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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MICROTERRITÓRIOS DA RESISTÊNCIA
NOVAS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO E AS CIDADES
COMO CAMPO DE RESISTÊNCIA POLÍTICA

KELVIS LEANDRO DO NASCIMENTO

NATAL/RN
2019
KELVIS LEANDRO DO NASCIMENTO

MICROTERRITÓRIOS DA RESISTÊNCIA
NOVAS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO E AS CIDADES COMO
CAMPO DE RESISTÊNCIA POLÍTICA

Trabalho apresentado na disciplina Seminário


Doutoral como requisito para a aprovação no
exame de pré-qualificação no Departamento de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

NATAL/RN
2019
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................... 4

1. A ADMINISTRAÇÃO VIOLENTA DO PRESENTE: capitalismo


neoliberal e a conquista do inconsciente .......................................................................... 7

2. NOVOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO: o urbano e a estratégia


capitalista 10

3. ABORDAGENS METODOLÓGICAS ................................................ 13

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 14


4

INTRODUÇÃO

Este trabalho surge dos apontamentos adquiridos no trabalho de dissertação


que versava sobre o sucesso de um estacionamento privado como opção de lazer e
sociabilidades na cidade do Natal, Rio Grande do Norte. Mais especificamente, o
estacionamento do hipermercado do Carrefour em sua unidade localizada na zona sul
da cidade. O trabalho desenvolveu pesquisa de campo no estacionamento por um ano
e quatro meses onde, como justificativa para a frequência ao local, os interlocutores
mencionaram em grande parte os índices de violência urbana agravados nos últimos
anos e a necessidade do encontro e da sociabilidade através de atividades ligadas ao
lazer, mais ainda, a importância do lazer foi justificada como principal ferramenta
desviante das obrigações cotidianas.
VOCÊ NÃO DEVERIA COLOCAR O VERBO NO PASSADO?
REFERENTE À SUA DISSERTAÇÃO? FOI OUTRA ÉPOCA DO CARREFOUR...
O estacionamento, nesse sentido, se transformou em espaço plausível na prática
desses encontros, pois além de se localizar em posição geográfica especial – no meio
dos trajetos de atividades produtivas dos frequentadores – também dispõe de
segurança reforçada por parte da loja, além de produtos e serviços – sistemas de
transporte público, iluminação e infraestrutura – que facilitam sua utilização para o
lazer sem que isso interrompa o cronograma apertado das rotinas diárias desses
indivíduos.
Verificou-se também que a maioria dos frequentadores é oriunda de bairros
periféricos, sem acesso a opções de lazer de qualidade como praças e espaços
públicos seguros, jovens em faixas etárias variadas, além de adultos que praticam
atividades físicas e encontros de grupos de carros turbinados, as “naves”, como o
grupo define os automóveis estilizados. Segurança e busca da excitação no lazer são,
portanto, as definições principais para justificar, segundo os frequentadores, a
frequência diária ao local. Fato relevante na pesquisa foi identificar o aumento
progressivo de habitantes que buscam opções de lazer seguras na iniciativa privada,
fenômeno já verificado nos Shoppings1 e bares da cidade.
O espaço público está em desuso, de um lado em decorrência de ondas de
violência crescentes em que o RN está submetido a alguns anos, de outro pelo

