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A música em “Morte em Veneza” de Luchino Visconti 14/06/2019 16)49

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A música em “Morte em
Veneza” de Luchino Visconti
Na coluna Falando de Música, o maestro Leandro Oliveira aborda as perspectivas
musicais presentes no filme "Morte em Veneza", do cineasta Luchino Visconti.

Estado da Arte
07 de março de 2019 | 11h00

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A música em “Morte em Veneza” de Luchino Visconti 14/06/2019 16)49

por Leandro Oliveira

Filme que adapta um livro, “Morte em Veneza” de Luchino Visconti, de 1971,


baseia-se na pequena novela “A Morte em Veneza” do escritor alemão Thomas
Mann, publicado em 1913. Thomas Mann era à ocasião da publicação de “A Morte
em Veneza” um escritor respeitado: seu romance “Os Buddenbrook” (1901),
publicado quando contava com vinte e cinco anos, alçara-o à posição de jovem
celebridade nos meios literários europeus. O caso é que, dez anos após este primeiro
sucesso, na primavera de 1911, Mann passa por uma não-pequena crise criativa.
Interrompe o trabalho sobre suas “Confissões de Felix Krull”, que afinal
parece-lhe mais um de uma série recente de projetos frustrados. Antes dele, sua
peça “Fiorenza” (1905) deixara o autor plenamente insatisfeito e o romance “Sua
Alteza Real” (1909) ficara à sombra do status alcançado pela narrativa da família
Buddenbrook.

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inRead invented by Teads

Sem avançar com o manuscrito de “Krull”, torna-se clara a Mann a necessidade


de alguma distração; é quando vem a decisão pela viagem ao Sul da Europa, que
finalmente realizaria com a mulher Katia e o irmão Heinrich. Foram primeiro a
Brioni, ilha a oeste da costa do Adriático e, considerando-a pouco aprazível,
decidem seguir para Veneza. Na Cidade dos Canais hospedam-se no Hotel des
Bains, na praia do Lido, entre 20 de Maio e 2 de Junho de 1911.

Tais elementos factuais evidentemente levam o leitor de “A Morte em Veneza” –


assim como ao espectador do filme – a questionar-se sobre a identidade do
protagonista. Fica evidente que as primeiras referências de trama e elementos
fáticos são autobiográficos. Como Mann, Gustav von Aschenbach enfrenta um
bloqueio criativo; dos muitos eventos memoráveis e reais espelhados no livro há a
viagem a Brioni e Veneza. Mais ainda: sabemos também sobre o extravio da
bagagem, sabemos que, como Mann, Gustav von Aschenbach é fruto do casamento
de uma burguesia diligente, de pai alemão e mãe com um toque de sangue
estrangeiro e pendores artísticos. Ainda: como Mann, Gustav von Aschenbah é um
escritor, vive em Munique perto do parque chamado “Englischer Garten” – onde
regularmente realiza longas caminhadas na tentativa de relaxar-se das exigências
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mentais do trabalho matinal. E mais importante: na viagem de Mann ocorre o


encontro com uma família polonesa, onde um jovem causa a imediata e decisiva
impressão no autor.

Fica evidente que as primeiras



referências de trama e
elementos fáticos são
autobiográficos

Para os leitores dedicados do autor alemão nada disso é surpreendente. Há algo de


autobiográfico em Tônio Kroger e, claro, em Hanno Buddenbrook. No caso de “A
morte em Veneza”, a esposa do escritor, Katia Mann, diz:

“Todos os detalhes da história, a partir da aparição repentina do estrangeiro


pitoresco no cemitério, são fruto da experiência (real) […] ao primeiríssimo dia na
sala de jantar, vimos a família polonesa que aparecia exatamente no modo como
descrito por meu marido: as meninas estavam vestidas de modo bastante
convencional e austero, e o belíssimo e fascinante menininho de treze anos
carregava uma farda de marinheiro com gola aberta e brasões muito graciosos.
Tomou imediatamente a atenção de meu marido. Aquele menino era
extraordinariamente atraente e meu marido o observava com seus companheiros
na praia sempre que podia. Não o seguiu por toda Veneza – isso não fez – mas o
rapazola o fascinou e frequentemente pensava nele […]”
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rapazola o fascinou e frequentemente pensava nele […]”

Das atividades documentadas de Mann quando de sua passagem por Veneza há a


elaboração de um breve artigo sobre Richard Wagner, desdobramento da visita do
autor ao Festival de Bayreuth, em 1909. Mas trata-se de assunto menor, no quadro
geral da produção do período. Seria no retorno a Munique que, quase
imediatamente, ele começa a traçar o plano geral da história deste “assunto
estranho que trouxe de Veneza, uma novela simples e pura na forma que lida com o
caso de um amor juvenil de um artista maduro”.

