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Yiíng, Hans
Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns I
Hans KÜI1g i t.radução Carlos Al.rne i da Perei r-a .
Campinas, SP : Verus Editora, 2004.
04-0840 (DD-200.9
Religiões do mundo
Em busca dos pontos comuns
Tradução
Carlos Almeida Pereira
f>\6L10 TEC""
DA
FACULDADE TEOLÓGIC~
BATISTA DO PARANA
Título do origiual
Spurensuche
Die \'Çclrrcligioncn auf dcrn \\7eg
Revisão
Sabino E Affonso
Aurca C. T. Vasconcelos
Projetográfico
André S. T,vares da Silva
Forografias:
Copyrighr © by Srephan Schlensog
Copyrighr © hy Südwesrrundtunk (SWR)
VERUS EDITORA
A". Brasil. 1999 - [d, Chapadão
1'>070-178 - Carnpinas/S!' - Brasil
Fone: (19) '{00'J-G868
verus(~veru scd i [ora .com .br
\V\V\v. vcruxcdiror.i.ccm.br
Sumário
PREFÁCIO 15
RELIGIÕES TRIBAIS 19
f! HINDUÍSMO . 55
V JUDAÍSMO 181
V I CRISTIANISMO 212
EPÍLOGO 281
Prefácio
com este livro desejo convidá-la/lo a conhecer melhor, em texto e imagem, este
mundo a um só tempo tão fascinante, misterioso e complexo das grandes religiões.
Ele contém o que qualquer homem de hoje precisa saber para estar, ao menos de
certa forma, informado e para poder ter voz nos acontecimentos dos dias atuais.
Pois hoje precisamos ter competência não apenas nos assuntos econômicos, culru-
tais e sociais, mas também nos assuntos que se referem às religiões.
Misterioso e imenso, assim nos parece este mundo das religiões...
Não obstante, conseguimos distinguir em nosso globo três grandes correntes:
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RELIGIÕES DO MUNDO
o livro não é uma mera reportagem, que simplesmente descreva a maneira como
se apresenta hoje a situação das religiões nos diferentes países. Nosso livro é uma
apresentação atual que, para cada religião, parte do presente, tem sempre diante
dos olhos sua caminhada ao longo dos séculos e no final retoma aos dias presentes.
• Também não é uma historiografia ampla, que pretenda oferecer até mesmo os
mais recentes resultados da pesquisa. Nosso livro é uma visão histórico-sistemá-
tica de conjunto que, de forma suscinra, passa em revista as épocas históricas de
cada grande religião e analisa os grandes paradigmas com suas mudanças. Pois só
a partir das constelações do passado, muitas vezes mantidas uma ao lado da
outra, é que conseguimos entender o presente.
Surgiu assim um livro sobre as religiões, que procura ser o mais objetivo possí-
vel. Faz parte dessa objetividade um método integrado. Por isso, na medida do pos-
sível e do necessário, deve ser dada a palavra aos contextos sociais, políticos e histó-
ricos de cada religião; quando já podiam ser pressupostos maiores conhecimentos a
respeito de uma determinada religião (por exemplo, do cristianismo), ela pôde ser
tratada de forma mais concisa do que no caso das religiões que nos são menos
conhecidas (como as religiões indiana e chinesa). Um livro objetivo, pois, mas que
não é um livro "neutro", e sim um livro engajado em uma linha bem determinada.
Foram mesmo reproduzidas - em quadros sobre fundo acinzentado - 37 observa-
ções muito pessoais feitas nos diferentes "teatros" das religiões, bem preparadas, sem
dúvida, muito embora sob a impressão do momento vivido, às vezes sob condições
difíceis e em linguagem não aprimorada.
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PREFÁCIO
Com este projeto me foi dada uma oportunidade sem par de ir pelo mundo
inteiro em busca dos vestígios '11a história milenar das religiões: vestígios que condu-
zem à paz, vestígios que nos poderão ajudar a chegar a uma vida mais digna do
homem - vestígios de um etos comum da humanidade.
