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Leslie A. Pal
Carleton University / Escola de Administração e Política Pública
Ottawa — Canadá
Os estudos sobre transferência, difusão e circulação de políticas são um campo fértil para a inovação no campo
da análise de políticas públicas. No mundo globalizado, onde as fronteiras do Estado são permeáveis e a política
pública viaja transnacionalmente, a difusão de políticas é o que conecta naturalmente a política doméstica à inter-
nacional. O recente aumento de publicações no campo consolidou um corpo de conhecimento denso e importante.
No entanto, após anos de pesquisa, parece que há agora uma certa estase, para não dizer uma estagnação, com
relativamente pouca inovação conceitual. Neste artigo propomos abordar novos caminhos para futuras pesqui-
sas, considerando o que precisa ser mais bem compreendido sobre o fenômeno da difusão de políticas. As novas
políticas a serem exploradas não estão, em nossa opinião, somente associadas às dimensões heurísticas do campo,
mas também às dinâmicas empíricas que emergiram nos últimos anos. Destacamos seis novas fronteiras para a
pesquisa sobre a transferência e a difusão de políticas públicas: (1) o papel do setor privado e dos consultores;
(2) a internacionalização das coalizões domésticas; (3) os espaços transnacionais e agentes de transferência; (4) a
tradução de políticas; (5) a resistência à transferência; e (6) as transferências Sul-Sul ou Sul-Norte.
Palavras-chave: transferência de políticas; agentes de transferência; arenas transnacionais; coalizões de políticas;
Sul global.
New frontiers and directions in policy transfer, diffusion and circulation research: agents, spaces,
resistance, and translations
Policy transfer, diffusion and circulation studies are a fertile ground for innovation in public policy analysis. In a
globalized world, where state boundaries are permeable and public policy travels transnationally, the diffusion of
policies is what naturally connects domestic to international policy. The recent surge of publications in the field
consolidated an important and dense body of knowledge. However, after years of research, there now seems stasis
if not stagnation, with relatively little conceptual innovation. In this article we propose to address fresh avenues
for future research, considering what needs to be better understood in the policy diffusion phenomenon. The new
frontiers to be explored are not only associated to heuristic dimensions of the field, but also to empirical dynamics
that emerged in the past years. We highlight six new frontiers for policy transfer and diffusion research: (1) the
role of the private sector and consultants; (2) internationalization of domestic coalitions; (3) transnational spaces
and transfer agents; (4) policy translation; (5) resistance to transfer; and (6) South-South or South-North transfers.
Keywords: policy transfer; transfer agents; transnational arenas; policy coalitions; global South.
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-761220180078
Artigo recebido em 9 mar. 2018 e aceito em 9 abr. 2018.
[Versão traduzida]
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RAP | Novas fronteiras e direções na pesquisa sobre transferência, difusão e circulação de políticas públicas: agentes, espaços, resistência e traduções
y la política pública transita transnacionalmente, la difusión de políticas es lo que conecta naturalmente la política
nacional a la internacional. El reciente aumento de publicaciones en el campo consolidó un cuerpo de conocimiento
denso y relevante. No obstante, después de años de investigación, parece que ahora hay un cierto letargo — por no
decir paralización —, con relativamente poca innovación conceptual. En este artículo proponemos abordar nuevos
caminos para futuras investigaciones, considerando lo que requiere una mejor comprensión sobre el fenómeno
de la difusión de políticas. A nuestro parecer, las nuevas políticas por explorar no están solamente asociadas a
dimensiones heurísticas del campo, sino también a dinámicas empíricas que emergieron en los últimos años.
Destacamos seis nuevas fronteras para la investigación sobre la transferencia y la difusión de políticas públicas:
(1) el papel del sector privado y de los consultores; (2) la internacionalización de las coaliciones nacionales; (3) los
espacios transnacionales y agentes de transferencia; (4) la traducción de políticas; (5) la resistencia a la transferencia;
y (6) las transferencias Sur-Sur o Sur-Norte.
Palabras clave: transferencia de políticas; agentes de transferencia; arenas transnacionales; coaliciones de políticas;
Sur global.
1. INTRODUÇÃO
Os estudos sobre transferência, difusão e circulação de políticas são um campo fértil para a inovação
no campo da análise1 de políticas públicas. No mundo globalizado, onde as fronteiras do Estado
são permeáveis e a política pública viaja transnacionalmente, a difusão de políticas é o que conecta
naturalmente a política doméstica à internacional. O recente aumento de publicações no campo con-
solidou um corpo de conhecimento denso e relevante: quadros analíticos como aquele apresentado
no trabalho pioneiro de Dolowitz e Marsh (2000) foram produzidos para facilitar os desenhos de
pesquisa e as análises. O papel dos agentes de transferência como indivíduos (Mintron, 1997; Porto
de Oliveira, 2017), think-tanks, atores não governamentais (Stone, 2004) e organizações internacio-
nais (Weyland, 2006; Pal, 2009) foi explorado em profundidade. No processo de integração europeia,
uma corrente separada de trabalho definiu o campo da “europeização” (Radaelli, 2008; Saurugger e
Surel, 2006). O papel de mecanismos como aprendizado, coerção, emulação e competição (Graham,
Shipan e Volden, 2013; Lee e Strang, 2008) foi considerado um consenso na área, como mostra o
artigo de Claudio Couto e Gabriel Bellon nesta edição especial da RAP. Novas ideias provindas de
outros campos de pesquisa, como a geografia — com a abordagem da mobilidade de políticas, re-
presentada no artigo de Jennifer Robinson também nesta edição especial — e a antropologia, foram
trazidas para o debate e obrigaram os analistas de políticas públicas a revisitar seu próprio trabalho.