Quando “Felix Krull” é colocado de lado, o novo projeto acaba por tomar todo seu
tempo de trabalho. Em Junho de 1912, um ano após o retorno de sua viagem à
Veneza, conclui o livro e sua publicação dá-se primeiramente em partes, entre
outubro e novembro do mesmo ano.

Mas não é de Mann que trata o personagem. Ou, ao menos, não apenas dele. A
primeira referência que um leitor experiente pode fazer, tanto a partir da atividade
profissional quanto da descrição laboriosa feita sobre o protagonista Gustav von
Aschenbach, é a de outro Gustav, o novelista francês Gustav Flaubert (1821- 1880),
a quem Mann pessoalmente admira e emula. Flaubert é o escritor do “mot juste”, e
seu notório perfeccionismo reverbera por todo lado nas passagens do texto em que
Mann descreve o trabalho de seu personagem e o rigor de sua personalidade frente
a ele como uma tarefa de mártir – autor para quem a graça é alcançada pela
perseverança, pela disciplina.

A fortuna crítica aponta ainda outras referências para a construção da figura de


Aschenbach, e talvez a mais instigante e hermética seja da figura de August von
Planten (1796 – 1835), um poeta alemão homossexual que morreu de cólera em
Siracusa, na Itália – lugar para onde havia viajado, provavelmente, em busca de
turismo sexual. Sobre ele, Mann escreverá algumas palavras em 1930. De qualquer
modo, a figura histórica de August von Planten permite as referências de batismo
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modo, a figura histórica de August von Planten permite as referências de batismo


mais coerentes, dando pistas não apenas ao primeiro nome (“August von” permite
por meio de um anagrama imperfeito a construção de “Gustav”) mas sobretudo o
sobrenome Aschenbach (literalmente, rio de cinzas), que facilmente se relaciona à
cidade de Ansbach – lugar de nascimento de Platen.

E, é claro, entre as tantas figuras históricas a quem Mann faz referência, está aquela
de Gustav Mahler. Mann admirava Mahler como aquele a encarnar “a mais séria e
sagrada proposta artística de seu tempo”. Anos mais tarde, em carta ao ilustrador
Wolfgang Born, o escritor comentaria estar particularmente impressionado pela
aparência que o ilustrador dera a seu personagem: parecer-se-ia por demais com
aquela do compositor Gustav Mahler e ninguém até aquele momento poderia
imaginar que, de fato, Mahler fora uma referência velada para a construção de
Aschenbach.

Entre as tantas figuras “


históricas a quem Mann faz
referência, está aquela de
Gustav Mahler

“A concepção da minha história, que ocorreu no início do verão de 1911, foi


influenciada pela notícia da morte de Gustav Mahler, cujo contato eu tinha tido o
privilégio de manter em Munique e cuja personalidade intensa deixou a
impressão mais forte sobre mim. Eu estava na ilha de Brioni no momento da sua
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impressão mais forte sobre mim. Eu estava na ilha de Brioni no momento da sua
morte, e segui a história de suas últimas horas nos boletins de imprensa de Viena
que foram emitidos e publicados em estilo aristocrático. Mais tarde, estes choques
fundiram-se com as impressões e idéias a partir do qual a novela surgiu. De modo
que quando eu concebi o meu herói que sucumbe à dissolução lasciva, eu não só
lhe dei o nome de batismo do músico, mas também ao descrever sua aparência
conferi a máscara de Mahler sobre ele […]”

A coincidência não é, resta evidente, casual. Embora na carta Mann pareça apostar
numa certa intuição artística e menos em seus poderes descritivos – ele faz uma
saborosa reflexão sobre a natureza da linguagem – o fato é que Born, o ilustrador,
se vale sobretudo da última seção do segundo capítulo, passagem do livro em que a
imagem de Aschenbach/Mahler é sim francamente detalhada. Se talvez Mahler
escapasse da imagem pública do leitor médio, o delineamento físico feito por Mann
não poderia escapar a um profissional gráfico experiente.