Assim, este livro contém para seus leitores e leitoras:
Os lados negativos das religiões, que me são por demais conhecidos a partir da
minha experiência pessoal, não são de maneira alguma omitidos. Seu potencial agres-
sivo é bem conhecido, e não há necessidade de que seja especificado aqui. Antes, é
bem isso que constitui o ponto de partida dos meus esforços pela paz entre as religiões.
Mais que nos evidentes lados negativos, leitoras e leitores talvez estejam interessados
na função positiva das religiões: Por que em todos os continentes bilhões de pessoas
são religiosas? Qual a origem e a natureza desses fenômenos culturais que podem ser
encontrados em todos os povos e em todos os tempos? Quais os desenvolvimentos por
que passaram as grandes religiões e, sobretudo, quais são aí suas constantes éticas
presentes no dia-a-dia de inúmeras pessoas?Onde está o que separa e, sobretudo, onde
está o que une? Qual a contribuição das religiões para o etos da humanidade, para
uma ética mundial que aos poucos toma forma na consciência da humanidade?
Após a leitura deste livro, prezado leitor, prezada leitora, talvez você chegue a
compartilhar comigo desta convicção de que a meta de um entendimento universal
entre as religiões não pode e não deve ser uma religião unificada no mundo inteiro.
Tal unificação não vem se desenhando em lugar algum da terra. Também no novo
milênio a variedade das religiões pode constituir um mútuo enriquecimento.
A meta de um entendimento universal entre as religiões deve ser um etos comum
da humanidade, mas um eras que não deverá substituir a religião - como às vezes se
tem erroneamente pensado. O etos é e continua a ser apenas uma dimensão dentro
das diferentes religiões, uma dimensão das religiões entre si. Não se trata, pois, de
chegar a uma religião única, nem a um coquetel de religiões, nem de substituir a
religião por uma ética. Mas, antes, de um empenho pela paz entre os homens das
diferentes religiões deste mundo, o que constitui uma necessidade urgente. Pois:
Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões.
Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões.
Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais.
Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etosglobal,
uma ética para o mundo inteiro.
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I
Religiões tribais
Nossa busca dos vestígios nos leva em primeiro lugar ao interior da Austrália:
aqui se encontra o gigantesco monólito do Uluru, hoje chamado Ayer's Rock, em
meio a um continente-ilha bastante vazio e uniforme, tão grande quanto a Europa:
a Austrália, isolada entre o Oceano Pacífico e o Oceano Índico. Mas na idade do
gelo esse continente ainda formava uma unidade com a Nova Guiné ao norte e com
a Tasmânia ao sul, e também com a Indonésia e com a extremidade sul da Ásia. Só
quando o nível do mar se elevou, talvez por uns cem metros, após a era glacial, é que
a Austrália se separou da massa continental da Ásia.
Existem aqui vestígios de vida humana há mais de cem mil anos, como provam
os mais recentes achados de esqueletos, utensílios de pedra e pinturas rupestres. É
mesmo possível que o homo sapiens, aquele que apresenta o aspecto exterior do ho-
mem de hoje, tenha evoluído aqui pela primeira vez. Pelo menos é o que afirmam
alguns entusiastas adeptos da hipótese da origem múltipla, segundo a qual o desen-
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RELIGiÕES DO MUNDO
Homens sem cultura, sem religião - assim foi o relato dos "descobridores" euro-
peus a respeito dos primitivos habitantes, e a mesma coisa foi repetida depois tam-
bém pelos cientistas europeus. Eram eles realmente homens sem cultura e sem reli-
gião?
