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A música em “Morte em
Veneza” de Luchino Visconti
Na coluna Falando de Música, o maestro Leandro Oliveira aborda as perspectivas
musicais presentes no filme "Morte em Veneza", do cineasta Luchino Visconti.
Estado da Arte
07 de março de 2019 | 11h00
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Quando “Felix Krull” é colocado de lado, o novo projeto acaba por tomar todo seu
tempo de trabalho. Em Junho de 1912, um ano após o retorno de sua viagem à
Veneza, conclui o livro e sua publicação dá-se primeiramente em partes, entre
outubro e novembro do mesmo ano.
Mas não é de Mann que trata o personagem. Ou, ao menos, não apenas dele. A
primeira referência que um leitor experiente pode fazer, tanto a partir da atividade
profissional quanto da descrição laboriosa feita sobre o protagonista Gustav von
Aschenbach, é a de outro Gustav, o novelista francês Gustav Flaubert (1821- 1880),
a quem Mann pessoalmente admira e emula. Flaubert é o escritor do “mot juste”, e
seu notório perfeccionismo reverbera por todo lado nas passagens do texto em que
Mann descreve o trabalho de seu personagem e o rigor de sua personalidade frente
a ele como uma tarefa de mártir – autor para quem a graça é alcançada pela
perseverança, pela disciplina.
E, é claro, entre as tantas figuras históricas a quem Mann faz referência, está aquela
de Gustav Mahler. Mann admirava Mahler como aquele a encarnar “a mais séria e
sagrada proposta artística de seu tempo”. Anos mais tarde, em carta ao ilustrador
Wolfgang Born, o escritor comentaria estar particularmente impressionado pela
aparência que o ilustrador dera a seu personagem: parecer-se-ia por demais com
aquela do compositor Gustav Mahler e ninguém até aquele momento poderia
imaginar que, de fato, Mahler fora uma referência velada para a construção de
Aschenbach.
impressão mais forte sobre mim. Eu estava na ilha de Brioni no momento da sua
morte, e segui a história de suas últimas horas nos boletins de imprensa de Viena
que foram emitidos e publicados em estilo aristocrático. Mais tarde, estes choques
fundiram-se com as impressões e idéias a partir do qual a novela surgiu. De modo
que quando eu concebi o meu herói que sucumbe à dissolução lasciva, eu não só
lhe dei o nome de batismo do músico, mas também ao descrever sua aparência
conferi a máscara de Mahler sobre ele […]”
A coincidência não é, resta evidente, casual. Embora na carta Mann pareça apostar
numa certa intuição artística e menos em seus poderes descritivos – ele faz uma
saborosa reflexão sobre a natureza da linguagem – o fato é que Born, o ilustrador,
se vale sobretudo da última seção do segundo capítulo, passagem do livro em que a
imagem de Aschenbach/Mahler é sim francamente detalhada. Se talvez Mahler
escapasse da imagem pública do leitor médio, o delineamento físico feito por Mann
não poderia escapar a um profissional gráfico experiente.
“Gustav von Aschenbach estava um pouco abaixo da altura média, raspada escuro
e liso, com uma cabeça que parecia um pouco grande demais para a sua figura
quase delicada. Ele usava o cabelo penteado para trás; era fino ao final, espessa e
cinza nas têmporas, emoldurando uma testa robusta arrebitado – se assim se
pode caracterizá-la. O nariz segurava um pedaço de óculos com aro de ouro, seu
corte na base do nariz grosso, aristocraticamente arrebitado. A boca era grande,
muitas vezes negligente, muitas vezes e de repente estreita e tensa; as bochechas
magras e franzidas, o queixo pronunciado ligeiramente.”
De qualquer modo, a despeito de todas esta “pistas”, o que não pode ser levado
adiante, em nenhuma hipótese, é a ideia que se trata de um livro biográfico – ou
autobiográfico. Tais referências imperfeitas são, a meu ver, ponto de ignição para
uma narrativa que lida, mais que tudo, com o problema da natureza e condição da
Arte e do Belo. A pequena obra de Mann, embora preserve características gerais de
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uma pequena tragédia, pode ser entendido sem qualquer dificuldade para sua
recepção como precursora sofisticada da metaficção – cum granus salis, não por
tratar-se de um livro sobre livros, mas na medida em que versa sobre a natureza
mesma do objeto literário.