“Gustav von Aschenbach estava um pouco abaixo da altura média, raspada escuro
e liso, com uma cabeça que parecia um pouco grande demais para a sua figura
quase delicada. Ele usava o cabelo penteado para trás; era fino ao final, espessa e
cinza nas têmporas, emoldurando uma testa robusta arrebitado – se assim se
pode caracterizá-la. O nariz segurava um pedaço de óculos com aro de ouro, seu
corte na base do nariz grosso, aristocraticamente arrebitado. A boca era grande,
muitas vezes negligente, muitas vezes e de repente estreita e tensa; as bochechas
magras e franzidas, o queixo pronunciado ligeiramente.”

De qualquer modo, a despeito de todas esta “pistas”, o que não pode ser levado
adiante, em nenhuma hipótese, é a ideia que se trata de um livro biográfico – ou
autobiográfico. Tais referências imperfeitas são, a meu ver, ponto de ignição para
uma narrativa que lida, mais que tudo, com o problema da natureza e condição da
Arte e do Belo. A pequena obra de Mann, embora preserve características gerais de

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uma pequena tragédia, pode ser entendido sem qualquer dificuldade para sua
recepção como precursora sofisticada da metaficção – cum granus salis, não por
tratar-se de um livro sobre livros, mas na medida em que versa sobre a natureza
mesma do objeto literário.

O que não pode ser levado



adiante, em nenhuma
hipótese, é a ideia que se trata
de um livro biográfico – ou
autobiográfico

E, neste sentido, tanto faz tratar-se o protagonista da figura histórica de Mahler,


von Planten, Flaubert ou o próprio Mann: de fato, entendido como uma reflexão
especial sobre o ato poético, o personagem principal do livro é a própria literatura.
É isto que justificam não apenas os elementos metalinguísticos do texto mas
também, e sobretudo, praticamente todas suas digressões. Elas, ao lidarem com o
caráter pessoal de Aschenbach, acabam também por permitir expressar as
inquietações pessoais de seu autor frente ao ofício do escritor ou ao seu fracasso.
Afinal, Mann tinha, em 1911, trinta e seis anos e um grande sucesso público atrás de
si; como não imaginar ecos de suas próprias reflexões em passagens como esta:

“A felicidade do escritor reside no pensamento que possa ser convertido


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inteiramente em sentimento e no sentir capaz de se tornar inteiramente pensar.


Tal pensamento palpitante, tal sentimento exato pertenciam e sujeitavam-se
nesses instantes ao homem solitário, mostrando-lhe que a natureza tremia de
delícia cada vez que o espírito se curvasse em adoração diante da beleza. De
repente veio-lhe o desejo de escrever.”

Ao ler o livro como uma exploração poética sobre a origem e condição existencial da
Beleza e sua apropriação pela literatura, “A Morte em Veneza” passa a ser
entendido através da tensão entre um protagonista rigoroso e disciplinado contra o
elemento natural e maravilhoso (o termo é absolutamente cabível) encarnado por
Tadzio – aquele que, em estado puro e involuntário expressa em si o próprio Belo. O
antagonismo entre o elemento ético do Belo – ético pois fruto da disciplina,
engenho e artifício -, e sua expressão natural é, claro, um dilema de larga história,
que talvez possa se entender pela dicotomia entre Clássico e Romântico. Mas Mann
cria uma terceira e vigorosa dimensão ao problema para além deste jogo de forças:
ao fazer o velho Aschenbach apaixonar-se pelo jovem Tadzio, somos lançados na
narrativa de uma tensão obtusa e distinta, aquela do desejo. Parafraseando Lacan,
Aschenbach não é sujeito do amor, mas, ordinariamente, a sua vítima. Com o amor
de Aschenbach, é claro, somos forçados a conviver em um novo e complexo sistema
de variáveis onde o que se questiona não é somente o Belo como matéria estética,
mas também o Belo como matéria erótica. Assim, é entre Apolo e Dionísio, mas
também entre Eros e Thanatos que é composta “A Morte em Veneza”, a pequena
novela de Thomas Mann.

