Núcleo de Estudos Estratégicos
em Defesa e Segurança
Por Luiz Claudio Talavera de Azeredo*
Um ataque contra soldados do exército da
República Democrática do Congo foi registrado
no mês de abril de 2019 no remoto vilarejo de
Kamango, situado na província de Nord Kivu,
no extremo leste do Estado africano em pauta.
Poucos dias após, a “agência de notícias” Amaq,
que veicula notícias da organização jihadista
Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EI -
também denominada Estado Islâmico do Iraque
e do Levante), reivindicou a autoria do ataque
para o EI informando que o ato havia sido
realizado por militantes da “Província do EI na
África Central”.
A reivindicação da autoria do ataque para o EI
levantou suspeitas quanto à sua veracidade pela
dúvida da capacidade do grupo jihadista de atuar
em outras regiões do globo ao mesmo tempo em
que têm sofrido repetidas derrotas, advindas de
combates contra fortes opositores, em territórios
anteriormente controlados no Oriente Médio.
A verossimilhança do estabelecimento do
aludido território fundamentalista na África é o
que se pretende analisar sinteticamente neste
texto a partir de dois fatores basilares: a situação
atual do EI e a região do pretenso território
africano anunciado.
Com relação a situação atual do EI, os dados
disponíveis e as informações transmitidas no
noticiário internacional deixam claro que seu
poderio militar e seu domínio territorial têm
diminuído continuamente a partir dos
constantes enfrentamentos contra diferentes
oponentes tanto Exércitos Regulares, a exemplo
do Exército do Iraque, como milícias populares,
apoiadas ou não por distintos atores externos,
que lutam para livrar áreas no Oriente Médio do
jugo do EI.
Poucos dias após o ataque realizado na RDC,
um atentado contra igrejas católicas ocorrido no
domingo de Páscoa no Sri Lanka lançou luz
sobre a dúvida em questão a partir de sua
reivindicação pelo EI.
As investigações realizadas revelaram ceticismo
quanto à participação direta de militantes do EI
no ato e indicaram como autor do ataque um
grupo islâmico radical do país com ligações com
grupos congêneres em outras partes do mundo.
A tentativa do EI em assumir um ataque não
realizado diretamente é coerente com conclusão
de alguns analistas no sentido de que o ataque
na RDC, foi na realidade, realizado pela
organização jihadista “Forças Democráticas
Aliadas” (ADF no seu acrônimo em inglês) de
Uganda.
A organização acima referida tenta, há cerca de
20 anos, estabelecer uma área sob controle
jihadista na sua região de atuação, mas só
conseguiu apenas controlar de forma temporária
pequenas cidades isoladas em regiões remotas.
Existem dados de que, há alguns anos, a ADF
iniciou uma aproximação com o EI a partir da
clara identificação de propósitos. Tal
procedimento foi intensificado pela utilização
de símbolos do EI e de alegações de possível
recebimento de recursos das mesmas fontes
financiadoras do EI.
Ante o exposto, pode-se concluir parcialmente
que, apesar da tentativa do EI de assumir
ataques realizados em outras regiões do globo,
dados consistentes apontam para sua potencial
incapacidade em realizar atos efetivos fora do
Oriente Médio, sendo tais ações realizadas por
grupos menores com propósitos similares aos da
organização jihadista com maior visibilidade
internacional.
Com relação à região do pretenso território
africano cujo domínio foi anunciado, destaca-se
que a grande permeabilidade fronteiriça entre
Uganda e a RDC e a precária infraestrutura
existente no local, em especial a rede de
circulação viária, são fatores que favorecem a
existência de grupos armados na área.
Tais agrupamentos, como a já mencionada
organização jihadista “ADF”, se homiziam nas
Anúncio do estabelecimento de uma “Província do
Estado Islâmico” na África Central: uma análise e
possíveis reflexos para o Brasil
remotas regiões de fronteira de ambos os países Tal linha de ação objetiva evidenciar a falsa
e aproveitam o vácuo de poder dos Estados impressão de que o grupo ainda retém
nacionais da região para atuar de acordo com capacidades de atuação militar muito superiores
suas agendas de objetivos, em regra as que possui na realidade.
extremamente danosa aos direitos humanos das Fica então delineado um cenário de perda de
escassas e paupérrimas comunidades locais. capacidade combativa do EI, em que pese ainda
Ainda que a região em questão possa ensejar inspirar grupos jihadistas de menor vulto ao
facilidades para abrigar militantes que redor do globo incentivando e aceitando sua
planejariam realizar uma hipotética “retirada citação pelo alinhamento de sua agenda de
estratégica”, as grandes dificuldades de objetivos.
infraestrutura acarretam, entre outros óbices, Adicionalmente, pode-se concluir também que
enormes obstáculos à comunicação e ao fluxo em caso de um efetivo estabelecimento do EI na
logístico, situação adversa para uma região anunciada, será iniciado um processo de
organização com intenções de fortalecimento “confinamento” que possivelmente redundará
institucional e de divulgação de suas atividades no fim das ações de vulto do grupo jihadista em
no contexto internacional. razão dos fatores já citados.
