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O que faz algo ser arte?
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Desde que o mundo é mundo, muita gente já arriscou uma
definição sobre o que é arte. Apesar de corriqueira, contudo, essa questão sempre volta à tona para inquietar os corações. Tentar responder “o que é arte” é uma tarefa das mais injustas por dois motivos: primeiro porque todo mundo parece se sentir autorizado a estabelecer verdades absolutas sobre o tema e, segundo, porque a reflexão, como parece posta, força uma homogeneização de obras completamente distintas. Como comparar a Vênus de Milo exposta no Museu do Louvre, do outro lado do Atlântico, com o graffiti estampado na W3 Sul de Brasília? Impossível, não há definição única de arte que dê conta de abarcar os dois simultaneamente. Foram feitos em tempos, em locais, por pessoas e técnicas diferentes. São formas de expressão particulares que não podem ser niveladas, apesar de ambas serem arte.
A pergunta que precisa ser feita não é “o que é arte?”, mas
“o que faz algo ser arte?”. A mudança de abordagem parece pequena e sutil, mas é fundamental. Saímos de uma busca de generalização perigosa e caminhamos rumo à valorização e ao respeito às diversidades, abrindo espaço
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para a compreensão das particularidades de cada
produção. Cada obra de arte sempre terá elementos próprios que devem ser considerados por si mesmos, nunca em comparação com paradigmas estabelecidos anteriormente, ainda mais de milênios atrás.
Para entender o que faz um objeto arte, o primeiro passo é
saber que o gosto pessoal de cada indivíduo observador não tem absolutamente nada a ver com a condição artística de algo. Não é o meu gosto que faz algo ser ou não ser arte. Acreditar que isso poderia ser possível de legitimação é muita prepotência. É difícil aceitar que nossa própria opinião não importa, eu sei, mas é um ótimo exercício para esvaziar nossos egoísmos.
Geralmente quem se acha muito especialista em arte e
enche o peito para falar que determinada coisa não é arte está em busca da primeira definição de arte do mundo ocidental, aquela que Platão deu lá na Antiguidade, antes mesmo que Cristo tivesse existido. Segundo o filósofo grego, a arte deveria ser uma representação do belo e do real. Essa busca pelo prazer na obra de arte vai se intensificar no romantismo do século XVIII. Foi nesse período também que a figura do artista foi construída como genial, dotada de talento inato, prodígio. Desde então, foram diversos os estudos, as teorias, as histórias e as filosofias que superaram esse argumento.
Artista é uma profissão como outra qualquer. Assim como é
necessário ter médico na sociedade para que ela não adoeça, é preciso ter artista; assim como jornalistas são
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necessários, artistas também são. E da mesma forma que
existem profissionais bons ou ruins em todas as áreas, existem da mesma forma artistas bons e ruins. Como tudo na vida, isso não é de forma alguma uma condição imutável. Artistas bons podem ter semanas difíceis (quem nunca?), assim como artistas ruins podem um dia acordar com sorte e de repente virar sensação. É a vida normal que segue. Nada demais.
Em contraposição aos conceitos antigo e romântico da arte
e do artista, a modernidade e a contemporaneidade inauguram novos parâmetros de entendimento sobre o que faz algo ser arte. A partir de toda a tradição construída até aqui, que não pode de forma alguma ser ignorada, mas com a incorporação dos avanços temporais da nossa época, podemos pensar em alguns critérios que podem nos ajudar a refletir sobre o que faz algo ser arte em pleno 2019.
Quando Elsa von Freytag-Loringhoven criou aquele
mictório, conhecido internacionalmente como a grande obra de Marcel Duchamp, que lhe roubou a ideia, a artista mudou a ordem artística vigente. A partir da peça, um mictório comum, apenas virado de ponta-cabeça, ela afirmou, nos primeiros anos do século XX, que qualquer coisa poderia ser arte. Não que tudo fosse, porque não é bagunçado assim, mas tudo poderia ser. E como saber a diferença entre o que é e o que não é, se os artistas cada vez mais se apropriam de coisas aparentemente banais e se lançam de cabeça na piscina de tudo aquilo que queremos jogar fora?