É entre Apolo e Dionísio, mas



também entre Eros e
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também entre Eros e
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Thanatos que é composta “A


Morte em Veneza”, a
pequena novela de Thomas
Mann

***

À guisa de intermezzo

“Morte em Veneza”, o filme, assume de forma tão extraordinária a trilha de


Mahler que, de fato, para muitos do público, as questões de significado da música
são assumidas a partir das referências deixadas pela narrativa viscontina. Entre
tantas, talvez a mais poderosa, não à toa, é a referência romântica a tramas ou cenas
de enredo gay. Visconti contribui para a história da recepção do pequeno trecho da
sinfonia de Mahler que, de modo inequívoco, a despeito de qualquer intenção por
parte do compositor, compõe hoje, sobretudo no contexto audiovisual, parte do
repertório simbólico romântico homossexual. Muito recentemente, duas citações na
cultura audiovisual brasileira reverberaram, neste contexto, o filme “Morte em
Veneza” – e não por cenas objetivas, mas sobretudo por meio da música de Mahler.

A transformação do Adagietto em queer music é evidentemente dado recente, e sua


origem inequívoca se justifica no impacto imagético da narrativa de Visconti e seu
apelo para tramas posteriores. Mas não deixa de ser curioso. A telenovela “Amor à
Vida” foi exibida no Brasil entre maio de 2013 e janeiro de 2014. Seus mais de
duzentos capítulos culminam – de fato trata-se da última cena do último capítulo –
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duzentos capítulos culminam – de fato trata-se da última cena do último capítulo –


com as pazes feitas entre Félix (Mateus Solano) e o pai, César Khoury (Antônio
Fagundes). Na praia, em silêncio, sentados um ao lado do outro e sem olharem-se,
ambos dão-se as mãos, ao som do Adagietto de Mahler. A referência à Visconti é
evidente – pelos elementos da praia e da própria música. E toda a beleza da cena
ganha sua devida leitura exatamente neste contexto: parte da tensão da trama
resolvida à ocasião trata da homossexualidade de Félix, fato jamais aceito pelo pai.

A primeira cena de sexo entre dois homens na teledramaturgia brasileira também


contou com a obra mahleriana – a meu ver, não por acaso. O capítulo da série
“Liberdade, Liberdade” garantiu a liderança isolada da Globo e foi um dos
assuntos mais comentados no Twitter, chegando ao Trending Topics mundial. A
cena delicada, bem dirigida, mostrava a tensão de dois personagens, André (Caio
Blat) e Tolentino (Ricardo Pereira). A dualidade entre desejo e medo era evidente
na cena e na trama. Enquanto fazem amor, ou deitados nus sobre a cama com as
mãos dadas, a trilha que soa é mais uma vez aquela do Adagietto de Gustav Mahler.

Morte em Veneza assume de “


forma tão extraordinária a
trilha de Mahler que as
questões de significado da
música são assumidas a partir
das referências deixadas pela
narrativa viscontina
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das referências deixadas pela
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narrativa viscontina

Trata-se, talvez curiosamente, de uma apropriação brasileira e que, com o impacto


dos meios televisivos para um grande público, certamente participará da história da
recepção de Mahler no país. Curiosamente, nos trópicos, e a partir de Visconti, ao
que parece o Adagietto ficará por muito tempo ligado a um dilema de orientação
sexual.

***

Mas sendo a novela uma grande e decisiva reflexão sobre a natureza do ofício da
arte e da escrita, fica ainda mais desconcertante a decisão de Luchino Visconti em
seu “Morte em Veneza”. Transformar seu protagonista de escritor em músico é,
antes, ao menos aparentemente, subverter a obra original de Mann em seus
elementos mais centrais. Qualquer que seja a justificativa, para o espectador atento,
o fato de Luchino Visconti reconsiderar a ocupação do personagem Gustav von
Aschenbach não pode jamais ser entendido como um elemento trivial.

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Antes de tudo: Aschenbach poderia seguir como escritor no centro da trama de


Visconti sem grandes transformações ou comprometimentos para o sentido
narrativo do filme. Com exceção de poucas cenas onde a questão musical é
mencionada (e poucas delas com relação direta ao enredo em si), as discussões
estéticas transpostas para a tela lidam com elementos gerais da arte, lidam com a
criação do Belo e suas qualidades desejáveis, quais sejam, a espontaneidade ou o
controle: questões que em sua maioria estão previstas no texto de Mann.