No entanto, após anos de pesquisa, parece que há agora certa estase, para não dizer uma estagnação,
com relativamente pouca inovação2 conceitual.
Neste artigo introdutório, propomos abordar novos caminhos para pesquisas futuras, consideran-
do o que precisa ser mais bem compreendido no fenômeno3 de difusão de políticas. Esses caminhos
não são pensamentos concluídos, mas reflexões que ainda estão em construção, por meio das quais
esperamos fomentar o debate no campo. Este artigo, bem como a edição especial da Revista de Admi-
1
Porto de Oliveira e Faria (2017) identificam três tradições de pesquisa distintas na análise do fluxo internacional de ideias, modelos e
instituições políticas: transferência, difusão e circulação de políticas públicas.
2
Afirmação feita por um dos participantes durante os painéis sobre transferência de políticas públicas, na Conferência Internacional
sobre Políticas Públicas em Singapura, em junho de 2017.
3
Optamos por usar o termo “difusão de políticas” de maneira geral, refletindo os processos de “transferência, difusão e circulação” como
compreendidos por Porto de Oliveira e Faria (2017).
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RAP | Novas fronteiras e direções na pesquisa sobre transferência, difusão e circulação de políticas públicas: agentes, espaços, resistência e traduções
nistração Pública (RAP) introduzida por ele são resultados do Seminário Internacional sobre Difusão
de Políticas, realizado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em 2016. Durante a
conferência percebemos que o campo seria beneficiado se entendêssemos melhor as características
que têm sido negligenciadas pela literatura, tais como coalizões domésticas, atores privados, arenas
transnacionais, dinâmicas de resistência e tradução de políticas públicas. O objetivo das reflexões aqui
apresentadas é contribuir tanto para o debate internacional, onde os estudos estão bastante avançados,
como para a discussão brasileira, onde as análises estão apenas começando a adquirir forma (Porto
de Oliveira e Faria, 2017).
As novas fronteiras que precisam ser exploradas não estão associadas apenas às dimensões heurís-
ticas do campo, mas também às dinâmicas empíricas surgidas nos últimos anos, com o engajamento de
atores privados, a internacionalização de coalizões domésticas, a proliferação de arenas transnacionais
e com estratégias proativas dos governos do Sul na “exportação” de políticas. Em geral, o fenômeno
da difusão de políticas será mais bem compreendido se combinarmos análises que considerem as
escalas micro e macro (Hadjiisky, Pal e Walker, 2017). Os artigos publicados no periódico que aqui
introduzimos colocam em destaque aspectos importantes sobre essas questões e acreditamos que
ampliarão em muito as fronteiras da pesquisa sobre a difusão de políticas públicas.
Aqui destacamos seis novos caminhos para a pesquisa sobre transferência e difusão de políticas
públicas, caminhos que serão mais bem detalhados nos artigos publicados nesta edição especial da
RAP: (1) o papel do setor privado e dos consultores; (2) internacionalização das coalizões domésti-
cas; (3) espaços transnacionais e agentes de transferência; (4) tradução de políticas; (5) resistência à
transferência; e (6) transferências Sul-Sul ou Sul-Norte.
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RAP | Novas fronteiras e direções na pesquisa sobre transferência, difusão e circulação de políticas públicas: agentes, espaços, resistência e traduções
Considerando que essa questão é em grande parte uma terra incógnita, pelo menos para a litera-
tura de transferência de políticas, precisamos pensar em possíveis caminhos de pesquisa que possam
fortalecer e enriquecer a análise desse fenômeno, e aqui oferecemos três alternativas. A primeira delas
já tem sido explorada ocasionalmente: o papel das consultorias internacionais como McKinsey, Ernst
e Young ou KPMG, para nomear as maiores, embora possam existir dezenas, se não centenas, de
firmas especializadas (Kipping e Saint-Martin, 2005; Saint-Martin, 2000). As consultorias internacio-
nais a que nos referimos aqui são aquelas que possuem um grande número de escritórios por todo
o mundo, com filiais em diversos países. Essa capilaridade das empresas funciona como um sistema
de transmissão de ideias em torno da política pública, bem como favorece conexões locais com os
formuladores de políticas em esfera nacional e subnacional. Presume-se que a dinâmica de transfe-
rência nesse caso seja diferente da transferência de política de Estado para Estado, por meio da ação
de agentes públicos. A consultoria é frequentemente contratada por formuladores de políticas para
assessorar na solução de alguma questão, em áreas como política social (saúde e educação), setores
econômicos (tributação) ou serviços (transporte urbano). Os aconselhamentos sobre políticas públicas
(policy advice) apresentados pela consultoria são construídos em seu escritório local/nacional, tendo
como referência as “melhores práticas” e modelos internacionais, pesquisados para fundamentar suas
recomendações. A suposta vantagem comparativa das empresas de consultoria sobre outros agentes
de aconselhamento em políticas públicas, como think tanks ou instituições acadêmicas, ou mesmo
sobre a alternativa de buscar essa assessoria internamente em alguma agência governamental, é que
as consultorias são mais ágeis, atualizadas sobre as últimas inovações da prática de políticas públicas,
são mais focadas no pragmatismo e nas práticas, além de responsivas às solicitações do cliente. As
melhores empresas têm os recursos para recrutar excelentes profissionais, e assim constroem uma
reputação de qualidade e rigor, além de criatividade, enquanto o setor acadêmico, infelizmente, sofre
com a imagem de ser prolixo e abstrato. A questão é, onde as empresas obtêm suas ideias? As maiores
têm divisões dedicadas ao setor público, com especialistas que muitas vezes têm formação em ad-
ministração pública (eles podem, de fato, ser ex-funcionários do Estado ou, pelo menos, ter alguma
experiência no governo). Portanto, existem provavelmente as ideias vindas da formação acadêmica
dos consultores, mas também existem os recursos internos da própria empresa. Talvez o exemplo mais
intrigante e ilustrativo da transferência de políticas por meio do apoio de consultoria seja a deliverology.
