
VIII-propiciar a prática de turismo sustentável nas áreas naturais,
promovendo a atividade como veículo de educação e interpretação

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
725

ambiental e incentivando a adoção de condutas e práticas de mínimo


impacto compatíveis com a conservação do meio ambiente natural;
IX-preservar a identidade cultural das comunidades e populações
tradicionais eventualmente afetadas pela atividade turística...
XI-desenvolver, ordenar e promover os diversos segmentos turísticos;
XII-implementar o inventário do patrimônio turístico nacional,
atualizando-o regularmente;
XIII-propiciar os recursos necessários para investimentos e
aproveitamento do espaço turístico nacional de forma a permitir a
ampliação, a diversificação, a modernização e a segurança dos
equipamentos e serviços turísticos, adequando-os às preferências da
demanda, e, também, às características ambientais e socioeconômicas
regionais existentes;
XIV-aumentar e diversificar linhas de financiamentos para
empreendimentos turísticos e para o desenvolvimento das pequenas e
microempresas do setor pelos bancos e agências de desenvolvimento
oficiais;
XV-contribuir para o alcance de política tributária justa e equânime, nas
esferas federal, estadual, distrital e municipal, para as diversas
entidades componentes da cadeia produtiva do turismo...
XIX-promover a formação, o aperfeiçoamento, a qualificação e a
capacitação de recursos humanos para a área do turismo, bem como a
implementação de políticas que viabilizem a colocação profissional no
mercado de trabalho. (BRASIL, Lei 1177/08, de 17 de setembro de 2008).

Todos esses objetivos demonstram uma grande dependência entre eles, na qual
a Política Nacional do Turismo pretende atender. Notamos que o alvo principal para
arrecadação de capital proveniente dessa política, é o turista nacional que conseguiu,
nos últimos anos, entrar no mercado de consumo. Mas para buscar essa clientela, é
necessário buscar uma forma de que haja uma maior inclusão dessas pessoas ao
turismo. Para isso, essa lei irá proporcionar que os municípios possam desenvolver e
pôr em prática seus próprios projetos de polos turísticos, auxiliando e incentivando a
criação dos produtos turísticos locais, por meio do inventario de seu patrimônio
turístico, dando total infraestrutura de acesso e sinalização, bem como, buscar formas
de entretenimento que possibilite uma maior permanência do turista na cidade,
contribuindo para a descentralização turística nos estados, que em muitas vezes ficam
restritos apenas ao litoral. O auxílio à formação e a capacitação de mão-de-obra
especializada no trabalho turístico, assim como, abertura de linhas de créditos para
empreendimentos ligados ao setor também estão contidas nessa lei, visando a maior
capitação de recursos futuros decorrentes do turismo no local, atingindo assim, o
propósito de realizar uma maior distribuição de renda entre os moradores, por meio do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
726

desenvolvimento sustentável do município, preservando sua história, costumes e


tradições, bem como, de seus bens naturais.

POTENCIALIDADES TURÍSTICAS DO MUNICÍPIO DE SERRA NEGRA DO NORTE: UMA


EXPLORAÇÃO SUSTENTÁVEL
O município de Serra Negra do Norte é conhecido no Rio Grande do Norte como
o “oásis” do Seridó, devido o fato de que sua área territorial possui qualidades ímpares
em comparação ao restante dos municípios seridoenses. Sem dúvida, a natureza
abençoou a população serra-negrense com belas paisagens compostas pelas
formações rochosas, que envolvem o município como uma espécie de cinturão, além de
uma cobertura vegetal compostas por inúmeras espécies de plantas da caantiga, onde
apresentam uma coloração esverdeada na maior parte do ano, isto se deve ao fato de
estarem próximas ao rio Espinharas, que passa ao lado da cidade. A fauna do município
possui uma boa diversificação, levando-se em consideração a aridez do solo com vários
mamíferos, como a raposa, gato-maracajá, tatus, cotias, mocós e preás; répteis, e aves,
num total de 57 espécies, merecendo destaque para o periquito, animal bastante
cobiçado por traficantes de animais, que encontram no município um refúgio natural.
Serra Negra do Norte, também possui uma vasta bagagem histórica, como na política
do Estado na figura de Dinarte Mariz e Juvenal Lamartine e, culturalmente, no
artesanato de bordados e outras peças, assim como, da fabricação do patrimônio
cultural do Seridó: Os queijos de manteiga e coalho, com reconhecimento em nível
nacional.
A soma de todos esses fatores faz com que Serra Negra do Norte possua um
potencial turístico inestimável, com plenas condições de atração de turistas por todo o
ano. Dentre essas potencialidades, podemos elencar as seguintes atrações com seus
respectivos segmentos turístico para buscarmos um turismo sustentável.
Serra Negra – Um grande rochedo que se projeta sobre a cidade. Tem
aproximadamente 400 metros de altura, onde favorece a vista das belas paisagens da
região, possui ainda uma vegetação sombria. Local ideal para a prática de trilhas
ecológicas e prática de rapel. É, juntamente com o Serrote da Igreja, a Barragem
Dinamarca, e o rio Espinharas, destinos que favorecem o Ecoturismo, Geoturismo e
Turismo de Aventura;

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
727

Estação Ecológica do Seridó – É uma área destinada a pesquisa cientifica do


bioma caatinga, administrada pelo IBAMA. A visitação pública só é permitida em caráter
educacional e/ou científico, dependendo de autorização prévia. Favorece ao Turismo
Cientifico, Ecoturismo e ao Turismo Pedagógico;
Figuras Rupestres – Estão localizadas a cerca de 4 km da sede do município, na
Fazenda Dinamarca, onde podemos encontrar algumas figuras rupestres, composta de
um painel de figuras com aspecto de formas geométricas características da Tradição
das Itaquatiaras. Favorecem o Turismo Arqueológico, Turismo Cientifico e Turismo
Pedagógico;
Conjunto Arquitetônico – Serra Negra foi contemplada com muitas construções
belíssimas em seu passado. Esse fato pode ser observado em algumas construções
que ainda estão presentes no município. Dentre elas podemos destacar as que estão a
volta da Praça Dinarte Mariz: a Vila Murilo, uma das mais antigas, ao lado a casa onde
morou Juvenal Lamartine, o centro paroquial, a igreja matriz de Nossa Senhora do Ó,
com construção concluída em 1781, a Casa de Cultura, a prefeitura, o Ibiúna Clube,
mercado público, entre outras, que se destacam por suas belezas antigas, de estilos
coloniais, neoclassicismo e modernismo, totalizando 82 edificações inventariadas, de
acordo com o PDIS/RN. Favorecem ao Turismo Cultural e ao Turismo Pedagógico;
Queijeiras – As queijeiras do município são responsáveis pela fabricação do
produto que é a cara do Seridó, os queijos de coalho e manteiga, tendo o seu valor
cultural reconhecido nacionalmente. As duas queijeiras mostram os dois lados da
fabricação do produto, sendo uma totalmente artesanal chamada de Queijeira Rolinha,
localizada na zona rural, em funcionamento desde 1964, numa administração passada
de pai para filho. Em 2007 o queijo da Rolinha foi considerado o melhor do Nordeste. Já
numa produção em escala industrial, está localizada na fazenda Boa Vista a queijeira
padrão Boa Vista, dotada de instalações modernas, tecnologia de ponta e a garantia da
qualidade internacional. Esta queijeira se destaca além da produção dos queijos
tradicionais de coalho e manteiga, também pela produção do queijo de coalho com
carne de sol. Este roteiro é favorável ao Turismo Cultural, Turismo Pedagógico,
Turismo da Melhor Idade, Turismo de Férias;
Eventos – O município possui três eventos que se destacam na região do Seridó,
sendo eles a Festa da Padroeira Nossa Senhora do Ó, a Vaquejada da cidade e a Festa
do Reencontro que acontece, atualmente, dentro da programação da Festa da

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
728

Padroeira. São favoráveis aos Turismo de Eventos, Turismo Cultural, Turismo


Religioso, Turismo da Melhor Idade e Turismo de Férias;
Chácara Nova Vida – Hotel fazenda dotado de inúmeras fruteiras, jardins, aves
silvestres, trilhas de coqueiros e outras espécies de nossa flora área de lazer com
piscina, campo de futebol, quadra, salão de jogos, e auditório. Ideal para o Turismo de
Férias, Turismo de Repouso, Turismo da Melhor Idade, Turismo de Eventos e Turismo
Rural.
A implementação desses roteiros depende da organização do interesse do
município, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo,
para planejar e executar as medidas necessárias com o propósito de atrair esses
turistas para o município. É importante que de início seja criado o Conselho Municipal
de Turismo, órgão que vai discutir as melhores soluções para uma exploração turística
sustentável, bem como pleitear junto à secretaria, responsável a infraestrutura básica
para receber os possíveis investimentos privados do setor turístico. É também
importante que o poder público possa incentivar a abertura de mais negócios ligados
ao turismo, pois são eles que vão receber toda a demanda turística. Também deve-se
investir em propaganda para divulgação dos produtos turísticos, com o intuito de atrair
novos clientes, além de qualificar as pessoas que vão diretamente trabalhar com o
turista, seja ele o recepcionista, o artesão, o garçom, o guia turístico, enfim, todos que
participam desta cadeia, para agregar mais valor aos produtos turísticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante ao que foi exposto, entre contextos, aspectos e perspectivas, levar o
município de Serra Negra do Norte ao seu despertar requer conscientização, dedicação
e incentivo. E, através deste trabalho, esperamos incentivar esse desejo de tornar o
município um espaço que seja palco de muitos olhares e que seja valorizado no que
muito oferece, pois detém de uma cultura muito rica, marcada por tradições que ainda
permanecem intrínsecas em seu cenário, detentor de uma extraordinária carga
histórica. Esta, marcada por uma paisagem natural típica do sertão nordestino,
caracterizada por belezas singulares.
Assim, abre caminhos para o turismo e, consequentemente, para o
desenvolvimento local, possibilitando também para um trabalho de ordem sustentável
a fim de sua preservação histórica, cultural e natural, bem como para a geração de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
729

emprego e renda, propiciando ao município a venda de seus produtos e serviços e a sua


população uma empregabilidade estável, distante de aflições de desemprego.
Desse modo, com essa visão de alavancar o turismo em Serra Negra do Norte, a
fim de lhes proporcionar atividades sustentáveis, de preservação e desenvolvimento,
almejamos o seu crescimento enquanto município, patrimônio histórico, cultural e o
desencadear para atividades de preservação ao meio ambiente, proporcionando
orgulho ao morador e ao visitante que por esta localidade passar.

REFERÊNCIAS
ARACATI NET.COM. Brasil Fatura US$ 5,78 bi com turismo estrangeiro em 2008.
Disponível em: <http://www.aracatinet.com/?p=2125>. Acesso em 20 set. 2009.

AZEVEDO, U. R.; NASCIMENTO, M. A. L.; NETO, V. M. Geoturismo: Um novo segmento


do Turismo. Revista de Turismo. Belo Horizonte, v.2, n.3, p. 3, 2007.

BRASIL. Lei 11.771/08, de setembro de 2008. Dispõe sobre a Política Nacional de


Turismo. Disponível em: <http://www.leidireto.com.br/lei-11771.html> Acesso em 05
agos. 2009.

CADERNO REVISTA SERRA NEGRA EM FESTA. Serra Negra do Norte/RN, ano I – nº 1


– novembro de 2005, anual, não comercial, dedicada a Festa de Nossa Senhora do Ó,
publisher & editor: Pery Lamartine.

IBGE. Cidades@. Disponível em:


<http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1> Acesso em 20 set. 2009.

IDEMA. Sócio Econômicos: Perfil de seu município – Serra Negra do Norte.


Disponível em:
<http://www.idema.rn.gov.br/contentproducao/aplicacao/idema/socio_economicos/e
nviados/perfil_s.asp.> Acesso em 21 set. 2009.

LAMARTINE, P. Personagens serra-negrenses, Natal, Sebo Vermelho Edições, 2003.

______. SERRA NEGRA ANOS 30. Natal, 2000.

FARIA, J. L. Velhos costumes do meu sertão. 3° edição, Natal/ RN, Sebo Vermelho
Edições, 2006.

LAGE, B.H.G; MILONE, P.C. Turismo: Teoria e Prática. São Paulo: Atlas, 2000.

MACÊDO, M. K. de (1998). O algodão na economia seridoense. História do RN n@ WEB


[On-line]. Available from World Wide Web: <URL: www.seol.com.br/rnnaweb/>.
Acesso em 15 agos. 2009.

MAIA, A. de S. Dinarte Mariz: vida e luta de um potiguar, Brasília: A. da S. Maia, 2005.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
730

MANZATO, F. Turismo arqueológico: diagnostico e analise do produto


arqueoturístico. Passos. v.5, n.1, p. 100, 2007.

MORAIS, I. R. D. SERIDÓ NORTE-RIO-GRANDENSE: uma geografia da resistência,


Caicó, 2005.

NONATO, R. A revolução de 30 em Serra Negra, coleção Mossorense, série C, Volume


CDXXIV, 1998.

PREFEITURA MUNICIPAL DE SERRA NEGRA DO NORTE. Disponível em:


http://www.serranegra.rn.gov.br/serra/acidade.html. Acesso em 04 set. 2009.

START PESQUISA E CONSULTORIA TÉCNICA LTDA. Plano de Desenvolvimento do


Turismo Sustentável. Maio de 2009.

SERRA NEGRA DO NORTE, Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Plano de


Desenvolvimento Local Sustentável. Pesquisa in lócus, realizada em 2001.

SOUZA. F. C. S. (Org). Potencialidades e (in)sustentabilidade no semi-árido potiguar.


Natal: CEFET-RN, 2005.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
731

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS HISTÓRICOS E EDUCAÇÃO


PATRIMONIAL: O ENSINO DE HISTÓRIA SOB A ÓTICA DOS
ESTUDOS MEIO

Kayann Gomes Batista525


Igor Gadelha Soares526
Kathelly Rayssa Vital527
Orientador: Abrahão Sanderson Nunes Fernandes da Silva528

INTRODUÇÃO
A Arqueologia chegou no Brasil entre o final do século XIX e início do XX
(ETCHEVARN, 2004), com o objetivo de analisar os sistemas socioculturais, estruturas,
funcionamento e as transformações destes a partir dos remanescentes materiais num
determinado tempo e espaço. Com o trabalho do arqueólogo é possível estabelecer as
relações dos grupos com a moradia, alimentação e economia, assim como a forma com
a qual escolhiam se agrupar. Contudo, é preciso ter um controle sobre as áreas já que
com o passar do tempo, os locais com grande potencial arqueológico venham a sofrer
com degradações e ações por parte da sociedade, que, muitas vezes, não reconhece ou
valoriza esses espaços.
Um sítio arqueológico, como dispõe a Lei 3924/1961, é um componente do
patrimônio cultural, no IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
sendo inserido no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológico (CNSA). Havendo assim
uma melhor administração tanto dos locais que já foram pesquisados quanto os que
ainda serão.
A arqueologia no Nordeste teve início na década de 1960 (ETCHEVARNE, 2004).
As pesquisas começaram nos estados do Maranhão, Ceará, Sergipe, Alagoas, Bahia,
Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, com vestígios de gravuras e pinturas
rupestres, com uma condição particular e cunho naturalista. Havia também

525 Graduando em História (Licenciatura) – CERES – UFRN – Caicó – RN – Brasil, E-mail:


kay_gomes@ufrn.edu.br
526 Graduando em História (Licenciatura) – CERES – UFRN – Caicó – RN – Brasil, E-mail:
gadeigor@gmail.com
527 Graduanda em História (Licenciatura) – CERES – UFRN – Caicó – RN – Brasil, E-mail:
kathelly.rayssa15@gmail.com
528 Docente do Departamento de História do CERES – UFRN – Caicó – RN – Brasil, E-mail:
abrahaosanderson@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
732

preocupação com a relação com o ambiente, a forma estratégica de como escolhiam os


locais de moradia, próximas a rios, como forma de sobrevivência.
No Rio Grande do Norte, encontramos a Arqueologia do Seridó que é também
observada a partir de sítios históricos, casas de fazenda que datam desde a metade do
século XVIII às primeiras décadas século do XX. A exemplo disso tem-se os sítios
Culumins e o Alegre, localizados na zona rural do município de Caicó-RN.
Desta forma, o presente artigo tem como objetivo correlacionar os estudos entre
Arqueologia e História, estabelecendo assim uma interdisciplinaridade entre essas
duas áreas e com isso conectar o aluno do ensino fundamental com o seu meio, levando
assim a interagir com a sua comunidade, construindo, o conhecimento dele sobre isso,
principalmente, a partir de aulas práticas.

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS HISTÓRICOS E A HISTÓRIA LOCAL DE CAICÓ- RN


Os sítios arqueológicos utilizados neste trabalho são espaços localizados no
município de Caicó-RN e os elegemos por possibilitarem um maior exemplo da relação
entre arqueologia e história e ao que toca o ensino de história, possibilitando a
construção de um conhecimento de formas dinâmicas e práticas. Um ponto que deve
ser pensado é a grande potencialidade das casas de fazenda como ferramenta de
ensino sobre a história local de Caicó-RN. A cultura material, nesse sentido, aproxima
os alunos de seu processo histórico, se desvinculando na maioria das vezes de uma
história tipicamente sustentada pelo “senso comum”.
São espaços de grande possibilidade de pesquisas turísticas, arqueológicas e
históricas. No sentido histórico, são fontes para repensar e analisar, a história local de
Caicó-RN, e o processo de formação do que conhecemos atualmente como
microrregião do Seridó no Rio Grande do Norte.
Os espaços de casas de fazenda podem atuar como porta para um ensino de
História embasado a partir do trabalho munindo análise de fontes documental e dos
materiais arqueológicos existentes nessas áreas, isso nos propõem a pensar sobre a
conservação e preservação do patrimônio histórico. Vendo a utilização deste, através
dos estudos do Meio, de forma a induzir nos alunos o entendimento da importância da
conservação dos sítios, entrando na ótica da educação patrimonial.
Da grande variedade de Sítios, elencamos dois como principais locais que
demonstram bem o potencial retrato no presente artigo, são eles:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
733

SÍTIO CULUMINS
O Sítio Culumins que fica localizado a mais ou menos 40 km cidade de Caicó-RN,
em uma comunidade rural que possui o mesmo nome (Culumins), sua importância é
inegável para a História local do município, é supostamente a fazenda mais antiga que
se tem registro na documentação manuscrita da antiga da comarca de Gloriosa
Sant'ana no Seridó.

Figura 1: Estrutura da casa sede do Sítio Culumins, Caicó-RN. Foto: Abrahão Sanderson.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
734

Figura 2:Estrutura da sede do Sítio Culumins, Caicó-RN. Foto: Abrahão Sanderson.

As escavações realizadas pelo Laboratório de Arqueologia do Seridó (LAS), este


pertencente a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) fornecem dados
como materiais cerâmicos, louças, metais (moedas, botões, embalagens), vidros, entre
outros. Peças que podem com toda evidência, servir além de fonte para a pesquisa
arqueológica/histórica, serem usados como ferramentas didáticas para o ensino de
história através dos estudos do meio.

SÍTIO ALEGRE
O Sítio Alegre assim como o Culumins, fica localizado na zona rural do município
de Caicó-RN, é também um grande recurso arqueológico/didático para o ensino de
história. Assim como no Sítio Culumins, os materiais arqueológicos provenientes desta
área, resultam de uma Arqueologia Histórica, em sua maioria materiais de uso
domésticos que nos contam sobre o cotidiano dos séculos XVIII e XIX.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
735

Figura 3: Vista da casa de fazenda no Sítio Alegre, Caicó-RN. Foto: Abrahão Sanderson.

Figura 4: Estrutura casa de moradia dos trabalhadores, Caicó-RN.Foto: Abrahão Sanderson.

DOCUMENTAÇÃO
É importante que a abordagem metodológica destes espaços deve ser feita em
dois pontos principais, o material e o documental, este primeiro que como já vimos nas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
736

imagens acima nos diz muito sobre as vivências e o processo histórico de ocupação e
formação não só de Caicó, mas também de todo o Seridó.
A abordagem documental permite tanto no primeiro momento identificar os
sítios, como também, os possíveis sinais de hibridismo entre as camadas sociais
(negros escravos ou não, índios, donos de fazendas), que viveram nas épocas passadas,
ver como isso fica aparente na cultura material estudada. Além disso, permite
estabelecer uma discussão entre os achados arqueológicos com o que está escrito nos
manuscritos.
Há exemplo do Sítio Culumins os documentos mais antigos consta o nome de
Francisco Antônio de Medeiros e seu filho Antônio Cesino de Medeiros, na antiga
fazenda Umari seu nome anteriormente, no século XIX. Muito provavelmente os
espaços da fazenda eram usados para o beneficiamento de algodão, criação de gado e
a produção a parte de engenho de cana-de-açúcar.

Figura 5: Inventário de Ana Filgueira de Araujo Medeiros/ Inventariante Antonio Cezino de Medeiros,
datado de 1892, Fonte: Labordoc

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
737

Os arquivos encontram-se localizados no acervo do Laboratório de documentação


histórica (Labordoc) da UFRN campus Caicó, a documentação varia desde de
inventários pós morte, certidões de casamento, escrituras e documentos de recibo.

DEFINIÇÃO DE ESTUDO DO MEIO


Entendemos os sítios arqueológicos históricos como ferramentas que
possibilitaram ao aluno se desvincular de uma perspectiva tradicional de ensino,
agregando valores como a imaginação, o toque e o sensível. Através destes fatores,
junto ao estudo trabalhado de demais disciplinas, nesse caso a História e Arqueologia.
O aluno poderá ser colocado como produto de um tempo/processo histórico que não
acabou, que está em constante movimento, que existe nos espaços cotidianos públicos
(praças, casas, ruas, igrejas, escolas, entre outros), ou privados/domésticos (talheres,
utensílios domésticos, móveis, arquiteturas internas, entre outros), ou seja, em seu
meio habitual.
Neste sentido, podemos utilizar o estudo do meio, mas o que seria essa
metodologia? É compreendido como um método de ensino que busca proporcionar aos
alunos e professores o contato com determinada realidade, ou seja, um meio qualquer,
seja rural ou urbano, e que resolvam estuda-lo. De acordo com o livro Ensino de
História, pertencente a Coleção Ideias em Ação, quando se diz respeito da inserção do
patrimônio histórico e memória no estudo do meio, vemos que,

O estudo do meio representa uma excelente estratégia para a


construção do conhecimento histórico por professores e alunos pelo
fato de unir pesquisa, contato direto com um contexto (meio), sua
observação e descrição, aplicação de entrevistas, análise de elementos
que compõem o patrimônio histórico e memória. (ABUD; SILVA; ALVES,
2013, P. 79).

Vale salientar também que, uma atividade envolvendo esse método de ensino,
pode-se relacionar com outras disciplinas, permite também o contato diretamente
ligado aos elementos que formam um patrimônio cultural regional ou local, tais como:
fazendas, monumentos, prédios históricos, dentre outros. (ABUD; SILVA; ALVES, 2013).
Esse patrimônio remete a um espaço e tempo específicos e suas formas de
sociabilidade, além dos significados atribuídos a eles pelas pessoas no presente, o que
alimenta a construção da memória e do imaginário. (ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 81).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
738

Dessa forma, possibilitando a visualização desses espaços, podendo visualizar a


cultura material e rapidamente associar ao que convivem no cotidiano, facilita ainda
mais a assimilação.
O estudo do meio vem sendo uma das principais metodologias utilizadas para a
construção de um conhecimento histórico, já que a atividade envolve a prática e
pesquisa. No caso da atividade envolvendo patrimônio cultural, os alunos são levados
a campo e possibilita o contato diretamente com vestígios do passado, é importante
ressaltar que a ideia de patrimônio não é só aquilo que é antigo ou público como vimos
acima, patrimônio pode ser público ou privado, novo ou antigo.

O estudo das mudanças nas relações do trabalho em determinada


localidade ou região (em determinado período) permite-nos
compreender melhor como era o cotidiano das pessoas no passado e
como esse modo de viver foi se alterando ao longo do tempo, de forma
a compor o cenário atual. (ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 82).

Para assimilação da importância da educação patrimonial, recomenda-se que


sejam feitas atividades práticas quem envolvam os alunos, não é suficiente leva-los
somente para visitação e contar um pouco sobre a história do local, precisa-se que os
estudantes imaginem o local, que recriem e pensem sobre o que aquilo significou no
passado e o que significa para os dias atuais.
Podemos citar um exemplo da casa de fazenda do sítio Culumins, que é datada
por volta do século XIX, logo após a ocorrência da expansão da pecuária no Rio Grande
do Norte, no século XVIII, onde começam a adentrar no Seridó com o processo de
interiorização. O sítio fica localizado no município de Caicó, onde podemos observar as
estruturas ruindo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
739

Figura 6: Estrutura em ruínas da casa sede do Sítio Culumins, Caicó-RN. Foto: Abrahão Sanderson.

Nesse espaço foram realizadas intervenções arqueológicas pela equipe do


Laboratório de Arqueologia do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
campus Caicó, no período de outubro a novembro de 2016. Nessas intervenções foram
encontrados materiais arqueológicos dos mais variados possíveis, tais como: faiança,
vidro, metal, ossos, moedas, cerâmicas construtivas e utilitárias.

O POTENCIAL DA RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA, NO QUE TOCA O


ENSINO DE HISTÓRIA
Ainda utilizando o sítio Culumins como exemplo de execução de uma atividade,
onde podemos dialogar tanto com a relação de patrimônio cultural, como de História e
Arqueologia. Poderíamos pedir aos discentes para levantarem uma pesquisa para que
possamos compreender o cotidiano das pessoas que habitaram a fazenda, dentre elas:
localização do sítio, informações coletadas por história oral com a comunidade local,
utilizando documentações podemos tirar o básico de informações para o
enriquecimento da pesquisa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
740

Outro aliado que pode ajudar ainda mais na pesquisa é a presença da cultura
material, como foi citado acima dos diversos materiais arqueológicos encontrados no
entorno da residência, na imagem abaixo podemos observar um fragmento de faiança,
de produção inglesa, aproximadamente do século XVIII.

Figura 7: Fragmento de faiança fina, shell edge, de produção inglesa no entorno do Sítio Culumins, Caicó-
RN. Foto: Abrahão Sanderson.

Com a presença da cultura material podemos obter informações mais precisas


da questão social, econômica, organizacional, tudo isso contribui para
compreendermos como se deu a ocupação dessa moradia no passado. Então, a História,
com base nesse novo referencial multidisciplinar, renovou seu olhar metodológico no
século XX ao levar em consideração outros tipos de documentos, questionando a
excelência das fontes escritas (ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 109). Ou seja, estamos
sempre acostumados a pensar que fontes se resumem sempre a escrita, que estão em
documentos. Esse novo olhar de parte da historiografia de se atentar ao cotidiano em
busca de notar outros caminhos de entendimento de História, onde imagens, gravações,
entrevistas transcritas ou de materiais de todos os tipos produzidos pelos seres

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
741

humanos passaram a fazer parte do horizonte documental dos historiadores. (ABUD;


SILVA; ALVES, 2013).
A cultura material passa a ser considerada fonte histórica, a partir disso, a
História e Arqueologia estão entrelaçadas, por isso, os historiadores perceberam que
os artefatos que os seres humanos criam, produzem, utilizam e consomem dizem
respeito não só à sua trajetória histórica como também à construção de sua identidade
(ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 109). A partir dessas fontes, os historiadores podem
buscar uma forma organizacional desse material, a utilidade desse material no grupo
de pessoas, buscar analisar como esses artefatos eram construídos e utilizados
cotidianamente e o que eles podem dizer à história.

Assim, nosso próprio cotidiano apresenta a importância da cultura


material para as sociedades. Os objetos que compõem nossa casa,
nosso vestuário, os meios de transporte que utilizamos, os diferentes
instrumentos usados para higiene, comunicação, trabalho, registro e
proteção, entre tantos outros, dão mostras não só da dinâmica
individual de nossas vidas como também dos meios sociais nos quais
transitamos cotidianamente. (ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 111).

Desse modo, esses objetos utilizados por essas pessoas representa a


importância de preservar a memória e contribuir para a reconstrução da História, e levar
essa memória para o presente e as futuras gerações de pesquisadores ou das pessoas
que se interessam pelo tema.
Outro ponto essencial é entender a natureza física desses objetos, pesquisar
marcas específicas que lembram o material por meio de decorações ou carimbos,
entender as características químicas e físicas dos artefatos, que podem permitir
informações mais complexas, observar cor, tamanho, peso, composição e formas. Isso
requer um estudo mais profundo do tema, ao qual muitas vezes cabe ao arqueólogo a
fazer esse tipo de análise.

Nesse sentido, a utilização da cultura material no ensino de História


proporciona várias frentes de estudo, como a investigação das
características físicas dos artefatos; seu percurso de construção; suas
mudanças e permanências de função, utilização, estética e valoração ao
longo do tempo; e compreensão de aspectos de diferentes ordens da
sociedade a qual pertence. (ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 114).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
742

A visualização desses atributos é de suma importância para entendermos todo


o contexto de produção do produto, sua circulação e consumo. É necessário levantar
pesquisas sobre a matéria prima do fragmento, técnicas de fabricação, sinais de uso,
buscar extrair o maior número de informações possíveis do objeto.
O livro Ensino de História oferece uma sugestão de atividade que podem ser
utilizados com turmas de ensino básico, justamente para reforçar tudo o que se foi
aprendido em campo, intenção de mostrar a importância de conhecer o patrimônio
cultural, dialogando com a História e Arqueologia. A atividade apresenta um roteiro de
questões que estimulam ao aluno responder sobre os documentos materiais, desde sua
confecção, a apropriação histórica da sociedade a qual pertence, e levando a uma
reflexão pensando nos aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais. As perguntas
levantadas no questionário falam sobre as características físicas, quanto a construção,
a função/utilização, design, o seu valor e sobre a sociedade que produziu.

A construção do conhecimento histórico ocorre quando os alunos


percebem a relação dos artefatos com sua própria história, com a
história de sua família, de sua localidade e até de seu país. É o
sentimento de agência do pensamento que deve nortear a prática do
ensino de História por meio da utilização da cultura material. Quando o
aluno se apropria da ideia de que seus próprios objetos e os de sua
sociedade são fontes importantes para a construção da História, está
aberta a possibilidade de aprimoramento de sua consciência crítica em
relação ao mundo. (ABUD; SILVA; ALVES, 2013, P. 120).

Com essas atividades desenvolvidas, os alunos se identificam com objetos que ele
utiliza no seu dia-a-dia que tenham algum significado, ou objetos que ele costuma ver
na casa dos seus avós, ou de pessoas próximas. A ideia é que o mesmo tenha
consciência da importância daquilo que está ao seu redor, fazendo uma boa utilização
da cultura material como fonte histórica, podem dar bons resultados em relação ao seu
conhecimento histórico. Toda essa construção contribui para a formação de cidadão
consciente e crítico, a interpretar não só os textos, mas o que os artefatos têm a dizer,
notar que a história está presente em tudo.

UM BOM EXEMPLO DE ESTUDOS DO MEIO


A exemplo do que pode ser tirado de um ensino de história prático, pondo em
ponto a relação entre Arqueologia e História, podemos citar o projeto de extensão

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
743

universitária “A História através dos artefatos: Potencialidades da cultura material para


o ensino de História. ” Pertencente ao curso de História da UFRN, ao qual tem a
proposta de trazer a cultura material proveniente de casa de fazendas do município de
Caicó-RN, como ferramentas didáticas para o ensino de História. O projeto conta com a
junção de cinco áreas de conhecimento, a saber, a Arqueologia, História Antiga, Cultura
Material, História Local de Caicó e o ensino de História.
Seguindo a linha do projeto, o mesmo conta com três coordenadores, cada um
em suas respectivas áreas, a saber, o prof. Dr. Abrahão Sanderson Nunes Fernandes da
Silva, responsável pelo o que tocante a Arqueologia e cultura Material, Profa. Dra. Airan
Borges de Oliveira, ligada à História antiga e a Profa. Dra. Juciene Andrade, responsável
pelo ensino de História. Como já afirmamos, o projeto visa estabelecer vínculo entre a
Arqueologia e a História, com o objetivo em criar uma ferramenta prática para o ensino
de História, como jogos de tabuleiros e digitais.
Entre os jogos, já estão em andamento um jogo de tabuleiro que envolve a
temática dos mitos de criação de várias etnias, como, Gregos, Romanos, Tupi, Vikings,
entre outros. Já o segundo conta com uma produção bem mais aparelhada que
funcionará para o professor como um recurso fácil e ágil, na palma da mão, em seu
celular por exemplo.
O jogo virtual terá a temática de casas de fazenda do município de Caicó-RN,
onde o aluno após ter uma aula sobre a história local, terá a missão de agir como um
detetive solucionando casos de roubos de artefatos históricos dentro de um ambiente

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
744

que simula uma casa de fazenda Seridoense dos sécs. XVIII, XIX e XX. Este último já
conta com o primeiro protótipo, em andamento.

Figura 8: Protótipo do Jogo, ambiente que recria uma casa de fazenda no séc: XVIII e XIX.

Esse projeto conta com o auxílio dos alunos do curso de Sistemas de Informação,
aliamos assim a interdisciplinaridade desde a criação do projeto até o seu total
desenvolvimento com isso entendemos o projeto como um bom exemplo do potencial
da cultura material como recurso didático para o Ensino de História.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante apontar para o aluno que o ambiente da sala de aula é muito mais
versátil do que ele pensa, mostrar que ele pode aprender jogando, e de uma maneira
mais dinâmica, aliando a cultura material com a sala de aula. E mais importante ainda,
é o fato desse discente se identificar com as aulas e se identificar com a história da sua
cidade, abordar a esse aluno que é possível falar do seu local, construir um significado
dentro e fora da sala de aula, é nesse momento que como vimos anteriormente entrar
os estudos do meio, aliando a interdisciplinaridade desde a criação do jogo, até a sua
aplicação.
Os estudos do meio tem como objetivo auxiliar nessa relação, professor e aluno
com o intuito de deixar a aprendizagem mais dinâmica, com isso obteremos uma nova
visão dos alunos em relação às aulas, e quem sabe assim mais interesse por parte do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
745

próprio estudante de futuramente estudar sobre a sua região, essa interação do aluno
com o meio é importante para ele perceber o ambiente a qual faz parte e se sentir
incluído nisso, interagindo nas aulas, com os jogos, e com o material de campo,
despertando assim a curiosidade dele para aprender.
Contudo em um momento atual, vemos os estudos do meio como forma de
acrescentar ao ensino, a significação da memória em relação aos espaços de patrimônio
histórico. Desta maneira, o sentido do significado corrobora com o crescer de uma
sociedade consciente da preservação e conservação do patrimônio. Perspectivar a
educação patrimonial, como prática responsável do docente. Ademais, entendemos os
espaços como dinâmicas ferramentas de um ensino de história integralizador, que
perpassa a fronteira da sala de aula, chegando até o cotidiano do aluno.

REFERÊNCIAS
ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso.
Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2011.

Bittencourt, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2°.


ed. São Paulo: Cortez, 2008.

ETCHEVARNE, Carlos. A Ocupação Humana do Nordeste Brasileiro Antes da


Colonização Portuguesa. Revista Uspa Antes de Cabral: Arqueologia Brasileira-I, São
Paulo: EDUSP, 44, dezembro/fevereiro 1999/2000.

FUNARI, Pedro Paulo et al. Os historiadores e a cultura material. In: PINSKY,


Carla Bassanezi et al. Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. Cap. 4. p. 81-
110.

SILVA, da Gomes Micheli. SILVA, Amanda Kelly Acioli. RIBEIRO, Helena Alves de Souza
de Lucena. A Cultura Material Como Recurso Didático No Ensino de História. Revista
Eletrônica Extensão & Sociedade, Natal, PROEX/UFRN, Volume 8, No 1, Janeiro, 2013.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
746

A ESCOLA COMO FONTE DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO


HISTÓRICO NA ANÁLISE DE IMAGENS

Kaliene Alessandra Rodrigues de Paiva529

INTRODUÇÃO
Ensinar os alunos a pensar historicamente é uma preocupação que se
apresenta como uma pauta bastante em evidência nos debates atuais acerca de como
encontrar possibilidades que tornem o ensino de História mais significativo no âmbito
da Educação Básica. Isso ocorre porque, nos tempos vividos no século XXI, marcado por
constantes transformações, novas demandas vão surgindo na escola com a mesma
velocidade que as mudanças acontecem. Assim, a escola, no que tange ao ensino de
História, sente a necessidade de rever e ressignificar seus paradigmas, suas
metodologias e seus processos inerentes ao ensino/aprendizagem.
Nessa dinâmica, os antigos modelos que orientavam o ensino tradicional
desta disciplina, atualmente se defrontam com novos questionamentos e,
consequentemente, novos problemas, como aponta o professor Daniel Luciano Gevehr:
“a crise das memórias, das identidades e a desvalorização (ou esquecimento) dos
lugares de memória.” (p. 945, 2016). Fundamentada na discussão crítica que Gevehr
desenvolve em seus trabalhos sobre o tratamento dado aos espaços de memória na
sociedade de memórias fluidas da contemporaneidade e o papel importante do ensino
de História para se problematizar essa questão, o presente trabalho tem como objeto
de estudo a Escola Estadual Instituto Ary Parreiras como fonte para a produção do
conhecimento histórico sob o enfoque da Educação Patrimonial, compreendida não
apenas como um método do ensino de História, mas também como um saber que está
imbricado no processo de construção desse conhecimento.
A Escola Estadual Instituto Ary Parreiras fica localizada dentro da Vila
Naval, na Praça Almirante Barroso, bairro Alecrim, cidade do Natal/RN. Fundada em
1945, pelo 3° SG. Francisco Luciano de Oliveira, recebeu esse nome em homenagem ao
almirante Ary Parreiras, responsável pela instalação da Base Naval em Natal no ano de
1941. Atualmente, atende os níveis de Ensino Fundamental I e II, nos turnos matutino e

529 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
747

vespertino, comportando, em média, 1020 alunos anualmente, vindos não somente do


bairro do Alecrim como também de outros circunvizinhos, além de receber crianças e
jovens residentes na zona norte da cidade.
A instituição é composta por uma demanda de alunos bastante
heterogênea, enfrentando questões relativas à indisciplina. A título de exemplificação,
atitudes que causam o desgaste físico e material da escola, tais como: sujar paredes e
carteiras das salas de aula, quebrar portas, ventiladores, quadros brancos, entre outros.
Problematizada nesta pesquisa, essa situação foi uma questão relevante, pois é reflexo
de um contexto social complexo que repercute na construção do sentimento de
pertencimento dos alunos para com o espaço escolar e na relação deles com o
patrimônio público.
Outra questão realçada neste trabalho se refere ao processo de
apagamento da memória histórica que o Instituto Ary Parreiras vem presenciando. A
escola não oferece um tratamento adequado às fontes iconográficas que tratam de sua
história, o único álbum de fotografias foi organizado de forma desordenada, sem situar
as imagens no tempo. Alguns, inclusive, encontram-se sem nenhuma informação a
respeito. Além disso, na internet, em pesquisa no Google, não aparece nenhum site em
que constem narrativas ou artigos a respeito da história da escola. Apenas, no site da
Wikipédia aparece a biografia do almirante que deu nome ao Instituto, sem mencionar
a relação dele como a instituição escolar.
Mediante as dificuldades elencadas nos parágrafos anteriores, a
problemática da investigação científica deste trabalho centrou-se no seguinte
questionamento: como desenvolver um projeto de intervenção, de maneira que este
contribua para tornar o ensino de História mais significativo para alunos do 6° ano do
Ensino Fundamental II e no contexto da E.E. Instituto Ary Parreiras, em Natal – RN?
Para responder a essa indagação, a pesquisa visou dois objetivos
fundamentais: 1) desenvolver um projeto de intervenção, pautado em Educação
Patrimonial, que possibilitasse um novo direcionamento ao ensino de História, voltado
para uma educação cidadã, tornando-o mais significativo para os alunos das séries do
6° ano do Ensino Fundamental II do Instituto Ary Parreiras; 2) desenvolver um
memorial virtual interativo como ferramenta auxiliar na pesquisa e na construção da
memória histórica da escola.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
748

Com a finalidade de alcançar os objetivos supracitados, a metodologia


adotada se embasou no método de pesquisa histórico da Nova História Cultural, a fim
de examinar as percepções dos alunos pertinentes aos elementos físicos e materiais
que compõem a escola como lugar de memória e fonte de produção do conhecimento
histórico dentro de uma abordagem cultural.
Diante disso, este trabalho discorreu sobre o detalhamento do método de
pesquisa adotado para a análise dos dados e acerca da importância do produto como
ferramenta dinâmica no processo ensino/aprendizagem nas aulas de história, tendo em
vista que o memorial virtual interativo não se propõe apenas a disponibilizar as
fotografias de épocas diversas da escola em um formato digital, mas também
proporcionar aos internautas visitantes uma sensação de experiência “real” com
interação estabelecida com esse ciberespaço.

DIALOGANDO ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NA ANÁLISE DE


IMAGENS
Diante do cenário hodierno, a fim de responder às demandas sociais na sala de
aula, em especial nas aulas de História, o método da pesquisa histórica que embasou a
investigação científica deste trabalho foi o da Nova História Cultural, abordagem que
passou a ser evidenciada pelos historiadores sociais, a partir da segunda metade do
século XX. Preocupadas em ampliar o campo de abordagem historiográfica, as
pesquisas direcionaram suas análises para uma história que consistia em
problematizar os diversos aspectos do social sob o enfoque da análise cultural,
colocando no centro da produção do conhecimento histórico “o papel decisivo da
cultura como força motivadora da transformação histórica” (DESAN, 2001, p. 66).
Em vista disso, os estudos passaram a dar voz às histórias dos silenciados,
aos seus modos de sentir, pensar e viver as experiências do cotidiano e suas
representações em detrimento de uma história, entendida por Marc Bloch como
historicizante, que se pretendia científica, tendo como foco a verdade dos fatos, a partir
de estudos que se voltavam para a análise, sobretudo, de acontecimentos de natureza
política e econômica, registrados nos documentos oficiais.
Com a Nova História Cultural, tudo pode ser objeto de estudo: o medo, o
amor; a morte, o corpo; o modo como os indivíduos se relacionam com os bens
materiais, a maneira de se vestir, a representação simbólica de lugares e objetos, entre

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
749

outros. Portanto, em consonância com a ampliação dos objetos de estudo, alargam-se


também as possibilidades de fontes para a investigação histórica. Assim, uma imagem,
uma certidão de casamento, os bens materiais e imateriais podem constituir-se em
fontes possíveis de investigação histórica.
Em suma, elementos que possuam um poder de representação simbólica e
que revelem expressões e aspectos culturais de indivíduos particulares ou coletivos de
épocas distintas e que possibilitem ao historiador analisá-los e interpretá-los, nas
palavras de Peter Burke, são um “terreno comum dos historiadores culturais pode ser
descrito como a preocupação com o simbólico e suas interpretações” (BURKE, 2008,
p.10).
Herdeira de algumas preocupações da História das Mentalidades, a Nova
História Cultural, para compreender as formas de representação do cotidiano, os
processos de formação de identidades e a diversidade dos elementos culturais
constituintes da vida em sociedade, aproxima-se de outras áreas do conhecimento,
como a antropologia e a linguística. Por exemplo, os estudos de Edward P. Thompson
sobre a resistência social e a luta de classes ligada às tradições e o cotidiano dos
populares, explicadas no campo teórico da cultura popular, foram ancorados no
método de análise da Antropologia, preocupando-se com os processos de formação de
identidades. (VAINFAS, 1997).
Dentro dessa perspectiva, esse método de pesquisa histórica é importante
porque, por meio dele, foi possível direcionar a análise sobre as percepções dos alunos
para com os elementos físicos e materiais que compõem a escola como lugar de
memória e fonte de produção do conhecimento histórico, dentro de uma abordagem
cultural, permitindo compreender que as formas como os alunos expressam sua
relação com os bens materiais estão relacionadas à dinâmica de rápidas mudanças, as
quais interferem no processo de formação de identidade e pertencimento deles.
Fundamentado no referencial teórico/metodológico supracitado, o projeto
de intervenção em Educação Patrimonial, que resultou na produção do Memorial
Virtual Interativo, tem como público-alvo alunos do 6° ano do Ensino Fundamental II,
turmas A e C, da Escola Estadual Instituto Ary Parreiras; tem como foco central
trabalhar a escola como um lugar de memória por meio da análise de imagens, sendo
organizado em procedimentos divididos em três etapas distintas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
750

A primeira etapa foi direcionada ao professor, a qual consistiu na revisão de


literatura, realizada em conformidade com a leitura sistemática de teóricos e obras da
área para fundamentação aprofundada dos conceitos de memória e lugar de memória,
educação patrimonial e ensino de história, embasando a discussão teórica do tema.
Ademais, o levantamento da revisão bibliográfica, responsável por tratar
especificamente da memória histórica da escola, da qual fez parte a dissertação de
mestrado de Maria Elizete Guimarães de Carvalho, intitulada “Instituto Ary Parreiras:
um resgate histórico (1945 – 1965), defendida no ano de 1997, no Departamento de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e, ainda, da mesma autora,
o artigo “Instituto Ary Parreiras, uma breve história: 1945 – 1958, publicado por Maria
Inês Sucupira Stamatto, em 1996, pela editora da UFRN.
Esse levantamento subsidiou a análise da construção da história da escola,
na perspectiva de compreender as representações elaboradas pelo discurso que
produziu a memória desse espaço, tanto o que foi lembrado quanto o que foi silenciado
no processo de construção dessa memória histórica. Para fazer a leitura dessas
representações, foi utilizado o método apontado por Roger Chartier, o qual
compreende a leitura como algo inscrito no texto, percebendo as intencionalidades que
estão presentes no escrito do texto, já que, para o autor, o leitor não é submisso às
estratégias textuais. (CHARTIER, 2001).
A segunda etapa do procedimento, direcionada para os estudantes, consistiu
na aplicação de um questionário diagnóstico, composto por vinte e três questões: vinte
perguntas objetivas de múltipla escolha e três discursivas. Para tanto, foram
organizadas de acordo com os critérios a seguir: 1) as duas primeiras perguntas se
destinaram à identificação dos alunos quanto a gênero e idade; 2) da questão 03 até a
07 versaram sobre a relação dos alunos com as mídias sociais e o uso destas para fins
escolares; 3) as perguntas 08 e 09 abordaram a relação entre o bairro em que os alunos
residem e a escola; 4) as perguntas 10 e 11 se referiram à infraestrutura da escola, a fim
de extrair dos alunos o que consideraram positivo ou negativo nesse aspecto; 5) da
questão 12 até a 16, as perguntas se direcionaram para a relação de convívio que os
alunos mantém com a escola; 6) da questão 17 até a 19, as indagações tiveram como
objetivo captar as percepções dos alunos, referentes à preservação da escola enquanto
patrimônio público; 7) e, finalmente, as questões 20 até 23, sob a forma de perguntas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
751

abertas com respostas discursivas, trataram a respeito da escolha dos alunos para
estudar na escola e as percepções deles sobre a instituição.
Após a aplicação do questionário diagnóstico, realizado em sala e em
material impresso, as perguntas com respostas foram organizadas no Google Forms,
um formulário online personalizado, por meio do qual os dados e os resultados são
lançados em planilhas e armazenados automaticamente em nuvem no sistema do
Google Drive. Essas ferramentas são interessantes, primeiramente, pela sua
aplicabilidade didática e interativa, pois permitem que os colaboradores (no caso desta
pesquisa, foram os alunos) interajam por meio de um link, respondendo as perguntas
da pesquisa feita através do questionário; e, segundo, porque o processamento dos
dados em planilhas é feito de forma rápida e simplificada.
De acordo com o que se pretendia obter no resultado dos dados, o
formulário foi estruturado, obedecendo a seguinte ordem: 1) da questão 1 até a 19 com
perguntas objetivas de múltipla escolha com apenas uma assertiva; 2) da questão 20
até a 23, discursivas, proporcionaram a obtenção dos dados em números e foram
transformadas em perguntas de múltipla escolha com mais de uma assertiva, ou seja,
elaboradas no modelo “caixa de seleção”. Por se tratar de um mapeamento das turmas,
esse método foi escolhido para que os dados fossem obtidos em forma de gráficos,
aplicando, assim, o método quantitativo para que se obtivesse, em termos percentuais,
o resultado do questionário.
Segundo Richardson, “o método quantitativo caracteriza-se pelo emprego
da quantificação, tanto nas modalidades de coleta de informações, quanto no
tratamento dessas através de técnicas estatísticas, desde as mais simples até as mais
complexas”. (RICHARDSON apud Michael Samir Dalfovo, 2008, p. 77). Ainda no estudo
de Dalfovo, é apontado o método quantitativo-descritivo, o qual é direcionado para o
tipo de pesquisa que utiliza questionários e/ou entrevistas na coleta de dados,
apresentando variáveis distintas.
Com a utilização desse procedimento na primeira fase da pesquisa, foi
possível estabelecer uma inter-relação das hipóteses levantadas durante o processo
de investigação, com a complexa análise das diversas variáveis, resultantes da
subjetividade das respostas dos alunos apresentadas no questionário diagnóstico. Por
conseguinte, para não incorrer em alguns vícios do mau uso da História Quantitativa,
como orienta José D’Assunção Barros, foram utilizadas estratégias discursivas que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
752

combinaram os dados quantitativos com a problematização dos mesmos, de modo que


se teve o cuidado para não realizar uma análise que apresentasse resultados
meramente descritivos de informações numéricas. (BARROS, 2012).
A fase seguinte, por sua vez, consistiu em examinar a percepção dos alunos
sobre o cenário e os elementos materiais da escola por meio da análise de fotografias
de épocas distintas. Nesse método, a fotografia foi compreendida como um suporte de
memórias e costumes, através dos quais se investigou a relação dos sujeitos com a
cultura material da escola e se interpretou os discursos e intencionalidades presentes
nos diferentes contextos de produção das imagens.
A análise das fotografias ocorreu segundo os seguintes procedimentos: o
primeiro consistiu na observação direta, permitindo que os alunos fizessem uma
descrição minuciosa dos elementos observados nas imagens, como o espaço físico,
pessoas, vestimentas e objetos. Posteriormente, o segundo procedimento foi a análise
dos significados que cada elemento presente na foto possuía, permitindo que eles
demonstrassem sua compreensão sobre a distribuição do espaço físico da escola e o
modelo de construção; por que os alunos foram fotografados vestindo determinado
modelo de fardamento, assim como as formas como esses alunos se comportavam e
tratavam o espaço escolar. (TERRA, 2012).
Na realização dessa etapa, as fotografias escolhidas apresentaram
informações de três momentos diferentes da história da escola.
Para a análise do primeiro momento, foram selecionadas duas fotos, sendo
uma imagem de 1945 e outra de 1952. Ambas representam o período em que a escola
era conhecida como “Escolinha de Boa Vontade”, localizada dentro de um espaço da
Base Naval, cedido provisoriamente pela Marinha, onde permaneceu até o final da
década de 1950.
No processo de investigação do segundo momento, foram escolhidas duas
fotos, de modo que uma se refere ao período do ano de 1960 e a outra de 1973, momento
em que a escola passou por mudanças significativas, respectivamente, como a
construção de sua sede própria (dentro da Vila Naval, no bairro do Alecrim) e a inserção
de meninas para estudar na instituição, que, até o início da década de 1960, por ser uma
escola militar, só lecionava para meninos.
Na análise do terceiro momento, foram também selecionadas duas fotos,
sendo uma do ano de 1988 e outra do ano 2001, momento em que a escola,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
753

gradativamente, vai substituindo o modelo disciplinar militar por uma forma de atuação
pedagógica mais democrática e aberta ao diálogo entre professores e alunos.
Essas fotografias foram digitalizadas em formato JPEG, com tamanho de
238 KB, disponibilizadas para trabalhar com os alunos em sala de aula. No momento
da aula expositiva dialogada, as fotografias foram apresentadas em projetor
multimídia, para que todos os alunos pudessem fazer a observação direta em conjunto
e partilhassem as suas percepções. Posteriormente, na aula destinada à análise dos
significados, na qual os alunos registraram por escrito suas interpretações, as fotos
foram disponibilizadas em formato de papel impresso, em folha de ofício tamanho A4,
para que tivessem contato com a imagem e uma melhor proximidade física.
Durante o processo da realização das etapas mencionadas acima, o terceiro
referencial teórico-metodológico que fundamentou a investigação científica foi o
método de pesquisa Qualitativo explicitado por Hartmut Günther. Na pesquisa
qualitativa, a concepção do objeto de estudo é vista em sua historicidade, no que diz
respeito ao processo de desenvolvimento do indivíduo e no contexto no qual ele se
formou. (GÜNTHER, 2006). Ainda tratando do enfoque deste método, segundo Bonato
(2011, p. 01):

As denominadas metodologias qualitativas ‘privilegiam, de modo


geral, da análise de micro processos, através do estudo das ações
individuais e grupais’, propondo realizar um exame intensivo de dados
produzidos a partir de um exame minucioso de uma unidade social
circunscrita [...].

Portanto, para se ter uma melhor compreensão do objeto estudado, a


pesquisa qualitativa se baseia no “Princípio da Abertura”, proposto por Uwe Flick
(2000), o qual, ao invés de se prender a um único método padronizado, para coleta e
análise dos dados, pode fazer uso de vários métodos e técnicas adaptados ao caso
específico, ou seja, o método deve se acomodar ao objeto de estudo. (GÜNTHER, 2006).
Desta forma, esse método é flexível porque pode ser modificado e/ou adaptado,
conforme novos direcionamentos no decorrer do processo investigativo. Tendo em
vista que é passível de mudança na escala da observação, esse tipo de pesquisa possui
etapas importantes que devem ser seguidas, a saber: o delineamento, a coleta e a
análise dos dados.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
754

Embasado nos estudos de Mayring (2002), Günther aponta seis


delineamentos da pesquisa qualitativa: estudo de caso, análise de documentos,
pesquisa-ação, pesquisa de campo, experimento qualitativo e avaliação qualitativa.
Todavia, para este trabalho, interessa a análise de documentos e a pesquisa-ação.
Na análise de documentos, foram examinadas fontes documentais que
tratavam da história da escola, tais como: fotografias de épocas diferentes,
mencionadas em parágrafos anteriores. Essas imagens foram coletadas de três
arquivos diferentes: as fotografias dos anos de 1945, 1953 e de 1960, encontradas no
banco de imagens dos anexos da Dissertação de Mestrado de Maria Elizete Guimarães
Carvalho, apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em 1997; Já as fotografias
dos anos de 1973 e 2001 foram retiradas do acervo do álbum particular da E.E. Instituto
Ary Parreiras. Por fim, a fotografia do ano de 1988 foi cedida por Fabio Cortez.
A pesquisa-ação é um método de investigação participante no qual o
pesquisador interage com seu objeto de estudo por meio do movimento sistemático de
oscilação entre o agir no campo da prática e investigar sobre a mesma. Para tanto, a
modalidade dessa prática escolhida para ser aplicada neste trabalho foi explanada por
David Tripp, através da qual o pesquisador tem a liberdade de escolher ou projetar as
mudanças que serão feitas. (TRIPP, 2005).
A escolha pelo método qualitativo para o desenvolvimento desta pesquisa
partiu da preocupação em utilizar uma metodologia adequada para investigar as
relações complexas que constituem os processos de formação de identidades, laços de
pertencimento e o campo de estudo sobre história e memória, elementos centrais de
todo esse processo investigativo aqui desenvolvido.

MEMORIAL VIRTUAL INTERATIVO: FERRAMENTA PEDAGÓGICA NA PRODUÇÃO DO


CONHECIMENTO HISTÓRICO
Considerando a relevância de estabelecer uma vinculação entre o referencial
teórico apresentado anteriormente com a perspectiva de conquistar avanços na prática
do profissional de História dentro e/ou fora da sala de aula, o produto elaborado nesta
pesquisa foi um memorial virtual da E.E. IAP, que, por meio da articulação entre Ensino
de História e Educação Patrimonial, possibilite a navegação online dos alunos para
conhecer e se apropriar da memória histórica da escola, por meio de um acervo virtual

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
755

e interativo, com fontes documentais e iconográficas do período de fundação da escola


até os dias atuais, o qual ficará disponível para acesso na Internet, pesquisa Google.
Em adição à função de apenas armazenar informações do passado da escola,
esse memorial virtual tem por objetivo oferecer um suporte digital aos documentos
físicos, organizando-os de forma dinâmica e interativa, promovendo uma experiência
baseada na cultura digital, cada vez mais em ascensão, diferentemente da tradicional,
que necessitava de um suporte material e um espaço delimitado pré-definido para
poder existir e dar significado ao patrimônio.
Possibilitada por esse acervo específico, a experiência histórica parte do
entendimento de que os significados sociais e simbólicos do patrimônio histórico e
cultural atualmente são partilhados pelos sujeitos através de suportes diversos, os
quais não lhes tiram o sentido, no entanto lhes dão uma amplitude maior de alcance.
Esse recurso facilitará a realização das pesquisas dos alunos sobre a história da escola
e a história local, contribuindo para os alunos perceberem que a história não é
estanque, presa a um passado distante, mas está em constate processo de construção
e desconstrução, do qual eles mesmos são sujeitos ativos.
A escolha do memorial virtual como produto para ser utilizado como uma
ferramenta pedagógica no ensino de história com os alunos do 6º ano do IAP partiu da
seguinte constatação: na internet, em pesquisa Google, não aparece nenhum site em
que conste narrativas ou artigos a respeito da história desta escola. Apenas no site da
Wikipedia, aparece a biografia do almirante que deu nome ao Instituto, citando, no final
do texto, a atuação dele em Natal, na organização da Base Naval, informando que foi
feita uma homenagem a ele, colocando o seu nome em um navio e na própria Base
Naval, mas sem fazer referência alguma à instituição escolar.
O que aparece no Google sobre a escola são sites informando endereço,
localização e algumas características básicas da estrutura da mesma. No site do
“Planeta Educar”, que é um guia de instituições de ensino, constam apenas o endereço
e o telefone para contato. No espaço intitulado “sobre”, destinado à apresentação da
escola, aparece uma mensagem informando: “Esta instituição ainda não cadastrou
apresentação!” e informa que a escola não possui website.
Aparece, também, na pesquisa pela internet uma reportagem no site da
Tribuna do Norte, publicada em julho de 2015, mostrando a queda no nível de
desempenho da instituição; e, na fanpage do Facebook, apesar de ter um total de dois

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
756

mil e vinte e quatro seguidores, parece ser uma página virtual pouco alimentada, uma
vez que, no espaço destinado ao perfil da escola, só aparece a seguinte frase: “Esta
página tem cheiro de saudade. Feita pra você que conhece o Instituto Ary Parreiras,
estudou lá ou morou na Vila Naval, enfim... Participe!”, contudo nenhuma outra
informação ou narrativa que reporte a sua história é apresentada.
Na parte dos álbuns de fotografias, foram publicadas apenas treze fotos na
linha do tempo, vinte e uma fotos nos arquivos de dispositivos móveis, três fotos de
capa, quatro do perfil e uma no álbum intitulado “Fotos e fatos”, publicados em julho
de 2012. Em todos os álbuns, apenas duas fotos parecem ser da década de 1990; as
demais são atuais. Em outras palavras, mesmo havendo um pequeno registro da
memória histórica da escola, através dos dados existentes nesses álbuns, eles não
possuem uma dinâmica de interconexão satisfatória e utilizável na produção de
conhecimento no ensino de História.
Este fator é um problema preocupante porque, no mundo em que vivemos,
atualmente marcados pela “Era digital”, na qual tem se dado muita ênfase aos fatos,
acontecimentos e informações publicados e veiculados nos meios virtuais, a ausência
de publicações a respeito de algo, além de dificultar na realização de pesquisas, lhe
atribui significado e sentimentos negativos. No caso do Instituto Ary Parreiras, pode-
se pensar que não se tem nada de memória ou lembranças importantes para mostrar.
Segundo Elison Antônio Paim, “A condição necessária para que haja
memória é o sentimento de continuidade, presente naquele que lembra”. (2010, p. 88).
Na sociedade de memórias fluidas, que se apresenta no século XXI, esse sentimento de
continuidade é externado na vinculação entre vida real e os ciberespaços. Portanto,
oferecer um suporte virtual e interativo para o acervo material dessa escola, atualiza-
o, configurando-o em uma potencial estratégia pedagógica para o ensino e
aprendizagem histórica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola pelo seu papel social e pelas relações que se desencadeiam dentro
do seu espaço, apresenta-se como uma rica fonte de estudos para explorar as
potencialidades do ensino de história e educação patrimonial. Fazer uso desse
potencial, que o espaço escolar possui, articulando-o com novas questões que se
apresentam na sociedade moderna de relações fluídas e conseguir despertar nos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
757

alunos uma consciência histórica sobre os lugares materiais que os cercam,


proporciona o protagonismo na construção de sua história.
Refletir sobre as significações das representações simbólicas que os
lugares de memória oferecem, é uma pauta urgente nessa sociedade “virtual”. Desse
modo, o ensino de História e a educação patrimonial são importantes, na perspectiva de
problematizar os lugares materiais de memória, a fim de fazer uma articulação de
forma crítica entre os ciberespaços e os lugares de memória, que são, em si, ao mesmo
tempo, materiais e simbólicos, carregando um passado que não pode deixar de ser
analisado como uma possibilidade de investigação da história.

REFERÊNCIAS
APOLINÁRIO, Maria Raquel (org.). Projeto Araribá: História, 9º ano. São Paulo:
Moderna, 2014.

ARRUDA, Eucidio Pimenta. Museu Virtual, prática docente e ensino de História:


apropriação dos professores e potencialidades de elaboração de um museu virtual
orientado ao visitante. In: IX ENOCONTRO NACIONAL DOS PESQUISADORES DO
ENSINO DE HISTÓRIA DA UFSC, 2011, Florianópolis. Anais Eletrônicos do IX Encontro
Nacional de Pesquisadores do Ensino de História. Florianópolis: UFSC, 2011. Disponível
em: https://moodle.ufsc.br/mod/resource/view.php?id=456836. Acesso em: 23 jan.
2017.

BARROS, José D’Assunção. A história serial e história quantitativa no movimento dos


Annales. História Revista: UFG, Goiânia, v. 17, n. 1, jan./jun. 2012. p. 203-222.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos.


3°ed. São Paulo: Cortez, 2009.

BÔAS, Bruno Villas. IBGE: 94,2% dos brasileiros usam internet para trocar textos e
imagens. Rio de Janeiro. Valor Econômico, 2018. Disponível em:
http://www.valor.com.br/brasil/5337837/ibge-942-dos-brasileiros-usam-internet-
para-trocar-textos-e-imagens. Acesso em: 23 jun. 2018.

BONATO, Massimo. A Micro-História e a metodologia qualitativa de pesquisa. In: III


ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES DA
ANPUH, 2011, Maringá. Anais Eletrônicos do III Encontro Nacional do GT História das
religiões e das religiosidades. Maringá: ANPUH, 2011. Disponível em:
http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html. Acesso em: 04 mar. 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
758

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

CAIMI, Flávia Eloisa. Meu lugar na história: de onde eu vejo o mundo in: OLIVEIRA,
Margarida Maria Dias de (coord.). História: Ensino Fundamental, coleção Explorando o
Ensino. Brasília: Ministério da Educação, 2010.

CAINELLI, Marlene. O que se ensina e o que se aprende em História in: OLIVEIRA,


Margarida Maria Dias de (coord.). História: Ensino Fundamental, coleção Explorando o
Ensino. Brasília: Ministério da Educação, 2010.

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DALFOVO, Michael Samir; LANA, Rogério Adilson; SILVEIRA, Amélia. Métodos


quantitativos e qualitativos: um resgate teórico. Revista Interdisciplinar Científica
Aplicada, Blumenau, v.2, n.4, Sem II. 2008. p.01-13.

DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E.P. Thompson e Natalie


Davis. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FERNANDES, Antônia Terra de Calazans. Produção de material didático. In: Hélder do


Nascimento Viana et al. Cidade e Diversidade: itinerários para a produção de materiais
didáticos em história. Natal: EDUFRN, 2012.

FILHO, Dalson Britto Figueiredo et al. O que é, para que serve e como se faz uma meta-
análise?. Teoria & Pesquisa: revista de Ciência Política, São Paulo, n 2, jun/set. 2014. p.
205 – 228.

FLICK, U. Entrevista episódica in: M. W. Bauer & G. Gaskell, G. (Orgs.). Pesquisa


qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2000.

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas: Papiros, 1993.

FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & Ensino de História. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

GEVEHR, Daniel Luciano. A crise dos lugares de memória e dos espaços identitários no
contexto da modernidade: questões para o ensino de história. Revista Brasileira de
Educação, Rio de Janeiro, v. 21, n. 67, Out/Dez. 2016. p. 945 – 962.

GEVEHR, Daniel Luciano, DILLY Gabriela. A educação patrimonial no contexto regional:


reflexões sobre o patrimônio na perspectiva contemporânea. Revista de História e
Geografia Ágora, Santa Cruz do Sul, v.17, n. 02, jul./dez. 2015. p. 10-23.

GUIMARÃES, Joaquim Francisco Soares et. al. O conceito de memória na obra “Matéria
e memória de Henri Bergson. In: VI COLÓQUIO INTERNACIONAL “EDUCAÇÃO E
CONTEMPORÂNEIDADE”, São Cristovão, 2012.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
759

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos Trópicos: O Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n 1.1988. p. 5 – 27.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. As transformações do patrimônio: Da retórica da


perda à reconstrução permanente in: TAMASO, Izabela Maria. LIMA FILHO, Manuel
Ferreira (orgs.). Antropologia e Patrimônio Cultural: trajetórias e conceitos. Brasília:
Associação Brasileira de Antropologia, 2012.

GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa Qualitativa Versus Pesquisa Quantitativa: Esta É a


Questão?. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 22, n 2, mai/ago. 2006. p. 201 – 210.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

MATTOZZI, Ivo. Currículo de História e Educação para o Patrimônio. Educação em


Revista, Belo Horizonte, n. 47, jun. 2008. p. 135 – 155.

MELLO, Daniel. Pesquisa: 80% da população brasileira entre 9 e 17 anos usam a


internet. São Paulo: Agência Brasil, 2016. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/pesquisa-e-inovacao/noticia/2016-10/pesquisa-80-da-
populacao-brasileira-entre-9-e-17-anos-usam. Acesso em: 22 jun. 2018.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Khoury.
Projeto História, São Paulo: PUC-SP, n. 10, dez. 1993. p. 7-28.

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Introdução in: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de
(coord.). História: Ensino Fundamental, coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério
da Educação, 2010.

PAIM, Elison Antônio. Lembrando, eu existo in: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de
(coord.). História: Ensino Fundamental, coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério
da Educação, 2010.

PROST, Antoine. Doze Lições sobre História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

SANTOS, José Ednilson (et. al). O espaço escolar: conhecer para compreender o ensino
de Geografia na Escola Estadual Theotônio Vilela Brandão, Maceió/AL. Revista Gestão
Universitária, Alagoas, v. 4, ago. 2015. p. 1 – 19.

SOARES, Inês Virgínia Prado. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo
Horizonte: Fórum, 2009.

SOUZA, Igor Alexandre Nascimento de. Educação Patrimonial nos documentos


patrimoniais: Constituição de 1988 e os planos de salvaguarda in: TOLENTINO, Átila
Bezerra (org.). Educação patrimonial: educação, memórias e identidades. João Pessoa:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 2013.

SOUZA, Rosa Fátima de. Preservação do Patrimônio Histórico Escolar no Brasil: notas
para um debate. Revista Linhas, Florianópolis, v. 14, n. 26, jan./jun. 2013. p. 199 – 221.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
760

TENFEN, Danielle Nicolodelli. Editorial: Base Nacional Comum Curricular


(BNCC). Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 33, n. 1, abr. 2016. p.1-
2.ISSN 2175-7941. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/2175-7941.2016v33n1p1>.
Acesso em: 05 jan. 2018.

TEIXEIRA, Maria Lúcia Aguiar. A escola como lugar de memória. In: XXVIII SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA- LUGARES DOS HISTORIADORES: VELHOS E NOVOS
DESAFIOS. Florianópolis: UNISINOS, 2015.

TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São


Paulo, v.31, n. 3, Set/Dez. 2005. p.443 – 466.

VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion et al. (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de
Janeiro: Campus, 1997.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
761

OS BENS CULTURAIS PRESENTES E AUSENTES DO MUSEU DO


SERIDÓ, CAICÓ/RN: EDUCANDO PARA O PATRIMÔNIO NA
EDUCAÇÃO BÁSICA
Ana Cristina Monteiro de Araújo530
Aline Vale de Araújo531
Patrícia Emanuelly dos Santos Bezerra532
Orientador: Prof. Dr. Abrahão Sanderson Nunes Fernandes da Silva533

INTRODUÇÃO
O presente artigo teve origem a partir da participação das autoras em um projeto
de extensão intitulado “Extroversão das coleções de fotografias e arte santeira do
Museu do Seridó, em escolas no Seridó potiguar”, com isso e através dos dados obtidos
nesse projeto, foi possível a escrita deste artigo.
A partir da experiência adquirida ao longo do projeto foi oportuno ampliar a
discussão do tema, e para tanto se optou por abordar a Arte Santeira e as Fotografias
de José Ezelino, predominante no acervo do museu, tendo em vista a comunicação
desse acervo para com a comunidade seridoense.
Dentro desse contexto, almeja-se discutir como a cultura material presente no
Museu do Seridó, pode contribuir para o processo de ensino-aprendizagem do alunado
seridoense a partir de ações práticas em salas de aulas da Educação Básica, nos níveis
Fundamental e Médio, na cidade de Caicó/RN, dentro de uma perspectiva de
socialização do conhecimento acerca da memória e história do Seridó Potiguar.
Desse modo, elencou-se como objetivo geral de pesquisa discutir/apresentar
como a produção material do Museu do Seridó, em Caicó/RN, pode ser usada e como
pode contribuir para o processo de ensino-aprendizagem. A partir desse objetivo é
possível despertar o interesse das comunidades locais ao acesso às coleções presentes

530 Discente do Curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó. E-mail:
ac.monteiroaraujo@gmail.com.
531 Discente do Curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó. E-mail: alinevale3@gmail.com.
532 Discente do Curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó. E-mail:


patriciaemanuelly12@hotmail.com.
533 Docente do Departamento de História do CERES (DHC), da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó. E-mail:
abrahao@ufrnet.com.br.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
762

no museu, como também socializar as coleções existentes no acervo do Museu do


Seridó e assim poder discutir o ensino de História a partir da cultura material.
A História local se tornou comum em propostas curriculares e em produções
didáticas há algum tempo. Pois, se percebeu que tratar das questões do cotidiano
vinculando a história de vida dos estudantes tem possibilitado inserir essas
experiências na sociedade de modo a promover uma integração de uma história
individual com uma história coletiva. Vale salientar, que os estudos sobre o local e o
cotidiano não se reduz a uma facilitação da História (SCHIMIDT, 2007).
Segundo Santos (2014) são justamente nos ambientes do cotidiano que nos
deparamos com os espaços de memórias, onde os sujeitos constroem suas identidades,
estabelecendo uma relação entre a comunidade local e o passado. Nesta perspectiva
do estabelecimento de uma relação entre o local e o passado podemos inserir os
estudos da História, na lógica dos estudos voltados para o local.
Nessa perspectiva, será abordada neste trabalho uma parte da fundamentação
teórica da pesquisa, a qual diz respeito aos estudos que se preocuparam com a relação
entre história local e ensino de história. Em um primeiro momento, o texto investiga as
contribuições teóricas no campo do ensino da história e as investigações que pensaram
o ensino de história local enquanto uma estratégia pedagógica de aproximação com os
estudantes.
Dessa maneira torna-se imprescindível trabalhar os conceitos de patrimônio
histórico e cultural, como também a temática sobre ensino de história local e,
consequentemente, o processo de ensino-aprendizagem na perspectiva da educação
patrimonial.
Sendo assim, o Museu do Seridó é um campo riquíssimo como ferramenta
pedagógica, possibilitando caminhos para o processo de ensino-aprendizagem, bem
como mostrar a importância de desenvolver meios de conservação e valorização do
patrimônio histórico-cultural do povo caicoense, e ainda como conteúdo pragmático de
ensino, em que as coleções podem ser usadas como forma de ensino de história local
(SCHIMIDT, 2007).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
763

REFERENCIAL TEÓRICO
Para a realização dessa pesquisa foram utilizados como embasamento teórico
alguns autores que já vem realizando trabalhos sobre a temática escolhida, e através
dessas referências, foi possível trazermos uma discussão acerca de alguns conceitos
que remetem ao tema “os bens culturais presentes e ausentes do museu do Seridó”,
tais como: patrimônio histórico e cultural, ensino de história local e processo de ensino-
aprendizagem na perspectiva da educação patrimonial.
Inicialmente é cabível discutir alguns aspectos históricos sobre a museologia,
onde salientamos que no século XIX, a Primeira Revolução dos museus traz a
equiparação de dois princípios da ação museológica, que foram à democratização do
acesso aos acervos e sua conservação (BREFE, 1998).
Na sociedade contemporânea, essas perspectivas foram revigoradas, por
exemplo, com a criação de tecnologias digitais a partir dos anos 1980. Na primeira
metade do século XX, adeptos da perspectiva crítica na museologia passam a entender
o espaço do museu e as temáticas a ele relacionadas, como, necessariamente, tendo
que ser construídas para além de discursos de dominação e práticas ideológicas, trata-
se, pois, de uma visão menos custodial e tecnicista dos museus (ARAÚJO, 2013).
Nesse sentido, tal perspectiva vem implicando em abordagens contemporâneas
ligadas a imaterialidade, identidade e mediações, ganhando fôlego a partir da Nova
Museologia, que se apropria do conceito de território como lugar geograficamente
delimitado aonde sujeitos e comunidades vivem ou se apropriam e passa a defender o
museu e as ações a ele ligadas como veículos de transformação social (LOPES, 2014).
Segundo Bondia (2002),

A utilização de objetos ou mesmo de réplicas ou representação desses


é entendida como recurso pedagógico que oportuniza uma melhor
apreensão dos conteúdos”. Essa apreensão é, pois, ato de experiência,
entendida neste sentido como algo que "nos toca" e que pressupõe
pensar a educação, ou o processo pedagógico a partir da relação
"experiência/sentido (BONDÍA, 2002: 21).

Acrescenta-se ainda que o recurso do objeto, como uma fotografia, por exemplo,
enquanto algo manipulável e contextualizado é ferramenta que está para além da pura
e simples informação, isto porque, também entendemos que informação não é
necessariamente experiência (BONDÍA, 2002).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
764

Desse modo compreendemos também que o desvelar dos objetos, tal qual
preconiza em grande parte a "educação museológica" constitui-se em um processo de
descobrimento no qual há duas perspectivas, a estética e a científica (BITTENCOURT,
2004).
Em relação ao conceito de “patrimônio”, vale salientar que essa palavra vem do
latim patrimonium e significa “herança paterna, bens de família”. Para Lopes (2014),
esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada as estruturas familiares,
econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo.
Lopes (2014), afirma ainda que a palavra “patrimônio” foi requalificada ao longo
de todo o século XX por diversos adjetivos genéticos, naturais e históricos, e
atualmente ela designa um bem destinado ao uso, fruto de uma comunidade constituída
pela acumulação de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado
comum: “obras e obras-primas das artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de
todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos”.
Segundo Silva e Gontijo (2010), a apreciação por alguns objetos cresce ao longo
do século e ganha importância, surgindo à necessidade de criar normas e códigos que
os regessem. Embora na época do Renascimento já existisse a noção de atribuir valor
histórico e artístico por conta dos antiquários, é somente a partir da Revolução
Francesa, com a formação dos Estados–nacionais, que a noção de Patrimônio recebe
seus primeiros contornos.
De acordo com Silva (2013), a França do século XVIII, foi palco de muitas
mudanças políticas e sociais, propiciou que as noções de patrimônio e preservação
deixassem os antiquários e colecionadores e se tornassem públicas. Em 1789, com a
queda da monarquia e da aristocracia, a burguesia institui um novo Estado na França, e
para estes, preservar os bens antes representados por essas classes, clero e nobreza,
seria como se os mesmos ainda se mantivessem no poder. Portanto, a solução seria a
destruição daqueles bens e monumentos, gerando um grande quadro de vandalismo
em toda a França.
Então, o governo revolucionário criou um processo de regulamentação de
proteção a estes bens, com o argumento de que serviriam para fins pedagógicos. E com
o fim do Antigo Regime se formam as ciências e os profissionais especializados para
guardar, proteger e justificar uma política pública de defesa do patrimônio histórico
nacional. Assim, a noção de patrimônio se consolida como conjunto de bens de valor

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
765

cultural de propriedade de toda a nação, cumprindo as suas várias funções (LOPES,


2014).
Assim, os bens culturais patrimoniais eram selecionados para representar a
nação de acordo com o interesse do que cada Estado-nação desejava fazer memória.
Como afirma Lopes (2014), essa forma de proteger os bens em processo de destruição
convence a nação a se apropriar do seu patrimônio, já que esse sentimento de
“apropriação” implica em uma atitude de poder que gera autoridade de ação à medida
que vão definindo identidades.
Quando o indivíduo sentir que está ligado àquele bem de alguma maneira, isso
acaba despertando nele o sentimento de pertencimento, e diretamente o resultado
disso é o desejo de preservar, de ver a continuidade e a integridade de algo que faz parte
da sua identidade e da sua memória (SILVA, 2013).
Segundo com as colocações dos autores que utilizamos como embasamento
teórico, não pode esquecer que tanto a memória como o patrimônio trabalha com
lembranças e esquecimentos. A constituição de patrimônios nacionais é feita através
de determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e com instrumentos
jurídicos específicos, que selecionam bens e lhes atribuem valor enquanto símbolos da
História do Estado (LOPES 2014).
Já na pesquisa de Silva e Gontijo (2010) o autor afirma que o processo
desenvolvido ao longo da história da gestão do patrimônio cultural no Brasil, os
debates teóricos desembocaram, nos últimos anos, numa abordagem multidisciplinar
a partir das artes, da história e da antropologia para enfrentar a dicotomia arte culta ou
erudita e arte popular. Sem adentrar os parâmetros que regem os conceitos definidores
da concepção de arte, vale destacar que a inserção, no século XX, da moderna
concepção antropológica de cultura serviu para atenuar determinadas questões.
Segundo o autor isso se dá porque, de acordo com essa nova definição, cultura
significa que a ênfase está nas relações sociais ou mesmo nas relações simbólicas, e
não nos objetos e nas técnicas. Dessa forma, foi possível trazer o conceito
antropológico de cultura para dentro das categorias que definem o patrimônio,
permitindo estender sua abrangência ao universo do fazer e do existir tradicionais
contidos nas expressões populares (SILVA; GONTIJO, 2010).
Dentro desse contexto Lopes (2014) faz em sua pesquisa uma discussão falando
de materialidade e imaterialidade dos bens culturais, onde conclui que o patrimônio

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
766

cultural tem sempre como suporte, valores materiais. Isso vale também para o
chamado patrimônio imaterial, pois se todo patrimônio material tem uma dimensão
imaterial de significado e valor, por sua vez todo patrimônio imaterial tem uma
dimensão material que lhe permite realizarem-se, as diferenças não são ontológicas,
de natureza, mas basicamente operacionais.
Já trazendo a discussão para a questão do ensino de história local as reflexões
acerca da importância do ensino de história local remontam aos primeiros clássicos da
pedagogia. Pois no Emílio, Rousseau orientava a aprendizagem a partir da observação
da natureza e do entorno. No século XX, John Dewey (1913) apontava para a relação
entre a História local e a aprendizagem infantil, enfatizando que a criança tinha um
interesse ímpar por aquilo com que se relacionava diariamente (SCHMIDT, 2007).
Outro pensador que também indicava a História Local como uma forma de
evidenciar os pontos escuros da história geral era Roger Cousinet (1950), o mesmo
afirmava que reconhecia “mais na história local um valor pedagógico porque ela coloca
a criança em presença de realidades” (SCHMIDT, 2007).
Apesar disso, apontava algumas ressalvas em relação ao tema. Inicialmente,
porque a referência ao meio natural da criança seria uma proposição ambígua, visto que
nem sempre o ambiente natural condiz com o ambiente real – construído por meio da
ficção, das leituras e do cinema. Ainda, não acreditava que o estudo da história local
acarretaria o amor ao entorno ou o enraizamento das crianças nos lugares em que
viviam (SUKOW; URBAN, 2017).
O interesse em desenvolver pesquisas que tratam da história local não é recente.
Diversos estudiosos já desenvolveram trabalhos nessa área. A abordagem sobre
história local, no que se refere ao ensino de História foi alvo de grande debate entre
historiadores no Brasil, que valorizaram esta abordagem por possibilitar novas visões
sobre o processo de aprendizado da História e, a influência do meio em que o aluno e a
escola estão inseridos (CAINELLI; SANTOS, 2014).
Segundo Cainelli e Santos (2014, p. 161),

No Brasil, essa temática a respeito da história local, já havia sido


proposta pelo menos há duas décadas, com diferentes formas de
abordagem, sendo que nas décadas de 1970 e1980, as propostas
curriculares foram organizadas em círculos concêntricos, com
abordagem dos estudos sociais partindo da realidade mais próxima do
aluno. Entre as décadas de 1980 e 1990, predominou-se a histórica

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
767

temática, sendo a história local colocada como estratégia pedagógica,


para garantir o domínio do conhecimento histórico. A história local
demanda uma série de ações teórico-metodológicas no seu tratamento,
pois muitas vezes o seu estudo se dá com o vivenciado, ou seja, a
aproximação efetiva com os indivíduos, objeto de estudo, torna-se a um
estudo onde há um apego afetivo maior, tornando-a dessa maneira um
fator de motivação para a aprendizagem. Porém, o trabalho em si não
pode eximir-se das relações com o nacional ou geral, pois, em muitas
situações, os fatos locais não se explicam em si mesmo, tendo a
necessidade de uma relação com dimensões mais amplas de análise
histórica.

