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Linguagem
A linguagem (re)produz a realidade. Pensar em sujeitos sem considerar a linguagem é
impraticável, pois ela está presente em tudo o que fazemos e o que somos, permeando nossos
pensamentos e mediando nossas relações no mundo, com o mundo.
O reconhecimento de sua inegável essencialidade e capacidade de atrair a curiosidade
dos homens, fez com que muitos estudos fossem realizados e muitas obras fossem escritas sobre
o tema: descrições, métodos, teorias. Enfim, diferentes correntes, perspectivas (e uma vasta
bibliografia) tentam, cada uma a sua maneira, dar conta dos estudos linguísticos e das tarefas do
linguista.
Desde o seu nascimento junto aos pensadores gregos até o início do século XX, quando
passa a ser vista como ciência, a Linguística Ocidental foi se desenvolvendo; são tantas
informações e considerações feitas sobre essa importante caminhada que dados importantes
podem escapar a um olhar menos atento.
1. Sobre as principais funções da linguagem
A linguagem, no que se refere à função, é responsável por:
1) reproduzir a realidade – conferindo ao ato de discurso uma dupla função: a
interação entre aquele que fala e conta sobre sua experiência e aquele que ouve a
experiência do outro (o acontecimento), recriando a realidade – essa é a troca inerente
ao exercício da linguagem;
2) reproduzir o mundo – o linguista acredita na relação intrínseca entre pensamento e
linguagem e que, portanto, toda expressão que ele recebe determina o conhecimento
de mundo. Ao (re)produzir o mundo, a linguagem submete-o à sua própria
organização, sendo logos, discurso e razão ao mesmo tempo. Como explica
Benveniste:
Ela (a Linguística) é logos, discurso e razão juntos, como o viram os gregos. É isso pelo
próprio fato de ser linguagem articulada, consistindo de um arranjo orgânico de partes,
de uma classificação formal dos objetos e dos processos. O conteúdo que deve ser
transmitido (ou se quiser, o “pensamento”) é decomposto, assim, segundo um esquema
linguístico. A “forma” do pensamento é configurada pela estrutura da língua. E a língua
por sua vez revela dentro do sistema das suas categorias a sua função mediadora.
(2005, p.26-27)
Um indivíduo não existe sem implicar o outro, que, dotado do mesmo esquema
linguístico, da mesma estrutura linguística, usa a língua como instrumento de mediação, e, a
partir dessa função mediadora da linguagem, e devido à polaridade eu : tu, sujeito e sociedade se
complementam.
De acordo com Benveniste (2005, p. 27), é dentro da, e pela língua que indivíduo e
sociedade se determinam mutuamente. A sociedade não seria possível sem este instrumento de
intermediação poderoso: a palavra. A palavra é soberana, por meio dela tudo expressamos, tudo
simbolizamos.
Qual é então a fonte desse poder misterioso que reside na língua? Por que o indivíduo e
a sociedade, juntos e por igual necessidade, se fundam na língua? Porque a linguagem
representa a mais alta forma de uma faculdade que é inerente à condição humana, a
faculdade de simbolizar. (2005, p. 27)
Nada retrata tão bem essa relação intrínseca entre homem e linguagem quanto esta frase:
“o homem não foi criado duas vezes, uma vez sem linguagem e outra com linguagem”
(BENVENISTE, 2005, p. 29).
i) Sobre a tarefa do linguista: a que ponto ele deseja chegar e o que descreverá sob o
nome de língua?
ii) Sobre a descrição da língua: por meio de quais princípios apreende-se o conjunto
dos traços de uma língua dentro do conjunto das línguas manifestadas e como
descrevê-los em termos idênticos?
iii) Sobre a significação: tendo em mente que tanto para falantes comuns como para
linguistas a linguagem tem como função “dizer alguma coisa” – como delimitar
essa “coisa” em relação à própria linguagem?
Considerando que homem e sociedade não existem sem a linguagem, é curioso verificar
que, durante séculos, nada mudou, em termos de estudos linguísticos.
Segundo Benveniste (2005, p. 21), o início do século XIX traz consigo uma nova fase
para os estudos linguísticos: a descoberta do sânscrito e uma relação de parentesco entre as
línguas indo-europeias. Tem-se início a gramática comparada, cujo método experimentado sobre
o domínio indo-europeu tornou-se exemplar. Falava-se em genética das línguas: o interesse
nessa fase estava pautado no estudo da evolução das formas linguísticas.
Ressalta-se o caráter exclusivamente histórico que marcava a linguística durante todo o
século XIX e o início do século XX. A história como perspectiva necessária e a sucessão como
princípio de explicação – a divisão da língua em elementos isolados e a pesquisa de leis de
evolução própria a cada um deles como caracteres dominantes da doutrina Linguística. Começa
aqui os questionamentos sobre a natureza do fato linguístico, sobre a realidade da língua:
perguntas que a linguística histórica não conseguia responder. Ao mesmo tempo que, de acordo
com Benveniste (2005, p. 21), surgiam dificuldades de ordem totalmente diferente, mas
igualmente temíveis, as quais escapavam a uma descrição histórica, forçando os linguistas à
elaboração de um novo aparato de definições e a um novo método de análise.