Seu principal expoente é Michael Barber, que foi diretor da Unidade de Entrega de Serviços Públicos
do primeiro-ministro do Reino Unido, sob comando de Tony Blair. Posteriormente, Barber migrou
para a área da consultoria e para a academia, ocupando cargos na McKinsey e no Boston Consulting
Group, bem como na Harvard’s T.H. Chan School of Public Health and Graduate School of Educa-
tion. Barber é um exemplo vivo do entrelaçamento entre governo, academia, educação e consultoria.
As consultorias são atores particulares no âmbito do setor privado, que operam na comercializa-
ção de ideias ou oferecendo assessoria. São atores operando no mercado da assessoria para políticas
públicas. E no que diz respeito ao setor corporativo propriamente dito, empresas com fins lucrativos,
das quais não se esperaria que tivessem interesse na transferência de política per se, mas que acabam
se envolvendo nesse processo? Essa questão nos leva para uma nova linha de análise, envolvendo as
corporações e empresas com fins lucrativos que operam no campo da transferência de políticas, da
mesma forma que os lobistas fazem nos processos de política interna. O foco do advocacy internacional
tem sido, por muitos anos, nas organizações não governamentais, tipicamente em torno de questões de
direitos humanos e do meio ambiente, e aparentemente nenhuma empresa tem o mesmo perfil público
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RAP | Novas fronteiras e direções na pesquisa sobre transferência, difusão e circulação de políticas públicas: agentes, espaços, resistência e traduções
que ativistas de ONGs (e instituições de caridade) têm no cenário global. Esses atores têm, no entanto,
várias plataformas. Uma delas é a representada por organizações internacionais. Uma das pioneiras foi a
OCDE, que em sua fundação em 1961 estabeleceu dois comitês, um para empresas (o Comitê Consultivo
para as Empresas e a Indústria — Biac) e outro para os trabalhadores (o Comitê Consultivo Sindical
— Tuac). Nos últimos 20 anos, à medida que o número e o escopo de fóruns globais em quase todas as
questões políticas imagináveis cresceram, os negócios tornaram-se, de forma proeminente e rotineira-
mente, engajados em relação tanto aos seus pontos de vista como a suas experiências. Um exemplo é
a Iniciativa de Transparência nas Indústrias Extrativas (Eiti), patrocinada pelo Banco Mundial. Como
o próprio título sugere, a iniciativa reúne algumas das maiores empresas exploradoras de recursos do
mundo, governos, bem como ONGs ativistas e de advocacy, para elaborar protocolos e acordos sobre
transparência fiscal e financeira, tudo sob o amplo guarda-chuva da responsabilidade social corporativa.
Outro exemplo é a iniciativa liderada pela OCDE para lidar com a Erosão da Base Tributária e a Evasão
de Lucros (Beps). Isso envolveu mais de 100 países, suas administrações tributárias, o FMI, a ONU e o
G20, e produziu uma estrutura mais inclusiva no Beps, em que empresas e organizações da sociedade
civil foram envolvidas nas consultas. Outro exemplo ainda é o esforço global para a regulação do taba-
co. A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco é um instrumento global para a transferência de
instrumentos políticos globais que lidam com produção, venda e distribuição de tabaco, e as grandes
empresas — mesmo que explicitamente excluídas dos encontros entre as partes no acordo — fazem seu
melhor em termos de lobby, e obviamente tentam influenciar a implementação de regulações (Mamudu,
Cairney e Studlar, 2015; Kalra et al., 2017).