Com isso as novas experiências desenvolvidas nas escolas demandaram a


criação de espaços nos cursos de graduação voltados à reflexão sobre a prática do
ensino de história. Como exemplos, foram criados nas instituições de ensino superior
laboratórios de ensino para atender as demandas da área, a formação de professores
do ensino de história passa a ser objeto de reflexão e pesquisa nos meios acadêmicos
(GERMINARI, 2016).
Segundo Germinari (2016), as experiências pedagógicas, a formação do
profissional de história; a produção do conhecimento histórico na escola, o significado
da utilização e a análise dos conteúdos do livro didático; o ensino de história temática
como proposta para romper com o ensino de História tradicional; reformas curriculares
e a utilização em sala de aula de novas linguagens (música, fotografia, literatura, filmes,
história em quadrinhos) passaram a ser objeto de reflexão e pesquisa.
Portanto, o estudo sobre História local requer o conhecimento sobre as tensões
existentes entre o que chamamos de regional com o nacional, estabelecendo uma
relação de identidade por conta de uma memória refletida em acontecimentos
próximos e vivenciados pelos sujeitos (SANTOS, 2014).
Ainda na pesquisa de Santos (2014, p. 15),

Foi perceptível que a História local é pouco trabalhada na escola, se


levarmos em conta os anos finais do Ensino Fundamental e Médio, para
isso basta observar os livros didáticos, amplamente usados nesses
níveis de ensino. O passado é uniformizado a fim de estabelecer um
parâmetro do desenvolvimento humano desde a antiguidade até os
dias atuais, assim, o estudo da História carece para maior parte dos
estudantes de um sentido. Dessa maneira a História ensinada parece
algo distante, pois ocorre uma enorme distância entre a realidade
vivenciada pelos alunos e os conteúdos trabalhados, o estudante se
torna mero espectador de fatos, não necessitando esforços no sentido
de qualquer reflexão ou elaboração.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
768

Para Schmidt (2007), o trabalho com a História local pode ser instrumento para
a construção de uma história mais plural, menos homogênea, que não silencie a
multiplicidade de vozes dos diferentes sujeitos da história. Portanto, esta forma de
estudo pode colaborar para um processo de reflexão sobre a realidade se trabalhada
numa perspectiva exploratória das possibilidades de compreensão dos
acontecimentos do passado a partir da realidade local.
Dessa maneira, acredita-se que o presente trabalho através da discussão de
como a cultura material presente no Museu do Seridó, Caicó/RN, possa contribuir para
o processo de ensino-aprendizagem do alunado seridoense a partir de ações práticas
em salas de aulas da Educação Básica, nos níveis Fundamental e Médio, na cidade de
Caicó, dentro de uma perspectiva de socialização do conhecimento acerca da memória
e história do Seridó Potiguar.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A metodologia que foi utilizada nesta pesquisa consistiu em atender os objetivos
esperados, se deu através de uma pesquisa exploratória de cunho teórico, bibliográfico
e qualitativo, onde incialmente foi realizado todo um levantamento bibliográfico acerca
do tema e de seus conceitos norteadores, e do objeto de estudo, buscando-se por
materiais como: livros, capítulos de livros, teses, dissertações, monografias, artigos de
revistas científicas, leis, decretos-lei, resoluções, e sites de instituições renomadas e
qualificadas. Como também, a coleta de informações e dados relevantes às discussões
sobre assuntos pertinentes ao tema.
A escolha por essa metodologia se deu pela necessidade de que para qualquer
tipo de pesquisa é necessário inicialmente estabelecer uma metodologia específica que
viabilize a escolha de instrumentos e análises pertinentes na busca por respostas e
elucidações de fatos anteriormente questionados.
Neste trabalho, optamos por apresentar uma definição metodológica que se deu
a partir da pesquisa bibliográfica e documental como tipologias norteadoras do
desenvolvimento do trabalho. Desse modo escolhemos por delinear o texto segundo
os escritos de alguns autores que a partir de seus estudos esclareceram e sustentaram
hipóteses levantadas acerca do objeto em questão.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
769

A metodologia é constituída por levantamentos bibliográficos acerca da


Educação Patrimonial e da Museologia aliadas a História Local e aos processos
técnicos relacionados ao trabalho museológico fomentado por meio da reprodução e
do contato, visual e táctil, dos educandos com as coleções de fotografias, do espaço
citadino e de famílias seridoenses, bem como da arte santeira, custodiadas no Museu
do Seridó. Respectivamente, ainda do ponto de vista metodológico, realizam-se oficinas
interdisciplinares e transdisciplinares sobre o uso da cultura material como recurso
pedagógico para o ensino de História.
Nas imagens abaixo é possível ver algumas etapas da metodologia que por se
tratar de um trabalho que ainda encontra-se em fase de execução, trazemos então
resultados prévios, onde como pode ser visto nas figuras 01 e 02, já foi realizada toda
a etapa de registros fotográficos das imagens sacras do acervo do museu, como
também toda a etapa da curadoria, fotografia e identificação das imagens sacras e
fotográficas.

Figuras 01 e 02: Registros fotográficos das imagens sacras e etapa da curadoria.

Fonte: Acervo dos autores.

Ainda nessa etapa de identificação das peças do acervo do museu foram


identificadas e fotografadas as imagens sacras de algumas santas (Figuras: 03, 04 e
05).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
770

Figuras 03, 04 e 05: Registros fotográficos das imagens sacras de Santa Rita de Cássia, Nossa
Senhora Sant’Ana e Nossa Senhora do Carmo.

Fonte: Acervo dos autores.

Foram realizadas também no âmbito dessa pesquisa entrevistas como pessoas


que conhecem todo o processo de criação do Museu do Seridó, entre eles com o
Monsenhor Antenor Salvino de Araújo, fundador do Museu (Figura 06), e foi registrado
também o acervo de fotografias existentes no acervo do museu (Figuras 07, 08 e 09).

Figura 06: Entrevista com monsenhor Antenor Salvino de Araújo (Fundador do Museu).

Fonte: Acervo dos autores.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
771

Figura 07, 08 e 09: Família seridoense (Data: Aprox. 1903 à 1952); Mulher com adereços
religiosos (Data: Aprox. 1903 à 1952) e Família seridoense

Fonte: Registro fotográfico do acervo do Museu.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
O Museu do Seridó é um retículo do Patrimônio histórico-cultural da população
de Caicó- RN e do povo seridoense em geral (Figuras 10 e 11). O uso da produção
material presente no museu supracitado mostrou-se como componente angular no
processo de ensino-aprendizagem, pois permite que os discentes entrem em contato
com uma produção material e imaterial de sua própria realidade, permitindo um
processo de ensino mais efetivo, pois sua composição é criada através de elementos
presentes na realidade sociocultural dos discentes, superando o fosso do que é
ensinado e realidades dos alunos e alunas (BITTENCOURT, 2004) (MALTÊZ et. al., 2010).

Figuras 10 e 11: Fachada do Museu do Seridó (Agosto/2017); Fachada do prédio construído pela
UFRN na parte de trás das antigas instalações (Agosto/2017).

Fonte: Registro fotográfico das autoras.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
772

Como afirma Allard e Landry citados por Gevehr e Dilly:

É através da identificação do sujeito com o patrimônio cultural, que


ocorre – ou não – a aprendizagem, na medida em que se estabelece um
vínculo com o objeto, nesse caso o patrimônio (seja ele tangível ou
intangível). Afinal, a relação de apropriação desse patrimônio, como
ocorre com as peças de um museu, “inclui ainda dimensões afetivas,
estéticas, societárias e sociais”. (ALLARD e LANDRY, 2009, p.21 apud
GEVEHR e DILLY, 2015, p. 15).

Neste sentido, de possibilitar a sensibilidade quanto ao patrimônio e


pertencimento, a educação patrimonial é visto como,

Um mecanismo através do qual é possível favorecer o contato das


pessoas para com o patrimônio cultural, visando o conhecimento que
possa resultar em valorização e consequente preservação dos bens
culturais. (GEVEHR e DILLY, 2015, p. 12)

Segundo Gevehr e Dilly (2015, p. 12-13),

A educação patrimonial não é vista aqui como uma finalidade em si


mesma, mas como forma de reorientação sociocultural, de valorização
e pertencimento. Devido a isto, o caráter pedagógico da educação
patrimonial se dá, de forma mais efetiva e significativa – enquanto
instrumento pedagógico – na esfera regional, na qual se produzem
significados diretamente relacionados e articulados com as
singularidades do lugar, no qual o patrimônio e os sujeitos habitam.
Nesse contexto, os lugares, os objetos e as diferentes manifestações
que constituem o patrimônio dessas comunidades, passam a ser
compreendidos como expressões culturais, portadoras de
historicidade, que por sua vez, as representam e dão certo significado
ao grupo presente nessa esfera local/regional.

Neste âmbito a Educação Patrimonial através do uso do Museu do Seridó deve


ser vista por meio de uma relação dialógica, em que o Museu é um lugar de memória
que pode ser revisitado pelos discentes, reafirmando sua identidade cultural e histórica
por meio da história e da cultura material e imaterial, bem como, noções de Patrimônio
Histórico e Cultural, buscar o interesse ao acesso às coleções e sua preservação,
justificada pela sua importância para a formação da história local.
Concordando com Schmidt (2007), acredita-se que a História local promove nos
estudantes a busca da compreensão do quanto há de História em sua vida na
perspectiva da própria construção. Nessa perspectiva, aponta a pesquisadora, os

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
773

estudantes podem notar os elementos externos a ele e interagir com situações


próximas e distantes, pessoais e estruturais, bem como, as relações temporais e
espaciais.
Desse modo, acredita-se que estudos a respeito dessa temática, oferecem
extrema contribuição para o licenciado em História, acerca do exercício e prática de
ações didático-pedagógicas de caráter interdisciplinar no processo de formação do
professor de história, possibilitando, através do uso da educação patrimonial em
conjunto com o ensino de História Local, a criação de um campo de ligação entre a
disciplina ensinada e a realidade dos discentes.
Portanto espera-se que com as ações realizadas possamos levar o corpo
discente a refletir sobre eles mesmos e acerca do patrimônio cultural, a partir da
cultura material e imaterial, podendo ser, também, entendido como forma de contribuir
para o reconhecimento a respeito da diversidade cultural e dos bens de natureza
histórica, contextualizados a partir de sua produção e de seu uso.
Esperamos utilizar a Educação Patrimonial aliada aos princípios da museologia,
como forma de levar os indivíduos a refletir sobre eles mesmos e acerca do patrimônio
cultural, a partir da cultura material e imaterial, podendo ser, também, entendido como
forma de contribuir para o reconhecimento a respeito da diversidade cultural e dos
bens de natureza histórica, contextualizados a partir de sua produção e de seu uso, não
sendo diferente com as imagens sacras e fotográficas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos resultados obtidos nessa pesquisa foi possível constatar que as
ações envolvendo as coleções de fotografias e arte santeira do Museu do Seridó
promove diálogos com a comunidade escolar acerca dos conceitos de patrimônio,
museologia e identidade, evidenciando a importância de conhecer e valorizar os bens
culturais existentes no museu e que fazem parte da história da vida de sertanejos
seridoenses, contribuindo para que associem esses bens culturais como algo que pode
fazer parte de seu referencial identitário, proporcionando, também, a compreensão das
transformações da sociedade e espaço citadino seridoense a partir do século XIX e
primeiras décadas do XX.
Foi possível identificar através do material consultado para a escrita desse
trabalho, que a História local pode ser entendida como um campo promissor para o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
774

ensino de História, principalmente no processo de aprendizagem histórica que esteja


conectada com outros aspectos como a dimensão local/nacional.
Ressalta-se a possibilidade de se inserir no contexto do Ensino Fundamental e
médio a História local como um princípio epistemológico no ensino de História. Essa
inserção é possível uma vez que o pensamento histórico se concretiza tanto em
ambientes globais como locais, como na vivência da pesquisa.
Por fim, ressaltamos a importância dessa pesquisa tanto para os discentes do
curso de História como também para a comunidade Seridoense, espera-se que ao
término da pesquisa sejam realizados diálogos com a comunidade escolar e
universitária, possibilitando a compreensão singular da transformação da sociedade a
partir do fim do século XIX ao início do século XX.
Acredita-se que através de trabalhos como esse, seja despertada nas pessoas a
importância da valorização dos bens culturais e patrimoniais da história, da vida do
sertanejo seridoenses, para assim associarem esses bens como algo que faz parte do
referencial identitário do corpo social Seridoense.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, C. A. Á. Museologia: correntes teóricas e consolidação científica. Revista
Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG –
PMUS Unirio / MAST. v. 5, n. 2, 2013.

BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo/SP:


Cortez Editora, 2004.

BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de


Educação. v. 4 n. 19, 2002.

BREFE, A. C. F. Os primórdios do museu: da elaboração conceitual à instituição pública.


Projeto História - Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. n. 17,
São Paulo, nov. 1998.

CAINELLI, M.; SANTOS, F. B. O ensino de História local na formação da consciência


histórica: um estudo com alunos do ensino fundamental. Cadernos de Pesquisa:
Pensamento Educacional, Curitiba, v. 9, n. 21, p.158-174, 2014.

GEVEHR, D. L. ; DILLY, G. A educação patrimonial no contexto regional: reflexões sobre


o patrimônio na perspectiva contemporânea. In: Ágora. Santa Cruz do Sul, v. 17,n. 02,p.
10-23, jul./dez. 2015.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
775

GERMINARI, G.D. O ensino de história local e formação da consciência histórica:


possibilidades para educação do campo. Quaestio, Sorocaba, SP, v. 18, n. 3, p. 761-776,
nov. 2016.

LOPES, K. R. Arte Santeira do Piauí: Entalhando Imaginários. 2014. 99f. Dissertação


(Mestrado). Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mestrado
Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 2014.

MALTÊZ, C. R. et al. Educação e Patrimônio: O papel da escola na preservação e


valorização do Patrimônio Cultural. In: Pedagogia em ação, v.2, n.2, p. 1-117, nov. 2010.

PROJETO Pedagógico do Curso de História - Licenciatura. UFRN/CERES/DHC, 2012.

SCHIMIDT, M. A. O Ensino de História Local e os Desafios da Formação da Consciência


Histórica. In: GASPARELLO, Arlete Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza;
MONTEIRO, Ana Maria (orgs). Ensino de História: Sujeitos, saberes e práticas. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2007. p. 187 – 198.

SILVA, D. O. ; GONTIJO, F. A arte santeira no e do Piauí. Textos escolhidos de cultura e


arte populares, Rio de Janeiro, v.7, n.1, p. 51-64, 2010.

SILVA, V. M. P. G. Vozes Esculpidas: Oralidade, Memória e Arte. CONTRAPONTO: Revista


do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil
da UFPI. Teresina, v. 2, n. 1, 2013.

SANTOS, F. B. O ensino de história local na formação da consciência histórica: um


estudo com alunos do ensino fundamental na cidade de Ibaiti-PR: 2014, 132fl.
Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014.

SUKOW, N. M.; URBAN, A. C. História local e consciência histórica: uma revisão


bibliográfica. In: XVII Congresso Internacional Jornadas da Educação Histórica, 2017,
Foz do Iguaçu. Anais do XVII Congresso Jornadas da Educação Histórica, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
776

ESTUDO DO MEIO E PATRIMÔNIO PRÉ-HISTÓRIO COMO


POSSIBILIDADE METODOLÓGICA
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

Diógenes Santos Saldanha534


Hozana Danize Lopes de Souza535
Kayann Gomes Batista536
Orientador: Abrahão Sanderson F. N. da Silva537

INTRODUÇÃO
Depois de anos de estudos, já se tem a comprovação da potencialidade
arqueológica que se insere no nordeste brasileiro principalmente entre os estados do
Rio Grande do Norte/RN e Paraíba/PB. As pesquisas arqueológicas no Rio Grande do
Norte vêm tendo um grande aumento em suas produtividades contendo estudos que
destina um olhar tanto para a arqueologia histórica como também para a pré-histórica.
Sendo trabalhado os sítios a céu aberto ou sob rocha que visa o resgate de bens
materiais na busca de compreender e elencar práticas cotidianas de civilizações que
antecedem o tempo presente. Seu registro está resguardado na materialidade agindo
assim, como uma fonte impressa que resisti a passagem do tempo (MARTIN, 2008).
Outro direcionamento expressivo nos estudos voltados a arqueologia são os que
permeiam pela arte rupestre que possui como foco principal a análise de técnicas de
execução utilizadas em gravuras e pinturas rupestres. As gravuras rupestres estão
presentes em várias regiões do Brasil, e no Rio Grande do Norte tem-se descoberto
vários sítios com esse tipo de registro. A maioria dos sítios de gravuras se caracteriza
pela proximidade com córregos, riachos, afluentes de rios e outros corpos hídricos
(MARTIN, 2008; MARANHÃO, 2003; PESSIS, 2002). Esses registros gráficos,
existentes nos suportes rochosos nas várias regiões do Estado Potiguar, evidenciam
os indícios de ocupações pré-históricas temporárias ou permanentes nessas áreas
(SANTOS, CARLOS, OLIVEIRA e GONZALES, 2016).

534 Graduado em História (Licenciatura). CERES – UFRN – Caicó/RN – Brasil; E-mail:


Diogenes.Saldanha@hotmail.com
535 Graduada em História (Licenciatura). CERES – UFRN – Caicó/RN – Brasil; E-mail:
hozanadanize.l@gmail.com
536 Graduando em História (Licenciatura). CERES – UFRN – Caicó/RN – Brasil; E-mail:
kay_gomes@ufrn.edu.br
537 Docente do Departamento de História do CERES – UFRN – Caicó/RN – Brasil; E-mail:
abrahaosanderson@hotmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
777

No município de Caicó/RN houve nos anos de 2017 e 2018 um levantamento e


mapeamento de sítios arqueológicos que tinha como finalidade o registro, preservarão
e salvaguarda desse patrimônio arqueológico. Desse levantamento, resultou no
registro de nove (9) sítios arqueológicos catalogados ao redor do município de Caicó,
sendo eles: Mundo Novo, Cachoeiras do Samanaú, Saco do Bode, Várzea Comprida,
Cachoeiras do Alegre, São Bernardo, Pedra Petra, Culumins e a Gruta da Caridade, este
o último é o mais conhecido pela comunidade local.

Figura 1: Mapa geral dos sítios registrados no município de Caicó– Caicó/RN,


Elaboração: Karla Bianca Oliveira, 2018.

Algo que impactou durante o desenvolvimento de tal projeto é a potencialidade


que esses sítios detêm de serem abertos ao público para visitação devido ao seu fácil
acesso, citemos como exemplo a Gruta da Caridade que recebe visitações da
comunidade com grande frequência. Entretanto, devido ao fácil acesso alguns sítios
sofrem com o descaso da população local e deveras vezes onde deveriam ser
preservados são depredados.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
778

Infelizmente os sítios que contém gravuras ou pinturas rupestres vão se


perdendo pouco a pouco com o passar do tempo, seja pelo intemperismo com a
desintegração/descompactação das rochas, ou por ações humanas recentes. As
intervenções humanas sobre o meio ambiente acabam por acelerar o processo de
desgaste desses espaços, em alguns casos, os sítios arqueológicos que ainda não
obteve seu registro ou até mesmo aqueles registrados, tem como resultando sua total
destruição acarretando assim na perda de dados sobre as populações pretéritas.
Podemos elencar vários tipos de ações antrópicas que destroem ou alteram os
sítios arqueológicos. As mais frequentes no Seridó potiguar são a destruição da
cobertura vegetal para a criação de pastos para animais, deixando assim os sítios muito
expostos a ações climáticas. Ainda a extração dos suportes rochosos onde as gravuras
se encontram que tem diversos fins como, por exemplo, a construção civil e a
construção de pavimentação. E por fim, a construção de grandes reservatórios de água
como açudes e barragens para o abastecimento das populações locais.
A potencialidade desses sítios não se resume somente ao seu valor
arqueológico, mas também ao valor patrimonial como fonte histórica das populações
passadas. Sendo assim, esses sítios podem ser utilizados também como recurso
didático dentro de sala de aula, especialmente no que concerne ao ensino de história
como forma de explicar o período pré-histórico tanto brasileiro quanto regional, uma
vez que, essa temática é pouca difundida em sala de aula sendo relacionada com a pré-
história do Brasil. Geralmente os livros didáticos contém um arcabouço de ilustrações,
dizeres e saberes sobre um período da história que remetem a populações que estão
além-mar, desse modo, a disciplina de História tem seu processo educativo voltado a
temáticas que propiciam a valorização da história estrangeira a história nacional.
Os discentes que começam seus estudos na disciplina de história com o período
pré-histórico veem uma temática voltada e denominada de Revolução Neolítica que se
caracteriza pelo movimento de adaptação de grupos humanos nômades para grupos
humanos sedentários, em que a um domínio sobre a agricultura e as primeiras
domesticações de animais, além do desenvolvimento de armamento e a invenção da
roda. No entanto, tais fatos pré-históricos que se aplicam a um período antiguíssimo da
história europeia não se aplicam ao território brasileiro, pois, os povos que habitaram
o nordeste brasileiro, antes da ocupação europeia, não adentraram ao estágio neolítico

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
779

primário pré-urbano, então sua cultura baseava-se no modelo de grupos caçadores-


coletores (MARTIN, 2008).
Apesar disso, um dos grandes interesses na pré-história brasileira é notar a
grande capacidade de adaptação do homem a uma natureza adversa e hostil,
demostrando para o educando como se deu esse processo por meio de explicações e
exemplos a partir de recursos utilizados e retirados de sua própria comunidade. Ao
trabalhar tais temáticas dentro de sala de aula, o professor não está apenas criando
alunos conhecedores de sua própria história, mas também conscientizando eles,
proporcionando-lhe uma aula de educação patrimonial, oferecendo possibilidades para
a construção do conhecimento, da valorização e preservação desses bens culturais
arqueológicos.
Nesse sentido, objetivando associar o estudo do meio com a educação
patrimonial como possibilidade metodológica para o ensino de História buscamos
evidenciar a relação intima que ocorre entre o meio físico e natural com grupos
humanos. Visando a construção do conhecimento histórico tendo como base o
patrimônio arqueológico pré-histórico, podemos traçar como possibilidades
metodológicas e ações que envolvam o contato direto com o patrimônio para que
ocorra seu reconhecimento, identificação, conscientização e preservação, tendo em
vista que esse patrimônio está inserido em um espaço e tempo específicos que
incorpora práticas sociais e culturais em que contribui para a construção de uma
memória coletiva, pois através disso podemos estimular uma percepção que esteja
relacionada também ao reconhecimento como agente histórico.

DESCRIÇÃO DOS SÍTIOS


Dos nove sítios registrados, foram selecionados apenas quatro (4) para
demonstração devido ao seu fácil acesso e sua beleza natural, como também, a grande
quantidade de imagens grafadas contida nos matacões, sendo assim:

Sítio Cachoeiras do Alegre


O Sítio Cachoeiras do Alegre é composto por um único afloramento rochoso
grafado em processo de intemperismo, seja pelo desplacamento natural da rocha, ou
pelo avanço das águas do rio em período de cheia.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
780

Figura 2: Vista geral do painel do Sítio Cachoeiras do Alegre – Caicó/RN, Fonte: Mizael Costa, 2017.

Figura 3: Detalhe do painel do Sítio Cachoeiras do Alegre – Caicó/RN, Fonte: Mizael Costa, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
781

Figura 4: Detalhe do painel do Sítio Cachoeiras do Alegre – Caicó/RN, Fonte: Mizael Costa, 2017.

O painel é formado apenas por grafismos puros, a técnica utilizada é a


raspagem e o picoteamento. O painel, por estar em uma área de escoamento de água,
sofre com a esfoliação dos grafismos e também com o desplacamento. Há também um
grande número de sobreposições, isso significa que esse espaço foi utilizado várias
vezes ao longo do tempo. O sítio é de fácil acesso, estando a 400m de distância da
estrada de barro que dá acesso a moradias rurais da população local. Não muito do
esperado para a região, a vegetação que envolve o sítio é formada por Cactáceas
(Cactos), Pilosocereus Gounellei (Xique-Xique), Mimosa tenuiflora (Jurema).

Sítio Culumins
O Sítio Culumins, como no anterior, é formado por um painel de gravuras
rupestres que percorre toda a extensão do afloramento rochoso, por ser um
reservatório de água natural, as gravuras sofrem constantemente com ações
intempéricas tanto do fator climático do semiárido quanto do nível da água que gera
musgo na rocha encobrindo e fazendo raspagem nas gravuras.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
782

Figura 5: Vista geral do Sítio Culumins – Caicó/RN, Fonte: Jônatas Alves, 2018.

Figura 6: Detalhe do painel do Sítio Culumins – Caicó/RN, Fonte: Jônatas Alves, 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
783

Figura 7: Detalhe do painel do Sítio Culumins – Caicó/RN, Fonte: Jônatas Alves, 2018.

Semelhante ao sítio anterior, esse painel se apresenta por grafismos puros


demonstrando a técnica de raspagem e de picoteamento, também apresenta gravuras
que sobrepõe umas às outras indicando a reutilização do lugar. Quanto a acessibilidade,
o sítio é de fácil acesso estando a mais ou menos 200m da estrada de barro, sendo um
tanque natural, os donatários da propriedade o utilizam para criação de gado,
permitindo que os animais bebam, pastem e circulem pela região.

Gruta da Caridade
A Gruta da Caridade está localizada na Serra da Cruz, no município de Caicó, a
Caridade se caracteriza basicamente por ser caverna formada por um pequeno rio. O
vão interno é bastante sinuoso com poucas passagens laterais, algo como um imenso
corredor. Após seu mapeamento ela foi subdividida em Salão dos Sapos, Conduto das
Aranhas, Laguinho do Sifão, Salão da Névoa, Conduto do Quebra-Osso, Aperto do
Conduto, Passagem da Cachoeira, Escorrego da Aranha, o Órgão e Último Tanque.
Na entrada da gruta é possível observar painéis com inscrições rupestres,
sendo mais evidente a Tradição Itaquatiara, enquanto os paredões se estendem
subindo a serra, as inscrições rupestres a acompanham, aparecendo desde gravuras a
pinturas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
784

Figura 8: Vista geral da entrada da Gruta da Caridade – Caicó/RN, Fonte: Abrahão Silva, 2017.

Figura 9: Vista geral do painel da lateral da Gruta da Caridade – Caicó/RN, Fonte: Abrahão Silva, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
785

Figura 10: Detalhe do painel da lateral da Gruta da Caridade – Caicó/RN, Fonte: Abrahão Silva, 2017.

Sítio Pedra Preta


O Sítio Pedra Preta apresenta uma área formada por afloramentos rochosos,
sendo formada por três painéis grafados, o bioma presente em todo o sítio faz jus ao
bioma caatinga tendo em torno do seu espaço Cactáceas (Cactos), Pilosocereus
Gounellei (Xique-Xique), Mimosa tenuiflora (Jurema). O sítio sofre com ações
intempéricas naturais, como o desgaste da rocha devido a ações climáticas do
semiárido nordestino.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
786

Figura 11: Vista geral do Sítio Pedra Preta – Caicó/RN. Fonte: Mizael Costa, 2017.

Figura 12: Gravura geométrica arredondada no Sítio Pedra Preta – Caicó/RN. Foto: Mizael Costa, 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
787

Figura 13: Matacão com gravura geométrica do Sítio Pedra Preta – Caicó/RN. Foto: Mizael Costa, 2017.

O sítio é de fácil acesso, tendo uma estrada de barro a sua margem permitindo
uma visitação sem muitas complicações, ou longa locomoção, os painéis são formados
por figuras geométricas grandes correspondentes a proporção da rocha em que foram
talhadas, também é possível ver as ações intempéricas e a degradações que fazem na
gravura como demonstrada figura 11 que apresenta manchas de tom alaranjado pela
gravura.

UTILIZAÇÃO METODOLÓGICA DOS SÍTIOS: INTERDISCIPLINARIDADE, SABER E


PATRIMÔNIO
As ações que envolvam a utilização dos sítios arqueológicos abordados podem
ser desenvolvidas a partir de dois aspectos, primeiramente a viabilidade da abertura
dos sítios para o público por meio do turismo e a utilização através das práticas
metodológicas para o ensino de história. Para a primeira perspectiva é necessário
estabelecer preceitos e conhecer conceitos que estão relacionados com a área do
turismo. Para a segunda abordagem que envolve o ensino de história podemos
estabelecer possibilidades com base na interdisciplinaridade incorporando a história
local, os estudos do meio e a educação patrimonial.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
788

Relacionar os sítios arqueológicos com fundamentos do turismo é partir da


perspectiva referente as modificações que ocorreram na área a partir de 1980 onde as
atividades realizadas pelo turismo assumiram postura mais crítica passando a se
preocupar com a experiência turística. Com essa modificação, o turismo passa a ser
considerado importante para as sociedades por fatores diversos que inclui suas
contribuições para a preservação e proteção de culturas passadas. Essas atividades
envolvendo os sítios arqueológicos são denominadas de Turismo Arqueológico ou
Arqueoturismo já que os visitantes vão para os sítios e percebem vestígios das antigas
sociedades sejam elas pré-históricas ou históricas (MANZATO, 2007).
Para que um sítio arqueológico seja aberto a visitações, seja para atividades
turísticas como também para a presença da comunidade escolar, é necessário
estabelecer etapas para que isso seja viável. Dessa forma, ações de planejamento se
apresenta como uma etapa fundamental já que a partir dele que são montadas
estratégias que buscam promover ações para destinadas ao cumprimento de objetivos
relacionados a viabilidade e adequação dos espaços para receberem o público.
A etapa do planejamento dentro do turismo arqueológico procura desenvolver
táticas que estejam voltadas para minimizar o processo de degradação desses espaços
bem como tornar a visitação acessível, salientando que essas ações são direcionadas
para o desenvolvimento de estratégias pensando a curto, médio e longo prazo. O
planejamento consiste também em potencializar os aspectos positivos da experiência
turística em sítios arqueológicos levando em consideração as particularidades de cada
espaço para assim proporcionar a forma ideal de preservar e interpretar esse espaço
(MANZATO, 2007).
Todavia, é importante evidenciar que os sítios voltados para o turismo não
devem anular as funções que envolvem as práticas educativas, nas quais incorpora o
social, no sentido de que a população faz o reconhecimento desses espaços como parte
de seu passado e também envolve o cultural que se associa as questões como
identidade e conhecimento acerca do passado do outro. Por conseguinte, a preservação
dos sítios não deve considerar especificamente apenas o desenvolvimento de
atividades turísticas tendo em vista que não são somente turistas a visitar. A população
local também ocupa esses espaços e são fundamentais, pois podem contribuir em
vários aspectos que abarque viabilidade e sucesso dessa atividade.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
789

Pensar nesses sítios de modo que sejam abordados dentro da sala de aula por
meio do ensino de história possibilita ações educativas voltadas para o conteúdo
curricular bem como para a realização de funções sociais onde conecta os indivíduos,
seja de forma coletiva ou individual buscando, dessa forma, possibilitar o
reconhecimento, identificação e valorização desses bens culturais tendo como base a
integração entre os educandos e o meio. Para a abordagem desses espaços na sala de
aula seria essencial partir de uma perspectiva interdisciplinar que associe a história
local, sendo ela o fio condutor, com os estudos do meio e a educação patrimonial.
A história local, nessa perspectiva, seria fundamental para o ensino já que
permite que funções sociais e individuais sejam estimuladas e que proporcionem o
desenvolvimento de uma consciência histórica. Com a inserção dessa abordagem
pautada na localidade dentro do ensino de história, questões referentes a identidade,
consciência, preservação do patrimônio podem proporcionar aos educandos sua
inserção nas heranças culturais de sua própria comunidade. Além disso, trabalhar
essas competências também faz parte do currículo que é composto de propostas
interdisciplinares que relacionem o homem e ambiente natural.
Já os estudos do meio procuram desenvolver interação entre homem com
natureza, portanto, parte da compreensão de que o ambiente é permeado de ações
compostas de materialidade em seus mais diversificados vestígios, assim, os estudos
do meio são compostos de elementos que buscam analisar os bens culturais. Em
consonância a isso, também são direcionados para a interdisciplinaridade, além de
colocar o educando como sujeito ativo no processo educacional proporcionando o
desenvolvimento de novos conceitos, habilidades e atitudes a partir da observação e
interação com o meio.
A educação patrimonial está relacionada com práticas voltadas para estimular
a preservação dos bens culturais e também discutir e refletir de maneira mais eficaz
acerca do patrimônio cultural. As ações devem girar em torno da compreensão do
educar para o patrimônio permitindo o conhecer, proteger, valorizar, divulgar e difundir
os bens partindo da integração da comunidade escolar no espaço natural.
São através dessas abordagens e perspectivas que propormos o
desenvolvimento do ensino de pré-história colocando os sítios arqueológicos da região
como fundamentais nesse processo de aprendizagem. Tendo em vista, que os livros
didáticos quando tratam do período pré-histórico majoritariamente relacionam e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
790

exemplificam a partir de contextos que estão distantes dos alunos além de que a
ausência de fatores e exemplos cotidianos não apenas dificulta o processo de
aprendizagem, mas coloca a margem especificidades que caracterizam desde uma
conjuntura nacional até regional. Além disso, associar a história local, os estudos do
meio e a educação patrimonial contribui para o desenvolvimento de reflexões voltadas
para a construção de conhecimentos acerca do patrimônio arqueológico pré-histórico
da região estimulando a percepção de que esse patrimônio está relacionado
diretamente com práticas sociais e culturais, construção de memória coletiva,
reconhecimento como agente histórico e a relação que a comunidade deve ter com seu
espaço. Por fim, é fundamental que esses sítios arqueológicos sejam reconhecidos pelo
seu potencial no desenvolvimento de possibilidades que envolvam sua utilização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do levantamento realizado dos sítios arqueológicos pré-históricos
ficou evidente que a região do Seridó, especificamente o munícipio de Caicó/RN, oferece
uma grande potencialidade tanto para o desenvolvimento de atividades relacionadas
ao turismo quanto para a realização de ações educativas relacionadas com o ensino de
história.
Ainda deve ressaltar que essa perspectiva de trabalho é uma maneira de
trabalhar o conteúdo desenvolvendo práticas metodológicas que integram a
comunidade escolar com o ambiente físico e natural, portanto, são estratégias que
também fazem parte das propostas estabelecidas no currículo escolar.
Ao promover essas intervenções associando ao ensino de história, os estudos
do meio e a educação patrimonial é colaborar para que a comunidade se reconheça e se
identifique com esse patrimônio, sendo por meio disso que ações envolvendo
conhecimento, proteção, valorização, divulgação e difusão se tornem mais concretas,
gerando o que se espera uma preservação do patrimônio por meio da comunidade,
evitando a depredação e destruição dos sítios.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
791

REFERÊNCIAS
ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso. Ensino de
História. São Paulo: Cegage Learning, 2011.

BICHO, Nunu Ferreira. MANUAL DE ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA. Lisboa/


Portugal, Edição 70, Lda, 2006.

BINFORD. Lewins R. Willow Smoke and Dogs' Tails: Hunter-Gatherer Settlement


Systems and Archaeological Site. In: American Antiquity, Vol. 45, No. 1, Published by:
Society for American Archaeology, 1980, pp. 4-20.

BITTECOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos.


2°.ed. São Paulo: Cortez, 2008.

BORGES, Fábio Mafra. Os Sítios Arqueológicos Furna Do Umbuzeiro E Baixa Do


Umbuzeiro: Caracterização De Um Padrão De Assentamento Na Área Arqueológica
Do Seridó Carnaúba dos Dantas RN, Brasil. Tese de Doutorado UFPE. Recife: 2010.

BORGES, Fábio Mafra; MARTIN, Gabriela; NOGUEIRA, Mônica Almeida Araújo. SÍTIOS
A CÉU ABERTO NA REGIÃO DO SERIDÓ POTIGUAR: Um Estudo de Caso do Rio da
Cobra, Entre os Municípios de Carnaúba dos Dantas e Parelhas, RN. Clio Arqueológica
v.31, n° 3, p113-132, 2016.

BORGES, Fábio Mafra; NOGUEIRA, Mônica Almeida Araújo; SILVA, Joadson Vagner3;
BRITO, Isaiane. Levantamento Arqueológico na área arqueológica do Seridó, RN –
Brasil. Revista CERES, Vol. 1 N°1, 2015.

CASCO, Ana Carmen Amorim Jara. Sociedade e educação patrimonial. Disponível em:
<www. portal. iphan. gov. br>. Acesso em 16 Abril 2018.

FUNARI, Pedro Paulo et al. Os historiadores e a cultura material. In: PINSKY, Carla
Bassanezí et al. Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. Cap. 4. p. 81-110

JÚNIOR, Valdeci dos Santos. AS GRAVURAS RUPESTRES DOS SÍTIOS


ARQUEOLÓGICOS DO RIACHO DO CHAVES, MUNICÍPIO DE JUCURUTU, ESTADO DO
RIO GRANDE DO NORTE, BRASIL. Revista Tarairiú. Vol. 1, N° 11, p. 14-34,, 2016.

JÚNIOR, Valdeci dos Santos. Cenas e movimentos nas gravuras rupestres da região
central do Rio Grande do Norte. Revista Tarairiú. Vol. 1, N° 05, p. 103-112, 2014.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS REALIZADAS


EM CARNAÚBA DOS DANTAS, SERTÃO DO SERIDÓ: UM BALANÇO. Universidade
Federal de Pernambuco, 2013.

MANZATO, Fabiana. Turismo arqueológico: diagnóstico e análise do produto


arqueoturístico. Revista de Turismo y Patrimônio Cultural, v. 5, n. 1, p. 99-109, 2007.

MARTIN, Gabriela. Pré-história do Nordeste do Brasil. Recife: Editora Universitária da


UFPE, 2008.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
792

MARTIN, Gabriela; ASÓN, Irma. A Tradição Nordeste na Arte Rupestre do Brasil. CLIO
N°14, 2000.

MARTIN, Gabriela; BORGES, Fabio Mafra; SENA, Vivian Karla de; SALDANHA, Rafael S.
Medeiros; ALMEIDA, Marcellus; NOGUEIRA, Mônica A. Araújo; BARBOSA, Caio C.
Araújo. Levantamento arqueológico na área arqueológica do Seridó – Rio Grande do
Norte – Brasil: nota prévia. In: Clio –Série Arqueológica, v. 2, n. 23. Recife: Editora
Universitária UFPE, 2008.

MUTZENBERG, Demétrio da Silva. Gênese e ocupação pré-histórica do Sítio


Arqueológico Pedra do Alexandre: uma abordagem a partir da caracterização
paleoambiental do Vale do Rio Carnaúba-RN. 2007.

NOGUEIRA, Mônica; BORGES, Fabio Mafra. Levantamento de sítios arqueológicos a


céu aberto na área arqueológica do Seridó – Rio Grande do Norte – Brasil. In: Mneme
– Revista de Humanidades, v. 15, n. 35, pp. 244 – 259. Caicó: CERES/UFRN, 2015

PESSIS, A.M. Do estudo das gravuras rupestres pré-históricas no Nordeste do Brasil.


CLIO arqueológica, n.15, vol. 1. p. 29 44. 2002.

PESSIS, A.M. Identidade e classificação dos registros rupestres pré-históricos do


Nordeste do Brasil. CLIO série arqueológica n.8. Ed. Universitária, UFPE, Recife. 1992.

PESSIS, A.M. Imagens da Pré-História. Parque Nacional Serra da Capivara. Images de


la Préhistoire, Images from Pré-History. FUMDHAM/PETROBRÁS, 2003.

PESSIS, A.M. Métodos de documentação cinematográfica em arqueologia. CLIO,


Revista do mestrado em História, n.5, Recife, UFPE, P.129-138. 1982.

PESSIS, A.M. Registros rupestres, perfil gráfico e grupo social. CLIO série
arqueológica n.9, Ed, Universitária, UFPE, Recife. 1993.

PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Editora Universitária de Brasília, Brasília, 1991.

RIOS, Carlos; JÚNIOR, Valdeci dos Santos. HIPÓTESES SOBRE UM CONJUNTO DE


GRAFISMOS RUPESTRES NO RIO GRANDE DO NORTE, BRASIL. .Disponível
em:<https://www.researchgate.net/profile/Valdeci_Junior2/publication/284031943_
Hipoteses_sobre_um_conjunto_de_grafismos_rupestres_no_Rio_Grande_do_Nort
e/links/564b62d008aeab8ed5e74947.pdf>. Acesso em 16 Novembro 2017.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
793

Simpósio Temático 14
POLÍTICA, HISTÓRIA E MÍDIAS:
O OFÍCIO DO HISTORIADOR NA SOCIEDADE DA
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:

INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
794

O DESENVOLVIMENTO DE JOGOS DIGITAIS ENQUANTO FORMA


DE DIVULGAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO

Jonatas Ezequiel Silva Duarte538

INTRODUÇÃO
Desde meados dos anos de 1980, quando a produção de jogos digitais começou
a caracterizar-se como uma indústria, uma grande variedade de jogos disseminou-se
em diversos países com os mais distintos tipos de gênero: aventura, esportivos,
educativos, policial, investigação, romance etc. Já nos anos de 1990, um novo gênero
começava a ganhar adeptos entre a comunidade de jogadores: os jogos históricos, e
assim, temas que abordavam, a segunda e a primeira guerra mundial, a guerra fria e
também a organização social em outras eras históricas se tornaram recorrentes em
muitas narrativas. A famosa franquia de jogos chamada “wolfenstein” que começou
em 1981 e atualmente está no seu 11º título sempre teve como narrativa a segunda
guerra mundial e a luta contra os nazistas.
No seu terceiro título lançado em 1992 “wolfenstein 3d”, o jogador, além de enfrentar
os soldados do terceiro reich, tinha como objetivo final, a destruição de Hitler. Dessa
maneira, com o lançamento de jogos que tomavam o passado como forma de narrativa
e com melhores computadores e aparelhos de vídeo games no mercado, os jogos
históricos foram ganhando cada vez mais aceitação entre os jogadores de todo o
mundo.
Com o início do século XXI, este gênero se tornou um dos mais cobiçados por
grandes empresas de jogos digitais. Ter a possibilidade de “viver”, “sentir” e
“conhecer” outros períodos com uma maior imersão e interação com o ambiente,
possibilitou ao jogador conhecer outros períodos da história da humanidade de uma
maneira diferente do cinema, da televisão e da literatura. Produziram-se então jogos
que tomavam diferentes aspectos do passado: guerras, romances, intrigas políticas,
assassinatos misteriosos etc. As franquias de jogos: “medal of honor”, “call of duty”
e “ battlefield” apresentaram diferentes faces e fazes das guerras modernas, a
franquia “assassin's creed” “teletransporta” o jogador para diferentes momentos:

538 Aluno do curso de Licenciatura Plena em História pela UFRN.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
795

para a revolução francesa, para as cruzadas, para o Egito antigo etc., já a franquia de
jogos “age of empires” possibilita ao jogador organizar e desenvolver uma sociedade
a partir do nada nos períodos antigo, medieval e moderno. Em consequência disso, cava
vez mais os jogos de vídeo games passaram a expor concepções ideológicas em suas
narrativas, o passado nestes jogos é usado para entreter e para divertir, mas também
para impactar, parra sensibilizar e para oferecer uma visão sobre algo que aconteceu
em uma perspectiva diferente, colocando o jogador no controle da situação.
Até chegar nas mãos dos jogadores, é necessário muitas vezes alguns anos
para que um jogo digital fique pronto e possa ser distribuído para aqueles que desejam
adquiri-lo. Durante este longo processo, equipes de roteiristas, designers, animadores,
programadores e publicitários trabalham na concepção, na narrativa, na construção
de personagens, na arquitetura e em tudo mais que deverá ser apresentado ao jogador
no momento que este começar a jogar. Sendo assim, por muito tempo, apenas
grandes empresas podiam arcar com os enormes custos que envolviam a produção, o
desenvolvimento e distribuição de um jogo digital. No entanto, nos últimos dez anos,
inúmeros fatores contribuíram para uma significativa mudança neste quadro,
disseminaram-se programas a um baixo custo para desenvolvê-los e com versões
gratuitas, apareceram os smartphones que com a rápida popularização, logo serviram
como plataformas para novos jogos possibilitando uma maior produção para estes
dispositivos. Em decorrência disso, surgiram as lojas virtuais, por exemplo, a “Apple
Store” e a “Google Play” o que aumentou ainda mais a quantidade de pessoas que
jogam algum jogo digital.
Tendo em vista o potencial que os jogos de vídeo games têm para impactar os
jogadores, para criar uma imersão maior do que o cinema, a televisão e a literatura no
espectador, e observando momento atual extremamente propício para produzir e
desenvolver um jogo digital, acredito ser válido para nós, aspirantes ou já
profissionais de história, a reflexão prática sobre este tipo de mídia digital como
espaço para a produção e
disseminação do conhecimento histórico.

O MOMENTO ATUAL
No dia 10/02/2017 o site de notícias www.g1.globo.com publicou uma matéria
que tem por título: “Número de desenvolvedores de games cresce 600% em 8 anos,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
796

diz associação: Faturamento do setor em 2016 foi de US$ 1,6 bilhão, 25% a mais que
em 2014. Dados do IBGE mostram destaque do segmento de informática na atividade
de serviços. ”. A matéria tem por objetivo demostrar como este mercado tem ganhado
significativo destaque na economia brasileira, assim como também se configura em
um promissor alvo de investimento não só por grandes marcas internacionais que
desejam investir em algumas empresas no Brasil, mas também investimentos de
alguns desenvolvedores independentes nativos que desejam produzir jogos para o
público interno e externo539.
Para reforçar esta argumentação, a matéria também conta com uma
participação de Eliana Russi, diretora da Associação Brasileira dos Desenvolvedores
de Jogos Digitais (Abragames). Ela enfatiza que: "Em 2008, tínhamos 43 empresas de
games no Brasil. Em 2014, esse número subiu para 130. Hoje, são aproximadamente
300 empresas de games no país”. Outro ponto importante que destaco nesta matéria,
é o relato de uma experiência de Raoni Dorim, desenvolvedor independente540 que há
quatorze anos trabalhava com jogos digitais prestando serviços a terceiros541. Ele é
sócio da Mopix Games, criadora do jogo Magic Master, atualmente disponível para
Android e iOS. E foi justamente por causa deste jogo que sua empresa foi selecionada
para participar em dois programas de aceleração542 no exterior, um no Vale do Silício
e outro na Malásia, recebendo US$ 25 mil de investimento.
Este jogo é um bom exemplo dos tipos de jogos que hoje são comercializados. Nas
décadas anteriores, desenvolver e vender um jogo era possível apenas para médias e
grandes empresas que podiam financiar os custos da produção que envolvem; som,

539 Matéria na íntegra no endereço:


https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/numerodedesenvolvedores-de-games-cresce-600-
em8-anos-diz-associacao.ghtml
540 O termo independente aqui usado está relacionado a alguém que trabalha em um jogo sem o auxílio

de grandes empresas que produzem, desenvolvem e distribuem um jogo para grandes plataformas, por
exemplo, a Konami, ubisoft e capcom. Estas empresas movimentam um enorme capital de investimentos
em seus jogos, já os produtores independentes trabalham isoladamente ou com um pequeno grupo ou
empresa voltada para o ramo de jogos, mas com um capital muito menor.
541 Um fato importante sobre a produção de jogos digitais é em relação aos serious games, ou jogos

empresariais. Existem diferentes públicos consumidores deste produto, por exemplo, jogos
educacionais explicativos, jogos voltados para a primeira infância que trabalham o desenvolvimento
neorolinguístico da criança, jogos publicitários que apresentam propagandas em formas de jogos e
também jogos “tutoriais”, muito usado por empresas para explicar o funcionamento dos serviços aos
funcionários e clientes.
542 Este termo estar relacionado ao fato de que quando um determinado jogo tem um excelente retorno

por parte dos jogadores, a empresa ou desenvolvedor que está por trás do projeto do jogo pode vir a
receber investimentos de grandes empresas ou associações internacionais.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
797

design, programação, pintura a mão e digital, publicidade etc., dessa maneira, era
praticamente impossível para produtores e desenvolvedores independentes competir
ou até apresentar algo ao grande público. Nos últimos dez anos está realidade vem
mudando a cada dia, engines543 como a Unity, Construc 2, Game Maker, RPG Maker
dentre outras estão disponíveis para o grande público com versões pagas e gratuitas.
Outra mudança revolucionária neste processo está ligada ao modo como o público têm
acesso aos jogos digitais, se antes os jogadores só podiam ter acesso aos jogos por
meio de um computador e consoles544 com as mídias físicas7, nos últimos anos com a
popularização dos smartphones e lojas virtuais, por exemplo, Steam, Google Play,
Playstore e Applestore, ficou bem mais fácil para um maior número de pessoas ter
acesso à jogos eletrônicos, como também ficou mais acessível e prático para
desenvolvedores independentes produzirem jogos para diferentes públicos.
Outra justificativa que apresento sobre a importância da discussão deste tema,
é o fato de algumas instituições de ensino estarem estimulando a capacitação de
estudantes universitários dos cursos de licenciatura e também de professores que já
atuam na educação básica em áreas que envolvam tecnologia e sua importância na
educação básica. O Instituto Metrópole Digital (IMD) que é uma uma Unidade
Acadêmica Especializada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), tem
fomentado nos últimos anos a discussão sobre e tecnologias educacionais. Um bom
exemplo disso é o Programa de Pós-graduação em Inovação em Tecnologias
Educacionais (PPgITE) que ofertado pelo IMD desde o ano de 2017, tem como público
alvo os profissionais ligados à educação básica. De acordo com o site desta instituição,
este programa tem por objetivo

fomentar a integração das tecnologias digitais na dinâmica das ações


pedagógicas realizadas em instituições de ensino, investigando,
experimentando e implementando novas maneiras de ensinar e
aprender, de modo a ir além dos espaços formais de educação. Para
isso, visa a disponibilizar experiências aos profissionais da educação
para que eles se apropriem de recursos educativos digitais e
diversifiquem suas estratégias de ensino, com o intuito de se
reconstruírem constantemente a partir da experimentação e avaliação
de novas práticas pedagógicas e educacionais545.

543 Nome que se atribui ao tipo de ferramenta que desenvolve o jogo.


544 Tipos de aparelhos de vídeo games, por exemplo, Playstation, X box, PSP, Mega Drive etc. 7

Jogos vendidos em CD, DVD e cartuchos.


545 Descrição completa no endereço: https://portal.imd.ufrn.br/portal/posgraduacao. 9

Descrição no endereço: http://epogames.imd.ufrn.br/

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
798

Já no ano de 2017, esta instituição realizou um curso de desenvolvimento de


jogos digitais educacionais destinado especificamente para os alunos dos cursos de
licenciaturas que faziam parte do Programa Institucional de Bolsa de iniciação à
Docência (PIBID). Neste curso, os graduandos das diversas licenciaturas oferecidas
pela UFRN aprenderam a manipular as engines Construct 2 e Scratch para o
desenvolvimento de jogos educativos em cada área do conhecimento. O objetivo do
curso foi desenvolver nos alunos a capacidade de criar jogos que ensinem algum tema
aos jogadores, todavia estes deveriam aprender enquanto jogavam, o jogo não poderia
ser usado como mera ilustração de alguma discussão.
Outra iniciativa do instituto que envolve o fomento de atividades que envolvam
o desenvolvimento de jogos digitais, é o evento chamado de Encontro Potiguar de
Jogos, Entretenimento e Educação (EPoGames). Neste evento, o público participa de
palestras, minicursos, workshops e competições que envolvam o mundo dos games,
a necessidade da aprendizagem da linguagem que envolvem a sua produção, a
importância que os jogos têm no processo de ensino-aprendizagem. De acordo com o
site do IMD, este evento

é voltado ao estudo do desenvolvimento e do uso de jogos digitais e


mídia digital interativa. Trata-se de um evento de caráter
interdisciplinar que tem como objetivo principal reunir pesquisadores,
estudantes e profissionais interessados na área de jogos, com
objetivo de entretenimento e/ou educação, a fim de impulsionar a
criação de uma cultura na área no RN. Esta área é inerentemente
interdisciplinar, envolvendo profissionais de computação, artes,
design, música, mas igualmente de educação, psicologia, saúde e
demais áreas que fazem uso de jogos digitais como ferramentas de
transformação individual e social. O EPoGames serve, então, como
ponto de encontro e de troca de ideias e saberes das diferentes áreas
em um foco de aplicação específico: o desenvolvimento e uso de jogos
digitais. O evento possui um viés acadêmico, sem deixar de lado o
interesse do mercado, procurando promover o empreendorismo na
área9.

Tendo em vista esta realidade que nos circunda, acredito que o momento atual
é extremamente propício para pensarmos os jogos digitais enquanto meio para
produção e disseminação do conhecimento histórico. Pois se por um lado temos um
crescimento da produção independente no Brasil, por outro temos o incentivo de
algumas instituições públicas de ensino que fomentam o desenvolvimento de jogos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
799

com objetivos educacionais e também para o mercado do ramo. Dessa maneira, a


produção de jogos torna-se mais acessível e plural, feita por diversos perfis de
profissionais e desenvolvidos com objetivos distintos a serem alcançados. A menu
ver, aproveitando-se do sucesso que são os jogos que tomam algum aspecto do
passado em sua narrativa, o historiador pode fazer parte também deste processo, seja
assessorando o processo criativo, ou participando diretamente do desenvolvimento,
enquanto programador546 e/ou produtor547 de um jogo digital.

OS JOGOS DIGITAIS E A HISTÓRIA PÚBLICA


Para discutir a produção do conhecimento histórico através dos jogos de vídeo
game, assim também como em filmes, livros, séries de televisão, jornais e museus,
devemos compreender que estamos lidando com a função pública da história, pois
aqui temos a representação do passado de uma maneira na qual obedeça às
especificidades e demandas de um público específico. Dessa maneira, o passado deve
obedecer a lógica e a estrutura de um roteiro, de uma cena, de uma música, de uma
trama e de um enredo, características intrínsecas ao filme, ao jogo, à série, e não à
lógica da produção acadêmica universitária ou à produção referente ao conhecimento
histórico na educação básica, pois as demandas que requerem a problematização do
passado são distintas.
Quando assistimos as séries de televisão Game of thrones de 2011 e Vikings de
2013, na grande maioria das vezes, não estamos buscando uma discussão sobre
quando começa e termina a Idade Média, ou como funcionavam as relações Feudo-
Vassálicas, ou quais elementos constituíam um feudo, a maior parte de seus
telespectadores, o fazem porque gostam de uma boa trama envolvendo traição, um
romance proibido, uma reviravolta catártica, a sensação de não saber o que vai
acontecer ou em quem confiar. Sendo assim, a produção que está por trás destas e
outras séries de televisão, unirá informações históricas, por exemplo, costumes,
arquitetura, vestimenta e acontecimentos impactantes com entretenimento, pois essa
é a grande demanda de seu público.

546 Responsável por tudo que acontece no jogo, desde movimentação dos personagens até
características da narrativa apresentada ao jogador.
547 Responsável pelos custos que envolvem o desenvolvimento do jogo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
800

Para Jill Liddington, o passado se transformou em fetiche quando representado


em séries de televisão, por exemplo, Band of Brothers de Steven Spielberg, em
documentários dramáticos, por exemplo, A History of Britan e também em programas
de rádio que envolvam lembranças e memórias coletivas de uma certa comunidade.
As pessoas entram em contato com o passado por diferentes maneiras, em salas de
aula, através de museus, revistas em quadrinhos, filmes históricos ou sci-fi, relatos de
memórias e também em jogos digitais. Sendo assim, cineastas, historiadores,
programadores, roteiristas etc., trabalham para atender a esta vasta demanda. Nas
palavras de Liddington, “Assim, para manter clara em nossas mentes essa distinção
acadêmico/profissional, podemos considerar a prática da história pública como sendo
a apresentação popular do passado para um leque de audiências – por meio de
museus e patrimônios históricos, filme e ficção histórica. ” (LIDDINGTON, 2011).
Em decorrência disso, lidar com a história pública é lidar com públicos diversos,
suas histórias, seus lugares sociais, suas carências, seus desejos, suas predileções. É
obrigatório para o historiador que queira trabalhar com cinema, revistas e jornais,
escrita em ficção e até jogos digitais, dominar este conceito em seu campo específico.
Por exemplo, imaginemos o caso em que um historiador está trabalhando com a
organização de um Museu de brinquedos e haverá uma exposição ao público de uma
determinada cidade. Este historiador deverá estar munido de informações como: saber
quem é o seu público, qual a classe social que elas pertencem, como será a
organização dos brinquedos? Será por idade?
Por geração? Fará uma “história da cidade através dos brinquedos e brincadeiras? Etc.
Não é só expor objetos e explicar tudo, a história pública nos obriga a primeiro pensar
no nosso público, depois na história.

OS HISTORIADORES E OS JOGOS DIGITAIS


Como já explicitado, o processo que envolve a produção de um jogo requer
vários profissionais com tarefas específicas, e mesmo que esta realidade esteja
mudando com o advento dos jogos independentes e já exista alguns jogos
desenvolvidos por apenas uma pessoa, é mais prático e rápido que uma equipe
participe da criação. Sendo assim, é aconselhável ao profissional de história inserido
neste processo, o trabalho em conjunto com uma equipe interdisciplinar. Isso não quer
dizer que não há a necessidade do conhecimento das ferramentas necessárias para a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
801

construção de um jogo digital, o historiador deve conhecer em um nível intermediário;


noções de level design548, game design549 o funcionamento de algumas engines para
a programação, assim também como programas para edição, animação e
modelagem550 dos personagens.
Estando o historiador trabalhando em um determinado filme, novela ou seriado
de televisão, ou participando da redação de algum jornal ou revista, ele sempre
trabalhará em conjunto com outros profissionais, com papeis e atividades específicas
a serem desempenhadas, no universo dos games não é diferente. Além do mais, as
pessoas jogam por diferentes motivos e interesses, jogam na fila do banco enquanto
esperam atendimento, jogam para passar horas divertindo-se, jogam porque acharam
o enredo da história interessante, ou também jogam para aprender mais sobre algum
tema específico. Sendo assim, existem diferentes jogos para atenderem a esta vasta e
plural demanda.
Sendo assim, o historiador inserido no processo de desenvolvimento de um
jogo digital o qual tome o passado como forma de narrativa, deverá compreender qual
o interesse e a necessidade de sua criação; será um jogo educativo, usado para ensinar
algum tema para uma turma de alunos da educação básica? Será um jogo que aborde
uma história específica de um personagem marcante na história de um determinado
povo? Será um jogo infantil destinado as plataformas mobile551 no qual trará
personagens e seus feitos de maneira caricata? Ou será um jogo do gênero FPS552
sobre uma guerra com tiroteios para todos os lados e explosões catárticas?
Dependendo dos interesses e necessidades por trás de seu desenvolvimento, o
historiador abordará o passado com um recorte temporal, com uma metodologia, com
fontes e vestígios de uma maneira específica para responder a tais demandas.
Suponhamos que um determinado jogo deva ser feito e a necessidade por traz
de sua produção seja sua utilização como forma de aprendizagem sobre um
determinado tema em uma sala de aula. O profissional de história deverá estar ciente
de um conjunto de informações, por exemplo, saber o perfil, as carências e demandas

548 No desenvolvimento de jogos, level design é a atividade responsável por criar as dificuldades que o
jogador encontrará no jogo.
549 Atividade responsável pela parte gráfica do jogo.
550 Criação específica dos personagens que terão movimentos no jogo.
551 Tablets ou smartphones que executam aplicativos diversos, por exemplo, jogos digitais.
552 Sigla que significa em inglês: First Person Shooter, e em português: Tiro em Primeira Pessoa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
802

dos alunos, o lugar social que a escola está inserida e também se esta oferece a
estrutura necessária para a realização desta atividade. A partir deste momento, o
historiador abordará o passado para responder estas demandas e juntamente com
uma equipe interdisciplinar dará continuidade ao desenvolvimento.
Seguindo esta linha de raciocínio, nos aproximamos da discussão
problematizada por Margarida Oliveira e Itamar Freitas no artigo “Formação do
profissional de história na contemporaneidade”, um dos objetivos dos autores neste
texto é discutir diferentes campos de trabalho os quais o historiador pode atuar, assim
também como sistematizar algumas das atividades que este profissional desenvolve,
por exemplo, na sala de aula, em arquivos, memoriais e em assessorias à jornais,
revistas e outros tipos de mídias. Seja qual for o local de trabalho, haverá atividades
que são primordialmente desenvolvidas pelos profissionais de história, “Nossas
possibilidades de atuações e, podemos afirmar, nosso desejo em disputar a atuação
em outros espaços, resulta da especificidade do conhecimento que produzimos e sua
necessidade para que outros profissionais sirvam-se dele para confeccionar seus
produtos, que podem ser vários. ” (OLIVEIRA e FREITAS, 2014).
Sobre a participação direta de historiadores no desenvolvimento de jogos digitais, um
exemplo possível para esta reflexão é o de Lucas Giehl Molina o qual lançou em 2013
o jogo Avant-Garde (figura 1). Este jogo é um excelente exemplo de como que alguns
acontecimentos ou momentos do passado podem ser usados em um jogo com uma
narrativa simples e que tenha como objetivo maior, entreter o jogador.
Avant-Garde é um jogo do gênero RPG (Role Playing Game) o qual possibilita o
jogador experimentar a vida de um artista em Paris na segunda metade do século XIX,
dentre suas atividades, estão a criação de obra de arte, a relação e interação com outros
pintores e figuras ilustres da época, a participação em competições de vendas de
quadros, a criação ou não de movimentos artísticos, o reconhecimento ou não de suas
obras de arte, o sucesso absoluto ou o fracasso total de seu personagem.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
803

Figura 1: Tela inicial do jogo Avant-Garde.

Em paralelo com o desenvolvimento deste jogo, Molina publicou em 2013 o


artigo “Jogos digitais como espaço de atuação do historiador: o caso Avant-Garde”, e
aqui ele demonstra o desejo de que o desenvolvimento de jogos digitais se torne um
espaço a ser conquistado pelos historiadores e estes passem a agir de maneira
profissional e atuante neste mercado.
O argumento central de Molina neste texto

consiste em demonstrar que um jogo com conteúdos históricos


precisa, em primeiro lugar, considerar as especificidades do jogo.
Qualquer perspectiva histórica pode ser expressa em um jogo, seja ela
marxista, culturalista ou pós-moderna - não cabe a este artigo definir
qual dessas é mais adequada para ser embutida em um jogo. Todas
são igualmente possíveis, cabendo ao criador do jogo a escolha
segundo seus próprios motivos e intenções. O que não pode ocorrer, e
é nessa lição que este artigo se concentra, é o jogo ser tratado como
texto, confundido com outros meios e ignorado em sua especificidade.
(Molina, 2013).

Molina defende um ponto fundamental para o desenvolvimento de qualquer


jogo: sua lógica única. Não importa o gênero, a história, o roteiro ou a plataforma a qual
será publicada, o jogo precisa ser desafiante, precisa punir o jogador por certas
escolhas e recompensa-lo por outras, o jogo deve oferecer múltiplas possibilidades de
ações, o jogador deve estar no controle, se ele não age, o jogo para. E se o jogo aborda
o passado, a mecânica não deve funcionar como um texto ou uma vídeo-aula, o jogador
deve aprender (se este é o objetivo do jogo) jogando, errando, perdendo, ganhando e
recomeçando.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
804

Em Avant-Garde esta lógica está presente. Durante o jogo, nada é explicado ao


jogador sobre conceitos artísticos ou sobre o período histórico usado como narrativa,
de acordo com suas ações e escolha, a história se desdobrará. Poderá escolher passar
mais tempo estudando e melhorando suas habilidades para criar quadros e participar
de concursos, poderá vender os quadros e gastar o dinheiro nos cafés ao lado de
artistas como Monet, Bouguereau e Picasso, ou usar o dinheiro para criar movimentos
de vanguarda. Dessa maneira, sem a necessidade de apresentar ao jogador a verdade
através de informações precisas, o conhecimento histórico é disseminado.
A narrativa do jogo não pretende precisão histórica. Nesse nível, é o conceito de
verossimilhança que guia a experiência do jogador. Ou seja: o jogador interpreta o
papel de um artista que não existiu na época, criado por ele (seu alter ego), mas cuja
experiência teria sido possível ou plausível naquele contexto histórico. A história é
mais que uma base para a narrativa: através das mecânicas e dinâmicas do jogo são
agrupados elementos históricos com o objetivo de representar o conceito de
vanguarda e subsidiar a experiência narrativa. É uma tentativa de divulgar o
conhecimento histórico através de um meio fundamentalmente não-textual, embora
também faça uso do texto. (Molina, 2013).

CAMINHOS POSSÍVEIS COM A ENGINE CONSTRUCT 2


Ultimamente, tenho me dedicado a estudar a engine Construct 2 (figura 2)
desenvolvido pela empresa Scirra. É possível no próprio site da empresa:
www.scirra.com, encontrar tanto a versão gratuita, que serve para conhecer melhor a
ferramenta, fazer alguns testes e estudos práticos, como também é possível
encontrar a versão paga, com mais opções para desenvolvimento e também com a
possibilidade de vender o jogo produzido na ferramenta. Um dos motivos pelo qual
optei por estudar esta engine foi o fato de existir uma grande comunidade de
desenvolvedores, programadores e distribuidores que realizam diversos trabalhos
com esta ferramenta. Em consequência disso, artigos, vídeo-aulas, cursos online e
diversos tipos de tutoriais podem ser encontrados na internet facilmente, o próprio
site da Scirra disponibiliza diversos textos e dicas para o melhor uso da ferramenta
em níveis básicos, intermediários e avançados.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
805

Figura 2:Tela inicial do programa Construct 2.

O outro motivo pelo qual optei por estudar esta ferramenta foi pela facilidade
que o usuário tem ao desenvolver projetos nela, começando pela sua interface inicial
na qual o jogador pode optar por fazer uns pequenos tutoriais caso seja um iniciante,
além de oferecer alguns modelos de jogos prontos para que o usuário possa espelhar-
se enquanto exemplo. Não é difícil compreender a mecânica do programa pela sua
linguagem acessível até para pessoas que não tem proximidade com esta área de
atuação, em decorrência disso, inserir imagens, sons, vídeos, efeitos especiais em uma
determinada ação ou até um comportamento em um personagem ou objeto, não
requer um vasto conhecimento em programação.
Todavia, isso não significa dizer que o programa construct 2 não requer
habilidades do usuário para o desenvolvimento de qualquer jogo. Quando
selecionamos algum objeto por exemplo, em um projeto desta ferramenta e
selecionamos a opção “Behaviors553”, várias possibilidades são apresentadas ao
desenvolvedor para escolha da maneira que o objeto selecionado se comportará.
Todavia, o desenvolvedor deve conhecer e estudar a ferramenta para saber qual opção
selecionar e usar em seu jogo.
Ao mesmo tempo em que iniciei os estudos com esta engine, juntamente com
outros programadores e desenhistas, começamos a desenvolver um jogo no qual
tentamos unir valor de entretenimento atrelado a informações históricas do passado

553 Tradução para o português: comportamento. Selecionada esta opção,o desenvolvedor poderá inserir
alguns comportamentos, por exemplo: “solid” para objetos que nunca se moverão no jogo ou serão
obstáculo, “8 directions” para objetos que poderão se mover para todos os lados no jogo, “platform”
para objetos que se moverão apenas para a direita e esquerda, “sine” para objetos que poderão se
mover a todo o instante no jogo sem o controle do jogador.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
806

medieval europeu. Pensado para seguir o gênero plataforma554, O jogo se chama


“Close to God555” (figura 3), nele, narramos a história de um jovem camponês que
inserido na sociedade medieval, adere a longa jornada de tornar-se cavaleiro para
quem sabe um dia, tornar-se próximo e íntimo de Deus. Durante sua trajetória ele
enfrenta inimigos que invadem a sua vila, conhece figuras históricas, por exemplo, o
papa Urbano II, percorre seu feudo, vai à terra santa por ordens de seu senhor etc.

Figura 3: Desenvolvimento do Jogo Close to God na engine Construct 2.

Estamos quase concluindo a etapa do Game Design 556 junto com a pesquisa
bibliográfica. Por se tratar de um jogo que toma o passado medieval como
ambientação e narrativa, em nossas referências bibliográficas, procuramos textos que
tivessem por objetivo problematizar o cavaleiro medieval e a ordem da cavalaria, e
também referências que nos fornecessem informações sobre arquitetura do período,
tipos de roupas para diferentes classes sociais e também diferenças das armaduras
usadas por cavaleiros.
O nosso desejo ao final de seu desenvolvimento, é que possamos torna-lo
disponível para compra nos sites das lojas virtuais: steam e google play. Até o

554 Todos os objetos em cena: casas, personagens, e outras estruturas estão ajustadas sobre um plano
fixo no jogo.
555 Tradução para o português: perto de Deus.
556 Etapa do processo de produção responsável por todo o planejamento do jogo digital: roteiro,

referências visuais, bibliográficas ou de outros tipos, concepção dos personagens, de roupas, de


ambientações, das fases do jogo e de todos os personagens que participarão da história.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
807

presente momento, Close to God está sendo pensado para ser distribuído nas
plataformas dos smartphones com o sistema operacional “Android” e também para
os computadores com o sistema operacional da empresa Microsoft557.

CONCLUSÃO
Com este artigo, espero ter contribuído para a discussão que tem como cerne a
disseminação do conhecimento histórico por meio das novas mídias digitais e
consequentemente, a inserção do historiador em novos espaços de atuação
profissional. Tomando como objeto de estudo os jogos digitais e seu desenvolvimento,
acredito que o atual momento é extremamente oportuno para tal reflexão, uma vez
que a produção de jogos independestes cresce em nível nacional e também pelo fato
de instituições públicas de ensino estarem fomentando a discussão sobre os jogos
digitais em diferentes setores e
com múltiplas funcionalidades.

REFERÊNCIAS
LIDDINGTON, Jill. O que é história pública? os públicos e seus passados. In:
ALMEIDA, J; ROVAI, M. G. de O. (Orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra
e Voz, 2011, p. 31-52.

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. FREITAS, Itamar. Formação do Profissional de


História na Contemporaneidade. Revista Mouseion, Canoas, N. 19, dezembro 2014.

LLULL, Ramon. O Livro da Ordem da Cavalaria. Tradução de Ricardo da Costa. São


Paulo: Editora Giordano/ Instituto Brasileiro de Ciência e Filosofia Raimundo Lúlio,
2000.

MOLINA, Lucas Giehl. Jogos digitais como espaço de atuação do historiador: o caso
Avant-Garde. Aedos no 12 vol. 5 - Jan/Jul 2013

557 Disponível a partir do Windows 7.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
808

CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA (2012-2017): UMA


ANÁLISE SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA BRASILEIRA
NO TEMPO PRESENTE558
Carlos Augusto Soares Bezerra559
Rhayara Lira de Souza560

INTRODUÇÃO
“a história é feita então em nome do futuro
e deve ser escrita do mesmo modo.”
(HARTOG, 2013: 141).

Por meio da análise dos dados das eleições (2012 e 2016), iremos demonstrar
como o processo democrático tem mostrado na nossa frente, a insatisfação com a
democracia representativa, assim corroborando para a ascensão de novas ideias e
“heróis” dispostos a salvar ou acabar com a democracia no Brasil. Para isso, iremos
fazer uma análise do tempo presente para construção da narrativa dentro do recorte
(2012-2017) para demonstrar como a nossa História política, econômica e social
condicionou o país a um futuro de incertezas nesses aspectos citados. Assim,
utilizaremos o “dicionário dos conceitos históricos” de Kaline Silva e o “futuro da
democracia” em Norberto Bobbio para auxiliar na construção do conceito de
democracia.
Assim, por meio da análise dos jornais eletrônicos coletaremos os dados
referentes ao número de votantes afim de fazer uma análise comparativa do
crescimento do número de votos nulos/brancos e abstenções. Como também perceber
as manifestações de direita como reflexo de uma crise da representatividade
combinada ao conflito de interesses de uma elite privilegiada com complexo de
“oprimido”. Jessé de Souza explica na sua obra intitulada “A Radiografia do Golpe”, que
as manifestações de junho de 2013 seria o pontapé para o chamado golpe “legal” e a
construção de uma farsa da narrativa que transformaria a Dilma Rousseff numa

558 Este texto é resultado de um trabalho de pesquisa desenvolvido para o encerramento da disciplina
(HIS0018) História do Brasil República II, sob a orientação do Professor Doutor Haroldo Loguercio
Carvalho pela UFRN.
559 Graduando em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista

Voluntário (IC) e integrante do Grupo de Pesquisa Espaço, Poder e Práticas Sociais - História e espaços
do ensino (EPPS). Email: carlos2aug@gmail.com
560 Graduanda em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professora

de História do Instituto Sagrada Família. Email: rhayaralira@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
809

presidenta impopular, as manifestações são classificadas com o “O ovo da serpente”.


Em François Hartog, procuramos construir nosso texto em torno da ideia de história do
tempo presente, em que o autor procura explicar a ascensão do presentismo, assim
lançamos mão do conceito, partindo da ideia de que “pouco a pouco, contudo, o futuro
começava a ceder terreno ao presente, que ia exigir cada vez mais lugar, até dar a
impressão recente de ocupá-lo por inteiro. Entrávamos então em um tempo de
supremacia do ponto de vista do presente: aquele do presentismo, exatamente.”
(HARTOG, 2013: 141). Ou seja, historicizar nosso tempo é um desafio para nós enquanto
historiadores que vivenciaram e vivem as experiências históricas na qual procuraremos
responder acerca do cenário da democracia brasileira. Assim, “de certa forma, todo
grupo, toda sociedade, ontem como hoje, pode contar apenas com seu presente.”
(HARTOG, 2013: 142).
Por fim, iremos trabalhar a questão do processo de impeachment como
resultado da ação das forças políticas ligadas ao conservadorismo e ao liberalismo dos
movimentos “Vem pra rua” e o “Movimento Brasil Livre”, assim, devidamente
inconformadas com a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2014. Posteriormente
ao resultado das eleições, será abordada as inquietações desses movimentos que
marcam a chamada crise política da democracia representativa somadas a chamada
“corrupção institucionalizada” nas investigações da Operação Lava Jato que incendiou
o país e acarretou na votação do processo de impeachment que mascarou todas as
discordâncias dos movimentos que foram as ruas em 2015 contra o mandato legitimo
da presidenta, em crime de responsabilidade fiscal. Assim, deixando a grande lacuna
para os historiadores futuramente analisar, impeachment ou golpe?

A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS 2012 E 2016


Primeiramente, precisamos definir o que é democracia e o que seria esse
conceito denominado de democracia representativa. Parece bem óbvio o termo, toda
democracia representativa é uma democracia, mas nem toda democracia é
representativa. Com isso, partimos do conceito de democracia para entendermos as
ideias construídas acerca do conceito, para Bobbio, “o único modo de se chegar a um
acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas
de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras
(primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
810

decisões coletivas e com quais procedimentos.” (BOBBIO, 1986: 17). O governo


autocrático representa o contrário do que seria representativo, a escolha do
representante pelo povo é fundamental para que possamos entender nossa realidade
política para exercermos uma cidadania participativa, aquela que investiga e avalia as
ações do seu candidato dentro do sistema político, seja pelo legislativo ou executivo.
Todos regimes contemporâneos, paradoxalmente, qualificam-se sempre como mais ou
menos democráticos, “assim, tomando a democracia como se apresenta hoje e o
projeto ideal que ela inspira, vemos que é sobretudo um regime aberto, incompleto e
imperfeito, mas que sobre ele é possível construir novas formas de sociabilidade mais
efetivamente democráticas” (SILVA, 2015: 91).
Para entendermos a conjuntura da democracia no Brasil, observamos os dados
das eleições de 2012, para explicarmos a crescente insatisfação da sociedade brasileira
com relação ao sistema eleitoral, portanto, com o foco nas abstenções e votos brancos
e nulos. Segundo o G1.Globo, o número de eleitores que se ausentaram e os votantes
nulos/brancos têm crescido de maneira significativa no cenário eleitoral brasileiro,
assim procuramos recortar os gráficos do jornal eletrônico:

Tabela da comparação da votação das abstenções em 2012 e 2016. Disponível em:


http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/noticia/2016/10/abstencoes-votos-brancos-e-nulos-
somam-326-do-eleitorado-do-pais.html.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
811

A tabela de votos brancos e nulos também mostrou crescimento significativo no


que se refere a porcentagem em relação ao número de votantes:

Tabela da comparação da votação dos votos brancos e nulos em 2012 e 2016. Disponível em:
http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/noticia/2016/10/abstencoes-votos-brancos-e-nulos-
somam-326-do-eleitorado-do-pais.html.