Dizer que a linguística tende a tornar-se científica não é apenas insistir sobre uma
necessidade de rigor, comum a todas as disciplinas. Trata-se, em primeiro lugar, de uma
mudança de atitude em relação ao objeto, que se definirá por um esforço para
formalizá-lo. Na origem dessa tendência pode reconhecer-se uma influência dupla: a de
Saussure na Europa e a de Bloomfield na América. (...) É difícil imaginar contraste
mais acentuado que o destes dois trabalhos: Cours de linguistique général de Saussure
(1916), livro póstumo redigido a partir dos apontamentos de alunos, conjunto de
exposições geniais, cada uma das quais pede uma exegese e algumas das quais
alimentam ainda a controvérsia, projetando a língua sobre o plano de uma semiologia
universal, abrindo visões para as quais o pensamento filosófico de hoje apenas desperta;
Language de Bloomfield (1933), que se tornou o vade-mecum dos linguistas
americanos, textbook (“manual”) completamente acabado e amadurecido, notável tanto
pela sua posição de despojamento filosófico quanto pelo seu rigor técnico
(BENVENISTE, 2005, p. 7)
Para Saussure (2006, p. 271), “a linguística tem como único e verdadeiro objeto a língua
considerada em si mesma e por ela mesma”. Conforme Benveniste, essa nova posição alarga o
horizonte dos linguistas, pois todos os tipos de línguas adquirem direitos iguais de representar a
linguagem (2005, p. 6).
Com esse princípio em mente, os linguistas se conscientizam da tarefa que lhes é cabida:
estudar e descrever a realidade linguística atual por intermédio de uma técnica apropriada, não
misturar pressupostos teóricos ou históricos nas descrições (que devem ser sincrônicas), e
analisar a língua por ela mesma. Saussure estabeleceu que a Linguística teria como matéria todas
as manifestações da linguagem humana, de diferentes povos e épocas, considerando-se todas as
formas de expressão e não somente aquelas consideradas linguagens “belas e a corretas”.
De acordo com Saussure, eis as tarefas da Linguística (2006, p. 13):
i) fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger, o que quer
dizer: fazer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida do possível, as
línguas-mães de cada família;
ii) procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as
línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos
peculiares da história;
iii) delimitar-se e definir-se a si própria.
A intersubjetividade tem assim sua temporalidade, seus termos, suas dimensões. Por
aí se reflete na língua a experiência de uma relação primordial, constante,
indefinidamente reversível, entre o falante e seu parceiro. Em última análise, é
sempre ao ato de fala no processo de troca que remete a experiência humana inscrita
na linguagem. (PLG II, p. 80)
As ocorrências de discurso
(1) O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da
enunciação, não é simplesmente a “fala”? – É preciso ter cuidado com a condição
específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do
enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por
sua conta. A relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da
enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por
instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação (PLG II, p. 82)
(1) O ato individual pelo qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor
como parâmetro nas condições necessárias da enunciação. Antes da enunciação, a
língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada
em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge
um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno (PLG II, p. 83-84)
(2) Na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação
com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é,
para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a
possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada
locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação (PLG II, p. 84)
(3) O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é
um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz
com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta
situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuia função é de
colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação (PLG II, p.
84).
(4) O presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença no mundo que
somente o ato de enunciação torna possível, porque, é necessário refletir bem sobre
isso, o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o “agora” e de torná-lo
atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo (PLG II, p. 85)
(5) O presente formal não faz senão explicitar o presente inerente à enunciação, que se
renova a cada produção de discurso, e a partir deste presente contínuo, coextensivo
à nossa própria presença, imprime na consciência o sentimento de uma continuidade
que denominamos “tempo”; continuidade e temporalidade que se engendram no
presente incessante da enunciação, que é o presente do próprio ser e que se delimita,
por referência interna entre o que vai se tornar presente e o que já não o é mais (PLG
II, p. 85-86).
(7) Amplas perspectivas se abrem para a análise das formas complexas do discurso, a
partir do quadro formal esboçado aqui (PLG II, p. 90)
O sentido de discurso
Essa interpretação pode ser estendida ao falar sobre o presente inerente à enunciação,
considera que ele se renova a cada produção de discurso. A produção do discurso é o mesmo
que ato de produzir, sinônimo de enunciação, o que reforça a ideia de que o discurso pode ser
entendido como todo e qualquer produto da enunciação.
A enunciação pode ser visto sob diversos aspectos. O primeiro aspecto considerado é o
vocal.