Não resta dúvida: muitos comportamentos desses homens são radicalmente dife-
rentes dos nossos. Mas serão eles piores por causa disso? Pode-se só por isso chamar
esses homens de incultos e preguiçosos, porque preferem a caça, a colheita, a dança
e as festas à agricultura, à pecuária e à construção de casas? Os primitivos habitantes
poderiam replicar:
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RELIGIÕES TRIBAIS
• Vocês, homens cultos, construíram casas, aldeias e até mesmo cidades imensas.
Nós renunciamos a moradias fixas e, na medida do possível, a nos envolvermos
em roupas que nos isolem da natureza e dos ciclos naturais.
vez disso, falemos de culturas tribais! Pois mesmo o quees~és povos buscam,'.
sua imagem do mundo, sua linguagem e sua organização não são tão primitivos,
assim como imaginamos. São apenas mais originais.
Reflitamos: primitivo, em nosso modo de falar, não significa apenas "origi-.
nal" e "natural", mas também" inferior" ,:~subdesenvolvido", "rude'~ ,e coisas .
semelhantes. Justamente nasculturas tribaís-: quetani~s ~ez~s rii~ s~ limitam a '.
uma única tribo - dá-se muito valor à cultura, já que é el~,que diferéncia os c •
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RELIGIÕES DO MUNDO
Nós, europeus, não temos nenhuma razão para nos considerarmos superiores,
ois ... de onde viemos? Também nós - por evolução - procedemos da natureza. E o
ue existia entre nós antes da escrita, antes da história escrita, antes da ciência?
rimeiramente, na fria Europa da idade do gelo, o primitivo homem de NeandertaI.
.om sua fronte diminuta e uma herança genética em parte diferente da nossa, ele
ão foi nosso ancestral direto, mas de qualquer modo era um parente do homo
tpiens. Também ele já possuía uma admirável e elevada cultura: sepultava seus mor-
os, cuidava dos idosos e dos doentes, presume-se que possuísse uma linguagem
voluída. Extinguiu-se há cerca de trinta mil anos, deixando o lugar para o homo
tpiens, o homem atual.
Causa-nos surpresa saber que também na Austrália foi encontrado o esqueleto
e um homo saplens do sexo masculino com trinta mil anos de idade. Estava co-
'erro de acre, o sinal mundialmente difundido da idéia de uma vida após a morte.
Ju seja, esse homem, ao que tudo indica, foi sepultado ritualmente. Um primeiro
esrernunho claro da cultura e da religião entre os primitivos!
Então o que é cultura? Na cultura ou civilização, em sentido lato, a religião sem-
,re está incluída. Cultura é o conjunto de conhecimentos e procedimentos que
aracterizam uma determinada sociedade humana, sejam eles de natureza técnica,
conômica, científica, social ou religiosa.
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RELIGiÕES TRIBAIS
As mulheres aborígines não são menos ativas do que os homens. Eles e elas são
perfeitos conhecedores da natureza. Mas observam uma divisão do trabalho, se
bem que não rígida. As mulheres são coletoras. Elas sabem exatamente onde e
quando os frutos estão maduros, quais as plantas, raízes, tubérculos, bagas, ver-
mes e insetos que são comestíveis. Já às crianças elas ensinam a se orientarem na
natureza. As plantas azuis do mato, por exemplo, servem contra dor de cabeça e
doenças da pele.
Em toda a parte a natureza possui seus segredos. Um petisco especial escondido
sob a terra são as formigas melíferas. Pelas pegadas na areia, as mulheres podem
saber onde encontrar esses insetos, que podem chegar a dez centímetros de compri-
mento. Outras alimentaram-nas com suco de açúcar, de modo que elas ficam com o
papo entumescido e por fim carregam consigo verdadeiras "panelas de mel", inteira-
mente cheias. As mulheres as desenterram, e as formigas, em vez de servirem às
companheiras, são degustadas por mulheres e crianças. Para cerras grupos tribais a
formiga melífera possui uma importância especial. É o animal ancestral (totem)
com o qual desde tempos imemoriais as pessoas se sentem ligadas.