Isso sugere uma terceira via, para a análise do setor corporativo e seu papel na transferência de po-
líticas: a implementação. Por causa de o tradicional foco dos trabalhos sobre transferência de políticas
ser na “política”, ou seja, em suas características e em como ela circula de um lugar para outro, há menos
trabalhos enfatizando fases posteriores da adoção de políticas depois que a transferência ocorreu, ou
seja, na fase de implementação, que é um processo que frequentemente requer parcerias ou pelo menos
aquiescência passiva de setores econômicos que são afetados por uma nova intervenção política. Particu-
larmente em campos de políticas que dependem fortemente de instrumentos regulatórios — por exemplo,
produtos farmacêuticos, TI, saúde, transporte —, a necessidade de cooperação dos atores econômicos
no setor provavelmente levará a sua influência sobre o detalhamento dos regimes regulatórios (Walker,
2017). Podemos levar essa discussão um passo adiante ao considerar o campo da regulamentação não
baseada no mercado, como no caso do café, peixe e produtos florestais, onde uma quantidade signi-
ficativa da “transferência de política” está entre os atores privados (empresas e organizações sem fins
lucrativos). Existem pesquisas significativas nessa área, mas ela ainda não se conectou com a literatura
sobre transferência (Auld, 2014; Auld e Gulbrandsen, 2010; Cashore, Auld e Newsom, 2004).
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RAP | Novas fronteiras e direções na pesquisa sobre transferência, difusão e circulação de políticas públicas: agentes, espaços, resistência e traduções
e política de qualquer política pública. Na medida em que é resultado de um processo político que
envolveu debate, pontos de vista alternativos, alguma coisa de concessão e acordo e, também, ven-
cedores e perdedores, toda política pública é um balanço cristalizado das vitórias e derrotas, uma
leitura dos debates e dos conflitos que a produziram. É também, em algum nível, um reflexo das ca-
pacidades e dos contornos do sistema de políticas vigente. Esses são dois pontos distintos e merecem
duas ilustrações também distintas. No primeiro caso (tratando-se da ideia do balanço entre vitórias e
derrotas), imagine um país buscando um modelo para um novo imposto sobre o carbono. Um modelo
no país X adota a cobrança de uma forma ampla, a ser pago por famílias e empresas; o modelo não
prevê compensação do pagamento por meio de redução de impostos em outras áreas (digamos, nos
impostos sobre vendas); e reutiliza toda a nova receita fiscal na pesquisa de tecnologias verdes. Outro
modelo no país Y adota um imposto muito mais restrito, aplicado somente às empresas; introduz
uma compensação, reduzindo nos impostos sobre o rendimento das empresas o valor equivalente ao
imposto pago sobre o carbono; e não financia nenhuma nova tecnologia verde. Ambos são regimes
de “imposto de carbono”, mas o do país X foi provavelmente o resultado de uma batalha vencida
por grupos ambientalistas. O do país Y foi provavelmente o resultado de um ambiente político com
interesses comerciais muito mais fortes e lobbies mais fracos de grupos ligados ao meio ambiente.
Dizer qual modelo é tecnicamente melhor não é a questão. A transferência de um ou outro modelo
é também uma transferência de suposições políticas. Tentar transferir o primeiro modelo (que surge
em virtude de uma forte presença de setores ligados à área ambiental) para um contexto de política
com maior foco na liberdade empresarial significa assumir um risco.
Para o segundo exemplo, vamos observar um caso que realmente está acontecendo, que é a tentativa
de transferência de modelos ocidentais de igualdade de gênero e sexual como reflexo dos mais altos
padrões de direitos humanos. Entretanto, estes padrões (e seus respectivos instrumentos de política)
estarão alheios às culturas mais conservadoras e, mais importante, nessas culturas tais políticas não
teriam a força das organizações da sociedade civil que impulsionam esse tipo de agenda. O casamento
gay, por exemplo, não é necessariamente o resultado de uma coalizão majoritária, mas, em parte dos
lugares onde foi adotado, pode ser considerado uma mescla de uma cultura política e social. Nesse
sentido, trata-se tanto de uma “política pública” como de uma reivindicação para o estabelecimento
de uma cultura política mais ampla, com o aprofundamento da inclusão social.
É claro que os estudos sobre transferência e difusão de políticas têm notado cada vez mais a impor-
tância do contexto, da tradução e da adaptação (ver discussão adiante), mas estamos apontando para
um fenômeno diferente. Na medida em que as políticas que estão sendo transferidas (ou propostas
para transferência em nível internacional) são expressões das coalizões vencedoras que as apoiaram,
seria de se esperar que essa dinâmica de transferência tivesse uma conexão mais desenvolvida entre
a experiência doméstica e a internacional. A transferência de políticas pode ser um tipo de jogo de
“dois níveis” (Putnam, 1988), no qual as coalizões domésticas serão uma rede de apoio no processo
de transferência. O que pode parecer um espaço dominado por atores estatais pode, na verdade, ter
um “bastidor” mais complicado, preenchido pelos atores domésticos que apoiam um determinado
modelo de política e desejam vê-lo se espalhar mais amplamente. Podemos ver isso mais claramente
na recente turbulência na política externa dos EUA. De forma geral, a política externa dos EUA nos
últimos 20 anos foi considerada a representante de uma abordagem internacionalista, de direitos
humanos, intervencionista e amplamente globalista e neoliberal que se mostrou atraente tanto para
democratas quanto para republicanos. Refletiu um tipo diferente de “consenso de Washington”, um
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RAP | Novas fronteiras e direções na pesquisa sobre transferência, difusão e circulação de políticas públicas: agentes, espaços, resistência e traduções
consenso entre as elites das costas Leste e Oeste do país sobre o papel dos EUA no mundo e seu po-
sicionamento como exemplo em termos de democracia, direitos humanos e fronteiras e mercados
abertos. O presidente Trump simplesmente “chutou a mesa” com uma retórica America first, que
parece refletir uma coalizão diferente. Os efeitos disso estão se espalhando pela política comercial
americana, sua posição na ONU e sua política de imigração, para citar apenas alguns desdobramentos.