1
Ver: Shopping – NASCIMENTO (2003)
5

completo descaso dos governos em oferecer ambientes adequados para as atividades


de convivência, sociabilidades e lazer na cidade. Podemos dizer que hoje, no Rio
Grande do Norte, o principal esforço do governo é garantir o pagamento dos
servidores públicos e evitar o fechamento de empresas multinacionais, além de
comércios menores. O desemprego e a falta de moradia adequada, sobretudo, nos
bairros periféricos da cidade também são desafios. Diante disso, o lazer possibilitado
através da criação e/ou manutenção dos espaços de lazer fica desfavorecido.
O estacionamento do Carrefour, diante do exposto, poderia ser caracterizado
como um microterritório, ou seja, um pedaço do espaço social total onde os
indivíduos conseguem vivenciar suas práticas associativas e encontros com seus pares
na cidade. Presença substancial, por exemplo, é o de grupos de jovens LGBT’s 2 que
transformaram o local em um espaço “alternativo” 3
sendo viáveis, no sentido de
distanciamento da violência urbana majoritária no espaço público, as demonstrações
públicas de suas homoafetividades. Cabe salutar salientar que, historicamente, as
sexualidades dissidentes sempre foram forçadas por ação da heteronormatividade a
constituírem espaços heterotópicos4 onde suas vivências e modos de vida
homossexuais fossem possíveis.
Podemos, portanto, pensar numa microterritorialização do espaço social. Ou
seja, a estratégia da utilização de uma pequena parcela do espaço urbano por grupos
dissidentes aqui inclusos: homossexuais, negros, jovens, mulheres e tantos outros que
estão subalternamente condicionados à ação do poder hegemônico nas sociedades. Os
microterritórios seriam, portanto, constituem espaços reduzidos que possibilitam a
sociabilidade e até a própria (re)existência de minorias sociais.
Identificando o estacionamento como um rizoma5 de práticas possíveis em
sua totalidade, pois casais gays, grupos de jovens Rappers e MCs, encontros de
famílias, grupos de dança, músicos, grupos religiosos, entre outros, que comungam do

2
Sigla utilizada para definir Lésbicas, Gay, Bissexuais, Transexuais e Travestis.
3
Torna-se evidente que a microterritorialização do C4 para os encontros e sociabilidades gays,
transformaram o espaço em um via “alternativa” sendo alternativa uma referência ao homossexual por sua
inscrição história numa sociedade rígida e padronizada que o encara como o sujeito incapaz de seguir às
normas padrões, criando uma identidade alternativa à norma. Nesse sentido, é possível falar em “espaço
alternativo” como anedota, no sentido de particularidade jocosa utilizada em alguns discursos
homofóbicos, mas também como "alternativo” nos discursos simpatizantes que utilizam o termo para
descrever em uma única palavra que todas as sexualidades são permitidas.
4
Conceito elaborado por Michel Foucault para descrever espaços que funcionam em condições não
hegemônicas.
5
Ver (DELEUZE; GUATTARI, 1995)
6

espaço do estacionamento se preocupando minimamente com questões de segurança


e/ou violências diversas. Há nesse sentido, uma “negociação6” com o mercado de
consumo que oferece proteção e estrutura e espera um retorno financeiro possível
através de toda a oferta de mercadorias de sua extensa loja.
PARÁGRAFO INTERLIGANDO
Encontramos nas falas dos interlocutores outros espaços alternativos na
cidade, alguns já em decadência e/ou desuso, outros em pleno potencial agregador
dessas sociabilidades, quais sejam, a área do Presépio de Natal ao lado do ginásio
Professor Marcelo de Carvalho (DED7) que é ponto de encontro de juventudes para
prática de esportes como o skate e a patins além, de se constituir num espaço de
paqueras.
O Deck do bar Astral Sucos8, de frente a praia de Ponta Negra que, aos finais
de semana, recebe multidões de jovens e adultos, potiguares ou turistas, para ações de
cultura ligadas a música ao vivo e competições de surf. Sem falar no Quiosque
número 24, também na praia de Ponta Negra que é conhecido como ponto de
encontro de garotas lésbicas, outra informação coletada na pesquisa de mestrado. É
possível citar também o recente esforço de grupos da classe média da cidade em
reocupar o espaço da cidade antiga, bairros como Ribeira e Cidade Alta começam a
entrar na rota desses grupos como espaços de sociabilidades.
Esses microterritórios apresentam características bem peculiares, pois são
lugares de sociabilidades de grupos e tribos urbanas jovens que optam em suas
utilizações em detrimento do ambiente engessado dos shoppings. Aqui cabe uma
breve consideração. Em meados do ano 2018, o estacionamento do Carrefour
começou a sofrer com uma desocupação por parte dos grupos citados. Acontece que
devido ao grande fluxo e o descontrole do hipermercado em garantir a segurança e
tranquilidade dos demais clientes, a loja iniciou paulatinamente a expulsão desses
grupos. Primeiro, restringindo a utilização de apenas 30% da área total do
estacionamento aos encontros e, logo depois, impedindo totalmente a utilização aos
finais de semana com o uso de grades e vigilantes proibindo as aglomerações. Diante
disso, as sociabilidades migraram para outros espaços, alguns já citados aqui.