Disse “no texto” mas devo corrigir-me: as questões estão previstas nos textos de
Mann. “Morte em Veneza” de Visconti, sabidamente, se vale de referências que
só poderão ser encontradas em outras publicações de Mann que não “A Morte em
Veneza”. Talvez a mais significativa destas passagens esteja na cena em diálogo de
Aschenbach e Alfred. Em inquestionável digressão da trama principal, os
personagens comentam sobre o Tempo a partir da imagem de uma ampulheta e sua
areia que escorre. Esta cena é retirada não do livro homônimo, mas de ”Doutor
Fausto ou, a vida de Adrian Leverkühn” (1949) que conta, esta sim, a
história de um músico de vanguarda às vésperas da Segunda Guerra Mundial. A
passagem é encontrada no capítulo XXV. Importante ressaltar – sobretudo para os
estudiosos do filme, mais que do livro – que o texto é dito pelo próprio demônio:

“O tempo é a melhor coisa que costumamos oferecer, e nosso presente essencial é a


ampulheta. O conduto pelo qual escoa a areia vermelha é fininho como um cabelo,
e o fluxo, tão lento que os olhos nem percebem a diminuição na cavidade superior.
Somente quase pelo fim tem-se a impressão de que ele está se acelerando e tudo
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Somente quase pelo fim tem-se a impressão de que ele está se acelerando e tudo
decorreu muito depressa. Mas, devido à estreiteza da abertura, nesse momento,
fica ainda bem distante, de modo que nem vale a pena mencioná-lo e pensar nele
já. Eu gostaria apenas de me entender contigo, meu caro, a respeito de um fato: a
ampulheta já foi posta em movimento, e a areia começou a escoar.”

Visconti cita-a quase literalmente. Como dito, a cena é criada como uma espécie de
digressão da trama principal, algo como a memória de Aschenbach em discussões
técnico-artísticas no mundo fora da (ir)realidade veneziana. De qualquer modo,
mesmo na passagem citada, é evidente que há pouco especificamente musical a ser
usado na trama de Visconti. Deste modo, ainda aqui, a transformação do escritor
em compositor, por parte de Visconti, mesmo à luz e relevância desta cena, pode
sim seguir sendo entendida como uma decisão arbitrária.

Pode, mas não é. À ocasião do lançamento do filme, a conexão Mahler/Aschenbach


há muito fora divulgada, por patrocínio do próprio Mann, e se tornado um fato mais
ou menos discutido em ambientes literários. Visconti estava, ele também,
atualizado com tais discussões, inclusive comentando que:

“É evidente que conheço tudo o que foi feito, dito e escrito sobre Thomas Mann. É
um autor que sempre me acompanhou ao longo da minha vida e das minhas
criações. Ele, Proust e alguns outros influenciaram-me muito. Digamos que em
todos os meus trabalhos há qualquer coisa ou de Proust, ou de Mann ou de
Dostoievski… Mann é um homem fora de sua época e ao mesmo tempo um
intérprete profundo de sua época. Não há outro escritor que tenha dado
testemunho de uma sociedade burguesa como Mann. Ele foi quem melhor
testemunhou as crises dessa sociedade… O tema desta narrativa [de “A morte em
Veneza”], ainda que transformado em morte da arte ou preponderância da
política sobre a estética, continua presente. Sempre me atraiu a possível
divergência entre as aspirações estéticas e a vida de um artista, entre a sua
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existência, que aparentemente ultrapassa a história, e a sua participação nas


condições históricas burguesas”.

Uma tese: Aschenbach-compositor seria um retorno à figura de Mahler, uma das


referências de Mann para criação do personagem. Quiçá, uma espécie de
“divulgação” deste elemento marginal da concepção do livro. Talvez, mas
possivelmente não apenas isso.

Sugiro entender a controvérsia da ocupação de Aschenbach, por Visconti, a partir


de dois pontos. O primeiro é talvez o mais instigante. Na segunda cena de discussão
entre Alfred e Gustav, o tema versa sobre os valores, positivos e negativos da
ambiguidade. Após uma breve interrupção para o serviço de chá, a discussão parece
acalorar-se quando Alfred senta-se ao piano e, mostrando os parcos valores
conclusivos de alguns acordes, decide invocar uma peça musical. O compositor pede
para que Alfred pare, ao que este responde: “esta é sua música!”.