Na tocante à aquisição do alimento, existe igualdade de direitos entre os sexos.
Seria isso a prova de que originalmente existiu uma dominação das mulheres? Seria
uma prova da velha tese do matriarcado dos Bachofen, Morgan e Engels, que defen-
deram uma primitiva sociedade matriarcal precisamente na Austrália? Não, novos
estudos (U. Wesel, H. Zinser) desmascararam isso tudo como uma ficção. Ou isso
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RELIGIÕES DO MUNDO
seria pelo menos a prova de uma perfeita igualdade das mulheres no processo social,
como tentaram demonstrar as antropólogas feministas (Diana Bell)? A pesquisa
destas últimas possui o incontestável mérito de haver abalado a idéia de uma total
dominação masculina, que por longo tempo prevaleceu entre os antropólogos ho-
mens. Ela tornou manifesta a autonomia das mulheres, sobretudo na esfera econô-
mica. Porém...
Na área política e também no terreno ritual não se pode negar que os homens
dominam. As regras de casamento são obra dos homens. Livre escolha do parceiro
só existe para os homens. E os velhos - os homens, não as mulheres - são os guar-
diães da lei. Porém às mulheres são concedidas certas liberdades sexuais em relação
a outros homens. Sobretudo elas têm sua própria vida e seus próprios conhecimen-
tos secretos, suas próprias cerimônias e seus objetos sagrados. As curas também
podem ser feitas por elas. Sobretudo as mulheres mais velhas sabem muita coisa dos
ritos secretos dos homens.
Mas esses domínios próprios das mulheres não demonstram ainda que exista um
matriarcado. Os ritos mais importantes e as curas mais difíceis sempre são assunto
dos homens. É nos sons extraídos pelos homens, ao percutirem seus instrumentos
de madeira, que os aborígines escutam as vozes dos antepassados e estes advertem as
mulheres de que não entrem em certos lugares sagrados. Em suma, na esfera políti-
co-ritual as mulheres estão encerradas em um sistema de regras que é definido e
controlado pelos homens (E. Supp).
Os homens são caçadores. Eles conhecem os costumes dos cangurus, das emas e
dos opossuns- todos marsupiais. Mamíferos mais desenvolvidos não existiam ini-
cialmente na Austrália. Mas a gente se interroga: Por que os homens, antes de tira-
rem água da fonte, primeiro jogam nela uma pedra? Por respeito à natureza: eles
estão pedindo licença aos espíritos da água. Será isso simplesmente uma supersti-
ção? Não só: a água poderia estar envenenada, a fonte da próxima vez poderá estar
seca... Aqui nada é claro e evidente. Muita coisa os povos primitivos só explicam
pela mitologia.
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RELIGIÕES TRIBAIS
Os sábios do final do século XIX, cujo pensamento científico era marcado pela
idéia da evolução e do progresso (por exemplo, Sir James Frazer), viam toda a
história da humanidade dentro deste esquema preconcebido: primeiro a magia
(como na Austrália) - só mais tarde a religião - e em nosso tempo a ciência.
Fascinados por Darwin, eles aceitavam sem qualquer prova que os primeiros
homens teriam sido todos eles sem Deus ou sem deuses. E que, esclarecidos
apenas a partir das "descobertas" européias, eles por fim haveriam de avançar,
como os brancos, para a verdade pura da ciência. Assi~ os primeiros antropólo-
gos reuniram grande quantidade de valiosas informações sobre os aborígines,
mas, com base nesse esquema ideológico de estágios, eles as interpretaram como
crença nos espíritos e como pura magia.
• Na direção oposta, outros estudiosos, que em lugar de acreditarem em Darwin
acreditavam na Bíblia (por exemplo, o Pe. Wilhelm Schmidt, SVD, em sua vo-
lumosa obra), tentaram estabelecer um esquema de desenvolvimento contrário:
os primitivos australianos teriam partido de um monoteísmo primitivo. Só com
o tempo esse monoteísmo teria evoluído para o politeísmo, degenerando por
fim na pura magia. De qualquer modo, as tribos australianas ainda conheciam
um "Grande Pai".
