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AHISTORIOGRAFIA DA REVOLUGAO MEXICANA NO LIMIAR DO SECULO XXI: TENDENCIAS GERAIS E NOVAS PERSPECTIVAS Carlos Alberto Sampaio BARBOSA! Maria Aparecida de Souza LOPES? « RESUMO: O objetivo deste artigo 6 discutir, em linhas gerais, as principais tendéncias historiograficas da Revolugéo Mexicana. O trabalho se divide em. trés partes nas quais so descritas, em ordem cronclégica, as obras mais sig- nificativas, que foram publicadas durante o século XX dentro e fora do México, e que tinham como temitica a discussao do processo revolucionario em si, bem como livros e artigos que puseram em reviséo os postulados tedricos deste tema. Destacamos que as polémicas centrais sobre a Revolucao gira- ram em torno do cardter agrério desta e do alcance das reformas sociais pro- postas pelos governos pés-revolucionarios. = PALAVRAS-CHAVE: Revolugéo Mexicana; historiogratia; Revolugdo; Amé- rica Latina. A Revolugdo Mexicana ou as “Revolugdes Mexicanas”, como a par- tir de uma perspectiva se denominou 0 grande movimento armado que ocorreu no México entre 1910 e 1917, foi e € objeto de diversas contro- vérsias. Nos ultimos anos, jd se questiona a necessidade de estudé-la isoladamente por causa da extensa produgdo historiografica sobre o tema - sumamente rica no que se refere a andlise tedrica e metodolégica -, que conseguiu néo somente reyisar o “revisionismo”, mas também. 1 Departamento de Historia ~ Faculdade de Ciéncias e Letras - UNESP ~ 19800-908 - Assis ~ SP E-mail: casb@assis.unesp br. 2 Departamento de Historia ~ Paculdade de Histéria, Direito e Servigo Social - UNESP ~ 14400-690 — Franca - SP. E-mail: souza@iranca.unesp br. ‘Historia, So Paulo, 20: 163-198, 2001 163 constmir um sdlido corpus bibliografico que contempla as telagdes in- ternacionais, estudos biogrdficos (desde as principais figuras militares e Iideres civis até atores sociais pouco conhecidos, como mulheres e crian- Gas, entre outros), historias regionais, aspectos ideolégicos, culturais e matetiais. Toda essa producdo historiografica esteve acompanhada da Publicagao de uma ampla gama de memoérias, dicionérios e crénicas im- prescindiveis para compreender os acontecimentos da segunda década do século XX mexicano. Por esse motivo, as interpretagées acerca das causas e do signifi- cado da Revolucao variam bastante, dos primeiros estudos escritos pra- ticamente durante os levantes armados — alguns dos quais “sataniza- yam" © porfiriato e propugnavam o carater “vencedor”, “legitimo" e global da Revolugao — atravessou-se uma fase de “regionalizagao” que colocou em evidéncia as diversidades locais dos movimentos. Ao ressal- tar as especificidades geograficas, questionou-se a qualidade “reden- tora”, assim como o legado “revoluciondrio" dos acontecimentos de 1910. Em razdo desses fatores, alguns autores advogaram por substituir 0 termo “revolu¢ao" pelo de “revolta", posto que viram mais continuida- des que reformas na estrutura econémico-social mexicana do final do século XIX e da terceira década do XX. Também foram incorporados ao discurso historiogréfico atores que anteriormente haviam sido relegados pelos estudos precedentes, que insistiam em descrover os acontecimen- tos revolucionarios relacionados as grandes figuras militares. Nos ulti- mos dez anos, retorna-se a uma visdo geral dos acontecimentos de 1910 n&o somente no que diz respeito a abordagem geografica, mas também no 4mbito temporal. A andlise do porfiriato, assim como dos anos poste- tiores & luta armada, tornou-se praticamente imprescindivel. De fato, Poucos sao os estudos atuais que se circunscrevem exclusivamente ao contexto dos combates armados, e, em alguns casos, se analisam os anos de 1930 ou 1940, duas décadas fundamentais para o desenvolvimen- to do Estado pés-revolucionario. Este artigo retine algumas obras sobre a Revolugéo Mexicana nestas trés tendéncias — grosso modo denominadas “agraristas", “revisionistas" e “andlises contemporaneas" — que corres- pondem a divisao tematica deste. Essa “agrupagao" responde a uma ne- cessidade meramente expositiva e nao tem a intengéo de enquadrar os autores € seus estudos em blocos monoliticos ou homogéneos. Devemos esclarecer que é sumamente atriscado e complicado fazer um balango historiografico dessanatureza, nao