6
As aspas se referem ao fato da negociação nem sempre ser explícita, como nas relações de negociação
de compra de bens materiais regidas por contrato e cupom fiscal. Aqui negociações ganham caráter
subjetivo e sua fixação está relacionada com o fetichismo da mercadoria descrito por Karl Marx (2013).
7
https://apartamento702.com.br/5-dicas-para-quem-quer-andar-de-patins-em-natal/
8
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/mais-astral-a-beira-mar/303963
7

Dessa forma, esse trabalho de tese segue com a pesquisa já iniciada na


dissertação, a saber, a investigação dos fenômenos sociais de escala macrossocial que
incidem diretamente nas relações dos atores sociais na escolha de novos espaços de
sociabilidades e lazer. Que condições são necessárias para a escolha desses
microterritórios? Esses movimentos representam novas lógicas de resistência à
utilização das cidades por grupos considerados subalternos?

1. A ADMINISTRAÇÃO VIOLENTA DO PRESENTE: capitalismo


neoliberal e a conquista do inconsciente

Há uma guerra em curso. E não estamos apenas falando das inúmeras guerras
promovidas pelo imperialismo colonial estadunidense junto com seus aliados fiéis, nos
referimos aqui da guerra global pela conquista do inconsciente. O Império, desde os
movimentos de 1968 reconheceram que para sua total hegemonia se faz fizesse
necessária a conquista das subjetividades individuais. Bem mais sofisticada e
relativamente simples o processo de dominação envolve uma manipulação oculta na
revolução tecnológico-científica possibilitada pela informática, internet, redes sociais e
mídia. “Detrás do brilho das telas se ocultam hoje as formas mais extremas de
dominação neocolonial, tecnológica e subjetiva” como nos diz Preciado (apud:
ROLNIK, 2018, p. 11).
O momento é de uma contrarrevolução, uma “reforma heteropatriarcal, colonial
e nacionalista” contra os anos de avanços progressistas nas áreas de gênero e
sexualidades, lutas operárias e anticoloniais em todo o mundo. A extrema direita em
aliança com o neoconservadorismo executa seu mais ambicioso plano de suprimir os
avanços sociais e de garantir sua hegemonia na sociedade.
O avanço desse modelo conservador não é natural, faz parte do mesmo processo
que “levou à capitalização das áreas de preservação de terras indígenas, ao
confinamento e ao extermínio de todos os corpos cujos modos de conhecimento ou
afecção desafiaram a ordem disciplinar”.FONTE? O controle subjetivo, necropolítico da
sociedade vem criando uma realidade onde o terror é manuseado como estratégia de
vigilância, o extermínio nas periferias é elevado ao patamar de proteção da ordem e os
mais diversos tipos de violência transformados em ações necessárias para manter a
estabilidade do sistema e da vida social.
8

Mude a redação para não repetir tão perto Michel Foucault na grande parte de
suas obras9 conversa sob a lógica da exclusão. A expulsão do louco, do leproso, do
homossexual e tantos outros do convívio social refletem a noção ficcional do inimigo,
daquele indivíduo que precisa ser repelido, afastado do convívio dos “normais”. O
próprio conceito foucaultiano de biopoder funciona na separação das pessoas que
podem viver e as que devem morrer. Há segundo Foucault (1997, p. 58) subdivisões
sociais por grupos e subgrupos sob os quais pesa o racismo.
Atualmente, no Brasil, o grupo dos denominados por “normais” ganhou novo
nome, hoje, os “cidadãos de bem” são os que exigem distinção daqueles considerados
perigosos para o convívio social os “anormais”, falaremos dos “cidadãos de bem” em
outro capítulo.
Alinhado ao conceito de biopoder, Achille Mbembe (2018) propõe o termo
Necropoder como uma atualização do termo anterior e que melhor representa a atual
fase da soberania do poder. Mbembe defende que “no passado, com efeito, guerras
imperiais tiveram como objetivo destruir os poderes locais, instalando tropas e
instituindo novos modelos de controle militar sobre as populações civis” (2015, p. 135).
Os povos conquistados obtinham rapidamente as condições de seus espólios
como povos vencidos. A colonização e a ocupação dos territórios inscreveram suas
lógicas próprias aos domínios anexados, além de uma dominação territorial e
hierarquizada, uma dominação dos imaginários culturais, de acordo com Mbembe:

Esses imaginários deram sentido à instituição de direitos diferentes, para


diferentes categorias de pessoas, para fins diferentes no exterior de um espaço;
em resumo, o exercício da soberania […] Soberania significa ocupação, e
ocupação significa relegar o colonizado em uma terceira zona, entre o status de
sujeito e objeto (MBEMBE, 2015, p.135)

A questão da soberania é importante, pois a partir dela o Estado colonial opera


decidindo quem importa e que pode ser facilmente descartado, eis então a lógica
necropolítica. Ao mencionar a ocupação colonial da Palestina, Mbembe descreve o
processo como principal exemplo de necropoder, na medida em que, o direito de
ocupação se consolida no direito divino, ou seja, a invasão israelense acontece munida
do respaldo religioso “o Estado colonial deriva sua reivindicação de soberania e
legitimidade de seu próprio relato de história e identidade. Essa narrativa é sustentada
pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir” (MBEMBE, 2015, p. 136).

9
Vigiar e Punir (1975); O Nascimento da Clínica (2004); Microfísica do Poder (2014).
9

Entretanto, a soberania não é algo absoluto, “não é uma substância autônoma, mas uma
relação entre soberano e súdito […] Assim quem obedece não é menos essencial para a
funcionalidade” (NEGRI, 2003, p. 73). Nesse sentido, a soberania só pode existir na
restrita relação entre sujeitos e sujeitados, o que abre margem para novas configurações
de poder.
A soberania é, pois, definida pela dinâmica molecular que mantém sob
constante pressão seus limites e, assim procedendo, exalta sua natureza
dupla. Se assumirmos a soberania como um conceito bifronte, uma relação
hegemônica descobriremos uma série de contradições que a marcaram ao
longo de toda a idade moderna até nossa época imperial. Considere-se, antes
de tudo, a moderna veste militar da soberania: o poder de vida ou morte sobre
os súditos. As armas nucleares, em certo sentido, tornaram absoluta essa
prerrogativa. (NEGRI, 2003, p. 79).

Além disso, o Estado colonial não limita a invasão e submissão de novos


territórios e da sujeição dos povos colonizados. Antônio Negri (2003) e Suely Rolnik
(2018) aos se referirem a uma nova fase do capitalismo em sua versão financeirizada
demonstram também uma colonização massiva do próprio inconsciente do sujeito. De
outro modo, a cruzada capitalista pelo domínio das massas não parte apenas pela
extração de mais-valia e lucro, pela espoliação de territórios e estabelecimento de
fronteiras, mas também pela captação da força vital dos sujeitos.
A partir dos anos 1970 a integração do político e do econômico, do Estado e do
capital foi total. Com a integração transnacional, a nível mundial e sempre mais
acentuado, das relações econômicas internacionais e de sua subordinação a um projeto
de controle policêntrico e rigorosamente planificado.

O Capitalismo Mundial Integrado (CMI) não se limita a recompor os fluxos e


a hierarquia dos poderes estatais em sentido tradicional, de acordo com novas
formas de unificação. Ele gera funções estatais suplementares, que se
expressam propriamente através de uma rede de organizações internacionais,
de uma estratégia planetária dos meios de comunicação de massa, de uma
rigorosa tomada do controle do mercado, das tecnologias, etc. (NEGRI;
GUATTARI, 2017, p.40).