Um exemplo semelhante vem de países que normalmente são considerados os melhores exemplos
de regimes em termos de direitos humanos, são a “consciência” da ONU e modelos a seguir: os países
escandinavos e o Canadá. Mas quando esses países vão a reuniões internacionais para defender os
padrões e práticas de referência, quando participam de atividades de boa governança e promoção da
democracia, o Canadá e os países escandinavos têm em suas costas a pressão desses grupos domésticos
de defesa de interesses. Membros desses grupos também vão às reuniões, hospedam-se nos mesmos
hotéis das delegações, participam de reuniões preparatórias e relatam tudo assim que retornam para
casa (Pal, 1995). Esses grupos são as coalizões que “venceram” em seus espaços domésticos e buscam
garantir que seus governos defendam suas vitórias com a expectativa de que se tornem padrões dignos
de emulação internacionalmente.
A compreensão de uma dada política pública como marcada pelo processo que a produziu, como
um acordo obtido ou vitória consolidada, nos impele a um aspecto adicional do jogo de “dois níveis”
da transferência de políticas — isso pode ser muito mais do que simples negociações entre agentes da
transferência e destinatários. As coalizões domésticas do país X que estão oferecendo seu objeto
de transferência irão, em alguns casos, fazer questão de que a transferência seja bem-sucedida, uma
vez que isso reforçará sua própria vitória doméstica e implicará a difusão de seu modelo preferido.
Atores domésticos no país receptor em potencial (veja adiante a discussão sobre a resistência) que
apoiam e se opõem ao modelo estarão bem cientes dos riscos, não apenas por seus interesses do-
mésticos, mas também pelo que poderá acontecer nos próximos capítulos que se seguem na história.
De fato, na medida em que atores domésticos veem a política doméstica como um movimento em
um tabuleiro de xadrez internacional, eles tenderão a encarar suas lutas em um jogo de referenciais
teóricos mais amplos, especialmente se o tabuleiro de xadrez for estabelecido mais concretamente
em uma região geopolítica contígua e não no “mundo” ou no “globo”, o que representa uma noção
mais abstrata. Essas regiões podem ser a América do Sul, a União Europeia, o Sudeste Asiático etc.
Em relação à resistência às políticas, três exemplos ajudam a entender esse processo: a atual
renegociação na Nafta entre os EUA, Canadá e México é claramente um jogo de dois níveis, com as
respectivas posições nacionais refletindo os interesses das coalizões domésticas em cada país (por
exemplo, Canadá e seus produtores madeireiros contra os produtores dos EUA). No entanto, como
são negociações de tratados internacionais, a expectativa é mesmo de que haja certo confronto entre
os países em nome de seus interesses domésticos. Um segundo exemplo é o da crise migratória na
União Europeia (UE), o que é um tema bastante complicado. São diversas as situações relacionadas
com a questão. Entre elas, a existência do acordo de Schengen e suas disposições sobre o registro de
migrantes; as diferentes políticas anunciadas para Estados-membros como a Hungria e a Polônia
(com maior restrição na circulação), e a Alemanha e os países escandinavos (em geral, com menos
restrição); o referendum sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), que foi em parte
uma discussão sobre migrantes e controle de fronteiras. Mesmo que a crise pareça ter diminuído mo-
mentaneamente, os vários atores domésticos e estatais observam nesse contexto uma clara luta sobre
qual modelo prevalecerá e será aceito (ou transferido) para os demais na região. Nos bastidores dos
debates no âmbito da União Europeia em sua sede em Bruxelas, há uma espécie de “campo de bata-
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lha”, com o ressurgimento de movimentos nacionalistas que se defrontam com uma série de grupos
de direitos humanos, fundações e atores que se movem por toda a Europa, como a Fundação Soros.
Como era de se esperar, o governo húngaro desafiou diretamente a Fundação Soros, a Universidade
da Europa Central (financiada por Soros) e até a mídia, como parte de seu movimento de resistência
aos padrões colocados pela UE.
Além disso, as coalizões podem operar em “níveis múltiplos”. Há diversas práticas locais sendo
promovidas em todo o mundo, tanto para sistemas nacionais, domésticos, como para sistemas em nível
internacional. De fato, os ativistas do movimento municipalista, para defender seus próprios modelos de
políticas públicas, têm que lidar não apenas com seus governos nacionais, mas também com organiza-
ções internacionais, ao buscar espaço para legitimar suas ideias e práticas para a resolução de problemas
urbanos ou subnacionais. Um terceiro exemplo de resistência às políticas em processos de integração
regional é o emblemático caso da rede Mercocidades. Em uma primeira fase, a rede de cidades criada
entre prefeitos de cidades do Cone Sul em meados da década de 1990 foi uma tentativa de espelhar sua
versão europeia, a rede Eurocities. No entanto, a causa subjacente da conexão entre os prefeitos era resistir
(como será discutido posteriormente) ao processo de integração econômica regional — o Mercosul —
que vinha sendo implementado sob o guarda-chuva das ideias neoliberais defendidas por presidentes
dos países à época e as elites dos Estados envolvidos. Esse grupo de prefeitos progressistas construiu a
rede Mercocidades reivindicando a participação das cidades no processo de integração regional. Não
obstante, a rede tornou-se uma plataforma importante para a transferência de políticas sobre técnicas
de gestão urbana entre os membros e foi progressivamente incluída no Mercosul.