somente pela impressio- nante quantidade de trabalhos disponiveis, como também por sua quali- dade e complexidade tedrico-metodolégica. Dessa forma, é evidente que deixaremos de lado ou mencionaremos de maneira breve a grande maio- 164 Histéria, Sao Paulo, 20: 163-198, 2001 tia dos estudos escritos sobre o tema ao longo do século XX. O nosso objetivo primordial é oferecer ao ptblico brasileiro uma perspectiva his- torica e geral sobre a condig&o atual da historiografia da Revolugao Mexicana, motivo pelo qual tivemos que estabelecer alguns critérios para selecionar as obras mencionadas neste artigo, Além de limitarmo- nos as publicagdes mais significativas e/ou recentes que se centraram. na andlise das questées fundamentais da Revolugao — causas, principais protagonistas, caracterizagéo e conseqtiéncias —, pareceu-nos impor- tante dar a conhecer referéncias bibliogréficas que nao encontramos nos acervos brasileiros. Também citaremos alguns artigos e livros coletivos orientados a discussdo e revisdo dos postulados e do legado dos anos 1910-1917 para a sociedade mexicana. Infelizmente, ndo foi possivel aprofundarmos em um grupo imenso de andlises sobre alguns persona- gens revolucionarios, como o livro classico de John Womack (1994) sobre 0 zapatismo e 0 ultimo de Friedrich Katz (1998) acerca de Francisco Villa. Em todo caso, sempre que for necessario e possivel, faremos men- ¢des bibliograficas as quais 0 leitor interessado poderé recorrer para apro- fundar aspectos precisos acerca da temética geral tratada neste ensaio. Apesar das dificuldades que os pesquisadores de historia da Amé- rica enfrentam no Brasil, devemos mencionar a existéncia de um con- junto importante de obras e autores dedicados ao estudo da Revolugéo Mexicana no nosso pafs. Entre os quais destacamos Ana Maria Martinez Cérrea (1983), Werner Altmann (1992), Héctor Alimonda (1986) e Marco Antonio Villa (1984, 1992,1993). Em contrapartida, no campo editorial, algumas tradugdes recentes, como a do livro de Héctor Aguilar Camin e Lorenzo Meyer, A sombra da revolugao mexicana, ampliaram as possibili- dades de divulgagdo de obras pouco conhecidas entre o publico brasilei- ro. Essa produgao editorial tem sido acompanhada de uma ampla dis- cussfo no meio académico nacional por meio de teses de mestrado e doutorado, além da publicagdo constante de artigos em revistas especia- lizadas. Finalmente, devemos reconhecer que é praticamente impossivel dissociar a imagem ou a historiografia da Revolugdo Mexicana da evolu- ¢ao do partido que se transformaria no seu principal porta-voz, o Partido Revolucionario Institucional - originalmente Partido Nacional Revolucio- nario, fundado em 1929 pela ctipula do governo do presidente Plutarco Elias Calles —- que, como o proprio nome revela, proclamou-se como 0 resultado “institucional” e legitimo dos conflitos de 1910-1917. De ma- neira relativamente constante, podemos seguir a tendéncia e a orienta- ao geral dos trabalhos sobre a Revolugao a partir do curso desse partido na histéria do México contemporéneo. ‘Historia, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 166 Primeiras andlises. A revolugdo.como triunfo e redengao Apesar das divergéncias sobre as causas, o significado e os resulta- dos da Revolucéo Mexicana, existe um consenso acerca de que, em vés- peras de 1910, o México era um pais basicamente agrario. O desenvolvi- mento econédmico do pais nas duas tultimas décadas do século XIX aprofundou as divisdes sociais e transformou os camponeses, de algu- mas zonas do campo mexicano, num “proletariado” rural. A politica econdmica porfiriana néo somente havia intensificado o processo de concentracdo da propriedade, com diferencas regionais bastante marca- das, como também havia promovido meios legais para atacar os peque- nos proprietérios, camponeses e comunidades indigenas que foram, paulatinamente, despojados de suas terras. Essa situagdo fez que mui- tos historiadores afirmassem que em 1910 a sociedade mexicana se en- contrava dividida entre uma enorme massa de campesinos desposeidos € um grupo pequeno de latifundiarios. Assim, aproximadamente até meados da década de 1960, a explicagao aceita das causas da Revolugdo se fundamentava nessa polarizacdo: os camponeses mexicanos levanta- ram-se em 1910 contra essa