Partindo das concepções de Negri e Gattari, Suely Rolnik (2018) intensifica o


debate ao conceituar o “inconsciente-colonial-capitalístico” que representa o regime em
sua versão contemporânea financeirizada, neoliberal e globalitário. Rolnik faz “uma
cartografia das práticas micropolíticas de desestabilização das formas de subjetivação
dominantes” (ROLNIK, 2018, p. 08). Na intenção de desnudar as novas formas de
capturas subjetivas, a autora observa a luta dos sujeitos contra as forças esmagadoras da
10

aliança improvável entre o neoliberalismo financeiro e as forças reativas conservadores,


fenômeno que, segundo ela, tem explicado, em parte, a ascensão da extrema direita no
mundo, e principalmente no Brasil.

2. NOVOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO: o urbano e a estratégia capitalista

Os resultados obtidos na dissertação lançaram a problemática em torno das


cidades contemporâneas e das dificuldades encontradas por determinados grupos em
habitá-las. O que justifica essa dificuldade e quais os fatores responsáveis pela gradual
clivagem de classe? Antes de responder a essas questões se faz necessária uma reflexão
sobre a produção do espaço urbano capitalista.
Karl Marx, em contribuição inédita de O Capital VI (1978), afirma que o modo
de produção capitalista ao se reproduzir o faz em escala cada vez mais ampliada e
englobando os novos setores de produção, novas esferas da vida e de relações. No
processo de formação do espaço capitalista descrito por Henri Lefebvre (2008), a
atuação capitalista não se restringe à sociedade, mas também ao espaço. “Ocupado pelo
neocapitalismo, setorizado, reduzido a um meio homogêneo e, entretanto fragmentado,
esmigalhado, o espaço se torna a sede do poder” (LEFEBVRE, 2008, p. 122).
A lógica organizacional das cidades passou por um processo significativo de
mudanças em direção ao empresariamento, dito de outro modo, nas últimas décadas do
século XX entrou em curso uma reestruturação de ordem econômica e financeira na
administração das cidades. Acontece que frente às crises econômicas sucessivas as
cidades se viram diante de um quadro fiscal lastimável e o planejamento urbano
necessitou entrar na lógica concorrencial do mercado através do chamado
Empreendedorismo Urbano. Fez-se necessária uma mudança da imagem das cidades
para atrair os interesses do grande capital e promover investimentos capazes de suprir a
demanda fiscal dessas cidades.
Harvey (1996) diz que entre os anos de 1970-80 “parece haver um consenso
geral emergindo em todo o mundo capitalista avançado: os benefícios obtidos pelas
cidades que adotam uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento
econômico” (165). Acrescenta ainda que esse consenso ultrapassou barreiras partidárias
e ideológicas, pois apesar de críticas ao modelo empresarial na promoção das cidades
11

sob a ótica do capital parecia ser a opção mais viável de desenvolvimento naquele
momento. Como reflexo da crise pela qual passou as cidades, Harvey destaca:

A desindustrialização, o desemprego disseminado e aparentemente


‘estrutural’, a austeridade fiscal aos níveis tanto nacional quanto local, tudo
isso ligado a uma tendência ascendente do neoconservadorismo e a um apelo
muito mais forte (ainda que frequentemente, mais na teoria do que na prática)
à racionalidade do mercado e à privatização, representam o pano de fundo
para entender por que tantos governos urbanos, muitas vezes de crenças
políticas diversas e dotados de poderes legais e políticos muito diferentes,
adotaram todos uma direção muito parecida [...] algo a ver com a capacidade
declinante do Estado-Nação de controlar os fluxos financeiros das empresas
multinacionais, de modo que o investimento assume cada vez mais a forma
de negociação entre o capital financeiro internacional e os poderes locais”
(HARVEY, 1996, p. 166).