É de grande importância compreendermos com precisão os conflitos que são subjacentes a uma
parte significativa do processo de transferência de políticas, bem como as formas pelas quais as coa
lizões domésticas influenciam a dinâmica dessas transferências.
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raro. Mesmo nos casos em que há uma imposição institucional que induz os governos a adotarem
normas semelhantes, como é o caso das Constituições Estaduais brasileiras no artigo assinado por
Couto e Bellon nesta edição da RAP, há espaço para a interpretação das normas. A tradução pode
ocorrer, de formas inesperadas, em diferentes estágios do processo de difusão de políticas. Isso sig-
nifica que, ao longo da circulação das políticas, no tempo e no espaço, os modelos sofrem mudanças
e adaptações tanto em seus componentes materiais (por exemplo, modelo, arranjo administrativo,
programa, norma etc.) como na dimensão abstrata (ideia, conteúdo ideológico ou político, crença a
respeito da causa de um problema público, visão de mundo, princípios etc.).
Esse debate está presente nos estudos franceses, baseados na sociologia da ação pública (Halpern
e Le Galès, 2011; Delpeuch, 2009; Dumoulin e Saurugger, 2010), bem como nas análises inspiradas
no trabalho de Latour e na sociologia da ciência. Latour argumenta que, em meio aos processos de
difusão, os atores fornecem interpretações de fatos de acordo com seus interesses, produzindo nar-
rativas diferentes. Diane Stone (2017) destaca o papel dos atores governamentais, não governamen-
tais e privados como intermediários. A questão da tradução também foi trazida para o debate pela
discussão sobre a mobilidade da política (Peck, 2011), levando em conta sua mutação, bem como
pelos antropólogos preocupados com o tema dos movimentos e significados das políticas públicas
(Clarke et al., 2015). Nas palavras de John Clarke e colaboradores, à medida que a política viaja, ela “é
revisada, flexionada, apropriada e inclinada a encontros de diferentes tipos” (Clarke et al., 2015:15).
Os significados atribuídos às políticas se transformam ao longo dos processos de transferência.
Em suma, sem algum tipo de tradução, as políticas simplesmente não se encaixariam em contextos
diferentes, nem seriam aceitas por grupos heterogêneos. Adicionalmente, os atores frequentemente
lutam pelo conteúdo da política — como já mencionado — e alguns grupos podem se beneficiar mais
de um formato específico do que de outros. A ideia de que as políticas estão em constante metamorfose
nos leva a observar diferentes dinâmicas de transferência a que vale a pena dedicarmos atenção. São
dinâmicas que envolvem atores, seus interesses e relações de poder, bem como o contexto de adoção.
Esses processos de tradução podem produzir diferentes narrativas e instrumentos sobre políticas que
são aparentemente similares. Há duas dinâmicas que gostaríamos de destacar aqui. A primeira é a
tradução como uma estratégia para persuadir grupos específicos ou para resistir à imposição externa.
A segunda é a tradução de princípios bastante amplos e, de certa forma, vagos.
Observar o papel dos atores é importante para entender como as políticas são legitimadas em di-
ferentes contextos. É possível que existam vários tipos de diferenciação sobre como uma política deve
ser desenhada e implementada, qual modelo é mais apropriado para uma determinada circunstância
e contexto, bem como quais são os significados políticos que devem trazer consigo. É pertinente nesse
movimento definir a questão sobre como as políticas entram na agenda das instituições internacionais
e quais modelos estão sendo promovidos por essas instituições. As organizações internacionais não
são instituições monolíticas, ao contrário, são compostas por diferentes burocracias e grupos, cada
um com seus próprios interesses (Barnett e Finemore, 1999). Esses grupos de profissionais estão
constantemente rastreando políticas e melhores práticas em todo o mundo, que podem ser usadas
em projetos maiores. No entanto, para torná-los aceitáveis para grupos heterogêneos, alguns tipos
de tradução e simplificação são necessários. Essas “melhores práticas” são compartilhadas sem um
contexto, às vezes produzindo transferências incompletas e inadequadas.
Há um papel importante dos atores políticos, como os “embaixadores de políticas públicas” (Porto
de Oliveira, 2017) ou intermediários (Herring, 2010), na promoção de políticas dentro de organizações
internacionais e países. Para que esses atores consigam que suas políticas sejam aceitas pela equipe de
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é na verdade um processo que sofreu prejuízos e foi até derrotado, em virtude de tantas qualificações,
isenções, emendas, condições — para não mencionar as limitações concretas da implementação real.