Um fenômeno que vem crescendo cada vez mais, como também é interessante
no intervalo entre esses dois recortes, explicar como ocorreram grandes
acontecimentos significativos do ponto de vista histórico, por exemplo: sancionado
pelo Governo Federal o sistema de cotas nas universidades (2012), cassação da prefeita
Micarla de Souza (2012), boatos sobre o fim do bolsa família (2013), Jornadas de Junho
(2013), Copa do Mundo (2014), Eleições 2014, CPI da Petrobrás (2014), Operação Lava
Jato (2014), Segundo Governo Dilma e o ajuste fiscal (2015), Manifestações do MBL e
do Movimento “Vem pra rua” (2015), Abertura do processo de Impeachment (2015),
Acidente em Mariana/MG (2015), Grampo de Romero Jucá e Sergio Machado (2015),
escândalo de Calero, ex-Ministro Cultura (2016), ENEM e as ocupações (2016),
Impeachment de Dilma (2016), Olimpíadas (2016), Pacote Anticorrupção (2016), PEC
241/PEC 55 (2016), Reforma do Ensino Médio (2016), Trump eleito (2016) etc.
Dentre dos exemplos citados, não foi por acaso a seleção desses eventos que
consideramos “dignos” de serem rememorados, iremos liga-los a uma série de
questões que vão marcar a crise política e da democracia representativa, afinal, apesar
de que do ponto de vista do processo eleitoral, a anulação/exclusão do voto não vão
trazer mudanças significativas, mas, no nosso ponto de vista, é um olhar na qual o

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
812

Governo Federal precisa observar e analisar de acordo com a conjuntura da situação


política vivenciada nesses últimos 6 anos. O brasileiro está cada vez mais
desacreditando na representatividade da classe política, a prova disso, temos um
exemplo como as manifestações desde 2013 (chamado por Jessé de Souza de “o ovo
da serpente”) até o impeachment da Dilma.

REVOLTA DO BUSÃO, “NÃO É SÓ PELOS 0,20 CENTAVOS” E “O GIGANTE


ACORDOU”
As jornadas de junho foi um fenômeno social que intrigou bastante a classe
intelectual do país e do mundo. Todos queriam entender o que estava acontecendo com
a sociedade brasileira, quais eram suas pautas e agendas? Quem era os líderes do
movimento? Mas, a certeza inicial que tivemos foi a questão da divisão da opinião
pública com relação a esse evento.
Porém, precisamos retomar algo primordial sobre as manifestações de 2013,
que para alguns críticos foi uma pauta “pouco relevante”, marcado pela “Revolta do
Busão” e o “Movimento Passe Livre” que lutava contra o aumento da passagem e pelo
ideal do passe livre, ou seja, se o transporte é público? Por que ele não é gratuito? É
uma questão pautada pelo movimento. A passagem aumentou de 0,20 centavos, assim
prejudicando boa parte da população dependente do transporte para sua locomoção. O
papel desses movimentos sociais é imprescindível para garantir a visibilidade das
agendas da população natalense que não aguentava mais tanto aumento. Diante do
primeiro protesto, dia 16 de maio de 2013, os estudantes e movimentos sociais
estudantis (UNE e ANEL) foram a ruas lutar contra o aumento da passagem, cujo o
trajeto se deslocou do Via Direta até o Midway Mall e depois retornou ao Natal
Shopping. Porém, o clímax da manifestação ocorreu em frente ao Portugal Center
quando a ROCAM fechou a passagem para os manifestantes. Um dos manifestantes foi
dialogar para pedir a passagem para seguir adiante, mas a resposta da polícia, como
deve imaginar (imagem 1), foi gás lacrimogênio e bala de borracha, assim fazendo com
que a manifestação reagisse com pedras, enquanto alguns filmavam a ação de ambos
(imagem 2):

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
813

Imagem 1: Momento de truculência da polícia rende o cidadão e o cerca

Imagem 2: Professora Sandra tem sua câmera tomada pela polícia.

A Polícia Militar iniciou o tumulto e a truculência, inclusive no Jornal da Globo foi


noticiada o protesto em Natal de 15 de maio de 2013, destacando a ação PM em
confronto com os manifestantes. Segundo o G1.Globo, na entrevista com o estudante
João Carlos de Mello, o estudante de História relatou sobre a truculência da polícia
afirmando que "Ficou claro que naquele momento o objetivo da operação era nos
espancar" (G1, 2013), atingido por uma bala de borracha na panturrilha (imagem 3):

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
814

Imagem 3 mostra o estudande de História foi atingido por disparo de bala de borracha na perna
(Foto: Felipe Gibson/G1)

A entrevista foi editada e distorceu a fala do estudante, ao afirmar que jogou


pedra como forma de reação a opressão policial, o RN TV editou a fala para que
caracterizasse a manifestação sendo resumida numa fala distorcida explicando que
jogaram pedra na polícia. Porém, na rede social Facebook, foi postado o vídeo completo
mostrando que a entrevista foi distorcida e acabou se espalhando pelas redes.
Portanto, boa parte das pessoas que participaram dessas manifestações ficaram mais
atentas com relação a distorção da mídia, as pessoas ficaram mais vigilantes. A
truculência da polícia foi responsável pela maioria das manifestações posteriores, mas
a grande consequência é a descredibilidade da mídia que também foi para pauta dos
protestos a luta contra a manipulação, essa pauta ganhou força junto com a questão
da opressão da polícia nos próximos nove atos que ocorreram até dia 20 de junho.
O movimento, desde o dia 15 de maio, ganhou proporções nacionais, atingindo os
estados brasileiros e todos pautavam contra o aumento da passagem, contra a
manipulação da mídia e a ação repressiva da política. Algumas personalidades
começaram a opinar sobre a situação, Ronaldo e Pelé ex jogadores da seleção
brasileira. Ronaldo afirmou que “não se faz copa do mundo com hospitais” e Pelé, para
piorar, afirmou que “Vamos esquecer essa confusão que está acontecendo no Brasil,
todas essas manifestações, e apoiar a seleção brasileira, que é o nosso país” e ainda
acrescentou que “Faltam 10 meses para começar a Copa. Não vai dar tempo para ver o
que foi gasto. Então vamos aproveitar para arrecadar com turismo e compensar o
dinheiro que foi roubado dos estádios”. Foram frases profanadas de personalidades
muito respeitadas, até então, pela sociedade e isso fez gerar uma revolta ainda maior
com relação a tudo isso. Mas também a intensificação principalmente quando a Copa

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
815

do Mundo e a ação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) começaram a ganhar


força um discurso de que “Não Vai Ter Copa”, foi uma pauta que os movimentos de
esquerda, partidários do PSTU e do PSOL começaram a abraçar juntamente com os
movimentos de ação direta como os Black Blocs. Páginas do Facebook começaram a
evidenciar difamações sobre o Governo Federal, uma página chamada “TV Revolta”,
“Revoltados online”, “Marcha Contra Corrupção” etc. Foram os principais porta vozes
da difamação e da federalização dos problemas municipais/estaduais, apesar de que,
segundo Jessé de Souza, a cobertura do Jornal Nacional fez uma reviravolta sobre seu
posicionamento diante das manifestações, a partir do momento em que a classe média
aderiu as manifestações. Assim, Jessé de Souza afirma:

A cobertura do Jornal Nacional no dia 19 de junho passou por uma


transformação decisiva. A federalização dos protestos, com o
objetivo de atingir a figura da presidente, começou a ganhar
corpo com a criação de palavras de ordem pelo próprio jornal, que
passava agora a promover e incentivar as manifestações como
explosão democrática do povo brasileiro. (SOUZA, 2016: 91)

As manifestações de junho até o dia 20, começaram a ganhar força por todos os
estados, mas dessa vez com o apoio da Rede Globo, afinal, seu público cativo estava
presente, as pessoas perceberam que a ação da polícia era uma realidade e que os
manifestantes, de fato sofriam repressão, seja nas favelas, seja nas ruas do centro e
afins. As agendas contemporâneas das manifestações ganharam uma nova proporção,
tendo inúmeras pautas sendo levantadas no dia 20 de junho. Assim, ao noticiar a queda
da popularidade de Dilma de 79% para 71%, ainda que moderada, “percebia-se
claramente que os protestos podiam ser canalizados para atingir a presidenta. (...) A
bandeira da antipolítica e antipartidos surgiu. Inflação e custo de vida se tornaram
bandeiras e substituíram a passagem de ônibus.” (SOUZA, 2016: 91).
“O Gigante Acordou”, segundo os manifestantes. Em Natal, o dia 20 de junho em
nosso ponto de vista, foi uma verdadeira “carnavalização” das manifestações, pessoas
bebendo whisky, abriram rodinhas para homens embriagados “darem em cima” de
mulheres durante o evento. Mas para alguns, a manifestação era simbólica e
estávamos vivendo um momento histórico, comparável ao que Marc Bloch disse a
Lucien Febvre na Segunda Guerra Mundial, parafraseando Bloch, ele afirmou que “é
hora de viver a história, não de escreve-la”.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
816

Assim, moveu-se os brasileiros para viver aquilo que será um lugar de memória
um dia. Porém, como afirmou Jessé de Souza, o antipartido ganha força, as
manifestações apresentaram sinais claros de ação fascista, em Natal, políticos
partidários do PSTU foram hostilizados e agredidos em nome de uma confusão
conceitual, diziam-se apartidaristas, mas o apartidarismo é a noção de que uma
manifestação não tem partidos como representantes, mas isso não significava que era
proibido partidos, afinal, eles são parte da democracia e tem o direito de estarem
presentes no ato, posteriormente, surgiram grupos que pediam intervenção militar,
assim, o fantasma do golpismo ressurge na nossa democracia, afastando a militância
da esquerda, inclusive, aqueles que sempre estiveram presente lutaram desde o
começo contra a ação da polícia e da mídia, o MPL.
Uma das questões que julgamos mais preocupantes das manifestações do 20
de junho foram as agressões a partidos de esquerdas maquiadas de apartidarismo,
foram inúmeras as situações que exemplificaram este ponto, mas como exemplo
tomamos a agressão à Amanda Gurgel ao hastear a bandeira do PSTU, logo em
seguida, várias pessoas, principalmente homens, avançaram em sua direção na
intenção de arrancar a bandeira dela, à época, várias imagens circularam pelas redes
sociais, mas lamentavelmente ao procurarmos no Google, não há resquícios da mesma.
Levando-se em consideração que o noticiamento do fato se deu por veículos
alternativos de comunicação. Vale mencionar ainda, outro tipo de reacionarismo à
esquerda (Imagem 04):

Imagem 4 mostra o protesto pró impeachment, ocorrido em 2016.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
817

Com frases que já foram utilizadas em outros momentos da História Brasileira


(vide Ditadura Militar), pessoas foram às ruas, vestidas de verde e amarelo
direcionando todos aqueles que não coadunavam com a perspectiva do impeachment,
a irem morar em Cuba, afirmando que o Brasil não seria um exemplar do referido país.
Essa alusão remete à Revolução Cubana, que provocou uma série de transformações
em Cuba devido à articulação governista de esquerda e que se valeu de medidas sociais
para a erradicação de desigualdades como a Reforma na Educação e a Reforma Agrária.
O lamentável é perceber a similaridade com discursos ditatoriais nacionalistas como o
“Brasil: ame-o ou deixe-o, entre outras perspectivas que ferem a ordem democrática.
Com o crescimento da popularidade das páginas anteriormente citadas, o centro
de todos os problemas estava no Governo Federal, a TV Revolta, principalmente, foi
uma página que difamou e construiu confusões conceituais sobre a administração
pública e o pacto federativo, as pessoas começavam a cobrar de Dilma, soluções que
não lhe competem. Essa confusão conceitual acabou que contribuindo para a
diminuição da popularidade de Dilma Rousseff. A maior crítica dessas páginas era aos
programas sociais, cujo o ataque era cada vez mais intenso, principalmente ao Bolsa
Família, Sistema de Cotas, Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida etc. Os Programas
que integravam o “Plano Brasil sem miséria” do Governo Federal, inclusive, Marcelo
Reis (Dono da página Revoltados online), iniciou uma campanha de vendas de produtos
que propagandeava contra o Partido dos Trabalhadores, conduzindo os internautas a
aderir as campanhas de ódio contra o Partido, contra Lula e contra Dilma. Porém, a
militância e a esquerda tiveram que agir contra a onda fascista que propagava discursos
de ódio por meio do preconceito de classe (usuários do bolsa família, cotas etc.),
misoginia (inúmeros xingamentos a presidente) etc. Assim criaram-se páginas com
conteúdo que pudessem desmascarar essas demais páginas, “TV Relaxa”, “É tudo
culpa do PT” etc. Fazendo sátiras por meio de memes (imagem 5 e 6):

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
818

Imagem 5: O meme que satiriza a generalização dos problemas para as costas do Governo Federal

]
Imagem 6: A TV Revolta junto com o Revoltados Online foram os responsáveis pela propagação de
uma das maiores difamações e falácias sobre o Partido dos Trabalhadores e escondia os escândalos
do PSDB, afinal era o principal Partido capaz de tirar o PT.

O apoio da Rede Globo, as campanhas das páginas nas redes sociais e a


população direcionando todos os males, até mesmo problemas esdrúxulos, do país a
figura da presidente, resultando nas vaias que ocorreram na abertura da Copa das
Confederações (2013) e os xingamentos no primeiro jogo da Copa do Mundo (2014).
Apesar desses ocorridos, a presidente Dilma, sabiamente, responde que “prefere as
vaias da democracia do que os aplausos da ditadura”. Houve reação do Governo Federal
com relação as manifestações, a Reforma Política era a pauta principal, o governo teve
a sensibilidade de perceber que o número de pautas naquela magnitude, eram bastante

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
819

amplas, portanto, poderia recuperar a confiança que a sociedade tinha pela democracia
por meio da Reforma Política.
Porém, antiesquerdismo e, principalmente, o antipetismo estava cada vez mais
forte, nada do que vinha do Governo Federal era bem visto por parte da população. Em
2014, a tendência seria o debate político na sociedade atingir grandes proporções:
brigas entre a família, amigos, desconhecidos etc. No caminho da eleição, era
perceptível que a tendência era cada vez mais se polarizar o debate político entre
esquerda e direita, delegando o destino de Dilma Rousseff nas mãos do funcionamento
da Copa do Mundo, muitos que se diziam contra a Copa, tiveram que mudar seu discurso
para que a direita não ganhasse popularidade em cima do fracasso do evento. Assim, o
debate político das eleições dividiu o Brasil conduzindo a polarização PT e PSDB.

ELEIÇÃO POLARIZADA (PSDB X PT)


Nunca se tinha visto um evento que desfez tantas amizades, criou-se tantas
intrigas familiares e brigas calorosas nas redes sociais. Quem nunca comentou numa
postagem de um colega que compartilhava uma cartilha sem fontes que contribuía
para desinformar as pessoas? Quem nunca criticou alguém que compartilhava
postagens da página do Partido dos Trabalhadores, afirmando não existir credibilidade
no governo? Por essas e outras, o facebook nunca foi utilizado tanto, como nesses
últimos anos para promover ataques, imposição de ideias, falta de educação etc. Mas,
para quem estava interessado em votar no PT, precisava se engajar na campanha dos
militantes para desconstruir os discursos construídos desde a chamada “federalização”
dos problemas municipais/estaduais, fenômeno discutido anteriormente por Jessé de
Souza. Mas a discussão na internet girou em torno dos debates sobre a legitimidade
das políticas públicas de garantia de direitos, afinal, a meritocracia ainda é um discurso
forte na nossa sociedade, segundo Jessé de Souza, “O capitalismo tira onda de justo.
Afinal, a justificação moral mais importante do mundo moderno é a de que todos
possuem chances iguais.” (SOUZA, 2016: 65).
Assim, questionava-se as políticas públicas, a política exterior do Brasil e suas
alianças com países como Cuba (Fidel e Raul Castro), Venezuela (Hugo Chávez),
Argentina (Cristina Kirchner), Bolívia (Evo Morales) etc. Chamavam de Foro de São
Paulo, o plano conspiratório de que o Governo do PT quer transformar o Brasil numa
Ditadura Comunista, diziam que o PT era “totalitário” e que se vencesse a eleição, o país

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
820

se tornaria uma Cuba. O esforço árduo de Dilma Rousseff era de investir nos grandes
feitos do Governo nos últimos 12 anos e rememorar os tempos da inflação, privatização
das estatais a preço de banana pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso e Aécio
Neves.
As agendas conservadoras e liberais pautava na necessidade de retirar a todo
custo o PT do poder executivo. A agenda da esquerda, mesmo a militância PSOL e PSTU,
muito crítica ao PT, temia a ascensão do PSDB e das grandes agendas neoliberais
(semelhante aos anos 90), afinal, não é de hoje que o PSDB sempre quis entregar o Pré-
Sal para as empresas estrangeiras. A morte de Eduardo Campos (presidenciável do
PSB) incendiou o Brasil, gerou uma grande comoção, ao mesmo tempo que gerou várias
conspirações por parte das redes sociais que acreditava que havia uma sabotagem no
avião do candidato e adivinha a quem foi associado as conspirações? Sim, ao PT. Porém,
as pessoas se sensibilizaram tanto com a morte de Eduardo Campos, que a sua vice
Marina Silva acabou ganhando forças em cima de uma tragédia, adotando a frase dita
na sabatina do Jornal Nacional por Eduardo Campos “Não vamos desistir do Brasil”.
Assim fez a charge de Carlos Latuff (imagem 5):

A imagem 07 mostra a presidenciável Marina Silva ganhando força nas pesquisas do Datafolha, após o
trágico acidente. Assim Latuff ironiza o salto assustador de Marina nas pesquisas eleitorais, chegando
até a ganhar da Dilma num possível segundo turno.

Assim, foram marcadas as eleições de 2014, por meio das campanhas de baixo
nível, difamações de adversários, informações distorcidas e muita desonestidade
intelectual. O jogo sujo foi bastante evidente nas campanhas, Dilma acusando Aecio

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
821

com relação ao aeroporto de Claudio e de Montezuma, Aecio acusando Dilma de


quebrar a Petrobrás, aumentar a inflação e o desemprego e ambos atacaram a Marina
Silva e as suas próprias contradições. A candidata Luciana Genro (PSOL) chegou a
associar os três candidatos aos irmãos siameses, ambos estão a serviço de uma agenda
neoliberal, posteriormente, iremos observar que fazia sentido essa frase. As
contradições de Marina em relação a sua base de apoio com a chamada “Nova Política”,
a sua defesa da autonomia do Banco Central apoiada pelo presidente do Itaú e a
aproximação com Neca Setúbal irmão do presidente do Itaú e o seu desespero com sua
queda nas pesquisas contribuíram fortemente na decisão de Marina Silva apoiar Aécio
Neves nas eleições do 2ª Turno, já que a militância da esquerda fez campanha pesada
contra Marina Silva. Na votação do 1ª turno, Dilma ficou com 41,59% (43.267.668
votos); Aécio Neves com 33,55% (34.897.211 votos) e Marina Silva com 21,32%
(22.176.619). A campanha era atrair o maior número possível de eleitores para evitar
que o apoio de Marina Silva influencie decisivamente na vitória de Aécio Neves.
No intervalo entre o fim do 1ª turno e o dia da votação do 2ªturno, vieram mais
jogo nas campanhas de ambos os candidatos. Nos debates, os internautas faziam
memes da Dilma, ridicularizava o momento em que ela passou mal no fim do debate do
SBT. Inclusive, nesse debate Dilma foi acusada de pedir para Fernando Pimentel
empregar o irmão Igor Rousseff, acusando-a de nepotismo, quando na verdade, ele
trabalhou como assessor especial e foi exonerado após o fim da gestão de Pimentel
em 2009. A campanha da Dilma e da militância, além de pautar na trajetória dos 12 anos
de governo e a contribuição das políticas públicas, buscava-se difamar o tucano e
desconstruir o dado que o candidato tanto se “gabava”. Aécio dizia ter saído do governo
de Minas Gerais com 92% de aprovação, como um ex governador com tanta aprovação
perde a eleição no seu próprio Estado? Afinal, a Dilma Rousseff teve 43,48% (4.829.513
votos) e Aécio Neves teve 39,75% (4.414.452 votos) e esses números ainda iriam
aumentar para a petista no final do 2ª turno. Assim, em agradecimento ao Governo Lula
(2003-2010) e sua gestão, a derrota de Aécio Neves em Minas Gerais e o medo do
retorno da agenda neoliberal do PSDB foram decisivas para a apertada vitória de Dilma
Rousseff com 51,64% (54.501.118 votos) contra o tucano 48,36% (51.041.155 votos),
destaque para as abstenções de 30.137.479 (21,1%).
A vitória de Dilma Rousseff deixou claro que o Brasil estava dividido, muitos não
aceitaram a sua vitória, acusaram as urnas eletrônicas de fraude, afirmaram que o seu

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
822

segundo mandato já se caracterizaria como uma ditadura socialista aos moldes de


Cuba. Enfim, muitas acusações e conspirações, mas isso não será o maior dos
problemas que a presidente reeleita irá enfrentar, o que se espera para 2015 é um
governo que irá precisar fazer tudo aquilo que disse que não iria fazer, vai ser o mal
necessário que irá se somar aos casos de corrupção com a CPI da Petrobrás e a
Operação Lava Jato que serão a maior pedra no sapato somada ao Congresso Nacional
mais conservador em toda a História da República. Assim, ganhará destaque para três
pessoas que representarão o maior dos problemas da nossa democracia brasileira e a
sua contribuição para a descrença da política: Eduardo Cunha, Sérgio Moro e Jair
Bolsonaro.

A INGOVERNABILIDADE E A CRISE ECONÔMICA TRANSFORMADA EM POLÍTICA


Nunca um ano foi tão difícil governar como foi o ano de 2015, sucessivos ataques
foram profanados a gestão petista que precisava de alguma forma garantir segurança
econômica e não permitir que a instabilidade política se institucionalizasse, um dos
exemplos de ataque se deu em relação ao preço dos combustíveis, a partir da qual,
várias pessoas reagiram adesivando seus carros com a presidente em situação
pejorativa do seu corpo, colocada por cima do tanque de combustíveis de carros, de
modo que a bomba de gasolina remetia ao falo masculino e a entrada de combustível
ao órgão genital de Dilma, como mostra a imagem a seguir:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
823

Imagem 08 mostra a foto da adesivagem sexista de carros em protesto ao preço dos combustíveis.

Essa foi a forma que muitos consumidores enfrentaram para protestar contra
um aumento de R$0,16 no preço da gasolina, revelando uma postura machista e
misógina do uso da imagem da presidente na qual ela aparece sendo penetrada pela
bomba de combustível.
No período, os adesivos poderiam ser facilmente adquiridos pelo preço de
R$34,90 em um site de vendas chamado Mercado Livre, e inúmeras pessoas aderiram
a esse crime, contra o qual foi aberto processo.

Imagem 09 e 10 mostram o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, aparece junto as manifestações.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
824

Para além de situações como a anteriormente citada, outros símbolos foram


agregados aos movimentos de contestação do então governo vigente, tais como o
“Pato da Fiesp”:
Criado em 2015 para satirizar o aumento de impostos, o Pato da Fiesp foi
amplamente utilizado nos protestos pró impeachment, e na foto acima, ao seu lado,
aparece Paulo Skaff, então presidente da Federação das Indústrias e sobre o qual,
durante as delações da Lava Jato, foi dito que pretendia diputar cargos políticos em São
Paulo, especificamente ao governo do estado.
Como se não bastasse, diante de tudo isso, o quadro que se projeta para 2018,
ano de eleição, se dá por soluções políticas desastrosas, com a ascensão de figuras
como Jair Messias Bolsonaro, mesmo desrespeitando os direitos humanos a cada vez
que abre a boca, insultando segmentos sociais como os indígenas, os quilombolas, os
negros, a comunidade LGBT e as mulheres. Tudo isso é reflexo do caos da corrupção
institucionalizada que se instaurou no país e assim permanece, pelas denúncias
relacionadas à Lava-Jato e sua consecutiva obstrução por parte de Temer, dentre
tantos outros fatores que resultam do fortalecimento da direita e supressão dos
movimentos sociais e que situam o Brasil em uma condição de caos.

IMPEACHMENT OU GOLPE? QUAL SERÁ O DESTINO DA JOVEM DEMOCRACIA


BRASILEIRA?
A partir de todos os elementos aqui colocados, toda a configuração política pré
e pós impeachment, é lamentável vislumbrar a realidade brasileira e não conseguir
projetar um rumo a ser tomado.
Está tudo visto sob a escuridão e a égide de um momento histórico no qual a
grande percepção que podemos ter é de uma corrupção institucionalizada, na qual os
criminosos são sempre identificados, mas nunca punidos.
Os jovens majoritariamente direcionam seus votos à candidatos que estimulam
a violência desmedida e a agressão generalizada às minorias, as pessoas passam a
utilizar argumentos baseados em “família tradicional brasileira”, “cidadão de bem”,
“bandido bom é bandido morto” e população armada.
O que percebemos então é que se utilizaram artifícios da legalidade para
defender um governo inconstitucional, pela descrença e pela fé, os movimentos sociais
vão perdendo força e o atual governo vai cada vez mais se legitimando, ceifando a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
825

educação, o serviço público, sucateando o Estado e apagando de suas pautas o


trabalhismo.
Por fim, o Golpe de Estado no qual o grande personagem, representante da
coalisão da governabilidade e das forças políticas hegemônicas não se resumiu ao dia
31 de agosto de 2016, quando o mandato da presidente democraticamente eleita foi
cassado, mas segue acontecendo todos os dias, na nota do supermercado, no corte na
educação, na pedalada fiscal que agora é legal e no preço do combustível que já não é
mais contestado.
O golpe é todos os dias, os tempos são desafiadores, mas a democracia ainda
não virou um fantasma.

FONTES
G1.Globo. Dilma é reeleita presidente e amplia para 16 anos ciclo do PT no poder.
Brasília: G1.Globo, 2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/noticia/2014/10/dilma-e-reeleita-
presidente-e-amplia-para-16-anos-ciclo-do-pt-no-poder.html . Acessado em: Nov 2017.

GIBSON, Felipe. Protestos por melhorias no transporte chegam ao 9º ato em Natal.


RN: G1.Globo, 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-
norte/noticia/2013/06/protestos-por-melhorias-no-transporte-chegam-ao-9-ato-em-
natal.html. Acessado em: Nov 2017.

JERIMUM TV. Revolta do Busão: Protestos dos estudantes em Natal contra o


aumento da Tarifa de ônibus. RN : Youtube, 2013. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IB5Tn6rEYlU. Acessado em: Nov 2017.

RAMALHO, Renan; CARAM, Bernardo. Abstenções, votos brancos e nulos somam


32,5% do eleitorado do país. Brasília: G1.Globo. Disponível em: <
http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/noticia/2016/10/abstencoes-votos-
brancos-e-nulos-somam-326-do-eleitorado-do-pais.html> . 2016. Acessado em: Nov,
2017.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo /Norberto
Bobbio; tradução de Marco Aurélio Nogueira. — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

HARTOG, François. Memória, História, presente. In:_____ Regimes de historicidade :


presentismo e experiências do tempo / François Hartog. --Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013.-- (Coleção história e historiografia). p.133-192.

SILVA, Kalina Vanderlei. Democracia. In:____ Dicionário de Conceitos Históricos /


Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva. - 3.ed., 5ª reimpressão, - São Paulo :
Contexto, 2015. 89-92p.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
826

SINGER, André; JINKINGS, Ivana (org). Por que gritamos golpe? : Para entender o
impeachment e a crise política no Brasil. Boitempo Editorial, 2016, 176p.

SOUZA, Jessé. O golpe “legal” e a construção da farsa. In:____ A Radiografia do


golpe : entenda como e por que você foi enganado / Jessé Souza. – Rio de Janeiro :
LeYa, 2016. 144p.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
827

Simpósio Temático 15
SERTÕES:
NARRATIVAS E FRONTEIRAS
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
828

PERSPECTIVAS DE SERTÃO NA OBRA “HISTÓRIA DO


MUNICÍPIO DE CURRAIS NOVOS/RN” DE QUINTINO FILHO

Francisco Das Chagas Da Silva561


Mara Gabrielly Batista de Macêdo 562
Rayane Karinny Gomes Berto 563

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é o de analisar qual é a perspectiva de sertão que
aparece na obra “História do Município de Currais Novos”, de autoria de Antônio
Quintino Filho.
Insta registrar que este artigo partiu de uma visista técnica aos municípios
norte-riograndenses de Cerro-Corá, Lagoa Nova e Currais Novos, com finalidade de
atribuição parcial de nota da unidade 2 do primeiro semestre de 2018, atividade esta
que foi promovida conjuntamente pelos Professores Helder Macedo e Thiago Dias,
ambos docentes do Departamento de História da UFRN, CERES, campus de Caicó/RN.
Os discentes da disciplina de Introdução ao Estudo da História – DH0066, do
turno noturno, foram divididos pelo Professor Helder Macedo em 3 (três) grandes
grupos. Cada um destes grupos, responsabilizou-se por realizar a leitura de um livro
indicado que tratasse da História de surgimento de um dos três dos municípios
visitados, com o compromisso dos integrantes de conduzir um debate sobre os temas
estudados na disciplina de Introdução ao Estudo da História, bem como de contatar e
inserir um historiador local para participar das discussões.
Em sendo assim, foi proposto ao grupo de nº 3 (grupo este composto pelos
seguintes discentes: Ana Patrícia dos Santos; Carlos Santana de Andrade; Cleidiane de
Araujo Oliveira; Flávia Bezerra de Almeida; Francisco das Chagas da Silva; Leticia do
Carmo Souza; Mara Gabrielly Batista de Macêdo; Nalu Naula Majoarre Medeiros; Rair
Nieslley Pereira Braga; Rayane Karinny Gomes Berto e Thayse Karla de Medeiros
Fonseca) a leitura da obra “História do Município de Currais Novos/RN”, escrita por

561 Aluno da Licenciatura em História. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de
Ensino Superior do Seridó (CERES), Caicó/RN, sob orientação do Prof. Helder Macedo – Departamento
de História (CERES – UFRN). E-mail: holyver1985@gmail.com;
562 Aluna da Licenciatura em História. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de

Ensino Superior do Seridó (CERES), Caicó/RN, sob orientação do Prof. Helder Macedo – Departamento
de História (CERES – UFRN) E-mail: maragbmacedo@outlook.com;
563 Aluna de Pedagogia. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior

do Seridó (CERES), Caicó/RN, sob orientação do Prof. Helder Macedo – Departamento de História (CERES
– UFRN). E-mail: rayanekarinny@hotmail.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
829

Antônio Quintino Filho e publicada em 1987 pela Fundação José Augusto, obra esta que
narra o surgimento deste município potiguar por uma vertente econômica, ligada ao
ciclo do gado e ao comércio.
Além de promover debates sobre a obra, o grupo foi orientado a discutir acerca
do lugar social do autor, dos métodos e das fontes utilizadas por ele. Na visita à cidade
de Currais Novos/RN, propriamente, o grupo optou por conhecer, de início, a Igreja
Matriz de Sant’Ana e, posteriormente, o Hotel Tungstênio, apresentando o debate para
o restante da turma, com ênfase para as conexões com o que fora lido da obra de
Quintino Filho e estes lugares.
Finalmente, o grupo de nº 3 produziu um texto analítico, em forma de relatório
de viagem, em que as impressões dos estudantes sobre o município de Currais
Novos/RN, bem como sobre a obra de Quintino Filho e os assuntos discutidos na
disciplina de Introdução ao Estudo da História foram devidamente registrados.
Com esta visita técnica, a relevância da obra da Antônio Quintino Filho para a
História de Currais Novos/RN destacou-se. A ausência de trabalhos acadêmicos sobre
esta importância também foi observada com preocupação pelos autores deste
trabalho, o que foi importante motor para o desejo de confecção do presente artigo.
Ademais, o apreço pelo sertão e suas narrativas permitiu que os autores
investigassem os diversos sentidos da palavra sertão e como ela aparece no livro de
Quintino Filho. Por tudo isso, justifica-se a análise em tela.
Quanto aos referenciais teóricos considerados para pensarmos os conceitos de
sertão, é preciso sublinhar que, embora de início tomemos “sertão” como uma palavra
polissêmica, neste artigo, entendemos que ela aparece com o significado de “interior”,
em uma visão clássica pautada nas lições de diversos autores, sobretudo, nos escritos
de Jerusa Ferreira e de Moraes (FERREIRA, n.d.; MORAES, 2003).
No que toca à metodologia utilizada, tomamos como premissas a abordagem
teórica, seleção, fichamento e discussão em grupo da obra de Antônio Quintino Filho; a
visita à cidade de Currais Novos e discussão in loco sobre os conceitos e alguns espaços
trabalhados pelo autor e a elaboração de relatório sobre a visita técnica. Assim como
realizamos a abordagem teórica, seleção, fichamento e discussão em grupo de artigos
dos autores Erivaldo Neves; Jerusa Ferreira; Janaína Amado e Antônio Carlos Robert de
Moraes, pensadores estes que trabalham com o conceito de sertão e suas diferentes
perspectivas (AMADO, 1995; FERREIRA, n.d.; MORAES, 2003; NEVES, 2003).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
830

Imperioso que se mencione que utilizamos, ainda em termos de técnicas


metodológicas, os ensinamentos de Michel de Certeau presentes no Capítulo II – A
operação historiográfica - de seu livro “A Escrita da História”, em que defende a
observação do lugar social do autor, sua prática e sua escrita (CERTEAU, 1982).
Com fito de melhor sistematizar as ideais deste trabalho, de começo,
apresentar-se-á uma síntese dos ensinamentos de Michel de Certeau contidos no
capítulo supramencionado. Ato contínuo, destacar-se-á o que fora observado acerca do
lugar social do autor e de sua obra, para, finalmente, serem apresentados os conceitos
de sertão e a perspectiva adotada no livro.
Por outro lado, na visita in loco, o sertão curraisnovense narrado por Antônio
Quintino Filho – com suas fazendas, religiosidade, mercados, animais e minérios – só
pode ser apreendido em seus resquícios, daí a importância do encontro da abordagem
teórica e prática da visita técnica, que pode ser de muitos modos explorada.
Isto posto, constatamos que, no livro de Quintino Filho, o sertão aparece como
“interior”, em uma perspectiva mais clássica desta palavra, eis que, como cenário do
surgimento do município de Currais Novos/RN, é premente sua relação com o ciclo do
gado e a grande religiosidade local.

A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA
De acordo com a preleção de Certeau, perceber a História como uma operação
será tentar compreendê-la como a relação entre um lugar, procedimentos de análise e
a construção de um texto (CERTEAU, 1982).
Mas o que seriam esse lugar, esses procedimentos de análise e esse texto? De
modo muito resumido, o lugar social se refere a aspectos da vida do autor, como, a título
de exemplo, sua profissão. Os procedimentos de análise, por outro lado, dizem respeito
a uma disciplina, ou seja, como o autor procedeu para a criação da História, salientando
os seus métodos. Por derradeiro, faz-se necessário relacionar todos esses aspectos
com a construção do texto (literatura) para, então, perceber a História como uma
operação.
A História que Quintino Filho criou foi, portanto, analisada sob a tríade
mencionada: o lugar social; os procedimentos de análise e a construção do texto.
Cabe, neste momento, a apresentação de importantes informações sobre
Antônio Quintino Filho, o que se faz na sequência.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
831

O LUGAR SOCIAL E OS DADOS BIOGRÁFICOS DE ANTÔNIO QUINTINO FILHO


Com fulcro no sítio virtual da Fundação José Augusto564, Antônio Quintino Filho
nasceu na cidade de Acari aos 21 de outubro de 1911 e faleceu em Currais Novos aos 08
de julho de 2010. Este homem sertanejo foi tipógrafo, professor e poeta. Formou-se no
curso de Letras na cidade de Patos, na Paraíba, entre 1973 e 1976.
Era um estudioso meticuloso, deixando evidenciar esta característica pelo fato
de que, mesmo não sendo historiador de carreira, muito se preocupava em referenciar
seus escritos, balizando-se em famosas obras da História do Brasil, História do Rio
Grande do Norte, além de documentos cartorários, religiosos, jurídicos e depoimentos
orais.
Outra marcante característica é a grande religiosidade de Antônio Quintino Filho.
A sua forma de redigir, interagir e vivenciar o mundo carregou muito de suas convicções
religiosas, o que claramente pode ser percebido na obra estudada, “História do
Município de Currais Novos”, cujo prefácio é – destaca-se - assinado pelo clérigo Pe.
Ausônio de Araújo Filho.
Deste modo, vê-se que o livro de Quintino Filho aqui analisado carrega marcas
pelo fato de ter nascido no sertão do Rio Grande do Norte, de sua formação acadêmica
em Letras, de sua profícua vida intelectual e a sua religiosidade, que, por óbvio, se
refletiram nas escolhas do autor para a construção do seu texto.

OS PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE E A OBRA “HISTÓRIA DO MUNICÍPIO DE CURRAIS


NOVOS”
“Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em
‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira”, assevera Certeau (1982).
Quintino Filho, do seu modo, realizou esta operação descrita ao escrever “História do
Município de Currais Novos”.
A obra, publicada em 1987 pela Fundação José Augusto, em Natal/RN, possui
145 páginas, constando 12 capítulos. Utilizando como fontes teóricas autores clássicos
da História do Brasil (p.e. João Ribeiro; R. Haddock Lobo) e da História do Rio Grande do

564 FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO. Antônio Quintino Filho. Disponível em: <
adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria.../DOC000000000110505.PDF>. Acesso em 20 Jun.
2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
832

Norte (p.e. Câmara Cascudo; Nestor dos Santos Lima; Tavares de Lira), fundamentava
as suas posições, mas com o cuidado de não impor verdades.
Partindo da leitura de sua obra e, sobretudo, da observação das referências
utilizadas, nota-se que Quintino Filho apresenta, por vezes, um viés econômico e
religioso como supedâneos para explicar o surgimento do município de Currais Novos.
Isto se revela logo na página 11 do livro, veja-se:

“Entre os vários ciclos em que os historiadores dividem a história


econômica do Brasil, destaca-se o chamado ‘ciclo do gado’ ou ‘da
pecuária’, como fator importante no povoamento do interior.”
(QUINTINO FILHO, p. 11, 1982).

A escolha que realiza ao determinar o primeiro povoador do município de Currais


Novos como sendo o 1º Cipriano Lopes Galvão, juntamente a sua esposa D. Adriana de
Holanda de Vasconcelos, é explicada por Quintino Filho (1987, p. 16) com a seguinte
frase: “importância não significa antecedência”. Ora, isto revela que, embora haja
documentação no sentido de demonstrar que o 1ª Cipriano Lopes Galvão não fora o
primeiro povoador do município, assim determina o autor, justificando-se pela
importância desta figura, o que também o faz citando autores como Ulisses Telêmaco
de Araújo Galvão e Luís da Câmara Cascudo que seguiam por esta mesma direção. A
importância que o autor ressalta é, no caso, nomeadamente econômica.
Embora muitas vezes apresente escolhas “tradicionais”, Antônio Quintino Filho
também menciona aspectos da História dos indivíduos menos favorecidos (ou
desfavorecidos), como os escravos, os matutos, os feirantes e os comerciantes, ainda
que tenha silenciado quanto aos povos indígenas daquela mesma região. Isto
demonstra, portanto, que para além da elite houve um olhar crítico sobre as camadas
populares, não sendo, então, lícito dizer que o autor era “absurdamente tradicional”.
Não o era, de fato.
Aliás, percebeu-se que, ainda que não citasse de modo direto, intuitivamente, o
autor muito seguiu o que o francês Marc Bloch preconizava, visto que, além de não ter
se preocupado em estabelecer verdades absolutas – fato notável pela grande
quantidade de referências que utilizou - e relacionava os acontecimentos com um olhar
do presente.
Quanto à Visita Técnica realizada em 27 de abril de 2018 à cidade de Currais
Novos, com ajuda do historiador Geydson Mike Dos Anjos Ribeiro, optou-se por iniciar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
833

o percurso pela Igreja Matriz de Sant’Ana, lá realizando o primeiro debate, para, na


sequência, visitar o Hotel Tungstênio e debater pela segunda vez, sempre relacionando
estes lugares de memória com a obra de Antônio Quintino Filho.
A escolha dos pontos de visitação não foi aleatória. Em verdade, buscou-se estar
em consonância com a opção do autor em cronologicamente explicar o surgimento da
cidade. Este se relaciona totalmente com a Igreja Matriz, pois as primeiras ruas foram
sendo criadas ao seu redor. Ora, ensina o autor que o Capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão, filho do 1ª Cipriano Lopes Galvão com D. Adriana, “concebeu a ideia de erigir
uma capela em honra à Sant’Ana” (1987, p. 38), tendo nela sido depositados os seus
restos mortais. Por isso, para bem introduzir o debate, foi escolhida a lateral da Igreja
Matriz em que ostentava a placa de aviso sobre o descanso dos restos mortais do
Capitão-mor.
Fotografia 1 - Visita à Igreja Matriz de Sant’Ana de Currais Novos/RN

Créditos: Francisco das Chagas da Silva

Ainda considerando a cronologia, o segundo lugar de memória a ser visitado foi


o Hotel Tungstênio. Quintino Filho escreveu sobre o Hotel Tungstênio, contudo, o grupo
não teve acesso às obras que o detalhavam. O historiador Geydson Mike Dos Anjos
Ribeiro, companheiro e auxiliar nos debates, esmerou-se na busca por mais
informações sobre este local, mas não obteve maiores detalhes. Assim, foi necessário
realizar uma pesquisa complementar através de artigos científicos – com destaque
para o trabalho da turismóloga Diana Rayssa dos Santos Guerra, formada pela
UFRN/CERES de Currais Novos - e páginas virtuais (escassas) sobre a temática.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
834

É necessário esclarecer que em seu livro sobre a “História do Município de


Currais Novos”, o autor não menciona o Hotel Tungstênio. Embora não mencione este
lugar de memória, o autor faz referência, na página de nº 119, ao Desembargador Tomaz
Salustino, que teve grande importância para o município de Currais Novos e era dono
do Hotel Tungstênio.
Para bem contextualizar este poderio, por volta de 1943, Dr. Tomaz Salustino
descobriu em suas terras grandes reservas de Sheelita, e já em 1954 deu-se início a
exploração da Mina Brejuí. A mineração no município de Currais Novos teve seu apogeu
na Segunda Guerra Mundial, tendo em vista a necessidade deste tipo de minério para a
produção de equipamentos usados neste momento histórico.

Fotografia 2 - Debate em frente ao Hotel Tungstênio

Créditos: Állan Matson

Durante esse período, o “progresso” da sociedade se fez notar grandemente e


houve a necessidade da construção de um hotel que pudesse abrigar de forma
confortável e luxuosa as pessoas que faziam parte desse comércio da Sheelita. O Hotel
Tungstênio, para a época de sua construção, no ano de 1954, era considerado por
alguns como possuidor de uma arquitetura moderna e símbolo de uma nova visão
urbanística para o município de Currais Novos. A inauguração do Hotel aconteceu em 21
de setembro de 1954, e foi realizada uma suntuosa festa para este evento. O Hotel
Tungstênio foi, portanto, reflexo do aquecimento econômico vivenciado por Currais
Novos durante o período de maior exploração da mineração naquele município, sendo o
próprio nome deste Hotel (Tungstênio) uma referência clara à atividade de extração de
minério.
Durante a explanação realizada na visita técnica, as questões que guiaram o
debate foram objetivamente respondidas pelo grupo:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
835

1. Como os lugares de memória são descritos e conectados com a história


local?
A Igreja Matriz é um dos marcos fundadores do município de Currais Novos,
sendo ao longo do livro de Antônio Quintino Filho muito bem detalhada a sua
relação com Cipriano-mor Lopes Galvão. O Hotel Tungstênio, por sua vez, tem
relação com a segunda guerra mundial e o pós-guerra, momento em que o
município de Currais Novos viveu seu apogeu econômico.
2. Como Antônio Quintino Filho utilizou os documentos?
O autor utilizou diversos documentos. Além dos documentos administrativos,
religiosos, jurídicos e afins, preocupou-se também com a oralidade e ainda com
os “documentos espaciais”, como ruas, prédios e outros lugares que contavam
a História da cidade.
3. Como ele elaborou os fatos?
O autor elaborou os fatos a partir de alguns recortes, principalmente,
econômicos, relacionando a fundação da cidade ao ciclo do gado e o seu
desenvolvimento ao comércio, representado pelas feiras populares. O aspecto
religioso também foi destacado na elaboração dos fatos históricos por Quintino
Filho.
4. Como construiu verdades?
Quintino Filho preocupou-se a todo instante com as citações e referências aos
grandes escritores que se debruçaram sobre a História da região. Dessa
maneira, não se nota uma postura arrogante do autor ao estabelecer uma
“verdade”, mostra, por sua vez, as diversas opiniões dos autores e utiliza a
documentação histórica como fundamento.
5. Como periodizou a história local?
O autor preocupou-se com um marco inicial dando sequência a sua narrativa a
partir daí. O autor José Carlos Reis, em seu artigo “O tempo histórico como uma
representação intelectual e cultural”, apresenta o trabalho do historiador como
uma organização temporal que requer recortes, ritmos, periodizações,
interrupções, sequências, surpresas, imbricações, entrelaçamentos. É assim que
o autor faz em sua obra, observa fenômenos que ajudam a entender o
nascimento do município (economia e religião) e os sequencia.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
836

6. Como a escrita de Antônio Quintino Filho se relaciona com a escrita


científica?
A escrita de Antônio Quintino Filho se relaciona com a escrita científica no
momento em que buscar sistematizar o conhecimento sobre a História do
município de Currais Novos, utilizando fontes bibliográficas, documentos oficiais
e depoimentos de populares. Buscando referenciar e catalogar todos os
fundamentos de sua obra.

RESUMO EM FORMA DE QUADRO


Com o objetivo de clarificar as datas e os eventos, às vezes confusos na primeira
leitura da obra, elaborou-se o quadro que se segue:

EVENTOS/PONTOS DATA DOCUMENTO PÁGINA TRECHO E/OU COMENTÁRIOS


IMPORTANTES
Chegada ao Totoró Entre - 15 “Depois de adquirir a data de terra
1750 a Totoró partiu de Iguaraçu, em
1755 Pernambuco – entre 1750-1755 – o
1º Cipriano Lopes Galvão com sua
esposa D. Adriana de Holanda
Vasconcelos.”

Compra da data de terra 11 de junho - 17 Compra da data de terra Totoró aos


Totoró de 1754 herdeiros de José Correia de Araújo.
Anos depois de adquirir a data de
terra, requereu um translado de
escritura. Foi-lhe extraído em 1761.

Aquisição de novas datas 03 de Registro sobre 21 Nota: As duas Datas da Serra, de D.


de terra por D. Adriana março de as duas datas Adriana, ficam na Serra de Santana.
1764 – 04 de terra A 1ª chamada Serra Grande, em
de abril de (registro frente ao seu sítio Totoró, ao norte.
1764 pertencente ao A 2ª, sobras da 1ª, ao nascente, hoje
(requer as Sr. Francisco integrando os municípios de Lagoa
sobras da Leonis Gomes Nova e Cerro Corá
primeira de Assis)
data)
Capitão-mor Cipriano 1764 Diccionario 23 “Por morte de seu pae, em 1764,
adquire a data de terra Historico e passou a ser o proprietário do sítio,
“Curraes Novos” por Geographico já então possuindo outras datas de
morte de seu pai do Rio Grande terra, inclusive a denominada
do Norte – Dr. ‘Curraes Novos’”.
Antônio Soares
Brito
Topônimo “Currais 1744 Registro 29, 30, 31 O sítio Currais Novos é mencionado
Novos” pertencente ao em documentos de 1744 a 1897.
Sr. Francisco Acontece que em 1897 Currais

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
837

Leonis Gomes Novos já era vila, sede de município


de Assis e freguesia. Vemos que Currais
Novos sítio e Currais Novos vila são
concomitantes, coexistentes.

O nome Currais Novos - - 32 Nome proveniente dos currais – Dr.


provém dos currais ou do José Bezerra Gomes e Câmara
nome do sítio? Cascudo, embora certos da
existência do topônimo já em 1744,
não desprezam a versão esposada
por Dr. Manoel Dantas. O termo
“Currais novos” é um sinal
distintivo do ciclo da pecuária.

O sítio Currais Novos - Documentos 31 Atingia ou quase atingia.


atingia o local onde é mencionados
hoje a cidade? na página 30.
Procuração e
Registros de
Terra, fl. 26.
Construção da Capela da Maio de 38-39 Em cinco de janeiro de 1808, doou o
Senhora Sant’Ana 1809 Capitão-Mor terras para erigir a
Capela de Sant’Ana.

Quais foram as primeiras - - 63 1) Rua Capitão-mor Galvão


ruas de Currais Novos? 2) Rua do Comércio
3) Rua do Rosário (Atual
Vivaldo Pereira)
4) 15 de Novembro

Nomes anteriores da - - 70 O primeiro nome da praça Cristo-


praça “Cristo-rei” Rei foi “Largo da União”. Depois
passou a ser chamada de praça
Ulisses Telêmaco. A partir de 1937
recebeu o nome atual.

Estradas: - - 83 Economicamente falando essas


Currais Novos – Macaíba duas estradas constituíam dois
Nova Cruz – Currais escoadouros da produção, com
Novos duas características distintas: pela
estrada Currais-Novos – Macaíba
descia lã de algodão; pela estrada
Nova Cruz – Currais Novos
“subiam” aguardente e fumo.

Criação do distrito de paz 06 de Resolução 101 Criação do distrito de paz através


de Currais Novos setembro provincial de nº da resolução provincial nº 301 em
de 1854 301 06 de setembro de 1854

Criação do Município de 15 de Decreto nº 59 101 O município de Currais Novos foi


Currais Novos outubro criado por decreto nº 59, de 15 de
de 1890 outubro de 1890, do governo
provisório de Dr. Pedro Velho.

Iniciador da feira local - - 119 O Sr. Francisco Ferreira de Almeida,


natural de Augusto Severo
(naquela época Campo Grande) é

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
838

indicado como iniciador da feira


local.

Primeiro Mercado 1900-1969 - 129 Iniciado em 1900. Complementado


em 1919. O cupim atacou-lhe o
madeirame. Em 1969 caiu uma
parte do teto.

Fonte: Elaboração do grupo de nº3. Para a elaboração do quadro foram promovidas discussões,
fichamentos e análises da obra de Quintino Filho.

PERSPECTIVAS DE SERTÃO
Como visto, o livro de Quintino Filho tem como objetivo mais destacado contar
a História do Município de Currais Novos, cidade que fica no sertão, interior do Rio
Grande do Norte.
Acerca dos diversos significados de sertão, Jerusa Ferreira defende que:

Permanece uma indefinição que não permite remeter às origens do


vocabulário ou alcançar o extenso de uma significação [de sertão]. O
que se poderá fazer será acompanhar os seus campos significativos,
suas áreas de significação onde se afirma ou se veja uma categoria de
próximo-distante, longe-perto, deserto-povoado, cultivada-
despreparada, árida-fértil etc campo-cidade. (FERREIRA, n.d., p.34).

São diversas, portanto, as significações da palavra sertão. Nascer no sertão


amplia exponencialmente estes já inúmeros significados. De acordo com os debates
desenvolvidos, sertão pode ser também origem-fim, familiaridade-isolamento,
sensibilidade-rudeza, eu-outro.
Corroborando o pensamento de Jerusa Ferreira, Neves (2003, p. 160) afirma que
“na concepção da dualidade geográfica, tem-se o sertão nas perspectivas espacial e
social; pela ótica cultural, vê-se também o sertão por diferentes manifestações [...]”.
Frisa-se o caráter dual - em contraposição - que os significados de sertão se
manifestam.
Em seu artigo “Região, Sertão, Nação”, Janaína Amado também nos faz pensar
sobre diferentes categorias para a palavra sertão, quais sejam: espacial; pensamento
social; cultural e construída durante a colonização. Sobre a significação de sertão
construída durante a colonização, Amado preconiza: “Para o colonizador, ‘sertão’
constituiu o espaço do outro, o espaço por excelência da alteridade. Que outro, porém,
senão o próprio eu invertido, deformado, estilhaçado?” (AMADO, 1995, p.149).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
839

Moraes (2003, p.3) reforça este entendimento explicando que “a relação entre
sertão e colonizador emerge como evidente numa outra característica comum presente
nas imagens construídas: a designação sertaneja para ser formulada necessita de um
contraponto que lhe forneça sentido por diferenciação.”.
Vê-se, pois, que sertão pode muitas vezes surgir no discurso como o “outro”;
com sentido geográfico, cultural ou, por exemplo, afetivo. Mas, e na obra analisada de
Quintino Filho, como o sertão aparece?

RESULTADOS OBTIDOS
O interior curraisnovense “recém-povoado”; a criação de gado; a forte
religiosidade; a Igreja Matriz de Sant’Ana; as primeiras ruas; as Feiras Livres e
Mercados. Estas características revelam o sertão do ciclo do gado - sertão como interior
– em que se bebia “água de borracha” (QUINTINO FILHO, 1982. p.19) e a religiosidade
era exacerbada.
Esta visão tradicional do sertão como um “outro”, como interior, aparece em
todo o livro, sendo reforçado pelas referências “clássicas” de autores que se
debruçaram sobre a História do Brasil e do Rio Grande do Norte. Embora Quintino Filho
fosse poeta, nesta obra se vê uma grande preocupação com a objetividade e
apresentação de documentos, pouco existindo menções líricas sobre o Município de
Currais Novos.
No que tange às impressões da visita técnica a Currais Novos, esta imagem
bucólica e religiosa apresentada no livro pouco tem a ver com a atual cidade, ficou nos
idos do surgimento do município.

CONCLUSÃO
Por tudo o que foi exposto no presente trabalho, a perspectiva de sertão que
aparece na obra “História do Município de Currais Novos” do acariense Antônio Quintino
Filho relaciona-se com a ideia de “interior”, sertão como um longe-perto, conforme
Jerusa Ferreira, ou de um “outro geográfico” como assevera Moraes.
É imperioso que se registre que tal livro foi uma verdadeira proeza, porquanto,
mesmo sem formação em curso superior de História, o autor agarrou-se a diversas
fontes bibliográficas renomadas e inúmeros documentos históricos (além de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
840

documentos oficiais, considerou espaços, como ruas, e depoimentos orais para compor
a sua obra).
A forma como periodizou a História de Currais Novos também é digna de nota,
visto que, conforme mencionado acima, Quintino Filho emprega uma sequência, ou seja,
ele relata a História da cidade a partir de um marco fundador e segue sua narrativa de
forma sequencial até atingir o seu objetivo, que era presentear os currais-novenses
com a História de seu amado município.
Por isso, a preocupação do autor em seguir um método, utilizando fontes
clássicas e anotando suas referências, possivelmente, influenciou a perspectiva
tradicional de sertão utilizada.

REFERÊNCIAS
AMADO, Janaína. Região, Sertão e Nação.. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 8, n. 15, p. 145-152, jul. 1995. ISSN 2178-1494. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1990>. Acesso em: 30
Jun. 2018.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história; tradução de Maria de Lourdes Menezes


;revisão técnica de Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

FERREIRA, Jerusa Pires. Um longe perto: Os segredos do sertão da terra. Revista


Légua & Meia, Feira de Sant’Ana, v.2. Disponível em: <
http://periodicos.uefs.br/ojs/index.php/leguaEmeia/article/viewFile/1949/1449>.
Acesso em: 20 Jun. 2018.

FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO. Antônio Quintino Filho. Disponível em: <


adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria.../DOC000000000110505.PDF>.
Acesso em 20 Jun. 2018.

MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão. Terra Brasilis [Online], 4 – 5| 2003, posto
online no dia 05 de Novembro de 2012. Disponível em:
<http://terrabrasilis.revues.org/341>. Acesso em: 17 Out. 2016.

NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural.
Politeia: História e sociedade, Feira de Santana, v. 3, n. 1, 2003.

QUINTINO FILHO, Antônio. História do Município de Currais Novos. Natal, Fundação


José Augusto, 1987.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
841

O MAMELUCO LÁZARO DA CUNHA, UM MEDIADOR CULTURAL:


ENTRE OS SERTÕES DE LARIPE
E O ENGENHO DO CONDE (XVI-XVII)

Leomar Oliveira Diniz565


Magno Kebert de Araújo566

INTRODUÇÃO
Os estudos sobre os processos de mestiçagem, biológica e cultural, vem
ganhando papel de destaque nas pesquisas de historiadores e antropólogos, em um
movimento ascendente desde meados da segunda metade do século XX. Esta expansão
do campo de estudo foi possibilitada devido a aproximação entre as duas áreas,
mostrando horizontes mais amplos e complexos no estudo sobre o contato entre
sistemas culturais distintos. Essa linha de pesquisa tem ganhado papel de destaque
entre os historiadores ligados ao estudo do processo de “conquista” do Novo Mundo
como, por exemplo, o historiador francês Serge Gruzinski e o brasileiro Eduardo França
Paiva.
Orientando-se dentro da ideia de processos de mestiçagem, Gruzinski (2002;
2003), dedicou-se a estudar os processos de mestiçagem biológica e, principalmente
cultural na América Espanhola. No artigo “O historiador, o macaco e a centaura: a
‘história cultural’ no novo milênio” (2003), no qual estuda o processo de mestiçagem
da América Espanhola a partir de um afresco, pintado no fim do século XVI. Neste
afresco, a coexistência da figura do macaco Ozomatli, de origem pré-hispânica, com a
centaura Ocyrhoe, semideusa de origem grega, evidência, segundo o mesmo, as
misturas culturais na América pós-colombo, tomadas de forma consciente, ou seja, o
processo de mestiçagem aqui pode ser entendido como um processo de resistências
simbólica, ou como Héctor Hernán Bruit (1993) chamou de o invisível na conquista do
Novo Mundo.
Eduardo França Paiva (2015) está preocupado em estudar o léxico das qualidades,
em seu livro “Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos

565 Graduando do Curso de História (Licenciatura), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó- Brasil. E-mail:
leomarsbpb@gmail.com.
566 Graduando do Curso de História (Licenciatura), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó- Brasil. E-mail:
magnokebert@hotmail.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
842

XVI e XVIII (as dinâmicas das mestiçagens e o mundo do trabalho)” pesquisou as


variedades das qualidades em vários aspectos como, por exemplo, a origem
etimológica da palavra, quando e como o uso da qualidade foi empregada.
As dinâmicas de mestiçagem, segundo Paiva (2015), são processos que ocorreram
durante o contato entre culturas. A qualidade assume o papel de agente hierarquizador
dentro da sociedade colonial da América, pois de acordo com as origens de nascimento
as capacidades eram medidas, podendo restringir, por exemplo, pessoas de “qualidade
inferior”, como mulatos ou cabras à cargos ligados a administração da Coroa.
Nesta linha de pesquisa, acompanhamos as preocupações sobre as pesquisas no
campo da mestiçagem, buscando detectar traços de mestiçagens e mesclas culturais,
operacionalizadas como forma de movimentação social e resistência, em um
personagem que fomentou a sociedade colonial no Brasil: o mameluco, fruto da união
entre indígena e europeu. Como base nessa premissa, tomaremos como fonte de
pesquisa o processo inquisitorial do mameluco Lázaro da Cunha567, datado de 1592,
disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT).
A partir da análise do processo inquisitorial, atentamos para o comportamento
dualista, como ato consciente, de Lázaro da Cunha e sua identidade cultural mestiça, e
a sua adaptação enquanto sujeito social, de acordo com o espaço que estava situado:
práticas ditas indígenas, como beber vinho à moda gentílica e pintar seu corpo com
jenipapo e ucurum quando se encontrava nos sertões de Laripe, no Recôncavo Baiano.
E um comportamento tido como cristão, seguindo dogmas católicos, como evitar comer
carne na quaresma, no espaço da vila-litorial, o Engenho do Conde568, espaço de
presença da sociedade colonial cristã. É importante ressaltar que Lázaro não tinha
residência fixa, segundo consta no seu processo, mas acreditamos que estes tenha sido
arregimentado no Engenho do Conde, por um centro comercial e social muito
importante para a época.
Nesse sentido, tomou-se como parâmetro de análise teórica a ideia de mediador
cultural, que são “agentes responsáveis pelo trânsito de e entre culturas, no tempo e
no espaço”, definição dada por Eduardo França Paiva e Carla Maia Junho Anastásia

567 Decidimos reduzir nosso campo de observação para buscar um maior número de variáveis a serem
analisadas, escolhemos o mameluco Lázaro da Cunha como personagem a ser estudado.
568 Fundado por Mem de Sá na segunda metade do século XVI, herdado por seu filho, que deixou para

Dona Felipa de Sá, casada com Fernando de Noronha, que era herdeiro do título do Conde de Linhares, o
que deu nome ao engenho.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
843

(2002. p. 9) para denominar o conceito Passeurs Culturels; com base na ideia de sujeitos
que circulam entre ambientes culturais distintos, “diferenciando assim o conceito de
um senso comum com a idéia de arbitragem ou de julgamento” (FRANÇA; ANASTASIA,
2002, p. 9). Neste caso específico, o conceito de mediador cultural é usado para analisar
o comportamento do mameluco Lázaro entre as duas fronteiras culturais: o espaço
indígena e o mundo cristão. É importante ressaltar que o conceito de mediador cultural
não é atrelado, necessariamente, a mestiçagem, mas sim, ao sujeito localizado entre
fronteiras culturais.
Como parte do trabalho de pesquisa, foi feito um levantamento bibliográfico para
encontrar trabalhos que tivessem utilizado o processo inquisitorial de Lázaro da Cunha;
sendo localizado algumas pesquisas que citaram a fonte em questão, entre elas a
dissertação de mestrado de Andreza Silva Mattos (2014). Mattos ao tratar da rede de
sociabilidade entre os mamelucos nos sertões e sua ocupação, destaca o
comportamento ambíguo de Simão Ruiz, mameluco citado no processo inquisitorial em
foco, que foi objeto de análise da autora. Em artigos, desdobramentos de sua
dissertação, Mattos analisa os comportamentos dos mamelucos citados na fonte sob
diferentes perspectivas. Sob o conceito das redes de sociabilidade, Mattos deu ênfase
às expedições de resgate de grupos indígenas para servir como mão-de-obra; sob o
ângulo religioso, Mattos destaca os “desvios” dos mamelucos dos sertões de Laripe
dos dogmas católicos, como comer carne nos dias da quaresma, evidenciando uma fuga
dos elementos cristão-católico.
Encontramos também menções de Lázaro e seu comportamento à moda gentílica
em trabalhos de Raminelli (1994) e em Ribas (2011). Em suma, constatou-se que o
documento inquisitorial de Lázaro já foi analisado por outros historiadores, mas não
foram encontrados trabalhos produzidos sob a perspectiva do mameluco Lázaro como
um mediador cultural.
No que concerne aos aspectos metodológicos da pesquisa, foi utilizado o
paradigma indiciário proposto por Carlo Ginzburg (2002). Tal método, conforme a
problematização de Ginzburg, é caracterizado como um conjunto de princípios e
procedimentos centrado nos detalhes, que busca encontrar indícios, pistas e sinais, por
meio da leitura densa das fontes, revelando informações “ocultas”. O método indiciário
não é estruturado em procedimentos fixos, é aplicado de acordo com a sensibilidade e
experiência do pesquisador.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
844

Em nossa pesquisa, o método foi utilizado para encontrar, nas falas de Lázaro da
Cunha e do inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, indícios que nos possam revelar as
práticas gentílicas nos sertões e costumes do mundo cristão das vilas, permitindo
enxergar a identidade mestiça do mameluco.
O artigo é dividido em um dois tópico: no primeiro discutimos sobre o processo
das dinâmicas de mestiçagem, a partir de Paiva (2015); no segundo abordamos o
comportamento dualista de Lázaro da Cunha e sua identidade mestiça, como uma
forma de transição entre as duas fronteiras culturais, o sertão e o espaço cristão,
buscando compreender de que forma Lázaro apropriou-se e ressignificou estes
sistemas culturais. Ao final, tecemos considerações finais.

DINÂMICAS DE MESTIÇAGEM: MAMELUCO COMO QUALIDADE


O Novo Mundo foi palco de choques entre povos e culturas distintas. O contato
interétnico resultante do processo de “conquista”, desembocou em processos de
mestiçagens culturais e biológicas, originando populações com fenótipos e sistemas
culturais diferentes, com novas estruturas de comportamento e modus vivendi.
Um dos exemplos mais característicos desse processo de mestiçagem cultural,
segundo João Azevedo Fernandes (2003), foi a articulação de interesses econômicos
europeus com os métodos de obtenção de status e prestígio herdados dos Tupinambá,
por exemplo. Seria essa uma nova construção cultural, no qual difere com os elementos
de matriz europeia e da indígena.
As várias respostas e processos de ressignificação dos agentes envolvidos na
formação de um sistema interétnico começaram a ser analisadas fora da dicotomia
colonizador vesus colonizado, afastando-se da ideia de submissão passiva. O que
permitiu abrir novos horizontes para entender as complexas relações e respostas dos
agentes envolvidos, principalmente dos grupos indígenas.
Dentro do processo de ressignificação de elementos presentes dentro de um
sistema cultural específico, podemos perceber a prática do cunhadismo, muito comum
entre grupos tupinambá, que era uma forma de aliança utilizada pelos indígenas, com o
objetivo de ganhar “genros”. Consistia no oferecimento de filhas, pelo Principal, para
indivíduos de outras aldeias, ou até mesmo da mesma aldeia do Principal, assim,
gerando uma dependência do genro em relação ao primeiro. Assim, o Chefe ganharia
mais homens que eram seus seguidores. No processo chamado Cunhadismo, tinha

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
845

também o interesse material como, por exemplo, os Chefes recebiam armas de seus
futuros genros.
Na formação de um sistema interétnico, como ocorrido no que viria a ser o Brasil,
o Cunhadismo teve seu lugar de destaque. Pois os europeus eram genros cobiçados,
por sua oferenda em armas, como pela ligação a formas de poder. Ou seja, a prática do
Cunhadismo foi um fator catalisador para o processo de mestiçagem genética e
cultural, no qual os Tupinambá também se utilizaram. Afirma Darcy Ribeiro: “A
instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho
uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade.” (RIBEIRO, 1995, p. 81).
Esses processos de mesclagem cultural e biológica originaram novos sujeitos,
coexistindo entre duas ou mais estruturas socioculturais, em um processo de
justaposição de culturas denominado como dinâmicas de mestiçagens. As dinâmicas de
mestiçagens são processos de mescla, contato, superposições e de coexistência de
elementos culturais que não se fundiram. As dinâmicas de mestiçagem variam
temporalmente e espacialmente (PAIVA, 2015). São processos biológicos, que
transparecem sob o fenótipo; e cultural sob formas variadas como, por exemplo, nos
comportamentos, na culinária e religiosidade.
A partir destas dinâmicas de mestiçagem surgiram novos agentes sociais,
originando um novo ambiente sociocultural, totalmente diversificado e que fugia a
regra europeia e da matriz indígena.
Era preciso nomear esses novos sujeitos. Nomear era classificar, hierarquizar e
situar limites e possibilidades de locomoção social e econômica no mundo colonial, de
acordo com a qualidade do indivíduo. A qualidade era um parâmetro que definia, muitas
vezes, a importância do sujeito na sociedade da época, sendo usada para enobrecer ou
para inferiorizar agentes no mundo colonial.
O historiador Eduardo França Paiva em seu livro “Dar nome ao novo: Uma história
lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o
mundo do trabalho)”, analisa o léxico transportado da Europa e/ou criado no Novo
Mundo, as qualidades como categorias classificativas que foram transportadas para o
Novo Mundo como, por exemplo, “cabra”, “mameluco” ou “mulato”, e a condição
jurídica: forro, liberto ou livre, e ainda, uma subcategoria: os “administrados”.
O léxico dos processos de mestiçagem esteve associado às formas de trabalho,
como no caso aqui estudado, os mamelucos eram usados para os descimentos, prática

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
846

comum no início da colonização onde grupos de religiosos e militares “desciam”


indígenas, adentravam os sertões com o objetivo de convencê-los a deslocarem-se de
suas aldeias de origem para aldeamentos administrados por jesuítas e/ou para
fazendas e, principalmente, engenhos para serem utilizados como mão-de-obra ou
como “muralha étnica”, protegendo vilas e engenhos de ataques de outros indígenas e
de europeus (ALMEIDA, 2010).
Antes de continuarmos a análise das práticas comportamentais de Lázaro da
Cunha, é mister fazermos uma breve análise de sua qualidade, esta entendida como
uma forma de classificação e hierarquização. Lázaro da Cunha era um mameluco, fruto
do contato entre os dois mundos (Novo Mundo e Velho Mundo); era filho de pai branco
e de mãe mameluca, logo também era classificado como um mameluco, devido a
classificação da qualidade ser adquirida a partir da mãe.
O termo mameluco foi utilizado logo nas primeiras décadas do século XVI, para
denominar os filhos de mulheres indígenas e europeus, popularizando-se devido às
primeiras missões jesuíticas. O termo, segundo Paiva (2015), é incerto, não sabendo a
sua origem. Mas também é

possível que o vocábulo tenha sido aportuguesado a partir de palavras


pertencentes ao árabe antigo: malaka, que significa possuir, mamlouk,
que significa escravo ou homem apropriado, e ‘abd mamlaka, cuja
tradução seria um homem recém-escravizado, sem ascendência servil.
Também foi termo empregado para designar escravos não-
muçulmanos que, ainda crianças, eram levadas para serem preparadas
como guardas dos sultões (...) (PAIVA, 2015, p. 205).

Popularizando-se “depois das primeiras missões jesuíticas o termo “mameluco”


ou “mamaluco” parece ter se tornado bastante usual em toda a América portuguesa”
(PAIVA, 2015, p. 2003). O termo foi usual no século XVIII com as entradas de bandeiras
paulistas nas Minas, devido ao ouro; os próprios paulistas eram mamelucos. O desuso
da qualidade ocorreu “aparentemente, depois da Guerra dos Emboabas e da saída dos
paulistas, “mameluco” vai caindo em desuso e a categoria “mestiço” torna-se muito
mais frequente” (PAIVA, 2015, p. 204).
Feita esta breve discussão sobre o processo do contato interétnico e dos
processos de dinâmicas de mestiçagem, passemos para a discussão em torno da
identidade mestiça de Lázaro da Cunha e do seu comportamento.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
847

LÁZARO DA CUNHA: ENTRE FRONTEIRAS CULTURAIS


O nosso personagem estudado foi alvo da Primeira Visitação do Santo Ofício ao
“Brasil”, que ocorreu em 1591 na Bahia. O primeiro inquisidor enviado foi Heitor Furtado
de Mendonça569, imbuído de caçar os hereges inimigos de Deus e da fé católica. “A
comitiva inquisitorial desembarcou na Bahia em 09 de junho de 1591, domingo da
Santíssima Trindade” (MATTOS, 2014 p. 4). Heitor Furtado “fora preparado para
perceber e inquirir os hereges judaizantes, os mouriscos que secretamente seguiam ao
Islã, o luteranismo, os feiticeiros” (RIBAS, 2011, p. 507). Foram lidos os Éditos da Fé e
da Graça: segundo Bethencourt (2000, p. 156-163 apud MATTOS, 2014, p. 5), o primeiro
tratava da definição e caracterização dos crimes sob a jurisdição inquisitorial, como
comportamentos que passaram a ser classificado como heresia, como sodomia,
bigamia e fornicação; o segundo abarcava a confissão dos pecados sob a mesa da
inquisição de forma voluntária.
No contexto da expansão da fé católica e da Contra-Reforma, iniciada em 1545, o
catolicismo investiu no combate aos “maus costumes” em que o nosso personagem,
foi inquirido. Lázaro da Cunha foi acusado de bruxaria, sodomia e heresia. Denunciado
pelo seu então colega de descimentos, também mameluco, Simão Roiz570. Lázaro
compareceu à mesa no dia 21 de janeiro de 1592.
Adotamos uma escala de observação microscópica para a análise: o mameluco
Lázaro da Cunha. Acreditamos que ao circunscrevermos o nosso campo de observação
podemos melhor analisar as variáveis presentes, procurando os indícios ocultos. Não é
fazer uma observação reduzida por si, mas observar que, ao menos os mamelucos571
que se apresentaram na primeira visita da inquisição no Brasil, apresentaram
comportamentos semelhantes.
O processo inquisitorial de Lázaro da Cunha572 nos deu algumas informações
sobre a sua vida: natural da capitania do Espírito Santo, mas não consta em que ano

569 Homem de origem nobre que passou por dezesseis investigações de “limpeza de sangue” só então
assumiu o cargo de inquisidor. (VAINFAS, 1995). Que ficou encarregado de visitar as capitanias da Bahia,
Pernambuco, Rio de Janeiro e São Vicente (MATTOS, 2014).
570 Abreviação do sobrenome Rodrigues. Adotamos a abreviação Roiz para diferenciá-lo do seu filho,

Simão Rodrigues.
571 Entre eles Simão Roiz, seu filho Simão Rodrigues, João Gonçalves, Rodrigo Martins, Álvaro Rodrigues

e Francisco Pires. Processos inquisitórias disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição
de Lisboa. Processos: segue os números do processo respectivamente: nº 11.623, nº 11.666, nº 13.098, nº
12.229, nº 16. 897 e nº 17. 809.
572 Disponível no Arquivo Nacional Torre do Tombo, Processo nº 11068 ANTT, IL.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
848

viajou para as capitanias do Norte; filho de Tristão da Cunha, homem branco, e de Isabel
Pais, mameluca, o mesmo não alegou moradia fixa, mas partimos que este teria residido
certo período no Engenho do Conde, pois em uma das expedições de Gonçalo Alvares o
teria arregimentado nesta localidade.
As acusações à Lázaro da Cunha foram feitas devido as suas práticas enquanto
este estava em expedições de descimentos de grupos indígenas, muito provavelmente,
nos sertões de Laripe ou Paripe573, região próxima à Capitania de Pernambuco, região
localizada na Capitania da Bahia, sertão localizado à margem direita do Rio São
Francisco, hoje território de Sergipe (MATTOS, 2014); os sertões aqui entendido são
lugares vistos como “espaços não ocupados pela administração lusa e eram
considerados espaços de barbárie onde habitavam os ‘índios bravos’” (ALMEIDA, 2010,
p. 32).
Os sertões desde os primeiros anos da colonização portuguesa foram, o próprio
conceito é de origem portuguesa574 que passou a ser incorporado ao vocábulo na
América portuguesa, espaços gestados em um imaginário em que tais locais eram
espaços da selvageria, do atraso e dos tapuias575.
Deslocamos os sertões de um estado imaginário para um espaço praticado
(CERTEAU, 1994). Ou seja, os sertões são criados/transformados, entendemos que este
espaço está ligado a algo concreto, mas que pode ser elástico e móvel, na prática, no
qual permitem atos e gestos que deslocavam e perturbavam a ordem e a conduta. O
sertão era o oposto do litoral. A sociedade açucareira ditava o litoral como o civilizado,
o interior como o sertão (SILVA, 2010).
Será perceptível a assimetria em que adotamos enquanto ao local das práticas de
Lázaro. Priorizamos os sertões, pois estes locais são espaços de desvios das normas
de conduta do objeto em foco. As práticas de Lázaro enquanto sujeito em espaços
“coloniais-civilizados” não são evidenciadas explicitamente, pois são comportamentos

573 Não se sabe ao certo em que ano Lázaro participou das expedições de descimento nos sertões de
Laripe, mas estimasse que tenha sido entre 1584 e 1588. E ainda teria participado das expedições de 1590,
sob o comando do mameluco Gonçalo Álvares (MATTOS, 2014).
574 Sertão derivado de desertão – o deserto vazio de súditos da Coroa portuguesa (SILVA, 2010)
575 É importante ressaltar que o termo tapuia não é classificação étnica, mas uma tentativa de agrupar

várias etnias indígenas, muitos destes com sistemas culturais muito diferentes, na medida em que o
homem branco os via com inimigos ou selvagens. Todo não falante de tupi era tapuia. Os cronistas
portugueses não estavam preocupados em destacar as diferenças entre os grupos indígenas, mas as
semelhanças, muito embora de forma equivocada e forçada. O termo tapuia é de origem tupi, que
significa bárbaro e selvagem.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
849

que não fugiam a conduta religiosa-católica, não sendo documentada. Tudo que foge
aos padrões e as normas de conduta, quando percebidas, torna-se alvo de um processo
que possa deixar vestígios.
Entretanto, através do método indiciário conseguimos localizar dentro do sistema
de fala presente no processo inquisitorial que o mameluco era seguidor dos dogmas
católicos, como no respeito à quaresma.
Adotamos os dois espaços em perspectiva pois o seu comportamento ocorria de
acordo com o espaço em que estava situado, assim como de outros mamelucos que
foram inqueridos a comparecer à mesa: nos sertões adotava práticas gentílicas, como
pintar seu corpo e fazer escarificações, riscos576, e no mundo cristão, tinha uma postura
de bom cristão que era.
A relação do homem com o lugar que está inserido ocorre no momento que o
processo de culturalização é acionado, transformando o lugar em um espaço praticado,
no qual permite a apropriação, a internalização e a ressignificação das disposições
espaciais e das instituições criadas, dentro deste campo de atuação, pode conter
formas de controle e orientações de conduta (CERTEAU, 1994). Assim, Lázaro
orientava-se e praticava os espaços de acordo com as possibilidades de atuação e de
suas necessidades.
Um cristão seguidor dos dogmas católicos, não comia carne em dias de quaresma
quando localizado no mundo cristão, ou seja, no litoral. Mas ao adentrar os sertões,
suas práticas gentílicas afloravam. Lázaro conviveu com os Tupinambá durante cinco
anos "sempre ao modo gentílico, despido e tingido, e fazendo e usando todas as
cerimônias, usos, ritos, estilos e costumes dos gentios" (ANTT, IL, Proc. nº 11.068, fl.,
23).
Dentro destas cerimonias, certamente, estava o ritual antropofágico, um grande
mal a ser combatida pela Igreja Católica e pela Coroa Portuguesa. O ritual
antropofágico entre os grupos indígenas tinha muito mais uma função social, cultural
e de vingança do que o simples ato de comer carne; estava atrelado a uma forma de
manutenção e prestígio entre os membros do grupo étnico (FERNANDES, 2006). O que
nos leva a pensar que este participou do ritual antropofágico foram as suas

576 Segundo Ronaldo Vainfas os riscos eram “uma espécie de condecoração do guerreiro que aprisionava
e matava o inimigo” (VAINFAS, 1995, p. 144). Lázaro quando riscou seu corpo provava aos gentios que
era um guerreiro valente, possibilitando a aproximação.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
850

escarificações e pinturas corporais, o que o elevara ao grau de guerreiro (VAINFAS,


1995).
Entretanto, o inquisidor Heitor Furtado não conhecia a cosmogonia Tupinambá e
não soube interpretar os sinais e pinturas que denunciavam o mameluco como
participante de um ritual social-religioso, devido a ser o seu primeiro contato com este
novo agente, que nasceu na América portuguesa. Permitindo que as práticas de Lázaro,
tidas como crime máximo contra a fé católica, passassem apenas como simples
heresias, não o levando para a pena máxima: a morte.
Viveu igual aos Tupinambá, com "pestanas arrancadas e sobrancelhas raspadas
e as pernas tinta de jenipapo e com o cabelo capado tudo e costume dos ditos e tinha
crença nas feitiçarias e abusões dos ditos gentios" (ANNT, IL, Proc. nº 11.068, fl. 4).
Acusado de feitiçaria por acreditar nas práticas sobrenaturais dos pajés Tupinambá. E

Lazaro da Cunha que presente esta mameluco solteiro natural da


capitania dos spiritos santo mostrasse que ____ oito annos pouco
mais, ou menos, que o Reo foi ao sertão de paripe no qual se deixou ficar
em companhia dos topinabales gentios entre os quais andou ____ do
cinquo annos pouco mais ou menos, sempre ao modo gentílico despido
e fingido, e fazendo ___do todas as ceremonias ______ e stillos, e
costumes dos gentios, fazendo tudo (ANNT, IL, Proc. nº 11.068, fl. 75).