Ao aderir à lógica do empreendedorismo urbano a cidade assume o discurso do


planejamento estratégico, à luz da ideologia do mercado e passando a ser entendida
como cidade-mercadoria, cidade-empresa, cidade-pátria. Esses termos são os propostos
pelo sociólogo e economista Carlos Vainer (2000) para descrever o posicionamento das
cidades como mercadorias à venda no mercado globalizado e que, portanto,
concorrentes entre si, precisam desenvolver suas melhores propagandas para atraírem
investidores/compradores. O potencial das cidades se resume, portanto, na capacidade
de atrair compradores estrangeiros e “solventes”, isso justificaria a necessidade dos
governos locais de promoverem a cidade no exterior.
Fator principal no processo de adaptação para a lógica de mercado, cidades
como objeto de luxo, elas precisam melhorar o seu marketing urbano em torno dos
produtos disponíveis para compra dos comprador/investidor/estrangeiro. Nesse sentido,
a cidade não precisa ser pensada no seu todo, mas somente as áreas propensas ao
mercado e/ou as que interessam aos visitantes. Ao citadino resta apenas ser incluído no
seu próprio cenário como parte do “entorno social”, exemplo disso, são as cidades que
tratam sua população em situação de rua como problema paisagístico e não social. “A
constituição e legitimação da nova cidadania conferida aos segmentos estratégicos
caminha pari passu com a destituição dos grupos com ‘escassa relevância estratégica”
(VAINER, 2000, p. 89).
Em decorrência da posição de cidade-empresa as cidades perdem seu caráter de
produto, coisa e objeto e passa a ser tratada como ator social e sujeito de uma ação,
passa a ter vontade própria, assume o caráter de marca como as empresas privadas.
Desse modo, um novo conceito de planejamento submete a gestão das cidades aos
12

interesses do mercado. “A analogia cidade-empresa desliza, suave e sutilmente, para


uma analogia cidades-empresários” (VAINER, 2000, p. 89). Entretanto, longe de
configurar apenas uma nova estratégia gerencial ou operacional, essa lógica de mercado
instituída às cidades representa uma forma eficiente de dominação da coisa pública pelo
aparato privado.
O conceito de cidade, e com ele os conceitos de poder público e de governo
da cidade são investidos de novos significados, numa operação que tem como
um dos esteios a transformação da cidade em sujeito/ator econômico... e,
mais especificamente, em um sujeito/ator cuja natureza mercantil e
empresarial instaura o poder de uma nova lógica, com a qual se pretende
legitimar a apropriação direta dos instrumentos de poder público por grupos
empresariais privados (VAINER, 2000, p. 89).

Nessa operação, se desfaz a separação rígida entre os setores público e privado.


Nessa nova articulação entre os dois setores a influência e interferência do setor privado
prevalecem, ou seja, os interesses do mercado aparecem gradativamente acima dos
interesses dos indivíduos já que as decisões da cidade devem passar necessariamente
pelo crivo dos interesses escusos da classe empresarial.
Entretanto, para a implementação efetiva do planejamento estratégico nas
cidades é necessário a participação dos cidadãos, mesmo os “insolváveis”, na medida
em que, tal como em uma empresa, os cidadãos devem vestir a camisa da cidade. “A
instauração da cidade-empresa constitui, em tudo e por tudo, uma negação radical da
cidade enquanto espaço político – enquanto polis” (VAINER, 2000, p. 91). Dito de
outra forma, como os funcionários de uma empresa privada, os cidadãos devem agir em
favor da completa instalação da cidade no mercado internacional. É necessário,
portanto, um consenso, sem o qual não há “qualquer possibilidade de estratégias
vitoriosas” (91). Vainer vai descrever esse processo como cidade-pátria, quando o
cidadão assume a consciência aguda da crise urbana. “Mas o sentimento de crise, é
sabido, pode ser passageiro. Como construir sobre base tão frágil uma unidade e um
consenso que necessitam perdurar, incólumes, sem brechas? A resposta está na
transformação do fugaz sentimento de crise num consistente e durável patriotismo de
cidade” (VAINER, 2000, p.94).
Esse cidadão que não interessa aos interesses do planejamento urbano, a não ser
no que diz respeito ao fato de abrir mão de seu próprio espaço e condição de vida em
favor da cidade-empresa, acaba por se transformar em principal desafio para o
Planejamento Estratégico. De um lado vestido de acionista da cidade-empresa e tendo
13