O terceiro caminho, finalmente, se constrói sobre este último ponto. Trata-se de prestar atenção
aos arranjos institucionais, e particularmente à lógica de implementação. Até certo ponto, essa pers-
pectiva nos leva para fora do âmbito da análise de políticas e enfatiza a gestão pública, o mecanismo
de implementação, mas praticamente qualquer transferência de política, em qualquer escala, envolverá
instituições — novas agências ou atores de algum tipo, ou novas regras aplicadas por agências antigas.
As instituições serão os espaços de aplicação e, na ponta, os burocratas podem fazer mil cortes e sangrar
uma iniciativa política em pleno andamento. Burocracias e agências implementadoras também têm inte-
resses no processo político e defenderão seus interesses — resistirão — se acharem que devem e podem.
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do Fundo Monetário Internacional para esses locais não estavam produzindo os resultados esperados
e estavam até levando a uma maior desigualdade social. Especialistas e doadores perceberam que os
modelos do Norte do globo, como os países escandinavos ou o Canadá, ou os modelos projetados por
especialistas dentro do Banco Mundial (com influência clara de economistas) (Guilhot, 2000) não se
encaixariam adequadamente nos Estados do Sul. De fato, há uma diferença significativa entre esses
países em relação à organização do Estado e sua capacidade, bem como à cultura administrativa e
política, bem como nos índices de infraestrutura, econômicos e sociais. Ao mesmo tempo, algumas
experiências de políticas sociais em países como Índia, Brasil, México e outros mostraram resultados
importantes no combate à pobreza e à fome, por exemplo, por meio de Programas de Transferência
Condicionada de Renda (PTC), como pode-se observar no artigo de Saguin, Ramesh e Howlett.
Os Estados emergentes do Sul desenvolveram, especialmente a partir do final dos anos 1980, im-
portantes inovações nas políticas sociais e em outras políticas para reduzir a pobreza e a desigualdade.
Elas não foram projetadas em um contexto onde as instituições são bem estabelecidas e há uma boa
capacidade estatal. Ao contrário, se considerarmos o Brasil, o país apresenta um ambiente bastante
heterogêneo, do ponto de vista geográfico, possui climas e solos diferentes, com uma biodiversidade
vasta na floresta amazônica e a seca na região do cerrado, além de contar com uma longa costa. De-
mograficamente, possui centros urbanos com população densa, como a área metropolitana de São
Paulo com cerca de 20 milhões de habitantes, e as áreas rurais onde a população está mais dispersa.
O país passou por um processo de urbanização rápido e descoordenado a partir da segunda metade
do século XX, quando a população migrou do campo para cidades em busca de emprego. Temos de
acrescentar a tudo isso a falta de infraestrutura em certas regiões e o baixo nível das capacidades do
Estado. O cenário é semelhante para diferentes países da América Latina, assim como para outros
do Sul do globo. No entanto, foi nesse contexto, com a onda de democratização no final da década
de 1980, que o Brasil desenvolveu um importante conjunto de políticas públicas para lidar com as
questões sociais. Nos anos 2000, houve importantes inovações políticas que foram projetadas nessas
circunstâncias, mostrando resultados de impacto social. O Brasil não apenas construiu inovações
políticas, mas também contava com um contingente de especialistas em políticas públicas.
Exemplos dessas inovações são, em nível local, o OP, de Porto Alegre, e o sistema de Bus Rapid
Transit (BRT), de Curitiba. Nacionalmente, os Programas Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e o
Programa Nacional de Alimentação Escolar. Essas políticas foram exportadas para os países do Sul e do
Norte, como podemos observar hoje com Paris — que experimenta o OP — e com Iaundé (capital da
República dos Camarões), a Itália e as Filipinas — que implementam PTCs (sobre os PTCs, veja o artigo
de Saguin, Ramesh e Howlett) — em um movimento que levou à aprendizagem sobre as políticas a partir
de experiências realizadas no Sul (Porto de Oliveira, 2017; Silva, 2017). Há três dinâmicas interessantes
que surgem desse processo, que são (1) a inversão das relações de poder com os países do Norte e com
as organizações internacionais; (2) a competição pelo melhor modelo; e (3) a circulação dos indivíduos.
Essas soluções foram consideradas mais apropriadas para combater a pobreza, promovendo a
autonomia e a prestação de contas, bem como lidando com questões urbanas em países em desen-
volvimento, do que os modelos projetados no Norte. Mais do que isso, organizações internacionais e
agências de cooperação para o desenvolvimento endossaram essas políticas e as incluíram em dife-
rentes projetos. Uma nova comunidade de especialistas que trabalhou no Sul e passou suas carreiras
nesses países emergiu e começou a trabalhar não apenas para projetos nacionais de cooperação para
o desenvolvimento, mas também para instituições internacionais. Essa nova dinâmica promoveu a
circulação de indivíduos, informações e tecnologias de políticas vindos do Sul. A expertise também
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representou uma transformação nas relações de poder. Se nos anos 1980 e 1990 o Banco Mundial e
o Fundo Monetário Internacional usaram estratégias de condicionalidade para promover reformas
políticas nesses países, esse cenário mudou com a expertise política desenvolvida e o interesse dessas
instituições. Em síntese, o domínio do conhecimento técnico em políticas sociais aumentou o poder
dos países do Sul em relação às instituições internacionais.