Entretanto, logo se defendeu das acusações de heresia.

nunca no seu coração creu aos ditos feiticeiros, mas de fora mostrava-
lhes que os cria, e assim também ajuntava carne de porco com carne
humana e, comendo com os ditos gentios, ele comia a de porco e os
gentios a humana, cuidando eles que também a de porco que ele comia
era humana, e de todas estas culpas disse que estava arrependido e
pedia perdão. (VAINFAS, Confissões na Bahia, p. 89).

A fé oscilante, nas fronteiras entre o sertão e mundo cristão-litoral, de Lázaro


tomava forma na medida em que ele se defendia perante a mesa. Justificava comer
carne de porco apenas para agradar os gentios, com o objetivo de ganhar a confiança
destes, e que sempre “teve a fé de Cristo no coração e que dela nunca se apartou e
sempre em seu coração se encomendava a deus e aos santos” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068,
fl., 33).
Mas para cumprir seus objetivos nos descimentos pregou contra os jesuítas que
queriam descer os grupos indígenas do sertão, evidenciando o seu caráter de
apropriação em proveito próprio, aconselhando ao principal de que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
851

não descesse nem consentisse descer os seus gentios com os ditos


padres para o mar desta Baia mas que se deixasse estar onde estava
por que se descesse com os padres que lhe haviam de toma as suas
mulheres e que quando muito lhe daria uma só (ANTT, IL, Proc. nº
11.068, fls., 30-31)

A disputa entre colonos e jesuítas pela mão-de-obra indígena no período colonial


foi intensa, agravada com a política de aldeamentos, substituindo as missões volantes,
que permitiu reunir vários grupos indígenas para o processo de catequese. Dentro dos
limites destas aldeias administradas pelos jesuítas, os indígenas não podiam ser
escravizados, mas 1/3 de toda mão-de-obra do aldeamento deveria ser destinada para
trabalhos nas vilas ou espaços habitados por colonos (PERRONE-MOISÉS, 1992).
Para os colonos, a política de aldeamento não foi bem quista, pois estes afirmavam que
indígenas eram incultos e selvagens, assim a política de aldeamento estaria fadada ao fracasso.
Um outro argumento contra os aldeamentos administrados pelos jesuítas era a dificuldade no
apresamento de índios, no quais seriam usados nos engenhos como mão-de-obra escrava. E
acusavam os Jesuítas de utilizarem mão-de-obra indígena em benefício próprio.
O contato com os grupos indígenas dos sertões foi promovido, como já
mencionado, devido às expedições de descimentos, com o objetivo de angariar mão-de-
obra indígena para os engenhos, “o açúcar no Nordeste expandia-se rapidamente com
a finalidade de satisfazer a procura europeia em crescimento” (MATTOS, 2014, p. 372).
Os mamelucos eram usados para as expedições de descimentos como “língua”,
intérpretes das línguas gentílicas, bem como ao fato de poderem criar laços, mostrando
que eram guerreiros assim como gentios, facilitando o processo de aproximação dos
núcleos de povoamento colonial.
O comportamento dualista de Lázaro da Cunha pode ser explicado como um
conjunto de relações complexas de apropriações de suas matrizes culturais e
processos de ressignificações na medida em que o trânsito entre culturas era
possibilitado, em decorrência dos processos de mestiçagem biológica e cultural,
materializado em sua identidade cultural dupla. O comportamento de Lázaro pode ser
enquadrado em dois aspectos, e um terceiro que converge dos dois primeiros.
O primeiro nos leva a pensar que este mameluco adotava estes costumes
gentílicos para auxiliar no processo de descimento, mostrando que era um guerreiro
como os gentios e, assim, criando laços de confiança e respeito com os indígenas,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
852

evidenciando processo de apropriação do mameluco de sua matriz indígena, e quando


retornava à vila recuperava o manto de bom cristão, que nunca teria perdido, em tese.
O segundo aspecto é que estes adotavam sua matriz indígena, pois era parte de
sua identidade, além de ser cristão por parte de pai, era indígena por parte de mãe,
sentia a necessidade de praticar seus costumes gentílicos, que eram aflorados quando
adentravam os sertões.
Estas duas hipóteses podem convergir na forma em que os costumes gentílicos
de Lázaro da Cunha ganhavam momentos de afloramento nos sertões, era parte de sua
identidade dualista; aproveitando-se de sua face indígena para ganhar a confiança dos
Tupinambá, que convivera por cinco anos, para facilitar no processo de descimentos
dos grupos indígenas para os engenhos para serem utilizados como mão-de-obra.
A transição entre as duas fronteiras culturais foi possível devido à condição de
Lázaro da Cunha: filho de uma mameluca e de pai português. Entretanto, um agente
como mediador cultural não está, necessariamente, atrelado ao processo de
mestiçagem biológica, mas um agente que possa estar em posição de fronteira entre
dois sistemas culturais. Neste sentido, o mameluco estava entre os dois mundos, em
uma posição fronteiriça que possibilitou o trânsito entre o mundo gentílico e
cristão/litorâneo.
Apropriando, internalizando e ressignificando, procedimentos operacionalizados
de acordo com uma lógica própria os dois mundos. Reconfigurando os sistemas a sua
forma, tecendo uma identidade mestiça e cambiante, não no sentido de se reconhecer
como mameluco, este debate não está no escopo deste de trabalho, com elementos
que apresentavam importância para Lázaro, uma seleção, consciente e inconsciente, de
comportamentos, crenças e costumes usados para movimentar-se no mundo colonial,
recusando aquilo que não pudesse favorecê-lo, assim como fizera os Tupinambá
estudados por Eduardo Viveiros de Castro (1992).
Lázaro da Cunha estava entre as fronteiras do mundo cristão e indígena, adequou
seu comportamento a partir do espaço inserido, permitindo sua movimentação. Deu
significados duplos às práticas culturais como, por exemplo, nas escarificações e
pinturas corporais de jenipapo e urucum, mostrava-se como um guerreiro valente,
participou de lutas contra outros gentios e colonos, mergulhou profundamente em sua
identidade indígena, mas também deu um significado para estas práticas para além da
cosmogonia Tupinambá; apropriou-se dos costumes para mostrar-se como um

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
853

guerreiro, ganhando a confiança dos gentios para “descer” estes às habitações


próximas a manchas dos povoados coloniais.
Como o Menocchio, estudado por Ginzburg, que “triturava e reelaborava suas
leituras, indo muito além de qualquer modelo preestabelecido” (GINZBURG, 2006, p.
95), Lázaro oscilou entre as fronteiras culturais.
Adotamos o pensamento de Stuart Hall sobre a fragmentação da identidade,
composto de mais de uma identidade, no qual é assumida de acordo com o sistema
cultural em que está inserido, como sugere Hall sobre a identidade que é “formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistema cultural que nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 13).
Esta sua transição entre culturas foi operacionalizada por sua dupla identidade
cultural, que o orientou entre estes dois sistemas assimétricos, sem maiores perdas
e/ou danos, pois os processos de ressignificação feitos puderam angariar elementos
favoráveis à sua condição, ajudando-o a se movimentar dentro da América portuguesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A qualidade de Lázaro da Cunha como mameluco permitiu que este pudesse
orbitar sistemas culturais antagônicos, mesclando estes dois sistemas em um ponto
de intersecção. A sua condição de mestiço permitiu estar entre fronteiras culturais e
espaciais.
Um mediador cultural, situado entre fronteiras de dois sistemas culturais
assimétricos. Entre os sertões e litoral sua identidade oscilou, fomentando
comportamentos diferentes. A sua relação com os espaços era orientada por sua
identidade cultural, construída a partir da necessidade presente. Os sertões
fomentaram a sua identidade indígena, vivendo ao modo gentílico, guerreando e
participando dos ritos indígenas. No litoral, sob os olhares e orientado pela conduta
católica, era praticante do catolicismo, respeitando os dias santos e seus ritos.
A sua dupla identidade cultural permitiu adentrar estes dois universos,
angariando elementos culturais e sociais que pudessem ser usados em seu favor. Não
em um sentido negativo, mas como forma de ressignificar padrões e práticas que
pudessem permitir sobreviver na América Portuguesa. Um agente que apropriou-se de
suas matrizes formadoras para movimentar-se dentro dos sistemas culturais, sociais e
políticos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
854

FONTES
Processos Inquisitoriais
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Processos. Processo nº 11068
ANTT, IL. Lázaro da Cunha.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios na História do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGU, 2010.

ARES QUEIJA, Berta; GRUZINSKI, Serge (coords). Apresentación. In: ______. Entre
dos mundos: fronteras culturales y agentes mediadores. Sevilla. Ed. Escuela de
Estudios Hispano-Americanos/Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1997.
p. 9-11. (Anais do 1º Congresso Internacional sobre Mediadores Culturais, de 1995)

AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos. V. 8, nº15. Rio de Janeiro,
1995, p. 148-149.

BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, XV –


XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BRUIT, Héctor Hernán. O visível e o invisível na conquista hispânica da América. In:


KOSSOVITCH, Elisa Angotti (org.). Caderno CEDES 30: a conquista da América.
Campinas,SP: Papirus, 1993. p. 15-32.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma


selvagem. In: Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 1992 , v. 35, p. 21 -74.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes,
1994.

FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá (1920-


1995). Prefácio Roque de Barros Laraia. 3. ed. São Paulo: Globo, 2006

FERNANDES, João Azevedo. De Cunhã A Mameluca: A Mulher Tupinambá E O


Nascimento Do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2003.

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: _____. Mitos,


emblemas e sinais: morfologia e história. 2ª ed., 2002 (1ª ed., 1980), p. 143-179.

______. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela


Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo


milênio. In: Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, set./dez. 2003.

______. Ocidentalização. In: ______. O pensamento mestiço. Tradução de Rosa


Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 93-110.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
855

HALL, Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomás Tadeu da


Silva, Guaciare Lopes Louro. 11 ed. RJ: DP&A, 2006.

JESUS, Edvaldo Nascimento de. Antagonismo Colonial: A Santidade De Jaguaripe e a


Construção Da Liberdade No Século XVI No Recôncavo Baiano. In: II Simpósio
Internacional de Estudos Inquisitoriais – Salvador, setembro de 2013.

MATTOS, Andreza Silva. Expressões Religiosas Na Fronteira Cultural: Marginalidade


Social E Vicissitudes De Mamelucos nos Autos Inquisitoriais (1591-1593). In: IV
Congresso Sergipano De História & IV Encontro Estadual De História Da Anpuh/Se.
O Cinquentenário Do Golpe de 64. 2014

______. Do engenho, dos gentios e dos jesuítas: redes de sociabilidades de soldados


mamelucos no sertão colonial (1590-1592). In: Revista do IHGSE, Aracaju, n. 44, pp.
339-382, 2014.

______. A teia de Simão Roiz: Inquisição e sociabilidade na Capitania da Bahia (1590-


1595). Dissertação (Mestrado em História em concentração cultural e Sociedade)-
Universidade Federal de Sergipe. 2014.

MOTT, Luíz. Bahia: inquisição e sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010.

PAIVA, Eduardo França; ANASTÁSIA, Carla Maria Junho (Orgs.). O trabalho mestiço:
maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte:
Annablume/PPGH-UFMG, 2002.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América
entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas das mestiçagens e o mundo do trabalho).
Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2015.

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação


indigenista no período colonial. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. p. 115-132.

RAMINELLI, Ronald. Da vila ao sertão: os mamelucos como agentes da colonização. In:


R. História, São Paulo, n. 129-131. 1994.

RIBAS, Maria Aparecida A. Barreto. Os mamelucos e o vinho da lembrança. In: Mneme


– Revista De Humanidades, 2011.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. Companhia das


Letras. São Paulo. 2ª ed.– 1995

RIOS, Ana Lúcio Moreira. Fronteiras culturais e (des)territorialização no discurso de


resistência em a Terra do Foto. In: Revell, v.2, ano7. nº13, 2016.

SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão


de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
856

SIMONATO, Juliana Sabino. Uma Leitura Conceitual da escravidão e das dinâmicas de


mestiçagens sob a perspectiva da História Cultural. In: IV Congresso Internacional de
História: Cultura, Sociedade e Poder, 2014.

STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. (1557). São Paulo: Editora Martin Claret Ltda. 2007.

VAINFAS, Ronaldo. Confissões na Bahia. Santo ofício inquisição de Lisboa São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

______. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
857

UMA PROPOSTA DE EXPOSIÇÃO TEMÁTICA SOBRE OS


SERTÕES: UMA EXPERIÊNCIA A PARTIR DAS PESQUISAS
DESENVOLVIDAS NO UFRN/CERES CAMPUS DE CAICÓ E
CURRAIS NOVOS

Francisco das Chagas Gonzaga Júnior577


Aurélio José Ribeiro Nunes578

O presente artigo tem o intuito de apresentar uma proposta de exposição virtual


abordando a temática dos Sertões a partir das pesquisas desenvolvidas pelos
professores e professoras ligados ao Programa de Extensão Sertões em Movimento,
com base no Projeto de Extensão Sertões: História e Cotidiano, onde a principal
proposta é a de tornar possível o acesso à comunidade extramuros as produções
acadêmicas voltadas à temática dos Sertões em linguagem simples, isto é, possibilitar
o acesso aos docentes e discentes das redes públicas e privada de ensino, do Ensino
Fundamental anos finais (5º ao 9º ano) e Ensino Médio, ao mesmo tempo que incentivar
a produção acadêmica sobre a referida temática por parte dos discentes e docentes do
Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) Campus de Caicó e Currais Novos, além
de evidenciar o acervo documental custodiado pelo Laboratório de Documentação
Histórica (LABORDOC).
A princípio o Projeto de Extensão Sertões: história e cotidiano tinha como
objetivo a produção de uma exposição física, composta por painéis em lona, com
medidas de 6 metros de largura por 3 metros de altura, a serem expostos/dispostos
nos corredores, inicialmente, Campus de Currais Novos e, posteriormente, no Campus
de Caicó, com permanência de 3 meses em cada Campus. A instalação dos painéis nos
corredores dos referidos Campus permitiria a visualização e apreciação da comunidade
acadêmica dos Campus supracitados, bem como dos discentes e docentes das redes
pública e privada de ensino e de demais visitantes corriqueiros à referida exposição.
Todavia, infelizmente, a proposta do Projeto de Extensão Sertões: história e cotidiano,

577 Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Centro de Ensino Superior
do Seridó, Campus de Caicó, bolsista do Projeto de Extensão Sertões: História e Cotidiano, sob
coordenação do Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo. (E-mail: fchagasjunior@ufrn.edu.br)
578 Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Centro de Ensino Superior

do Seridó, Campus de Caicó, bolsista do Projeto de Extensão Sertões: História e Cotidiano, sob
coordenação do Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo. (E-mail: aurelioribeiro.nunes@gmail.com)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
858

de realizar a referida exposição física foi inviabilizada em razão da não aprovação dos
recursos financeiros que permitiriam a produção dos painéis expositivos e de toda a
logística que tornaria possível a realização da referida exposição física.
Diante disso, houve a necessidade de modificar a proposta do projeto de
extensão supracitado de modo a viabilizar a realização da referida exposição. Nesse
sentido, a exposição foi mantida, porém a forma de produção, organização e realização
da mesma passou a ser pensada a partir de uma plataforma associada ao sítio do
Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC). É importante salientar que o
Projeto de Extensão Sertões: história e cotidiano encontra-se em fase inicial, nesse
sentido, as informações e resultados a serem apresentados junto ao presente artigo
são parciais.
A idealização de uma exposição voltada para a temática Sertões intitulada
“Sertões: história e cotidiano no Seridó” está diretamente ligada à existência do Curso
de Graduação em História na região Seridó Potiguar, que é ofertado na cidade de Caicó
desde meados de 1970, inicialmente, de forma associada (Licenciatura e Bacharelado),
além de a oferta, desde 2016, do curso especialização em História dos Sertões, com o
incentivo da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRN, por
meio do Edital 01/2016 - PPG/PROPESQ - Apoio a Grupos Emergentes para Criação de
Programas de Pós-Graduação. Assim, o que permite que egressos dos cursos de
licenciatura e bacharelado em História ofertados pelo CERES Campus de Caicó, possam
permanecer em sua região e garantir a obtenção de um especialização, sendo que
também amplia ainda mais a produção acadêmica voltada à temática.

MÍDIAS DIGITAIS E REDES SOCIAIS COMO MEIO DE PROMOÇÃO E ENGAJAMENTO


JUNTO À EXPOSIÇÃO VIRTUAL SERTÕES: HISTÓRIA E COTIDIANO
Na atualidade, as mídias digitais579, assim como o uso das redes sociais tem
ganhado destaque, tendo em vista que o ciberespaço permite o acesso à informação e
a comunicação instantânea, permitindo que usuários e usuárias se comuniquem entre
si, independente das distâncias físicas entre eles, isto é, ainda que separados por
continentes, a quilômetros de distância um do outro, podem comunicar-se a qualquer

579AMORIM, Paula Karini Dias Ferreira. CASTRO, Darlene Teixeira. Mídias digitais: uma nova ambiência
para a comunicação móvel. In.: I Encontro de História da Mídia da Região Norte Universidade Federal do
Tocantins. Alcar, Palmas, 2010.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
859

momento e interagir de maneira imediata, por exemplo. Seja para o entretenimento ou


para obter conhecimento, o ciberespaço permite possibilidades infindas, mas esse não
é necessariamente o objetivo desta discussão.
No tocante ao uso das mídias digitais, podemos destacar diversos meios, dentre
os quais estão os banners digitais580 e conteúdos audiovisuais (vídeos, fotografias e
seus afins) os quais permitem a promoção, de forma dinâmica, com linguagem clara e
pontual, facilitando a visualização do conteúdo que se propõe expor ou promover por
meio desses mecanismos.
As redes sociais, a exemplo do Facebook, são os principais meios de interação
entre os diversos públicos na atualidade. Essas redes sociais são um recurso
indispensável para o alcance de um público diversificado ou específico, dividido por
faixas etárias, por exemplo, ou, como no caso da proposta de exposição temática sobre
os Sertões, os discentes e docentes do Centro de Ensino Superior do Seridó - CERES,
bem como estudantes, professoras e professores da rede básica de ensino, da rede
pública e privada e do público em geral. Como afirma Costa Ferreira,

Como síntese, podemos afirmar que rede social é uma estrutura social
composta por indivíduos, organizações, associações, empresas ou
outras entidades sociais, designadas por atores, que estão conectadas
por um ou vários tipos de relações que podem ser de amizade,
familiares, comerciais, sexuais etc. Nessas relações, os atores sociais
desencadeiam os movimentos e fluxos sociais, através dos quais
partilham crenças, informação, poder, conhecimento, prestígio etc.
(COSTA FERREIRA, 2011, p. 213)

Nesse sentido, pode-se afirmar que o uso das redes sociais para o engajamento
do público alvo da exposição virtual é imprescindível, de modo a alcançar os objetivos
pretendidos pelo Projeto de Extensão Sertões: história e cotidiano, no tocante à
promoção do conteúdo por meio dessas redes sociais que, no caso do Facebook,
ocorrerá por meio de uma fanpage com o título Exposição Virtual Sertões: história e
cotidiano, de modo a alcançar os usuários e usuários logrados na referida rede social.
Os pressupostos para a produção da exposição virtual vão de encontro à
abordagem de História Local. O centro da análise na História Local, segundo José
D’Assunção Barros, é o lugar, o local ou até mesmo o espaço. Segundo o autor,

580Produto imagético que busca por apresentar informações pontuais acerca de um conteúdo, produtos,
eventos, propaganda e seus afins, utilizando-se de breves textos e de figuras para sua composição.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
860

Toda “Região” ou “localidade” é necessariamente uma construção do


próprio historiador. Se ela vir a coincidir com uma outra construção que
já existe a nível administrativo ou político, isso será apenas uma
circunstância. [...] O objeto construído pelo historiador pode exigir que
ele quebre uma determinada unidade geo-política, que misture o
pedaço de uma com um pedaço de outra [...] (BARROS, 2010, p. 232-233)

Nessa perspectiva, em se tratando de localidade, consideremos não apenas enquanto


recorte espacial ou do lugar onde o historiador está inserido, visto que a concepção de lugar é
na verdade um compilado de conjunturas sociais, culturais, políticas e as demais variáveis
possíveis, ou seja, é construída por um conjunto de pessoas ou pelo próprio historiador quando
se põe a produzir seu texto, de modo que, a exemplo do Seridó, localizado à porção centro-sul
do Estado do Rio Grande do Norte, que também dá nome à microrregião Seridó Potiguar, de
acordo com os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não obstante,
nem sempre foi definido sob essa ótica, isto é, dentro dos limites geográficos do Rio Grande do
Norte, de modo que, no período colonial, a configuração administrativa mais próxima do que
atualmente entendemos por Seridó era a Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó,
fundada em 1748, que era compreendida entre o que hoje são os territórios dos Estados da
Paraíba e Rio Grande do Norte, tendo como sede a povoação do Caicó que, a priori, foi elevada
a Vila Nova do Príncipe, atual município de Caicó.
Exemplificando, se nos colocarmos no lugar de um historiador ou historiadora residente
no município paraibano de São Bento, circum-adjacente com a atual Região Seridó Potiguar,
interessando-se em realizar algum estudo sobre História Local de seu município deverá,
obrigatoriamente, procurar arquivos de outras cidades, especialmente as do território potiguar
para reunir as fontes documentais disponíveis para os períodos mais remotos, o que põe em
evidência a declaração de José D’Assunção Barros (2010)581, quando afirma que é possível que
o historiador tenha que desfazer-se de certa unidade geo-política, para construir sua tese a
partir da fragmentação, reorganização e ressignificação das definições acerca da região objeto
de estudo por parte do historiador.

CAMINHOS PARA A PRODUÇÃO DE UMA EXPOSIÇÃO VIRTUAL


Para a realização de uma exposição temática, quer seja fixa, itinerante, em
ambiente físico ou em uma plataforma virtual, são necessários não apenas a escolha
do tema, mas o envolvimento de toda uma logística que começa desde a pesquisa e

581BARROS, José D’Assunção. O lugar da história local na expansão dos campos históricos. In:
OLIVEIRA, Ana Maria de Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos (orgs.). História Regional
e Local: discussões e práticas. Salvador: Quarteto, 2010. p. 233.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
861

seleção dos acervos que se pretende utilizar junto à exposição, envolvendo


planejamento, execução e finalização, ou seja, o antes, o durante e o depois. Assim, a
exposição temática intitulada “Sertões: história e cotidiano” será desenvolvida a partir
quatro fases, sendo a primeira, a fase de pesquisa a partir dos acervos custodiados pelo
Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC), tanto junto ao acervo
documental, quanto aos bibliográficos, bem como o levantamento de dados acerca dos
projetos de pesquisa sob a temática Sertões realizados pelos professores e
professoras do Departamento de História do CERES - DHC, ligados ao Programa de
Extensão Sertões em Movimento, bem como de seus respectivos bolsistas da
graduação e da especialização em História oferecidos pelo referido departamento de
História, sob sua orientação, os quais buscarão junto aos acervos supracitados por
documentos que dêem subsídio à produção de textos/publicações que alimentarão o
site destinado à exposição virtual, em conjunto com amostras dos documentos e
recursos iconográficos, bem como mapas e demais recursos, de quaisquer natureza,
que possibilitem a compreensão e visualização das fontes utilizadas para a produção
ligada a temática dos Sertões.
A referida exposição virtual se estruturará a partir de 10 eixos temáticos, a partir
das pesquisas realizadas pelos membros envolvidos com o Programa Sertões em
Movimento para a construção da exposição virtual, os quais são: Ocupações pré-
históricas no Seridó; Os indígenas e a experiência do contato com os conquistadores; A
colonização a partir das fazendas de criação de gado; Cotidiano das famílias sertanejas;
Vivências sertanejas em tempo de secas; Doenças e doentes nos Sertões; Processos
educativos nos Sertões; Embates pelo poder político nos Sertões; Intelectuais e
produção do conhecimento sobre os Sertões; Religiões e religiosidades nos Sertões;
Artes e artistas nos Sertões.
A segunda fase trata-se da fase de discussão e debate acerca dos eixos
programáticos com a equipe que desenvolveu os produtos/publicações junto à
exposição virtual, e serem submetidos a uma avaliação crítica por parte dos
professores, professoras, monitores e monitoras da área de Ensino de História, bem
como discentes egressos do PIBID de História e dos alunos e alunas ligados ao
programa de Estágios Supervisionados, além de professores e professoras das redes
pública e privada de ensino, para darem sugestões no tocante à pertinência, à validade
dos temas e da viabilidade de apresentação junto à exposição virtual, objetivo primeiro

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
862

do Projeto de Extensão Sertões: história e cotidiano a ser encaminhado para apreciação


do público alvo do referido projeto como citado anteriormente.
A terceira fase consiste no processo de comunicação, isto é, a divulgação da
exposição propriamente dita, sendo que serão feitas publicações a partir de uma
fanpage no Facebook, para a promoção dos conteúdos que serão apresentados no site
da exposição, servindo também como um canal de contato entre público e a equipe do
projeto. Além disso, será criado um canal no YouTube, que deverá apresentar
curiosidades da exposição, noções, sobre o oficio do historiador e produção de vídeos
de entretenimento como, por exemplo, vídeos que apresentem aspectos culturais
ligados a temática dos Sertões e ao Seridó, evidenciando os artistas da região (cantores,
poetas, atores, artistas plásticos e seus afins.
A quarta fase é a de execução, que compreende a criação de uma plataforma
virtual associada ao site do Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC), que
compreende desde a criação de uma identidade visual para a plataforma em si, até a
alimentação da mesma, dentro dos eixos temáticos, e atualização conforme necessário,
das publicações produzidas pela equipe do projeto. A referida plataforma terá duas
opções de acesso: uma primeira, em destaque, para o público alvo da exposição, isto é,
discentes e docentes da rede básica - pública e privada - de ensino e a segunda para
acesso acadêmico.
A quinta fase corresponde a avaliação e acompanhamento, isto é, a postagem
na fanpage, dos resultados de cada etapa concluída, sendo que, ao final da segunda fase
do projeto, será confeccionado um Relatório Parcial a ser encaminhado para a Pró-
reitoria de Extensão - PROEx e ainda, ao final de cada mês, será feita a avaliação do
projeto a partir de reuniões de trabalho, bem como a análise do alcance e aceitação da
exposição junto ao público em geral, culminando, ao final do projeto, com a elaboração
de um Relatório Final a partir do qual serão descritos os resultados obtidos pela
exposição virtual e pelo projeto Sertões: história e cotidiano.
Vale salientar que todas as etapas do processo confluem para a promoção as
produções e pesquisas sobre o tema Sertões e de uma exposição virtual que materialize
de maneira eficaz, as pesquisas desenvolvidas por professores e professoras do
CERES/UFRN, dessa forma potencializando documentos custodiados pelo Laboratório
de Documentação Histórica (LABORDOC).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
863

Nesse sentido, os produtos a serem apresentados junto à Exposição Virtual


Sertões: história e cotidiano no Seridó, especialmente as produções textuais, serão
construídos tendo como base os pressupostos sobre Transposição Didática, que são
de fundamental importância, tendo em vista que a principal função da referida
exposição é de aproximar os discentes da rede básica de ensino, pública e privada às
produções acadêmicas e ao acervo documental e bibliográfico sob custódia do
laboratório documental supracitado.
Para isso, como afirmam Schimidt e Garcia (2005)582, devem ser considerados
alguns pontos: a importância do conhecimento histórico enquanto “saber a ser
ensinado”, com base nas experiências culturais dos discentes e docentes, bem como de
evidências documentais; do “saber ensinado”, isto é, a forma como atuam, em sala de
aula, os professores e professoras de História a partir da maneira como esses docentes
cruzam os saberes acadêmicos que reuniram ao longo de sua formação com os
conteúdos programáticos dispostos nos Manuais Didáticos com que trabalham
cotidianamente; do “saber aprendido”, ou seja, o estabelecimento, por parte dos
discentes, de uma nova forma de contato com o conhecimento histórico, de modo que
entendam que esse conhecimento histórico está para muito além de apenas acumular
informações que, aparentemente, a princípio, não teriam relação direta com a realidade
em que estão inseridos, mas agora percebem que, de algum modo contribuiu para a
construção social, política, cultural, econômica, religiosa em que estão inseridos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, para que a exposição virtual alcance seu público e cumpra sua função, é
necessário que os produtos a serem apresentados junto à exposição se voltem para a
realidade em que os alunos e alunas que se pretende alcançar estão inseridos e
possam, estes discentes, de alguma forma, se identificar, por exemplo, com as
informações que esses produtos trarão consigo sobre a maneira como a região em que
estão inseridos foi construída dentre seus muitos aspectos e peculiaridades, servindo
como meio para a problematização das questões sociais, culturais, políticos,
econômicos, religiosos em que estão inseridos, de modo a observar as permanências e

582SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. GARCIA, Tânia Maria F. Braga. A formação da
consciência histórica de alunos e professores e o cotidiano em aulas de história. Cad. CEDES [online].
2005, vol. 25, n. 67, p. 304-305.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
864

mudanças, continuidades e descontinuidades das práticas relacionadas com as


questões citadas anteriormente.
As ações do projeto encontram-se, ainda em andamento. Esperamos, até o final
do ano de 2018, oferecer, à comunidade interna da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, especialmente do Centro de Ensino Superior do Seridó e ao público externo
um resultado das ações desenvolvidas, condensando, em linguagem de fácil acesso, a
produção acerca da História dos Sertões.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, J. C. de S. Página Profissional no Sistema Integrado de Gestão de
Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em: <https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/
docente/portal.jsf?siape=2329277>. Acesso em 16/04/2018 às 07h50.

ANDRADE, J. C. de S. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível em:


<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4766197P6.> Acesso
em 16/04/2018 às 08h23.

ANDRADE, Juciene Batista Félix. Página Profissional no Sistema Integrado de


Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em:
<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/pesquisa.jsf?siape=2914858>. Acesso em
08/03/2018 às 21h.

ANDRADE, Juciene Batista Félix. Currículo do Sistema de Currículos Lattes.


Disponível em: http://lattes.cnpq.br/9746207094429740. Acesso em 08/03/2018 às
20h.

ANDRADE JUNIOR, Lourival. Página Profissional no Sistema Integrado de Gestão de


Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em:
<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=1718551>. Acesso em
28/03/2018 às 7h15.

ANDRADE JUNIOR, Lourival. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível


em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K425032 3E2>.
Acesso em 28/03/2018 às 7h20.

AMORIM, Paula Karini Dias Ferreira. CASTRO, Darlene Teixeira. Mídias digitais: uma
nova ambiência para a comunicação móvel. In.: I Encontro de História da Mídia da
Região Norte Universidade Federal do Tocantins. Alcar, Palmas, 2010.

BARROS, José D’Assunção. O lugar da história local na expansão dos campos


históricos. In: OLIVEIRA, Ana Maria de Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina
Ferreira dos (orgs.). História Regional e Local: discussões e práticas. Salvador:
Quarteto, 2010.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
865

BORGES, A. Página profissional no Sistema Integrado de Gestão de Atividades


Acadêmicas (SIGAA). Disponível em: <https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/
portal.jsf?siape=2371256>. Acesso em: 11/03/2018 às 14h30.

BORGES, A. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível em:


<http://lattes.cnpq.br/1337420835014603>. Acesso em: 11/03/2018 às 16h00.

FERNANDES, Paula Rejane. Página profissional no Sistema Integrado de Gestão de


Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em: <https://sigaa.ufrn.br/
sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=1934542>. Acesso em: 24/03/2018 às 14h30.
FERNANDES, Paula Rejane. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível
em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K47359 97Y1>.
Acesso em: 24/03/2018 às 16h00.

LIMA, J. M. Página Profissional no Sistema Integrado de Gestão de Atividades


Acadêmicas (SIGAA). Disponível em: <https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/por
tal.jsf?siape=2329277>. Acesso em 03/04/2018 às 20h41.

LIMA, J. M. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível em:


<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4767609U4.> Acesso
em 03/04/2018 às 20h46.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Página profissional no Sistema Integrado


de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em:
<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=2432663>. Acesso em:
19/03/2018 às 14h30.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Currículo do Sistema de Currículos Lattes.


Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/8883637703704518>. Acesso em: 19/03/2018
às 16h00.

MAFRA, F. Página Profissional no Sistema Integrado de Gestão de Atividades


Acadêmicas (SIGAA). disponível em: <https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/port
al.jsf?siape=1759940>. Acesso em 03/04/2018 às 13h23.

MAFRA, F. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível em:


<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4760062T7>. Acesso
em 03/04/2018 às 13h40.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. GARCIA, Tânia Maria F. Braga. A
formação da consciência histórica de alunos e professores e o cotidiano em aulas de
história. Cad. CEDES [online]. 2005, vol.25, n.67, pp.297-308. ISSN 0101-3262.

SANTOS, Evandro. Página profissional no Sistema Integrado de Gestão de


Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em: <https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public
/docente/portal.jsf?siape=1244548> .Acesso em: 12/03/2018 às 14h30.

SANTOS, Evandro. Currículo do Sistema de Currículos Lattes. Disponível em:


<http://lattes.cnpq.br/7531766582443713>. Acesso em: 12/03/2018 às 16h00.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
866

SILVA, Abrahão Sanderson N. F. da. Página Profissional no Sistema Integrado de


Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA). Disponível em:
<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=1668850>. Acesso em: 10
ago 2018.

SILVA, Abrahão Sanderson N. F. da. Currículo do Sistema de Currículos Lattes.


Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/1765694610852325>. Acesso em 09/03/2018 às
18h30

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
867

Simpósio Temático 16
RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES:
HIBRIDAÇÕES E PERMANÊNCIAS
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
868

O VATICANO ESPANHOL: AS NARRATIVAS SOBRE AS


APARIÇÕES MARIANAS EM EL PALMAR DE TROYA E A
FUNDAÇÃO DA IGREJA PALMARIANA (1968-1978)

Pedro Luiz Câmara Dantas583

INTRODUÇÃO
No Catolicismo Romano, as aparições da Virgem são fenômenos muito antigos,
existindo alguns relatos que demonstram a existência de manifestações de contatos
diretos entre Maria e inúmeras pessoas desde tempos remotos. No entanto, estes
acontecimentos são sujeitos a questionamentos acerca de sua veracidade, envolvendo
altos clérigos da Igreja, alguns teólogos e aqueles que se dizem videntes. Muitas das
narrativas em torno das aparições marianas permanecem alijadas do reconhecimento
e da oficialidade que a Igreja Católica pode conceder, sendo jamais tidas como
verdadeiras nem recebendo o status de oficiais, uma vez que a mesma Igreja considera
que uma aparição verídica é um tipo de revelação de caráter privado, sendo diferente de
uma revelação divina584. Assim, em meio a este contexto de aparições e contatos
diretos entre os videntes e a Santa, fenômeno visivelmente presente na Igreja Católica,
emergiram as narrativas acerca das aparições marianas ocorridas no povoado
espanhol de El Palmar de Troya a partir de março de 1968. Os acontecimentos que se
sucederam ao advento destas aparições resultaram no surgimento de uma nova ordem
religiosa desautorizada pelo Vaticano (os Carmelitas da Santa Face), que
posteriormente se separou integralmente da Igreja Católica oficial e se tornou uma
nova igreja independente com papa e rituais próprios.

O INÍCIO DO MOVIMENTO PALMARIANO


Para entendermos melhor as origens da Igreja Palmariana, é preciso recordar
que o seu movimento religioso esteve inserido numa forma de vivência da fé que
apareceu no Catolicismo Romano a partir do início do Concílio Ecumênico Vaticano II
(1962-1965), e que se solidificou e se acentuou após sua conclusão: o Tradicionalismo

583 Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email:
pluizcd@gmail.com
584 Informações extraídas do livro “A Pope of their Own”, Magnus Lundberg (p. 17).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
869

Católico. Os chamados “católicos tradicionalistas”, entre outras questões, reivindicam


a continuidade de uma série de pontos doutrinários que sofreram alterações durante o
concílio, sendo o aspecto ritualístico, o mais visível sinal de sua presença dentro da
Igreja, pois muitos grupos permaneceram fazendo uso da chamada Missa Tridentina585,
em latim.
Dentro desse contexto, quando da transformação do grupo palmariano em
Ordem dos Carmelitas da Santa Face (1975), os discursos e as posturas adotadas nos
diferentes eventos e panfletos que começaram a ser distribuídos aos frequentadores
do lugar das aparições, estavam totalmente conectados às mensagens atribuídas à
Virgem do Carmo que foram proferidas pelos videntes. Nessa linha de raciocínio,
quando imaginamos que as interferências diretas da Igreja Católica no povoado do
Palmar de Troya, alertando aos que ali residiam e demais curiosos ou frequentadores
do lugar das aparições a não tomarem como verídicas as mensagens, percebemos que
esta intromissão foi irrelevante para aqueles que passaram a crer no fenômeno
palmariano, já que o número de simpatizantes e seguidores cresceu significativamente
em dez anos (1968–1978), proporcionando a esta congregação vantagens para que
estendesse seu alcance a outras partes da Espanha e ao exterior. Em cada um desses
lugares, a nova ordem se fazia presente através de agentes – geralmente religiosos
oriundos da mesma – dispostos a defenderem e legitimarem as aparições da Virgem
do Carmo no Palmar, e a propagarem sua mensagem tradicionalista e apocalíptica586.
Assim, partindo da análise documental do Extrato Atualizado dos Documentos
Pontifícios de Sua Santidade o Papa Gregório XVII587 e do Catecismo Palmariano de
Grau Superior588, suspeitamos que o processo de criação dessa entidade religiosa foi
balizado pela junção das narrativas oriundas das visões com os pontos da tradição
católica anteriores ao Vaticano II reclamados e reproduzidos no lugar das aparições do
Palmar de Troya.

585 Promulgado inicialmente pelo Papa Pio V (1504-1572), o Missal Romano estabeleceu o rito oficial da
missa para toda a Igreja Católica.
586 Informações extraídas do livro “A Pope of their Own”, Magnus Lundberg (p. 26).
587 Título traduzido do “Extracto Actualizado de los Documentos Pontifícios de Su Santidad El Papa

Gregorio XVII”, originalmente publicado em espanhol. Versão traduzida para o português não
encontrada.
588 Edição Portuguesa do “Catecismo Palmariano de Grado Superior” (2003).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
870

A IGREJA PALMARIANA
A história da Igreja Católica Apostólica e Palmariana começou com as aparições
da Virgem do Carmo registradas no povoado de El Palmar de Troya, interior da
Província de Sevilha, Espanha. No dia 30 de março de 1968, quatro meninas, Ana García,
Josefa, Rafaela e Ana Aguilera, afirmaram haver visto uma bela mulher sobre um
lentisco no campo da Alcaparrosa, que fica a 1 km (um quilômetro) do Palmar. A história
rapidamente se espalhou por todo o povoado e para outras cidades da Andaluzia,
mobilizando grandes multidões que passaram a se dirigir ao terreno (que
posteriormente foi nomeado lugar das aparições) para rezarem o rosário à espera de
algum sinal da presença da Virgem. Foi em meio a esse cenário que começaram a surgir
outras pessoas que também se diziam videntes, retirando das quatro meninas pioneiras
o protagonismo das visões589. Assim, meses mais tarde, Clemente Domínguez y Gómez
(1946-2005), um balconista590 que trabalhava para um jornal católico de Sevilha,
visitou o lugar, passando a ir até lá com mais frequência na companhia de seu amigo
Manuel Alonso Corral (1934-2011).
Esses dois personagens tiveram papel central na criação da Ordem dos
Carmelitas da Santa Face e, posteriormente, da própria Igreja Palmariana.
Primeiramente, Clemente, que a partir do mês de agosto de 1969 passou a afirmar que
também tinha visões e entrava em estado de êxtase durante elas. Poucos anos mais
tarde, dizendo estar em diálogo com a Virgem, recebeu dela a missão de espalhar pelo
mundo a devoção à imagem do rosto de Cristo do Sudário de Turim, conhecida também
como Santa Face. Noutra dessas visões, Maria conferiu ao vidente a missão de fundar
uma nova ordem religiosa que seria a síntese e a guardiã da tradição católica. Dessa
forma, por meio desta revelação divina que ele afirmou receber, Clemente fundou a
Ordem dos Carmelitas da Santa Face – nome derivado da própria devoção à imagem do
rosto de Cristo – no dia 23 de dezembro de 1975591. Se Clemente, à época como o mais
importante vidente do Palmar e fundador da nova ordem religiosa, passara a exercer o

589 Informações extraídas do livro “A Pope of their Own”, Magnus Lundberg (p. 17).
590 Informações extraídas de reportagem do jornal ABC de Sevilla de 23/04/2018. Disponível em:
<http://sevilla.abc.es/provincia/sevi-palmar-troya-farsa-agoniza-50-anos-despues-
201804230742_noticia.html> (acesso em 23/04/2018).
591 A data de fundação da Ordem dos Carmelitas da Santa face está no capítulo LXX do Catecismo

Palmariano de Grau superior.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
871

papel de líder entre os adeptos do seu grupo, Manuel Alonso foi designado a uma série
de funções administrativas, se tornando a segunda pessoa mais importante dentro da
Ordem592.
Com o crescimento do número de seguidores da congregação e a ausência de
sacerdotes que a representassem, sabendo da passagem do arcebispo tradicionalista
vietnamita Pierre Martin Ngô Đình Thục (1897-1984) pelo Palmar de Troya, Clemente e
Manuel Alonso se mobilizaram para solicitar a este arcebispo que os concedesse a
ordenação sacerdotal. Assim se fez: no dia 01 de janeiro de 1976, atendendo ao pedido
dos palmarianos, Clemente Domínguez e Manuel Alonso, junto a mais três religiosos,
foram ordenados padres da Igreja Católica segundo o rito tridentino. Dez dias depois, a
11 de janeiro, o mesmo arcebispo Thục os elevou ao bispado em uma cerimônia de
sagração celebrada no lugar das aparições. As ordenações logo foram reportadas às
autoridades eclesiásticas da região e o arcebispo Thục, junto com Clemente, Manuel
Alonso e os demais ordenados, foram oficialmente excomungados da Igreja Católica
Romana por decreto do então núncio apostólico593 na Espanha.

Figura 1: Da esquerda para a direita: Manuel Corral e Clemente Domínguez no dia de sua
sagração episcopal (11/01/1976)

Fonte: Site Oficial da Igreja Católica Ortodoxa Hispânica.594

592 Após a morte de Clemente (Papa Gregório XVII do Palmar) em 2005, Manuel Alonso se tornou seu
sucessor no papado adotando o nome de Pedro II.
593 “O núncio papal na Espanha, Luigi Dadaglio, foi a Sevilha, onde a 15 de janeiro, declarou os bispos

palmarianos e o arcebispo Thuc excomungados a partir do momento das consagrações”. Informação


extraída do livro “A Pope of their Own”, Magnus Lundberg (p. 73).
594 Figura 1 : Disponível em:
<http://www.igrejaortodoxahispanica.com/Imagens/Biografias/Clemente_Dominguez_Gomez/Ordena
cao_Episcopal/AAA.JPG> (acesso em 30/04/2018).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
872

Em maio do mesmo ano, em missão no País Basco, Clemente sofreu um grave


acidente automobilístico que o deixou completamente cego, mas ele, mesmo nesta
condição, continuou à frente do seu movimento, presidindo os ritos e ordenando mais
padres e bispos. Em 6 de agosto de 1978, estando Clemente na Colômbia em companhia
de Manuel Alonso e outros bispos, à procura de mais seguidores para sua Ordem, o
falecimento do Papa Paulo VI (1897-1978) – acontecido naquele mesmo dia – estava
sendo noticiado em todo o mundo. Rapidamente, ao tomar conhecimento da notícia,
Clemente afirmou receber outra mensagem divina através de uma visão na qual o
próprio Jesus Cristo o coroava papa na presença dos apóstolos Pedro e Paulo. De volta
a Sevilha em 9 de agosto, o agora Papa Gregório XVII (nome adotado durante a visão)
afirmou que a Sé de Roma havia sido misticamente transferida para El Palmar de Troya
e que a Igreja Católica e Apostólica já não era mais Romana, mas sim, Palmariana, em
referência à localidade das aparições. O Catecismo Palmariano de Grau Superior afirma
que:

[...] 4. A Igreja Palmariana é a única e autêntica Igreja Cristã, nome de


que vem de Cristo, seu Divino Fundador. 5. No dia 6 de agosto de 1978,
depois da morte do Papa São Paulo VI, Nosso Senhor Jesus Cristo,
acompanhado dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, elegeu e coroou
ao novo Papa, Sua Santidade Gregório XVII. Desde esse momento, a
igreja romana deixou de ser a verdadeira igreja. (Catecismo Palmariano
de Grau Superior, 2003, p. 47)

É com base nestes acontecimentos, que resultaram na transformação da Ordem


dos Carmelitas da Santa Face em uma nova Igreja separada da Católica, mas que
reclama para si a legítima sucessão papal, que continuamos analisando os discursos
contidos nos já referidos Extrato Atualizado dos Documentos Pontifícios de Sua
Santidade o Papa Gregório XVII e no Catecismo Palmariano de Grau Superior, pois estes
apresentam a narrativa das aparições e da autoproclamação de Clemente Domínguez
como sucessor de Paulo VI.

A CRIAÇÃO DO “VATICANO ESPANHOL”


Quando Clemente valeu-se de outra de suas visões para declarar-se como
legítimo papa católico, subverteu a lógica de tantos grupos tradicionalistas que
preferiram manter a doutrina e a liturgia tradicionais em comunhão com o papa de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
873

Roma. Assim, mesmo se colocando como verdadeiro Pontífice Máximo, instituiu uma
nova forma de crença com acréscimos doutrinários extra-canônicos que se
distanciaram do Catolicismo Romano e mantiveram uma estética balizada por
elementos diretamente extraídos das crenças marianas da Andaluzia. Somando-se a
isso, ainda se observa que sua Igreja Palmariana difundiu, a partir de 1978 “um
elaborado sistema teológico que tem claras raízes no catecismo romano tradicionalista
e nas devoções populares espanholas” (LUNDBERG, 2017).
Agora, veremos alguns fragmentos extraídos de duas das fontes selecionadas
para este trabalho, que nos fazem entender melhor os questionamentos aqui
levantados. Na página dezoito do Extrato Atualizado dos Documentos Pontifícios de
Sua Santidade o Papa Gregório XVII está o “Nono Documento” papal que trata da total
ruptura com a Igreja de Roma. Deste documento, originalmente publicado em espanhol,
trazemos a seguinte citação traduzida:

Nós declaramos, como Doutrina Infalível, que a Sé Apostólica do


Palmar de Troya, crê, professa, confessa e declara que: A Verdade
revelada por Deus é a Verdade que nós pregamos. Conservamos o
Sacrossanto Tesouro da Divina Revelação: As Sagradas Escrituras, a
Santa Tradição, a Doutrina Infalível ensinada por Nossos Venerados
Predecessores, as definições Dogmáticas dos Santos Concílios
Ecumênicos e as Revelações Místico Proféticas. Portanto, não cabe
dúvida alguma que, a Igreja verdadeira e única, é a Igreja do Palmar de
Troya, hoje Sé Apostólica (Extrato dos Documentos Pontifícios, 2003,
p. 18 – referência traduzida).

Observando a narrativa presente neste fragmento textual, percebemos que a


Igreja Palmariana, através da pessoa de seu fundador, apropria-se de um estilo de
escrita muito comum em decretos, bulas e outros documentos papais católicos,
especialmente ao iniciar os períodos com “nós”, ao invés de “eu”. Este tipo de referência
serve para mostrar que a figura do papa – mesmo no caso palmariano – transcende a
individualidade daquele que ocupa o cargo e se manifesta como um conjunto de
agentes que operam por meio dele. A construção de espaço que aqui é apresentada se
torna novamente perceptível não apenas por meio desses elementos textuais, mas de
forma geral, como característica do propósito que esta organização religiosa quer
mostrar como um de seus pilares de sustentação mais importantes: a reivindicação da
legítima sucessão apostólica por meio de seu colégio episcopal e a sucessão do papado
Católico Romano através do próprio Clemente. Quanto à suposta manutenção do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
874

referido “Sacrossanto Tesouro da Divina Revelação”, este fator engloba elementos que
os palmarianos consideram como marcas da verdadeira tradição católica, aos quais,
entre outros pontos, se adicionam as Escrituras Sagradas, os ensinamentos dos papas
anteriores – aqui apontados como predecessores do autoproclamado Gregório XVII –
e as “Revelações Místico-Proféticas” advindas das aparições que deram origem a todo
o movimento. Nesse sentido, a Igreja Palmariana fez um duplo processo de
afastamento em relação à Igreja Católica Apostólica Romana, pois tomou seu fundador
como verdadeiro líder desta última e transferiu sua sede para outro lugar (que é o
Palmar).

Figura 2: A Basílica sede da Igreja Palmariana, construída no terreno do lugar das aparições (foto da
década de 1990).

Fonte: Lagopress Konstanz.595

Ainda dentro da análise documental do Extrato dos Documentos Pontifícios de


Gregório XVII, noutra sessão que trata de algumas canonizações realizadas por este
autoproclamado pontífice, o nome do ex-ditador espanhol Francisco Franco
Bahamonde (1892-1975), aparece listado entre os santos do Palmar como “invicto
Caudilho” da “Santa Cruzada” espanhola, como mostrado na seguinte citação:

São Francisco Franco foi o invicto Caudilho da guerra contra o


comunismo, e também foi o Caudilho da Paz. Durante sua carismática
Chefia de Estado, restabeleceu o Santo Crucifixo em todos os centros
oficiais. Restabeleceu o sagrado respeito à Igreja Católica,

595 Figura 2 : Disponível em: <http://www.lagopress-konstanz.de/wp-


content/uploads/2014/11/Palmarianer14_800.jpg> (acesso em 30/04/2018).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
875

convertendo-a em religião única do estado e da pátria (Extrato dos


Documentos Pontifícios, 2003, p. 37 – referência traduzida).

Observando este fragmento textual retirado do já referido Extrato dos


Documentos Pontifícios do fundador da Igreja Palmariana, percebemos que esta
compilação de decretos pretende ser um guia prático para a compreensão e o
conhecimento desse mesmo tipo de documentação nele contida, bem como um guia
dinâmico da biografia de seus santos. Assim, nesse caso, o objetivo do documento está
centrado nas engrenagens da pesquisa histórica em forma de hagiografia, ou seja, uma
“História Sagrada” moldada a partir do fornecimento de supostas fontes originais,
tomadas como obras históricas, e como estas apresentam uma melhor imagem destes
personagens. Dentro do livro, dois importantes alicerces fornecem dados que
certamente são indispensáveis para qualquer pesquisador que faça buscas sobre estes
santos: os dados biográficos contidos nas resumidas narrativas da vida e morte deles,
e o discurso visivelmente político, algumas vezes de viés direitista, que se soma aos
seus dados. A obra ainda apresenta exemplos retirados das supostas experiências de
vida dos próprios santos em seu campo de trabalho, mostrando detalhadamente como
interpretações de questões pessoais importantes podem ser aplicadas nessa mesma
análise documental, sendo pressupostos de santidade para eles. Seguindo essa linha
de raciocínio, quando propomos um trabalho que trate da construção do espaço
religioso da Igreja Palmariana, este também implica tecer uma teia de relações dos
discursos e projetos políticos visivelmente expostos nos textos oficiais dessa
organização.
A simpatia dos palmarianos com o Fascismo espanhol, a ponto de canonizarem
Francisco Franco e colocarem sua estátua596 na fachada de sua basílica, é mais uma
amostra de como eles imaginaram aquilo que depois chamariam de “Império Hispano-
Palmariano”, que teria seu primeiro papa como chefe e Caudilho. Dessa maneira,
olhando para as narrativas do próprio santoral palmariano, podemos imaginar que isso
pode ser aplicado no olhar que deveremos ter sobre como refletir acerca do projeto

596No mês de julho de 2015 a estátua de Franco foi removida da fachada da Basílica do Palmar, sendo
substituída pela estátua de São Fernando III, Rei da Espanha. Informação extraída da notícia do jornal
UtreraWeb de 03/08/2015. Disponível em:
<https://www.utreraweb.com/noticias_de_utrera/5562/La_basilica_de_El_Palmar_de_Troya_retira
_la_escultura_del_general_Franco_y_la_sustituye_por_San_Fernando/> (acesso em 10/08/2018).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
876

político desta Igreja e como este surtiu efeito na localidade onde ela se encontra
fisicamente, mas sobretudo, na mentalidade de seus seguidores.

Figura 3: Estátua de São Francisco Franco (primeira da esquerda para a direita) na fachada da Basílica
Palmariana.

Fonte: El Mundo – Edicíon España597.

Quanto ao Catecismo Palmariano de Grau Superior, trazemos deste livro, um


fragmento do seu Vigésimo Oitavo Capítulo que trata pontualmente da visão elaborada
por esta cismática entidade acerca de seu papel restaurador e mantenedor da
verdadeira Tradição Católica e Apostólica. Intitulado “A Igreja, única depositária da
verdade”, este capítulo lista todos os seus preceitos em forma de tópicos numerados.
Este livro, que é mais uma edição oriunda dos documentos aprovados pelo Santo
Magno e Dogmático Concílio Palmariano,598 fornece os pressupostos de sua forma de
pensamento que é visivelmente atravessada por uma construção identitária balizada
pelos acréscimos extra-canônicos que esta promove, como se pode observar na
seguinte citação:

[...] 7. A fé ou Sacrossanto Tesouro da Divina Revelação é a visão


beatífica velada, já que o depósito dos sublimes mistérios que
constituem a glória essencial e a glória acidental dos Bem-aventurados,
e que, portanto, permanecem ocultos às almas que ainda não chegaram

597 Figura 3: Disponível em:


<http://e04-elmundo.uecdn.es/assets/multimedia/imagenes/2014/10/07/14126967936988.jpg>
(acesso em 10/08/2018).
598 O Santo Magno e Dogmático Concílio Palmariano foi uma série de reuniões convocadas pelo então

Papa Gregório XVII para tratar da doutrina e da liturgia de sua igreja junto com todos os seus bispos em
1980.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
877

à pátria celestial. [...] 10. Aqueles que negam alguma verdade de Fé


estão fora da Igreja. 11. Todos aqueles que estão fora da Igreja Una,
Santa, Católica, Apostólica e Palmariana, são apóstatas, hereges e
cismáticos (Catecismo Palmariano de Grau Superior, 2003, p. 45 e 46).

Aqui se pode traçar uma reflexão teórico-metodológica acerca das possíveis


maneiras de compreensão que estes conceitos de fé querem estabelecer quando
pretendem levantar questões ligadas a uma suposta natureza divina da Igreja
Palmariana, sobre a própria natureza da tradição religiosa em que ela está inserida e,
consequentemente, sobre a natureza da própria humanidade dentro da perspectiva das
aparições marianas e das revelações divinas feitas ao primeiro de seus papas. Dentro
desse contexto, vale ressaltar que o valor da narrativa pode ser considerado a solução
para um ou outro problema que preocupe o pesquisador, notadamente enquanto
agente da história, pois a questão em torno de como interpretar o conhecimento e
tornar a experiência humana assimilável, ainda mexe nas estruturas de significado que
são comumente oriundas do trabalho resultante da cultura religiosa humana.
Nesse sentido, a noção de que as sequências dos eventos passados –
notadamente os que são dados como reais possuem – dão base aos atributos formais
das histórias que analisamos e contamos, além das narrativas oriundas do imaginário
de variadas culturas. O homem religioso pode não ser capaz de compreender
totalmente padrões de pensamento de uma religião diferente da sua, mas pode
minimamente refletir sobre ela com menor dificuldade. Dentro desse contexto,
considerando que o valor da narrativa, assim como o espaço, é uma categoria presente
na história, o fato de estudar uma entidade religiosa tão conservadora, fechada e
geograficamente isolada, nos faz pensar em como melhorar o tratamento que damos
às fontes, em particular, aos documentos produzidos por ela, já que estes são amostras
de puro conteúdo ideológico e político. A Igreja Palmariana, a todo momento, quer fazer
crer que ela é a verdadeira e legítima sucessora do Catolicismo Romano, mas acima de
tudo, que é a própria Igreja Católica Romana no Palmar de Troya. Como veremos noutro
capítulo do mesmo Catecismo, a justificativa para esta forma de pensamento se deve
às próprias raízes da Ordem dos Carmelitas da Santa Face, uma vez que esta se baseou
no ideal comum dos grupos tradicionalistas de sua época, que era o de tomar a Igreja
oficial como herética por suas novas posturas e mudanças litúrgicas oriundas do
Concílio Vaticano II. Intitulado “Notas da verdadeira Igreja”, o capítulo XXX do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
878

Catecismo Palmariano de Grau Superior segue o mesmo modelo de organização dos


capítulos precedentes (tópicos numerados). Observemos a seguinte citação:

[...] 6. Pela apostasia da igreja romana, Cristo transladou a Sede de sua


Igreja desde Roma ao Palmar de Troya o dia 9 de agosto de 1978. Com
o translado da Sede ao Palmar de Troya, a verdadeira Igreja de Cristo
recebeu o título de Palmariana. 7. O Espírito Santo é a Alma de uma só
Igreja: a Verdadeira; a qual é a Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e
Palmariana, fora d’Ela não é possível a habilidade do Diviníssimo
Paráclito nas almas (Catecismo Palmariano de Grau Superior, 2003, p.
47 e 48).

Atentando ao fragmento textual anteriormente abordado, percebemos ainda a


necessidade de se inserir neste trabalho o conceito de identidade elaborado por Claude
Dubar. O autor do A socialização: construção das identidades sociais e profissionais
salienta que "a identidade dos atores sociais é o resultado provisório e contingente das
dinâmicas diversificadas de engajamentos, dentro de espaços de jogo estruturado
pelas regras em perpétua evolução" (DUBAR, 1991, p. 64) 599. Nesse sentido,
observamos que a montagem do espaço religioso da Igreja Palmariana é transpassada
por uma estrutura repleta de regras doutrinárias e conceitos de fé, que conforme
suspeitamos através do conhecimento das fontes aqui utilizadas, foram sofrendo
alterações durante o recorte temporal selecionado (1968-1978) e isto resulta na criação
de uma identidade própria para esta instituição religiosa. Dessa forma, por meio dessas
percepções, é possível observar que o homem experimenta do sagrado em espaços
diferentes daqueles frequentados em sua vida diária, e que os templos das entidades
religiosas são os espaços das experiências que propiciam a este mesmo homem uma
quebra com o ordinário e com o profano, sendo isso mais um ponto de ligação com a
maneira pela qual a Igreja Palmariana pretendeu montar sua sede física, seu espaço
religioso e sua própria identidade, dando legitimidade a cada um desses fatores através
dos discursos contidos em seus textos oficiais.
Como sabemos, os interesses são parte da nossa realidade enquanto sociedade
porque partem de motivações individuais que podem também ser coletivas. O desejo se
liga diretamente aos interesses de poder, sendo visivelmente observado nas religiões
que possuem uma estrutura hierárquica piramidal, como no caso da Igreja Palmariana.

599 Referência retirada e traduzida do “La socialisation - Construction des identités sociales et
professionnelles” (DUBAR, 1991).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
879

Nesse sentido, olhando para a citação que acabamos de analisar, também percebemos
um aparato de controle ideológico sobre os fiéis membros dessa igreja, e esse mesmo
aparato tem seu centro na figura do seu fundador e líder autoproclamado papa; o que
é mais uma evidente amostra da construção de uma espacialidade balizada pela
“individualidade e do eu” (FOUCAULT, 1999, p.29). Assim sendo, os discursos presentes
nas obras: Extrato dos Documentos Pontifícios de Sua Santidade o Papa Gregório XVII
e Catecismo Palmariano de Grau Superior expõem um visível interesse em respaldar e
validar as ideias presentes em sua narrativa a fim de afirmarem a Igreja do Palmar
como religião independente e substituta do Catolicismo Romano.

AS ATRIBUIÇÕES DADAS À MARIA E JOSÉ NA DOUTRINA PALMARIANA


Quanto às rupturas com o passado Católico Romano, conforme pensado durante
o desenvolvimento deste artigo, estas foram observadas, em grande medida, com base
na pura narrativa oficial – que já deixa evidente este processo de rompimento – uma
vez que, as interpretações do que se narra neste tipo de documento ocupam lugar
central nesta pesquisa. Nessa linha de raciocínio, outro fator que ainda pode ser
considerado é o dos novos significados dados à figura de Maria e de José na doutrina
da Igreja do Palmar. A estes dois santos católicos, que exerceram papéis centrais na
narrativa da vida do próprio Cristo e da Igreja, se adicionaram mais atribuições extra-
canônicas que os divinizaram e os elevaram a um patamar muito superior ao dos demais
santos, quase que os tornando divindades de caráter secundário, num tipo de nova
perspectiva trinitária em que Maria e José passam a formar uma Trindade similar a do
Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
880

Figura 4: A Virgem do Palmar Coroada, patrona da Igreja Palmariana.

Fonte: Cedida pelos administradores da página do Facebook Palmarian Church/Iglesia Palmariana


(acervo do autor)600.

No Capítulo XVI do Catecismo Palmariano de Grau Superior, intitulado “A


Santíssima Virgem Maria” a se lê o seguinte:

[...]9. A Divina Maria, além do estado natural glorioso que possui sempre
em sua Alma e em seus corpos, teve também, durante a maior parte de
sua vida na terra, estado passível em sua Alma e seu Corpo acidental, a
fim de poder sofrer por nós. Seu Corpo essencial jamais teve estado
passível. 10. No Céu, a Alma Divina de Maria exerce as funções
superiores beatíficas para com seu corpo essencial e as funções
inferiores beatíficas para com seu Corpo acidental. [...]12. Maria supera
em santidade a todos os Anjos e Santos juntos (Catecismo Palmarianos
de Grau Superior, 2003, p. 28).

Quanto a São José, no capítulo seguinte (o XVII), se afirma que São José foi pré-
santificado, ascendeu aos céus de corpo e alma e ainda que “[...] 10. Depois de Maria, São
José, em graças e prerrogativas, supera a todos os Anjos e Santos juntos (Catecismo
Palmarianos de Grau Superior, 2003, p. 30).” Tendo observado atentamente estes
fragmentos, mesmo que os dois sejam uma minúscula amostra da vastidão de
doutrinas e conceitos de fé elaborados pela religião palmariana, identificamos que esta
entidade religiosa realmente deifica estes dois personagens de seu santoral,
colocando-os em um lugar muito próximo ao do próprio Deus Pai, Filho e Espírito Santo,

600Figura 4: Cedida ao autor pelos administradores da página do Facebook Palmarian Church/Iglesia


Palmariana.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
881

como se a Sagrada Família (Jesus, Maria e José) assumisse um papel trinitário similar
ao da já referida Trindade, que é um só Deus para a Igreja Palmariana.

Figura 5: Imagem de São José do Palmar Coroado que se encontra no interior da Basílica Palmariana.

Fonte: Cedida pelos administradores da página do Facebook Palmarian Church/Iglesia Palmariana


(acervo do autor)601.

O aprofundamento de tal discussão ainda está à mercê de uma análise mais


detalhada dos decretos papais contidos no Extrato dos Documentos Pontifícios, que
também a São José, atribuem características dogmáticas semelhantes à da Virgem. Em
suma, para a temporalidade de dez anos abarcada neste trabalho, tentamos extrair da
documentação analisada os pontos mais intrinsecamente atrelados ao caráter das
aparições e à fundação da Igreja, pois cremos que englobaram suficientemente a maior
concentração discursiva pertinente a um artigo com a dimensão deste. Ainda nesse
sentido, podemos estabelecer mais um nexo entre as anteriormente referidas
atribuições dadas à Maria e José pela Igreja Palmariana como fator para a criação de
uma identidade e de uma nova espacialidade religiosas que se configuram por meio
desses acréscimos extra-canônicos forjados a partir de sua fundação em 1978. Quanto
à Ordem dos Carmelitas da Santa Face, é correto dizer que esta se tornou a própria
Igreja Palmariana, pois o que aconteceu foi que seu superior-geral e fundador,
Clemente Domínguez y Gómez, ao se proclamar papa, fundou a Igreja Católica
Palmariana e fez da então congregação Carmelita, a única ordem religiosa dentro de
sua igreja. Todo fiel palmariano é terciário da Ordem dos Carmelitas da Santa Face,
enquanto seus clérigos são religiosos de primeiro e segundo graus.

601Figura 5: Cedida ao autor pelos administradores da página do Facebook Palmarian Church/Iglesia


Palmariana.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
882

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os referenciais de matriz católica romana que dão base às crenças da Igreja
Palmariana, ainda que ampliados e/ou modificados em meio às tradições do imaginário
religioso oriundo da cultura da província de Sevilha – como no caso do estilo
iconográfico de suas imagens de culto – são mais uma amostra de como esta cismática
entidade religiosa procura afirmar-se como um catolicismo genuinamente espanhol em
detrimento do “herético Catolicismo Romano do Concílio Vaticano II”, conforme
adjetivado em seus discursos. Quanto ao nome oficial da entidade (Igreja Cristã
Palmariana dos Carmelitas da Santa Face), este se deve à já mencionada inserção da
Ordem dos Carmelitas da Santa Face dentro desta instituição, mas a ausência dos
termos “católica e apostólica” – como era de se esperar – se deve a um problema de
registro jurídico602 acontecido na década de 1980. Pelo fato de ter sido considerada
uma cópia da Igreja Católica oficial e uma afronta à sua identidade, o Ministério da
Justiça Espanhol solicitou que a Igreja do Palmar de Troya adotasse outra
nomenclatura, por isso o termo “Igreja Católica, Apostólica e Palmariana”, como
aparece nas fontes aqui analisadas, foi substituído por “Igreja Cristã”. Dessa maneira,
concluímos o presente trabalho na certeza de que o movimento palmariano, ao romper
com a Igreja Católica oficial, se tornou uma nova religião que busca ser a continuidade
desta última por meio da pessoa de seus papas e de seu aparato ritualístico e
doutrinário.

REFERÊNCIAS
ALDANONDO, Isabel. NUEVOS MOVIMIENTOS RELIGIOSOS Y REGISTRO DE
ENTIDADES RELIGIOSAS. AFDUAM: Anuario de la Facultad de Derecho, Vol. 17, p.
355-398, 2013. Disponível em: <http://afduam.es/wp-
content/uploads/pdf/17/IsabelAldanondo.pdf>. Acesso em: 11 de junho de 2018.

CATECISMO PALMARIANO DE GRAU SUPERIOR. Sevilla: Santo Sínodo Dogmático


Palmariano, 2003, 149p.

DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais.


Tradução. Anette Pierrette R. Botelho e Estela Pinto R. Lamas. Portugal: Porto
Editora, 1997.

602Informações retiradas do artigo “Nuevos Movimientos Religiosos y Registro


de Entidades Religiosas”, de Isabel Aldanondo (2013).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
883

DUBAR, Claude. La socialisation: Construction des identités sociales et


professionnelles. Paris: Armand Colin, 1991.

EL PALMAR DE TROYA, UNA FARSA QUE AGONIZA 50 AÑOS DESPUÉS. Disponível


em: <http://sevilla.abc.es/provincia/sevi-palmar-troya-farsa-agoniza-50-anos-
despues-201804230742_noticia.html>. Acesso em: 23 de abril de 2018.

EXTRACTO ACTUALIZADO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS DE SU SANTIDAD


EL PAPA GREGORIO XVII A LA LUZ DE LA HISTORIA SAGRADA O SANTA BIBLIA
PALMARIANA. Sevilla: Santo Sínodo Dogmático Palmariano, 2002, 360p.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 5ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

LUNDBERG, Magnus. A Pope of Their Own: Palmar de Troya and the Palmarian
Church. Uppsala: Uppsala University, Department of Theology, 2017.

Iconografia

Figura 1 – Ordenação Episcopal de Clemente. Disponível em:


http://www.igrejaortodoxahispanica.com/Imagens/Biografias/Clemente_Dominguez
_Gomez/Ordenacao_Episcopal/AAA.JPG Acesso em: 30/04/2018.

Figura 2 – Basílica Palmariana. Disponível em: http://www.lagopress-


konstanz.de/wp-content/uploads/2014/11/Palmarianer14_800.jpg Acesso em:
30/04/2018.

Figura 3 – Estátua de São Francisco Franco. Disponível em: http://e04-


elmundo.uecdn.es/assets/multimedia/imagenes/2014/10/07/14126967936988.jpg
Acesso em 10/08/2018.

Figura 4 – Virgem do Palmar Coroada. Cedida ao autor pelos administradores da


página do Facebook Palmarian Church/Iglesia Palmariana.

Figura 5 – São José do Palmar Coroado. Cedida ao autor pelos administradores da


página do Facebook Palmarian Church/Iglesia Palmariana.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
884

“MAMÃE NÃO CHORES POR MIM, POR MIM NÃO DEVES


CHORAR”: UMA ANALISE DAS INCELÊNCIAS CANTADAS PARA
ANJOS NO MUNICÍPIO DE JUCURUTU-RN
(SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX)

Wesley Henrique de Moura Simão603

As incelências podem ser entendidas como remanescentes das orações para os


mortos. A Igreja católica abarcava os rituais fúnebres dentro da liturgia oficial, e, o
interior do Seridó, lugar onde se apoia esta pesquisa, tinha, culturalmente, a maioria da
população pertencente à fé católica. Entretanto, havia um fator condicionante que
implicava nas pessoas a necessidade de elas próprias tratarem do culto divino, que era
a falta de sacerdotes. Esse fato, como já foi visto, deu espaço para a informalidade e
rusticidade dos ritos em torno da morte de anjinhos. As incelências eram, portanto,
cânticos ministrados pelos que ali estavam e isso permitia certa comodidade na
realização do rito.

O CENÁRIO
As casas simples de taipa no meio da caatinga, fronteadas apenas por uma porta
e uma janela, ambas rústicas, na penumbra das primeiras horas da noite, certa
movimentação de pessoas começa a mudar os arredores da casa, a noite traz consigo
o lamento da morte de mais um anjinho, as vizinhas começam a chegar, esse
acontecimento já era corriqueiro. Roupas modestas vestiam quem se aproximava da
casa, tantas muitas mulheres que já passaram por momentos semelhantes.
Dentro da casa, pouca iluminação, apenas uma lamparina abastecida com óleo
de mamona e um pavio de algodão. No meio da sala, sobre uma esteira de palha, estava
o centro de todas as atenções: um caixão simples, enfeitado com flores de papel
colorido. O cheiro do café, o aroma dos chás e o barulho da borbulha do caldeirão de
batatas compõem a cena. Mulheres cantam e enfeitam o féretro, o pranto da mãe, que
pode ser ouvido ao longe. Do lado de fora, no terreiro, os homens conversam, as
crianças brincam de anel, moças e rapazes namoram à luz da lua e de uma coivara que
ofusca luz singela da lamparina no interior da casa.

603Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN). Email:
wesleyh446@gmail.com

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
885

É necessário realizar esse exercício de visualização da cena, como o que foi feita
acima, para se ter noção de como aconteciam essas cerimônias fúnebres. As
entrevistadas deste trabalho relatam de forma muito detalhada como se estruturavam
essas ações em torno da criança morta. Segundo dona Francisca Maria da Silva,
conhecida como dona Neguinha, de 61 anos de idade, “quando morria o anjinho, juntava
aquelas vizinhas, moças e crianças (...) mais ou menos umas 15 mulheres, dependia da
vizinhança” (SILVA, 2017). Dona Neguinha, hoje, mora na cidade, mas ainda lembra-se
de forma muito saudosa dos tempos em que morava no sítio Cacimbas, um dos lugares
onde foi detectada a prática das incelências no século passado.
Dona Neguinha ainda afirma que as mulheres estavam alegres quando se
reuniam para cantar as incelências, e a ideia da criança inocente, como já detalhada
anteriormente, é percebida. Por isso, segundo a mesma entrevistada, os anjinhos não
precisavam de orações em sufrágio da alma que tornassem a morte infantil um motivo
de júbilo, pois mais um anjo estaria compondo as milícias celestes. “Cantavam como se
fosse um momento de alegria, era aquela coisa alegre porque aquela criança era mais
um anjinho para Jesus” (SILVA, 2017).
As incelências estavam ligadas à noção de “boa morte” e, sendo assim, diz
respeito aos cuidados antes do momento final, durante o velório e após o enterramento.
Desse modo, a fala das entrevistadas vai de encontro a essa ideia já debatida
anteriormente por autores como Philippe Ariès. Dona Terezinha de Jesus afirma:

A gente ficava fazendo quarto. Quarto era quando o menino ainda


estava vivo até a hora de expirar e a velinha acesa para colocar na mão
(...). Ficava o povo tudo olhando, aí quando dizia “Está morrendo! Está
com a ânsia!”, “né”, aí trazia uma vela e colocava na mão do menino. (...)
Era a ladainha que cantava, as pessoas mais velhas que sabiam cantar
(JESUS, 2017).

Além de prática espiritual, as incelências serviam como modo de interação social,


uma vez que o ritual movimentava a comunidade durante toda a noite, como confirma
mais uma das participantes, dona Francinete, e conta um pouco da relação social
nesses velórios: “A gente ficava no terreiro no claro da lua, conversando, contando
história de ‘trancoso’, brincando de anel, quem estava disposto ficava lá dentro
cantando, nos terreiros costumava fazer uma coivara, um foguinho para clarear”
(SOUZA, 2017).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
886

Esse lado festivo das incelências é confirmado por Dona Teresinha de Jesus, e
ela reconhece: “Era muita gente, e quem achava bom eram os namorados que ficavam
lá fora, e tome café a noite todinha, porque não era para ficar ninguém dormindo, todo
mundo acordado” (JESUS, 2017). Esse momento podia ser entendido como uma
comemoração por dois motivos: o primeiro, por ter mais um anjo compondo a corte
celeste, e o segundo, que, apesar de parecer estranho, é confirmado, em meio a
gargalhadas, por dona Zezinha: “Gostava, adorava, achava bom quando morria um
menino” (SILVA, 2017). Era um momento em que as pessoas podiam divertir-se, seja
cantando, jogando conversa fora ou namorando em um lugar com pouca ou quase
nenhuma opção de lazer.
O evento estendia-se durante toda a noite, e as participantes pontuam que o café
era em grandes quantidades, pois ajudava a manter os convidados deste rito acordados.
Mas não era somente isso: batatas cozidas e chás também integravam o cardápio
modesto dessas reuniões, e em alguns velórios ainda eram servidas bolachas junto ao
café caso a família tivesse mais condições, como declarou dona Neguinha.
Segundo todas as entrevistadas, as incelências causavam grande comoção nas
mães, e isso é unanimidade na fala delas. Algumas das colaboradoras comentam que
quando se morria um filho delas, não deixavam que cantassem por ser muito penoso,
mas faziam questão de cantar para os anjinhos das vizinhas. Os cânticos estendiam-se
durante a noite toda, acompanhados dos lamentos da mãe que perdia a criança, para
que somente durante as primeiras horas da manhã todos se preparassem para a
despedida. Quase rompendo a aurora das três para as quatro horas da manhã, saia o
enterro, e um homem adulto levava a criança morta num caixão ou telha, enfeitado com
flores, e até certo ponto do caminho era acompanhado, como assegura dona Maria
Francisca: “A gente saía acompanhando o caixãozinho cantando até lá em coisa” (SILVA,
2017).

AS MORTALHAS
As mortalhas assumem papel fundamental no rito fúnebre, uma vez que elas
têm uma “ligação direta com o Santo Sudário, o pano que envolveu o cadáver de Cristo
e com o qual ele mais tarde ressuscitou e ascendeu ao céu” (REIS, 1952, p. 118). Era
comum, segundo Reis, que as crianças vestissem-se com roupas de santos, e a
mortalha tinha relação com o estado de pureza da criança e a posição que ela ocuparia

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
887

ao chegar ao céu. Em consonância com o que Reis diz, dona Das Neves, uma das
entrevistadas, afirma que, em alguns casos, “se fazia uma coroa de papelão e cobria
com areia brilhosa” (SILVA, 2017). O relato da confecção dessa coroa encimada por uma
cruz lembra bastante a coroa de São Miguel Arcanjo, santo bem visto na hora da morte,
principalmente nas mortes de crianças (REIS, 1952, p. 119).
A produção dessas mortalhas obedecia a regras que faziam parte do rito fúnebre
e que estavam impregnadas de superstições, como é possível notar no relato de dona
Socorro Rabicó:

Antigamente, meu filho, a pessoa só amortalhava o anjo. Olhe, tinha


que saber onde era o direito do pano, porque, se tivesse, abastava ter
uma manga feito pelo avesso, sonhava uma pessoa dizendo que tinha
que endireitar, porque tinha que ser tudo bem direitinho. Olhe, morreu
um menino, aí apareceu uma pessoa dizendo: diga à mamãe que mande
o pedaço do bico que faltou na minha mortalha, botar um biquinho em
baixo, faltou um pedacinho, mande o pedacinho do bico que faltou. E
ela: e por quem eu vou mandar? (no sonho), Aí ele foi e disse: amanhã o
portador passa lá na sua porta. Aí quando foi no outro dia a mulher
ficou... Aí mandou comprar o pedaço de bico. Quando deu fé, lá vem uma
pessoa com um anjinho (pia, me arrepiei todinha), aí foi, ela botou na
mão do anjo o pedaço do bico e não sonhou mais não (SOUZA, 2017).