Essas duas teorias extremas foram hoje abandonadas. Elas não têm fundamento.
Por quê? Porque as culturas dos diferentes grupos tribais, e com elas as religiões,
desenvolveram-se de uma maneira inteiramente assistemática.
Efetivamente, não passava de um preconceito assumir de maneira inteiramente
geral que a religião se teria desenvolvido a partir da magia, a crença nos espíritos a
partir da crença nas almas, a crença nos deuses a partir da crença nos espíritos e, por
fim, a fé em Deus a partir da crença nos deuses. Entre os pesquisadores aceita-se
hoje unanimemente: os vários fenômenos e as várias fases se interpenetram. Por isso,
em vez de se falar de fases e épocas (de sucessão cronológica), fala-se de estratos e
estruturas (umas sobre as outras), que podem se encontrar em estágios, fases ou
épocas de desenvolvimento inteiramente diferentes.
~\eLlOTEc..c1
25 DA
FACULD~, '''''F, TEOLÓGICA
8ATIST.L ') PARANÁ
RELIGIÕES DO MUNDO
Basta olhar a representação de uma única folha: a gente fica impressionado com
a arte dos aborígines. Os mesmos símbolos milenares são sempre de novo pintados
e repintados. Plantas estilizadas, animais, homens, mas, do que se consegue decifrar
dos desenhos, nada de deuses, muito menos do Deus único.
Em muitas imagens rupestres são indicados antigos caminhos que atravessam a
terra, muitas vezes de aguada em aguada, que os aborígines marcaram com nomes.
Dois elementos geométricos ocorrem com mais freqüência:
E a tanga de uma mulher, o que significa? Desenhos como esses servem para ins-
truir e para contar estórias, mas em geral eles possuem um significado cerimonial.
Sobre o significado mais profundo de tudo, no entanto, os aborígines guardam
segredo. Isso se aplica também às magníficas decorações com que eles adornam as
pedras e os paus sagrados, chamados tjurungas. Hoje, quase sempre modificados e
profanizados, são usados comercialmente. No fundo, entretanto, possuem um sig-
nificado religioso (M. BrüIl).
Mas qual a religião que os aborígines tiveram e têm? Já bem cedo eles aprenderam
a acender aquele fogo que de início recebiam do céu pelo raio. E esse céu... estaria
ele vazio?
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RELIGIÕES TRIBAIS
Quais os poderes e as forças que formaram a terra? Sobre isso não há qualquer
dúvida: foram os grandes espíritos dos ancestrais primitivos. E eles não vieram
do céu e sim do chão, sob a forma de homens ou de animais. Em gigantescas
caminhadas eles transformaram a terra informe e monótona em uma paisagem:
colinas, caminhos, fontes de água, montes. Sol, lua e estrelas também foram cria-
dos por eles e, de matéria pré-formada, também os homens, as tribos e os clãs, e
ainda os animais, desde os mais os comuns, como as formigas, aos incomuns,
como os anfíbios cheios de espinhos. Os grandes seres ancestrais caçavam, acarn-
pavam, lutavam, amavam e, em determinados locais, realizavam determinados
rituais. Eles dividiram a terra entre os grupos de tribos. Mas então, tendo ficado
cansados, retornaram à terra. Alguns afundaram nas águas, outros foram levados
para o céu.
Cabe agora aos homens preservar a terra na forma e na pureza em que foi deixa-
da pelos espíritos ancestrais, sem modificá-Ia com violência, mas poupando-a
na medida do possível. Pois a terra não é apenas uma reserva material; ela está
santificada pelos espíritos dos antepassados. Mas os homens são todos mortais.