Mas aquela não é a música de Gustav von Aschenbach. Tratam-se dos compassos
iniciais de uma peça de Gustav Mahler, o último movimento da Sinfonia n. 4 –
retirado, por sua vez de uma das canções do ciclo “Des Knaben Wundehorn”
chamado “Das Himmlische Leben” (ou, “A vida paradisíaca”). Que Visconti realize
um corte abrupto desta cena para a próxima, apenas para dar ao garçom a deixa em
que chama o nosso compositor – pela primeira vez na película – pelo sobrenome
(“Senhor Aschenbach, o jantar está de seu agrado?”) é apenas o reforço referencial
para o apelo inequivocamente desconcertante à metalinguagem para a
ambiguidade presente na própria identificação do personagem. Falava-se de
ambiguidade e Visconti a mostra imediatamente: ora, se lidamos com um
protagonista que compôs a quarta Sinfonia de Mahler, é evidente que podemos nos
atrever a pensar que talvez seja também ele o criador da Quinta Sinfonia. Sim, a
sinfonia que compõe a parte mais substanciosa da trilha do filme.

O que nos leva a discutir o segundo ponto. A trilha sonora conta com um leitmotiv,
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O que nos leva a discutir o segundo ponto. A trilha sonora conta com um leitmotiv,
o Adagietto ou quarto movimento da Sinfonia 5 de Mahler. A intenção e contexto
imediato de criação da sinfonia seriam elementos absolutamente tangenciais à
questão da interpretação do filme de Visconti, não fosse o filme mesmo parte
significativa da história de sua recepção. Mesmo a aparente tristeza da obra – que a
permite ser identificada em alguns fóruns informais como uma das obras mais
tristes da história – acabam por ser contrários ao conteúdo formal e expressivo da
peça no contexto de sua criação original. Mahler usa seu Adagietto como uma
espécie de intermezzo entre o despontar do amor (terceiro movimento) e a sua
celebração (o quinto movimento). Embora possam parecer aparentemente
herméticas, essas assertivas são validadas por pesquisas musicológicas e servem de
ponto de partida para compreensão da sinfonia.

O Adagietto, como dito, posiciona-se como quarto movimento em uma sinfonia em


tudo especial – a começar pela quantidade de seus movimentos, cinco ao invés dos
quatro tradicionais. Mahler compôs sua Quinta Sinfonia entre os anos de 1901 e
1902. Foram anos importantes para a biografia do compositor pois marcam sua
transição para um estilo diverso – e a Quinta Sinfonia é um dos pilares deste novo
estilo.

O período começa com um dos grandes choques de saúde do compositor. No dia 24


de fevereiro, Mahler colapsa por conta de uma crise hemorrágica que o deixa
desmaiado entre atos de uma apresentação comemorativa da ópera “Die
Zauberflöte” (A Flauta mágica”) de Mozart, na Ópera Imperial de Viena. O
ataque é tão intenso que Mahler imagina de fato que iria morrer. Graças a uma
constituição forte e um longo período de repouso em sua casa de campo em
Maiernigg, o verão garante-lhe a plena reabilitação – de tal sorte que o retorno a
agenda de trabalho em setembro diminui apenas à luz das novas demandas,
eminentemente criativas do maestro. E é entre esta bem sucedida recuperação e
sua consequente retomada profissional e criativa que encontramos a mudança
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sua consequente retomada profissional e criativa que encontramos a mudança


decisiva no estilo de composição de Mahler, mudança que fica explicita nas obras
do período – não apenas a Quinta Sinfonia mas também os expressivos ciclos
“Rückertlieder” e “Kindertotenlieder”.

Quais são as características desta nova fase? Certamente um certo pessimismo mas,
no seu catálogo instrumental, também a opção por narrativas veladas e não tão
sediadas nos recursos expressivos literários. Invocamos muito prontamente nesta
nova fase uma saudável distância tomada pelo compositor dos poemas folclóricos
coletados pelos irmãos Brentano – o já citado “Des knaben Wundehorn” -, que
haviam sido usados por Mahler em todas suas sinfonias e praticamente todas as
peças e canções, até então. A partir da Quinta Sinfonia, o que vemos é um
compositor mais ciente das qualidades extraordinárias da ambiguidade do gênero
instrumental, e com isso, uma melhor apropriação da tradição sinfônica em termos
mais abstratos.