Nesse contexto há registros de que o Para o Brasil, identificam-se reflexos no campo
estabelecimento em regiões isoladas no das informações públicas uma vez que é
médio/longo prazo se revelou prejudicial para crescente a presença de militares brasileiros na
grupos armados que, apesar da facilidade de RDC no âmbito da Missão da Organização das
movimentação pelas matas e pequenos Nações Unidas para Estabilização da RDC
povoados, acabaram por perder gradativamente (MONUSCO).
seu poderio, principalmente pela dificuldade de O recente desdobramento de instrutores de
suprimento e de mobilidade fora de sua região Centro de Instrução de Guerra na Selva de
de homizio. nosso Exército para instruir a Brigada de
Intervenção da missão evidencia uma
participação mais efetiva de nosso país nas
Para o Brasil, identificam-se atividades de apoio ao trabalho da MONUSCO
reflexos no campo das informações cujo comando já é exercido por um general
públicas uma vez que é crescente a brasileiro.
Interpretações apressadas podem conduzir ao
presença de militares brasileiros na
raciocínio equivocado de que o anúncio do
RDC no âmbito da Missão da suposto território africano controlado pelo EI
Organização das Nações Unidas acarretaria riscos adicionais aos brasileiros na
para Estabilização da RDC RDC, premissa já identificada como não válida
ao longo do texto.
(MONUSCO).
Circulam ainda na internet indicações de que o
EI anunciou o estabelecimento de um suposto
Exemplifica a argumentação em pauta a atual
território na República Centro Africana, outro
situação do grupo armado “Exército de
país na região com a presença de militares
Resistência do Senhor” (LRA no seu acrônimo
brasileiros.
em inglês).
Tais indicações, geralmente advindas de
Grupo ugandês de inspiração religiosa (cristã
traduções imprecisas e de avaliações
animista), com similar intenção de criar de um
equivocadas, são dissociadas de qualquer
território próprio, o LRA também buscou se
ligação com a realidade.
estabelecer na África Central na região
fronteiriça entre a RDC, Uganda, Sudão do Sul
* Luiz Claudio Talavera de Azeredo
e República Centro Africana (RCA).
Tenente Coronel do Exército Brasileiro
Ações iniciais de ataques a povoados e lctazeredo@gmail.com
subjugação de pequenas populações obtiveram Analista associado ao NEEDS/UFSCar
algum êxito e asseguraram visibilidade ao LRA (Junho/2019)
chegando mesmo alguns países, entre os quais
os Estados Unidos, classificarem o grupo
armado em questão como terrorista por ações
executadas e atrocidades cometidas.
Em decorrência de seu padrão de atuação, o
LRA passou a ser combatido com maior ênfase,
sendo inclusive mobilizadas tropas
multinacionais como uma Força Tarefa da
União Africana estabelecida para tal finalidade
e a Missão Multidimensional Integrada das
Nações Unidas para Estabilização da RCA
(MINUSCA - como integrante da MINUSCA
atuei no esforço contra o LRA ao desempenhar
a função de Chefe da Seção de Operações do
setor no qual também se homiziava o referido
grupo).
Em decorrência do trabalho das mencionadas
tropas, as capacidades do LRA foram
enormemente diminuídas, estando o outrora
vigoroso grupo atualmente resumido a poucas
dezenas de integrantes e com capacidade apenas
de realizar atos esporádicos de banditismo.
Face ao exposto pode-se inferir, à guisa de
conclusão parcial, que a região do pretenso
território africano anunciado oferece mais
dificuldades do que facilidades para
estabelecimento de grupos armados com
aspirações internacionais.
A partir das conclusões parciais, é lícita a síntese
de que o anúncio do estabelecimento de um
território na África Central pode ser entendido
como um blefe dentro de uma estratégia de
comunicação do EI para mascarar seu processo
de declínio ou sinalizar uma improvável retirada
estratégica para outras regiões do globo.