Outra situação que surgiu foi que as relações de poder também se desdobraram como dinâmicas
regionais e internacionais de competição por modelos de transferência. O Brasil não estava sozinho
na produção de inovações políticas. De fato, diferentes países da América Latina e de outras partes do
mundo produziram políticas sociais bem-sucedidas, por vezes semelhantes e simultâneas, como o caso
dos PTCs, que foram implementados pela primeira vez no Brasil e no México. O caso do sistema de BRT
é interessante na medida em que Curitiba (Brasil) implementou um primeiro modelo e, posteriormente,
Bogotá revisou essa política e produziu outra versão mais sofisticada, a Transmilenio. A versão colom-
biana foi a marca registrada do governo Peñalosa (Montero, 2017), que saiu em defesa dessa política de
transporte em todo o mundo, contribuindo para sua circulação nas cidades latino-americanas, como
na Cidade do México (Mejía-Dugand et al., 2013). As instituições internacionais passaram a reconhecer
os modelos do Sul e recomendar sua adoção em outros países. O artigo de Saguin, Ramesh e Howlett
mostra o papel da equipe do Banco Mundial na adoção do PTC nas Filipinas, bem como o papel do
treinamento que os funcionários do governo filipino receberam do Brasil. A transferência desses mo-
delos tornou-se também simbólica para os países que buscavam ajuda internacional e para mostrar que
estavam no mesmo caminho, buscando a modernização das políticas públicas.
A última dinâmica de poder que precisa ser mais bem compreendida é como as transferências das
potências emergentes reproduzem algumas lógicas de transferências semelhantes aos mecanismos
Norte-Sul. Mais uma vez, o caso do Brasil é interessante, na medida em que esse país se concentrou
nas nações lusófonas como parceiros privilegiados. Diferentes projetos de cooperação para o desen-
volvimento foram estabelecidos com Cabo Verde, Moçambique e Angola, por exemplo, na África
Subsaariana. No entanto, ainda sabemos pouco sobre a incorporação desses projetos de transferência
no quadro mais amplo das dinâmicas econômicas e políticas, como a exploração de recursos naturais,
o acesso aos mercados e assim por diante. A questão é se as potências emergentes, que estão subs-
tituindo os países do Norte na arena da transferência de políticas para esses Estados, estão fazendo
isso com as mesmas ambições “imperialistas”.
Por fim, ainda não há muito trabalho desenvolvido a respeito das dinâmicas de aprendizado
mútuo (Constantine e Shankland, 2017). A transferência é considerada empírica e teoricamente
como um movimento unidirecional de um governo ou instituição movendo um modelo de política
para outro. No caso brasileiro, as discussões atuais no campo sugerem que os especialistas do país
oferecem assistência técnica a diferentes governos, mas não estão preocupados com o que poderiam
aprender com experiências estrangeiras (africanas e outras), para onde vão transferir políticas sociais.
Há também um entendimento subjacente de poder e dominação, que é dado como certo. Apesar de
entendermos as transferências como um processo unilateral, devemos prestar mais atenção na forma
como o processo de aprendizagem pode ocorrer em ambas as direções.
8. CONCLUSÃO
A transferência e a difusão de políticas são um campo de pesquisa e análise rico. Para nós, qualquer
entendimento coerente de políticas públicas deve evitar os binários local/global, nacional/interna-
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Internacionalmente, o fluxo de informações sobre políticas públicas tem sido radicalmente ace-
lerado pela tecnologia moderna, movendo pessoas e informações de um continente para outro.
[…] Em uma época em que a família média possui em sua casa bens com origem em pelo menos
três continentes — América, Europa e Ásia — as políticas públicas também se tornaram parte
do fluxo internacional de bens e serviços. [Rose, 1993:3]
Hoje, a interdependência, não o isolamento, caracteriza cada jurisdição de governo... [Rose, 1993:6]
Nossos contatos com outras cidades, estados e nações estão aumentando. Quando a insatisfação
surge em casa, não há razão para ignorar a maneira pela qual os governos em outros lugares
respondem a problemas semelhantes. [Rose, 1993:156-57]
Nossa resposta precisa ser breve. É certamente verdade que a ordem neoliberal global pós-1991 foi
fraturada. Os Estados Unidos não são mais hegemônicos, nem está claro que querem ser. Os blocos
de poder regionais e os países parecem estar se solidificando, a resistência e a turbulência parecem
surgir de forma regular, os fluxos de comércio e informação estão congestionados, cheios de curva, e
não navegam mais suavemente por linhas de crescimento contínuas e ininterruptas. E ainda assim... os
eventos e espaços transnacionais se multiplicam, bem como se multiplicam os problemas relacionados
com o bem comum global. Mais importante ainda é que os agentes da globalização (seja ela nefasta
ou benigna, dependendo da perspectiva de cada um) — a exemplo das organizações internacionais,
governos, ONGs, corporações transnacionais, consultorias, elites etc. — percebem essas inversões e
estão trabalhando duro para revertê-las. Para cada crítico e oponente da globalização, particularmente
de sua variante “ocidental”, há defensores novos e ferozes. Transferência e difusão não desapareceram
desse terreno mais conflituoso da globalização, e os desafios estão cada vez maiores tanto para os
profissionais como para os pesquisadores.
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