Eles mesmos, ou certas forças das trevas, destruíram a ligação com o céu (árvore
ou escada).
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RELIGIÕES DO MUNDO
Isto aconteceu, dizem, no "tempo dos sonhos". Mas será realmente o "sonhar" o
conceito-chave para os tempos primitivos? Foram os antropólogos ocidentais que
introduziram o sonhar [dreamingJ, ou o tempo dos sonhos [dreamtime] - conceito
inexistente nas línguas australianas primitivas para a complicada situação imagina-
da pelos antropólogos! O termo aranda alcheringa ou altjiranga não quer dizer so-
nhar. Significa aquele tempo primitivo quando, "no início das coisas", os espíritos
ancestrais formaram o mundo físico e, ao mesmo tempo, estabeleceram como for-
ma de vida as "leis" sociais, éticas, religiosas e rituais.
A palavra sonhar, portanto, estaria sendo mal interpretada quando entendida como
um fenômeno unitário ou quando referida a uma esfera pré-lógica (L. Lévy-Bruhl)
ou mesmo fantástica, em que pretensamente as leis da lógica não teriam validade.
Não, não se trata aqui de realidades míticas naquele sentido irreal do "era uma vei'.
Como se o "tempo dos sonhos" tivesse acontecido há muito, muito" tempo, como se
ele determinasse toda a realidade presente como princípio básico de conservação.
Posteriormente, o "tempo dos sonhos" foi identificado com tudo quanto se possa
imaginar: com os arquétipos da psicanálise de C. G. Jung, com o carma hinduísta,
com as teorias "verdes" sobre o homem e a natureza, ou com uma nova espiritualidade
cristã da criação. Cuidado, porém: para os aborígines, "dreaming" não é algo passa-
do, onírico, irreal. É o que existe de mais real, em que passado, presente e futuro
constituem uma unidade indissolúvel (M. Charlesworth), pois no mundo visível o
eterno está invisivelmente presente. Entre os aborígines o tempo dos homens e a
eternidade imutável estão mais intimamente ligados do que em outras culturas. É
essa a razão por que não se encontram orações nem sacrifícios formais às divindades
fora do mundo humano (T. G. H. Strehlow). Os aborígines encontram, ao contrá-
rio, o eterno no temporal: em uma natureza que está cheia de mistérios sobrenatu-
rais. A força vital incriada, eterna - é ela que atua em todas as coisas. Uma religião
como essa, ligada à natureza, enraíza o indivíduo na eternidade. Confere-lhe uma
identidade, uma consciência de um alto valor pessoal.
Os anangu (da tribo dos pitjantjajara), que moram em torno do Uluru, falam de
tjukurpa, a "lei" dada desde o início pelos espíritos dos ancestrais. Tjukurpa abrange
religião, ética, ritos, todo o modo de viver. "Tjukurpa - esta lei", dizem eles em sua
língua, "nos foi dada por nossos avôs e avós, por nossos pais e mães, para ser obede-
cida em nossas cabeças e em nossos corações". Ao longo dos tempos, essa lei primor-
dial, não escrita, é transmitida através de mitos e cantos, de danças e cerimônias, de
pinturas do corpo e desenhos na areia, de objetos sagrados e pinturas festivas.
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RELIGIÕES TRIBAIS
A cobra-mulher Kuniya veio naquele tempo pôr seus ovos em Uluru. Mas seu
sobrinho haviade tal forma irritado uma multidão de cobras-homens venenosas,
a ponto de estaslhe jogarem lanças; ainda hoje os buracos na rocha dão testemu-
nho do fato. Uma lança do Liru o feriu mortalmente.
Ao saber disso, Kuniyase entristeceue ficou enfurecida, o que apenas provocou
zombaria de um guerreiro Liru, Sedenta de vingança, ela se ergueu para a pode-
rosadança. Paraacalmarsua cólera, elaprimeiro cuspiu veneno na areiae jogou-
o para o fundo. Mas depois voltou-secontra o homem Liru e - agora sem conse-
guir controlar sua ira - levantou o bastão contra ele, primeiro de leve, mas em
seguida mortalmente.