por dever ser patriota, este vê escoar sua própria condição de cidadão que desaparece
contestada pelo projeto moderno de cidade.
Diante do exposto, fica clara a intenção capitalista em utilizar as cidades como
ferramenta mercadológica, seus interesses ultrapassam fronteiras e passam por cima de
qualquer lógica pública de desenvolvimento igualitário. Os cidadãos não-solváveis são
espoliados e marginalizados, postos a viver no entorno de suas próprias cidades.

3. ABORDAGENS METODOLÓGICAS

Tendo como objetivo geral cartografar os microterritórios representados pelos


espaços alternativos na cidade do Natal/RN e suas práticas de resistência ao habitar a
cidade. Utilizaremos como metodologia a cartografia social. Cartografar é a arte de criar
mapas, na geografia o termo é muito comum, pois se cria mapas de regiões das cidades
a fim de melhor localizar-se.
Nas Ciências Humanas e Sociais, cartografar quer dizer além de mapear
territórios de interesse, mapear também as atividades dos sujeitos sociais, dos atores
sociais, como queiram chamar. Sabe-se, inclusive, que as noções de identidade e
subjetividades, são construídas e reconstruídas no contato com os demais indivíduos em
sociedade. Temos, portanto, múltiplas concepções de sujeito num mesmo
microterritório.
As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade,
não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As
subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que
se produzem e aparecem nas multiplicidades
(DELEUZE; GUATTARI, 1995)

Deleuze e Guattari (1995) desenvolvem a cartografia a partir do conceito de


rizoma, que tem como princípios se conectarem a qualquer outro ponto rizomático e
deve fazer isso. Os autores chamam de princípios da heterogeneidade e conexão. Além
disso, há também a característica da multiplicidade dos sujeitos.
Ou seja, Utilizar o método cartográfico requer deixar o pensamento livre, manter
a flexibilidade no vivenciar do campo, pensamento aberto. Evidentemente que ciente
dos objetivos preestabelecidos, mas com um posicionamento flexível para os campos
que vão surgindo. Acompanhar esses processos de resistência através de encontros de
sociabilidades dessa forma é que pretendemos utilizar a cartografia social.
14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. MIL PLATÔS. São Paulo: Editora 34, 127 p.
Trad.: Ana Lúcia De Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. (1995).

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Trad. Lígia M. Ponde


Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1975.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica, Rio de Janeiro: Editora Forense -


Universitária. 2004.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad.: Roberto Machado 2. Ed. São


Paulo: Paz e Terra, 2014. 432 p.

HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da


administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates - Revista de Estudos
Regionais e Urbanos. Ano XVI n.39, Cidades: Estratégias Gerenciais. São Paulo:
NERU/CNPq/FINEP, 1996.

LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. 5. Ed. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2008.
Tradução de Sérgio Martins.

MARX, Karl. O capital: Livro I (inédito). São Paulo: Ciências Humanas Ltda., 1978.
151 p. Eduardo Sucupira Filho.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. 80 p.

NASCIMENTO, Gerson Gomes do. Shopping-Centers: Elementos De (re) Produção


Urbana na zona sul de Natal/RN. 2003. 178 f. Dissertação (mestrado) - Curso de
programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2003. Disponível em:
http://www.repositorio.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/18891/1/gersongn.pdf.
15

NEGRI, Antônio; GUATTARI, Félix. As verdades nômades: Por novos espaços de


liberdade. São Paulo: Filosófica Politeia e Autonomia Literária, 2017. 386 p. Mario
Antunes Marino e Jefferson Viel.

NEGRI, Antônio. Cinco lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 279 p.

ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São
Paulo: N-1 Edições, 2018. 207 p.

VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria. In: ARANTES, Otília et al (Org.). A


cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos. 3. Ed. Petrópolis, Rj: Vozes,
2002. Cap. 2. p. 75-103.

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