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O caminho é mais simples do que parece. O primeiro
elemento que se deve considerar é quem produziu a obra. Foi um artista profissional? Se sim, não se pode de forma alguma dizer que o trabalho feito não é arte. Você pode falar que não gosta, que o estilo não lhe agrada muito, mas jamais negar que seja arte. Mais uma vez, não tem nada a ver com o seu gosto pessoal. Não é porque você não gostou de um prédio novo construído na sua cidade que ele deixa de ser engenharia.
O segundo elemento é avaliar o processo criativo de quem
elaborou a obra. Para se tornar profissional em artes, demanda-se muito investimento. Os materiais são caros, as remunerações são baixas e as universidades, pelo que observamos recentemente, estão caminhando para uma restrição cada vez maior. Se o processo de formação profissional oficial é um caminho oneroso, uma alternativa é ser autodidata e investir em seu próprio processo criativo. É assim que fazem geralmente os grafiteiros: começam a pixar por conta própria, aventuram-se em novos traços, arriscam desenhos e, com empenho, constroem suas carreiras. Se o processo criativo é parte valorizada no processo de produção de uma obra, o resultado final não pode ser descredenciado artisticamente. Mais uma vez, você pode dizer que não gosta, mas não que não é arte. O processo criativo é o principal elemento que separa uma obra de arte do rabisco do seu filho de 5 anos. A criança não reflete séria e criticamente sobre o processo, mas se aventura na descoberta de novas ferramentas de expressão. Para a criança, lápis é brincadeira. Nas artes,
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ninguém está brincando, por mais divertidas que sejam.
O terceiro elemento, talvez o mais respeitado pela opinião
pública atualmente, mas mesmo assim ignorado por muitos, é o parecer da instituição. Como em todas as áreas de conhecimento, as artes também têm sua instituição oficial, composta por um leque amplo de frentes que incluem museus, galerias, críticos de arte, acadêmicos em geral (teóricos, historiadores, sociólogos, antropólogos, filósofos), colecionadores, curadores etc. É uma categoria formada por pensadores com bagagem profunda, que vão se dedicar a pensar a arte em suas diferentes formas. Se a instituição endossa algo como arte, novamente não é seu gosto que vai derrubar isso.
O último elemento, e o mais precioso e moderno de todos,
é o poder do espectador de poder transformar qualquer coisa em arte a partir de sua disponibilidade de estabelecer
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uma relação estética com ela, mesmo que por alguns
segundos. A partir do mictório de Elsa, ou das cadeiras de Kosuth, por exemplo, cada vez que vemos objetos similares no dia a dia, mesmo que no banheiro do trabalho, somos resgatados das nossas inércias mentais para termos um momento de reflexão estética. Considerando que toda estética é política, olhar para uma cadeira no restaurante e pensar que poderia ser uma obra de arte já é uma micro revolução da ordem vigente.
A arte tradicional que alguns reivindicam, aquela que tem
que ser bela, que tem que ser exposta entre quatro paredes com alarmes de segurança, aquela que custa caro, exclui formas contemporâneas de se produzir e viver, além de ignorar a conjuntura do momento. Se observamos o caos mundial se instaurar, com tanta violência, tragédia e injustiça, que desserviço seria se a arte funcionasse na lógica clássica, anestesiando pela contemplação e não oferecendo nada à reflexão crítica. Que triste seria uma arte pautada pela cópia da verdade, sem inventar ficções possíveis, sem fantasiar, sem incomodar. Não há nada que não possa ser arte; tudo pode. E de todas as possibilidades existentes, que são infinitas, até o momento desprezo apenas uma: a arte obediente.
*Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em arte, cultura e
política, doutoranda em História da Arte pela Universidade de Brasília.
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