Ainda hoje se podem ver no Uluru osvestígios da luta:figueiras e moitas viníferas
envenenadas, sinuosidades de serpente no rochedo, asduas pancadas de Kuniya,
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RELlGIÓES DO MUNDO
o escudo do Liru morto caído sobre o chão. E, por último, a fonte de água para
onde Kuniya levou seu sobrinho morto e de onde ainda hoje a cobra ancestral
pede chuva: um lugarsagrado.
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RELIGIÕES TRIBAIS
Será então que os aborígines não fazem diferença entre homem e animal? Alguns
etnólogos chegaram antigamenie a afirmar isso. Mas é bobagem. Para os aborígines,
entre o canguru e o homem não existe uma ligação biológica, mas sim uma ligação
mitológica. E isso não deve ser entendido ao pé da letra mais do que, por exemplo,
em nossa literatura de contos, o rei que se transforma em sapo, e vice-versa.
Mas será que os aborígines não têm conhecimento da origem biológica do ho-
mem? Também isso chegou a ser afirmado anteriormente por etnólogos - e é outra
bobagem. Além da procriação biológica e da alma mortal, os aborígines conhecem a
procriação e a alma espiritual. Esta é concebida pela mãe mais tarde, em determina-
do local da paisagem. A outra, a alma imortal da criança, procede (talvez com as
primeiras dores do parto) de um ser primordial. É o totem individual: ele situa a
criança na esfera do eterno, passa a ser seu espírito protetor, transmite-lhe direitos e
deveres. Para este "totemismo de concepção", o lugar da concepção é de fundamen-
tal importância.
Para os aborígines, o totem é tabu (na língua polinésia quer dizer "santificado",
"intocável"). Em conseqüência, um animal totêmico não pode ser caçado, ferido,
muito menos morto. Mas pode perfeitamente, e deve, ser representado: em pedras e
paus, em danças e cânticos. E precisa ser celebrado para a conservação da própria
espécie. E já que todos os rituais são considerados como estabelecidos pelos espíri-
tos ancestrais, os cantos cerimoniais, as pinturas do corpo e os rituais têm que per-
manecer inalterados. Mas qual é o rito mais importante?
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RELIGIÕES DO MUNDO
Eisso também não é muito diferente do que procuramos ensinar aos nossos
filhos. Tjukurpa, a "lei", quer dizer a eles qual é o seulugar na vida, o que é bom
e o que é mau. Mesmo na Austrália não existe nenhum povo sem religião, e
muito menos nenhum povo sem .umetos, sem normas e pad - es bem determi-
'nádos5:Aquise trata,~viéJeííte ê:Ílor
",;:::));F",(:;~;>1?~'i:~~~;,::::)- J~,;-'~-'::':"::;
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'entê'
"ri1êio:aeést6rias, parábolas'e
'cont~~; seconstrói soi:ieda&~1i tbdâ
• Os "povos primitivos" não recéberam nenhuma tábua;demandamentos,
por exemplo com a frase '.' Não furtarás", mas possuem.um senso apurado
de reciprocidade; justiça, generosidade (como nos pr' ntes que dão uns
aos outros).· "'. ', . ' , ' F
UM ETOS PRIMORDIAL
Chama nossa atenção que certos padrões morais elementares parecem ser os mes-
mos em todo o mundo. Normas éticas não escritas constituem a "rocha" (M. Mauss)
sobre a qual a sociedade humana está construída. Podemos chamar isso de etos
primordial, que constitui o núcleo para um etos comum da humanidade, para um
etos global. Um etos global possui, pois, seu fundamento não apenas - sincronica-
mente - nas normas básicas hoje comuns às diferentes religiões e regiões. Ele tem
seu fundamento também - diacronicamente - nas normas básicas das culturas tribais,
comprovadas desde eras pré-históricas (antes da introdução das fontes escritas). Evi-
dentemente, mesmo não se podendo considerar cada norma como um elemento do
etos dado originalmente, pode-se no entanto dizer, confirmando a continuidade
que se faz presente em todas as transformações, que, em última análise, a universa-
lidade da ética universal de hoje baseia-se em um etos primordial no tempo.