Ao ler o livro como uma exploração poética sobre a origem e condição existencial da
Beleza e sua apropriação pela literatura, “A Morte em Veneza” passa a ser
entendido através da tensão entre um protagonista rigoroso e disciplinado contra o
elemento natural e maravilhoso (o termo é absolutamente cabível) encarnado por
Tadzio – aquele que, em estado puro e involuntário expressa em si o próprio Belo. O
antagonismo entre o elemento ético do Belo – ético pois fruto da disciplina,
engenho e artifício -, e sua expressão natural é, claro, um dilema de larga história,
que talvez possa se entender pela dicotomia entre Clássico e Romântico. Mas Mann
cria uma terceira e vigorosa dimensão ao problema para além deste jogo de forças:
ao fazer o velho Aschenbach apaixonar-se pelo jovem Tadzio, somos lançados na
narrativa de uma tensão obtusa e distinta, aquela do desejo. Parafraseando Lacan,
Aschenbach não é sujeito do amor, mas, ordinariamente, a sua vítima. Com o amor
de Aschenbach, é claro, somos forçados a conviver em um novo e complexo sistema
de variáveis onde o que se questiona não é somente o Belo como matéria estética,
mas também o Belo como matéria erótica. Assim, é entre Apolo e Dionísio, mas
também entre Eros e Thanatos que é composta “A Morte em Veneza”, a pequena
novela de Thomas Mann.
***
À guisa de intermezzo
narrativa viscontina
***
Mas sendo a novela uma grande e decisiva reflexão sobre a natureza do ofício da
arte e da escrita, fica ainda mais desconcertante a decisão de Luchino Visconti em
seu “Morte em Veneza”. Transformar seu protagonista de escritor em músico é,
antes, ao menos aparentemente, subverter a obra original de Mann em seus
elementos mais centrais. Qualquer que seja a justificativa, para o espectador atento,
o fato de Luchino Visconti reconsiderar a ocupação do personagem Gustav von
Aschenbach não pode jamais ser entendido como um elemento trivial.
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Disse “no texto” mas devo corrigir-me: as questões estão previstas nos textos de
Mann. “Morte em Veneza” de Visconti, sabidamente, se vale de referências que
só poderão ser encontradas em outras publicações de Mann que não “A Morte em
Veneza”. Talvez a mais significativa destas passagens esteja na cena em diálogo de
Aschenbach e Alfred. Em inquestionável digressão da trama principal, os
personagens comentam sobre o Tempo a partir da imagem de uma ampulheta e sua
areia que escorre. Esta cena é retirada não do livro homônimo, mas de ”Doutor
Fausto ou, a vida de Adrian Leverkühn” (1949) que conta, esta sim, a
história de um músico de vanguarda às vésperas da Segunda Guerra Mundial. A
passagem é encontrada no capítulo XXV. Importante ressaltar – sobretudo para os
estudiosos do filme, mais que do livro – que o texto é dito pelo próprio demônio:
Somente quase pelo fim tem-se a impressão de que ele está se acelerando e tudo
decorreu muito depressa. Mas, devido à estreiteza da abertura, nesse momento,
fica ainda bem distante, de modo que nem vale a pena mencioná-lo e pensar nele
já. Eu gostaria apenas de me entender contigo, meu caro, a respeito de um fato: a
ampulheta já foi posta em movimento, e a areia começou a escoar.”
Visconti cita-a quase literalmente. Como dito, a cena é criada como uma espécie de
digressão da trama principal, algo como a memória de Aschenbach em discussões
técnico-artísticas no mundo fora da (ir)realidade veneziana. De qualquer modo,
mesmo na passagem citada, é evidente que há pouco especificamente musical a ser
usado na trama de Visconti. Deste modo, ainda aqui, a transformação do escritor
em compositor, por parte de Visconti, mesmo à luz e relevância desta cena, pode
sim seguir sendo entendida como uma decisão arbitrária.
“É evidente que conheço tudo o que foi feito, dito e escrito sobre Thomas Mann. É
um autor que sempre me acompanhou ao longo da minha vida e das minhas
criações. Ele, Proust e alguns outros influenciaram-me muito. Digamos que em
todos os meus trabalhos há qualquer coisa ou de Proust, ou de Mann ou de
Dostoievski… Mann é um homem fora de sua época e ao mesmo tempo um
intérprete profundo de sua época. Não há outro escritor que tenha dado
testemunho de uma sociedade burguesa como Mann. Ele foi quem melhor
testemunhou as crises dessa sociedade… O tema desta narrativa [de “A morte em
Veneza”], ainda que transformado em morte da arte ou preponderância da
política sobre a estética, continua presente. Sempre me atraiu a possível
divergência entre as aspirações estéticas e a vida de um artista, entre a sua
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Mas aquela não é a música de Gustav von Aschenbach. Tratam-se dos compassos
iniciais de uma peça de Gustav Mahler, o último movimento da Sinfonia n. 4 –
retirado, por sua vez de uma das canções do ciclo “Des Knaben Wundehorn”
chamado “Das Himmlische Leben” (ou, “A vida paradisíaca”). Que Visconti realize
um corte abrupto desta cena para a próxima, apenas para dar ao garçom a deixa em
que chama o nosso compositor – pela primeira vez na película – pelo sobrenome
(“Senhor Aschenbach, o jantar está de seu agrado?”) é apenas o reforço referencial
para o apelo inequivocamente desconcertante à metalinguagem para a
ambiguidade presente na própria identificação do personagem. Falava-se de
ambiguidade e Visconti a mostra imediatamente: ora, se lidamos com um
protagonista que compôs a quarta Sinfonia de Mahler, é evidente que podemos nos
atrever a pensar que talvez seja também ele o criador da Quinta Sinfonia. Sim, a
sinfonia que compõe a parte mais substanciosa da trilha do filme.