A instância de discurso tem relação muito próxima com a ideia de produção inicial de um
enunciado porque ela é também o espaço-tempo em que o “eu” é identificado ao locutor.
Benveniste diz que uma das “perspectivas” de seu trabalho é estudar as formas
complexas do discurso.
“ele” pertence apenas ao plano do enunciado e não da enunciação. Tais índices de pessoa
fazem referência, sempre, à realidade do discurso, referência essa que une a “eu”/“tu” uma
série de indicadores (pronomes, advérbios, locuções adverbiais etc.), isto é, um conjunto de
signos “vazios”, não referenciais com relação à realidade, sempre disponíveis e que se tornam
plenos assim que o locutor os assume em cada instância de seu discurso. O papel desses
indicadores consiste em fornecer o instrumento para a conversão da linguagem em discurso, o
que se dá, justamente, por meio da enunciação, a qual vincula o locutor e o alocutário ao
mundo ou, à realidade do discurso.
Um enunciado dito por alguém a quem pertence o direito de fazê-lo, ou seja, por uma
autoridade, pode não comportar um verbo declarativo, mas apenas o dictum, como em “a
cátedra de botânica é declarada vaga”, e ainda assim ser de cunho performativo.
Assim, a advertência em um letreiro (como o termo “cão”, por exemplo) para Benveniste,
o letreiro é um simples sinal, uma vez que cada um pode tirar a conclusão que quiser desse
sinal e, por isso, só a fórmula “aviso-o de que” seria performativa de advertência. Não se deve
tomar, justifica, “a implicação extralinguística como equivalente da efetivação linguística” (p.
304).
Cultura
Chamo cultura ao meio humano, tudo o que, do outro lado do cumprimento das funções
biológicas, dá à vida e à atividade humanas forma, sentido e conteúdo. A cultura é inerente à
sociedade dos homens, qualquer que seja o nível de civilização. Consiste numa multidão de
noções e de prescrições, e também em interdições específicas; o que uma cultura proíbe a
caracteriza ao menos tanto quanto aquilo que prescreve. O mundo animal não conhece
proibição. Ora, esse fenômeno humano, a cultura, é um fenômeno inteiramente simbólico. A
cultura define-se como um conjunto muito complexo de representações, organizadas por um
código de relações e de valores: tradições, religião, leis, política, ética, artes, tudo isso de que
o homem, onde quer que nasça, será impregnado no mais profundo da sua consciência, e que
dirigirá o seu comportamento em todas as formas da sua atividade, o que é senão um universo
de símbolos integrados numa estrutura específica e que a linguagem manifesta e transmite?
Pela língua, o homem assimila a cultura, a perpetua ou a transforma. Ora, assim como cada
língua, cada cultura emprega um aparato específico de símbolos pelo qual cada sociedade se
identifica. A diversidade das línguas, a diversidade das culturas, as suas mudanças mostram a
natureza convencional do simbolismo que as articula. É definitivamente o símbolo que prende
esse elo vivo entre o homem, a língua e a cultura. (p. 31).
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Podemos identificar dois tipos de ocorrência aqui: cultura como sistema simbólico e
cultura específica de uma sociedade.
A cultura é apresentada como “um sistema que distingue o que tem sentido do que não
tem” (p. 22). Esse sistema faz parte daquilo que, além de permitir que se reconheça se
determinado signo significa, também torna possível a existência de vários sentidos
imprevisíveis. Esse duplo funcionamento é similar ao da língua: um nível de significação
cuja função é somente validar o significado – significa ou não (semiótico da língua) – e outro
em que, sempre novo, o sentido será produzido de forma imprevisível (o semântico da
língua). Assim como na língua, na cultura funciona uma rede de diferenças e valores que se
relacionam de forma dinâmica. Os valores que regem a articulação da cultura são impressos
na língua, ainda que essa não se transforme “automaticamente à medida que a língua se
transforma” (p. 22). Assim, a língua é capaz de revelar definições cumulativas impressas por
diferentes estratos de cultura.
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cultura é um mecanismo de caráter simbólico”. É no interior de uma cultura que se atribuem
ou não sentidos. Para se conhecer o fundamento da cultura, seria necessário classificar seus
elementos significantes. Uma vez feito isso, seria possível perceber algo “como uma
semântica que atravessa todos esses elementos da cultura e que os organiza” (p.25).
Nada pode ser compreendido — é preciso se convencer disto — que não tenha sido
reduzido à língua. Por consequência, a língua é necessariamente o instrumento
próprio para descrever, para conceitualizar, para interpretar tanto a natureza quanto a
experiência, portanto este composto de natureza e de experiência que se chama
sociedade. (p. 99).
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essa relação se dá as coloca, cultura e língua, no mesmo nível em relação à significação.
a) Cultura pode ser apreendida de duas formas: como fundamento e como fato
histórico.
“A cultura é também um sistema que distingue o que tem valor, e o que não tem”
(BENVENISTE, 2006, p. 22).
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