De qualquer modo, abstração não é em Mahler formalismo. Bruno Walter é o


primeiro a fazer referência ao Adagietto como uma mensagem velada. Assistente do
compositor por seis anos, Walter comenta ter ouvido de ambos – Gustav e sua
esposa Alma – a anedota de que a peça teria sido enviada, antes da publicação ou
apresentação pública, como uma carta de declaração de amor, respondida em
termos veementes de aceitação por parte da então namorada. O fato dela entender
os termos da “carta” demonstra a cultura da interlocutora, por um lado, mas
também a engenhosidade por parte de Mahler para apropriar-se de um dos ícones
da música de seu tempo, o tema de amor do “Tristão e Isolda” de Richard
Wagner. A sinfonia, assim, tendo no Adagietto uma citação quase literal do tema de
amor da ópera de Wagner, e começando em seu primeiro movimento “tal como um
cortejo fúnebre”, permite a si a atribuição de uma “narrativa” ascensional – da
morte ao amor.

Interessa, no entanto, saber que Visconti possivelmente não se vale de tal percurso
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Interessa, no entanto, saber que Visconti possivelmente não se vale de tal percurso
narrativo. Ao contrário, prefere construir outro. Pois embora o amor seja sim um
dos pontos basilares da narrativa de “Morte em Veneza”, a música justaposta à
cena acaba por ter uma denotação mais melancólica, angustiada mesmo – em
alguns termos, decadente. É difícil precisar tais elementos, de cunho
eminentemente subjetivo, mas desde o primeiro quadro, com a
extraordinariamente sugestiva fusão da tela enegrecida aos canais e posteriormente
à barca sobre os canais de Veneza, pouco do ímpeto amoroso parece ser retratado
em tela e, de fato, talvez não seja esta a melhor chave para entender a intenção
sofisticada do diretor italiano quando prevê essa música como elemento reincidente
na trama.

O que considero relevante é perceber que, com tal jogo de dubiedade na


identificação do seu personagem, e isto é apenas reforçado pela música, mais que
sublinhar a derrocada de nosso herói, Visconti consegue fazer com que a trilha
sonora sirva também como elemento narrativo secundário, a sugerir para alguns
senão a intuição, certamente uma inquietação quanto a um eventual acesso à
intimidade emocional do protagonista.

E, aqui, o ponto central. Sendo aquela a música de um compositor que talvez seja o
nosso protagonista, podemos fabular que trata-se ela da própria expressão de
elementos de sua vida interior? É a que Visconti nos convida: uma espécie de
fantasia em segundo plano que, reiterado pelo “motivo” do Adagietto ao longo da
trama, em situações díspares, carrega a imagem de uma emoção resistente. A
música surge sempre a ilustrar um protagonista solitário, e talvez seja nesse reforço
de sua solidão que ela vigore como elemento objetivo de composição do roteiro.

Metalinguagem? Em termos técnicos não exatamente. Mas talvez possamos, sim,


reavaliar, do ponto de vista poético, que é disso que se trata. A música de “Morte
em Veneza”, o filme, é o elemento impossível de “A Morte em Veneza”, o livro:
aquele que, de modo muito peculiar, nos leva diretamente não apenas ao sonho de
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A música em “Morte em Veneza” de Luchino Visconti 14/06/2019 16)49

aquele que, de modo muito peculiar, nos leva diretamente não apenas ao sonho de
seus criadores e diretores, mas também – uma tese -, de modo contundente e
incisivo, à biografia de uma ficção, ao universo interior de seu protagonista.

Leandro Oliveira é compositor e regente de orquestra, e anfitrião do projeto


“Falando de Música” da Osesp. É doutorando em Educação, Arte e
História da Cultura pela Universidade Mackenzie

Bibliografia

Thomas Mann’s Death in Venice: A Novella and Its Critics, Ellis Shookman
Thomas Mann’s Death in Venice: A Reference Guide (2004) Ellis Shookman
Unwritten Memories (1975) Katia Mann
Luchino Visconti, Cineaste (1984)
Entrevista a Michel Ciment e jean-Paul Torok. Organizado por alain Sanzio e Paul-Louis
Thirard
The Letters of Heinrich and Thomas Mann, 1900-1949 (Weimar and Now: German Cultural
Criticism, No 12)
Letters of Thomas Mann, 1889-1955 Por Thomas Mann,Richard Winston,Clara Winston
Gustav Mahler: The Symphonies Constantin Floros
Thomas Mann: “A Morte em Veneza” (Companhia das Letras, 2015)
Laurence Schifano: “Visconti, o fogo da paixão” (Nova Fronteira, 1990)

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