O que nos leva a discutir o segundo ponto. A trilha sonora conta com um leitmotiv,
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O que nos leva a discutir o segundo ponto. A trilha sonora conta com um leitmotiv,
o Adagietto ou quarto movimento da Sinfonia 5 de Mahler. A intenção e contexto
imediato de criação da sinfonia seriam elementos absolutamente tangenciais à
questão da interpretação do filme de Visconti, não fosse o filme mesmo parte
significativa da história de sua recepção. Mesmo a aparente tristeza da obra – que a
permite ser identificada em alguns fóruns informais como uma das obras mais
tristes da história – acabam por ser contrários ao conteúdo formal e expressivo da
peça no contexto de sua criação original. Mahler usa seu Adagietto como uma
espécie de intermezzo entre o despontar do amor (terceiro movimento) e a sua
celebração (o quinto movimento). Embora possam parecer aparentemente
herméticas, essas assertivas são validadas por pesquisas musicológicas e servem de
ponto de partida para compreensão da sinfonia.
Quais são as características desta nova fase? Certamente um certo pessimismo mas,
no seu catálogo instrumental, também a opção por narrativas veladas e não tão
sediadas nos recursos expressivos literários. Invocamos muito prontamente nesta
nova fase uma saudável distância tomada pelo compositor dos poemas folclóricos
coletados pelos irmãos Brentano – o já citado “Des knaben Wundehorn” -, que
haviam sido usados por Mahler em todas suas sinfonias e praticamente todas as
peças e canções, até então. A partir da Quinta Sinfonia, o que vemos é um
compositor mais ciente das qualidades extraordinárias da ambiguidade do gênero
instrumental, e com isso, uma melhor apropriação da tradição sinfônica em termos
mais abstratos.
Interessa, no entanto, saber que Visconti possivelmente não se vale de tal percurso
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Interessa, no entanto, saber que Visconti possivelmente não se vale de tal percurso
narrativo. Ao contrário, prefere construir outro. Pois embora o amor seja sim um
dos pontos basilares da narrativa de “Morte em Veneza”, a música justaposta à
cena acaba por ter uma denotação mais melancólica, angustiada mesmo – em
alguns termos, decadente. É difícil precisar tais elementos, de cunho
eminentemente subjetivo, mas desde o primeiro quadro, com a
extraordinariamente sugestiva fusão da tela enegrecida aos canais e posteriormente
à barca sobre os canais de Veneza, pouco do ímpeto amoroso parece ser retratado
em tela e, de fato, talvez não seja esta a melhor chave para entender a intenção
sofisticada do diretor italiano quando prevê essa música como elemento reincidente
na trama.
E, aqui, o ponto central. Sendo aquela a música de um compositor que talvez seja o
nosso protagonista, podemos fabular que trata-se ela da própria expressão de
elementos de sua vida interior? É a que Visconti nos convida: uma espécie de
fantasia em segundo plano que, reiterado pelo “motivo” do Adagietto ao longo da
trama, em situações díspares, carrega a imagem de uma emoção resistente. A
música surge sempre a ilustrar um protagonista solitário, e talvez seja nesse reforço
de sua solidão que ela vigore como elemento objetivo de composição do roteiro.
aquele que, de modo muito peculiar, nos leva diretamente não apenas ao sonho de
seus criadores e diretores, mas também – uma tese -, de modo contundente e
incisivo, à biografia de uma ficção, ao universo interior de seu protagonista.
Bibliografia
Thomas Mann’s Death in Venice: A Novella and Its Critics, Ellis Shookman
Thomas Mann’s Death in Venice: A Reference Guide (2004) Ellis Shookman
Unwritten Memories (1975) Katia Mann
Luchino Visconti, Cineaste (1984)
Entrevista a Michel Ciment e jean-Paul Torok. Organizado por alain Sanzio e Paul-Louis
Thirard
The Letters of Heinrich and Thomas Mann, 1900-1949 (Weimar and Now: German Cultural
Criticism, No 12)
Letters of Thomas Mann, 1889-1955 Por Thomas Mann,Richard Winston,Clara Winston
Gustav Mahler: The Symphonies Constantin Floros
Thomas Mann: “A Morte em Veneza” (Companhia das Letras, 2015)
Laurence Schifano: “Visconti, o fogo da paixão” (Nova Fronteira, 1990)
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