opress&o, para cortigir as injustigas, especial- mente em materia agraria, que a ditadura porfirista havia exacerbado. Outro fendmeno atribuido ao porfirlato foi a centralizagao politica. Depois de anos de desajustes politicos, guerras civis e internacionais — em 1848 quase metade do territério mexicano foi anexada aos Estados Unidos -, o México alcangou certa estabilidade durante os anos em que Porfirio Diaz governou o pais. Essa tranqiilidade relativa foi possivel em taz&o dos acordos que se estabeleceram entre os investidores nacionais € estrangeiros, sobretudo norte-americanos, e com os grupos locais de poder que haviam dominado a cena politica mexicana, ante a debilidade do Estado central, praticamente desde o final das guetras de indepen- déncia até a expulso dos franceses em 1867. Porfirio Diaz foi conside- tado pelos observadores contemporaneos como o responsdvel direto pela “pacificagao" do pais ¢ pela ades&o dos governadores a sua politica de “conciliagéio". Alguns dos agentes da centralizagao politica foram os Jefes politicos, funcionarios federais, leais ao presidente por ele desig- nados, que mantinham o controle sobre quase todos os assuntos politi- co-administrativos dos Estados da repiiblica. A partir desses persona- gens, Diaz nao somente estava atento a todos os acontecimentos das zonas mais remiotas da capital do pais, como também os controlava. A eclosdo do movimento armado no México em 1910 foi, em grande me- 166 Historia, S40 Paulo, 20: 163-198, 2001 dida, resultado da combinagao destes dois fatores: centralizagao poli- tica e pressées econémicas. Os trabalhos aqui analisados péem maior 6nfase num ou noutro aspecto para conformar o panorama das causas “explicativas" da Revolugdo Mexicana. Esse posicionamento oferece uma linha analitica que podemos seguir para conhecer as pautas historiografi- cas dos autores e das propostas teéricas defendidas em suas pesquisas. Os primeiros escritos sobre a Revolugaéo Mexicana tém em comum, além da perspectiva eminentemente agrarista e popular, uma busca das causas da Revolugao no passado remoto. De acordo com a tendéncia geral desses estudos, as divergéncias sociais que eclodiram em 1910 tinham um inicio preciso: 0 modelo econémico implementado pelos espanhdis que fomentou a divisdo da sociedade mexicana entre grandes latifundidrios, pueblos ou comunidades indigenas e camponeses sem- terras. Ao longo do periodo colonial e até mesmo depois da independén- cia, essas desigqualdades foram acentuadas; 0 porfiriato, nesse caso, re- presentou o ponto de culminagao desse “projeto econémico”, que aperfeigoou o Jatifundismo - modo de propriedade que prevaleceu até 1917 -, pois 0 sistema @ seus representantes conseguiram combinar desenvolvimento econédmico com a instauragao de leis para atacar “legalmente" as tieas comunales de los pueblos e a pequena e média propriedades. Assim, o levantamento iniciado em 1910 teve a grande tarefa de mudar nfo somente as condigées sociais imediatas de que padecia grande parte da populacéo mexicana, mas todo um legado de explorag&o, proveniente do século XVI. Um terceiro elemento comparti- lhado por esses escritores diz respeito aos principais “atores revolucio- narios”. A Revolug&o descrita por essa “primeira geragéo” de historiado- res é€ um movimento dos grupos e lideres vencedores. Embora concordassem em que houve uma patticipagao geral da sociedade mexicana nos levantamentos e que os principais sujeitos revoluciona- rios foram os camponeses motivados pela luta contra a exploragao rural e pela reforma agraria, pouco espago foi concedido aos projetos que ndo vingaram; a narrativa desses autores concentra atencao naqueles perso- nagens que conformaram a “sintese revoluciondria nacional", como Venustiano Carranza , ou nos governantes pés-revolucionarios. Com algumas divergéncias, os trabalhos de Jesis Silva Herzog e Frank Tannenbaum compartilham essas caracteristicas. Segundo Her- zog (1969, p.7), “a causa fundamental desse grande movimento social, que transformou a organizagaéo do pais em todos ou quase todos seus variados aspectos, foi a existéncia de enormes haciendas em poder de umas quantas pessoas de mentalidade conservadora ou reacionaria...”. Histéria, Sao Paulo, 20; 163-198, 2001 167

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