Geralmente, as mortalhas eram brancas e feitas de morim, que era um tecido ao


qual as pessoas pobres tinham acesso, tendo em vista seu baixo custo. O modelo das
mortalhas era simples e a confecção constituía parte das ações em torno da morte
infantil. “Vamos fazer a mortalhinha: costurava, e quando não tinha a máquina era tudo
na mão. Comprava morim. Eu vendi muito (silêncio) branca toda de morim. Quando era
de menina fazia a roupa branca e o manto azul, cobria a cabecinha. O traje de nossa
Senhora, pronto, era azul e branco” (JESUS, 2017), como atesta dona Teresinha de
Jesus.

Pegava o morim, dobrava e costurava. A gente num tem essa cava? (a


entrevistada demonstra na própria roupa), só que não existia, costurava
assim direto, reto, que hoje a costureira sabe. A mulher: “eu queria uma
blusa manga de mortalha”, porque não tem cava, aqui era o morim,
“nera”? Cavava o buraquinho aqui, para enfiar a cabeça, agora aqui
cortava assim, no que você vestia aí ficava a manguinha, aí tudo era
branco. Agora a menina que colocava o paninho azul que cobria a
cabecinha nela aí descia, ficava mais ou menos aqui o azul. (...) Do
menino era só branco, depois começou a fazer São Francisco, aí era a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
888

“mortalhinha” marrom com o cordão de São Francisco na cintura


(JESUS, 2017).

A simplicidade do rito, aliada à informalidade, permitia que as mortalhas e os


caixõezinhos fossem bastante enfeitados, e esses adornos eram produzidos com os
materiais a que essas pessoas, em meio a toda dificuldade financeira, tinham acesso. O
caixão podia ser de caixa de sabão reaproveitada. Antigamente, segundo os relatos
coletados, o sabão era vendido em caixas de madeira e essas caixas eram
reaproveitadas de muitas maneiras, inclusive na confecção dos caixões para anjinhos.
Quando não se tinha a caixa de madeira, uma telha servia de suporte para o frágil
corpinho. O caixãozinho ou a telha era enfeitado com flores coloridas durante a noite,
como foi contado por dona Nêna: “Homem, aqueles caixõezinhos ficavam tão
bonitinhos, tudo enfeitadinho” (SILVA, 2017). O caixãozinho ficava em cima de uma
mesa ou esteira de palha na sala e era “enfeitado com papel de anjo azul, amarelo, verde
(papel seda)” (SILVA, 2017).
Havia uma quantidade considerável de adereços que poderiam ser usados junto
à mortalha, desde a coroa de papelão à fita que envolvia a cintura da criança e amarrava
as mãos postas, ou até mesmo, como informado por dona Maria Petronila, de 104 anos
de idade: “O anjinho, com as mãos postas, fazia um livrinho [papel dobrado ao meio], o
anjinho ficava com os olhos abertos [havia a ideia de não precisar fechar os olhos da
criança], parecia que estava lendo a noite toda até o amanhecer” (ARAÚJO, 2017). Junto
a esses elementos, ainda existia a confecção de rosas para ornar o féretro. A produção
dessas rosas estava inserida no rito das incelências, e tanto a feitura das rosas quanto
o grude servia de cola, como afirma dona Terezinha de Jesus:

“Pegava goma, fazia tipo, botava água e fazia como leite, aí derretia e
botava no fogo para engrossar, aí ficava aquele grude para você passar
nas flores e pregar na “mortalhinha” e no caixãozinho. Ainda pegava um
paninho, “nera”, Maria? E jogava um paninho quadrado e jogava um
monte de florzinha pregada” (JESUS, 2017).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
889

Foto 04: Mortalha em Foto 05: Detalhe da abertura


morim, confeccionada por para a cabeça, com o
dona das Neves. Acervo acabamento em bico de
do autor. algodão. Acervo do autor.

Na imagem 04, vê-se uma mortalha confeccionada em morim branco, sem cava,
apenas com a abertura para a cabeça, finalizada com bico. A fita servia para ataviar a
cintura ou amarrar as mãos do anjo de forma que ficassem postas. O modelo obedece
às informações oferecidas pelas narradoras.
Vê-se, na imagem 05, o detalhe da abertura para a cabeça e o acabamento feito
com bico de algodão. O modelo também obedece às informações oferecidas pelas
narradoras.
É possível observar, no modelo ilustrativo costurado por dona das Neves, as
características apontadas anteriormente, como o morim, a manga sem cava, a abertura
para passagem da cabeça, o bico, que também servia como ornamento, e a fita que
cingia a cintura dos anjinhos.
Vê-se, na imagem 06, a mortalha com um dos adornos mais comuns, as flores
feitas em papel seda ou papel de anjo, como chamavam. O modelo de pétalas
pontiagudas podia enfeitar desde a mortalha até o caixãozinho. O modelo obedece às
informações oferecidas pelas narradoras.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
890

Foto 06: Flores dispostas sobre Foto 07: Flores aproximadas. O


a mortalha. Acervo do autor. modelo foi produzido pelas
narradoras. Acervo do autor.

Na imagem 07, vê-se, de forma mais aproximada, as rosas produzidas para


ornamentar o anjinho. Nessa foto também se percebe a fibra do morim. O modelo
obedece às informações oferecidas pelas narradoras.
Nessas imagens pode-se ver parte dos adornos que enfeitavam os anjinhos
mortos, e esse modelo de flores foi apresentado por uma das entrevistadas (a
disposição das flores na primeira foto obedece à informação da narradora). Vale
lembrar que todo caixão era coberto com essas flores, e enquanto cantavam-se as
incelencias, algumas mulheres enfeitavam o caixãozinho. Outro detalhe que é
interessante mencionar é que, após enfeitado o caixão e a mortalha, ainda colocavam,
em certos casos, uma folha de papel seda cortado como que formando uma renda para
cobrir o anjinho.

AS INCELÊNCIAS
As incelências estão ligadas às orações e preces em torno do morto. Nesse caso,
especificamente, por tratar-se de crianças e, portanto, não haver a necessidade de
purgação de pecados, essas músicas ora festejam – não a morte dos pequenos, mas o
acesso deles ao reino dos céus –, ora consolam as mães e os pais que perdiam os filhos.
As letras eram simples e refletiam o imaginário católico, sendo “os cantos [...] de
estrutura melódica simples e despojada, com o predomínio do estilo silábico e os sons
repetidos, ao lado do defunto, cantados pelos parentes, amigos e vizinhos” (SANTANA,
201, p. 91).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
891

Isso é possível observar nas incelências cantadas por dona Socorro Rabicó. (Para
facilitar a divisão das letras, as incelências são numeradas conforme suas aparições no
texto).

Incelência 01
No entrar da glória
O sino tocando
Senhor São Miguel
As almas pegando
Senhor São Miguel
As almas pegando

Incelência 02

Eu vou uma viagem no céu


Dois anjos veio e me levou
Eu vou ver Nossa Senhora
Eu vou ver Nosso Senhor

Incelência 03

São Joaquim, quando morreu


Deixou seu mundo de luz
Deixando nós com memória
Louvores da Santa Cruz

Incelência 04

Doze incelências
Meu Deus, que só é José
Quem vai para o céu vai sorrindo
Porque em Deus tem grande fé
Jesus, Jesus, Jesus Maria e José

Incelência 05

Lá vem a barra do dia


Lá vem a virgem Maria
Desceu doze anjos do céu
Para sua companhia

Incelência 06

Oh meu Deus, eu vou pro céu


Doze anjos vei me levou,
Do mundo eu vou me esquecendo
Só de Deus vou me lembrando
Nossa Senhora da Guia
Também vai me acompanhando

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
892

Pode-se observar a ênfase dada à relação entre São Miguel e as almas, na


incelência 01, pois esse santo do panteão católico é entendido como general dos
exércitos de anjos e pune os pecadores com o fogo do inferno (REIS, 1952, p. 121). Além
disso, vê-se a invocação de outros santos que intermediam a passagem para o céu,
como a figura da Nossa Senhora (incelências 02, 04 e 05), que é tida como arquétipo de
mãe cristã (REIS, 1952, p. 120). Ademais, ainda aparecem outros santos intercessores,
como na incelência 03, que cita São Joaquim (embora tenha forte ligação com a velhice),
e o próprio Senhor Jesus Cristo.
Teve-se acesso a outras incelências, como as cantadas por dona Socorro na
entrevista por ela concedida. Dona Socorro começa cantando com o número doze,
porque, segundo ela, quando se começa a cantar obedecendo à sequência numérica,
tem que cantar até o fim. Ou seja, se começa cantando “Uma incelência, meu Deus...”,
teria que cantar até completar as doze e, caso não fizesse isso, a incelência tornar-se-
ia um mau agouro. Isso porque as incelências seguem uma sequência numérica
específica: algumas são ordenadas de um até doze e outras de um até sete. As
informações acerca da sequência das incelências foram dadas pelas entrevistadas, e o
que realmente importa não é saber se o padrão era repetir doze ou sete vezes, mas, sim,
perceber que existia uma métrica nesses cantos. Contudo, mesmo havendo essa
divergência quanto ao número de vezes que se cantava, a superstição em torno de
cantar fora de um velório de anjinho começando por um número que não seja o número
um é levada em conta por todas as entrevistas.
Uma característica primordial das incelências cantadas em Jucurutu em meados
do século XX é a composição das letras com termos infantis e voltados para a
consolação dos entes que perdem as crianças. As incelências que seguem foram
cantadas por dona Neguinha.

Incelência 07

Mamãe, não chores por mim


Por mim não deves chorar
Quem bota um anjinho para o céu
Aí só deve se consolar
Mamãe não sabe da sina
Que Deus tinha para me dar

Incelência 08

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
893

Adeus, papai
Adeus, mamãe
Adeus, meus irmãos
Até quando Deus quiser
Uma incelência que é
Para o senhor São José

Dona Neguinha, além de fornecer informações sobre a composição dos velórios


para anjinhos, informou ainda essas duas incelências, nas quais é possível observar as
letras voltadas para amenizar a dor e o sofrimento dos familiares que perdiam seus
anjinhos. Logo, é comum que expressões como “mamãe, não chores por mim” sejam
encontradas nas letras. Além desse caráter consolador, as incelências serviam também
como cantos de despedida: “Adeus, papai; Adeus, mamãe; Adeus, meus irmãos”. Talvez
esse apelo à despedida servisse para que as famílias assimilassem a morte dessas
crianças, tendo em vista que era um acontecimento corriqueiro.
Ainda observa-se, na letra fornecida por dona Neguinha, a menção a São José,
santo que, no Seridó, região seca e árida, é bastante cultuado por ser o santo das
chuvas. O dia 19 de março, dia de São José, em se tratando de inverno, é o mais esperado
do ano, uma vez que, segundo a cultura popular, chovendo no dia desse santo era a
certeza de um inverno abundante. Sendo assim, quando se oferece “uma incelência que
é para o senhor São José”, observa-se parte da devoção a esse santo. Isso porque as
incelências carregam mais significados do que as letras mostram e portam, sobretudo,
a sensibilidade de um povo sofrido pela seca, fome e doenças. Nesse sentido, mais um
anjinho estaria intercedendo junto a São José por chuvas para o sertão.
Outro sentido peculiar das incelências é o da interseção no sentido de que o
anjinho logo estaria no céu intercedendo pelos familiares. Nesse contexto, a morte já
não era mais motivo de preocupação, e, sim, de alegria, pois seria um reforço na
mediação com o divino, como é possível perceber nas incelências que dona Zezinha
apresentou em entrevista.

Incelência 09

Botei um cravo na mão


E fui levar ao senhor
Agora eu vou rogar é por pai
Padrinho e avô
Mamãe, não chore por mim
Por mim não deve chorar

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
894

Se é de chorar por mim


Chore por quem fica cá
Mamãe não sabe da sina
Que Deus tinha para me dar

Outro objetivo das incelências era o de guiar o anjinho no caminho para o céu e,
por esse motivo, as letras invocavam santos e anjos para a condução do anjinho pelo
caminho celeste. Pode-se perceber que aos que ficavam eram imputadas algumas
responsabilidades, como no caso da mãe, que deveria abençoar o filho antes da morte
e preparar com adornos o pequeno féretro, expresso nas incelências que dona Zezinha
cantou.

Incelência 10

Um anjinho serafim
Que a Deus que possa levar
Desse sete tira um
Para esse anjo vir buscar
Desse sete tira um
Para esse anjo vir buscar

Incelência 11

Oh, mamãe, a bênção


Me queira botar
Um anjinho me chama
Não queira esperar
Um anjinho me chama
Não queira esperar

Incelência 12

O galo cantou
Jesus Cristo nasceu
Um manjar do céu
Quem mandou foi eu

Outra característica das incelências que se pode perceber nessas letras é a


repetição. Exemplificando: “um anjinho me chama, não queira esperar”. Conforme
contavam, o número ia aumentando até chegar às sete repetições ou às doze, ficando
desta forma: “um anjinho me chama... dois anjinhos me chamam... três anjinhos me
chamam” [...] e assim sucessivamente até completar o número pretendido.
Uma ligação comum na morte infantil era feita com relação à maternidade da
virgem Maria, a imaculada Conceição, por ser padroeira da fertilidade e que, além disso,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
895

“presidia simbolicamente o nascimento e morte das crianças” (REIS, 1952, p. 121). Como
se pode ver na incelência acima, a questão da maternidade está atrelada, nessa letra,
ao nascimento de Jesus.
Dona Maria Francisca apresentou algumas incelências que falam da dor
materna ao perder um filho, mas que, ao mesmo tempo, já garantem a companhia de
santos na nova morada daqueles que se foram. A incelência que se segue já foi
mencionada acima na fala de dona Neguinha. Entretanto, quando dona Nena
apresentou esse canto, ela cantou com mais repetições.

Incelência 13

Adeus, papai
Adeus, mamãe
Adeus, meus irmãos
Até quando Deus quiser
Uma incelência que é para Senhor São José
Uma incelência que é de Senhor São José
Adeus, papai
Adeus, mamãe
Adeus, meus irmãos
Até quando Deus quiser

Incelência 14

Sexta feira da paixão


Seus filhos sentindo a dor
Sua mãe no coração
Espera anjinho do céu
Quando eu morrer também vou
Quando eu morrer também vou
Sexta-feira da paixão
Seus filhos sentindo a dor
Sua mãe no coração

Incelência 15

Tenho dois rosários para nele eu rezar


Mas, Nossa Senhora, quando eu lá chegar
Minha mãe me chama, eu não posso ir
Meu corpo é pesado, não posso aluir
Tenho três rosários para nele eu rezar
Mas, Nossa Senhora, quando eu lá chegar
Minha mãe me chama, eu já posso ir
Meu corpo é maneiro, já posso aluir

Incelência 16

Oh, minha mãe, eu vou para o céu

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
896

Sete anjos vão me levando


Do mundo eu vou me esquecendo
E só de Deus vou me lembrando
Incelência 13
Nossa Senhora me disse
Nosso Senhor me avisou
Que eu só andasse em caminho
Que seu bento filho andou

Algumas incelências apresentam repetições e é possível pensar que as


entrevistadas tenham misturado as letras, tendo em vista os processos de
memorização e seleção das camadas da memória, além do fato de não ser mais comum
o canto dessas músicas. Mesmo assim, observa-se um variado leque de cânticos que
eram entoados durante as cerimônias fúnebres relacionadas à criança morta.
Como se pode perceber na maioria das incelências coletadas, existe a utilização
de termos infantis. Em algumas incelências, há o cuidado com o amparo materno, o que
evidencia uma das funções desse rito, que era o de aliviar a sociedade do peso da
constante mortalidade infantil. Essa preocupação de deve ao fato de que, se essas
pessoas parassem para viver profundamente o luto por cada criança, a vida pararia e,
apesar disso, algumas outras mães continuariam a perder filhos pequenos na mesma
semana. Dessa forma, compreendem-se as incelências como paliativos para esse
momento de dor atrelados às crenças da época, como a de não chorar muito sobre o
anjinho para não molhar as asas e impedir a subida. Diante de tal crença, por exemplo,
as mães deveriam conter o choro e o luto para não atrapalhar a ascensão do anjinho.
Analisando as letras, pode-se perceber a representação do imaginário coletivo
da comunidade refletida nas incelências e materializando-se nos adornos que
envolviam o corpinho das crianças mortas. Segundo Sandra Jatahy Pesavento, essas
representações podem ser entendidas como geradoras de identidades, dando sentido
às coisas (PESAVENTO, 2003).
Neste caso, especificamente, dão sentido à morte das crianças com uma ligação
muito tênue com o imaginário, que ora se sobrepõe à representação, ora o inverso. Por
exemplo, nas incelências que narram o percurso do anjo para o reino celeste, os cantos,
nesse caso, são representações de como a comunidade entende o mundo espiritual.
Ainda torna-se possível analisar como a realidade social é construída por intermédio
dessas formas de representação do imaginário (CHARTIER, 1990).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
897

Observa-se, durante, o cenário onde aconteciam essas cerimônias fúnebres com


toda a simplicidade e rusticidade narradas pelas colaboradoras, a discussão sobre os
adornos que eram produzidos para enfeitar os anjos, sejam mortalhas, rosas ou até
mesmo o caixão, e qual o papel desses adereços relacionados ao imaginário coletivo
acerca da relação com o divino que essa comunidade tinha. Dessa forma, houve uma
preparação para refletir sobre as letras e quais os sentidos que elas davam à morte
infantil, como eram cantadas e qual a ligação com os santos invocados durante o rito.
Percebe-se que as incelências compõem as preces desse grupo social, carregando,
sobretudo, a fé, a força e a esperança do povo. Veem-se orações ritmadas que rompiam
a noite, mostrando que até nos momentos de dor, como na morte infantil, o sertanejo
desvia-se das adversidades e ainda festeja.

REFERÊNCIAS
Fontes
ARAÚJO, Petronila Luca de. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley
Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (20 min)

FELICIANO, Maria José. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley


Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (40 min)

JESUS, Teresinha Maria de. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley


Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (40 min)

SILVA, Francisca Maria da. Entrevista . 20 de novembro de 2016. Entrevistador:


Wesley Henrique de Moura Simão. Jucurutu-RN, 2016. (15 min).

SILVA, Maria Francisca da. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley


Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (40 min)

SLVA, Francisca Francina da. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley


Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (20 min)

SOUZA, Fracinete Cardoso Batalha de. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador:


Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (20 min)

SOUZA, Maria do Socorro. Entrevista . 17 de novembro de 2016. Entrevistador: Wesley


Henrique de Moura Simão. Jucurutu-RN, 2016. (10 min).

VALENTIM, Maria das Neves da silva. Entrevista . 20 de Janeiro de 2016.


Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão. Jucurutu-RN, 2016. (30min).

BIBLIOGRAFIA GERAL
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral / 2004.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
898

ARAÚJO, Cintia Medeiros. As representações e atitudes fúnebres diante da criança


morta ou o “anjinho” no município de Acari-1835 e 1907. Caicó, RN, 2012.

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da família. Trad. Dora Flaksman. II. ed.
Rio de Janeiro, RJ: LCT, 1978.

ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. Trad. Luiza Ribeiro. I. ed. São Paulo, SP:
UNESP. 2014.

BAUDRILLANRD, Jean. A troca simbólica e a morte. Trad. Maria Stela Gonçalves, Adail
Ubirajara Sobral. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1996.

CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de


Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990.

LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Trad. Maria Fernandes Gonçalves de


Azevedo. II. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

MORIN, Edgar. O homem e a morte. Trad. João Guerreiro Boto, Adelino dos Santos
Rodrigues. II. Ed. Portugal: Publicações Europa America, 1970.

PESAVENTO, Sandra Jathay. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,


2003.

RAGO, Luiza Maargareth. Do Cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1889-
1920. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1985.

REIS, João José, A morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX, Companhia das Letras, São Paulo- SP, 1991.

RIBAS, Cristina Galvão. MOREIRA, Maria das Neves Santos. Os mortos vistos pelos
vivos: fragmentos do imaginário sobre a morte na Comarca do Principe( século XIX).
Monografia de graduação. Caicó, RN, 2004.

RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de


Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro, RJ: Arquivo Nacional, 2005)

SANTANA, Manoel Henrique de Melo. INCELÊNCIAS: o povo canta seus mortos.


Revista Incelências, Maceio-AL, p.86-96, 01 fev. 2011. Disponível em:
<http://revistas.cesmac.edu.br>. Acesso em: 27 nov. 2016.

SILVA, Rosinéia Ribeiro de Almeida. O Seridó em tempos de cólera: doenças e


epidemias na segunda metade do século XIX. Caicó, RN, 2003.

VAILATI, Luiz lima. Infância e morte infantil no Brasil dos oitocentos. Rio de Janeiro e
São Paulo). São Paulo, SP: Alameda, 2010.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
899

RELATOS DO (FÉ)MININO: DEVOTOS DE JOANA TURUBA NA


FESTA DE SANTA RITA DE CÁSSIA
EM CARNAÚBA DOS DANTAS/RN

Virgínia G. Alves Ferreira604


Lourival Andrade Junior605

INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto de um projeto de pesquisa ao qual encontra-se atrelado o
plano de trabalho intitulado “Milagreiras e santas: violência contra a mulher e a
sacralização da tragédia” orientado pelo Professor Dr. Lourival Andrade Júnior e
financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) /CNPq.
Tem como objetivo estudar as práticas e rituais da religiosidade não oficial e a relação
que os devotos têm com o sagrado, as formas construídas de interação com a fé sem
intermediação do oficial.
Nesse contexto, há a necessidade de diferenciar a religiosidade oficial da não
oficial, usamos como marco a diferença de Santo(a) e Milagreiro(a), entendemos que os
Santos passaram por um processo canônico, este estabelecido pela Igreja Católica
Apostólica Romana oficial, os milagreiros não precisam desse processo para serem
cultuados. A religiosidade não oficial são todas as práticas não convencionais da fé e da
devoção, que estão à margem da oficialidade.
Por que as pessoas buscam esses milagreiros? O Autor José Carlos Pereira
comenta que, os devotos acreditam que a devoção por meio dos “santos populares” ou
“milagreiros” faz-se estar mais perto da sua realidade, ou seja, as pessoas acreditam
que pôr está mais próximo da realidade é uma forma de resolução mais rápida para
seus problemas. Assim, há uma intimidade maior do que com o próprio Deus, o
milagreiro se torna o intercessor e mediador nos pedidos dos fiéis. Os devotos
acreditam que determinados milagreiros de devoção podem operar milagres.

604 Aluna de graduação do curso de História – Licenciatura – na Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES – Caicó). E-mail: ferreiravirginia7@gmail.com
605 Doutor, Pesquisador e Professor do Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES – Caicó/ UFRN). E-mail:


lourivalandradejunior@yahoo.com.br

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
900

O objeto de estudo deste trabalho é a Milagreira Joana Faustina de Medeiros,


popularmente conhecida apenas por Joana Turuba. Seus devotos fazem ligação com a
história da santa oficial Rita de Cássia, devido a trajetória de vida e a tragédia que
envolve as duas histórias.
Usaremos como fonte o cordel que descreve essa trajetória de Joana, da vida,
morte e o início da devoção, além disso houve a pesquisa in loco com a participação das
festividades a Santa Rita na cidade de Carnaúba dos Dantas, e uma entrevista com uma
devota, para entender a importância da devoção ao feminino.

JOANA TURUBA, UMA MULHER GUERREIRA


Até o prezado momento não temos muitas fontes oficiais sobre Joana, apenas
as narrativas orais dos devotos, que resultou em um cordel do poeta Francisco Rafael
Dantas, popularmente conhecido por Mestre França, já falecido, intitulado, O
sofrimento de Joana Turuba.
Neste cordel traçada a trajetória de Joana, relata que ela tinha 5 filhos e que seu
lugar de origem seria a Serra de Cuité, de origem humilde, no cordel conta-se que seu
marido estava na feira do povoado do melão (onde hoje é Santa Cruz), quando se
envolveu em uma discussão e acabou morto, há indícios de que teria sido por vingança,
mas nada foi comprovado. Temendo pela vida de seus filhos se muda para Serra de
Picuí, por outros motivos, não informados no cordel, torna a se mudar para o Sítio
Boqueirão em Parelhas, onde trabalhava na lavoura, na colheita de feijão avistou sua
casinha pegando fogo, onde perdeu tudo e novamente volta a mudar, seu filho Cícero
decide ir para Carnaúba dos Dantas.
Em Carnaúba de repente ela adoece e descobrem ser Bexiga Brava (conhecemos
hoje por Varíola), em 1935, em busca aos arquivos e atestados de óbitos local no site
family search não identificamos nenhuma recorrência desta doença no ano citado, nem
o nome de Joana, pudemos analisar que a doença mais acometida neste ano em questão
se tratava a problemas gastrointestinais.
Os primeiros relatos da varíola ocorrem a partir da era cristã, principalmente a
partir do século IV, no Brasil em 1563 teve o primeiro caso, no Rio Grande do Norte,
segundo Avohanne Araújo (2011), a epidemia de bexiga começou em 1850, com um
discurso que o lugar seria de clima doce e insalubre, fácil de proliferação da doença,
essa muito recorrente entre os escravos. Os relatórios de Província do Século XIX

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
901

mostram que a falta de higiene, saneamento, medidas de saúde e a falta de médicos


eram fatores bastante preocupantes, que faziam parte da realidade da Província do Rio
Grande (do Norte).
Contudo, há poucos trabalhos sobre a doença no Século XX e pouco
conhecimento de uma possível epidemia no Seridó na década de 1930. Segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS) a doença só foi erradicada em 1980, sendo
atualmente considerada erradicada da face da Terra. (FORATTINI, 1988)
A medicina da época ainda era muito atrasada, sendo assim nenhum médico
apareceu para cuidar do caso, a população com medo da doença se espalhar, deixaram
ela em um lugar fora da cidade, no pé da Serra que é conhecida como Serra do
Marimbondo, fizeram uma latada e deixaram ela lá, o cordelista, trata-a o tempo todo
como “coitada”, alegando que Joana foi vítima de exclusão social.
Nesse local Joana passou seus últimos dias de vida, exposta as alterações da
natureza e sozinha, recebia apenas a visita de um dos seus netos, Severino Turuba, que
todos os dias levava chá para ela.
Joana o tempo todo estava abraçada com um quadro de sua santa de devoção,
Rita de Cássia, além disso os devotos fazem associação entre as histórias das duas.
Santa Rita teve uma trajetória de vida sofrida, assim como Joana mataram o seu marido,
os devotos também comentam sobre o amor aos filhos, Rita preferiu ver seus filhos
mortos que se vingarem da morte do pai, Joana, descrita pelos seus devotos como
guerreira, foi nômade durante a vida em busca de dar o melhor para os seus filhos.
Interessante analisar esse fato pois entre as entrevistas vimos que maioria das devotas
de Joana ou Santa Rita mencionaram que os pedidos feitos são para os filhos.
Joana morreu em 1935, conforme alguns relatos contidos no trabalho de Maria
Izabel de Araújo (2008), não deixaram ela ser sepultada no cemitério local, com medo
de que a doença se espalhasse, nem nos cemitérios particulares nas comunidades,
como não poderiam andar muito com o corpo, cavaram uma cova rasa, jogaram o corpo
depois puseram pedras, não houve nem um rito fúnebre católico, nem cruz, como é
comum no Brasil no Século XIX e XX. (REIS, 1991)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
902

O CHEIRO DAS FLORES DA DEVOÇÃO


Após a morte de Joana Turuba, a senhora Joana Major começou a sonhar que ela
pedia para sua cova aguar, assim fez junto com orações, Josefa Leandro também foi
outra Senhora que ia ao local para jogar água na cova.
Tempos depois três moças pastoreando, nas encostas da Serra do Marimbondo,
começaram a sentir um cheiro de rosas, como no local não existiam roseiras,
associaram o fenômeno à alma da mulher enterrada naquelas proximidades.
Conforme as narrativas orais, alguns agricultores acostumados a caminhar até
suas roças no sítio Marimbondo, sabendo do fenômeno, começaram a pedir intercessão
daquela mulher/alma na resolução de seus problemas, entre eles, a falta de chuvas.
A partir daí o local passou a receber muitas visitas. A Igreja oficial observando o
crescimento das peregrinações ao local decide agregar ao calendário litúrgico, a partir
da festa de Santa Rita de Cássia, havendo a necessidade de uma capela alguns devotos
se juntam e constroem um santuário, assim como a construção de um túmulo.
O espaço de Joana Turuba é especialmente diferente do que encontramos pelo
Brasil, é um túmulo fora do cemitério, coberto por cerâmica, descampado apenas na
parte do meio, onde nasce flores recorrentemente, além disso, construíram uma cruz
em que foi gravado o seu nome na parte de cima. No local podemos encontrar vários
símbolos do catolicismo oficial, uma imagem do Menino Jesus de Praga e Frei Damião,
além de muitas flores artificiais que podem estar relacionadas aos primeiros
fenômenos relatados, relacionados a milagreira.
No imaginário religioso, qualquer espaço pode ser uma mola propulsora para o
surgimento de um lugar sagrado, mesmo aqueles antes inimagináveis podem servir
como locais de culto, seguem-se o processo que podemos chamar de
“desterritorialização” (PEREIRA, 2005), onde os fiéis com suas práticas e rituais não
aceitas pelo oficial, deixam o território do sagrado caracterizados pelas igrejas, a
capela, e passam a praticar suas devoções e pedidos aos milagreiros em lugares que
não são as igrejas, como as estradas, ruas, cemitérios entre outros.
O túmulo torna-se, no conceito de Mircea Eliade, uma hierofania (ELIADE, 2001,
p.18), e ela, mediante a devoção dos fiéis que vivenciam a sacralização de mortos,
transforma-se num espaço do sagrado. Segundo Lourival Andrade Júnior (2011):

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
903

O cemitério é o espaço onde o túmulo do milagreiro torna-se muito mais


do que apenas o local de sepultamento, quando reverenciado e buscado
por devotos que, por meio de sua fé, identificam no morto e no seu local
de enterramento a chave para se abrir a porta de um mundo de “graças
atendidas” e “pedidos realizados”. Pelo menos é para isso que os
mortos sacralizados são desejados no mundo dos viventes. (p.6)

Os espaços sagrados também são marcados por simbolismos, exemplo disso


são os cemitérios, que os geógrafos culturais entendem como “fenômenos de
utilização do espaço” (ROSENDAHL, 1996), ou seja, os devotos sacralizam um espaço
qualquer como seus símbolos sagrados e esse espaço se torna imaculado.
Na religiosidade não oficial o povo produz e recria seu campo religioso com
símbolos recobertos com valores sacramentados. A cidade de Carnaúba dos Dantas
tem seu patrimônio cultural fortemente ligado ao religioso, com vários espaços
dedicados ao sagrado, exemplo, santuário do Monte do Galo, cova da Negra, Cemitério
do Riacho Fundo, Cemitério das Cruzes, Cova do Menino, Cova do Negro Maurício, além
das várias "cruzes" espalhadas pelas margens das estradas (DANTAS, 2008) todos
separados territorialmente, porém contém ligações simbólicas, onde se faz pensar que
Carnaúba é uma Hierópolis, de acordo com termo de Zenir Rosendahl: “Hierópolis seria
então uma cidade que possui uma ordem espiritual predominante”. (ROSENDAHL, 2010,
p.40)
Andrade Júnior (2012), destaca que nos locais onde houve uma morte trágica
carrega um potencial devocional, que nesse caso necessita de uma constante
significação e cuidados com a função milagreira, para que não perca a força sagrada
característica desse lugar.
A festa de Santa Rita de Cássia em Carnaúba dos Dantas que ocorre no período
entre 19 a 22 de maio, todas as missas são feitas pelo pároco da Igreja Matriz na capela
dedicada a Santa Rita onde encontra-se o túmulo de Joana, como já foi mencionado, no
último dia, que é também o dia da santa há uma procissão da Igreja até a capela.
Para uma maior compreensão do fenômeno da devoção, bem como da relação
feita pelos populares entre a Santa Rita de Cássia e a milagreira Joana Turuba,
acompanhamos os festejos em maio de 2018, e aproveitamos a ocasião para
conversamos com o Padre e com algumas pessoas que participavam das missas, e da
procissão. Por meio desses procedimentos pudemos levantar vários pontos a serem
discutidos em trabalhos futuros.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
904

O primeiro é que a Igreja oficial mesmo com inclusão do espaço não oficial ao
calendário litúrgico, bem como ao próprio espaço físico da capela, ainda relativiza e
silencia a devoção a Joana Turuba, apesar de não negar a devoção, em nenhum
momento durante as festividades o nome de Joana foi pronunciado. O segundo ponto é
que mesmo com o silêncio da Igreja Oficial, os devotos associam as duas à mesmas
figura, foi possível identificarmos isso na maioria das falas das pessoas que
frequentaram a celebração.

RELATO DO FEMININO
Destaco, portanto, apenas uma entrevista especial dentre todas as pessoas que
conversamos, o relato de Janaires da Silva Dantas, de 37 anos, emocionou e tocou
pontos sensíveis da fé. Sua devoção a Santa Rita e a Joana é relativamente nova,
Janaires contou que não era uma católica praticante, contudo após 14 anos tentando
engravidar, sofrendo um aborto espontâneo nesse período, ao passar pela imagem de
Santa Rita de Cássia em Santa Cruz sentiu no coração uma vontade repentina de fazer
uma promessa, conta que foi por saber que Santa Rita e Joana foram mulheres que
sofreram durante a vida, mas não perderam a fé.
Meses após feita a promessa, descobriu que estava grávida de um menino,
quando nasceu, fizeram os testes e descobriram que a criança tinha Síndrome de Down,
contou que entrou em desespero porque não sabia como proceder, lembrou da
promessa e orou.
O menino Felipe Gabriel da Silva Dantas de 6 anos, é saudável, não tem nenhum
problema de saúde, e acompanha a mãe durante a festa de Santa Rita todos os anos.
Além de pagar a promessa indo a todas as missas e a procissão de Santa Rita, toda
quinta feira Janaires veste preto, ressaltou que foi bem difícil no começo pagar essa
promessa, porque as vezes aparecia imprevistos, eventos, mesmo assim cumpre a
promessa toda semana, e não se arrepende.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizo, destacando a importância de se pensar e estudar a relação das pessoas
com o sagrado, interpretado a partir de suas crenças, e de sua cultura. Entender como
Joana Turuba, uma milagreira, tornou-se importante para a história de Carnaúba dos
Dantas e seus habitantes, Joana faz parte da historicidade do lugar, da vida e do

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
905

cotidiano. A história de uma mulher guerreira que lutou por seus filhos, que foi
acometida por uma doença, que foi excluída socialmente, e a devoção que move a
cultura não apenas de Carnaúba, mas da região do Seridó.

REFERÊNCIAS
ANDRADE JUNIOR, Lourival. Tragédia, martírio e devoção no Seridó Potiguar. In:
Todas as águas vão para o mar: poder, cultura e devoção nas religiões. São Luis:
EDUFMA, 2013. 105-118p.

______. Crimes, lugares e devoções: o campo religioso não oficial no Seridó Potiguar.
Anais dos Simpósios da ABHR, v. 13, 2012.

______. Cemitérios e Túmulos: espaços de devoção. Anais do XII Encuentro


Iberoamericano de Valorización y Gestion de Cementerios Patrimoniales e V
Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais. Salvador: ABEC,
2011.

_______. Acendam seus cigarros: cigana Sebinca Christo e a religiosidade não oficial.
Revista Mosaico, Goiânia, v.2.n 1, 2009. 141-153.

ARAÚJO, Avohanne. I. C.; MACEDO, Muirakytan K. O sertão febril: impacto microbiano e


escravidão nos espaços (in)salubres da Província do Rio Grande do Norte, Ribeira do
Seridó (1856-1888). Mneme (Caicó. Online), v. 12, p. 30, 2011.

ARIÈS, Phillipe. O homem diante da morte; tradução Luiza Ribeiro. 1. Ed. – São Paulo:
Editora Unesp, 2014.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2000.

CAVIGNAC. Julie. A literatura de Cordel no nordeste do Brasil: da história escrita ao


relato oral. Natal: EDUFRN, 2006.

DANTAS, Maria Isabel.. Do monte à rua: cenas da festa de Nossa Senhora das Vitórias.
– Natal: IFRN, 2008.

DANTAS, Francisco Rafael. O sofrimento de Joana Turuba. Natal: Fundação José


Augusto/ Centro de Estudos e Pesquisas Juvenal Lamartine, 2000

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

FORATTINI, Oswaldo Paulo. Varíola, erradicação e doenças infecciosas. Rev. Saúde


Pública [online]. 1988, vol.22, n.5, pp.371-374.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
906

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Inventário do Patrimônio Imaterial de


Carnaúba dos Dantas IV: Lugares de Sociabilidade. Mneme – Revista de Humanidades
[ Dossiê Cultura, Tradição e Patrimônio Imaterial, org. Helder Alexandre Medeiros de
Macedo ]. Caicó (RN), v. 7. n. 18, out./nov. 2005. p. 226-58. Bimestral. ISSN 1518-339.

_______, Helder Alexandre Medeiros de. Culto e festa a Santa Rita de Cássia. In:
Ritmos, sons, gostos e tons do Patrimônio Imaterial de Carnaúba dos Dantas. Caicó,
Netografica, 2005. P.159-163.

PEREIRA, José Carlos. Devoções Marginais: Interfaces do imaginário religioso. Porto


Alegre: Zouk, 2005.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,


2004.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro:


UERJ, NEPEC, 1996.

SÁEZ, Oscar Calavia. Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso


brasileiro. Campinas: Unicamp, 1996.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Trad. Hilário Franco Júnior. São
Paulo: Cia das Letras, 2003.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
907

“ADOREI AS ALMAS E AS ALMAS ME ATENDERAM”:


AS NARRATIVAS SOBRE AS ENTIDADES
PRETOS-VELHOS NA UMBANDA"

Beatriz Alves dos Santos606


Lourival Andrade Júnior607

A empresa escravista instalada no Atlântico desde o século XVI, transportou e


comercializou corpos negros numa rede de tráfico e genocídio humano. Mesmo diante
do Novo Mundo e da rotina árdua e inóspita, as pessoas que vieram ao Brasil não só
sobreviveram, como também a sua resistência os fez tornar-se parte das infindas
culturas que compõem a sociedade brasileira. Costumes, danças, cantos, culinária,
vestimentas e religião, são algumas das marcas negras que foram transportadas há
500 anos e sobrevivem com maestria até hoje. Os navios negreiros que carregavam
corpos e dores trazia também vidas, culturas múltiplas, cores e amores.
Como discute Néstor Garcia Canclini em sua obra “Culturas Híbridas” (2008), o
termo híbrido, designa aquilo que é capaz de sobreviver ao tempo e mesclar-se com
outros traços culturais, originando o novo, mas também permanecendo em sua riqueza
original antiga no mundo moderno. Como exemplo, a grosso modo, disso, as
religiosidades afro não só resistiram como se hibridaram com outras ritualidades e se
expandiram no cenário nacional e até internacional. Os ritos africanos transportados
para o Novo Mundo não desapareceram quando em contato com o novo, mas sim, se
mesclaram, permaneceram e deram origem às novas práticas culturais. Como
demonstra Canclini (2008), “As políticas de hibridação serviriam para trabalhar
democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras
entre culturas (...)” (p.XXVI).
O termo híbrido, portanto, é utilizado aqui como conceito chave de compreensão
dessas religiões, pois apresenta em si uma possibilidade maior de entendimento da
formação da cultura brasileira como veio de mão dupla. Assim, não só os africanos se
adaptaram e adquiriram características dos europeus e dos nativos, mas também os

606 Aluna de graduação do curso de História – Bacharelado – na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES – Caicó). Vinculada ao plano de trabalho:
Preto-Velho na Umbanda: Narrativas sobre o negro escravizado. E-mail: beatriza@ufrn.edu.br
607 Doutor, Pesquisador e Professor do Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Rio

Grande do Norte (CERES – Caicó/ UFRN). E-mail: lourivalandradejr@yahoo.com.br

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
908

próprios europeus hibridaram-se, aprenderam costumes negros e indígenas. O Brasil


surge, portanto, do contato dos povos e gera em si, uma riqueza culturalmente híbrida,
que carrega consigo as marcas dos três povos pilares de sua fundação.

ESCRAVIDÃO E A FORMAÇÃO DO BRASIL


Com o olhar colonialista voltado para as terras do Novo Mundo, a política
econômica firmou sua indústria açucareira e instalou os primeiros engenhos de açúcar
na colônia, tendo como força de trabalho a mão-de-obra indígena. Contudo, não era
viável o sustento pelo trabalho nativo, primeiramente pelos fatores biológicos, pois o
contato indo-europeu causou um grande genocídio com o impacto epidemiológico e
dizimou grande parte dessa população. Em segundo, esses povos contavam com uma
vida de subsistência e uma dinâmica grupal que não compreendia a lógica mercantilista,
o que dificultava a execução do trabalho nos engenhos. Além disso, na visão europeia
cristã, era mais interessante não escravizar os nativos para transformá-los em
seguidores de cristo e súditos da Coroa.
Em tal conjuntura, os senhores de engenho necessitavam de uma substituição na
mão-de-obra escrava, é quando os índios são trocados de sua posição de trabalhadores
forçados com os negros africanos. A rede do comércio de corpos humanos é instaurada,
então, com maior fluxo, transportando números de pessoas que giram em torno de 20
a 30 milhões para as Américas608. Durante essas práticas de escravismo, os africanos
foram isolados de sua terra, inseridos em um contexto colonialista e subjugados a uma
rotina de trabalhos árduos e torturantes. Esses indivíduos foram submetidos em um
processo de retirada de sua terra e de sua cultura, para que a lógica do mercado
escravocrata funcionasse. Era mais interessante para o âmbito mercantil, que os
escravos não mantivessem laços de solidariedade entre si, o que dificultaria uma
rebelião organizada, por isso, misturavam-se as etnias de línguas e costumes
diferentes nas senzalas, para que permanecessem as rivalidades dos grupos africanos.
Até o século XIX a mão-de-obra escrava esteve presente no território brasileiro.
Mesmo com as iniciativas senhoriais de separação dos negros para evitar laços de
solidariedade, estes conseguiram manter vivos seus traços culturais e religiosos, que

608Dados retirados do excerto “O Atlântico e o comércio negreiro”. ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de.
O Atlântico e o comércio negreiro. In. ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. Atlântico: a história de um
oceano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
909

se perpetuam até os dias atuais. Trouxeram consigo danças e crenças pessoais que
tiveram que adaptar às dinâmicas do Novo Mundo.
É importante dizer que em África só se cultua os orixás, voduns e/ou inquices609
que estão ligados a sua cidade de origem, por exemplo, em Oyó quem reina é o orixá
Xangô610. Dessa maneira, a organização espacial das senzalas buscou misturar povos
de diferentes cultos, para que não houvesse diálogo, uma vez que seriam de nações
distintas e cultuariam orixás também distintos. Contudo, os indivíduos conseguiram
articular-se e estabelecer um culto múltiplo aos orixás, saudando um em cada dia da
semana, dando início ao que se tornaria o Candomblé.
Os espaços dos terreiros das senzalas passaram cada vez mais, na medida em que
eram permitidos, a sediar as danças, que ficaram conhecidas como macumba. O termo
“macumba” acabou disseminando-se como algo pejorativo e desencadeia até hoje
muitas interpretações de seus significados. Para Nei Lopes (2012), macumba é um
termo de origem banta e pode ser entendida um jogo de azar antigo, uma espécie de
reco-reco, ou mesmo uma definição generalista dos cultos afro-brasileiros. Um outro
possível significado, que aparece nos estudos, é o discutido por José Henrique Motta de
Oliveira (2008, p.76): “Para Édson Carneiro, o termo ‘macumba’ viria de mcumba, que
seria a representação gráfica do plural de cumba, significando reunião de jongueiros.”.
De tal maneira, os ritos dos negros foram inseridos no contexto escravocrata, mesmo
que tendo sofrido algumas alterações.
Uma ressignificação muito importante que também aconteceu e contribuiu para o
hibridismo marcante destes cultos, foi com relação ao culto dos Orixás. Como uma
forma de sobrevivência diante de um mundo católico, em que os deuses africanos eram
demonizados, os negros associaram os santos cristãos aos orixás de acordo com o grau

609 Orixás, voduns e inquices, são deuses africanos que estão ligados a uma cidade, ou país, do continente
africano, e sua nomenclatura muda de acordo com a região, os bantos, por exemplo, cultuam inquices, já
a cultura iorubá, tem os orixás como deuses, estes representam forças da natureza. Mesmo que seus
nomes mudem, são semelhantes em suas características, de uma cultura para a outra. Exemplificado, na
cultura iorubá: Oxum estaria ligada as águas doces e cachoeiras; Iansã seria a orixá dos ventos e trovões;
Xangô o orixá da justiça e assim por diante dentro do panteão.
610 Segundo a mitologia, Xangô estando diante de guerras com seu exército sendo morto pelo exército

inimigo, ativou sua ira e com seu machado começou a bater numa pedreira, que ao ser atingida pelo
artefato produzia faíscas e sons estrondeantes. O barulho do machado de Xangô causa medo nos
inimigos e quanto mais se batia o machado, as faíscas atingiam o inimigo. Xangô sai então vitorioso e
aprisiona o exército, mas se mostra justo e clama pela justiça apenas dos líderes, libertando os
guerreiros que passam a servi-lo com fidelidade. Assim, esse é tido como o Orixá da Justiça, do fogo, das
pedras, das decisões. (Disponível em: <http://mariapadilhadasalmas.no.comunidades.net/historia-de-
xango>. Acesso em 12 de maio de 2018)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
910

de semelhança, como por exemplo, o orixá Ogum que é associado ao santo guerreiro,
São Jorge. Os negros assim agiam para desviarem dos castigos dos senhores, dessa
forma

[...] os padres preferiam acreditar na justificativa dos negros que diziam


ser os ‘batuques’ homenagens aos santos católicos feitas em sua
língua natal e com as danças de sua terra. Neste sentido, os batuques
eram tolerados porque vistos como um inofensivo ‘folclore’. (SILVA,
2004, p.34)

Portanto, percebe-se que nesse cenário colonialista, a sociedade brasileira


começa a estruturar-se hibridando os três segmentos presentes: os índios, os negros e
os europeus. Dentre as várias características que permeiam as sociedades, pode-se
enxergar que as religiões, em suas diversidades, são os fatores que exercem mais
influências sobre os povos. Os negros puderam resistir e manter vivas suas tradições,
sobretudo, por meio do veio religioso, que tanto preservou seus traços originários
africanos, como dialogou com as tradições dos nativos e dos europeus, dando origem,
inclusive, a outras práticas religiosas, como no caso da Umbanda.

UMBANDAS
No Brasil oitocentista, a doutrina espírita é introduzida pela e para a sociedade das
classes mais elevadas e se distingue das demais práticas de transe e contato com o
mundo espiritual, praticados principalmente pelos negros. De acordo com Oliveira
(2008, p.62-63), espiritismo afirma a existência de Deus, no entanto, se revela enquanto
um ser inacessível aos homens pelo universo estar dividido em níveis hierárquicos.
Assim, nessa visão segmentada de mundo, enxergam o planeta Terra como um dos
níveis mais baixos, abrigando as doenças e sofrimentos. De maneira que a mediunidade
seria uma atividade de poucos kardecistas, os quais teriam a incumbência de auxiliar as
pessoas a evoluírem espiritualmente no contato com o divino e o sobrenatural, ou
metafísico. Contudo, é certo que:

[...] as tradições africanas e ameríndias sofreram vigorosa discriminação


entre os kardecistas mais ortodoxos, uma vez que consideravam os
espíritos de índios e negros como ‘involuídos’ e ‘carentes’ de luz, apesar
de Kardec não ter escrito qualquer linha a respeito da inferioridade
espiritual de qualquer raça humana. (OLIVEIRA, 2008, p.65-66)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
911

Os kardecistas, portanto, mesmo colocando-se na missão de auxílio aos seres,


fazem uma distinção entre os espíritos que são aceitos, embora a doutrina do seu
fundador, Allan Kardec, não faça menção sobre inferioridade espiritual. A Umbanda de
Zélio de Moraes, surge, portanto, como uma forma de resistência e um protesto às
formas de espiritismo que estavam em curso na sociedade brasileira.
Nos dias hodiernos, muitos estudiosos têm levantado pesquisas sobre os
africanos no Brasil e suas religiões, do mesmo modo, as investigações sobre o culto
umbandista têm ganhado espaço dentro e fora das academias. Uma das discussões que
mais cresce nos eventos, livros e trabalhos no geral, trata sobre a existência não de
uma única forma de Umbanda, mas sim de diversas e distintas. Apesar de, nas décadas
a partir de 1940 terem surgido discussões que visavam a codificação e
institucionalização da Umbanda, buscando padronizá-la num culto comum aos
terreiros, como discute Lísias Nogueira Negrão (1996), cada terreiro possui a sua
singularidade. Nesse sentido, portanto, a prática umbandista varia de acordo com o
local e com quem a executa, o que abre espaço para asseverar a existências de mais de
uma Umbanda. Mas, que, no entanto, carrega consigo, até o momento, uma história de
fundação do culto, mais aceita e disseminada, que alguns vão chamar de “Umbanda de
Zélio”, ou “Umbanda de mesa branca”, que segue, todavia, um ritual diferenciado do que
se tem nos terreiros.
A narrativa histórica mais comum, a respeito da fundação da Umbanda, remete ao
jovem Zélio Fernandino de Morais, que estando acometido por uma doença a qual
nenhum médico encontrava solução, resolveu ir à Federação Espírita de Niterói, no dia
15 de novembro de 1908. De acordo com entrevista611 prestada pelo próprio Zélio de
Moraes, naquela época a Federação Kardecista estava presidida por José de Souza,
quando um espírito, segundo ele enviado por Santo Agostinho, que fora jesuíta até
aquele momento e chamado Gabriel Malagrida, o apareceu. Tal espírito incorporou em
Zélio e simultaneamente vários espíritos de negros e caboclos se manifestaram. Ao ser
advertido pelo dirigente da mesa, questionou o porquê de não aceitarem a presença de
espíritos pretos, indígenas e pobres. Não concordando com tal segregação, o espírito
anuncia que retornaria no dia seguinte na casa de seu aparelho, Zélio, e daria início a
uma nova religião. A entidade se autodenomina “Caboclo das Sete Encruzilhadas” e

As entrevistas estão disponíveis em áudios no arquivo virtual da TENSP (Tenda Espírita Nossa
611

Senhora da Piedade): <https://www.tensp.org/audio>. Acesso em 16 de maio de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
912

nomeia o novo culto de “Umbanda” e funda o primeiro centro umbandista, a Tenda


Espírita Nossa Senhora da Piedade. Naquele momento seria criada a Lei de Umbanda,
na qual o Preto e o Caboclo, que não eram aceitos, no kardecismo, poderiam trabalhar
pela cura e caridade.
Apesar de essa ser a narrativa mais disseminada e conhecida dentro do cenário
umbandista, como mencionado, existem diferentes umbandas. Nesse sentido, alguns
autores especulam a veracidade dessa história, questionando se, de fato, a Tenda
Espírita Nossa Senhora da Piedade foi a primeira tenda, ou se a história se Zélio se
confirma pelos documentos da Federação Espírita de Niterói. A exemplo desses
questionamentos, a antropóloga Diana Brown, apresentada por Oliveira (2008, p.94)
aponta que na ocasião, de acordo com o Livro de Atas nº1, não havia nenhum José de
Souza presidindo a Federação, como mencionou Zélio. No entanto, Oliveira (1996, p.94),
comenta que não desvalida a história, mas refaz um novo pensamento em que “[...]
somos levados a pensar que, se realmente o fato ocorreu, pode não ter ocorrido na
Federação, mas talvez em algum centro espírita filiado a esta, cujo nome se perdeu ao
longo da repetição desta tradição oral.”.
Fato é, que a ideia de um nascimento da Umbanda a partir do médium Zélio de
Moraes, vem sendo questionada, mas ainda assim, é tida como a mais conhecida. Esse
culto, teoricamente iniciado por Zélio, sofre influências do kardecismo, adquirindo
traços deste culto, como o sentido de evolução espiritual e da lei do carma; como
também carrega consigo, sobretudo, as marcas das religiões afro-brasileiras e do culto
as entidades africanas. Com o passar do tempo e de sua melhor estruturação, a
Umbanda também inclui em seu panteão características do catolicismo, como a
assemelhação dos orixás aos santos católicos e o culto e fé destes últimos. De tal
forma, a Umbanda é uma religião híbrida, que espelha os segmentos da sociedade
brasileira. Como aborda Negrão (1996), a Umbanda tendo enfrentado a repressão e a
discriminação pela sociedade e pela igreja que a demonizaram e categorizaram-na
como seita de magia negra, buscou cada vez mais sua legitimação e codificação do seu
culto, para ser aceita com mais abrangência. Vindo a criar sua Federação Espírita de
Umbanda, em 1939, e seu primeiro Congresso Brasileiro de Umbanda, em 1941,
discutindo as questões de codificação e legitimação. É uma das religiões que mais
cresce anualmente, disseminando seus trabalhos de cura e caridade através de suas

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
913

entidades (caboclos, pretos-velhos, boiadeiros, ciganos, pombas giras, exus,


marinheiros, entre outros muitos).

ADOREI AS ALMAS E AS ALMAS ME ATENDERAM


Em meio a esse híbrido panteão umbandista, cabe destaque à uma entidade em
específico: os pretos-velhos; seres que, quando em terra, foram escravos, sendo
africanos ou afro-brasileiros. Por terem padecido sob os sofrimentos do escravismo,
nos engenhos e lavouras, tais personalidades são tidas como muito sábias, vividas e de
grande elevação espiritual. Os Pretos Velhos são muito procurados nos terreiros de
todo o Brasil e, sem dúvida, uma das marcas que evocam essa consideração para com
eles, é a permanência do respeito a ancestralidade muito característica em África. Isso
evidencia-se muito no convívio desses grupos dentro das senzalas, pois

Nestes espaços de disputas e de resistências, o respeito a


ancestralidade era determinante para a vida dos cativos. Mesmo que os
guerreiros estivessem sempre elaborando planos de fuga, o conselho
dos mais velhos era sempre o ponto chave para se tomar a decisão final.
Tornar-se um negro velho vivendo nas condições inóspitas, tanto na
África como no Brasil escravista, no mínimo deveria ser festejada. Estes
anciãos tinham um poder significativo, aconselhando o não conflito,
como incitando a fuga quando considerava a melhor alternativa. Ao
morrerem continuavam sendo cultuados da mesma forma que na África
se faziam com os mortos. O mundo dos vivos e o dos mortos faziam
parte do mesmo universo. (ANDRADE JÚNIOR, 2013, p.7)

Como o autor supracitado aponta, um indivíduo negro que conseguia sobreviver


ao mundo escravista ou nas condições precárias de existência na África, de natureza
hostil e geograficamente difícil, era tido como um grande feito. Diante disso, são seres
respeitados que evoluíram com a dor e do sofrimento, além de terem trazido consigo
os saberes de sua terra de origem, o conhecimento das curas e das matas. Assim, no
âmbito umbandista, estas são entidades muito procuradas pelo público frequentador
do terreiro, geralmente na busca por curas em saúde e conselhos na vida em geral.
Os maiores portos escravistas que venderam negros para o Brasil, estavam
situados em Congo e Angola, países pertencentes aos povos de cultura banta. Isso
significa dizer, que grande parte das pessoas escravizadas no Brasil, trouxeram consigo
as práticas culturais bantas, como algumas palavras que utilizamos até hoje em nosso
vocabulário, tais quais fofoca, forró, cocada, bunda, dentre outras (LOPES, 2012). Não

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
914

só palavras, mas também culinárias, danças, religiosidades, são elementos que se


fincaram no Brasil e permanecem na cultura brasileira. Como colocado por Andrade
Júnior (2013, p.7), citado acima, o sentido de respeito aos anciãos e a ancestralidade
estava presente dentro das senzalas e vêm como uma herança banta. Nesse sentido,
também pontua Nei Lopes (2006), a ancestralidade cultuada em África, ao se acreditar
que estes faziam o intermédio entre os vivos e as divindades e que mantinham a união
e a manutenção da força vital da comunidade, também é transposta para o Brasil. É
assim, portanto, que os negros escravizados reforçam mais ainda o respeito pelos mais
velhos, os anciãos, e que estes passam a ser cultuados na Umbanda com tamanha
veemência.
Mãe, pai, vovó, vovô, tia, tio (...), estas são as nomenclaturas atribuídas aos pretos
velhos, o que nos revela o aspecto de família existente na dinâmica dos terreiros, além
de demonstrar respeito por estas entidades e atribuí-los um sentido de experiência
vivida. É muito frequente os nomes desses Pretos Velhos além da nomenclatura “mãe”
ou “vovó”, por exemplo, virem acompanhados de um nome cristão e do seu lugar de
origem, bem como “Pai Joaquim de Angola”, ou “Vovó Maria do Congo”. Evidenciando,
sobretudo, ao processo de inserção no cristianismo a que foram submetidos, mas ao
mesmo passo evoca as raízes africanas e a ligação com sua terra, mesmo que estejam
vivendo em um contexto católico. Como aponta Oliveira (2008, p.53-54): “O fato de os
negros começarem a ser catequizados pela Igreja não significa que estes passaram a
sofrer menos castigos, continuaram a ser torturados e ainda utilizavam os sofrimentos
de Jesus para consolá-los”. É, portanto, nessa adoção do nome de lugar originário que
reside também uma resistência e uma sobrevivência das suas memórias. A mesma
Igreja que os batizava e os dava novos nomes, era a mesma que não proibia o
escravismo e os segregava em seus espaços, deslocando-os das populações brancas
nas missas e nas irmandades, como anota Vagner Gonçalves da Silva (2005, p.37-40).
Essas entidades quando incorporadas possuem características gerais que são
abordadas de maneira semelhante pelos autores612 que trabalham com essa temática.
São descritos como seres de fala lenta e um vocábulo repleto de expressões de
entendimento dúbio, que oscilam entre o português e o misto com palavras africanas.

612Durante a catalogação e fichamento das fontes, alguns autores se portaram de maneira semelhante
ao descrever a figura dos Pretos Velhos, tais como: Cavalcanti Bandeira (1973); Antônio Alves Teixeira
Neto (1973); Ademir Barbosa Júnior (s/a); Ismael Pordeus Jr. (1993); Vanessa Pedro (1999) e Maria Helena
Villas Bôas Concone (2008).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
915

Seres de muita idade e vivência dura, portam-se com o corpo curvado, andar lento com
ajuda da bengala ou apoio em outros objetos que estejam no espaço, mostram-se
simples e humildes trabalhando pelo bem e no desmanche de demandas613. Os
símbolos impregnados em si pela escravidão, também se fazem presente, como o
cansaço, que os faz buscarem estar sempre sentados em banquinhos, quando baixam
nos terreiros. Entidades de muita responsabilidade, serenidade e respeito, costumam
fumar cachimbo e ter em mãos um colar de contas, ou rosário, são assim descritos, de
maneira generalista as entidades dos Pretos Velhos.
Contudo, mesmo que sejam apresentados de modo característico geral, tais
personalidades carregam consigo marcas individuais que variam de acordo com cada
um. As características físicas que esses indivíduos adquiriram enquanto encarnados se
fazem presentes na forma de agir do aparelho em que está incorporado em tal entidade.
Exemplo disso a autora Maria Helena Villas Boas Concone (2004), apresenta em seu
trabalho o caso de um médium chamado Edson, em um dos terreiros por ela visitado,
que

[...] seu próprio preto-velho, enquanto sentado, permanece todo o


tempo com os dedos dos pés dobrados. Tal fato se explica, pois Pai Jacó
(o preto-velho em questão), quando vivia na terra, foi castigado por um
feitor e ‘obrigado a usar a vida toda um sapato de ferro’, uso que teria
causado a deformidade que obriga o médium a manter os dedos dos
pés dobrados.” (CONCONE, 2004, p.291)

Afirma, destarte, a percepção das características peculiares de cada um e também


evoca as memórias no que diz respeito aos estigmas deixados pela escravidão, ao passo
que nos remete o comportamento dessas entidades nos terreiros, no sentido físico da
incorporação. O médium assume, portanto, as características do seu, ou sua, preto ou
preta velha.
Outrossim a manifestação física peculiar de cada entidade, o modo como cada um
trabalha também varia de acordo com a linha pela qual eles vêm. Na Umbanda,
diferente do Candomblé, os orixás não incorporam diretamente nos médiuns, quem
baixa nos terreiros são as entidades que trabalham na vibração, ou linha, de cada orixá:

613Podemos entender as demandas, a grosso modo, como uma espécie de energia pesada ou negativa
emanada de grupos que não possuem tanta elevação espiritual e trabalham pelo mal de outrem.
Disponível em: <https://www.raizesespirituais.com.br/curiosidade-o-que-e-demanda/>. Acesso em 17 de
setembro de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
916

Pretos Velhos, Caboclos, Baianos, Pombas Giras, Crianças, Ciganos, Boiadeiros e assim
por diante. Posto isso, a personalidade de cada Preto Velho varia de acordo com a
vibração pela qual ele baixa, assemelhando-se com o seu orixá. Os pretos velhos de
Iemanjá, por exemplo, seriam entidades de incorporações simples e doces, que se
utilizam dos movimentos do mar para trabalharem nas sessões de descarrego.
Atuando ainda, com mais afeição, nos casos familiares e no desejo pela gravidez por
parte de algumas mulheres. Os pretos velhos de Nanã, orixá considerada a mãe de
todos e mais velha, por sua vez, apresentam incorporação lenta e pesada, estes são
mais raros e sérios, revelando, novamente, a gratidão e respeito pelas ancestralidades.
(Barbosa Júnior, 2011, p.81).
O dia de Preto Velho é comemorado em 13 de maio por todos os terreiros de
Umbanda do Brasil, por ser o dia histórico de assinatura do documento que abolia a
escravatura, a Lei Áurea. Contudo, as giras para Preto Velho ocorrem nos terreiros em
outros dias comuns, não somente nesta data e mesmo que cada terreiro assuma sua
postura identitária particular em seu culto, algumas características se assemelham. Os
trabalhos se iniciam com a defumação do ambiente, para que toda a negatividade
presente seja expulsa e o local esteja limpo e equilibrado para receber as entidades.
Após isso, os médiuns pedem a autorização a Exu, entidade ou orixá, guardião dos
caminhos e que, portanto, deve permitir que o ritual seja feito com proteção e atua,
ainda, na guarda dos terreiros, afastando os maus espíritos. Os cambones (ajudantes
dos médiuns) dispõem dos elementos característicos que serão utilizados, no caso, o
cachimbo, o café, o banquinho, bengala e todo o aparato que se fizer necessário para o
amparo da entidade a ser recebida, nesse caso, os Pretos Velhos. Os pontos são
cantados como uma forma de chamar e saudar a entidade no terreiro. O corpo
mediúnico entoando cantos, batendo palmas e acompanhados dos ogãns que tocam
seus atabaques, vai aos poucos tornando-se inconscientes e cedendo espaço do seu
corpo para que as entidades assumam. De acordo com Vanessa Pedro (1999, p.88), uma
sineta é batida e a saudação magistral é proferida: “Adorei, minhas santas almas!”, a
gira dos pretos velhos é então iniciada. Depois de saudado o terreiro, cada preto ou
preta velha incorporado em seu médium se direciona em busca do seu banquinho, onde
tem acesso ao seu cachimbo com fumo e o seu café preto e assim iniciam as conversas
de assistência, curas e conselhos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
917

Todo esse ritual descrito é acompanhado de dois tipos de “pontos” que se fazem
de suma importância, o primeiro que podemos descrever são os “pontos riscados”.
Estes são as assinaturas das entidades que quando incorporadas riscam o chão com
símbolos, próprios e únicos de cada uma, com uma espécie de giz branco, denominada
de “pemba”. Esse tipo de ponto se destaca como um elemento muito sagrado no
cotidiano umbandista e só acontece em ocasiões de suma importância, não sendo,
portanto, riscados pontos em giras comuns. Tal ato é uma forma de validar que o
médium está realmente incorporado e não mistificando, ou seja, fingindo transe, esse
ponto é então firmado numa madeira e guardado onde não se tem acesso aberto. A
segunda categoria são os “pontos cantados”, que acompanham o ritual com suas letras
e versos que se dirigem às entidades, com saudações, gratidões e elementos que os
caracterizam.
Mesmo que os pontos riscados sejam características pessoais de cada entidade,
existem alguns elementos que se repetem e que nos permitem fundamentar uma
análise sobre o que representam. Dentre os 441 pontos cantados de pretos velhos
catalogados, que utilizamos para nossa análise, foram 396 do livro “3000 pontos
riscados e cantados na Umbanda e no Candomblé” (Editora Eco, 1974) e 45 do livro
“Pontos Riscados do Terreiro de Pai Maneco”. Nesses pontos são marcantes a
presença de alguns elementos que se repetem, como a cruz, a estrela, o coração e as
ondas do mar.
Como aponta Andrade Júnior (2013, p.10): “A cruz simboliza o sofrimento que
passaram, sendo que na África lutando contra um território inóspito e no Brasil no
padecimento na senzala. Ao mesmo tempo a cruz é um símbolo clássico do cristianismo,
reforçando que os pretos-velhos são absolutamente híbridos em suas práticas e
crenças.”. Evidenciando, portanto, que essas entidades também se apresentam como
cristãs em sua personalidade. Ainda de acordo com o mesmo autor, as estrelas são
símbolos de elevação espiritual alta dessas entidades, além de destacar que são esses
os que possuem mais estrelas presentes em seus pontos, dentre todo o panteão
umbandista. As estrelas podem ser entendidas como símbolos da demonstração de
elevação, tal qual estes corpos celestes estão no céu, distantes, porém presentes
mesmo que não vistos a todo momento, os pretos e pretas velhas também o são.
Presentes mesmo que não os possamos ver. Revelam ainda a sabedoria, a calma e a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
918

iluminação que carregam e emanam de si, como analisado por Andrade Júnior (2013,
p.10-11).

Imagem 1: Ponto de Vovô Domício de Aruanda Imagem 2: Ponto de Pai Congo D’Angola

Esses dois exemplos de pontos, nos permitem analisar duas características


mencionadas. Primeiro os elementos característicos dessas assinaturas, a cruz e as
estrelas; e ainda no segundo, de Pai Congo D’Angola, o rosário de contas. Este último
pode ser analisado tendo em vista também o hibridismo sofrido por esses povos, ao
adotarem as práticas católicas como suas e sobretudo, ao culto de Nossa Senhora do
Rosário e até a criação da irmandade dos Negros do Rosário. O que evoca o pensamento
de como esses negros foram inseridos no contexto católico abruptamente e tiveram
que mesclar seus ritos e se ressignificarem para sobreviverem.
A análise dos pontos permite o entendimento dessas entidades também para
além do que é imagético, os nomes dos Pretos Velhos nos possibilitam uma
visualização do local de onde esses negros foram retirados. Retratados como pai, mãe,
vovó, vovô, tio, tia, o que revela o sentido de tê-los como familiares, esses personagens
acompanham em sua nomenclatura, corriqueiramente, a designação do ambiente de
onde foram retirados originalmente em África. Dentre os pontos observados, pôde-se
perceber uma predominância dos nomes “Congo”, “Angola” e “Luanda”, o que ressalta
que esses Pretos Velhos são originários da porção central da África sul-saariana. Como
sumariamente citado, esse fato nos permite analisar que a exportação da maioria dos
negros que fundamentaram a cultura brasileira, provém de países que compõem a
cultura banto. Portanto, as entidades dos Pretos Velhos podem ser vistas, em sua
maioria, como entidades de características culturais bantas.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
919

Imagem 3: Ponto de Tio José Negreiro Imagem 4:Ponto de Tia Rita da Guia

Nesses dois pontos em destaque, podemos perceber, além da cruz e da estrela, já


brevemente comentados, também a presença dos elementos característicos do mar. As
ondas, que simbolizam o próprio fluxo do mar, o grande oceano desconhecido a que
eram submetidos numa viagem durante meses. A âncora também aparece nesse
cenário como um elemento característico das viagens do tráfico negro, remete
diretamente às vivências dentro do navio negreiro. O Atlântico, simbolizado pelas
ondas, ao passo que era temido, pelo seu desconhecimento e por sinalizar uma viagem
em que não se sabia qual seu fim, pra onde seriam levados ou até mesmo se
sobreviveriam, também se tornava o elemento de ligação entre o Novo Mundo e a
África. O grande mundo em forma de água era o começo e o fim. A lua614, presente no
ponto de Tio José Negreiro, pode ser associada à Oxum, o que pode indicar que sejam
um Preto Velho que trabalha na vibração de tal orixá e possui em si, elementos
comportamentais semelhantes à Oxum.
O outro tipo de ponto utilizado são os “pontos cantados”. Estes são músicas que
são utilizadas para saudar e chamar as entidades no terreiro. A partir da análise de suas
letras podemos perceber algumas características particulares sobre as entidades e
suas vivências, notando, sobretudo, as referências que mesclam o universo africano
com o cristão.

Disponível em: < http://paimarcio-pontosriscados.blogspot.com/>. Acesso em 07 de junho de 2018.


614

No site também contém a interpretação de alguns mais outros símbolos presentes nos pontos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
920

“Ponto de Pretos Velhos “Ponto de Pretos Velhos


(Saudação) (Saudação)
Preto Velho na senzala Ai, meu Senhor do Bonfim,
Padeceu, padeceu. Tenha pena de mim,
Preto Velho não chorava, Meu Senhor do Bonfim. (Bis)
Só dizia: Ai Meu Deus, Vou sarava Pretos Velhos, no Terreiro,
Ai, meu Deus, Saravá meu Pai Ogum,
Saravá Santo Guerreiro.” (p.104)
Ai, meu Deus. (Bis).” (p.103)

O padecer dessas pessoas no cotidiano das senzalas aparece muito fortemente


nos pontos cantados. A repetição do verbo padecer, no primeiro ponto de saudação, nos
remete a sensação de fortalecimento da ideia, como uma atitude de ecoar e intensificar
o que se diz, que nos evoca a sensação da resistência diária diante do sofrimento do
azorrague do chicote. Tenacidade essa que se afirma com o trecho “Preto velho não
chorava, só dizia: ai meu Deus” e revela não só a característica de firmeza, como
também o clamor pelo divino cristão. Já no segundo ponto, não é só a mística católica
que aparece, como também dialoga e convive com o panteão africano quando chama
pelo santo, Senhor do Bonfim, ao mesmo tempo que saúda o orixá Ogum.

“Ponto de Pai Carlos de Luanda “Ponto de Pai José D’Angola


Pai Carlos de Luanda Ele é Pai José,
Quando vem pra trabalhar Vem lá de Angola,
Traz seu cesto de mandingas, Com seu patuá,
Sua bengala e seu patuá. Com a sua sacola.
Sua reza é muito forte, A fumaça vai,
Para quem carrega a fé. A fumaça vem,
Pai Carlos vem de Luanda, Pai José de Angola,
Louvando a São José.” (p.107) Tem mironga tem.” (p.112)

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
921

Assim como nos pontos riscados, nos pontos cantados também aparece a referência
do lugar de pertença em África, do qual esses negros foram retirados. Luanda, Angola, Congo,
como já brevemente citado, são muito presentes e reforçam a ideia da intensidade escravista
nessa região. Ao mesmo momento, remonta a ideia de ligação que tais pessoas tinham com
sua terra e o desejo de retornarem aos seus ambientes naturais. Nesses dois pontos existe
um veio de ligação com o sobrenatural, demonstrando que os pretos velhos vêm de seus
lugares de África para trabalhar pelo bem. Carregam consigo suas mandingas e patuás em
contraste e conjunto com a sua fé, em prol de uma benfeitoria e caridade nos terreiros. Como
são procurados pelo público em busca de ajuda espiritual, os pretos são tidos como os
detentores das rezas fortes, dos conhecimentos ocultos; com sua fumaça purificam e
benzem.
O ritual umbandista vai muito mais além do que os pontos riscados e cantados, o seu
universo mágico-religioso é composto de muitos outros elementos característicos que
conferem identidade própria ao rito. Contudo, cabe destaque aqui a mais um outro aspecto
no que tangem às entidades: as oferendas. Cada entidade tem o seu tipo de oferenda
específico, suas comidas próprias, contudo, é importante dizer que tais espíritos não comem
o alimento físico, mas sim adquirem a energia contida ali. A intensidade do que é rogado aos
pretos é conduzida pela qualidade e coerência do que é ofertado, portanto alguns alimentos
são mais priorizados, respeitando-se a entidade e livrando-os dos vícios de outros espíritos.
Alguns mantimentos são ofertados sem ferir a pureza deles, como as comidas de milho, café
amargo, cachimbos de madeira, fumo em rolo, vinho, frutas, flores, aipim, farinha, dentre
outros. (SILVA, 2012, p.341)
Estudar a Umbanda por si já se torna um ato de dar visibilidade a tal culto em meio uma
sociedade que vê e reconhece os brancos, constantemente, como privilegiados em vários
espaços sociais (mídia, trabalhos formais, universidades, entre outros). A Umbanda mesmo
tendo nascido no Brasil e fundamentando-se a partir do kardecismo e adotando mesclas
cristãs, ainda assim é negra. A negritude tem suas marcas na Umbanda e sobrevive nela.
Estudar e escrever sobre os ritos negros é uma necessidade latente numa sociedade branca
e racista. É uma tentativa de entender esses espíritos através dos pontos cantados, riscados
e da vasta bibliografia que se debruça sobre eles, mas que, no entanto, os abordam de
maneira generalista. Compreender, a partir disso, esses seres de luz, serenidade e caridade,
demonstrando, portanto, que a Umbanda não precisa ser temida, pois é um culto de cura e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
922

caridade e, sobretudo, o papel que os pretos desempenham nessa religião. O recorte feito
sobre os Pretos Velhos é uma tentativa de dar voz aos marginalizados e que insistem em
sobreviver quando o mundo tenta os silenciar.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O Atlântico e o comércio negreiro. In. ALMEIDA,
Francisco Eduardo Alves de. Atlântico: a história de um oceano. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.

ANDRADE JÚNIOR, Lourival. "Adorei as almas": Umbanda, Pretos-Velhos e escravidão. In:


SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 17., 2013, Natal. Anais... . Natal: Anpuh, 2013. v. 1, p. 1 -
13. Disponível em:
<http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364730161_ARQUIVO_Adoreiasalm
as-XXVIISNH-textocompleto.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2018.

BANDEIRA, Cavalcanti. O que é a Umbanda. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1973.

BARBOSA JÚNIOR, Ademir. Curso Essencial de Umbanda. São Paulo: Universo dos Livros,
2011.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. Tradução: Ana Regina Lessa; Heloísa Pezza
Cintrão. 4 ed. São Paulo: EdUSP. 2008.

CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. Caboclos e Pretos-Velhos da Umbanda. In: PRANDI,
Reginaldo (org.). Encantaria Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. p.281-303.

LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p.97-230.

LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a Cruz e a Encruzilhada. São Paulo: EdUSP, 1996.

OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Das Macumbas à Umbanda: Uma análise histórica da
construção de uma religião brasileira. 1ª ed. Limeira, São Paulo: Editora do Conhecimento,
2008.

PEDRO, Vanessa. Almas e Angola: Ritual e Cotidiano na Umbanda. Florianópolis (SC):


Biblioteca Imaginária: 1999.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: Caminhos da devoção brasileira. 2 ed.
São Paulo: Selo Negro, 2005.

Sites
MÁRCIO, Pai. Pontos Riscados. 2011. Disponível em: <http://paimarcio-
pontosriscados.blogspot.com/>. Acesso em 07 de junho de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
923

Raízes Espirituais. Você sabe o que significa Demanda?. 2015. Disponível em:
<https://www.raizesespirituais.com.br/curiosidade-o-que-e-demanda/>. Acesso em: 17
de setembro de 2018.

TENSP. Gravações históricas. Disponível em: <https://www.tensp.org/audio>. Acesso em:


03 de Abril de 2018.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
924

Simpósio Temático 17
O BRASIL IMPÉRIO:
TRAMAS, CONEXÕES E OUTRAS HISTÓRIAS
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
925

BEZERRA DE MENEZES: REPRESENTAÇÕES ABOLICIONISTAS NA


OBRA O EVANGELHO DO FUTURO (1880-1889)

Flávio Luan Freire Lemos615


André Victor Cavalcante Seal da Cunha616

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa proposta fundamenta-se a partir da História Cultural, seguindo
as conceituações de Chartier (1990, p.16), preocupada em “[…] identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler”, ou, especificamente, a História Social do Cultural, se levarmos em consideração
que a categoria das representações também envolvem disputas entre os grupos sociais
dentro das suas delimitações historiográficas. Neste caso, utilizaremos do texto literário
como meio de acessar essas representações, realizando as devidas críticas e situando-a
dentro de um recorte histórico. Ora, apesar de a literatura ser um produto ficcional, “[…]
obedecem também a processos de construção onde se investem conceitos e obsessões dos
seus produtores e onde se estabelecem as regras de escrita próprias do gênero de que
emana o texto” (CHARTIER, 1990, p. 63), ou seja, existe uma relação estreita com o real.
A possibilidade do uso da literatura como documento advém da expansão do
conceito de fonte, com a Escola dos Annales, movimento intelectual francês da transição
para o século XX, alargando o campo de apreensão da História enquanto ciência. Como
consequência deste fato, aumentou-se o leque de possibilidades de pesquisa do historiador.
Podemos considerar a literatura como um monumento histórico pois “[…] guarda as
questões de um tempo e as marcas de um povo e de um lugar.” (BORGES, 2010, p. 107).
Na obra O Evangelho do Futuro, escrita sob o pseudônimo de Max, o autor realizou
o entrelaçamento da doutrina espírita com a narrativa ficcional, como uma forma doutrinária
de interpretação das tramas desenvolvidas. Nesta obra em especial, a narrativa com traços
autobiográficos muito fortes, desenvolvendo suas tramas nas cidades onde residiu, como
Riacho de Sangue/CE, Martins/RN, Fortaleza e Rio de Janeiro. Todavia, nosso olhar voltara-
se as análises das representações sobre os aspectos abolicionistas, seguindo três

615 Graduando do curso de Licenciatura em História, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN), Campus Central – Brasil. E-mail: uluanfreire@hotmail.com.
616 Docente do Departamento de História da FAFIC, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN), Campus Central – Brasil. E-mail: andrevseal@yahoo.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
926

movimentos específicos: Caracterização das congruências entre seu romance e o seu ensaio
publicado em 1869; identificar as representações dos escravizados e questões abolicionistas
na narrativa; analisar os dispositivos doutrinários Espíritas utilizados para legitimar a plena
liberdade dos escravizados e a necessidade de uma reparação social. Acreditamos que este
percurso analítico nos permitirá desvelar as discussões relativas a plena libertação dos
escravizados na última década do Império, sob a ótica dos intelectuais espíritas, em
específico, o cearense Bezerra de Menezes.

