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Melhores do Brasil. Revista Quatro Rodas, Ano 58, Edição 718, Fevereiro de 2019.
da produtividade) às custas de um downgrading social (redução salarial e perda de
direitos trabalhistas), contribuindo para o aumento dos investimentos do setor nesse país.
Contudo, mesmo que a Ford implementasse uma política agressiva de
downgrading social, piorando ainda mais as condições dos trabalhadores brasileiros, isso
surtiria pouco efeito, pois a verdade é que a montadora vem perdendo market share no
Brasil (de 9,53% em 2017 para 9,24% do mercado nacional em 2018). No Brasil, onde
ainda detém a quarta posição do mercado, suas vendas vêm despencando e praticamente
se escoam na linha Ka. Dos 226.437 veículos emplacados em 2018, 103.286 (45.6%)
eram do modelo Ka Hatch e, considerando a versão sedã, o Ka foi responsável por 62,8%
das vendas da Ford no período3. Fiesta, EcoSport e a linha Ka são o carro-chefe da Ford
no Brasil. Entretanto, o Fiesta, único fabricado em São Bernardo do Campo, perdeu
competitividade no mercado nacional, e os outros dois modelos são fabricados na fábrica
de Camaçari. De acordo com o plano de reestruturação global da empresa, a tendência é
que ele seja aposentado e substituído por um investimento maior no segmento de Sport
Utility Vehicles (SUVs).
Da mesma forma, a Ford só atua no mercado de caminhões na Turquia e no Brasil,
onde produz os modelos Cargo, F-4000 e F-350. Nesse segmento, a Ford saiu de 13,74%
do total de emplacamentos em 2016 para 11,99% em 2017 (FENABRAVE, 2016 e 2017),
complementando um cenário de declínio da sua produção de caminhões, que caiu de
22.199 veículos produzidos em 2014 para 9.949 em 2016 (ANFAVEA, 2019). E esses
números não parecem ter relação com o melhor desempenho das marcas concorrentes,
como a MAN Latin America, a Mercedes-Benz e a Iveco, pois as mais fortes (Scania e
Volvo) atuam em um segmento de caminhões premium, diferentes dos modelos Ford.
Trata-se mesmo de uma reformulação em curso do seu modelo de negócios.
A longo prazo, o encerramento da produção de um determinado modelo pode
gerar transtornos a consumidores pela possível escassez de peças e equipamentos de
reposição, que alimentam o expressivo mercado de pós-venda sob o qual as montadoras
detêm considerável participação. Mas essa é uma especulação para o futuro. De imediato,
fica indicado que estamos tratando de uma empresa que perderá mercado nos próximos
anos. Nesse cenário hipotético, não se descarta uma fusão ou aquisição por outro grupo,
desfecho bastante comum no segmento automotivo. Entretanto, isso em nada aliviará a
vida dos milhares de trabalhadores e, mesmo que a Caoa adquira a planta, não há qualquer
indicação do que será produzido, como será produzido e sob que condições será
produzido. Assim, temos aqui um conjunto de razões que, do ponto de vista da Ford, não
justificam a continuidade das suas operações em São Bernardo do Campo.
É desnecessário dizer o quanto a gigante norte-americana fundada em Dearborn,
Michigan, em 1903, foi representativa das (r)evoluções organizacionais e tecnológicas da
indústria automotiva ao longo do século XX (BEYNON, 1996). Hoje, contudo, longe de
ser uma empresa de vanguarda num mercado altamente concorrencial, procura se manter
competitiva enquanto fabricante de veículos automotores e se manter como negócio
atraente para os seus acionistas, muitos dos quais poderosos grupos de investimento,
mesmo considerando que aproximadamente 45% da sua lucratividade sejam provenientes
de atividades financeiras vinculadas à produção, como vendas a prazo e leasing
(CARMO, SACOMANO & DONADONE, 2018; FROUD, JOHAL & WILLIAMS,
2002). Inclusive, a financeirização já é uma realidade entre os grupos automobilísticos
desde a década de 90, quando esses conglomerados originalmente dedicados à fabricação
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Arrimo de Família. Revista Quatro Rodas, Ano 58, Edição 718, Fevereiro de 2019.
de automóveis começaram a se inclinar à diversificação do seu portfólio, com bancos que
financiam a compra de veículos, atividades de pós-venda (reparo e reposição de peças) e
até venda de seguros de automóveis.
Alguns movimentos recentes da Ford parecem indicar o tipo de estratégia que
adotará para conseguir “ir mais longe” (Go further). Um deles é a anunciada construção
de uma aliança com a Volkswagen, com a qual compartilhará uma plataforma de picapes
médias. A parceria, contudo, não é uma reedição da Autolatina, uma empresa que vigorou
entre os anos 80 e 90, originando veículos compartilhados, isto é, veículos praticamente
idênticos (como o Volkswagen Apollo e o Ford Verona) mas de marcas diferentes. Outro
movimento aparente é a redução do line up de produtos disponíveis, cortando os menos
rentáveis e almejando ganhos de escala em segmentos com os de SUV e de carros maiores
em detrimento dos carros menores, transição já em curso no mercado norte-americano,
onde a Ford fechou três plantas (Norfolk, Virgínia; Wayne e Wixom, ambas em
Michigan) entre 2007 e 2011 (MEDINA & CARRILLO, 2014).
Por fim, silenciosamente, o fechamento da planta do ABC esconde um complexo
processo disruptivo que já vem alterando profundamente o modelo de negócios desses
grupos automobilísticos. Esconde porque esses grupos continuam a praticar todo tipo de
chantagem locacional e a pressionar o poder público por incentivos fiscais para fábricas
que não se sabe por quanto tempo existirão. Enquanto isso, testemunham a profunda
disrupção em curso no setor automotivo, a qual mexerá com a posição incumbente de
certos grupos e criará novos nichos de mercado. A Ford é parte ou vítima desse processo,
constituído dos seguintes movimentos irreversíveis: a) a quarta revolução industrial, com
potencial para dizimar o emprego industrial através da indústria 4.0; b) a eletrificação,
com impactos que vão desde uma nova concepção de automóvel, menos poluente e
independente do combustível fóssil, até a desestruturação do segmento de oficinas
mecânicas, fadadas ao desaparecimento, mediante a menor complexidade do motor
elétrico; e c) o fortalecimento casado dos conceitos de autonomia, conectividade,
mobilidade e compartilhamento, submetendo cada vez mais as empresas do setor àquelas
do segmento de alta tecnologia, como a Google e o Facebook.