BEZERRA DE MENEZES: BREVE TRAJETÓRIA DE UM ABOLICIONISTA ESPÍRITA


O ilustre cearense Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti, nasceu em 1831 no vilarejo
Riacho de Sangue, atual município de Solonópoles. De berço católico e de família abastarda,
mas que ao passar da sua juventude passou por dificuldades, Menezes morou em diversos
lugares devido as inimizades políticas de sua família. Transitou pelo interior do Ceará e Rio
Grande do Norte, até chegar na capital cearense, onde finalizou seu ginásio. Seu itinerário
encerra-se, por assim dizer, no Rio de Janeiro, em 1851, quando desembarcou na capital do
Império, Rio de Janeiro. Formou-se em medicina, seguindo carreira no Exército, na política,
através do Partido Liberal e como administrador de empresas. Como escritor, redigiu artigos
para periódicos, como O Paiz. Enquanto membro do Partido Liberal, atuou em questões
acerca da independência administrativa da municipalidade, assim como questões
abolicionistas. Participou da redação do periódico Sentinela da Liberdade, realizando
diversas críticas ao governo imperial, assim como no periódico espírita Reformador, este
último que se transformou no seu locus de discurso doutrinário e político.
Dentre os principais marcos de sua vida, apontado em suas bibliografias – como Vida
e obra de Bezerra de Menezes (2006) e Bezerra de Menezes: ontem e hoje (2001), para citar
algumas –, destaca-se a sua conversão ao Espiritismo. Ocorreu oficialmente em 6 de agosto
de 1886, por meio de uma conferência no Salão da Velha Guarda, elucidando todo o seu
processo de conversão para o kardecismo, partindo da reflexão de toda moralidade
doutrinária católica, antes norteadora de toda sua vida. O texto lido nesta conferência foi
dissolvido nas edições do Reformador entre setembro e novembro daquele ano. Todavia,
Valle (2010, p. 83-84), situa sua aproximação ao kardecismo na década de 70, por meio de
Joaquim Carlos Travassos, este que o presenteou com uma edição de O Livro dos Espíritos.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
927

Como um dos membros fundadores da Federação Espírita Brasileira, Bezerra atuou


em diversas frentes na instituição, chegando, inclusive, a presidência nos últimos anos de
sua vida. Em seu mandato, iniciado em 1896, após a renúncia de Júlio Cesar Leal, Bezerra de
Menezes atuou na firmação religiosa da federação. Fez contraposição aos cientificistas
aglutinados no Centro da União Espírita de Propaganda no Brasil. Membro do corpo editorial
do Reformador, foi um sagaz escritor de diversos estudos publicados no periódico. Foi ainda
neste periódico, fundado em 1883, que Bezerra utilizou-se do gênero romance, em formato
de folhetins, como forma de propagação da doutrina espírita, utilizando-se do pseudônimo
Max. É o caso do romance O Evangelho do Futuro, publicado entre os anos de 1905 à 1911,
após sua morte, em 1900. Arribas (2010) analisa sua atuação enquanto espírita como
fundamental na construção do kardecismo em “doutrina religiosa”, desenvolvendo um
“corpo sistemático e organizado de princípios” (ARRIBAS, 2010, p. 103).
Enquanto romancista, Bezerra de Menezes situa-se como um dos fundadores
também da literatura espírita brasileira. Através de seus escritos publicados no Reformador,
principalmente os folhetins, que Bezerra “[…] desempenhou a função de Kardec brasileiro,
contribuindo com a invenção da configuração brasileira para um Espiritismo inserido
definitivamente no campo religioso” (CUNHA, 2015, p. 41). Aliás, o assentamento do
Espiritismo brasileiro caracteriza-se pelo engajamento intelectual de seus fundadores, no
uso da literatura como meio doutrinário e de divulgação. Nosso romancista é a personificação
deste esforço. Todavia, o romance também foi para Bezerra, e outros espíritas, um reduto de
defesa dos seus ideais políticos, entre os quais, o abolicionismo.
Dentro do contexto das discussões abolicionistas da segunda metade do século XIX,
os espíritas também participaram enquanto sujeitos políticos. Tanto Bezerra de Menezes
quanto Antonio da Silva Neto, foram grandes tributários espíritas acerca da temática.
Reformador foi um meio pelo qual esses sujeitos teceram suas críticas ao lento andamento
das discussões nas instituições políticas imperiais. O discurso produzido é uma síntese entre
a doutrina kardecista e as ideologias positivistas circundantes do período, “[…] condenavam
a escravidão pelo aspecto moral, pois ela degenerava a sociedade, uma vez que era
degradante, tanto para o escravo como para o senhor” (VALLE, 2010, p. 154), logo, a
condenação da escravização brasileira tornou-se uma posição institucional, impressa nas
páginas do Reformador. Como exemplo, podemos citar artigos presentes nas edições de 15
de novembro de 1884, 15 de abril de 1886, 01 de março de 1887, artigos extensos e

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
928

condenatórios, marcando a participação espírita no debate abolicionista na efervescente


década de 80.
Todavia, a atuação de Menezes nestas questões é anterior a sua conversão. Em 1869,
escreveu e publicou um ensaio intitulado “A Escravidão No Brasil e As Medidas Que Convém
Tomar Para Extingui-la”. Nele posicionou-se e apresentou soluções para a questão servil. A
justificativa pela qual condena a escravização baseia-se em três princípios: religião, ainda
enquanto cristão católico, a “civilização do século XIX”, olhando para a modernidade dos
países europeus, e a economia política (MENEZES, 2009, p. 31). Há uma aproximação do seu
discurso com os ideais caracterizadores do abolicionismo brasileiro do século XIX, sob o
termo de “razão nacional”, onde a instituição escravagista era “o obstáculo intransponível”
no caminho da consolidação da nação brasileira que desenhava-se no Segundo Reinado
(CARVALHO, 1998, p. 57).
No ensaio, Bezerra situa a abolição como algo essencial para o progresso da nação
que se desenhava no Segundo Reinado, convocando a sociedade civil para solucionar o
problema:

Fique o Governo em sua eterna impassibilidade e vamos nós, simples cidadão,


mas dedicados obreiros do progresso de nossa terra, espalhando a semente
por todos os ângulos do Império, que dia virá em que, do Norte ao Sul, um
brado de indignação, partindo de todos os peitos brasileiros e levando de
vencida a inércia de uns e os emperramentos de outros, dará ao mundo o
exemplo grandioso de um povo marchando adiante de seu Governo na
iniciação e promoção das grandes reformas que a civilização do nosso século
reclama (MENEZES, 2009, p. 49 – 50.).

Nesta convocatória, provocativa ao reinado de Dom Pedro II, Bezerra traz elementos
em voga no período: O progresso civilizacional emergente. Conclama a participação de todos
na batalha contra a “inércia de uns”. Continua a construção de seu projeto, realizando um
balanço das propostas em discussão, resumiam-se em duas: uma emancipação rápida ou
gradual. Todavia, ambas não mereciam respaldo pois “[…] atiram, de chofre, no seio da
sociedade com os direitos de cidadão brasileiro, toda essa massa de homens criados e
educados para escravos, sem princípios de honra, de justiça, de dever, verdadeiros selvagens,
dominados pelos mais perigosos instintos” (Ibidem, p. 54 – 55.). Denotando sua preocupação

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
929

com as consequências do ato de libertação dos escravizados, não preparados para adquirir
direitos.
Assim sendo, um projeto de emancipação deveria sustentar-se através de dois
pontos: (1) meios próprios para se obter a liberdade dos escravos, ou seja, sem prejuízos
econômicos graves a sociedade, e sua respectiva (2) regeneração moral dos escravos. Logo,
Bezerra de Menezes pontua a proposta do “ventre livre” como meio mais coerente e “menos
prejudicial”, contabilizando um prazo de 25 anos para o desaparecimento da servidão
africana no Brasil (Ibidem, p. 65). Porém, apenas isso não seria necessário. A proposta
acrescenta a importância do Estado retirar as crianças do leito de suas mães escravizadas,
através da fundação de “casas de criação”.
Esta instituição cuidaria dessa juventude afrodescendente, oferecendo-as instrução
primária, moral e religiosa. Ao final, estabeleceriam colônias nacionais, “mil vezes preferíveis
às estrangeiras” (Ibidem, 77 – 78), constituindo famílias moralmente restauradas da
perversidade de seus pais. Ou seja, para Bezerra de Menezes, não bastava apenas a abolição,
mas o desenvolvimento de mecanismos de reparação, estes, custeado pelo Estado. Se
olharmos pro passado, veremos a promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871, seguida de
outras legislações, até a completa abolição, decretada em 1888, sem nenhuma iniciativa
governamental garantidora de uma equidade na inserção dos libertos na sociedade.
Em resumo, estes são alguns posicionamentos importantes do nosso sujeito em sua
produção ensaística. Delimitaremos aqui esta análise, uma vez que não é nosso objetivo nos
aprofundarmos nesta produção. Entendendo um pouco o Bezerra de Menezes abolicionista
de 1869, poderemos agora nos debruçar de seus posicionamentos na década de 80, através
de sua produção literária. Para tanto, a seguir, realizaremos interlocuções comparativas
entre o ensaio, de 1869, e a alguns trechos do romance O Evangelho do Futuro. Que entre em
cena o abolicionista espírita.

UM ABOLICIONISTA ESPÍRITA: O EVANGELHO DO FUTURO E O FUTURO DOS AFRO-


BRASILEIROS
O romance é ambientado no final do século XIX, sob as paisagens da Serra do
Martins, interior da província do Rio Grande do Norte, onde atualmente localiza-se a cidade
de Martins-RN. Narrado em três tempos: perdição, conversão e reparação, a obra tem um
forte teor doutrinário, caracterizado pela apresentação dos escritos kardecistas. Os

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
930

acontecimentos são construídos partindo sempre do estabelecimento de interconexões


entre o acontecido e a doutrina Espírita.
Aliás, a própria separação do tempo narrado em três partes – perdição, conversão e
reparação –, está em consonância com as fases de arrependimento, expiação e reparação do
espírito. Raimundo, um dos personagens principais, passa por todas as fases em uma única
reincarnação, narrada ao decorrer do romance, caracterizando assim, uma das principais
adaptações da doutrina à obra. Afirmamos isso partindo dos escritos de Allan Kardec, onde
afirma-se que “uma só existência corporal é manifestamente insuficiente para o Espírito
adquirir todo o bem que lhe falta e eliminar o mal que lhe sobra.” (KARDEC, 2013, p. 29), e
que Deus concederia inúmeras reincarnações para que, ao longo delas, o espírito atingisse a
perfeição.
Dentro desta lógica de reparação do espírito, principalmente através da caridade,
onde Bezerra soma as questões abolicionistas à narrativa. Em retorno a província do Ceará,
especificamente à Vila do Frade, munido de uma fortuna, realizou uma caridade em grande
soma de dinheiro, teria por objetivo “[…] à criação de um asilo para ingênuos, que a Lei de 28
de setembro, da qual procedem, deixou abandonados ao desgraçado destino de seus
corrompidos pais.” (MENEZES, 2011, p. 324). Em clara referência a Lei do Ventre Livre,
Bezerra apresenta uma crítica, em retorno na obra com uma preocupação que havia
mencionado já no seu ensaio de 1869. Referindo-se a legislação em debate no período como
insatisfatória por ela mesma:

Ventre-livre é, pois, o meio mais simples, mais fácil e mais cômodo entre
todos de quantos se tem, até hoje, cogitado.
[…] Porém, esse meio não nos dá senão a solução de uma parte do problema;
não nos dá senão a extinção da escravidão e nós queremos o complemento
dessa reforma, queremos a transformação do escravo em cidadão útil, sem o
que todo resultado é nulo e porventura prejudicial. (MENEZES, 2009, p. 65 –
66).

Logo, ainda em referência a Lei do Ventre Livre no romance, lança o questionamento;


“De que serve libertar da escravidão material, deixando vigorante a escravidão moral?”
(MENEZES, 2010, p. 324 – 325). Ainda seguindo com as críticas a aprovação da lei, Bezerra
pontua:

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
931

Os grandes homens, os magnânimos autores da lei, contentaram-se com a


glória de fazerem que não mais nascessem escravos no Brasil; e esqueceram
a verdadeira glória; de tirarem de uma raça perdida, que infeccionava a
sociedade, valiosos elementos de engrandecimento para a mesma sociedade.
(Ibidem, p. 326).

Apontando assim, um olhar próprio, após a aprovação da legislação, e confirmando


o que havia antes suposto em seu ensaio. Seguindo a narrativa romanesca, a doação de
Raimundo, objetivando instituir-se um “asilo”, onde seria ofertada educação aos ingênuos
das redondezas do município. Esta instituição, realizaria a função de educar os jovens libertos
pela lei longe de seus pais, pois se criados em seio materno “[…] aprenderão senão o que lhes
dana a alma e os torna perniciosos cidadãos” (Ibidem, p. 325). Em sua contínua crença onde
taxava os escravizados repetidas vezes de raça “perdida”, “corrompida”, “degradada”, entre
outros termos presentes na análise tanto do ensaio, quanto do romance.
Na escrita de Bezerra de Menezes, há conotações muito próximas as teorias do
darwinismo social que já circulavam pelo Brasil na segunda metade do século XIX. Teorias
apropriadas e adaptadas pelos intelectuais brasileiros, onde “[…] adotou-se o suposto da
diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as
implicações negativas da miscigenação.” (SCHWARCZ, 1993, p. 18). Nessas teorias, debatidas
no Brasil, as degenerações das raças aos poucos saíram do âmbito físico para os aspectos
morais e comportamentais, estes sim, deveriam ser reprimidos e erradicados.
Bezerra de Menezes deixa claro o âmbito da perdição da raça; era a atmosfera
contaminada das fazendas submetida aos negros em seu processo de escravização e
animalização. Ou seja, através da literatura, Bezerra continuou na reafirmação da sua posição
de que “[…] era possível fazer do filho de um escravo, educado longe das experiências do
cativeiro, um cidadão capaz”, como afirmou Valle (2010, p. 44), em análise a sua atuação na
imprensa, sobretudo enquanto espírita, na construção de uma posição institucional do
movimento acerca da questão.
Bezerra insere-se dentro do contexto histórico brasileiro, onde começava-se, no
Segundo Reinado, a debater a consolidação de uma nação. Dentro desta discussão, as
questões raciais estavam incorporadas. Afinal, como afirmou Shwarcz (1993, p. 32), no Brasil
“[…] a moda cientificista entra no país por meio da literatura e não da ciência mais
diretamente. As personagens serão condicionadas pelas máximas deterministas, os enredos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
932

terão seu conteúdo determinado pelos princípios de Darwin e Spencer”. Todavia, a


historiadora defende a tese que esta apropriação não ocorreu de maneira acrítica. Houve uma
seleção e adaptação dessas teorias à realidade da sociedade brasileira.

No caso dos africanos e seus descendentes, Bezerra esclarece: Estes


anjinhos, que a sociedade condenava à perdição paterna, foram por nós
levantados e colocados na estrada do alto destino humano! E tinha de que
se ufanar, porque, sem aquela providência, toda aquela inocência nativa se
perverteria e se quebraria de encontro à barreira que lhe criariam os
sentimentos e práticas depravadas da senzala – obra exclusivamente dos
bárbaros senhores, que criam escravos como criam cães, não se lembrando
do que eles têm uma alma – e só vendo neles máquinas de fazer fortuna!
(MENEZES, 2010, p. 327).

Ou seja, os negros possuíam uma “inocência nativa”, e o processo de desumanização


de sua raça é decorrente da forma de vida imposta pelos “bárbaros senhores”, estes que
esqueceram o fato deles possuírem alma. Nota-se o tratamento paternal dos escravizados,
em nenhum momento são atribuídos a eles uma individualidade autônoma. Muito pelo
contrário, era uma massa perdida, salvando-se apenas sua prole, e se, e somente se,
passassem pelo processo de educação em isolamento de seus pais. E aqui suponhamos que
o médico Bezerra de Menezes também quis inserir-se dentro dos diálogos decorrentes do
processo de “cuidar da raça, ou seja, da nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 235), da nova sociedade
que estava surgindo.
A realização desta obra de caridade, oportunizada por um “simples cidadãos”,
situava-se na contribuição da questão, e seria o atender do chamado feito pelo próprio
Bezerra de Menezes em seu ensaio. A educação dos ingênuos a partir de iniciativas
particulares era a realização de uma ação onde o governo isentou-se:

Pois que o Estado desprezou esta humanitária e civilizadora providência,


única eficaz para tirar linfa pura e cristalina da cabeça de um cão podre,
tomemo-la nós, neste desconhecido recanto, graças à filantropia do grande
coração, que todos admiramos, e cuja memória ensinaremos às crianças
negras a bendizer (Ibidem, 2010, p. 325).

Apesar de não ser uma construção extensa, pois ocupa apenas um dos cinquenta e
quatro capítulos, são muitas as críticas ao governo imperial neste espaço destinado a

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
933

questões abolicionistas. Caracteriza-se sempre com a tomada da resolução do problema pela


sociedade, protagonizando-a no processo ignorado pelo Estado:

Era a melhor e mais grata ocupação do bom povo cuidar do presente e


preparar o futuro dos filhos da raça negra, considerando sua oba mais
humanitária e civilizadora do que a dos poderes públicos em dar liberdade aos
cativos, deixando-os abandonados, no meio da sociedade, que os repele por
causa de seus vícios originais – e é por eles repelida, pelos próprios instintos
ferozes. (Ibidem, p. 330).

Tratando quase como um dever cívico do “bom povo”, neste trecho surge novamente
sua preocupação com o futuro da raça, e, consequentemente, da nação. Todavia, contradiz-
se quando refere-se a “seus vícios originais”. Anteriormente, e como analisamos nesta
exposição, Bezerra afirmou a “inocência nativa” como característica dos escravizados, sendo-
os corrompidos pela instituição escravagista brasileira. Denota-se assim uma confusão de
apropriações das teorias raciais, não posicionando-se concretamente sobre a natureza da
raça em questão.
É outra característica da proposta de reparação presente da obra, o
engrandecimento dos responsáveis pela ação. Ora, quem não quer ser admirado e fazer parte
de uma memória? Bezerra tinha ciência da importância histórica do feito: “A população de
Riacho de Sangue, com razão, orgulhava-se de haver feito, em bem da sociedade e da
Humanidade, o que não fizeram os governos do Brasil e do mundo, onde houve escravos!”
(Ibidem, p. 327). Aliás, ele mesmo se colocou na obra, como sujeito fundador da proposta
concretizada pelos personagens na narrativa. Ao apresentar a iniciativa, consistindo na
educação catequista e das primeiras letras, assim como um ofício aos rapazes, referencia-se:
“Era aquele o princípio da execução de uma ideia, que brotara, em 1869, do cérebro de um
obscuro brasileiro, autor de um opúsculo que escreveu em adiantamento à Lei do Ventre
Livre.” (Ibidem, p. 326).
Após apresentar seus argumentos com teor secular, entra em cena o homem cristão,
a condenar aqueles que insistem na manutenção da escravidão.

Oh! É de fazer arrepiarem-se as carnes, pensar-se nas conas que devem dar
tais infelizes ao Supremo Juiz, do modo como compreenderam seus deveres
com aqueles que a lei fez seus escravos!

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
934

Hão de prestá-las pelas carnes que lhes rasgaram – pela obcecação em que
os mantiveram – pela perversão moral a que os arrastaram – pelas trevas
em que os tiveram mergulhados! (Ibidem, p. 328).

E assim encerra-se sua argumentação acerca da questão escravagista, persistente


ainda no tempo de sua escrita, localizada na década de 80, na obra O Evangelho do Futuro.
Culpabilizando mais uma vez a responsabilidade dos sujeitos submetedores de uma raça
toda a condição de escravizado. Alertando-os acerca da condenação dívida para aqueles que
persistem na existência da instituição. Centralizando a responsabilidade, na individualidade
dos sujeitos não colaboradores na ação de retirar os cativos da “degeneração moral”, estes,
seriam “roído pelos vermes de sua própria maldade”, e mais, “rodeado, a todo o momento,
pelos esquálidos espectros de suas vítimas, que em coro, bradar-lhe-ão: “Podíamos ser bons,
fizeste-nos maus – podíamos ser bem aventurados, fizestes-nos precitos!”.” (Ibidem, p. 328).
Referindo-se ainda a elementos católicos do pós-vida; o julgamento no purgatório.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em O Evangelho do Futuro, Bezerra de Menezes revisita as suas colocações de seu
ensaio de 1869, acrescentando um contexto, pós-aprovação do Ventre Livre, e uma realidade
romanesca. Mesmo sendo um romance de cunho doutrinário, o autor não se exime de trazer
uma realidade do seu contexto histórico, fazendo de sua obra um reduto político. Há marcas
também das teorias raciais circundantes no período, na justificação da concretização da
proposta de “um obscuro brasileiro”, em referência a si mesmo. Interessante pontuar, que
reparação dos afro-brasileiros na nossa sociedade ainda é um debate atual, se arrastando
absurdamente há quase dois séculos.
A visão da passividade dos escravizados, e por isso a apresentação de uma solução
paternalista, faz-se presença na escrita do nosso sujeito. Como homem de seu tempo,
Bezerra dificilmente fugiria das ideias e concepções circundantes da sociedade a qual estava
inserido. Por mais que o gênero romanesco permita essas fugas. Era comum entre os
abolicionistas, ou simpatizantes, a crença na despreparação dos cativos no exercício da plena
liberdade e cidadania.
Hoje, é consenso historiográfico, principalmente após as pesquisas de Sidney
Chalhoub, que “a violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes
de ação autonômica”, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem tampouco

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
935

em rebeldes valorosos e indomáveis.” (2011, p. 49.). E o seu cotidiano era marcado pela
resistência em diferentes aspectos, e a liberdade tinha múltiplos sentidos próprios. Sob a
égide de “incapazes”, sempre negou-se um espaço de protagonismo dos negros na
construção da nação, marginalizando-os e silenciando-os nas margens da sociedade.
Analisar a escrita do Bezerra de Menezes, por fim, é revisitá-lo enquanto sujeito
oportuniza-nos acessar o contexto político brasileiro da segunda metade do século XIX.
Entender os seus posicionamentos nas questões abolicionistas, passamos a compreender
melhor os posicionamentos institucionais do movimento espírita carioca, de amplitude
nacional, avançando na historiografia acerca da história do Espiritismo brasileiro.

REFERÊNCIAS
ARRIBAS, Celia da Graça. Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da
diversidade religiosa brasileira. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em Sociologia. São Paulo. Dissertação
(Mestrado), 2008.

BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas Considerações. Goiás: Revista de


Teoria da História, Ano 1, n. 3, junho/ 2010. Disponível em:
<https://www.historia.ufg.br/up/114/o/ARTIGO__BORGES.pdf>. Acesso em: 07 de set.
2017.

CARVALHO, José Murilo. Escravidão e razão nacional. In: Pontos e bordados da história
política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de Maria


Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Difel, 1990.

CUNHA, André Victor Cavalcanti da. A invenção da imagem autoral de Chico Xavier: uma
análise histórica sobre como o jovem desconhecido de Minas Gerais se transformou no
medium espírita mais famoso do Brasil (1931 – 1938). Universidade Federal do Ceará,
Centro de Humanidades, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em
História Social. Fortaleza. Tese (Doutorado), 2015.

KARDEC, Allan. O céu e o inferno, ou, A justiça divina segundo o espiritismo. 61. ed. 1. imp.
(Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. (Trad. Manuel Justiniano Quintão).

MENEZES, Adolfo Bezerra de. O Evangelho do Futuro: Bezerra de Menezes sob o


pseudônimo Max. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
936

_____. Bezerra de Menezes, o abolicionista do Império: a escravidão no Brasil e as


medidas que convém tomar para extingui-la sem dano para a nação / pelo Dr. Adolpho
Bezerra de Menezes; apresentação, edição e notas de Paulo Roberto Viola; [prefário de
Jorge Andréa dos Santos]. 1 ed. Rio de Janeiro: F.V. Lorenz, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VALLE, Daniel Simões do. Intelectuais, Espíritas e Abolição da Escravidão: os projetos de


reforma na imprensa espírita (1867-1888). Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
937

Simpósio Temático 18
HISTÓRIA E IMPRENSA:
PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SABERES
Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
938

A PUBLICIDADE POLÍTICA: RELATOS SOBRE A ÚLTIMA ELEIÇÃO


PARA PREFEITO DO SÉCULO XX EM JARDIM DO SERIDÓ/RN

Alef Marques de Araújo Santos617

INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi uma produção de pesquisa realizada com o intuito de ser
apresentado no componente curricular História do Rio Grande do Norte II – presente na
grade curricular do curso de História (licenciatura), na UFRN, campus Caicó -, e serviu como
uma das avaliações propostas para a disciplina, sobre a orientação da professora e doutora
Jailma Maria de Lima618, componente efetiva do corpo docente da UFRN.
A proposta do trabalho na disciplina era promover uma pesquisa, sobre forma de um
pré-projeto, referente ao assunto de nossa escolha, mas que fosse direcionado a nossa
cidade, seja ela de origem ou a de residência, e que fosse referente ao século passado, ou
seja, o século XX.
A escolha desse tema foi realizada seguindo um interesse pessoal, em problematizar
por que até hoje, em pleno ano de 2017, o resultado da campanha de 2000 repercutir em cima
dos palanques. E o foco destinado aos veículos de propaganda possui um caráter de analise,
devido a um sentimento nostálgico, pela convivência com esses artifícios de campanha.
Como fontes de pesquisa, foram utilizados alguns santinhos e materiais de campanha
desse período, como também uma entrevista realizada com dono do material, Geicifran
Azevedo (conhecido por Geicifran de Chico sanfoneiro), e também através de uma conversa
informal com um dos candidatos a vereador da época, que é conhecido com Dedé do
consorcio.

VELHA DISPUTA, NOVOS ARTIFÍCIOS!


Aqueles que convivem ou residem no interior do estado do Rio Grande do Norte,
principalmente na região do Seridó, sabem o quanto o período eleitoral municipal é
representativo para seus habitantes, pois as pessoas passam a ficar mais animadas;

617 Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Ceres, Caicó/RN. E-mail: alefsantos_20@outlook.com
618 Professora do Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte (CERES – Caicó/ UFRN). E-mail: jailmalima@ig.com.br

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
939

partidárias e competitivas, a disputa entre partidos mechem com a vida calma das pequenas
cidades, a política ganha um destaque nas conversas de familia, nas ruas e em todo o
cotidiano da cidade, e isso em Jardim do Seridó, não era diferente.
Nisso, cria-se, então, um cenário parecido com as festas de padroeiro no município,
inclusive os comícios; carreatas; churrasco e concentrações atraem até pessoas de outras
cidades – e da zona rural -, que veem a cidade na intenção de participar daquela festa fora de
época, inclusive é através desses ritos que podemos compreender porque em algumas
cidades é repetido o ditado popular que o período eleitoral “é um carnaval fora de época”,
que inclusive atrai até pessoas da capital do estado – ex-residentes ou não, da cidade – que
de alguma forma se sentem atraídas pela alegria e competitividade dessas verdadeiras
“festas” da campanha.
Nesse contexto, com a disputa a cidade ganha outro tom, porque as cores dos partidos
ganham as ruas, nisso as bandeiras; as camisetas; bonés; adesivos; dentre outros tomam
conta da cidade, com o número; nome ou foto do candidato, seja ele para prefeito ou vereador.
E com isso é que podemos ver o como essa representatividade partidária, ganha as
mais diversas formas e sua importância para a campanha de ambos os candidatos, porém
essa construção de imagens e formas não é algo tão no recente, como afirma Maria Helena
Capelato (1996), em seu trabalho sobre a influência da propaganda na construção da
identidade do candidato, onde é diz que “Em qualquer sistema político, a propaganda é uma
estratégia para o exercício de poder,”, com isso aquele candidato que se mostrava forte e
decidido em sua propaganda, passava uma ideia de obter um punho mais forte para
administrar o município. (CAPELATO, 1996)
E além de ganhar espaço na rua, a propaganda política também tinha seu espaço no
âmbito privado, os cartazes do candidato e as bandeiras coloriam as fachadas das casas, e
além disso, a foto do candidato ganhava um local de destaque na entrada da casa, junto a
imagem dos santos de devoção e fotos de familia, fato esse que demostra ainda mais a
representatividade desses ritos do período político.
Outro fator de extrema representatividade na política seridoense, é a velha disputa
entre bicudos e Bacurais, nomenclaturas essas criadas que surgiram no cenário político
potiguar, na década de 1960, gerado pelo bipartidarismo entre o partido Arena (o bicudos
representados pelos antigo PDS e PFL, e atual democratas) e o MDB (os Bacurais hoje
representados pelo atual PMDB). E nesse contexto de disputa entre partidos acabam se

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
940

destacando figuras icônicas que marcam a história tornando-se símbolos de seu poder
político, como se fossem a verdadeira face de seu partido, dentre esses podemos citar Aluízio
Alves, seu sobrinho ex-governador e atual senador da República, Garibaldi Alves Filho, e o
ex-senador Henrique Alves, como sendo símbolos dos Bacurais, e o ex-senador e ex-
governador Dinarte Mariz, ex-governador Tarcísio de Vasconcelos Maia, e o ex-senador José
Agripino Maia, como sendo os símbolos dos bicudos.
E a representação do símbolo de um partido também ocorre em uma escala menor
quando falamos da política municipal, e no caso da eleição do ano 2000, em Jardim do Seridó,
tínhamos além da representação do Bacurau e Bicudo, uma exaltação do caráter particular
de cada candidatado. Os dois candidatos que eram Patrício Joaquim de Medeiros Junior
(conhecido por Patrício Junior) e Manoel Paulino dos Santos Filho (Conhecido com Manoel
Paulino ou seu Manoel), usava de características de sua personalidade para promover sua
imagem política. O senhor Manoel Paulinho era conhecido por “o velho”, referência a sua
idade já avançada – inclusive um de seus slogans de campanha era “velho é o seu
preconceito” -, Já Patrício Junior era conhecido como “o doido”, isso pois o mesmo obtinha
um caráter mais simples e bem desleixado.
Outro fato que é característico e exclusivo desse período, é o uso de elemento
aleatórios como forma de propaganda, exemplificando melhor, o fato é que é bem conhecido
por todos que os símbolos dos Bacurais e bicudos, eram uma ave característica do sertão que
recebe o nome de bacurau e um inseto também característico da mesma região que tem o
mesmo nome de bicudo, mas o candidato Patrício Junior optou por ter um símbolo
diferenciado, no lugar da ave símbolo dos Bacurais, ele tomou simbolicamente a figura do
mosquito como referência a sua campanha619, então devido a isso, era comum em suas
passeatas as pessoas levarem mosquiteiros, e um fato curioso é que até hoje em alguns
postes da cidade existirem figuras de mosquitos que foram “pixadas” neste período eleitoral.
E foram esses fatos, que aliados a uma série de outros fatores, que serão citados mais
a frente, que tornaram essa campanha um marco na história de Jardim do Seridó.

619 Fato
esse que não pudemos identificar o porquê, mas que seguindo informações colhidas na pesquisa, forma
de uma conversa informal, que foi apenas um diferencial de campanha escolhido pelo candidato

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
941

UMA CAMPANHA ICÔNICA


Como já havia sido dito anteriormente, esta campanha, em especial foi um marco na
história jardinense, pois foi nesse período que a campanha tomou um rumo diferente do que
se havia visto em campanhas passadas.
Segundo o que pode ser “colhido” na pesquisa, é que o sistema político de Jardim do
Seridó, a muitos anos vinha sendo administrado por 3 gestores – o que era/e ainda é comum
em muitos lugares esse costumes de gestores fazerem uma espécie de rodizio na
administração do município -, esses seriam Manoel Paulino, Maria José e Edson Medeiros
(filho de um dos donos da Medeiros S/A, grande empresa que tinha sede na cidade), e que
esse sistema já perdurava por muitos anos, além disso esses candidatos tornavam-se muitos
forte politicamente, por obterem o apadrinhamento político de pessoas de renome no estado
(costume esse que era extremamente comum em qualquer sistema eleitoral) e por terem um
bom apoio financeiro de terceiros.
Com isso o mantimento dessas pessoas na gestão da cidade era quase que garantido,
só que segundo relatos da pesquisa, o povo começou a ficar cansado de “ser sempre a
mesma coisa”, então neste contexto, entra o candidato Patrício Junior, que quatro anos antes
tinham sido eleito vereador e acabou conquistando a população, com seu caráter icônico;
simples e bem próximo ao povo, características essas que podemos perceber em quase
todos aqueles ícones que tornam-se símbolos do populismo, seja ele local; regional ou
nacional.
E foi graças a esse caráter populista, que quatro anos após sua candidatura a
vereador, Patrício Junior, se candidata a prefeito, pelo partido PPS, que era coligado com
PMDB e PDT. Porém o mesmo não tinha nenhum tipo de força política de destaque ao seu
lado e nem condições financeiras de custear uma campanha, o que segundo o entrevistado,
foi conseguido por meio de doações e ajudas de pessoas que apoiavam Patrício.
E com isso, o candidato Patrício Joaquim de Medeiros Junior, conhecido popularmente
como Patrício Junior, ganha a eleição prefeito de Jardim do Seridó, e um fato interessante
que pode esclarecer em minha pesquisa é que, dentre a população jardinense se repete a
informação de que a maioria de votos entre Manoel paulino e Patrício Junior, tinha sido de
1000 votos, mas consultando site do tribunal superior eleitoral (TSE), pode-se comprovar
que a maioria foi de apenas 442 votos. Fato esse pode ter sido causado como artificio para
aumentar a maioria de votos de maioria para tornar a derrota de “seu Manoel” e dos bicudos

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
942

mais constrangedora, ou pode ter sido apenas um desencontro de informações, tendo em


vista que as eleições daquele período ainda não possuíam urnas eletrônicas e eram feitas
através de cédula, o que facilitava o erro na contagem dos números.

A PROPAGANDA
Como já foi citado no transcorrer deste trabalho o objetivo principal deste texto era
analisar as mais diversas formas de propaganda do período eleitoral, isso tudo motivado pelo
sentimento nostálgico, causado pelas lembranças desses períodos eleitorais.
E ao rememorar tais fatos, veio na lembrança as mais diversas formas de veiculação
de propaganda dos candidatos, que naquele período estavam presentes em todos os lugares.
Eram bonés; camisetas; adesivos; faixas; panfletos; propagandas na rádio, dentre outros, que
se manifestavam nos mais diversos lugares, nas ruas; nas casas; de forma discreta nos
comércios; em veículos nas ruas e afins.
Nesse quesito a produção da pesquisa foi essencial, pois com ela pode-se averiguar
como essas formas de propaganda persuadiam e ajudavam a incitar o voto dentre os
eleitores jardinense, pois através de uma série de perguntas feitas no decorrer da mesma
pode-se concluir o papel dessa propaganda no contexto da campanha política.
De início a pesquisa produziu uma questão, como esse material de campanha chegava
até a população? Isso só foi respondido logo depois, pois primeiro foi esclarecido a forma
com que chegava, que foi citada anteriormente, na entrevista com Geicifran, depois foi
procurado o ex-candidato Dedé que explicou como e onde era produzido esse material, pois
foi concluído que não era em Jardim, pois sua gráfica mais antiga tem 13 anos, o que é
posterior ao período. Então, o ex-candidato Dedé, afirmou que os santinhos; cartazes e
adesivos eram produzidos pela gráfica que oferecesse o menor preço, isso tudo apenas
depois que a justiça eleitoral expedisse um número de CNPJ, para o candidato para que
aquele material fosse totalmente legal segundo a mesma.
Esclarecida a dúvida foi analisado a entrevista de Geicifran, que ofereceu informações
valiosas, afirmando que o maior representante de propaganda não deixava de ser os carros
de som, que durante o período de campanha percorriam todas as ruas fazendo a propaganda
de determinados candidatos, e além disso um fato curioso e que chama atenção, são as
músicas de campanha, que por vez tinham um tom de parodia dos sucessos da época; as
vezes composições próprias de artistas populares ou em alguns casos eram reflexos de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
943

casos da própria campanha, que nas letras e vozes dos cantores ganhavam um tom satírico
e debochado para incitar os outros candidatos, pois qualquer coisa era motivo para uma
brincadeira ou mesmo motivo de chacota, entre os candidatos, coisas essas que são comuns
em uma política onde ocorre o bipartidarismo. Outro fator que chama atenção, eram as
presenças de artistas regionais nos comícios; músicas de campanha e carreatas, que só
enfatiza mais o caráter popular e social das eleições.
Sobre esses fatos, o entrevistado foi questionado sobre os showmícios que eram
comuns nesse período, tendo respondido que os mesmos eram feitos por artistas regionais
em pequenas participações- tendo seu falecido pai, que era sanfoneiro, participado de
algumas delas e feito algumas composições para esses candidatos-, mas no caso da política
do ano 2000, alguns tiveram mais destaque, por se apresentarem nos grandes forrós feitos
no comitês de Manoel Paulino, que nesse caso era apenas fruto da influência e de seu poder
na política jardinense, bem como de amostra de seu poder aquisitivo naquela campanha.
Além de compreender a questão da propaganda, pode-se perceber que eram os
partidos dominantes e como eles se articulavam em suas coligações. E com isso criar um
paralelo de sua política dos anos 2000 e da política atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho foi extremamente prazeroso em ser realizado, devido a influência desse
assunto no cotidiano, não só do RN e Seridó como um todo, mas também de Jardim do Seridó.
E através do mesmo pode-se delimitar uma base de meios de comunicação de difusão
de propaganda, que ajuda a compreender melhor, a política desse período e a atual, no
quesito de como se articulavam os partidos e suas bases, e qual a influência da propaganda
sobre a política.

REFERÊNCIAS
CAPELATO, Maria helena. Propaganda política e Construção da Identidade Nacional
Coletiva. São Paulo: Revista Brasileira de História, 1996.

PESQUISA COMPLEMENTAR
Disponível em: << http://oestenews-literatura.blogspot.com.br/2009/04/capitulo-xviii.html
>> acesso em 20/05/2017, as 13:45.
Disponível em: << jotamaria-bacuraisebicudos.blogspot.com >> acesso em 22/06/2017, às
12:34

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
944

DO ATIVISMO POLÍTICO À LITERATURA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA


DOS PERIÓDICOS NA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO NORTE
(1849 – 1861)

Andressa Freitas dos Santos620

INTRODUÇÃO
Durante a modernidade, a imprensa ocupa um espaço decisivo na formação de novos
elos nas dinâmicas sociais. Distante das metodologias historiográficas mais tradicionais, os
jornais e periódicos tem se tornado importantes fontes históricas para elaboração de
narrativas sobre temporalidades passadas. Devido a força decisiva do poder da imprensa,
alguns teóricos sociais lhe atribuíram a alcunha de Quarto poder621. Devido esse poder
político representado pela imprensa, nos últimos anos, a pesquisa historiográfica sobre a
imprensa no Brasil ainda é muito importante para formação do sujeito histórico. Um dos
pioneiros dessa análise sobre a imprensa brasileira foi Nelson Werneck Sodré que escreveu
em 1966 a História da Imprensa no Brasil. Sob a perspectiva da metodologia marxista, Sodré
analisa as transformações na escrita da imprensa brasileira associado com relações
produtivas econômicas da sociedade imperial ocorridas no terceiro quartel do século XIX.
Sodré observa que a imprensa que possuía um caráter mais engajado no ativismo
político, elaborações de pasquins e folhetins partidários foi cada vez mais se tornando uma
commodity, uma mercadoria de consumo literário. Na medida em que o sistema capitalista
se consolidava durante o segundo reinado, na qual, a pacificação da política foi algo decisivo.
A burguesia urbana recém-nascida necessitava de uma nova relação com a produção de
periódicos, que eram, anteriormente, o principal instrumento de elaboração de escárnio que
desestabilizava os governos durante a regência, foi se tornando numa forma mais lírica,
menos revolucionária, voltada para acomodação das classes sociais dominantes por meio de
escritas poéticas, literárias de cunho sentimental.

620 Possui bacharelado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2014).
Atualmente é graduanda em História (licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
anddressafreitas@gmail.com.
621 A partir da divisão do poder tripartido de Montesquieu em legislativo, executivo e judiciário, alguns teóricos

sociais colocaram a existência de a IV esfera de poder, para alguns teóricos franceses como Benjamin Constant
essa seria a função da realeza, no entanto para alguns autores britânicos essa alcunha era para se referir à
imprensa. Cf. Schultz, Julianne. Reviving the fourth estate. Cambridge, England: Cambridge University Press.
1998, p. 49.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
945

A característica da imprensa brasileira é bem distinta do restante da América Latina.


Ao contrário da América hispânica que já possuía a imprensa no século XVI, a corte de Lisboa
proibia a existência de um prelo no Brasil, por isso, a imprensa apenas foi introduzida
tardiamente, em 1808, no Rio de Janeiro. Desde essa data algumas outras províncias foram
aos poucos adquirindo novos prelos e se adequando ao mais novo mecanismo de difusão da
informação. Lugares como a Bahia (1811), Pernambuco (1817) e Maranhão (1821) foram
precoces nesse processo.
No Rio Grande do Norte a instalação de uma tipografia ocorre ainda mais tarde, apenas
em 1832, quando edições do jornal O Natalense passaram a ser impressas em Natal.
Concebido pelo padre, educador e político Francisco de Brito Guerra, esse periódico foi o
primeiro do Rio Grande do Norte. Esse evento está contextualizado dentro do Período
Regencial, momento em houve uma eclosão bastante acentuada da imprensa. Nesse
interregno de ares republicano as lutas políticas entre liberais e conservadores foram
intensas. A ampla liberdade de imprensa, antes tolhida pela censura régia, foi uma
característica notável desse período. A efervescência do movimento liberal propiciou a
publicação de inúmeros periódicos, publicados nas províncias em que a imprensa tinha maior
desenvolvimento.
De 1832 a 1837, o periódico O Natalense, do liberal padre Guerra, sobreviveu na
Província do Rio Grande do Norte. O período em que o jornal ficou ativo correspondeu aos
anos marcados pela presença dos liberais no governo do Império. A turbulenta fase que viria
após 1837 conhecida como O Regresso dos conservadores, concentrou o poder nas mãos do
Partido Regressista. A renúncia do Padre Feijó abriu espaço para Pedro de Araújo Lima, mais
comumente conhecido como Marquês de Olinda, assumir a regência do Império até o Golpe
da Maioridade, momento em que Dom Pedro II assumiu o trono graças a manobras do Partido
Liberal. Novamente, o embate entre liberais e conservadores foi uma característica marcante
dessa fase, e também do período que viria a ficar conhecido como Segundo Reinado.
No âmbito da imprensa, o final da década de 1840 pôs em evidência a disputa política
ocorrida entre liberais e conservadores na província do Rio Grande do Norte. Em 1848 eclodiu
a Revolução Praieira, e com ela um fervilhar de periódicos que possuíam características
muito semelhante aos pasquins produzidos no período regencial. O Brado Natalense (1849),
de orientação conservadora, e O Sulista (1849), de inclinação liberal, protagonizaram as lutas
políticas, em menor escala, que ocorria em todo o Império.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
946

A nova fase política inaugurada pelo Golpe da Maioridade foi refletida na imprensa.
Segundo Sodré, o novo contexto político e socioeconômico do Império passava por
transformações. A expansão do latifúndio, o desenvolvimento cafeeiro e uma maior
concentração de escravos forneceu condições para que o governo central se consolidasse
fortemente, aumentando suas riquezas, e sufocando qualquer tipo de revolta que pudesse
surgir. “Não havia, então, nos jornais, espaço para as letras. Estas ficavam relegadas às
revistas e jornais especializados, apenas literários e de vida efêmera quase sempre. Assim, a
imprensa política era uma, a imprensa literária era outra.” (SODRÉ, 1985, p.183).
Essa concentração de riquezas torna a Corte o principal centro difusor de uma nova
estrutura sociocultural que será irradiada e apropriada pelas demais províncias do
Império622. O novo contexto em que a sociedade brasileira está inserida traz um novo tipo de
escrita jornalística. A cisão entre jornalismo de cunho político e outro de características
literárias era bem definido. Pode-se observar que o Primeiro Reinado teve um espaço bem
delimitado com os jornais integralmente voltados à política.
Sob essa perspectiva apresentada por Sodré é possível também observa a produção
da imprensa do Rio Grande do norte. Essa província acompanha, tal como o resto do Império,
essa ruptura na escrita jornalística. A aparição do primeiro jornal literário O Recreio (1861) é
um sintoma dos novos tempos. Esse periódico influenciou o surgimento de novos jornais que
fomentaram o ambiente literário na província. Ao expor tal conjuntura da imprensa norte-rio-
grandense pretendemos traçar uma análise dos jornais, bem como do contexto político e
social da época em que foram produzidos. E, dessa forma, evidenciar as rupturas presentes
na escrita jornalística, produto das transformações econômicas e sociais que permearam o
Primeiro e Segundo Reinado.

A IMPRENSA POLÍTICA E SUAS CARACTERÍSTICAS


Muitas das inquietações políticas que o Império passava foram traduzidas para a
linguagem jornalística. A fase regencial foi testemunha do aumento vertiginoso das
publicações conhecidas como pasquins. Embora muitas publicações tivessem sido lançadas
durante os anos finais do Primeiro Reinado, apenas na Regência esse tipo de jornalismo
encontrará destaque. O aparecimento desses jornais esteve diretamente relacionado às

622 SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
947

lutas políticas no Império. O confronto entre liberais e conservadores era a principal atração
dos pasquins. Os liberais, defensores da descentralização do poder, propunham a derrubada
definitiva da monarquia. Enquanto os conservadores defendiam em suas páginas a figura do
rei e sua soberania como mantedora da ordem social. A linguagem virulenta e ofensiva
parecia um meio comum de como fazer política através dos jornais. A injúria e a violência de
linguagem eram mútuas em ambos os lados.

Tal fisionomia foi traço geral, igualou os que defendiam o governo e os que
faziam oposição. Operavam com igual fúria, com a torpeza elevada ao nível de
norma, com a falsidade utilizada como instrumento de luta, com o insulto
estabelecido como meio de ação. [...] O pasquim trazia para a rua uma política
habitualmente preparada em gabinetes, introduzia o elemento popular
naquilo de que ele havia sido propositalmente excluído. (SODRÉ, 1985, p. 156
– 157).

Quanto aos aspectos técnicos os pasquins geralmente seguiam um padrão.


Compostos por quatro páginas e preço avulso de 40 réis, não eram vendidos na rua. Podia-
se comprar edições em tipografias ou em lojas de livros623. A periodicidade dos pasquins era
incerta, a sua veiculação estava sujeita a um certo conjunto de fatores que poderiam
impossibilitar a sua distribuição. A falta de verbas, por exemplo, era um desses motivos. O
anonimato do editor também era uma de suas características, apesar de que a descoberta de
quem estivesse por detrás da publicação não era muito difícil, uma vez que, por ordem
imperial, todos os jornais deveriam apresentar em suas páginas as tipografias onde foram
impressos.
Quantos aos aspectos de teor jornalístico observou-se que esses jornais possuíam,
geralmente, dedicação a um tema, pessoa, acontecimento. O pequeno espaço destinado à
escrita era muito curto e apenas um tema por vez era retratado. Geralmente esse único fato
era dissecado ao máximo, fosse para elogiar ou para denegrir, sempre associando um
personagem ou determinada situação à política corrente da época. No caso das
personalidades políticas, essas eram alvo de escárnio. Apelidos, episódios embaraçosos, e
acusações geralmente eram atribuídos a essas figuras. A invasão da privacidade e o uso da
violência de linguagem eram características dessas publicações. Obviamente os jornalistas
que escreviam esses jornais eram duramente perseguidos por suas paixões políticas.

623 Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 158.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
948

Cipriano Barata e Antônio Borges da Fonseca foram presos diversas vezes, fato que por si
só não impediu desses dois jornalistas continuarem publicando. Evaristo Veiga fora vítima
de um atentado em sua própria livraria por causa das suas manifestações que provocavam a
oposição.
Após o regresso o combate político nos jornais para os liberais não arrefecera.
Pernambuco, reduto dos liberais mais inflamados que defendiam a República, foi o lugar que
mais resistiu com uma forte imprensa de oposição ao regime monárquico. A imprensa
pernambucana, sempre em evidência por produzir inúmeras edições de jornais políticos, teve
um aumento de sua produtividade no período regencial, momento em que o pasquim foi
amplamente difundido. Após 1837 o pasquim entra em decadência. No entanto, figuras como
Antônio Borges da Fonseca, o padre, professor, político e parlamentar Miguel do Sacramento
Lopes Gama, Antônio Pedro de Figueiredo e José Inácio de Abreu e Lima, durante toda a
década de 1840 alimentaram publicações provocativas que vão culminar na Revolução
Praieira. Embora não fosse mais tão comum o uso desse gênero, os embates entre liberais e
conservadores nunca deixaram o pasquim morrer definitivamente, tal como evidenciado na
imprensa pernambucana. Borges da Fonseca, panfletário incansável, reconhecido por seu
polêmico jornal O Repúblico (1831), publicou diversos pasquins, com destaque para o
Nazareno, ativo de 1843 a 1845, tendo importante papel na deflagração do movimento
praieiro624. Também foram de sua autoria O Foguete (1844), O Verdadeiro Regenerador
(1844-1845), O Espelho (1845), O Verdadeiro (1845), O Eleitor (1846). De vida efêmera, muitos
não conseguiram passar de cinco edições. Foi essa pequena imprensa foi responsável pela
aproximação do povo e a política. Antes da Constituição de 1824 não houvera liberdade de
imprensa no Brasil, por isso a sociedade nunca havia acompanhado e participado da política
de modo tão ativo.

OS EMBATES POLÍTICOS NA IMPRENSA NORTE-RIO-GRANDENSE: O CASO DOS


PASQUINS O BRADO NATALENSE (1849) E O SULISTA (1849)
Em meio a um conflituoso cenário político protagonizado por liberais e conservadores
a província do Rio Grande do Norte protagonizou, em menor escala, essas disputas políticas
por intermédio dos pasquins. O Brado Natalense, de orientação conservadora, órgão do

624 Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 137.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
949

Partido Nortista, não obedecia a uma regularidade no que diz respeito a suas publicações.
Seu primeiro número saiu em 21 de julho de 1849, associado a tensão dos momentos que
antecederam as eleições para Presidente de Província do Rio Grande do Norte. Cabe salientar
que o Partido Nortista também se utilizava de outro jornal, O Nortista, que é citado inúmeras
vezes nas publicações da oposição, no entanto não foi possível localizar estas edições para
incluir na pesquisa. De autoria anônima, O Brado Natalense tinha como único intuito
combater os partidários liberais, que por sua vez também tinham o seu jornal, intitulado O
Sulista, que teve seu primeiro número lançado no dia 12 de julho de 1849. Assim como o
pasquim do partido conservador, esse jornal também não tinha uma regularidade em suas
publicações, era distribuído gratuitamente, tratava unicamente de política, e utilizava seu
espaço para fazer denúncias e se defender de acusações da oposição. Um dos seus autores,
José Carlos Wanderley, era o alvo central dos ataques e denúncias d’O Brado Natalense.
O embate entre os dois jornais se dá devido ao cargo que Wanderley ocupava na
época. Ele foi o presidente da Assembleia Legislativa da província do Rio Grande do Norte,
que no caso da vacância da presidência do chefe de província, ele assumiu diversas vezes o
comando da localidade, entre 1848 e 1850, assumindo o comando da presidência durante
curtos períodos nesse espaço de tempo. Além desses cargos ele havia ocupado a função de
Secretário no Governo Imperial (1836 – 1848), atuou também como deputado provincial em
várias legislaturas, foi deputado geral (1850-1852), Diretor da Inspeção Pública (1845 – 1848)
e Inspetor do Tesouro Nacional (1857 – 1862)625. Ficou bastante conhecido na época por
escrever para diversos jornais. Foi responsável pelo primeiro jornal de Açu, O Açuense de
1867, e que posteriormente se transformou no Correio de Açu de 1873. Foi chefe do Partido
Liberal durante muitos anos, mas já no final do século XIX muda de posição e adere ao
Partido Conservador.
O recorte que abrange o período dos jornais analisados compreende o contexto das
eleições para Presidente de Província. O Brado Natalense surge em 21 de julho de 1849,
pouco antes da realização das eleições que ocorreriam em 5 de agosto. Em seu prólogo é
informado os objetivos gerais do periódico.

625 FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO. João Carlos Wanderley. Disponível em:


<http://adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC000000000108621.PDF>

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
950

Esta folhinha é impressa nesta província, mas pertence a do Rio Grande do


Norte. Órgão do Partido Nortista defenderà a sua dignidade, e sustentará
seus princípios saquaremas nos verdadeiros interesses da Provincia com
toda a energia e patriotismo de um partido cônscio de sua força e boa fé
contra fracos hipócritas e egoístas seos adversarios. Respeitando o governo
de sua politica chamarà a sua attenção sobre o Rio Grande, para descriminar
seos verdadeiros amigos da Provincia para um centro de união, e concurso de
esforço no dia do juiso dos dous partidos, a 5 de agosto. (O BRADO
NATALENSE, p.1, nº1, 21 de julho de 1849).

Nessa primeira edição ficam claras algumas características típicas do pasquim


político. O autor era anônimo, possuía 4 páginas tratando exclusivamente de um único tema
sobre política e, como analisaremos mais adiante, possui um tom pejorativo e de escárnio
quando se refere ao personagem político João Carlos Wanderley, tratado muitas das vezes
como João Molambo pelo Brado Natalense. Nessa edição, o pasquim inicia rebatendo a falsa
ideia de que haveria dois partidos inimigos na província, e que, no entanto, os dois
comungariam dos mesmos princípios políticos. Os do partido Nortista recusam essa ideia
taxando-a de uma grande simulação, pois os Sulistas, segundo o folhetim, hipocritamente
davam apoio aos saquaremas, sem nunca antes terem dado tal apoio, afirmando que no
passado militavam contra a política saquarema.

Dividida a provincia em dois em dous campos inimigos, ambos se desputäo


os mesmos princípios políticos, ambos se aproprião da politica dominante: há
dous partidos sim, mas não há oposição, porque ha identidade de crença.
Quando e onde se vio isto? Não é preciso uma meditação profunda, para
reconhecer que ha ahi simulação, e que esta simulação senäo está no partido
sulista que dominou com praeiros catucas e lusias, e q’ domina hoje com os
saquaremas , não pode estar no partido Nortista, que entäo soffreo e soffre
hoje o seo jugo. (O BRADO NATALENSE, p. 2, nº1, 21 de julho de 1849)

Essa publicação d’O Brado Natalense provavelmente tenha sido motivada por uma
notícia publicada no Diário de Pernambuco sobre a situação política do Rio Grande do Norte,
que tentava persuadir os dois partidos existentes na província a sacrificarem suas rivalidades
em prol do bem da província, pois o jornal O Sulista, jornal redigido pelo grupo liberal cita,
impresso na tipografia de J. A. G. de Magalhães, no Maranhão, em sua edição de 5 de agosto
de 1849, essa publicação do folhetim pernambucano, afirmando, em resposta a notícia, que
não haveria hora melhor para tal união, pois a frente da administração estava o presidente
Benevenuto Augusto Magalhães Taques que tratava de forma equânime os membros de

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
951

ambos os lados do espectro politico. No entanto, responde que o partido Sulista jamais se
aliaria com os nortistas, chamando-os de facção sem princípios e que por meio de seu jornal
espalhavam calúnias contra os liberais e contra o presidente da província.

O Diario de Pernambuco n.149 de 9 de julho passado, fazendo huma synopse


das noticias das províncias do norte e do aparecimento de novos jornaes,
chama attenção dos seus leitores sobre a publicação de dos periódicos –
Nortista – e Sulista – aquelle impresso no Ceará, e este no Maranhão, os
quaes, segundo o pensar do illustre redactor do Diario aque nos referimos,
disputão direito de preferencia ao qualificativo saquarema, e representão por
seu turno os dous partidos, que existem no Rio Grande do Norte sob as
denominações dos respectivos periodicos: e persuadindo o mesmo redactor
a ambos os partidos a sacrificarem no altar da patria todas as suas
rivalidades, e ressentimentos particulares, acredita que chegarão a hum
mesmo acordo, se o actual administrador da Provincia souber conduzir-se de
modo a não deixar perceber mais predilecção por este, que por aquelle dos
dous lados em que se acha a mesma Provincia dividida (O SULISTA, P.1-2, nº6,
5 de agosto de 1849).

O presidente de província, João Carlos Wanderley, citado anteriormente, era


constantemente citado em ambos os jornais. A época da publicação do jornal estava à frente
da província do Rio Grande o baiano Benevenuto Augusto Magalhães Taques, escolhido pelo
gabinete imperial como um nome neutro para a administração provincial, na tentativa de
apaziguar os conflitos entre os membros de ambos os partidos.
Da parte do Nortista, percebe-se, pela leitura d’O Brado Natalense, uma leve crítica ao
presidente por permitir que a permanência dos Sulistas em cargos oficiais, pois sua
incapacidade administrativa estaria contribuindo para a degradação da província, relatando
que a única preocupação dos Sulistas era para com seu próprio bem. E na edição de 21 de
agosto faz críticas ferozes contra o presidente Taques, presidente de província do Rio Grande
do Norte, diante sua forma indecisa e de muitas vezes oferecer suporte aos opositores. E
exorta os norte-rio-grandenses para fazer justiça contra aos maus políticos da província.
Além disso, o jornal acaba ligando o presidente a casos de violência que estariam ocorrendo
durante as eleições, com o intuito de constranger os eleitores a votar, e que o aumento
desses crimes estaria relacionado ao apoio que o presidente estava dando aos Sulistas

E’ Penna que o partido nortista, hoje composto da melhor gente da província,


esteja sendo subjugado por um homem que vende o todo o governo os
interesses da província para gozar do poder! Desgraçada província, q’ não

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
952

acha talvez outra de igual sorte para consolar-se. Mas vamos: os


riograndenses vão abrindo os olhos, e amaldiçoando esta politica
interesseira, e indigna dos verdadeiros patriotas, amigos da prosperidade e
engrandecimento de sua patria. O Rio Grande vai libertar-se por seos proprios
esforços desse jugo infame e aviltante. (O BRADO NATALENSE, p.2, nº 5, 21
de agosto de 1849).

O jornal ainda denuncia que o uso da violência já tinha sido expediente do partido
Sulista em outras eleições. Assim, para justificar esse ponto, o folhetim relembra um caso
de um duplo homicídio ocorrido na porta da Igreja Matriz do Assú cometido pelos parentes
de João Carlos Wanderley na administração de Manoel Assis Mascarenhas. O ocorrido ficou
gravado na memória como Fogo de 40, quando numa eleição para juiz de paz e vereadores,
os grupos Nortistas e Sulistas entraram em confronto, no qual os irmãos José e Francisco
Varela Barca saíram mortos. Os Sulistas são um pouco mais prudentes ao falarem sobre o
presidente da província, nas edições do jornal analisadas, não é encontrada nenhuma crítica
à administração provincial, a única exceção se dá quando da anulação da eleição ocorrida na
vila de Touros, quando o presidente decidiu realizar uma nova votação, pois havia suspeitas
de fraude, criticando a postura do presidente, indagando se o mesmo teria direito por lei para
avaliar a validade de eleições. No entanto, na maioria dos textos, o presidente de província é
mencionado de forma elogiosa, exaltando sua neutralidade e tratamento imparcial diante
dos conflitos entre os dois partidos, enfatizando seu total desinteresse em se envolver com
as questões eleitorais.
Na edição de 5 de agosto de 1849 d’O Sulista o tema das eleições é abordado, trazendo
em seu início a informação sobre as eleições para deputado da Assembleia Geral e para
deputados provinciais que ocorreriam no dia 5 de setembro. Recordando que o candidato
pelo partido Sulista seria o Dr. Casimiro José de Morais Sarmento, elencando as qualidades
que o faria apto para ser eleito como representante da província do Rio Grande do Norte na
Assembleia Geral. Elenca logo após os nomes dos 20 candidatos do partido que iriam
concorrer a vagas de deputados provinciais626.
Na edição do mesmo jornal do dia 15 de agosto de 1849 são publicadas algumas
informações sobre as eleições provinciais ocorridas no dia 5 de agosto. Comunica que em
Natal a mesa era presidida pelo juiz de paz Loyola Barros Francisco Carrilho e mais dois
suplentes Nortistas e que houve um princípio de barulho ocasionado por um Nortista por

626 O SULISTA, 5 ago. 1849, p. 1.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
953

nome de José Lucas. Segundo o jornal das 300 cédulas, 220 eram do sul. No dia 7, na
apuração, se verificou que os Sulistas tinham realmente conquistado a maioria, sem, no
entanto, trazer a informação sobre a quantidade de votos conquistados627. Em Extremoz,
como a maioria dos votos eram dos Sulistas, os Nortistas investiram contra a Matriz
armados, o presidente da mesa Francisco Pereira de Brito se viu obrigado a suspender os
trabalhos por certo tempo. O chefe de polícia, junto com 20 praças, partiu para lá com o
objetivo de manter a ordem durante a realização das eleições. A vitória também em São José,
Papari, Goianinha e Arez628.
O Sulista, por outro lado, evidencia a violência com que tem sido alvo constante. E
culpa o fato do adiamento das eleições na Cidade da Imperatriz do dia 5, para o dia 27 de
agosto, culpa do partido Nortista, que por conta da sua violência havia desencadeado
mudança no dia das eleições.

No dia 5 do corrente tendo comparecido na Igreja Matriz da Cidade da


Imperatriz o Juiz de Paz mais votado do Destricto da mesma José Silvestre
Cardozo para presidir ao acto da eleição a que ali devia proceder, encontrou
no lugar o Delegado de Policia daquelle termo Amaro Carneiro Bezerra
Cavalcante com huma porção de gente armada, e em tal estado de
embriaguez e amotinação que incutia serio terror no animo do referido Juiz
de Paz e de todas as pessoas que pacificamente havião concorrido. Não sendo
possível que n’aquelle estado se podessem incetaros trabalhos da eleição, e
nem aproveitado as admoestações do Juiz de Paz, esgotados por este todos
os meios suasórios ao seu alcance, foi obrigado a retirar-se declarando
addiada a eleição para o dia 27, evitando assim prudentemente que se
realisassem as ameaças que da parte do delegado e de alguns anarchistas do
lugar corrião mesmo anteriormente ao dia da eleição, de pretenderem que
sangue fosse derramado, como altamente havião aconselhado o Nortista e o
Brado, orgãos dessa facção anarchica. (O SULISTA, p. 1, nº 9, 29 de agosto de
1849)

Informa que em muitos lugares não havia um único soldado, o que tornaria impossível
aos Nortistas dizerem que houve uso da força durante as eleições para favorecer o partido
Sulista, já que essa é uma das acusações encontradas nas publicações dos conservadores629.
Já no editorial d`O Brado Natalense, em sua edição de 21 de agosto de 1849, o nortista
começa se vangloriando de que vencerá a região controlada pelos sulistas, partido maior,

627 O SULISTA, 15 ago. 1849, p. 2.


628 Ibid, p. 1.
629 Ibid, p. 2.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
954

através da virtude moral. Os sulistas são acusados de crimes e escândalos. Exorta a unidade
com os demais saquaremas das demais províncias630.
Mesmo com crítica ao sistema eleitoral, os nortistas venceram em muitas regiões,
superando as urnas que teriam “sido viciadas as qualificações”, as quais seriam controladas
por sulistas do sertão e do agreste. “No Porto Alegre, cidade de Imperatriz (Martins), Apodi,
Angicos, Campo Grande, Moçoró, e Assú, onde mora a família desse Wanderley molambo
catuca a vitória foi nossa; e Ella não há de parar abiç hade estender-se à alguns lugares mais
que esperamos noticias.631” Ainda nessa edição o jornal menciona Dr. Amaro Carneiro
Bezerra Cavalcante como importante aliado político da cidade de Imperatriz (Martins). E traz
acusações contra o subdelegado Caldas, o 2º juiz de paz Hirenêo e seu sogro Guará. O jornal
se refere ao João Carlos Wanderley, importante líder dos sulistas, como:

[...] homem sem família, sem prestigio de antepassados, sem virtudes, sem
fortuna e sem ilustração verdadeira cavalheiro de aventura, foi tirado do nada,
e feito uma grande coisa pelo partido sulista, que recebe suas ordens
despóticas com a humildade imprópria de homens livres que são, e
principalmente, de muitos, que são mais capazes do que ele para dirigi-los632
(O BRADO NATALENSE, p.3, nº 5, 21 de agosto de 1849).

Aliás as acusações dominam boa parte das páginas dessas publicações, além da
mencionada acima, encontrada no jornal nortista, o folhetim liberal também trazia forte
denúncias contra membros do partido saquarema. Como afirma Tavares de Lyra (2012) esses
periódicos visavam unicamente à defesa ou combate das candidaturas à Câmara ou Senado.
Entre elas está o relato, na edição de 05 de agosto de 1849, no qual o juiz de direito da
comarca da Maioridade (hoje Martins) João Valentim Dantas Pinajé havia registrado num
ofício enviado a presidência da província em 13 de agosto de 1846, no qual narrava a
amotinação na frente do tribunal do júri, perpetrada pelo capitão Antônio Borges de Andrade,
Manoel Gonçalves Glória e João Chrisostomo Bezerra Cavalcante, tendo ao seu favor os
advogados Francisco Xavier de Menezes, Antônio Jacome de Araújo e o bacharel Fernando
Theofilo Rufino Bezerra de Menezes, bem como o comandante do destacamento daquela vila
Manoel Onofre, o qual, quando procurado pelo delegado José Joaquim de Queiroz e Sá para

630 O Brado Natalense, 21 ago. 1849, p. 1.


631O Brado Natalense, 21 ago. 1849, p. 1.
632 Ibid, p. 4.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
955

por fim a desordem, não foi achado. Ao final da apresentação dos ofícios o jornal traz a
informação que o mesmo juiz que denunciara essa amotinação era correligionário dos
mesmos sediciosos633.
É na seção intitulada de “Correspondência”, do jornal O Sulista, destinada à
participação dos leitores do jornal, na qual os mesmos podem se manifestar de forma
anônima, que as críticas são mais duras. Em uma delas, se dirigindo ao redator da publicação,
narra um caso de um assassinato ocorrido em Goianinha pelas mãos do reverendo local o
padre Manoel Ferreira Borges, ajudado por tal Jacú, no qual, após o recurso interposto pelo
padre, o juiz de direito José Vieira Rodrigues de Carvalho tornou o crime afiançável,
estendendo esse recurso à Jacú. A pergunta do leitor versava se essa extensão do recurso
ao outro participante do crime que não tinha entrado com nenhum recurso era permitida. O
redator responde que o juiz não poderia ter procedido dessa maneira, e que assim o fez para
agradar seus companheiros o padre Borges, Gualdino, Villar, Firmino e outros para comprar
seus votos, já que o mesmo juiz concorreria ao cargo de deputado geral 634.
Em outra, na edição de 9 de agosto de 1849, um anônimo leitor sai em defesa do
advogado Bernardo Eugênio Peixoto que estava sendo perseguido por Amaro Carneiro
Bezerra Cavalcante, juiz municipal e delegado da Maioridade, visto que o citado advogado
detinha um saber jurídico superior ao magistrado635. E no jornal publicado em 15 de agosto
de 1849 sai em defesa do Dr. Casimiro José de Morais Sarmento das acusações feitas por
Bonifácio Francisco Pinheiro da Câmara e José Alexandre Seabra de Melo, apontando os
crimes que cada um dos dois teriam cometido ao longo de suas vida636. O primeiro foi
deputado provincial e presidente de província.
Em alguns momentos o jornal também pode servir como resposta a essas acusações,
aproveitando para dar alfinetadas nos membros do partido Nortista. Na edição de 9 de
agosto de 1849 pede para que se mostrem provas das acusações publicadas pelo jornal
saquarema como o tiro de pistola que Manuel Ferreira e uma emboscada feita pelos filhos
de Manuel de Castro a um escravo. Segundo o jornal, essas calúnias estariam surgindo pelas
magras posições oficiais que o partido Nortista vinha ocupando na administração provincial,
rebatendo que essas calúnias somente algum nortista como o juiz municipal do termo da vila

633 O SULISTA, 5 ago. 1849, p. 2.


634 O SULISTA, 5 ago. 1849, p. 3.
635 O SULISTA, 9 ago. 1849, p. 3.
636 O SULISTA, 21 ago. 1849, p. 3.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
956

do príncipe (atual Caicó) Leocádio Cabral Raposo da Câmara ou um Octaviano Cabral Raposo
da Câmara seriam capazes de tais feitos637. O primeiro foi juiz e deputado provincial por uma
legislatura, o segundo foi deputado provincial em seis legislaturas e por duas vezes assumiu
a presidência da província, eles, junto com seu irmão Jerônimo Cabral Raposo da Câmara
exercerão forte influência no partido Nortista, ficando conhecidos como o grupo dos Cabrais.

MUDANÇA PARADIGMÁTICA NA ESCRITA JORNALÍSTICA: O SURGIMENTO DA


IMPRENSA LITERÁRIA
Sodré observa que a partir de 1850 mudanças estruturais no âmbito econômico e
social passaram a estabelecer novos rumos no Brasil. Com a consolidação da burguesia da
Corte no cenário político nacional, diante das demais, ocorria devido o seu sucesso econômico
cafeeiro na zona da baixada fluminense. Portanto, com o crescimento da produção de café e
do tráfico de escravos “o predomínio da Corte torna-se absoluto, e começam a aparecer e
logo a predominar as figuras políticas oriundas da província do Rio de Janeiro, e outras que
tem na própria Corte sua base permanente.” (SODRÉ, 1981, p. 181-182).
Obviamente essa mudança foi assimilada nos jornais que surgiram na segunda
metade do século XIX. O surgimento da “grande imprensa” está vinculado às transformações
que sucederam após o retorno conservador e a ascensão de D. Pedro II ao trono. A expansão
do latifúndio e da agroindústria cafeeira é responsável pelas mudanças estruturais ocorridas.
Além disso, o âmbito político também estava em transformação. Com a instauração do 12º
Gabinete da Conciliação (1853 – 1857) muitas das paixões políticas tão comuns no Primeiro
Reinado arrefeceram. A revitalização do cenário político, com novos atores sociais em cena,
proporcionou um panorama político menos ofensivo que outrora. Os pequenos jornais de
estrutura mais simples, e com profundo apelo às temáticas políticas, foram desaparecendo
e começaram a ser substituídos por grandes empresas jornalísticas, capacitados para
produção em alta escala e dotados de equipamentos modernos.
O caráter artesanal que por muito tempo caracterizou os jornais fabricados no
Primeiro Reinado deu espaço aos novos processos de produção, que priorizavam a produção
de massas, típico aos moldes do sistema capitalismo que se consolidava no Brasil. A escrita

637 O SULISTA, 9 ago. 1849, p. 2.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
957

jornalística muda completamente, perdendo o caráter do sarcasmo político das disputas


entre as elites locais pelo poder, para tomar uma forma mais lírica de apelo estético e poético.

A IMPRENSA LITERÁRIA NO RIO GRANDE DO NORTE E O JORNAL O RECREIO


O periódico O Recreio surge na província do Rio Grande do Norte em 1861, até então
com uma proposta diferenciada dos outros jornais até então publicados. O inicio dos anos
1850 ainda foi marcado por uma forte linguagem política presente nas publicações, jornais
como O Rio Grandense do Norte (1859), O Jaguarary (1834), O Argos Natalense (1856), A
Liberdade (1856) e O Consititucional Nortista (1851) são os representantes dessa última fase.
Assim como a própria imprensa, as mudanças política e econômicas eram ocorridas na
província eram caracterizadas por uma certa demora em relação a outros locais do Império
mais bem desenvolvidos, e com uma intensa atividade jornalística.
Ao longo do século XIX, o jornalismo perde suas características do ativismo político
dos pasquins e tomam uma forma cada vez mais capitalista nas suas relações de produção.
Os periódicos ganham anunciantes dedicado ao comércio e as escritas começam a reproduzir
novelas de folhetins para gerar um atrativo de maiores vendas para os exemplares. Nasce
dessa maneira o jornalismo como uma forma de empresa capitalista, assimilando as novas
dinâmicas sociais que ocorriam no brasil imperial.

Os pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem


lugar às empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de
equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função. Se é assim
afetado o plano da produção, o da circulação também o é, alterando-se as
relações do jornal com o anunciante, com a política com os leitores. Essa
transição começara antes do fim do século, naturalmente, quando se
esboçara, mas fica bem marcada quando se abre a nova centúria. Está
ascensão burguesa, ao avanço das relações capitalistas a transformação na
imprensa é um dos aspectos desse avanço; o jornal será, daí por diante,
empresa capitalista, de maior ou menor porte. (SODRÉ, 1981, p. 275).

Durante esse período, os aspectos aventureiros dos jornalistas desaparecem. A


escrita colérica de cunho político vai abrindo espaço para formação de uma escrita literária e
poética. No caso da província do Rio Grande do Norte, O Recreio era composto por quatro
páginas, o periódico se declarava “crítico, poético e noticioso”. A existência do jornal não foi

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
958

muito longa, houveram 25 publicações de março a dezembro de 1861 638. A tipografia Dous
de Dezembro, pertencente ao Partido Conservador, era a responsável pela publicação e
distribuição do jornal. A publicação de poemas, crônicas, charadas e enigmas evidenciam uma
preocupação com temas relacionado ao mundo das letras. Além disso, a característica
recreativa também era um dos seus diferenciais. Em algumas de suas publicações foram
publicados, em uma seção intitulada “Recordações de viagem”, relatos que foram veiculados
ao longo de alguns números. Esses relatos eram de viajantes que deixavam registrado no
jornal suas impressões dos locais que em que passavam.

A villa do Principe não há duvida que é hoje uma das melhores do sertão; e
apesar de ser o seu solo nimiamente arido, todavia alli não faltam recursos
porque os seus habitantes empregam todos os seus esforços afim de lhes
serem menos dificeis e penosos os meios de subsistencia. (O RECREIO,
Recordações de Viagem”, p. 2, nº15, 29 de setembro de 1861)

Em uma das publicações fica evidente a frustração de que na província reina um certo
marasmo intelectual. Raríssimas eram as manifestações literárias no inicio da segunda
metade do século XIX. A seção d’O Recreio, Chronica Semanal, trata especialmente desse
fato: “Reina em nossa Capital uma semsaboria já insuportável! Não há divertimentos, nem
distrações, com que possamos nos arredar de nós a pesada melancolia que nos acompanha
em todos os tempos e em todas as partes.” (O RECREIO, p. 2, nº13, 13 de setembro de 1861).
Em seguida, argumenta que nem o memorável dia 7 de Setembro é comemorado, e como
ferramenta de distração, introduz a crônica Desejo Ser Venturoso. A crônica, escrita por
Jesuíno Rodolfo do Rêgo Monteiro é precedida dos seguintes dizeres: “A pouca ou nenhuma
importancia dos factos que aqui se dão, leva-nos a occupar a attenção do leitor com um conto
interessante sob o titulo: Desejo Ser Venturoso.” (O RECREIO, p.2, nº13, 13 de setembro de
1861). É evidente que a o caráter pacato da cidade levou o autor a elaborar um mecanismo de
distração, se utilizando da crônica ele possibilita que o leitor possa sair do desânimo e buscar
alguma finalidade recreativa através da literatura.

638 SILVA, Maiara Juliana Gonçalves. Literatura e Província: o universo literário da cidade do Natal (1961 – 1889).
In: Quipus: Revista Científica das Escolas de Comunição e Artes e Educação. Ano 3, n, 1 dez. 20013/maio.2014.
pp. 99 – 116.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
959

Entre os seus autores estavam João Manuel de Carvalho, Francisco Otílio, Pedro J. de
Alcântara Deão, Jesuíno Rodolfo do Rêgo Monteiro, Isabel Urbano Albuquerque Gondim e
Lourival Açucena639, personagens que contribuíram nos primórdios da literatura potiguar,
em especial Açucena, que ganhou notoriedade e já foi citado como responsável pelo
surgimento da literatura na província.

No século XXI, a produção do crítico literário Tarcísio dos Santos Gurgel foi
inclusa na historiografia literária norte-rio-grandense. No capítulo Província:
uma flor no sobrenome, na obra Informações da literatura potiguar, Tarcísio
Gurgel apresenta Lourival Açucena como “poeta inaugural” e o surgimento
da Literatura no Rio Grande do Norte a partir da segunda metade do século
XIX, de modo ainda tímido. Segundo o autor, em meio ao cotidiano pasmaceiro
e lento da Província, “tornou-se famoso, encontrando acolhedora admiração,
quando do surgimento do pioneiro jornalzinho, um poeta chamado Lourival
Açucena” (GURGEL, 2001, p.12). O “jornalzinho” mencionado pelo autor
corresponde ao periódico O Recreio. De acordo com Gurgel, a fama de Lourival
passou a declinar no final do oitocentos, articulando o seu desaparecimento
tal como a queda da Província. A importância do poeta provincial é atribuída
por Gurgel no que respeita ao seu “pioneirismo no cenário lírico de Natal”.
(SILVA, 2013, p. 104).

Toda essa movimentação inicial que estava começando a reunir homens e mulheres
do universo das letras, era algo inédito, embora alguns autores como Câmara Cascudo640
tenha tentado articular a ideia de uma primeira incursão ao mundo literário com os jornais O
Natalense (1832) e O Estudante (1860), ele aponta O Recreio como fundador principal do
movimento literário, responsável por influenciar o aparecimento de outros jornais do gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da metodologia marxista, utilizada por Nelson Werneck Sodré, é possível
analisar as mudanças ocorridas na escrita jornalística ao longo do século XIX, momento em
que a imprensa se estabelece de forma mais abrangente no Brasil. O caráter artesanal,
combativo e militante dos primeiros jornais do Primeiro Reinado, refletem as tensões
políticas do momento. Os embates que haviam ocorrido no Período Regencial entre
conservadores e liberais fomentaram a maior parte das produções conhecidas como
pasquins, cuja linguagem virulenta, sempre associada a uma figura política, foi marca dessas

639 Cf. SILVA, Maiara Juliana Gonçalves. Op. cit., p. 103.


640 Cf. SILVA, Maiara Juliana Gonçalves. Op. cit., p. 103.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
960

publicações. A ruptura com esse padrão de escrita se deu na metade do século XIX. Sodré
observa que a partir desse ponto a “grande imprensa” de caráter puramente comercial vai
surgir, conjuntamente a isso o autor analisa que a expansão do latifúndio e o grande
desenvolvimento agrícola gerou a ascensão de novos personagens, com diferentes anseios
e interesses. A política deixa de ser prioridade nas publicações jornalísticas, diversificando a
escrita, e a literatura passa a ganhar um novo espaço.
Esse cenário, embora não citado por Sodré, ocorre na província do Rio Grande do
Norte, onde, de forma tardia, toda essa conjuntura por ele analisada foi aplicada. Os ataques
d’O Brado Natalense à figura do João Carlos Wanderley, associado ao jornal O Sulista, é uma
típica representação dos embates polítcos entre liberais e conservadores. A violência de
linguagem, e o uso de epítetos para denegrir a imagem de figuras políticas é marca comum
entre essas publicações. No caso do periódico O Recreio, observa-se uma profunda mudança
na escrita jornalística. A literatura se torna o tipo de publicação mais comum entre os jornais,
e O Recreio marca esse momento como o primeiro jornal do Rio Grande do Norte a ter esse
tipo de direcionamento, passando a influenciar as futuras publicações da província. Ambos
os jornais refletem a forma como a sociedade se estruturava, seus interesses e anseios são
transmitidos na linguagem jornalística de seu tempo. O caso dos jornais da província do Rio
Grande do Norte exemplificam essa ruptura na linguagem jornalística. Embora esses jornais
não façam parte da análise de Sodré, eles pertencem ao contexto das mudanças que se
deram nesse período, e possibilitam o entendimento da mudança das mentalidades que foi
estabelecida em meados do século XIX.

FONTES
O BRADO NATALENSE. Distribuído em Açu. Typografia Amer, Ceará, nº1, 21 jul. 1849.

______. Distribuído em Açu. Typographia Amer, Ceará, nº5, 21 ago. 1849.

O RECREIO. Typographia do Dous de Dezembro. nº 13. Anno I, 15 set. 1864.

_________. Typographia do Dous de Dezembro. nº 14. Anno I, 22 set. 1864.

O SULISTA. Distribuído em Açu. Typographia de J.A.G. de Magalhães, Maranhão, nº6, 05


ago. 1849.

______. Distribuído em Açu. Typographia de J.A.G. de Magalhães, Maranhão, nº7, 09 ago.


1849.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
961

______. Distribuído em Açu. Typographia de J.A.G. de Magalhães, Maranhão, nº8, 15 ago.


1849.

REFERÊNCIAS
MOREL, Marco. O Período das Regências (1831 – 1840). Rio de Janeiro: Zahar. 2003.

______. Independência no papel: a imprensa periódica. JANCSÓ, I. (org.) – Independência:


história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, p.617- 636, 2005

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.

SCHULTZ, Julianne. Reviving the fourth estate. Cambridge, England: Cambridge University
Press. 1998, p. 49

SILVA, Maiara Juliana Gonçalves. Literatura e Província: o universo literário da cidade do


Natal (1961 – 1889). In: Quipus: Revista Científica das Escolas de Comunição e Artes e
Educação. Ano 3, n, 1 dez. 20013/maio.2014. pp. 99-116.

SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. 2ªed. São Paulo: Martins
Fontes, 1983.

WANDERLEY, João Carlos. In: Período Imperial – Presidentes de Província. Fundação José
Augusto. Natal. Disponível em online em:
<http://adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC0000000
00108621.PDF>

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
962

A IMPRENSA E A ADMINISTRAÇÃO DO ESTADO DO GOVERNO DE


JUVENAL LAMARTINE (1928-1930)

Gabriel Barreto da Silveira Oliveira641


Orientador: Raimundo Pereira Alencar Arrais642

Após um longo período atuando como deputado federal, Juvenal Lamartine assumiu
o governo do Rio Grande do Norte entre os anos de 1928 e 1930. Em outubro do seu primeiro
ano de administração, Lamartine realizou a fala que os governadores precisavam dirigir
anualmente à Assembleia Legislativa do estado. Decidiu iniciá-la definindo a “Política
Moderna” - a sua maneira de fazer política. Uma administração eficiente deveria, segundo o
governador, basear-se no “desenvolvimento da produção, dos transportes e do crédito,
semeando a terra, educando o povo, garantindo o trabalho [...]”643. Lamartine constrói a
imagem de um governador esclarecido, promotor do progresso material e intelectual do
Estado. Essa imagem é observada não apenas nessa mensagem, mas também na fala de
intelectuais e publicações em jornais e revistas do período.
Lamartine era natural da cidade de Serra Negra do Norte, filho e genro de líderes
políticos da região. Foi eleito vice-governador em 1903, mas renunciou ao cargo no ano
seguinte para concorrer a uma vaga como deputado federal, que conquistou em 1905,
conseguido reeleições sucessivas até 1926. No ano de 1927 foi eleito senador e, mais tarde
no mesmo ano, para suceder José Augusto no governo do Estado. Tanto Augusto como
Lamartine eram membros do Partido Republicano do Rio Grande do Norte, como foram todos
os governadores desse estado durante a Primeira República, no entanto, seus mandatos
sucessivos representam a consolidação do poder nas mãos de uma nova facção, a do Seridó,
ligada aos interesses da pecuária e do algodão644.
É importante considerar que Juvenal Lamartine não marca uma ruptura profunda em
relação à ação dos governadores que o precederam. Do ponto de vista da modernização do

641 Graduando do curso de História na UFRN. Bolsista de Iniciação Científica CNPq e membro do Grupo de
Pesquisa “Os espaços na Modernidade”. Email: gabrielbso12@gmail.com
642 Doutor em História Social pela USP (2001) e professor vinculado ao Departamento de História da UFRN
e do Programa de Pós-Graduação em História UFRN.
643 FARIA, Juvenal Lamartine. Mensagem apresentada pelo presidente do Estado do Rio Grande do Norte
à Assembleia Legislativa e lida na abertura da primeira sessão da 14ª Legislatura, em 1º de Outubro de 1928.
Natal: Imprensa Oficial do Estado, 1928. p. 4
644 SPINELLI, José Antonio. Coronéis e oligarquias no Rio Grande do Norte: (Primeira República) e outros
estudos. Natal: EDUFRN, 2010. p. 56

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
963

estado e da capital, se observarmos o progresso material da cidade, constataremos que


algumas realizações tinham sido iniciadas no começo do século, sob as gestões de, por
exemplo, Alberto Maranhão (1900-1904; 1908-1913) e Ferreira Chaves (1914-1918), como a
estrada de automóveis do Seridó. Por outro lado, se acompanharmos as crônicas de um
partidário do progresso e homem do governo, como Manoel Dantas, publicadas no jornal A
Republica, até o início dos anos 1920, poderemos identificar inúmeros outros componentes
da vida moderna que foram instalados na capital, como o cinema, a eletricidade, os bondes
elétricos e outras que os grupos dirigentes vinham pleiteando como foram de enfrentar o
problema das secas, como as obras de engenharia, sobretudo de açudagem645.
Ainda assim, Lamartine faz questão de deixar claro que sua administração se
organizaria segundo princípios diferentes dos seus antecessores. Nessa primeira mensagem
ao Congresso Estadual, é colocada ênfase no empreendimento de reformas administrativas.
Segundo o governador, o desenvolvimento da produção deveria passar, necessariamente,
por um maior e melhor aproveitamento das propriedades agrícolas, o que significava que o
regime de latifúndios, que predominava no estado, precisaria passar por reforma, pois era
prejudicial. Entre as reforma enfatizadas estão a organização de serviços para o algodão e
para a fiscalização do sal, a reformulação do regulamento da Fazenda Estadual, a proposta
de implantação do imposto territorial, a criação da Diretoria de Estatística, e uma reforma na
imprensa oficial646.
Derivado dessa administração esclarecida, embasada em princípios de um saber
científico, como a partir do uso da estatística, viria o progresso material do Estado,
comprovado por símbolos da modernidade, como a abertura de estradas e, principalmente, a
presença de aeroplanos.
A proximidade de Natal dos continentes africano e europeu fez com que a cidade se
encontrasse em uma posição privilegiada na rota dos aviadores que atravessavam o oceano
Atlântico durante a década de 1920. Essa proximidade foi explorada pelos grupos dirigentes
locais, num momento de expansão da aviação postal e desenvolvimento do transporte aéreo,
associando-se, para isso, Juvenal Lamartine, ainda quando era senador, em 1927, e grupos
ligados ao comércio de exportação de algodão, como a firma Pedrosa e Warton, como um
modo de articular a produção agrícola local aos mercados internacionais e ao mesmo tempo

645 ARRAIS, Raimundo. Introdução. In: DANTAS, Manoel. Coisas da terra. [no prelo]
646 FARIA, Juvenal Lamartine. Op. cit. p. 5, 8-10, 15-20, 61.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
964

aproveitar a expansão das empresas aviatórias na direção do América do Sul647. Essa


expansão teve início após a Primeira Guerra Mundial, com a França sendo o primeiro país a
estabelecer linhas internacionais passando por Natal. No caso francês, essa expansão se deu
com a criação da Lignes Aériennes Latecoère (servida de início por aviões que eram,
originalmente, de guerra), pouco depois substituída pela Compagnie Generale Aeropostale
(CGA)648. O terreno de 1 Km² para a instalação do campo de pouso dessa companhia foi doado
pela firma M. Machado e Cia.. Localizava-se em Parnamirim, a 18 quilômetros de distância de
Natal649. Um primeiro sinal de investimento do Estado na aviação se deu em 1927, ainda no
governo de José Augusto, quando este ordenou que o prefeito de Natal, Omar O’Grady,
realizasse a construção de uma estrada ligando o centro da cidade ao campo de pouso (o que
faz com que a aviação tenha contribuído para a expansão da cidade na direção sul)650.
Já quando governador, Lamartine demonstrava certeza de que a viação aérea traria
vantagens, não só para o Estado, como para todo o Brasil, proporcionando um meio de
transporte e comunicação rápidos - e assim justificou o oferecimento de um terreno para
fundação do Aero-Clube, afirmando que o Rio Grande do Norte oferecia “condições
excepcionais”651.
Percebe-se que, naquele contexto, a aviação representava uma nova etapa na ligação
de Natal com o restante do Brasil e do mundo, rompendo com o isolamento de outros
tempos. Na narrativa dos republicanos, a capital norte-rio-grandense estivera estagnada
durante todo o período da Monarquia e só conseguiu consolidar sua proeminência político e
geográfico sobre as demais cidades do Estado durante o período republicano, quando teria
se tornado uma cidade digna de ser uma capital desse novo regime. Isso teria sido
conseguido por meio de intervenções como os serviços de reequipamento do porto e a
abertura e construção de estradas de ferro e de rodagem. Mas mesmo que esses
desenvolvimentos tenham obtido algum êxito (como o aumento no número de viagens de
navios de companhias de navegação que passavam pela cidade, ou ser incluída na rota de

647 ARRAIS, Raimundo. Traversées et permanences françaises: les pilotes et les avions de la Compagnie
Générale Aéropostale dans la ville de Natal (Brésil) avant la Seconde Guerre Mondiale). In: Guy Martinière et
Éric Monteiro. (Org.). Les Échanges culturels internationaux: France, Brésil, Canada-Québec. Paris: Les Indes
savantes, 2013.
648 VIVEIROS, Paulo. História da Aviação no Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2008. p. 28
649 Ibid. p. 29
650 ARRAIS, Raimundo. Traversées et permanences françaises… p. 296-298.
651 FARIA, Juvenal Lamartine. Op. cit., p. 61

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
965

uma linha marítima que ia até os portos da Europa)652, Natal estava muito longe da
importância de uma capital do porte do Recife. Até então os dirigentes norte-rio-grandenses
tentavam fazer a cidade alcançar essa proeminência pelos meios nos quais os outros
Estados já levavam vantagem. A aviação, por sua vez, representava uma oportunidade
inteiramente nova para que a cidade realizasse sua inserção no cenário internacional se
estabelecendo com primeira parada das linhas aéreas na América do Sul, a partir das
vantagens geográficas que oferecia, como a proximidade dos continentes europeu e africano.
Essa foi a justificativa utilizada por Juvenal Lamartine para o investimento público na
aviação, como por exemplo, a concessão do terreno que foi utilizado para a construção do
Aeroclube e do campo de aterrissagem:

Certo das vantagens da navegação aerea e do seu proximo desenvolvimento


no Brasil, que, pela sua grande extensão territorial, está reclamando um meio
rapido de communicação, animei a fundação aqui de um aero club,
offerecendo um edifício para a séde e um terreno ao lado para o campo de
aterrisagem653

Ao relatar uma viagem aérea feita pelo Estado num avião da Compagnie Genérale
Aéropostale, a convite da própria empresa, o governador sugere que a vista do alto das
propriedades agrícolas do território norte-rio-grandense o fez reavaliar suas posições sobre
as políticas agrícolas:

Em recente viagem que fiz ao interior deste Estado, por via aerea, certifiquei-
me que não é possivel desenvolver a nossa produção agricola emquanto
permanecer o actual systema de criar. Voando a mais de mil metros de altura,
observei milhares de pequenas areas cercadas para a plantação, a maioria
das quaes são abandonadas no segundo e terceiro anno de trabalho, sem ter
deixado margem alguma de lucros ao plantador [...]654

Utilizando a máquina para romper os limites da capacidade humana natural, o


governador foi capaz de observar uma vasta região de uma maneira nunca antes vista. É a
partir dessa nova perspectiva, que ele extrai uma conclusão: o baixo aproveitamento das
propriedades agrícolas, o que precisava ser revertido, pois o progresso do estado dependia

652 LLOYD Brasileiro. A Republica, Natal, 28 jan. 1907. p. 2.; LINHA Norte Brasil-Norte da Europa. A
Republica. Natal, 18 jul. 1921. p. 1
653 FARIA, Juvenal Lamartine. Op. cit., p. 60
654 Id., p. 6

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
966

de um aproveitamento eficaz dos recursos naturais, como Lamartine frisava na fala ao


Congresso Estadual655. A delimitação das zonas de agricultura aparece no mesmo momento
em que o governador tenta implantar o imposto territorial como forma de combater os
latifúndios e a perspectiva formada pela viagem aérea é utilizada como forma de justificar a
formulação de uma nova política de propriedades. O avião, nesse contexto, é mencionado
como instrumento de governo a serviço do progresso do Estado.
Mas, somada aos aspectos políticos e econômicos, não se pode ignorar o que a
imagem dos aviadores cruzando o céu da cidade representava em sua dimensão simbólica. A
aviação comercial ainda demoraria a se consolidar, de modo que as travessias dos pilotos
eram mais celebradas como feitos corajosos, realizados por figuras audazes, que
simbolizavam a capacidade humana de triunfar sobre as forças da natureza por meio da
máquina - características que simbolizavam o homem moderno do início do século XX656.
Juvenal Lamartine se apropriava dessas características para construção de sua imagem
pública como um homem moderno, que não tinha medo do novo. O governador contava, em
seu círculo de influência, com intelectuais que divulgavam e reforçavam essa imagem, tanto
para o público norte-rio-grandense, quanto para os de outros Estados - associando tais
características, por extensão, ao Estado que governava.
Essa imagem de “governador moderno” teve como um de seus principais
divulgadores Luís da Câmara Cascudo, que assim descreveu Lamartine: “Um presidente que
guia automóvel, viaja de avião, discute literatura, dirige politicamente a campanha do
Feminismo Brasileiro é pouco parecido com as figuras hirtas e que quatrienalmente recebem
dithirambos nos Estados”657. Essa descrição é simbólica da relação de proximidade que
Juvenal Lamatine mantinha com um círculo de intelectuais natalenses, que atuavam nos
periódicos da cidade divulgando a imagem do governador e de sua administração, enquanto
recebiam apoio deste, por exemplo, sob a forma da lei n. 145, para a publicação de livros no
estado. Essa proximidade dos intelectuais desempenhava um propósito essencial para a
administração de Lamartine. Como formulado por Raimundo Arrais: “Ao cercar-se de jovens

655 FARIA, Juvenal Lamartine. Op. cit., p. 4


656 Tomando como exemplo Charles Lindbergh, analisado por Modris Eksteins. cf. EKSTEINS, Modris. A
Sagração da Primavera: A Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 309-
349
657 CASCUDO, Luís da Câmara. apud. ARRAIS, Raimundo. Estudo Introdutório. In: CASCUDO, Luís da Câmara.
Crônicas de Origem: a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. Natal: EDUFRN, 2005. p. 58.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
967

intelectuais, Juvenal Lamartine dava mais uma demonstração de que o governante moderno
se orienta por ideais vigorosos [...] promovendo uma renovação”658.
Os elogios não se limitavam apenas à figura pessoal de Juvenal Lamartine, mas
também às reformas administrativas de seu governo. Cascudo também escreveu uma
crônica sobre a então recém-fundada Diretoria de Estatística, com o objetivo explícito de
divulgar o trabalho ali realizado para o melhor conhecimento das pessoas:

[...] Amphiloquio director da Estatística? Causou surpreza. Aliás a estatística é


a sciencia de methodizar as surpresas. [...] A Directoria Geral de Estatística
está merecendo uma divulgação mais ampla que o seu expediente parco. […]
Os campos cultivados pela escola Juvenal Lamartine dão uma nota discreta e
forte de trabalho seguro e carinhoso.
Agora dos quadros demonstrativos correm syntheses da evolução
econômica dos municípios.659

Ao escrever sobre a Diretoria de Estatística, Cascudo reforçava de maneira positiva


para os seus leitores a iniciativa do governador, além de contribuir com a disseminação
daqueles valores apontados por Lamartine como norteadores de sua gestão, pautada na
racionalidade, na qual os números estatísticos são essenciais para a formulação de políticas
públicas.
Os periódicos da época divulgavam com frequência matérias sobre o governador e a
aviação, relatando viagens pelo interior do Estado e outras partes do Brasil, além de incluir
fotografias do governador posando ao lado de aviões, como no exemplo abaixo:

658 ARRAIS, Raimundo. op. cit. p. 61.


659 CASCUDO, Luís da Câmara. A Nossa D. G. de E. In: ___. Crônicas de Origem: a cidade de Natal nas
crônicas cascudianas dos anos 20. Natal: EDUFRN, 2005. p. 105-108

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
968

Figura 1 - Juvenal Lamartine, de partida para o interior do estado,


posa ao lado do avião no qual estava prestes a embarcar.

Fonte: Revista Cigarra (acervo do Grupo de Pesquisa “Espaços na Modernidade”) 660

Essa fotografia foi publicada na revista Cigarra, em uma matéria que enaltecia o
desenvolvimento da aviação no interior do Rio Grande do Norte e em outros estados da
União. Essa revista circulou na cidade de Natal no período que coincide com o da
administração de Juvenal Lamartine, entre os anos de 1928 e 1930. Suas páginas exaltam as
transformações urbanas e nos costumes vivenciadas na capital do estado sob o impacto das
medidas modernizantes observados no período. Seus editores procuravam exprimir essas
ideias tanto no conteúdo da revista, quanto em sua proposta gráfica, repleta de fotografias
e ilustrações que incorporavam a estética do movimento modernista nas artes. Esse ponto
pode ser percebido na análise da capa da primeira edição da revista661:

660 CIGARRA. Natal, v. 2, n. 4, ago. 1929, p. 48


661 Coincidentemente, essa primeira edição foi publicada no mês do aniversário de Lamartine. cf.
PRESIDENTE Juvenal Lamartine. A Republica. Natal, 9 ago. 1928. p. 1

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
969

Figura 3 - Capa da primeira edição da revista Cigarra

Fonte: Revista Cigarra (acervo do Grupo de Pesquisa “Espaços na Modernidade”) 662

Nesta capa, de autoria do artista Erasmo Xavier, percebemos o estabelecimento de


uma relação entre a aviação e as grandes navegações dos séculos XV e XVI, mais
precisamente entre os feitos dos aviadores e dos navegadores. Tenta demonstrar que os
aviadores que atravessavam o Atlântico da Europa para as Américas no início do século XX
se equivaliam em termos de coragem e heroísmo aos navegadores que realizaram essa
mesma travessia nas caravelas, pisando nas terras do Novo Mundo. Tudo isso é transmitido
por meio de uma ilustração que emprega cores fortes e contrastantes junto à fonte art déco
que estampa o título da revista e as suas informações de publicação, marcando as influências
modernistas no projeto gráfico. A publicação estava em consonância com os ideais evocados
pelo projeto político de Lamartine desde a sua primeira capa. Na quarta página dessa mesma
edição, encontra-se o seguinte texto:

Ergue-te e caminha! Natal precisava sahir desse ambiente de sal e raspadura


[...] aqui, por onde passam todos os vencedores do azul que estão realizando
em audacias de aço e alluminio o sonho mythologico de Icaro, aqui, onde

662 CIGARRA. Natal, v. 1, n. 1, ago. 1928. Capa.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
970

nasceu a maior ideá liberal do seculo, tinha de se movimentar um sangue


novo nos corações parados [...]663

Esse texto tem seu título retirado da expressão em latim que Jesus Cristo teria dito
para um pobre paralítico: “Surge et ambula” (Ergue-te e caminha). Foi escrito por Edgar
Barbosa, que atuou como secretário da revista. Nessa mesma revista também trabalhou,
como diretor, Adherbal de França. Ambos estavam ligados ao jornal do Partido Republicano,
A Republica: Barbosa, publicando textos ocasionalmente; e França, atuando como secretário
do jornal durante o mesmo período em que foi diretor da revista.
Quando a primeira edição estava para ser publicada, A Republica realizou um concurso
entre os leitores para que decidissem o nome que ela receberia, no qual os leitores do jornal
poderiam submeter suas sugestões por meio de um cupom impresso numa das páginas.
Posteriormente também publicou o ranking da votação.664 A apuração do resultado foi
realizada numa cerimônia que “se revestiu de simplicidade”, na qual Juvenal Lamartine
compareceu presencialmente, como também fizeram “muitas familias e cavalheiros”665. Na
coluna ao lado da que anunciava o resultado, o leitor daquela edição do jornal encontrava um
poema de título “Cigarra Humana”, assinado por Palmyra Wanderley. Na página seguinte,
Adherbal França assinou sob o pseudônimo de “Danilo” a coluna “Vida Social”, comentando
elogiosamente o nome escolhido.
Apesar de não haver evidências de que Juvenal Lamartine estivesse ligado
diretamente à revista Cigarra, essas conexões sugerem que essa publicação se relaciona
com uma das iniciativas empregadas em sua administração: a reforma da imprensa. Essa
reforma foi realizada ainda em seu primeiro ano de governo e foi defendida da seguinte forma
na mensagem ao congresso estadual:

Exigindo o nosso meio intelectual um orgão de divulgação mais em


conformidade com o seu desenvolvimento, resolvi reformar a Imprensa
Official, dando uma orientação mais moderna a ‘A Republica’, que é ao mesmo
tempo o orgam de publicação official e o jornal do nosso partido.
Esse jornal, mantendo-se fiel á orientação de seus fundadores, honrando as
tradições do Partido Republicano Federal, tem propugnado em suas
columnas, pela criação de uma mentalidade economica em nosso meio, de

663 BARBOSA, Edgar. Surge et ambula. Cigarra. Natal, v. 1, n. 1, ago. 1928, p. 4


664 O andamento do concurso pode ser acompanhado nas edições da primeira metade do mês de agosto
do jornal. cf. A REPUBLICA. Natal, 01-14 ago. 1928.
665 O CONCURSO da nova revista. A Republica. Natal, 14 ago. 1928. p. 2

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
971

accordo com os principios cardeaes que orientam a actual administração do


Estado. (grifos meus)666

Destacam-se nessa passagem a menção explícita ao fato do governador considerar a


reforma da imprensa uma ação com objetivo de tornar “A Republica” um jornal moderno, o
que faria com que estivesse de acordo com os princípios daquela administração. Lamartine,
ao mesmo tempo em que afirma seu lugar dentro da tradição dos políticos do Partido
Republicano, também procura demonstrar que seu governo estava em consonância com
mudanças que se processavam dentro da sociedade e que, por isso, empreendia ações que
refletissem essas transformações. Essas palavras sobre a reforma da imprensa deixam
claro que, para o grupo dirigente do Estado, o jornal “A Republica” não era um simples meio
para divulgação de fatos sobre o dia a dia sobre o governo e a sociedade norte-rio-grandense
- se convertia, na verdade, num veículo manipulação de interesses e intervenção na vida
social a partir da divulgação de valores compatíveis com sua visão de mundo.
Isso corrobora o que a historiadora Maria Helena Capelato afirmou em seu estudo
sobre a imprensa e a história do Brasil. Para ela, o jornal “resulta de relações de forças
conflitantes e do empenho de seus produtores para impor ao futuro – voluntária ou
involuntariamente – determinada imagem da sociedade.”667. Capelato também observa a
necessidade desse tipo de periódico ter uma apresentação formal adequada para seu público
alvo. O jornal A Republica, fundado em julho 1898 com o objetivo de difundir o ideário do
então recém-fundado Partido Republicano do Rio Grande do Norte, apresentou desde o início
características de uma publicação voltada para uma “elite”, na análise de Capelato, ou seja,
uma apresentação sóbria e com a predominância de textos escritos e linguagem formal668.
Mas o periódico passou por transformações significativas a partir de meados da década de
1920, que pode ser observada se compararmos fragmentos das primeiras páginas dos anos
de 1909 e 1929:

666 FARIA, Juvenal Lamartine. Op. cit., p. 15


667 CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto; EDUSP, 1988, p. 24
668 Ibid. p. 15-17

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
972

Figura 4 - Primeira página do jornal A Republica em dezembro de 1909 (fragmento)

Fonte: Jornal A Republica (acervo do Grupo de Pesquisa “Espaços na Modernidade”)669

Figura 5 - Primeira página do jornal A Republica em julho de 1929 (fragmentos)

Fonte: Jornal A Republica (acervo do Grupo de Pesquisa “Espaços na Modernidade”) 670

Em vez da sucessão de textos diagramados de maneira quase uniforme, muitas


matérias passam a ser inseridas dentro de quadros que lhes conferiam maior destaque; tem

669 A REPUBLICA. Natal. 01 dez. 1909. p. 1


670 A REPUBLICA. Natal. 16 jul. 1929. p. 1

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
973

início o uso de manchetes para chamar a atenção do leitor; e as imagens se fazem cada vez
mais presentes, tanto nos anúncios quanto nas matérias mais importantes da primeira
página.
Ainda assim, com várias reformas e ampla divulgação, revestida com ares de novidade,
fica claro, na fala do governador, que a “Política Moderna” tinha um fundo reacionário. Nas
suas próprias palavras, era uma política feita em reação às “graves perturbações” que
ameaçavam a “comunhão e a ordem social”. A promoção do bem estar seria feita segundo o
caminho que ele mesmo apontava, e não por aqueles “pregados por agitadores ignorantes
dos processos de evolução, ou por exploradores das classes mais desfavorecidas”671.
Quem seriam esses agitadores e exploradores aos quais Lamartine se referia? Por
mais que o poder político tenha mudado de mãos, da oligarquia Maranhão para o grupo do
Seridó, essa transição se deu sem rupturas e dentro de um grupo com uma visão de mundo
relativamente homogênea672. A modernidade, tão exaltada por Lamartine e seu grupo de
intelectuais, também se manifestava numa sociedade cada vez mais complexa, com mais
espaço para o aparecimento de grupos de oposição. Um primeiro núcleo de oposição foi
formado por jovens de classe média articulados com o movimento operário, sob a liderança
de João Café Filho. Outro núcleo consistiu numa dissidência dentro do grupo hegemônico,
com um novo grupo político necessitando de mais espaço dentro daquele regime para poder
ascender. Esses grupos estiveram aliados no contexto da Revolução de 1930, que acabou
depondo todos os governadores. Foi nesse conflito entre “modernos”, previsto desde a
abertura de sua primeira fala, que o projeto de Lamartine que teve seu fim.

REFERÊNCIAS
ARRAIS, Raimundo. Estudo Introdutório. In: CASCUDO, Luís da Câmara. Crônicas de Origem:
a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. Natal: EDUFRN, 2005.

___. Introdução. In: DANTAS, Manoel. Coisas da terra. [no prelo]

___. Traversées et permanences françaises: les pilotes et les avions de la Compagnie


Générale Aéropostale dans la ville de Natal (Brésil) avant la Seconde Guerre Mondiale). In:
Guy Martinière et Éric Monteiro. (Org.). Les Échanges culturels internationaux: France,
Brésil, Canada-Québec. Paris: Les Indes savantes, 2013.

CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto; EDUSP, 1988.

671 FARIA, Juvenal Lamartine. Op. cit., p. 3-4


672 SPINELLI, José Antonio. Op. Cit., p. 55-59

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
974

EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera: A Grande Guerra e o nascimento da Era


Moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 309-349.

SPINELLI, José Antonio. Coronéis e oligarquias no Rio Grande do Norte: (Primeira


República) e outros estudos. Natal: EDUFRN, 2010.

VIVEIROS, Paulo. História da Aviação no Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2008.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
975

HISTÓRIA, IMPRENSA E CRIME: NARRATIVAS DE O


MOSSOROENSE SOBRE O CRIME EM MOSSORÓ/RN NOS ANOS
FINAIS DO SÉCULO XIX (1872 – 1902)

Antonio Robson de Oliveira Alves673

INTRODUÇÃO
O período que compreende o final do século XIX e início do XX é arraigado por
movimentações no corpo social, transformações na economia e implantação do regime
republicano no Brasil. Nesse processo de mudanças um dos veículos que se instala como
difusor dos ideários prevalecentes no período é o jornal. Diante disso, o crescimento das
cidades iria propiciar uma miscelânea de notícias que fomentariam o caráter confluente de
uma sociedade em ebulição. Problemas sociais tornaram-se recorrentes nesse momento, ao
lado da ineficiência do governo central em lidar com o alarmante número de conflitos
internos que se proliferavam nos estados do Norte, e as disputas políticas recorrentes nos
estados do Sul e Sudeste do país.
Nesse cenário, a imprensa vai se firmando como agente motriz na propagação de
notícias que iriam contribuir na massificação de estereótipos sobre determinadas classes
sociais, bem como auxiliar na propagação de enunciados sobre ordem e moral que
adentrariam ao imagético citadino. Destarte, o jornal se coloca como guardião das tradições,
disseminador da lei e da discrição. Com isso, o aumento das cidades coloca um novo problema
a ser combatido: a criminalidade.
O final do século XIX testemunha um crescimento exponencial do crime, correlato a
isso, temos problemas sociais que se formularam depois da abolição da escravidão, ocorrida
em 1888. Muitos cronistas policiais atribuíam aos negros674, recém libertos, a razão do
crescimento da desordem e caos nos grandes centros, como é o caso de cidades como Rio de

673 Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Atualmente é mestrando
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte e bolsista do Programa de Demanda Social da CAPES.
674 Ressaltamos, como expõe a historiadora Martha Abreu, que as categorias de cor e raça são criações

historicamente datadas. A autora nos faz lembrar que a denominação “negro/os”, é geralmente utilizada para
designar os segmentos não-brancos. Diante disso, nesse texto, utilizamos a palavra no mesmo sentido. Ver:
ABREU, Martha. Crianças negras e crianças problemas no pensamento de Nina Rodrigues e Arthur Ramos. In:
RIZZINI, I. (Org.). Crianças desvalidas, indígenas e negras no Brasil: cenas da Colônia, do Império e da República.
Rio de Janeiro: EDUSU, 2000.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
976

Janeiro e São Paulo675. O estereótipo do negro com uma natureza cruel é bastante comum
nesse período. Muitos jornalistas viam os negros e mestiços como desalmados e
desordeiros, designações comuns no período da escravidão. “Para os ex-senhores e atuais
patrões dos negros a criminalidade dos libertos seria explicada pelos ‘vícios’ adquiridos com
a escravidão”676. Nesse sentido, os negros traziam consigo a herança do escravismo, a qual
os faria cometer várias ações criminosas que enchiam os noticiários, revelando o tipo de
indivíduo que deveria ser combatido.
No caso do Norte do país, o início do século XX traria novos sujeitos para os
noticiários, temos como exemplo os flagelados das secas, recorrentes nessa região, bem
como o banditismo no sertão, sendo o cangaço seu maior difusor. É nesse cenário que os
pequenos jornais iriam proliferar notícias sobre estes indivíduos criando diversas caricaturas
imagéticas sobre eles, expandindo o medo e o temor nos centros urbanos em
desenvolvimento e nas pequenas cidades que faziam fronteira com estes. Baseando-se nisso,
voltaremos nosso olhar para a cidade de Mossoró/RN tomando como fonte principal as
narrativas dos jornais locais, visando entender a dinâmica citadina e a relação desta com os
crimes.

DISCUTINDO CONCEITOS: VIOLÊNCIA E CRIME NO BRASIL


Eric Hobsbawm, fazendo um panorama do que seria as regras da violência, aponta que
ela – a violência – impõe-se às pessoas, que está presente em nosso cotidiano e é vista de
forma onisciente nos meios de comunicação e nos espetáculos. O autor ainda destaca que a
violência é um fenômeno social e que existe sob uma variedade de formas677. Pensando
nisso, olhamos para o processo de mudanças que ocorreram no curso da história e
percebemos as variadas transformações que advieram sobre a violência e sua relação com
os sujeitos.
A Europa Ocidental é um exemplo de sociedade que passou por mudanças no tocante
a violência. Segundo, Muchembled, houve uma redução nas mortes violentas nessa parte do

675 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880 – 1924). 2ª. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001
676 OTTONI, Ana Vasconcelos; SANT’ANNA, Marilene Antunes. O crime no Brasil através dos “cronistas

policiais” da imprensa. In: Os crimes e a história do Brasil: abordagens possíveis. Gian Carlo (Org.). Maceió:
EDUFAL, 2015, p. 313
677 HOBSBAWM, Eric. As regras da violência. In: Pessoas Extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. Eric

Hobsbawm. – São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 318

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
977

mundo e isso deveu-se a lenta evolução de ordem cultural que aquela sociedade vivenciou
durante séculos. Muchembled, discorre que houve uma

Diminuição dos conflitos opondo jovens do sexo masculino, os da elite, que


se matavam, frequentemente, em duelo, assim como os do povo, que
multiplicavam as confrontações viris e os combates com arma branca nos
lugares coletivos. As explicações devem ser buscadas na mutação radical da
noção masculina de honra e no apaziguamento das relações humanas,
primeiramente no lugar público, depois, mais lentamente, na vida familiar,
durante um processo de “civilização dos costumes”, de que Norbert Elias se
fez o teórico678.

Como o autor aponta, não foi um processo lento, ao contrário, levou séculos para que
houvesse um remodelamento nos comportamentos individuais, levando os indivíduos a
modificarem suas relações e com isso, a diminuição das mortes violentas passou a ser uma
realidade. Nesse viés, podemos tomar Nobert Elias como referência para se pensar às
mudanças comportamentais ocorridas na Europa no processo de longa duração onde teve
os costumes como lócus principal para tal ocorrência. Elias, é conhecido comumente pelo
seu modelo de abordagem que pensa às mudanças de costume na Europa conhecido como
processo civilizador679. Esse modelo revela que durante vários séculos houve modificações
na estrutura da sociedade, mudanças psicológicas que se materializaram em novos modos
de comportamento. Essa metamorfose, sofrida pela Europa trouxe consigo uma diminuição
dos impulsos para uma racionalização do modo de se viver em sociedade.
No caso do Brasil, segundo, Deivy Carneiro, aplicar a teoria elisiana para se estudar a
violência e entender seu funcionamento é extremamente complicado devido a fatores que
vão desde à má conservação de documentos, como é o caso dos processos criminais 680,
assim como o vasto território que impede abordagens macro-históricas. Todavia, o autor
salienta para a necessidade de estudos que fomentem uma preocupação maior em se
entender a violência por parte de pesquisadores, segundo ele,

678 MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2012, p. 9
679 ELIAS, Nobert. O processo civilizador: a formação do estado e civilização. Vol 2. São Paulo: Zahar, 1994
680 Em um artigo singular, Marcos Bretas e André Rosemberg, apontam para o descaso com os arquivos

policiais que diante da má conservação impossibilita à pesquisa e consequentemente seu conhecimento as


gerações posteriores. Ver: BRETAS, Marcos; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e
perspectivas. TOPOI, v. 14, p. 162-173, 2013

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
978

Os historiadores brasileiros deveriam ser capazes de conectar as mudanças


de longa duração e as sensibilidades e emoções acerca da violência com o
processo de formação do Estado e, em particular, com a gradual imposição
do monopólio da violência pelo Estado681.

Nesse contexto, devemos tomar algumas fontes que possibilitem entender a relação
entre o crime/violência e a sociedade. Segundo, Pesavento, há um manancial fértil de fontes
a serem desbravadas pelos historiadores do crime. Para ela, três caminhos podem ser
seguidos no que concerne as fontes: o jornal, que estetiza o fato, reorganiza a narrativa,
encadeia o enredo, exprime um juízo de valor; a documentação policial, que indica o ambiente
da ocorrência do fato, se o mesmo foi registrado na delegacia por denúncia ou flagrante, dá
conta das queixas e expõe os diferentes depoimentos das vítimas, agressores ou
testemunhas; e, por último, o processo judicial, que ao lado da documentação policial faz
parte de uma teia de informações que são produzidas pela justiça criminal, no processo
judicial temos como principal contribuição a possibilidade de cruzar este caminho com os
outros já abertos. Nesse caso, os depoimentos são mais longos, há múltiplas versões para
um mesmo fato, e é possível acompanhar também, mais de perto, a intervenção direta da
justiça, com suas razões e fundamentações teóricas682.
Baseados no leque descrito por Pesavento temos um almanaque a ser pesquisa.
Todavia, como podemos denominar o crime? Segundo o historiador francês Dominique
Kalifa, o crime é um acontecimento histórico popular683. Suas implicações estão além do
momento em que este ocorreu, ao contrário, muitos crimes e criminosos ficaram registrados
nos anais da história684. Sendo assim, nosso olhar deve repousar atentamente sobre as

681 CARNEIRO, Deivy Ferreira. Apontamentos para uma História Elisiana da violência no Brasil. In: Célia Nonata
Silva; Francisco Linhares Fonteles Neto. (Org.). Discere criminum: crime, violência e poder – uma abordagem
nacional. 1 ed. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017.
682 PESAVENTO, Sandra. Crime, violência e sociabilidades urbanas. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, N.4. 2005,

p. 26
683 KALIFA, Dominique. História, crime e cultura de massa. In: Topoi, Rio de Janeira, vol.13, n.25, jul/dez. 2012,

p.187
684 Como exemplo de crimes que abalaram seu tempo e resistiram ao esquecimento, temos o caso do

desembargador assassino Pontes Visgueiro, no Maranhão, e os assassinados convertidos em linguiça na rua


do Arvoredo, em Porto Alegre. Para saber mais, ver: ELMIR, Cláudio Pereira. A História Devorada: no rastro dos
crimes da Rua do Arvoredo. Porto Alegre: Escritos Editora, 2004; ELMIR, Cláudio Pereira; MOREIRA, Paulo
Roberto Stuadt. Odiosos Homicídios. O processo 5616 e os crimes da Rua do Arvoredo. São Leopoldo:
Oikos/UNISINOS, 2010; FREITAS, Décio. O maior crime da terra: o açougue humano da Rua do Arvoredo, Porto
Alegre 1863 – 1864. Porto Alegre: Sulina, 1996; PESAVENTO, Sandra Jathay. Catarina come-gente: linguiça,
sedução e imaginário. In: ______. Os sete pecados da capital: São Paulo: Hucitec, 2008, p. 23-90. Sobre o caso
Pontes Visgueiro, ver: MORAES, Evaristo de. Um erro judiciário: o Caso Pontes Visgueiro. Rio de Janeiro: Editora
Ariel, 1934.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
979

fontes que se alastram sobre os crimes, visando desnudar não apenas o ocorrido, mas
entender os personagens da história, quando possível, e perceber as entradas que tais
acontecimentos têm na sociedade e a influência que esses exercem sobre essa.
O final do século XIX iria testemunhar a gênese da Criminologia, a qual voltava-se a
estudar o criminoso. Essa “ciência”, rapidamente entrou no espaço acadêmico e se tornou
conhecida e utilizada pelos vários pesquisadores e pensadores daquele período. O desejo era
mensurar as ações e características que diferenciavam o homem criminoso. Cesare
Lombroso foi o grande expoente dessa ideia e ao longo de sua vida debruçou-se sobre
estudos que tinham como intuito provar a existência de um “delinquente nato”, todavia, suas
teorias que se embasavam nos traços físicos dos sujeitos criminosos deram lugar a outra
perspectiva: o delinquente possuía um “micróbio” do crime e que só seria ativado em
condições específicas e ambientais685. Esse contexto é basilar para se entender o olhar que
se tinha dos sujeitos que praticavam crimes no final do século XIX, assim o século XX iria
testemunhar mudanças no tocante ao se entender e pensar o crime.
Um dos distanciamos da teoria lombrosiana, foi o modo de se pensar o criminoso da
escola sociológica de Chicago, a qual abordou o crime dando ênfase no criminoso, no urbano
e, consequentemente, nas crescentes taxas de criminalidade e delinquência. Essa vertente
repousou sua atenção sob dados estatísticos e qualitativos, abrindo a possibilidade para se
pensar o crime como produto social do urbanismo e das modificações que são concernentes
desse espaço686.
No caso do Brasil, a criminologia foi recebida com pompa e alegria entre os
intelectuais do fim do século XIX. As ideias de Lombroso começaram a ser discutidas e seus
ideais abraçados por muitos médicos e juristas do período. A Faculdade de Direito do Recife
se estabeleceu como principal proponente dessa teoria. Dessa feita, a geração que se formou
tinha como escopo as teorias criminais lombrosianas. Todavia, na Europa, essas teorias já
tinham caído em desuso devido ao fracasso em tentar explicar o criminoso por
características internas e físicas, no caso do Brasil estas serviram para identificação criminal
e para manter muitos segmentos da sociedade sob direta vigilância e olhar moderador do
Estado.

685 FONTELES NETO, Francisco Linhares. O Impresso e uma Visão Caótica da Cidade de Fortaleza na Década de
1920 (UFPB). Prim@ Facie, v. 15, 2016. p. 546
686 Ibidem, p. 549

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
980

O século XX iria expandir o uso da força policial sob muitos segmentos


marginalizados e estereotipados, os quais reforçam uma visão ainda muito particular dos
poderes vigentes de teorias que veiculam imagens sobre sujeitos baseados na cor da pele e
do local onde habitam687. É nesse período que no Nordeste iria se fomentar discursos contra
os flagelados, sujeitos que fogem a higienização do período nos grandes centros, e do
banditismo que floresce dentro do mandonismo do coronelismo nesta região688. O caso que
iremos enfatizar é a cidade de Mossoró/RN, situada no Estado do Rio Grande do Norte e que
dentre muitas outras viu sua história ser redigida por periódicos que noticiavam
cotidianamente o caos perpetrados por indivíduos que fugiam as normas vigentes e a ordem,
prerrogativas recorrentes nas páginas dos jornais.

CRIMES NARRADOS EM MOSSORÓ/RN NO INÍCIO DO SÉCULO XX


Os primeiros anos do século XX é estabelecido como crucial para se entender a
expansão da imprensa no Brasil, fato que já era percebido na Europa desde metade do século
XIX. No caso brasileiro, temos fatores que propiciariam tal propagação: o crescimento das
cidades, o processo de mudança no regime político, expansão das indústrias e consequente
alterações nas relações sociais, bem como aumento da criminalidade. Os jornais iriam
acompanhar todas essas mutações e proferir discursos em torno dessas. A criminalidade
recorrentemente aparecia nas páginas dos impressos com relação a fatores variados, como
é o caso da manchete a seguir do jornal carioca Correio da manhã:

Um corpo negro guardando alma ainda mais negra: duas crianças e um homem
vítimas de terrível degenerado.
(...) O negro Frederico Moraes, de 26 anos, (...) sem profissão e conhecido
desordeiro (...) sacando de uma navalha, atirou a lâmina de encontro ao ventre

687 BRETAS, Marcos Luiz. A Polícia Carioca no Império. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.12, n.22,
p. 219-234, 1998; ______________. Polícia e Polícia Política no Rio de Janeiro dos anos 1920. Arquivo História
da Revista do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v.3, p. 25-34, 1997.
688 Quando nos utilizamos do termo “Nordeste”, o fazemos entendendo que esse é cunhado no início do século

XX, mais necessariamente após a década de 1910. Para saber mais, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz
de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 Ed. Ver. São Paulo: Cortez, 2009. No que concerne ao período de
higienização em que os grandes centros passaram, ver: CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de
Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1987; SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da
Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. 3. ed. São Paulo: CosacNaify, 2010. Sobre o coronelismo e o sistema
que se arregimentou em torno desse, ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo, editora
Alfa-Omega, 1976; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o Liberalismo
Oligárquico. In: NEVES, L. A.; FERREIRA, J. (Org.). O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente. Belo
Horizonte: Civilização Brasileira, 2003, v. V.1, p. 89-120.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
981

de Manoel ferindo-o (...). O corpo do morto não escapou, sendo sacrilegamente


atirado ao chão. (...) Fugiu o miserável (Frederico Moraes), correndo,
desatinadamente, e entrou no prédio n. 26, residência do trabalhador da
Alfândega Joaquim Juvêncio. (...)
Ali chegado, entrou em um quarto, onde se achavam adormecidos o pequeno
Antenor, de 6 meses, e a menina Maria Augusta de 5 anos, filhos do infeliz
Joaquim Juvêncio.
Não teve coração o perverso e covarde negro. Alçou a navalha, feriu Antenor
na região occipital, e depois, como terrível fera, lançou-se sobre Maria. (...) Após
o delito, o famigerado negro procurava fugir, a todos ameaçando. (...) 689

Visualizamos um trecho que expressa todo o estigma de um período, levando-nos a


ter raiva do criminoso e criar uma aproximação com a vítima. As narrativas dos crimes que se
deram no início da República revelam todo um estereótipo criado sobre a figura do negro,
revelando características que o identificava como desordeiro e vadio. O negro Frederico
Moraes, como a notícia revela, é um sem profissão, desordeiro conhecido, a narrativa
apresenta Frederico como uma fera, que não tem coração, covarde e perverso. Tais
enunciados dão voz aos sentimentos que iriam se formular diante daquela ocorrência e o
jornal se torna um veículo singular no que concerne expandir esse julgamento.
Esse período marca a transformação da imprensa em uma empresa capitalista e as
notícias de crimes adentraram o cenário citadino sob vários títulos, os quais traziam em sua
égide as mais sangrentas e sádicas notas que explicitavam o grave caos em que as cidades
estavam vivenciando. Nesse cenário, é possível verificar a importância que os impressos vão
ganhando conforme estes conseguem noticiar ocorrências do cotidiano, inserindo em suas
narrativas variados estilos linguísticos que chamavam a atenção do público leitor.
Quando voltamos nossa atenção para a região Nordeste, notamos uma similitude com
as descrições dos demais jornais. Fonteles Neto, nos aproxima dessa realidade ao descrever
o cenário de Fortaleza, capital do Ceará, nos anos iniciais do século XX, evidenciando o
surgimento de uma nova tendência nos jornais: as crônicas policiais. Segundo ele,

Na capital cearense, esse novo gênero se consolidou como componente diário


do jornal no início do século XX, visto que, até então, os jornais enfatizavam
nos noticiários o debate político, as disputas entre os partidos, muitas vezes
acompanhadas de crimes de vingança e pistolagem. O tema do crime já era
abordado, mas sem a diversidade que a própria dinâmica urbana veio a
fomentar. A delinquência e os delitos que se espraiaram no espaço citadino,

689 Correio da Manhã, 06/03/1911

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
982

estampados em letra de forma, revelavam a preocupação com a manutenção


da ordem690.

Nesse contexto podemos verificar a preocupação em abordar o tema do crime


presente na capital do Ceará. Os crimes de pistolagem, relacionados ao campo político
asseverou-se como um dos polos de notícias recorrentes nesse período, onde tais embates
circundou o imagético dos grandes centros da região Nordeste com bastante assiduidade691.
Nesse cenário, duas temáticas que também ganhariam expressão nas notícias relacionadas
a crimes foi o flagelado, figura presente nos impressos desde o final do século XIX, e o
bandos que se formavam no sertão e espreitavam os centros urbanos, causando medo na
população.
O Ceará foi um dos estados mais afetados com o problema da seca. A multidão de
flagelados que adentrava à capital, Fortaleza, evidencia o caos em que esses sujeitos
estavam vivendo. Frederico de Castro Neves, nos informa que houve três ondas de seca no
final do século XIX (1877, 1889, 1900), seguida pela de 1915692. Segundo o autor, a “invasão”
de retirantes nos anos de 1877-1880 foi alarmante, como cita na seguinte passagem:

A “invasão” de retirantes em 1877-80 – que, segundo alguns observadores,


chegou a mais de 114.000 quando a população da cidade mal atingia 25.000
pessoas – provocou uma das desordens urbanas e sociais mais graves em
Fortaleza já experimentou. A presença destes pobres, famintos e doentes, no
mais grave estágio em que ainda é possível sobreviver, exigiu uma imediata e
radical mudança nos costumes e comportamentos, nos hábitos pessoais e
cotidianos e, especialmente, no uso social de equipamentos urbanos, afetando
profundamente a vida dos habitantes da capital693.

Esse cenário revela os problemas que a população de Fortaleza estava encarando


com a presença dos flagelados. Um dos medos recorrentes no tocante à massa que

690 FONTELES NETO, Francisco Linhares. O Crime do Boulevard: a sensacional e misteriosa morte de Edith
Davis. Mossoró – RN: EDUERN, 2017, p. 16
691 Um dos assassinatos mais noticiados e que tomou expressão nacional foi o do governador da Paraíba, João

Pessoa, durante anos houve uma rixa entre este e alguns adversários políticos da época, fato que culminou em
sua morte, fato que possibilitou à abertura de novos ideários para a política e repensou a influência dos
coronéis. Cf. SILVA, Giselda Brito. Sangue e violência na política brasileira: o assassinato de João Pessoa. In: Os
crimes e a história do Brasil: abordagens possíveis. Gian Carlo (Org.). Maceió: EDUFAL, 2015, p. 115-144
692 Sobre a seca de 1915, ver: RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração

na seca de 1932. – Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014. _______________________. Engenhos da


memória: narrativas da seca no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.
693 NEVES, Frederico de Castro. Estranhos na Belle Époque: a multidão como sujeito político. Trajetos (UFC),

Fortaleza, v. 6, n.6, 2005. p. 144

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
983

abarrotava às ruas, era o do aumento da criminalidade devido estes sujeitos encontrarem-se


em estado deplorável e famintos. Com isso, os jornais iriam focalizar o caos perpetrado pelo
problema dos flagelados e colocar esses sujeitos como principal causa da desordem e falta
de higienização de Fortaleza, fato que é percebido também em Mossoró/RN.
Mossoró durante o final do século XIX e início do XX, configurou-se como um empório
comercial. Essa cidade, localizada entre a capital do Estado, Natal, e a capital do Ceará,
Fortaleza, viu seus anais serem redigidos inicialmente apenas como uma cidade de
intercurso, sem grande expressão, todavia, conforme a produção de sal crescia, bem como
com a chegada de empreendedores e a construção da estrada de ferro, passa por uma
dinamização em sua economia, fator que possibilitou o crescimento em sua importância em
escala regional e estadual694. Nesse panorama, a cidade começa a enfrentar problemas com
o contingente de flagelados que fugindo da fome rumavam aos centros urbanos em busca
de subsistência695.
A imprensa mossoroense visava mostrar o caos que a cidade estava passando,
tomando como base de crítica o governo da República, como fica evidente na notícia a seguir:

Na noite 11 do corrente, roubaram o armazém de viveres do Sr. Miranda.


Começamos a experimentar as consequências do indiferentismo do governo da
Repúblca, que não garante a vida ao povo, a quem deixa morrer a fome, e assim,
autoisa o roubo, e quanta espécie de crime se possa imaginar. Agora o roubo, a
noite e as occltas, mais tarde, o ataque de dia, e a mão armada!
Maldição!696

É justamente esse o receio da imprensa: que os flagelados comecem a roubar, e


cometer mais delitos baseados na sua fome e miséria. O jornal não mede palavras ao colocar
a culpa sob os auspícios do governo da República, que, segundo essa, deveria tomar conta
desses indivíduos e por consequência ajudar a cidade a enfrentar a seca e a fome.
Os jornais locais, O Mossoroense e o Comércio de Mossoró, eram periódicos que
traziam para a população os anseios e problemas citadinos. O Comércio de Mossoró, teve
duração de apenas cinco anos, de 1902 até 1907, tinha como intuito publicar notícias voltadas

694 ROCHA, Aristotelina Pereira Barreto. Expansão urbana de Mossoró (período de 1980 a 2004): geografia
dinâmica e restruturação do território. – Natal, RN: EDUFRN Editora da UFRN, 2005. p. 23 – 46
695 Segundo, Felipe Guerra e Theóphilo Guerra, em Mossoró existam, no fim do dezembro de 1877, cerca de

25.000 pessoas, cuja a principal ocupação era ter fome e morrerem de miséria ou de peste. Cf. Ver: GUERRA,
Felipe; GUERRA, Theóphilo. Seccas contra a secca. Rio de Janeiro: Cruz Coutinho, 1909. p. 38
696 O Mossoroense 12 de fevereiro de 1904, p. 3

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
984

ao interesse dos comerciantes locais, os quais, em sua maioria, faziam parte da elite letrada
da cidade. Já O Mossoroense, o primeiro de Mossoró, teve seu início no ano de 1872,
funcionando até 1875 e retornando apenas em 1902. Estes jornais eram destinados a elite
letrada da cidade, os quais possuíam grande influência e eram detentores do comércio local.
Ambos os jornais noticiavam constantemente sobre os flagelados e a fome que se
arregimentava na cidade, segundo estes as pessoas “caiam mortas”, evidenciando um
cenário penoso e funesto.

Pela primeira vez, nesta terra, mesmo na crise actual, o povo infringiu os seus
hábitos de reconhecida fieldade e praticou uma acção reprovada e criminosa,
arrombando uma porta do armazém de cereais em que sociam os Snrs. Vicente
Motta & C. e Francisco Antonio M. de Miranda e dali roubando na noite de 11
para 12 do corrente 56 volumes de farinha, milho, arroz e café, únicos que
restavam das vendas daquele dia.
Cumpre as autoridades empregar a sua actividade e vigilância afim de que não
nos falhe, em uma Cidade policiada as necessárias garantidas e segurança ao
direito de propriedade697.

O que podemos notar é a descrição do jornal sobre os saques feitos ao comércio local.
Ao conclamar a atenção policial o jornal se coloca como propagador das vozes destes
sujeitos, bem como se colocar ao lado da população diante daquele momento de incertezas
e instabilidade. As notícias sobre as secas vão perdurar durante vários anos, tornando a
aparecer sobre os seguintes títulos: Seccas, contra secas; Obras contra as secas, fome e
miséria, a fome continua, etc. Tais enunciados iriam permanecer aparecendo até os anos de
1925, todavia, no caso do jornal O Mossoroense, as recorrências de notícias sobre as secas
eram apenas para descrever ações por parte do governo em aplacar e diminuir as tensões
com os flagelados. As notícias sobre saques, e demais incidentes sobre as secas vão dando
lugar ao banditismo que floresce a partir da década de 1920 e se formatando como a
preocupação maior da imprensa local.
No atual momento, temos feito um mapeamento do jornal O Mossoroense no intuito
de perceber as narrativas que se formularam a partir da década de 1920 e tiveram como
atenção o banditismo do cangaço. Mossoró em 1927 vivenciou a tentativa de assalto de
Lampião à cidade. Essa ocorrência movimentou não apenas o jornal local da época, mas
outros das cidades vizinhas, como é o caso de Natal, então capital do Estado. Esses

697 O Comércio de Mossoró 14 de fevereiro de 1904, p. 3

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
985

periódicos se colocaram como veículos que contribuíam no mapeamento do bando nas


cercanias e postulava notícias que asseverava uma união entre os estados contra o
banditismo698.
Notamos algumas alterações no formato do jornal O Mossoroense. Até os anos de
1910, havia um local reservado para noticiar sobre o policiamento local e das cidades
próximas. Essa parte do jornal tinha como intuito informar as contravenções, bebedices,
sujeitos pegos praticando os jogos de azar, indivíduos que proferiram calúnia e difamação,
gatunagens, etc. É interessante notar que alguns crimes eram tratados de forma mais
cuidadosa e tinham a atenção maior, como é o caso de um esqueleto encontrado próximo a
um rio e que teve sua notícia continuada por alguns dias, chegando ao final e ficando certo
que esse teria morrido de morte natural699.
Decerto, as mudanças que ocorreram no jornal tinham como objetivo mover a atenção
do leitor para aquilo que o jornal entendia como importante para aquele momento, nossa
atenção irá percorrer os anos posteriores a década de 1920 e visando perceber o tom das
notícias que eram veiculadas sobre os cangaceiros, pensando criticamente sobre o medo que
era perpetrado através das narrativas deste.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 Ed.
Ver. São Paulo: Cortez, 2009.

BRETAS, Marcos; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e


perspectivas. TOPOI, v. 14.

BRETAS, Marcos Luiz. A Polícia Carioca no Império. Revista de Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v.12, n.22, p. 219-234, 1998.

____________________. Polícia e Polícia Política no Rio de Janeiro dos anos 1920.


Arquivo História da Revista do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, v.3, p. 25-34, 1997.

CARNEIRO, Deivy Ferreira. Apontamentos para uma História Elisiana da violência no Brasil.
In: Célia Nonata Silva; Francisco Linhares Fonteles Neto. (Org.). Discere criminum: crime,
violência e poder – uma abordagem nacional. 1 ed. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano
Ramos, 2017.

698 O Mossoroense 4 de dezembro de 1920; O Mossoroense 13 de abril de 1922; O Mossoroense 22 de setembro


de 1922; O Mossoroense 20 de dezembro de 1922
699 O Mossoroense – mês de Julho de 1903

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
986

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª
ed. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

ELIAS, Nobert. O processo civilizador: a formação do estado e civilização. Vol 2. São Paulo:
Zahar, 1994.

FONTELES NETO, Francisco Linhares. O Crime do Boulevard: a sensacional e misteriosa


morte de Edith Davis. Mossoró – RN: EDUERN, 2017.

_________________________________. O Impresso e uma Visão Caótica da Cidade


de Fortaleza na Década de 1920 (UFPB). Prim@ Facie, v. 15, 2016.

GUERRA, Felipe; GUERRA, Theóphilo. Seccas contra a secca. Rio de Janeiro: Cruz Coutinho,
1909.

HOBSBAWM, Eric. As regras da violência. In: Pessoas Extraordinárias: resistência, rebelião


e jazz. Eric Hobsbawm. – São Paulo: Paz e Terra, 1998.

KALIFA, Dominique. História, crime e cultura de massa. In: Topoi, Rio de Janeira, vol.13, n.25,
jul/dez. 2012.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo, editora Alfa-Omega, 1976
MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012.

NEVES, Frederico de Castro. Estranhos na Belle Époque: a multidão como sujeito político.
Trajetos (UFC), Fortaleza, v. 6, n.6, 2005.

OTTONI, Ana Vasconcelos; SANT’ANNA, Marilene Antunes. O crime no Brasil através dos
“cronistas policiais” da imprensa. In: Os crimes e a história do Brasil: abordagens possíveis.
Gian Carlo (Org.). Maceió: EDUFAL, 2015.

PESAVENTO, Sandra. Crime, violência e sociabilidades urbanas. In: Nuevo Mundo Mundos
Nuevos, N.4. 2005.

SILVA, Giselda Brito. Sangue e violência na política brasileira: o assassinato de João Pessoa.
In: Os crimes e a história do Brasil: abordagens possíveis. Gian Carlo (Org.). Maceió:
EDUFAL, 2015, p. 115-144.
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o
Liberalismo Oligárquico. In: NEVES, L. A FERREIRA, J. (Org.). O Brasil Republicano: o tempo
do liberalismo excludente. Belo Horizonte: Civilização Brasileira, 2003, v. V.1, p. 89-120.

RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na seca de


1932. – Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
987

_______________________. Engenhos da memória: narrativas da seca no Ceará.


Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.

ROCHA, Aristotelina Pereira Barreto. Expansão urbana de Mossoró (período de 1980 a


2004): geografia dinâmica e restruturação do território. – Natal, RN: EDUFRN Editora da
UFRN, 2005.

SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. 3. ed. São
Paulo: CosacNaify, 2010.

FONTES
Jornal O Mossoroense 1902 – 1925.
Jornal Comércio de Mossoró 1902 – 1907.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
988

MODA E PERIÓDICOS:
USOS E INSERÇÕES COMPORTAMENTO FEMININO

Ramona Lindsey Rodrigues Mendonça700

INTRODUÇÃO
A história da moda proporciona o conhecimento de uma infinidade de eventualidades.
Sua inserção nos diferentes campos sociais possibilita a percepção e a compreensão das
transformações da sociedade ao longo do tempo. Dessa forma, a moda pode ser percebida
em inúmeras fontes históricas, como por exemplo nas publicações impressas. A partir disso,
tentaremos apreender como a moda presente nesses documentos, no que condiz ao Anuário
das Senhoras701 e dos jornais O Mossoroense702, atuam sobre o comportamento feminino
entre as décadas de 1940 e 1970703, tendo como direcionamento os seguintes
questionamentos: como a moda, em sua conceitualização, se estabelece socialmente? De
que forma os periódicos se encontravam ligados à moda e ao comportamento? Qual a
consequência dessa associação na conduta feminina?
Assim, a partir dos suportes teóricos, discutiremos a respeito do conceito de moda e
dos aspectos dos impressos enquanto fontes para pesquisa. Pretende-se compreender
acerca do conceito de moda, as questões que evolvem sua etimologia, seu surgimento e sua
pluralidade de significações. Quanto ao debate em relação aos periódicos, abordaremos
sobre seus domínios para tentar entender como se desenvolve sua inserção no exercício
historiográfico. Partindo dessas concepções, tentaremos conectar e assimilar como esses
pontos se encaixam nas discussões do comportamento feminino, em busca de analisar como

700Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2018). Atualmente é mestranda
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte e bolsista do Programa de Demanda Social da CAPES. E-mail: ramonallindsey@hotmail.com.
701 O Anuário das Senhoras foi um periódico com publicações voltadas para a população feminina, de 1934 a

1958, editado pelo grupo editorial “O Malho”, com sede no Rio de Janeiro. Os exemplares utilizados foram
encontrados e disponibilizados pela Biblioteca Municipal Ney Pontes Duarte em Mossoró/RN.
702 O Mossoroense é um periódico de cunho jornalístico voltados a assuntos diversos, fundado em 1872 e

circulado até 2016 em sua forma impressa, se encontrando atualmente somente na forma online. Os
exemplares impressos se encontram disponíveis no Museu Lauro da Escóssia em Mossoró/RN.
703É valido salientar que este trabalho faz parte de conjunto mais amplo de pesquisa monográfica, ao qual

pertence esse recorte mais amplo e as análises um pouco mais aprofundadas e exploradas sobre o assunto.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
989

a constituição de um ideal e/ou um padrão de mulher modifica os modelos e as formas de


vestuário, bem como o movimento inverso.

MODE: O CONCEITO E SUAS INTERPRETAÇÕES


Ao longo da história, a moda foi responsável por revelar posições sociais, traços da
individualidade dos sujeitos, os dos desejos do parecer, etc. Entretanto, a moda vai mais além
do que corresponde ao vestuário. Ela atende a um conceito amplo que está presente das
diversas divisões da sociedade, modificando-se ao passo em que também transforma no
decorrer do tempo.
Para entender a conjuntura da moda no comportamento feminino, é necessário antes,
compreender como se deu a gênese do conceito e suas interpretações. A pergunta que se faz
a partir de então é: desde quando apareceu essa expressão? “O termo moda surgiu por volta
do séc. XVIII e tinha como objetivo designar uma maneira, um gênero, um estilo de vida, de
vestuário, de conduta, etc.” 704 A datar pelo século XVIII, passou-se a adotar o termo para
estabelecer aquilo que estaria em “alta” na sociedade. Entretanto, o conceito como
conhecemos atualmente já foi desenvolvido anteriormente:

O processo de surgimento da moda como a conhecemos hoje se dá por volta


do século XIV, com a guerra dos 100 anos. O declínio do feudalismo e o
contato entre as cidades acompanharam o surgimento de uma nova classe: a
burguesia. A burguesia acabou por enriquecer a partir da retomada das
atividades comerciais. Ao atingir melhores condições econômicas, ela
procurou se inspirar na vestimenta da aristocracia e passou a copiar seus
modos de ser e agir. Os aristocratas, por sua vez, buscavam cada vez mais
manter uma diferenciação hierárquico-social, dando início a uma verdadeira
corrida pelo exclusivo, onde os nobres criavam um estilo e os burgueses os
copiavam. 705

Portanto, estar na moda significava mudar, trazer novidades como maneira de


diferenciação. Dessa forma, o termo moda diz respeito às formas tomadas pelas vestimentas
no momento em que os seres humanos passaram a criar novos padrões de estilo. Os

704PINA, Christine dos Santos. Moda e sua história. In: O efeito coorte e o desenvolvimento das preferências
por moda feminina. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Administração, 2006. p. 29.
705PINA, Christine dos Santos. Moda e sua história. In: O efeito coorte e o desenvolvimento das preferências

por moda feminina. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Administração, 2006, p. 29-30.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
990

vestuários passam a adquirir detalhes e aspectos próprios, que vão se especializando de


acordo com cada grupo social e suas respectivas épocas.
No entanto, como coloca Simone Ferreira de Albuquerque e Kátia Maria dos Santos, o
conceito de moda na origem da palavra se refere a outros significados:

A palavra ‘moda’ tem etimologia latina, advém de modus, equivale a


expressão ‘modo de’. Associa-se também o termo à palavra de origem
francesa mode – uso, hábito ou estilo. Trata-se de um ‘modo de’, de uma
maneira de agir, de vestir, de usar ou de fazer, não implica necessariamente,
falar sobre roupa. Na moda de origem inglesa, a etimologia da palavra fashion
remete ao latim factio, que significa fazendo ou fabricando com caráter
industrial (da língua inglesa a palavra faction - facção, até facere - fazer ou
fabricar). 706

Percebe-se que de acordo com a etimologia da palavra, suas definições variam,


passando a comportar novos sentidos não obrigatóriamente ligados às vestimentas. A moda
pode ser “o uso, o hábito, o gosto ou o estilo nos mais diversos aspectos possíveis, dentro de
um determinado contexto. O uso de roupas é apenas uma das possibilidades de atuação da
moda – contudo, é seu segmento mais expressivo”. 707
O conceito de moda traz à luz várias perspectivas de análise. Dentre elas, podemos
destacar as seguintes considerações feitas por Deborah Chagas Christo:

Atualmente, o termo ‘moda’ pode ser utilizado tanto para nomear a produção
quase artesanal dos objetos do vestuário identificados como ‘alta costura’,
quanto para indicar a produção de objetos pela indústria do vestuário que são
colocados em pequena, média ou grande escala no mercado, quanto para
indicar o movimento de valoração do ‘novo’ de forma sazonal e por curto
espaço de tempo que interfere tanto no objeto do vestuário quanto em
qualquer outro objeto de cultura material. Mas existem outros significados
para o termo moda. [...] Já foi considerado como um movimento pertencente
ao mundo feminino, exclusivo do gênero, cujos interesses pareciam girar em
torno das transformações do vestuário, constantes, marcantes e, muitas
vezes, até fantasiosas, que garantiam a aproximação com a noção do novo, ou
melhor, disso que arbitramos chamar de novo. 708

706ALBUQUERQUE, Simone Ferreira de; SANTOS, Kátia Maria dos. Entre poses e imagens: a moda e a fotografia
como fontes para o historiador. Anais Moda Documenta: museu, memória e design. Ano II - Nº 1 - Maio de 2015,
p. 5-6.
707Ibidem. p. 6.
708CHRISTO, Deborah Chagas. Moda: definições e conceitos. In: Estrutura e funcionamento no campo de

produção de objetos do vestuário no Brasil. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Artes e Designs, 2013, p.
23-24.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
991

Os conceitos trabalhados pela autora nos permite fazer um breve diálogo com o
conceito de representação abordado por Chartier 709, no qual a moda, ao mesmo tempo em
que traz inovações comporta antigas ideias já estabelecidas. Assim, podemos entender a
moda como uma espécie de texto que pode despertar naqueles que a lêem uma pluralidade
de reentendimentos e resignificações, atríbuidas pela forma como o leitor pode interpretar
seu conteúdo e aparência. Ademais, percebe-se que o conceito atualmente se estabelece em
várias ramificações, mas parece se concentar nas definições de comportamento e vestuário
indicada por Christine dos Santos Pina:

Referindo ao comportamento, a moda pode ser entendida como o conjunto


de opiniões, gostos e apreciações críticas, modos de agir, viver e sentir
coletivos aceitos por determinado grupo humano num determinado
momento histórico. Quando se trata de vestuário, no entanto, o termo pode
estar associado à alteração de formas, ao uso de novos tecidos, novas cores
novas matérias-primas, etc., sugeridos por costureiros ou figurinistas de
renome. 710

A moda então abrange o conjunto de produções fabricadas industriais ou


artesanalmente, que se enquadra nas concepções de vestuário, trazendo em si a própria
noção de “novo” com relação às formas, cores, tecidos, etc. A associação da moda ao mundo
feminino nos remete à sua localização no aglomerado do comportamento. Essa ideia passada
da moda ser “coisa de mulher” deve-se, em parte, a integração da vestimenta ao status social
do marido, em que quanto maior a produção e maior a dedicação aos detalhes requeridos,
aparentemente, mais aquisições homem deveria ter. Assim, a moda feminina passou a
produzir uma série de gostos, jeitos de agir e de se expressar que moldaram a conduta e as
fizeram cada vez mais se aproximarem do universo do estilo, ao ponto desta ser uma das
principais formas de expressão de uma mulher no passado. 711
Seguindo com as ponderações a respeito das variações da moda, as mudanças
percebidas no decorrer dela podem ser atribuídas ao comportamento dos indivíduos no
decorrer do tempo, como aborda Cleon Gostinski:

709Ver: CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados, São Paulo, vol. 5, n° 11,
Jan./Abr. 1991.
710PINA, Christine dos Santos. Moda e sua história. In: O efeito coorte e o desenvolvimento das preferências

por moda feminina. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Administração, 2006, p. 29.
711Ver: PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda Santos de; SOIHET, Rachel

(orgs.). Corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 14.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
992

Moda é comportamento. Entender como as pessoas se expressam através de


suas vestimentas é procurar conhecer como constroem suas identidades.
Contudo, a opção por um estilo pessoal nunca é apenas uma escolha parcial.
Inúmeras situações históricas, políticas, econômicas e sociais acabam por
engendrar um jogo sistêmico de influências que acabam por determinar o que
é mais adequado usar.712

Compreende-se que as alterações no mundo na moda são produzidas como


consequência da mudança da própria mentalidade humana e das definições sócio-culturais
que vão sendo concebidas a partir delas.713 O pensamento romântico desenvolvido no final
do século XVIII pode ser citado como exemplo disso. Inspirados pelo romantismo, começou-
se a pensar no ideal de sociedade para a época, principalmente no que condiz ao papel
feminino, ocorrendo a determinação das roupas dos gêneros, bem como o emprego dos
novos detalhes às vestimentas de cada um. Emília Viotti da Costa fala um pouco da
importância do romantismo na construção do ideal feminino ao tecer considerações a
respeito de uma obra de Michelet:

Já no século XVIII esboçavam-se muitas das manifestações comuns ao


Romantismo: a crença na bondade natural do homem, o culto da amizade, da
recordação e da lembrança, o culto da sensibilidade, o hábito de se abandonar
às doces emoções, ao terno, a tendência a se cultivar a piedade pelo infortúnio
físico ou moral, assim como outros motivos de enternecimento: o gosto
contemplativo da natureza, o amor pelas paisagens melancólicas, lunares ou
outonais. [...] Encarnando o amor, a sensibilidade, a emoção, a figura feminina
terá na literatura romântica um marcante papel. A figura idealizada da mulher
oscila entre duas tendências: a mulher anjo e a mulher demônio. A mulher
anjo é a purificadora do coração do amante, capaz de enobrecer sua alma e de
fortificá-lo, aproximando-o de Deus: desperta-lhe a sensibilidade para o belo,
encoraja-o na sua missão política ou patriótica, revigora-o moralmente. E' a
mulher benfeitora, a conselheira e guia: a mulher que reflete a luz divina, a
mulher inspiradora. 714

712GOSTINSKI, Cleon. Relevâncias da história da moda: dos anos 10 à virada do século XX. Revista Intelecto C,
Rio Grande do Sul, Ano 2, n°. 5, Jan./Mar., 2009, p. 49.
713Sabemos que isso é um fator de mudança considerável no âmbito da moda, porém, a discussão sobre

transformações nas vestimentas ao longo dos anos vai além das alterações da mentalidade humana. Nela
também se envolvem inúmeras influências históricas.
714COSTA, Emília Viotti da. Concepção do amor e idealização da mulher no romantismo. Revista Alfa, São Paulo,

vol. 4, 1963, p. 35-38.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
993

Por ser “o estado de alma romântico [...] partilhado por um grande número de
indivíduos, que reencontravam nos autores românticos traços de sua alma” 715, acabou-se
por aderir novas concepções no meio social. Tendo a mulher como principal personagem de
mudança, idealizou-se uma figura feminina que transpirasse a delicadeza e a honra, no qual
os adornos e roupas seriam responsáveis por compor essa identidade e quem não encaixasse
nesse padrão seria vista como o outro lado, a “mulher demônio”.

A imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a
imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar
na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira
como quer ser percebida pelos outros. 716

Como trata Michael Pollak, acerca da construção da identidade, conseguimos


perceber que a escolha da roupa é um modo de demonstrar a imagem que queremos
transmitir, e a começar por ela, podemos identificar a qual grupo pertencemos, seja religioso,
profissional, de origens étnicas, de diferentes posições sociais, etc. Todavia, essa identidade
grupal não invalida nossa capacidade de nos destacarmos dentre o coletivo, já que as
vestimentas também revelam traços individuais e originais que constroem nossa
personalidade. Dessa forma, querendo ou não, o vestuário é uma das principais formas de
mostrar quem nós somos.
Observa-se que a moda é capaz de revelar mais do que a mera aparência, por meio
dela podemos perceber aspectos da história. Ao contrário do que muitos podem pensar, a
moda não representa futilidade em meio aos trabalhos científicos, por meio dela é possível
investigar as ações humanas no tempo e no espaço, como nos orienta Marc Bloch717,
percebendo com o vestuário as formas de expressões e impressões da mentalidade humana,
bem como os fatores históricos que levaram as suas alterações. Em vista disso, para sua
investigação um historiador necessita de suas fontes e, em se tratando dessa pesquisa que
utiliza para discutir a moda e os periódicos como principal meio para análise, deve-se,
portanto, destinar uma discussão, como veremos a seguir, para esclarecer um pouco da
relação entre impressos e história.

715Ibidem, p. 36.
716POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992,
p. 5.
717BLOCH, Marc Leopold Benjamin; Apologia da história ou o ofício de historiador. trad.: André Telles. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
994

AS FONTES DE CLIO: A RELAÇÃO ENTRE OS PERIÓDICOS E HISTÓRIA


O trabalho aqui desenvolvido possui como fonte as documentações impressas, no que
diz respeito ao jornal O Mossoroense e a revista Anuário das Senhoras. Dessa forma, faz-se
necessário construir, mesmo que breve, um levantamento historiográfico acerca da relação
do historiador com os documentos impressos.
A História da imprensa na historiografia há muito é um objeto explorado pelos
historiadores. Contudo, a construção de uma história através do olhar dos impressos não
possuía muitos adeptos, como podemos perceber nas palavras de Tania Regina de Luca:

Reconhecia-se, portanto, a importância de tais impressos e não era nova a


preocupação de se escrever a História da imprensa, mas relutava-se em
mobilizá-los para a escrita da História por meio da imprensa. [...] A crítica a
essa concepção, realizada já na década de 1930 pela chamada Escola dos
Annales, não implicou o reconhecimento imediato das potencialidades da
imprensa, que continuou relegada a uma espécie de limbo. 718

O preconceito com os jornais e outros materiais impressos provinha de uma escrita


objetiva, pretensamente neutra e incontestável, característica da escola metódica. Segundo
Tania de Luca, apesar das reconsiderações da historiografia pelos Annales, a inclusão desse
tipo de fonte ocorreu de forma lenta. No Brasil, já em 1970, os jornais puderam ser utilizados
como fontes de pesquisa “ao lado da História da imprensa e por meio da imprensa”.719 A
inclusão de outros tipos de fontes impressas ao trabalho historiográfico fomentou a
construção de uma História dos movimentos operários, que possibilitou reunir os seus
diversos meios de publicação, incluindo-se também as revistas. 720
Os jornais e as revistas constituem tipos específicos de impressos, ambos possuem
suas definições, mas podem variar de acordo com suas diretrizes, como mostra Tania de
Luca:

As definições hoje correntes, que reservam o termo jornal para a publicação


diária, em folhas separadas, e revista para as de periodicidade mais espaçada,

718LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 111-112.
719LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla

Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 118.


720Ver: LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla

Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 119.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
995

enfeixadas por uma capa e com maior diversidade temática, tampouco


esgotam a questão, pois sempre se pode citar os jornais semanais e seu afã
de também tudo abarcar, ou as revistas extremamente especializadas. 721

As fontes, mesmo possuindo tamanhos e conteúdos diferentes, não perdem seu valor
documental, podendo ambas as formas constituir inúmeras pesquisas, com variadas
perspectivas dependendo das problemáticas a elas lançadas ou delas extraídas. Desse
modo, caracterizando-se dentro da categoria dos impressos, jornais e revistas apresentam
quase as mesmas formas de investigações, devendo ser levadas em conta as especificidades
dos conteúdos em questão.
As análises de ambos os materiais tiveram variações ao longo de sua incorporação. O
que antes, principalmente os jornais, eram tidos apenas como objeto reafirmador de uma
hipótese, passou a compreender uma análise mais complexa dos materiais, ainda de acordo
com Tania de Luca:

Os aspectos até agora destacados enfatizaram a forma como os impressos


chegaram às mãos dos leitores, sua aparência física (formato, tipo de papel,
qualidade da impressão, capa, presença/ausência de ilustrações), a
estruturação e divisão do conteúdo, as relações que manteve (ou não) com o
mercado, a publicidade, o público a que visava atingir, os objetivos propostos.
Condições materiais e técnicas em si dotadas de historicidade, mas que se
engatam a contextos socioculturais específicos, que devem permitir localizar
a fonte escolhida numa série, uma vez que esta não se constitui em um objeto
único e isolado. Noutros termos, o conteúdo em si não pode ser dissociado do
lugar ocupado pela publicação na história da imprensa, tarefa primeira e
passo essencial das pesquisas com fontes periódicas.722

Percebemos que investigar todos esses pormenores que envolvem do universo das
fontes impressas são essenciais para compreender, por exemplo, o que determinado jornal,
com seu conjunto de proprietários, diretores, escritores, etc., quis transmitir em certa matéria
publicada, já que estes, assim como outras fontes, não estão livres de ideologias que podem
ser ali depositadas pelos seus formuladores. Além disso, conforme Luca, é importante situar
também os conteúdos das publicações no contexto da história da imprensa, o que requer
situá-las nos espaços de tempo e características estabelecidas ao longo de sua trajetória.

721LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 131.
722LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla

Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 138-139.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
996

Sabemos que todo esse ferramental de investigação dá o subsídio necessário para


toda e qualquer pesquisa com as fontes impressas e são fundamentais para situar o
pesquisador numa compreensão mínima de sua relação com o objeto. Entretanto, é valido
ressaltar que não nos cabe aqui analisar diretamente o documento material da revista e dos
jornais elencados, tendo em vista a complexidade e amplitude que requer essa avaliação. O
objetivo dessa discussão se volta para o olhar analítico em torno dos discursos dos
periódicos nos contextos designados para a pesquisa que, embasados pela visão crítica e
pela noção discutida anteriormente do trabalho do historiador com as fontes impressas,
busca de compreender como se posicionavam esses impressos a respeito da temática
escolhida, ou seja, como as revistas do Anuário das Senhoras e o jornal O Mossoroense
mostram um ideal feminino nos anos de suas publicações.

O ELO ENTRE OS PERIÓDICOS E O COMPORTAMENTO FEMININO


A introdução do púbico feminino no universo da leitura decerto passou por longos
processos de aceitação. Desde o início da alfabetização das meninas do século XVIII no
âmbito europeu, a trajetória da introdução feminina nos espaços escolares e,
consequentemente, a formação de um grupo leitor de mulheres constitui-se numa árdua
conquista, intensificada somente no século XIX. O respaldo para essa conjuntura de
segregação feminina se encontrava na concepção de uma mulher voltada para o espaço
privado, como mostra Janaína Garcia:

Mulheres muito instruídas desvirtuar-se-iam, pensava-se, das suas funções


primordiais no âmbito privado, da organização do lar e no cuidado com filhos
e maridos; a leitura de textos “perniciosos” tiraria das mulheres sua inocência
e as guiaria por um caminho radicalmente oposto daquele que historicamente
já lhes estava traçado. 723

O medo da instrução feminina permeava as mentes desse período por representar


uma ameaça aos padrões tradicionais de mulher dedicada ao lar. O mergulho no campo da
leitura poderia corromper e desmanchar toda a estrutura idealizada e vigente da época. As
raras mulheres instruídas contentavam-se apenas com a leitura da Bíblia e dos romances,
“entretanto, foi entre os séculos XVIII e XIX que a imprensa viu florescer os títulos

723GARCIA, Janaína A. Beraldo. Escola de modelos: Três décadas do Anuário das Senhoras (1934-1954). Curitiba:
Acervo UFPR, 2004, p. 31.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
997

destinados à leitura de senhoras e moças, principalmente em forma de revistas”. 724 Nesse


contexto, o conteúdo voltado para as mulheres circundavam principalmente os temas
voltados para a literatura, bem como os horóscopos e assuntos acerca da moda. 725 Tentando
seguir o raciocínio da época, nada seria mais apropriado ao imaginário das “doces donzelas
indefesas”.
Temáticas como essas permaneceram ligadas ao público leitor feminino, embora
tenha se percebido uma grande variação e amplificação dos assuntos após as
reinvindicações femininas iniciadas de desde o século XIX. Entretanto, não é raro ver, nas
colunas de alguns periódicos, disposições de enunciações como essas ao longo de suas
páginas. Isso se dá pela constituição de um campo distinto, que são as publicações da
imprensa feminina, como mostra Tania de Luca:

A imprensa feminina orbita em torno de temas mais perenes, não submetidos


à premência do tempo curto do acontecimento. Moda, beleza, casa, culinária
ou cuidado com os filhos comportam uma abordagem circular, ligada à
natureza e às estações do ano: afinal, receitas, recomendações e conselhos
indicados para o inverno ou verão podem ser retomados em anos
subsequentes, desde que revestidos de ar de atualidade e apresentados
como a última palavra no assunto. 726

Percebe-se que os temas apresentados permanecem arraigados no pensamento de


mulher delicada, dedicada ao lar e a beleza que, como nos fala a autora, podem ser sempre
retomados de acordo com períodos e as suas respectivas novidades. É nesse sentido que
podemos analisar a frequência que essas temáticas e seus discursos surgem dentro das
revistas do Anuário das Senhoras e do jornal O Mossoroense. Não se pretende, portanto,
apontar o certo ou errado em ambas as linhas de publicações, mas sim, entender como isso
pode influenciar o comportamento feminino. Partindo desse ponto, avaliemos o seguinte
artigo “Sombra para os olhos” do Anuário de 1957:

Já experimentou sombra nas palpebras? Para os olhos castanhos a sombra


deve ser clara, para os olhos azues porém a côr deve ser perfeitamente igual
à das órbitas, para os de côr de avelã, o verde pálido; o verde combina muito

724GARCIA, Janaína A. Beraldo. Escola de modelos: Três décadas do Anuário das Senhoras (1934-1954). Curitiba:
Acervo UFPR, 2004, p. 33-34.
725Idem.
726 LUCA, Tania Regina de. Imprensa feminina: mulher em revista. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana

Maria (org.). Nova história das mulheres do Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 448.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
998

bem com as peles delicadas e olhos verdes; o malva fica lindíssimo para as
senhoras de cabelo branco, adicionando no pó de arroz, rachel, um pouco do
pó também de cor malva. Aplica-se a sombra começando pelo centro das
palpebras à raiz doa cílios até o canto dos olhos. Observe cautelosamente
para que a cor não atinja as sobrancelhas. A cor deve ser mais acentuada na
parte inferior, junto dos cílios. Usando a sombra azul, pode-se também tingir
as pestanas com lápis da mesma tonalidade. Quando se usa a sombra, o rouge
deve ser abolido e também o baton deve ser de cor quase natural. Sòmente
quando a pele é fresca, linda e perfeita é que se pode dar realce aos lábios,
uma cor mais viva. 727

Podemos observar que o artigo trata de instruções de beleza, mais especificamente


de dicas de maquiagem. Um olhar mais apurado para essas orientações parece indicar o que
a primeira vista não se consegue perceber: as dicas vão formulando certas padronizações,
ao ponto que o mais indicado para as mulheres de olhos “côr de avelã, o verde pálido” seria
sua melhor opção. Percebe-se a partir disso que o padrão aqui orientado é o “alvo”, o branco,
remetendo o leitor ao ideal de beleza que vinha do século XIX. 728 Dessa forma, o que
aparentava não passar de meros conselhos e ajuda na hora de produzir a pintura do rosto,
vai ganhando certas regras de beleza que, acabam por excluir todas aquelas que não as
seguem. Do mesmo modo, verifica-se esse discurso na narrativa do artigo “Beleza e
simpatia” do jornal O Mossoroense:

Há poucas mulheres que tenham inteireza de caráter o suficiente para não


temer o aparecimento da primeira ruga. Como é natural quando só se tem
vinte anos, o problema aparece muito remoto, mas, quando a gente aproxima
dos trinta anos, o caso muda de figura: começam a aparecer em nossos rostos
algumas linhas... E quando nos sentimos cansados ou passamos muito tempo
sob o vento e o sol, temos de admitir que essas linhas sombrias em torno dos
olhos e da boca começam a se transformar em algo de mais duradouro.
Chega, então, o momento em que começamos a usar cremes para a noite,
loções lubrificantes e amaciadoras, e a fazer uma ligeira massagem e alguns
pontos críticos. Qualquer que seja o tipo de sua pele, aos 25 anos, mais ou
menos, ela começa a se tornar sêca e temos então que lhe dar uma atenção
especial, para que ela se conserve fresca e macia. Um creme para pele sêca
que contenha lanolina é o melhor para esse caso, pois a lanolina se
assemelha muito aos óleos naturais da nossa pele. E aplicar-se um pouquinho
de creme, todas as noites, com regularidade, é melhor de que usar grande
quantidade de creme de vez em quando. 729

727Revista Anuário das Senhoras, Rio de Janeiro: Sociedade anônima “O malho”, ano XXIV, 1957, p. 37.
728Ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e ordem no império. In: História da Vida Privada no Brasil
(v.2) São Paulo: CIA das Letras, 1997.
729“Beleza e simpatia”. Jornal O Mossoroense, Mossoró, 24 de julho de 1956, p. 2.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
999

O corpo do artigo mais uma vez traz informações acerca da beleza feminina. A dica, no
entanto, se volta para os cuidados com a pele do rosto. Porém, assim como a publicação da
revista, percebemos há a formulação de um ideal feminino, o qual leva as mulheres a
desnaturalizar os primeiros sinais da velhice. Instiga-se a conservação “fresca e macia” da
pele em busca de “retroceder” alguns anos, de modo que, ao afugentar a velhice, se possa
continuar, ao menos em aparência, no esplendor da juventude, já que “na visão comum, a
mulher no climatério já não é mulher, e sim uma velha, eventualmente dotada de mais
poderes e liberdades, porém privada de fecundidade e, em consequência, de sedução”. 730
A partir de discursos como esses localizados nos periódicos, vemos como o
comportamento feminino pode ir se adaptando a certos preceitos de beleza. Os periódicos e,
consequentemente, as dicas neles prescritas, possuem muito mais chances de consumo e
aderência pelas mulheres, pois, trata-se de um material responsável pelo “convencimento e
mesmo de imposição, apoiados em enunciados prescritivos e normativos, que ordenam o que
fazer e como fazer” 731. Nesse sentido, tentando não ficar a margem dos considerados
padrões do belo, as mulheres tendem a estarem muito mais propícias a seguir os desejos de
adequação gerados por esses produtos.

MODA E COMPORTAMENTO FEMININO: TRAJETÓRIAS E TEXTOS


Tendo em vista a abordagem dos tópicos anteriores, tratando das discussões acerca
da moda e dos periódicos, constata-se a necessidade de um debate conjunto de ambos os
conceitos no âmbito de uma história do comportamento da mulher. Cabendo aqui, mostrar
como comportamento da figura feminina está ligada a constituição da moda.
Como foi visto anteriormente, um dos principais fatores variantes da moda é o
comportamento. A começar por ele, e a depender, relacionar-se ou conduzi-las, as
vestimentas ganham formas e modelos ao longo do tempo. Em uma discussão inicial,
formulou-se como esse comportamento poderia influenciar a moda, mas, pensando na
perspectiva dos papéis femininos no Brasil, como se deu essa instituição?
No século XVIII, o desencadeamento da Revolução Francesa trouxe à tona novos
costumes à sociedade. Com a ascensão da burguesia e a inauguração de uma era capitalista

730PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda Santos de; SOIHET, Rachel (orgs.).

Corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 16.


731LUCA, Tania Regina de. Imprensa feminina: mulher em revista. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana

Maria (org.). Nova história das mulheres do Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 448.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1000

e industrial, já no século XIX, colocou-se em perspectiva a família nuclear, modelo formado


por pai, mãe e filhos. Sendo o chefe da família, o homem adentrou no mundo do trabalho e a
mulher foi confinada ao lar. Divide-se, portanto, as esferas do público e do privado: ao homem
cabia ser o provedor do núcleo familiar e a mulher cuidar casa, dos filhos e de seu esposo:

A transformação dos papéis sociais de homens e mulheres começou a


acontecer no século XVIII em virtude de importantes mudanças políticas,
sociais e econômicas, tais como: a ascensão da burguesia, criação dos
estados nacionais, início da industrialização e a formação da sociedade
capitalista. Neste período, a família extensa feudal desaparece para dar lugar
à família burguesa: pai, mãe e filhos(as). É a idéia de identidade individual, do
privado, das residências particulares, da família nuclear que começa a ser
construída. Nesta nova família, aparece a figura da criança como aquele
membro que precisa de cuidados especiais para se desenvolver bem, afinal,
ela é o futuro dos estados nacionais em construção. Para atender a essa nova
exigência social, a mulher foi confinada na esfera doméstica, onde, por amor,
passou a viver com o objetivo de cuidar dos(as) filhos(as), marido e casa.
Começa, então, a ser institucionalizada a característica cuidadeira da mulher,
refletida nas suas atuações como mãe, esposa e dona-de-casa. 732

Essa concepção passou a determinar os papéis sociais do homem e da mulher, que se


estenderam por muito tempo na sociedade ao longo dos séculos e ainda hoje permeia na
mente dos mais tradicionalistas.
O panorama das mudanças sofridas na Europa chegou ao Brasil já no final do século
XIX. Os ventos do progresso provocado pelos ideais burgueses são soprados no meio social
do cotidiano brasileiro, trazendo o frequente debate entre conservadores e reformistas do
período. As transformações advindas puderam também ser constatadas nos novos padrões
adotados pelas mulheres ao seguir o discurso da modernidade, contudo, as manifestações
do sexo masculino acabaram por tentar contê-las, mais uma vez, no interior do lar, como nos
mostra Marina Maluf e Maria Lúcia Mott:

O dever ser das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do século
[XX] foi, assim traçado por um preciso e vigoroso discurso ideológico, que
reunia conservadores e diferentes matrizes de reformistas e que acabou por
desumanizá-las como sujeitos históricos, ao mesmo tempo que cristalizava
determinados tipos de comportamento convertendo-os em rígidos papéis
sociais. ‘A mulher que é, em tudo, o contrário do homem’, foi o bordão que
sintetizou o pensamento de uma época intranquila e por isso ágil na

732ARIÈS,Philippe apud CAIXETA, Juliana Eugênia; BARBATO, Silviane. Identidade feminina: um conceito
complexo. Revista Paidéia, São Paulo, vol. 14, nº 28, 2004. p. 214.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1001

construção e difusão das representações do comportamento feminino ideal,


que limitaram seu horizonte ao ‘recôndito do lar’ e reduziram ao máximo suas
atividades e aspirações, até encaixá-la no papel de ‘rainha do lar’, sustentada
pelo tripé mãe-esposa-dona de casa.733

Inspiradas pelo universo moderno da época, as mulheres quiseram inovar por meio de
atitudes e pela moda, sua principal forma de expressão. No entanto, essas concepções
femininas foram rechaçadas pelos poderes dominantes, especialmente pela Igreja Católica.
A mudança nas atitudes femininas acabou por gerar desavenças com o setor mais
tradicionalista da sociedade, aumentando as intempéries entre homens e mulheres no
casamento. Como medida reconciliatória, a Igreja retomou e modificou o enunciado das
relações no matrimônio, passando o ato sexual a ser algo desejado e legitimado, além de
tornar o amor a base fundamental para o sustento do casal e da família.
As principais inovações comportamentais da mulher brasileira moderna do século XX
podem ser descritas no trecho a seguir:

Seu antípoda ameaçador era a moça dos tempos modernos, ‘esbagachada’,


cheia de liberdades, ‘de saia curta e colante, de braços dados e aos beijos com
os homens, com os decotes a baixarem de nível e as saias a subirem de
audácia’, exposta à análise dos sentidos masculinos, ‘perfumadas com
exagero, pintadas como palhetas, estucadas a gesso e postas na vida como
figura disparate de uma paisagem cubista’. 734

Nota-se que a moda se diferencia de acordo com a forma de pensar. As saias curtas,
decotes e roupas mais justas ao corpo seria a expressão do progresso. Ademais, outro fator
de contribuição para as alterações feitas foi a limitação dos tecidos com a eclosão da
Primeira Guerra Mundial, que encurtou as saias até o tornozelo, permitindo maior liberdade
ao estilo. Todavia, o que era sinônimo de atividade feminina era posto como ruim à sociedade
mais conservadora. A mulher “cheia de liberdades” colocava em risco a conduta masculina

733MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO,
Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 373.
734MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO,
Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 390.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1002

de seu responsável, de modo que o julgamento dele pela sociedade consistiria pela forma
que a mulher se comportava. 735
O pensamento de mulher ideal para os mais tradicionais e para Igreja se encontrava
na figura dedicada ao espaço doméstico. Baseado nos princípios do amor familiar, a esposa
era a principal responsável por manter o equilíbrio da casa que, ao preservar os “bons
costumes”, traria alegria ao seu esposo e ao lar, como podemos ver na publicação “Da mulher
para a mulher” do jornal O Mossoroense abaixo:

Recentemente, recebi uma carta das minhas leitoras, que se queixava de


estar fazendo bastante confusão com tantos nomes novos, citados,
principalmente, nos anúncios de revistas e jornais, e acabava me pedindo
alguns dados sobre materiais sintéticos mais novos. ‘Meus conhecimentos,
Nésse setor, não vão além do rayon e do nylon’ – dizia ela. [...] Receita: Um
bolo delicioso para se tomar com o café é o ‘Bolo Lady Baltimore’, cuja recita
darei abaixo. 736

Nessa coluna do jornal O Mossoroense de 24 de julho de 1954 percebe-se que o


espaço destinado para as mulheres em meio às variadas manchetes se voltava
especialmente para mulher no meio doméstico. As discussões acerca dos tecidos, de suas
adequações no interior da casa, e da culinária revelam qual o papel que a mulher deveria
exercer. Através de sua narrativa, Marina Maluf e Maria Lúcia Mott mostram um pouco desse
ideal presente na sociedade:

Prescreveu-se para ela complacência e bondade, para prever e satisfazer os


desejos do marido sequer expressos; dedicação, para compartilhar
abnegadamente com o cônjuge os deveres que o casamento encerra;
paciência, para aceitar as fraquezas de caráter do cônjuge. E, enlaçando
tamanhas disposições, a virtude maior da amizade indulgente. O perfil
traçado para a esposa conveniente contava ainda com indefiníveis qualidades,
tais como simplicidade, justiça, modéstia e humor.737

735Ver:MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO,
Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 381-382.
736“Da mulher para a mulher”. Jornal O Mossoroense, Mossoró, 24 de julho de 1954.
737MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO,

Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque à era do rádio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 390.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1003

A satisfação do marido teria de vir antes de tudo. O ideal de mulher honrada comprazia
todas as necessidades do homem, na qual ela praticamente se abandonava na premissa de
um amor e respeito para com seu esposo. Esse protótipo de companheira dedicada
contrapunha-se ao modelo insurgente da mulher moderna, sendo moldado para acabar com
os ideais de liberdade.
A restrição das mulheres e a delimitação de seu papel social devem-se, em grande
parte, ao pensamento constituído pela Igreja. Às mulheres foi atribuído o dever de seguir as
práticas clericais e de manter a íntegra a virgindade. “Os valores impostos pela igreja
nortearam as ações em sociedade, modificando os costumes que antes eram considerados
livres [para as mulheres], sexualmente”.738 A justificativa de tais atos se encontrava no fato
de que desde os princípios da criação a mulher era vista como aquela que se submeteu ao
pecado e que levou consigo o homem. Dessa forma a figura feminina associou-se a
transgressão e seu corpo era tido como um antro de perdição, de tal modo que elas deveriam
ser emudecidas, subordinada ao homem e permanecerem castas, no qual só o sexo deveria
acontecer somente para fins reprodutivos dentro do casamento.739

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos ao longo desse trabalho que moda e comportamento feminino se
encontram intimamente ligados. De forma que, de acordo com as fontes analisadas, a moda
se adapta ao movimento em curso da história feminina, ao mesmo tempo em que possui uma
voz ativa sobre o comportamento através dos variados suportes de difusão de informações.
As análises de algumas publicações do Anuário das Senhoras e do jornal O Mossoroense
permite compreender um pouco disso.
Avaliamos então acerca do comportamento feminino e dos ideais para ele formados
que, o choque entre a mulher moderna em ascensão e o conservadorismo vigente, acabam
por provocar mudanças do estilo e das vogas femininas. Vale salientar que, os movimentos
e alterações das organizações socioculturais, econômicas e políticas por sua vez dão o
embasamento para todas essas gradativas transformações.

738BASEGGIO, Julia Knapp; SILVA, Lisa Fernanda Meyer da. As condições femininas no Brasil colonial. Revista
Maiêutica, Santa Catarina, vol. 3, n. 1, 2015, p. 26, grifo nosso.
739Ver: PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda Santos de; SOIHET, Rachel

(orgs.). Corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 21.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1004

É no sentido de tentar perceber um pouco dessa troca mútua entre moda e


comportamento feminino por meio dos periódicos que esse breve trabalho permite se
delinear. Contudo, é importante lembrar que o leque de discussões acerca da temática é bem
mais amplo do que nos cabe aqui, tornando-se esse um levantamento que busca instigar
mais debates sobre o assunto.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Simone Ferreira de; SANTOS, Kátia Maria dos. Entre poses e imagens: a
moda e a fotografia como fontes para o historiador. Anais Moda Documenta: museu,
memória e design. Ano II - Nº 1 - Maio de 2015.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e ordem no império. In: História da Vida Privada
no Brasil (v.2) São Paulo: CIA das Letras, 1997.

BASEGGIO, Julia Knapp; SILVA, Lisa Fernanda Meyer da. As condições femininas no Brasil
colonial. Revista Maiêutica, Santa Catarina, vol. 3, n. 1, 2015.

BLOCH, Marc Leopold Benjamin; Apologia da história ou o ofício de historiador. trad.:


André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

CAIXETA, Juliana Eugênia; BARBATO, Silviane. Identidade feminina: um conceito complexo.


Revista Paidéia, São Paulo, vol. 14, nº 28, 2004.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados, São Paulo,
vol. 5, n° 11, Jan./Abr. 1991.

CHRISTO, Deborah Chagas. Moda: definições e conceitos. In: Estrutura e funcionamento no


campo de produção de objetos do vestuário no Brasil. Rio de Janeiro: PUC, Departamento
de Artes e Designs, 2013.

COSTA, Emília Viotti da. Concepção do amor e idealização da mulher no romantismo.


Revista Alfa, São Paulo, vol. 4, 1963.

GARCIA, Janaína A. Beraldo. Escola de modelos: Três décadas do Anuário das Senhoras
(1934-1954). Curitiba: Acervo UFPR, 2004.

GOSTINSKI, Cleon. Relevâncias da história da moda: dos anos 10 à virada do século XX.
Revista Intelecto C, Rio Grande do Sul, Ano 2, n°. 5, Jan./Mar., 2009.

LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: A história dos, nos e por meio dos periódicos. In:
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1005

LUCA, Tania Regina de. Imprensa feminina: mulher em revista. In: PINSKY, Carla Bassanezi;
PEDRO, Joana Maria (org.). Nova história das mulheres do Brasil. São Paulo: Contexto,
2013.

MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando;
SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque
à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda Santos de;
SOIHET, Rachel (orgs.). Corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

PINA, Christine dos Santos. Moda e sua história. In: O efeito coorte e o desenvolvimento
das preferências por moda feminina. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Administração,
2006.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 5, nº 10, 1992.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1006

O ICOP E A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO OESTE POTIGUAR


(1957- 2012)

Maria Eunice de Oliveira740


Guilherme Luiz Pereira Costa741

INTRODUÇÃO
Obcecada em ser mestra, essa escrita cultiva a ilusão
da verdade e tenta explicar o presente como
resultado lógico do encadeamento de fatos e
processos. (ALBURQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 13).

Albuquerque Junior (2013) chama a atenção para o fato das obras de história,
tentarem ser um reflexo do que ocorreu no passado, que o passado traz consequências para
o hoje. As obras como construtoras de um passado, sendo construído no presente por
memórias, por discursos, por fazeres, por uma cultura voltada para a construção de uma
identidade. Identidade muitas vezes de apenas uma parcela da população, dos letrados, dos
políticos, cultura construída com base em interesses. A escrita do Oeste Potiguar é marcada
por seus grandes homens, intelectuais que formaram uma identidade para si e para a região
através de suas escritas assinaladas por uma característica cultural, cheia de traços
característicos que dizem acerca da região.
A cultura do Oeste Potiguar é uma cultura de homens que procuraram está além de
seu tempo, homens que arquitetaram com sua escrita, com seus discursos ao longo do
tempo um espaço, espaço voltado na maioria das vezes para estes mesmos homens, para a
sociedade letrada, uma pequena camada da população que aparece nas páginas de glória da
história, embora não tenham participado da mão-de-obra pesada.
O trabalho a seguir visa analisar essa história do passado, que traz para o presente,
traços do espaço construído a partir da escrita, com base em uma cultura letrada, voltada
para os intelectuais, para políticos, o Oeste Potiguar na visão e na memória de seu povo, povo
privilegiado. Para esta análise será utilizada como fonte a Revista do Instituto Cultural do

740 Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestranda no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH/UERN. E-mail: maria16eunice@gmail.com.
741 Graduado em Ciências Sociais (Licenciatura) pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestrando

no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH/UERN E-mail:


guilhermelpcosta15@gmail.com.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1007

Oeste Potiguar (ICOP), que traz discursos a cerca dessa região, discursos proferidos em
épocas distintas, daí a riqueza do material, poderemos analisar discursos do século de sua
criação, século XX e também do presente século.
A Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar apresenta uma série de discursos
que visam construir um espaço de memórias, memórias do Oeste Potiguar, a história deste
lugar, o espaço Oeste de que se fala na Revista se confunde muitas vezes com a cidade de
Mossoró, por ser este um lugar em que se concentram seus intelectuais, ou para onde
caminham outros escritores.
As revistas do Instituto Cultural do Oeste Potiguar, a Revista Oeste, que desde 1958,
ano de sua primeira edição traz discursos acerca da Região Oeste e de Mossoró, as revistas
do ICOP podem ser encontradas na Fundação Vingt-Un Rosado, contamos com edições
intermitentes, tendo em vista que não foi possível o acesso a todas as edições que possui a
Oeste, e ainda levando em conta que a Revista Oeste deixou de circular por 12 anos, sendo
assim a análise é feita com a fonte que se tem, no tempo que a mesma estabelece. Além do
mais, o material que possuímos possibilitou investigar as estratégias discursivas da referida
revista, o que implica dizer que a linearidade do possível acesso a todas as fontes, a nosso
ver, não prejudicou a problemática do trabalho, pois tanto os exemplares do século XX,
quanto os do século XXI propiciaram que pudéssemos compreender o papel do ICOP na
construção da região do Oeste Potiguar confundida com a cidade de Mossoró.

A INSTITUIÇÃO ICOP
O contexto de Mossoró nas décadas de 1940 e 1950 é de acontecimentos que marcam
a história da cidade, principalmente no que diz respeito à cultura, há um incentivo maior com
a criação do Museu Municipal Lauro da Escóssia e a Biblioteca Municipal Ney Pontes em
1948 pelo decreto n° 4 de 5 de abril do referido ano, instituído pelo então prefeito Jerônimo
Dix-Sept Rosado.
O governo municipal mossoroense investiu muito na propagação da cultura,
justamente por ser uma forma de tornar a cidade notável, de fazer com que o povo e a história
de Mossoró sejam lembrados, os investimentos na cultura de Mossoró teve como objetivo
atingir a todos os públicos, de aproximar todas as classes sociais das manifestações
culturais, o que não deixe de transparecer também uma estratégia política. Dentre esses

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1008

investimentos em desenvolvimento cultural surge também o Instituto Cultural do Oeste


Potiguar-ICOP, já na década de 1950.
A Instituição Cultural do Oeste Potiguar-ICOP foi criado em 1957 em meio as
comemorações do “30 de setembro”, data que marca a abolição da escravatura em Mossoró,
sendo esse tipo de evento ocorrido em setembro lembra e comemora mais uma vez a data
magna da cidade, a abolição dos escravos, que as autoridades mossoroenses tanto enfatizam
por ser Mossoró a primeira a realizar tal feito, antes mesmo da Lei Aurea de 13 de maio de
1888, assinada pela Princesa Isabel, outros acontecimentos como o Motim das Mulheres, o
primeiro Voto Feminino e claro a Resistencia de Mossoró contra o bando de Lampião
também são comemorados em setembro, nota-se que a maioria, se não todos os
acontecimentos que voltem um olhar para a cultura de Mossoró acontece em setembro.
O projeto do Instituto teve a sua frente professores como Vingt-Un Rosado, João
Batista Cascudo Rodrigues, América Fernandes Rosado e escritores como Raimundo Soares
de Brito, José Leite, o jornalista Lauro da Escóssia entre outros. Passam também pelo
Instituto enquanto membros o Cônego Francisco Sales, Elder Heronildes da Silva, Wilson
Bezerra de Moura, e atualmente preside Instituto o professor Aécio Cândido, o ICOP possui
sede atual na Biblioteca Municipal Ney Pontes, mas já manteve sede no Museu Municipal
Lauro da Escossia.
O Instituto tem a missão estimular o desenvolvimento cultural da região Oeste e de
Mossoró, tendo como pretensão formular um saber em comum para a Região Oeste, como
assegura João Batista Cascudo Rodrigues em seu discurso pronunciado no auditório da
Radio Tapuio diante da oportunidade da fundação do ICOP, em setembro de 1957,quando
enfatizou que “O Instituto que agora fundamos, com a consciência de suas finalidades,
estabelecerá novos paralelos no panorama cultural do Oeste norte-riograndense” (ICOP) e
ainda:

(...) seguirá o Instituto Cultural do Oeste Potiguar as dimensões de um


trabalho eclético, conciliando a suprema objetivação dos vários ramos das
ciências sociais, dos diversos gêneros literários e das afirmações artísticas,
pela integração comum no “status” da totalidades humana (ICOP, 1957, p. 05).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1009

Em Mossoró o Instituto une-se a Biblioteca e o Museu Municipal como mais uma


forma de enaltecer a cultura, as artes e intelectuais pertencentes ao município e da região,
como mais uma forma de enfatizar a forma de construir cultura em Mossoró.
Após um ano de sua fundação o Instituto Cultural do Oeste Potiguar- ICOP, lança sua
primeira revista, primeiro pelo Boletim Bibliográfico (1948), de Vingt-Um Rosado e depois
pela Coleção Mossoroense também de Vingt-Un Rosado, a revista Oeste, que possui edição
semestral e conta com matérias características que envolvem discursos sobre história,
poesia, contos, crônicas, um conteúdo que visa ser eclético, para tal conta principalmente
com seus sócios homens e mulheres das letras, que falam da cultura da Região, que dizem
de seus feitos que dizem do Oeste e de forma particular de Mossoró, também conta com as
palavras de professores e pessoas da região.
A Instituição vez ou outra nomeia novos membros, para ser um sócio é preciso um
currículo com publicações, editoriais, participação ativa nos movimentos culturais e claro ser
indicado por um sócio antigo, o currículo é analisado e após aprovados há uma solenidade de
posse, na qual pronuncia-se discursos que tecem considerações ao Instituto e seus sócios
antigos, assim como ocorre em outras Instituições a exemplo a AMOL (Academia
Mossoroense de Letras), que também conta com sócios, chamados de patronos. O Instituto
conta com dois segmentos de sócios, o sócio efetivo, é aquele que mora em Mossoró e
participa ativamente dos eventos promovidos pelo Instituto e o sócio correspondente que
mora em outra cidade e não participa ativamente dos eventos, visitando o Instituto apenas
ocasionalmente.
A revista seguiu com publicações semestrais até 1998, sendo esta a de número 10,
deste período até 2009, o ICOP não possui publicações, voltando à ativa em maio de 2010
com sua edição de número 11, a falta de publicações ocorre por questões financeiras e por
interesses, interesses que não estão claros. A revista de maio de 2010 apresenta uma
entrevista a Elder Heronildes, ex-presidente do Instituto e uma homenagem a Raimundo
Soares de Brito, além de seu conteúdo característico, contos, crônicas, artigos, poemas,
ensaios. O Instituto eterniza de certa forma seus sócios, sendo que um de seus idealizadores
João Batista Cascudo Rodrigues é o seu presidente perpétuo e Wilson Bezerra de Moura ex-
presidente do Instituto é seu presidente de honra, talvez uma forma de reconhecer o que
estes homens fizeram para que o projeto de um instituto desse certo.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1010

O Instituto Cultural do Oeste Potiguar-ICOP, possui o apoio e interesse da política


mossoroense, com o investimento o governo municipal seria notado pelo fato de contribuir
com a disseminação da cultura em Mossoró e na região Oeste em 1989, em sua oitava edição
conta com o apoio da então prefeita Rosalba Ciarline, é comum também o apoio de outras
instituições como fundações, gráficas etc. As revistas do Instituto Cultural do Oeste
Potiguar- ICOP, possuem páginas marcadas por discursos dos mais variados seguimentos e
motivos, geralmente são homenagens, agradecimentos, discursos de posse, sendo em seus
exemplares mais antigos a predominância.
Os primeiros exemplares da Revista Oeste analisados possuem prevalência de
discursos, sejam eles de posse de um novo membro do Instituto, seja em agradecimento por
parte de familiares do homenageado, que assim como recebia a homenagem nas páginas da
revista, também agradecia desta forma, por homenagens a antigos sócios, a escritores, enfim
uma gama de discursos que dizem de uma época, de uma região, de uma cidade, era o que
prevalecia no que diz respeito aos seus dez primeiros exemplares, até que em 1998 deixa de
publicar voltando apenas em 2010, já no novo século a revista sofreu algumas alterações,
além do conteúdo característico das edições anteriores os exemplares agora contam com
prosa, versos, poesias, contos, sem deixar de lado seu conteúdo de tempos atrás, os
discursos.
O Instituto Cultural do Oeste Potiguar volta à ativa (no que diz respeito a sua Revista)
em nova direção, a revista volta com suas publicações semestrais no comando do escritor
Clauder Arcanjo que pronuncia seu discurso ainda em 2009, sendo este publicado na edição
de maio de 2010. Os novos exemplares da Revista Oeste veem cheio de mudanças contam
com novo presidente, passam a ser publicados por outra gráfica, não mais pela Coleção
Mossoroense de Letras, mas pela Fundação José Augusto, ligada ao Governo do Estado do
Rio Grande do Norte.

(CARTO)GRAFIAS DISCURSIVAS DO OESTE POTIGUAR A PARTIR DO ICOP


Notadamente nos Estados ou espaços que são vistos e ditos ou que se vêem
e se dizem como periféricos, tanto em relação ao processo histórico, quanto
à produção historiográfica do país, costumam proliferar as atividades
acadêmicas, culturais, artísticas e políticas que reivindicam para si a
identidade de regionais. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2014, p. 4).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1011

A identidade de uma região é construída a partir do que se diz e do que se vê, como diz
Albuquerque Junior no texto acima, uma região sendo ela periférica ou não possui
características próprias, que são consideradas desta forma justamente por um modo
particular de produção, a região Nordeste muitas vezes lembrada como periférica, atrasada,
possui uma cultura, ou melhor, um modo de fazer cultura diferente de outros lugares, este
modo diferente está inserido nas mais variadas formas de cultura, como a cultura da fala, do
canto, da dança, e neste caso especial a cultura escrita, escrita que busca construir a região,
dá identidade ao espaço em que se escreve, espaço este notadamente o Oeste Potiguar, que
assim como outros espaços possui uma forma de construir uma identidade.
O Oeste Potiguar além das mais variadas formas de produzir cultura, de construir o
espaço, conta com a escrita, importante ferramenta para se entender o porquê do espaço ser
de tal forma, a escrita do Oeste Potiguar é marcada por discursos que buscam uma
identidade para a região. Uma Instituição, um meio de comunicação, influencia no cotidiano
de um lugar, na maneira de ser e de fazer de determinada região através do que escreve, do
que deixa transparecer como associação que constrói uma escrita e uma imagem enquanto
tal.
No que diz respeito ao Oeste Potiguar, o mesmo possui um Instituto, o Instituto
Cultural do Oeste Potiguar-ICOP que a mais de 50 anos constrói uma imagem para a região
Oeste através de sua revista, ao longo dos anos a revista de mesmo nome do Instituto, traz
páginas carregadas de um conteúdo voltado para mostrar e enaltecer a cultura, as crenças,
as maneiras de ser do Oeste, é através desta escrita que se percebe as intenções em volta
do que se escreve, do que se diz de um lugar, neste caso o Oeste.
O Instituto Cultural do Oeste Potiguar, através da revista Oeste tece considerações
sobre as principais cidades do Oeste, Martins, Pau dos Ferros, Assú, dentre estas e outras
cidades está Mossoró onde situa-se a cede do Instituto, Mossoró recebe uma atenção
especial, as páginas da Revista Oeste estão sempre marcadas por discursos e homenagens
seja pra cidade ou para algum de seus filhos, desde sua fundação é comum esse tipo de
abordagem como se nota já no discurso pronunciado na fundação do Instituto por João
Batista Cascudo Rodrigues. “Dizer da motivação disciplinadora da fundação do Instituto
Cultural do Oeste Potiguar, neste ponto culminante das comemorações da Abolição em
Mossoró [grifo nosso], constitui tarefa que demanda à reintegração da coerência da
atualidade local em face de seu passado espiritual.” (ICOP, 1957, p.5).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1012

Neste ponto, já no ato de sua fundação percebe-se que a finalidade do Instituto além
de propagar uma cultura para o Oeste, é também deixar claro o pioneirismo da cidade de
Mossoró, uma cidade a frente de seu tempo, que não seria fácil dizer de uma região como
esta, devido ao seu passado, a forma como foi construído e é lembrado, passado que
construiu uma identidade da qual se tem orgulho. A identidade de um povo marcada por um
ato que deve ser lembrado por qualquer órgão, e não seria diferente com o Instituto que
busca justamente mostrar o espaço cultural de uma região através de sua produção.
Ainda falando de Mossoró João Batista Cascudo Rodrigues assegura que “em
qualquer tempo, justificaria a revitalização das fontes culturais da cidade a conjuntura
uniforme de um povo marcado pelo sentido dos empreendimentos duradouros e lapidares”
(ICOP, 1957,p.5) , reforçando assim que a cidade de Mossoró construiu ao longo dos anos um
espaço uniforme e duradouro, que está sendo visitado pelo Instituto na intenção de criar uma
ponte que leva ao passado, ao espaço do passado, que será visitado por seu povo, pelos
membros do Instituto e com certeza pelas gerações futuras. O Instituto assegura essa volta
ao passado através de seus discursos, dos dizeres de seus membros.
O Instituto Cultural do Oeste Potiguar segue com suas publicações semestrais ao
longo dos anos, e no auge das comemorações de seus quarenta anos em 1997, o seu já
presidente perpétuo João Batista Cascudo Rodrigues, pronuncia mais um discurso, onde fala
do ICOP como Instituição que resistiu ao tempo, que contribui de forma intensa com a
propagação da cultura quando diz que “o ICOP permaneceu vivo, nestes quatro decênios.
Tem contribuído com o espirito aceso e marcante da continuidade, que não se interrompeu”
(ICOP,1997, p.4). O ICOP como facilitador do conhecimento mossoroense se postava
enquanto temporalidade, pois enfatizava que “este é o tempo icopiano, que produzira ciclos
de estudos e conferencias mossoroenses, edição de livros e folhetos de interesse histórico,
geográfico, etnográfico, econômico e cultural.” (ICOP, 1998, p.11).
As páginas da Revista Oeste mostram uma Mossoró pioneira, a primeira a libertar os
escravos, a primeira do voto feminino, a cidade que derrotou Lampião e seu “bando”, as
universidades, a Coleção Mossoroense, os intelectuais que idealizaram o projeto do ICOP,
além de outras Instituições, que apesar dos problemas que surgem na sua história “viverá o
tamanho do tempo e continuará pela eternidade a ser um berço de
pioneirismos”,(ICOP,1998,p.11) que “este chão os mossoroenses que nasceram em Mossoró
e dos mossoroenses que nasceram em todas as partes do mundo tem uma história grande,

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1013

sólida, eterna, como se tivesse sido feita de granito, de bronze” , “essa é a terra dos pioneiros,
grandes, corajosos, incomparáveis” (ICOP,1998,p.12) e ainda “terra engrandecida no cenário
histórico nacional, na libertação madrugadora da abolição da escravatura. Gleba
imortalizada, quiçá mundialmente, no episódio da participação do voto feminino,
liberalizando a mulher brasileira, dando-lhe a igualdade merecida.” (ICOP,1989, p.31). Desse
modo, a Região passa a ser sinônimo de Mossoró, as duas são confundidas, já que o discurso
que pretende ser regional aciona Mossoró enquanto representação da região Oeste.
Outra forma de imortalizar a memória da cidade seria os monumentos, marcando
assim um espaço que será lembrado pelas próximas gerações, no trecho a seguir é notável
esta intenção:

(...) postulo a ereção de três monumentos que representem, para as gerações


nascentes, os significados desses três fatos consubstanciados de
ingredientes econômicos, sociais e políticos, de marcantes repercussões,
sendo o dos TROPEIROS, no Alto da Conceição, preferentemente nas
proximidades e à direita da matriz, em dois grupos – um entrando na cidade e
outro dela siando, ambos dando ideia de seus objetivos- os dos
aprovisionamentos conduzidos na vinda e na ida.

Outro, o segundo, na Praça da Redenção, em frente à estátua da Liberdade,


nas proporções em que apareçam os valorosos lideres do Abolicionismo, com
destaque para o tribuno Almino Afonso, e também com as alegorias ao
grande feito pertinentes.

E o terceiro, num calçadão à esquerda da Igreja de São Vicente, configurando


a resistência memorável e personificando os bravos defensores da nossa
cidade, heroica e dinâmica.” (ICOP,1989,p.96).

Percebe-se que a intenção é tornar ainda mais visível o pioneirismo mossoroense. Os


tropeiros seria uma forma de lembrar o movimento do comercio de Mossoró, que atraia
comerciantes de todo o Oeste, que movimentava a cidade, que mantinham uma espécie de
troca, leva e traz, o segundo monumento citado busca além de uma homenagem a Abolição
dos escravos, mas a lembrança de seus idealizadores era preciso uma estátua para eternizar
os homens que tato fizeram para que Mossoró se tronasse a primeira, e o terceiro que possui
as mesmas características do segundo, é preciso um monumento ao lado da igreja que foi
testemunha da bravura do povo mossoroense, lembrando dos defensores da terra de Santa
Luzia (não é de conhecimento dessa pesquisa nenhum desses monumentos, acredita-se que
tenha existido apenas no papel).

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1014

As homenagens para com a cidade em si não são as únicas, é muito comum também
que o nome de seus intelectuais apareça “o ICOP é inspiração de homens como o professor
Vingt-un Rosado, João Batista Cascudo Rodrigues, Raimundo Soares de Brito, Lauro da
Escóssia, a quem hoje com simplicidade, mas com devoção homenageamos”(ICOP,1989,p.96)
, reforça que “a força da terra está também na sua elite intelectual, os que compõem a ESAM
e a Universidade Regional do Rio Grande do Norte, os que aqui nasceram e dos que se
tornaram filhos da terra pela vivencia”( ICOP,1989,p.42).
A revista Oeste deixa de circular por alguns anos, desde 1998 até 2009 ela não possui
nenhum exemplar, apenas em 2010 volta a ativa, e como é de se esperar seu conteúdo não
mudou muito, as materias possuem as mesmas características dos primeiros anos,
discursos, entrevistas, mesmo agora nesta nova fase que se iniciou em maio de 2010 e novo
presidente a Oeste continua com seu padrão, embora acrescenta-se a publicação versos,
prosas, contos, e considerável olhar para outras cidades do Oeste, sendo a principio uma
revista que deveria abranger todo o Oeste deixa a desejar, pois volta seu conteúdo para sua
cidade sede, mas na nova fase começa a cumprir seu papel de forma mais ampla.
As publicações continuam sendo semestrais, no primeiro exemplar de maio de 2010 a
revista traz uma entrevista/homenagem a Helder Heronildes um dos fundadores da Oeste,
onde o mesmo fala de sua infância, influencia na leitura, sua experiência na política estudantil,
sua escolha pelo curso de direito em Natal, a experiência como professor, do movimento
cultural dos anos 50, da fundação do Instituto Cultural do Oeste Potiguar, enfim a entrevista
faz um passeio pelos acontecimentos mais marcantes da vida deste intelectual, para assim
homenageá-lo, para assim lembrar-se da época de ouro de Mossoró. A revista ainda traz uma
homenagem a Raimundo Soares de Brito, também idealizador do Instituto, a revista não se
cansa em tecer adjetivos a Raimundo Soares de Brito ou Raibrito “um pesquisador
incansável, capaz de estudar um mesmo assunto por quase quarenta anos, como em nome
do Instituto Cultural do Oeste Potiguar. (ICOP,2010, p.22).
A revista de maio segue com seu conteúdo característico, e termina com o discurso de
posse do então presidente do Instituto Clauder Arcanjo, proferido em dezembro de 2009
onde o mesmo tece suas considerações e objetivos a frente do ICOP, e enfatiza que “Mossoró
e as cidades que formam o Oeste Potiguar apresentam a pujança incomum de um movimento
cultural heterogêneo e criativo.(ICOP, 2010, p.102) O presidente assinala as necessidades
para tornar o movimento cultural do Oeste uma política cultural pública enfatizando que

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1015

“nem o poder público sozinho pode dar conta da dinâmica cultural do Oeste, nem podemos
achar que os grupos ligados a cultura, isolados e sem o incentivo público, darão cabo do
desafio do fomento a cultura, em diferentes áreas.(ICOP, 2010, p.102). Então completa
dizendo “e, uma das nossas proposições é que o ICOP se insira nesse debate, participando,
incentivando, colaborando, apontando caminhos... A cultura do Oeste Potiguar é a nossa
razão de ser. (ICOP, 2010, p.102).
A segunda edição da Revista Oeste sob o comando de Clauder Arcanjo é publicada em
setembro de 2010, começa já enfatizando que esta edição “é o presente de aniversario do
nosso Instituto Cultural do Oeste Potiguar aos amantes da cultura.(ICOP, 2010, p.9) sim a
publicação se diz um presente aos amantes da cultura do Oeste, “presente” que atinge
apenas a uma parcela da população, e completa “pois o nosso Instituto, neste 30 de
setembro de 2010, alcança a marca de cinquenta e três anos de existência (ICOP, 2010, p.9).
O Instituto apesar de ter parado com suas publicações por doze anos, continuou com suas
reuniões e em setembro de 2010 completa cinquenta e três anos, setembro mês que marca
a cidade de Mossoró, que é considerada muitas vezes capital do Oeste, por ser um centro de
encontro cultural.
Esta edição conta ainda com uma homenagem a Manuelito Pereira dos Santos
Magalhaes Benigno ou Manuelito Pereira, que foi um fotografo reconhecido em sua época
por fotografar a cidade e as pessoas de forma peculiar, Manuelito ainda é lembrado por seu
legado na fotografia, uma sala do Museu Lauro da Escóssia é dedicada às lembranças e
fotografias do mesmo. A Revista segue com suas matérias características e encerra com a
prestação de contas do então presidente Clauder Arcanjo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
“[...] Aqui os espaços são pensados e feitos para durarem, para se fixarem no tempo e
fixarem o tempo, espaços monumentais...” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p.12). Os espaços
aos quais Albuquerque Junior se refere podem ser comparados aos espaços mossoroenses,
estes são lugares de memória, que se fixaram ao longo do tempo e fixaram um tempo a eles,
são exemplos desses espaços o Museu Lauro da Escóssia, a Biblioteca Municipal Ney
Pontes, o Memorial da Resistencia, a Praça da Redenção, entre outros, espaços que além de
lugares de memória são também monumentos, são construtores de uma identidade para a
Região mossoroense.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1016

Devemos registrar que o objeto deste estudo, ou seja, a construção da região do Oeste
Potiguar foi delineado na medida em que observamos a relação dos sujeitos com os espaços
produtores de discursos sobre a Região em tela. Assim, verifica-se que a escrita marca a
história de um povo, de uma cultura, do que se quer lembrar, a escrita inserida na Revista
Oeste é carregada de lembranças de homens e mulheres que ao longo do tempo alcançaram
um lugar de destaque, os discursos que trazem a Oeste tem uma razão de ser.
As páginas da Oeste estão carregadas de uma cultura, de uma maneira de viver típicos
do Nordeste, típicos de uma Região marcada por dizeres e fazeres, por intelectuais que
buscam visibilidade para suas obras e consequentemente para o lugar do qual escrevem e
habitam, intelectuais que ao longo do tempo ganharam as paginas dos jornais e revistas por
escreverem sobre seu lugar, por enaltecerem sua cultura e seu povo.
Entendemos o espaço do Oeste Potiguar como lugar de escrita e que foi escrito,
construído de acordo com os interesses de sua sociedade letrada, enquanto que para seu
povo mais humilde restou apenas o papel da luta diária no trabalho pesado. A escrita de um
lugar depende do que o envolve, do que possui, de quem o habita, os intelectuais escrevem
de acordo com suas vivencias, de acordo com o espaço onde centram-se.
O lugar de Mossoró no espaço do Oeste Potiguar foi assim construído por seus
sujeitos como espaço de pioneirismos, de homens que fizeram história por suas lutas, de
mulheres que lutaram por seu espaço na sociedade, o lugar de Mossoró foi construído
principalmente nas páginas, nos discursos da Revista Oeste que junto com seu Instituto
Cultural do Oeste Potiguar, formaram uma imagem não apenas para Mossoró, mas para toda
a Região, um lugar que, no que diz respeito à cultura foi privilegiado.

REFERÊNCIAS
ALBURQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos Mitos: A fabricação do folclore e
da cultura popular. São Paulo: Intermeios, 2013.

_______. O Objeto em Fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. Natal:


EDUFRN, 2014.

_______. No Espaço em que me Centro, em que me Identi-fico: sobre identidade e região.


Natal: EDUFRN, 2012.

FONTES
Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar, 1991, Série “B”.
Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar, 1989, Série “C”.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1017

Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar. ICOP, Mossoró: ICOP,2010.


Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar. ICOP, Mossoró: ICOP,2011.
Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar. ICOP, Mossoró: ICOP,2012.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1018

DA SEDUÇÃO AO CONFLITO: OS CINEMAS COMO ESPAÇOS DE


SOCIABILIDADES EM NATAL (1911-1929)

Karine Maria Lima Lopes742


Orientador: Prof. Dr. Raimundo Arrais743

INTRODUÇÃO
No dia 30 de outubro de 1911, os redatores do jornal A Republica noticiaram o
resultado de um concurso para eleição do nome da nova casa de diversões da cidade de Natal,
o Polytheama, localizada no bairro da Ribeira, na esquina em frente à praça Augusto Severo.
Conforme estampou o periódico, “o assunto da semana finda, do Alecrim ás Rocas e do Passo
á Solidão, foi o nome com que deverá ser chamada essa futurosa casa, que antes de abrir-se
já atrahe sobre si a curiosidade publica”744. Todos queriam certificar-se a respeito dos filmes.
Contudo, a técnica “era a verdadeira atração”745, uma vez que o aprimoramento do novo
aparelho, e o deslumbramento do público diante do cinematógrafo foram comumentemente
noticiados na imprensa local ao longo das primeiras décadas do século XX.
Nesse período, em Natal, os grupos dirigentes e os intelectuais ligados a eles
conduziram um intenso processo de transformações materiais, caracterizado por um
conjunto de ações sistematizadas do Estado na produção do espaço urbano. O ano de 1911
corresponde à introdução dos serviços públicos de eletricidade, a construção do forno de
incineração de lixo e a inauguração da rede de telefone na capital norte-rio-grandense. Tais
iniciativas foram executadas a partir de significativos incentivos governamentais e,
principalmente, por um empréstimo contraído aos banqueiros Perles Frères, Eugène
Vasseur e ao Banco Sindical Francês, em 1909, no intuito de acelerar o progresso da capital
e do estado através de investimentos nos “melhoramentos materiais”746.
Esses melhoramentos, termo que designava a modernização da estrutura física
citadina, foram pensados e efetivados “em nome da higiene e da salubridade urbanas”,

742 Graduanda do Curso de História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, campus Natal – Brasil. E-mail: karinelopes.2012@hotmail.com.
743 Docente do Departamento de História, da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), Centro de

Ciências Humanas, Letras e Artes, campus Natal – Brasil. E-mail: raimundoarrais@ymail.com.


744 FITAS. A Republica, Natal, 30 out. 1911. p. 2.
745 SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1987. p. 39.


746 ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Natal, 2017 (no prelo). p. 11.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1019

associados aos ideias de saúde, bem-estar e beleza747. Conforme podemos observar nos
relatórios de intendentes e governadores do estado, as ações empreendidas pelos governos
de Alberto Maranhão e Ferreira Chaves intensificaram o processo de transformações
materiais na capital. Dentre as obras inauguradas nesse período, podemos destacar o jardim
da praça Augusto Severo, a reforma do cais Tavares de Lyra, o calçamento e arborização da
avenida Rio Branco, o embelezamento de praças e avenidas e a criação de um novo bairro,
denominado Cidade Nova.
Através do jornal A Republica, os grupos que dominavam a política local consideravam
essas inovações técnicas como decisivas a aceleração da vida na cidade, e propagavam um
discurso segundo o qual, apenas a partir do processo de remodelação urbana, Natal teria
condições de realizar “uma obra capaz de arrancar o estado do atraso a que o velho regime,
a monarquia, o condenara”748. Fundado por Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, em 1899,
o periódico representava o Partido Republicano Federal do Rio Grande do Norte e publicava
atos oficiais do estado e do município, constituindo-se como “o maior porta-voz do
governo”749. Além da veiculação de resoluções e editais da Intendência Municipal, aglutinou
o maior número de nomes e produções sobre a literatura, escritas por intelectuais da cidade,
participantes ou simpatizantes ao grupo familiar dos Albuquerque Maranhão.
O espírito do progresso manifestava-se no domínio da política. Os grupos dominantes,
as oposições políticas e os homens letrados alimentavam a concepção de que havia “uma
força guiando os povos rumo ao futuro, em marcha acelerada, e que era preciso abrir
caminho para que o Rio Grande do Norte fosse colhido por essa força, pudesse ser arrastado
pelo seu campo magnético, absorvido na sua voragem”750. A revista Cigarra, por exemplo,
criada por iniciativa de intelectuais ligados à administração de Juvenal Lamartine de Faria,
formava boa parte da opinião pública da altas camadas urbanas e apresentava matérias

747 ANDRADE, Alenuska Kelly Guimarães. A eletricidade chega à cidade: inovação técnica e a vida urbana em
Natal (1911-1940). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009. p. 4.
748 ARRAIS, Raimundo; SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Viver na Cidade: Algumas possibilidades de estudo

histórico das formas de sociabilidade urbana na Cidade de Natal nas primeiras décadas do século XX. In:
ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira; FAGUNDES, José Evangelista; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da. (Org.).
Reflexões sobre história local e produção de material didático [recurso eletrônico]. Natal: EDUFRN, 2017. p.
253.
749 SILVA, Maiara Gonçalves da. “Em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal”: a vida intelectual

natalense (1889-1930). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade


Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014. p. 33.
750 ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Natal, 2017

(no prelo). p. 4.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1020

relativas aos ambientes de interação social de uma parte da sociedade natalense nos eventos
esportivos e bailes de famílias importantes de todo o estado durante os anos finais do século
XX. Esse periódico “apresenta-se com fotografias da cidade, de festas e de momentos de
lazer; anúncios de eletrodomésticos e artigos da moda; contos e poemas” 751.
Embora o novo emergisse da política à indumentária, essas medidas de melhoramento
não alcançaram meramente o espaço material, uma vez que suscitaram “mudanças nos
sentidos e usos sociais dos espaços que emergiam das transformações materiais”752. A
partir dos cinemas Potytheama, Royal e Cine-Teatro Carlos Gomes, buscaremos assinalar a
emergência de novos valores e formas de sentir, por parte das altas camadas urbanas, que
se distinguiam dos valores e dos comportamentos das classes populares. Para tanto,
analisaremos crônicas publicadas no jornal “A Republica” e na revista “Cigarra”, por Aderbal
de França entre os anos 1928 e 1929, bem como por Manoel Dantas, cronista de Coisas da
Terra, assim como as críticas direcionadas aos espectadores e produtores dos filmes,
veiculadas nos referidos periódicos.
Através das crônicas, publicadas desde a grande imprensa aos pequenos periódicos
de vida efêmera, os homens de letras, assumindo posições de escritores-jornalistas,
observavam os novos tempos da cidade, as novas dinâmicas da vida urbana, e as
representavam nas colunas dos periódicos veiculados diariamente753. A partir desse gênero
literário, é possível obter indícios das cenas urbanas que se desenrolavam na sociedade
natalense no período em exame. Manoel Dantas, sob o pseudônimo de Braz Contente,
versava sobre temáticas próximas do dia a dia dos leitores a partir de crônicas, fazendo
alusão aos bondes elétricos em tráfego, aos clubes, aos passeios na praia, e aos cinemas.
Escritas entre os anos de 1907 a 1923, na coluna Coisas da Terra, essas crônicas
caracterizavam-se por “uma firme convicção nas obras e nas iniciativas necessárias para
preparar o futuro do Rio Grande do Norte”754, sob o desígnio de contribuir com a realização
do progresso na capital.
O recorte temporal desta pesquisa corresponde ao período de 1911-1929, período no
qual enfatizamos a inauguração do Cinema Polytheama (1911), o primeiro cinema que

751 ANDRADE, Alenuska Kelly Guimarães. A eletricidade chega à cidade: inovação técnica e a vida urbana em
Natal (1911-1940). Op. cit., p. 29.
752 SILVA, Maiara Gonçalves da. Op. cit. p.202.
753 Ibid, p. 202.
754 ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Op. Cit. p. 11.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1021

instalou-se em caráter oficial na cidade, bem como a abertura do Royal Cinema (1913),
localizado no bairro da Cidade Alta. Finalizaremos nosso estudo em 1929, ano a partir do qual
foi-se desenhando, lentamente, um novo momento na história da cidade, haja vista a
consolidação de novos grupos políticos que ascendiam ao poder na capital desde a década
de 1920 e a influência da Segunda Guerra Mundial. Segundo Anchieta Fernandes, o Cine-
Theatro Carlos Gomes funcionou até o ano de 1932, tendo em vista o aumento do preço de
aluguel do prédio, instituído por Bertino Dutra, interventor federal no estado.

OS CINEMAS E A CIDADE: MUDANÇAS E CONFLITOS GERADOS PELAS NOVAS SALAS DE


EXIBIÇÃO
Os cines Polytheama e Royal, gerenciados por Alberto Leal, disputavam a preferência
do público, procurando cada qual oferecer maior variedade e publicidade de filmes, destacar
o conforto proporcionado, os preços favoráveis, a instalação de ventiladores e a luz elétrica.
Conforme salientou Nicolau Sevcenko, ao identificar categorias que fascinavam o imaginário
coletivo no processo de metropolização de São Paulo na década de 1920, os estúdios norte-
americanos encontravam-se em forte prosperidade, e criaram “instantaneamente uma legião
de entusiastas ardorosos, que encontravam no dinamismo técnico e temático das formas
artísticas compatíveis por excelência com os estímulos voláteis da cidade”755.
Aquilo que Flora Sussekind denominou de “o desfile das imagens técnicas em
movimento” propiciou uma significativa alteração nos comportamentos e na percepção do
público que passou a conviver cotidianamente com tais artefatos desde o século XIX 756. A
eletricidade, empregada nos pontos centrais de Natal ao longo dos anos iniciais do século
XX, ampliou as “possibilidades dos indivíduos percorrerem a cidade depois do pôr do sol”, na
medida em que a noite passou a ser vivida como uma continuação do dia, tornando a vida
mais dinâmica na capital norte-rio-grandense757. Como ressaltou o redator da revista Cigarra,
pondo em cheque a incerteza e a encantamento com que as plateias reagiam ao
cinematógrafo, a proximidade dos corpos, enfileirados ombro a ombro num arranjo fortuito,

755 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 93.
756 SUSSEKIND, Flora. O rastro da técnica. In: ____. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização

no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 41.


757 ANDRADE, Alenuska Kelly Guimarães. A eletricidade chega à cidade: inovação técnica e a vida urbana em

Natal (1911-1940). Op. cit., p. 101.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1022

bem como a escuridão das salas de exibição, atraíam também pelos namoros que
prometiam758.
Tal como assinalou Raimundo Arrais, ao enfatizar as divergências entre a “sociedade
elegante e confortável” e as condutas dos frequentadores nas salas de exibição nas
primeiras décadas do século XX, na cidade de Recife, o cinema “não apenas contribuiu para
mudar os hábitos antigos da cidade, como o de recolher-se antes das 9 horas da noite, mas
recebeu em suas plateias pessoas das mais diversas origens sociais” 759. Essa mudança de
hábitos provocada pelos cinemas também rompeu as portas do Teatro Carlos Gomes,
construído no centro do bairro da Ribeira, e aparentemente resguardado da presença de
camadas baixas da sociedade. Conforme enunciou Aderbal de França, secretário do jornal A
Republica: os teatros “surgem para em pouco tempo se transformarem em cinemas, e vão
os cinemas entrando nos palacios, que são os theatros”760.
A experiência de ir aos cinemas, contudo, não é única nem imutável761. Nos anos 20, a
indústria cinematográfica, principalmente norte-americana, adquiriu “um papel proeminente
como forma popular de lazer nas grandes cidades”762, visto que conseguiu colocar no
mercado sul-americano cerca de 70 milhões de metros de filme. Assim como observou a
historiadora Sheila Shvarzman, a partir das críticas cinematográficas de Octávio Gabus
Mendes publicadas na revista carioca Cinearte, nesse período o espetáculo cinematográfico
passou a ser associado à “evasão popular” e caracterizado, sobretudo, pelo exotismo763. Em
Natal, a atmosfera de surpresa e emoção lançavam os espectadores para fora de seu
cotidiano e, assim como os bondes elétricos, propiciou novas maneiras de vivenciar o tempo
na capital. Danilo, pseudônimo de Aderbal de França, diretor da revista Cigarra, se referiu a
essas transformações na coluna intitulada “impressões”:

Na scenas conheço dramas, tragédias e comedias que só com o longo


decorrer dos tempos poderia ler. Viajo em poucas horas paizes que jamais

758 INDISCREÇÕES. Cigarra, Natal, ano I, n.2, dez. 1928. p. 21.


759 ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos: as camadas urbanas na campanha Salvacionista de 1911.
Natal: EDUFRN, 1998. p. 51.
760 FITAS. A Republica, Natal, 18 Abr. 1928. p. 2.
761 SCHAVARZMAN, Sheila. Ir ao cinema em São Paulo nos anos 1920. Revista Brasileira de História. São Paulo:

AMPUH, v. 25, n.49, 2005. p. 161.


762 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.

São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 92.


763 SCHAVARZMAN, Sheila. Op. cit., p. 161.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1023

palmilharei. Acompanho a moda atravéz dos magnificos magasines de Paris,


admirando os soberbos modelos dos grandes alfaiates764.

Assim como discorre Márcia Marinho, no seu estudo sobre as sociabilidades e lazer
na cidade (1900-1930), o período especificado na crônica designava um aceleramento no
ritmo das construções de ruas e edifícios, principalmente com o ajardinamento de praças, a
inauguração de linhas de bonde e a iluminação elétrica. As aspirações do grupo governante
local de reformar a cidade, tal como observou, materializava-se, por exemplo, na Estação
Balneária de Areia Preta, nas soirées do Natal Club e nas partidas de futebol do Stadium
Juvenal Lamartine, espaços orientados pelo desejo do grupo governante de irradiar essas
formas de sociabilidades até que elas alcançassem, em maior ou menor grau, todos os
grupos sociais765. Sob essa lógica, os novos sentidos atribuídos aos espaços públicos ou
instituições formais impulsionariam as ações dos indivíduos, uma vez que as novas regras de
conduta e novos usos dos espaços públicos implicaram “na adoção de um modelo
específico”766, elaborado e reelaborado pelas práticas sociais.
O teatro Carlos Gomes, projetado pelo arquiteto Herculano Ramos e inaugurado em
1904, ano em que se encerrava o primeiro mandato do governador Alberto Maranhão, teve
sua imagem gradativamente vinculada a um cineteatro, concebido como uma escola dos
bons costumes, já que possuía uma função educativa de moldar os comportamentos do
público durante os espetáculos, evocando principalmente o respeito aos artistas. A nova
phase do cinema em Natal, consoante designou uma matéria publicada pela revista Cigarra,
contrastava-se com a pobreza artística das fitas “puramente americanas”767, visto que exibia
“as produções de maior vulto da cinematografia moderna, não só por sua technica, por seus
scenarios e por seus reclames, mas também por seus artistas”768. A composição
heterogênea do público no cineteatro, bem como os efeitos das exibições cinematográficas
na população urbana, foram descritos nas crônicas de Braz Contente. Conforme assinalou o
cronista, “o que fatalmente acontecerá no “Carlos Gomes”, com o cinema barato, é a
damnificação material do edificio”769.

764 Impressões. A Republica, Natal, 21 ago. 1928. p. 2.


765 MARINHO, Márcia. Op. cit., p. 124. ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. A cidade de Natal e os natalenses no
século XX. In: ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar; ANDRADE, Alenuska; MARINHO, Márcia. Op. cit. p. 76.
766 MARINHO, Márcia. Op. cit., p. 123.
767 SENSUALIDADE e espiritualidade. Cigarra, Natal, ano I, n. 1, 1928. p. 11.
768 A nova phase do cinema em Natal. Cigarra, Natal, n.4, 1929. p.62.
769 COISAS da terra. A Republica, Natal, 30 out. 1913.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1024

Isso porque, diferentemente dos anseios dos grupos dominantes da cidade, para os
quais o teatro era uma das suas formas privilegiadas de sociabilidade, as plateias dos
cinemas receberiam um público das mais diversas origens sociais, travando-se, assim, uma
série de embates entre o progresso e o atraso770. No jornal A Republica, determinados
indivíduos dirigiam queixas à imprensa local, contestando principalmente o hábito de fumar
nos cassinos, a ausência de policiais nos estabelecimentos, o desconforto das salas e seus
pífios ventiladores, e os tumultos provocados por aglomerações na porta de entrada771. Em
tom de indignação, um indivíduo anônimo, atônito com as cenas observadas durante as
sessões, escreveu ao redator-chefe do periódico, na perspectiva de denunciar a presença de
crianças durante as sessões, e solicitar aos delegados de polícia dos bairros da Ribeira e da
Cidade Alta a retirada de sujeitos que desobedeciam ao “decoro público”, e se comportavam
de “maneira irregular nos cines”772. Conforme escreveu: “[...] a estranha algazarra é praticada
por pequenos que, desamparados dos seus responsáveis, frequentam os referidos cinemas,
nas noites de exhibições dos films em series, perturbando assim à “ordem e o silencio”
impostos na lei”773.
A educação era compreendida pelos grupos dominantes e intelectuais ligados a eles
como um “meio necessário para o processo de desenvolvimento da sociedade”774. A
consolidação do ensino profissional na capital, por exemplo, almejava prevenir a vadiagem
entre crianças e jovens, constituindo-se como uma das obras mais sensíveis do progresso,
haja vista que “a atenção do governo à preparação dos filhos dos pobres e dos remediados
para o exercício de um ofício se apoiava na confiança depositada nas virtudes civilizadoras do
trabalho, trabalho em franco contraste com o ócio, fonte de todos os vícios”775. Entre os anos
de 1920 e 1924, durante a gestão do governador Antônio de Souza, foram criadas no Estado
cinquenta e quatro escolas primárias, uma das condições para que a capital se projetasse
para o futuro através de um “sistema educacional eficiente”776.

770 ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Natal, 2017 (no prelo). p. 16.
771 Sobre o desconforto nas salas. Cf. DE MINHA Carteira. A Republica, Natal, 19 dez. 1911. Sobre o
comportamento do público durante as sessões. Cf. OS DIVERTIMENTOS em Natal. A Republica, Natal, 7 mar.
1928.
772 POLICIAMENTO dos cinemas. A Republica, Natal, 8 jul. 1923. p.2.
773 POLICIAMENTO dos cinemas. A Republica, Natal, 8 jul. 1923. p.2.
774 FERNANDES, Gabriela. Entre a Cidade Nova e a Cidade das Lágrimas. In: ARRAIS, Raimundo. (Org.). A terra,

os homens e os sonhos: a cidade de Natal no início do século XX. Op. cit., p. 70.
775 ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Natal, 2017

(no prelo). p. 19.


776 FERNANDES, Gabriela. Op. cit., p. 71-72.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1025

Contudo, no dia 17 junho de 1921, uma matéria do Jornal do Norte, localizado no bairro
da Ribeira e dirigido por Café Filho, caracterizou a cidade de Natal como uma “espécie de
enferno desenganado”. Tal como observou o redator, os frequentadores dos cines
Polytheama e Royal se inquietavam diante da precariedade das estruturas físicas e
higiênicas desses estabelecimentos. As pessoas de pés descalços, as pulgas nos assentos
dos espectadores, o maior aviltamento das “fitas populares”, a ausência de preparo técnico
do operador e, sobretudo, o comportamento do público durante as sessões, assobiando,
batendo palmas e dando gritos, remetiam aos efeitos corrosivos da linguagem
cinematográfica, cuja indústria “contemplava demandas urgentes de massas
urbanizadas”777. Assim como descreviam os cronistas locais, observando o espetáculo em
sua totalidade, o cinema conflitava-se diretamente com a sociedade educada, uma vez que
“parecia estar sendo tomado por turbas grosseiras, desconhecedoras das regras de
comportamento que haviam sempre distinguido seu público”778.
Márcia Marinho associou tais inconformidades a uma imagem festiva, uma vez que as
descrições alusivas à rua “cheia de meninos e de outras pessoas na porta de entrada”
referiam-se, assim como pressupõe, ao comércio ambulante que movimentava a economia
informal, tumultuava a porta de entrada do Polytheama e provocava, portanto, as queixas
relatadas nos periódicos diários779. Assim, a multiplicidade de usos desses estabelecimentos
suscitavam deslumbramento e, sobretudo, cautela, principalmente pelo temor dos bem
pensantes locais “à corrupção da ordem familiar, a força das ruas atirando as mulheres e
ameaçando o papel a que estava destinada dentro daquela ordem, o papel de esposa e
mãe”780.
Os “exemplos perniciosos”, enfatizados pelas crônicas mundanas de Danilo,
impulsionaram mecanismos de controle desses estabelecimentos pela Intendência
Municipal e, ainda, pelo Governo do Estado. Tais agentes, vozes influentes dos chefes
políticos locais, atuavam nas esferas legislativa e executiva, versavam sobre uma série de
resoluções alusivas ao viver na cidade, e gerenciavam instrumentos legislativos acerca da

777 SEVCENKO, Nicolau. Op. cit., p. 95.


778 ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos: as camadas urbanas na campanha Salvacionista de 1911.
Op. cit., p. 52-53.
779 MARINHO, Márcia. Natal também civiliza-se: sociabilidade, lazer e esporte na Belle Époque natalense. Natal:

EDUFRN, 2011. p. 161.


780 ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Natal, 2017 (no prelo). p. 7.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1026

circulação nas vias públicas, a delimitação das áreas urbanas, ao estabelecimento de regras
de aforamento e de salubridade pública, as normas das edificações, os impostos sobre as
profissões, e os nomes dos logradouros públicos781.
No intuito de disciplinar os espaços de exibição cinematográfica, incutindo neles as
regras de civilidade almejadas em um ambiente de interação social “elegante e
confortável”782, no discurso dos grupos dominantes locais, Joaquim Inácio Torres, vice-
presidente da Intendência no ano de 1923, publicou um regulamento no que tange à
formalização da venda e distribuição de ingressos nos estabelecimentos de lazer e diversão
da cidade. Segundo a resolução, afixada nos locais públicos na cidade e no jornal oficial, os
ingressos vendidos pelos proprietários dos referidos locais e não confiscados pelo “previo
carimbo com o “sinete” da Intendencia Municipal” estariam sujeitos ao pagamento de uma
multa de 50$ e 500$783. Na ausência de registros minuciosos sobre as tensões que
percorriam a tomada de decisões dos pontos em pauta, e mais especificamente sobre quais
indivíduos as multas eram de fato impostas, pressupomos a existência de camadas sociais
diversificadas que “ameaçavam o cumprimento das determinações empregadas
coercitivamente pela Intendência”784.
Um dos indícios da conflituosa relação entre a ação dos frequentadores dos cinemas
e o poder público consiste no “regulamento da segurança publica”, no qual o poder Executivo
– através do governo do Estado – oficializou a proibição de certas condutas durante os
filmes, e especificou uma série de normas para inspeção policial dos teatros, cinematógrafos
e casas de divertimento público. A partir do decreto n.322, publicado em 1927, podemos
identificar a instituição de novos hábitos e novos comportamentos durante as sessões,
conforme explicitou o artigo 269: “No recinto dos theatros e das casas de projeção, não se
poderá fumar, nem fazer uso de bebidas, que só serão servidas no botequim ou no jardim do

781 ARRAIS, Raimundo. Estudo Introdutório. In: ARRAIS, Raimundo. (org.). A terra, os homens e os sonhos: a
cidade de Natal no início do século XX. Natal: Sebo Vermelho, 2017. p. 18.
782 O texto “Viver na cidade: algumas possibilidades de estudo da cidade de Natal” analisa alguns espaços de

sociabilidades dos grupos dominantes, tais como o Aeroclube. In: ARRAIS; FERNANDES. Op. Cit., p. 277.
783 ACTO. A Republica, Natal, 30 dez. 1923. p.3.
784 Uma análise mais detalhada das resoluções publicadas pela Intendência Municipal no jornal A Republica foi

realizada pelo Grupo de Pesquisa Espaços na Modernidade, e está disponível na seguinte referência: ARRAIS,
Raimundo; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da; VIANA, Hélder do Nascimento. A Intendência e a cidade: fontes
para o estudo da gestão da cidade de Natal (1982 a 1919). Natal: EDUFRN, 2012. p.10.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1027

estabelecimento. O infrator está admoestado e, na reincidencia, retirado do


estabelecimento”785.
A expressiva finalidade de “fazer calar os perturbadores”, contidos pelas autoridades
policiais no exercício de suas atribuições em nome da “ordem publica e dos direitos
individuais”786, nos permite exemplificar as ameaças constantes no que tange à efetivação
do progresso nos espaços de sociabilidades da cidade de Natal. As salas de exibição nos anos
de 1920 tornaram-se cada vez mais avessas ao caráter popular, e projetadas como lugares
de distinção social, tomando o teatro e a ópera como seus paradigmas de luxo e
organização787. Entretanto, o desejo de uma “cidade civilizada”, almejada pelos grupos
dominantes no plano material e imaterial, foram amedrontados por um crescente público
que “fazia um azucrim dos diabos”, e materializava vícios que precisavam ser combatidos788.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O regime republicano na capital norte-rio-grandense pretendeu representar-se como
um regime novo. Os grupos que dominavam a política local difundiram um discurso segundo
o qual Natal superaria a sua condição de atraso a partir de um amplo processo de
investimentos materiais, por isso inauguraram novos espaços de sociabilização e diversão
ao longo da década de 1920 e, através deles, novas maneiras de experimentar o tempo, a
velocidade e o lazer. A partir dos cinemas, identificamos tensões no âmbito dos novos usos
que foram lançados sobre os espaços públicos da cidade, já que esses ambientes de
interação social se contrastavam, em grande medida, os preceitos de uma cidade salubre,
ordenada e higiênica.
Portanto, por meio da análise dos conflitos, mais especificamente das diferenças, em
torno de como os diferentes públicos deveriam moldar seus comportamentos e suas ações
nas salas de exibição da cidade no século XX, podemos questionar os cenários exclusivos de
prosperidade e de remodelação urbana instaurados no período republicano. Além disso, esse
estudo contribui para compreensão de que, no período especificado, não havia meramente
duas camadas sociais, uma formada pelo grupo governante e outra composta pelos

785 Regulamento do Departamento da Segurança Publica [baixado com o Dec. n. 322, de 19 de Março deste
anno]. A Republica, Natal, 8 abr. 1927. p. 2.
786 Idem. A Republica, Natal, 8 abr. 1927. p. 2.
787 SCHAVARZMAN, Sheila. Op. cit., p. 155.
788 PONTOS. A Republica, Natal, 09 jun. 1911.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1028

populares, haja vista que existiam diversas outras camadas sociais que, mesmo que por um
breve instante, interagiam entre si.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Alenuska Kelly Guimarães. A eletricidade chega à cidade: inovação técnica e a
vida urbana em Natal (1911-1940). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009.

ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, Alenuska; MARINHO, Márcia. O corpo e a alma da cidade:


Natal entre 1900 e 1930. Natal: EDUFRN, 2008.

ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da; VIANA, Hélder do
Nascimento. (Org.). A Intendência e a cidade: fontes para o estudo da gestão da cidade de
Natal (1982 a 1919). Natal: EDUFRN, 2012.

ARRAIS, Raimundo; SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Viver na Cidade: Algumas


possibilidades de estudo histórico das formas de sociabilidade urbana na Cidade de Natal
nas primeiras décadas do século XX. In: ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira; FAGUNDES,
José Evangelista; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da. (Org.). Reflexões sobre história
local e produção de material didático [recurso eletrônico]. Natal: EDUFRN, 2017.

ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos: as camadas urbanas na campanha


Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN, 1998.

_______. Estudo Introdutório. In: ARRAIS, Raimundo. (org.). A terra, os homens e os


sonhos: a cidade de Natal no início do século XX. Natal: Sebo Vermelho, 2017.

_______. Estudo introdutório. In: DANTAS, Manuel. Coisas da terra. Natal, 2017 (no prelo).

FERNANDES, Ancheita. Écran Natalense: capítulos da História do Cinema em Natal. Natal:


Sebo Vermelho, 1992.

FERNANDES, Gabriela. Entre a Cidade Nova e a Cidade das Lágrimas. In: ARRAIS, Raimundo
Alencar Pereira. (Org.). A terra, os homens e os sonhos: a cidade de Natal no início do século
XX. Natal: Sebo Vermelho, 2017.

MARINHO, Márcia. Natal também civiliza-se: sociabilidade, lazer e esporte na Belle Époque
natalense. Natal: UFRN, 2011.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SUSSEKIND, Flora. O rastro da técnica. In: ____. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica
e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4
1029

SCHAVARZMAN, Sheila. Ir ao cinema em São Paulo nos anos 1920. Revista Brasileira de
História. São Paulo: AMPUH, v. 25, n. 49, 2005.

SILVA, Márcio Inácio da. Nas telas da cidade: salas de cinema e vida urbana em Fortaleza
nos anos de 1920. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.

SILVA, Maiara Juliana Gonçalves da. “Em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal”: a
vida intelectual natalense (1889-1930). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014

Anais do VIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RN e XIV Semana de Estudos Históricos do CERES-UFRN:
A História e o futuro da Educação no Brasil - ISBN 978-85-5697-925-4

You might also like