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RELIGIÕES TRIBAIS
Mas de onde provêm esses padrões éticos, esses valores e normas? São justa-
mente os aborígines que nos dizem que eles não caíram do céu. Foram configu-
rados pelos primeiros ancestrais, por seres perfeitamente terrenos. Do ponto de
vista do desenvolvimento, fica claro: normas, valores e visões éticas concretas
foram-se formando aos poucos - em um processo sociodinâmico extremamente
complexo. Onde quer que as necessidades da vida se manifestassem, onde quer
que aparecessem questões necessárias e urgentes, aí, desde o início, foram surgin-
do orientações e regras de conduta: certas convenções, instruções, costumes -
em suma, determinados padrões éticos. Ao longo dos séculos, eles foram sendo
postos à prova. Precisavam, por assim dizer, ser polidos. Só depois de longos
períodos de adaptação e de aprovação é que se chegou ao reconhecimento geral
dessas normas vividas, possivelmente agora formuladas em mandamentos. Numa
época completamente modificada, no entanto, tais normas, valores e padrões
refinados não apenas podem ser modificados, mas podem também perder a vali-
dade, ou mesmo ser abolidos. E uma época dessas deve estar chegando para os
aborígines da Austrália.
33
RELIGIÕES DO MUNDO
.
A COLONIZAÇÃO: COOK E AS CONSEQÜÊNCIAS
• de início, a colônia penal: em 1788, os primeiros 717; até 1868, ao todo cerca de
161 mil ingleses condenados à prisão;
• em seguida, o grande centro da economia algodoeira: em 1829, já quatrocentos
mil australianos brancos;
• em conseqüência da descoberta de ouro em 1851, a segunda grande onda migra-
tória: em 1860, já um milhão; ao final da corrida do ouro, no início do século
XX, já quatro milhões de europeus na Austrália:
• no final do século XX, mais de 18 milhões de habitantes, com um dos padrões
de vida mais elevados do mundo: 95% de brancos e só uns 2% de aborígines.
34
RELIGIÚES TRIBAIS
A terra dos aborígines, mais ou menos do tamanho dos Estados Unidos, é pelo
direito europeu considerada como terra de ninguém (terra nullius) quase ina-
bitável; é, sem mais nem menos, incorporada à coroa britânica, dividida, "co-
lonizada".
• A ligação religiosa dos aborígines à sua terra é pisada aos pés - através de um
novo "direito à propriedade privada" e de novos nomes conferidos aos lugares.
Por muito tempo os aborígines não são aceitos como parceiros de negociações,
mas sim tutelados como "súditos britânicos" e submetidos à administração
colonial.
• Os criadores de gado europeus, muito superiores em número, em organização e
sobretudo em armas, empurram cada vez mais os aborígines dos territórios de
suas tribos para regiões estéreis, chegando mesmo a matá-los diretamente.
Doenças trazidas da Europa, como doenças sexuais, varíola e sarampo, dizimam
ainda mais a população negra, que não dispõe de defesas contra elas.
• De um mínimo avaliado de pelo menos trezentos mil aborígines no início da
ocupação e colonização, no ano de 1901 não restavam mais do que 67 mil,
muitos deles como tangedores de gado e trabalhadores não qualificados.
• Nas reservas e postos missionários, criados na segunda metade do século XIX, os
aborígines são forçados a ser reeducados à maneira européia: proibição da caça e
da coleta, dos ritos religiosos e da poligamia - em suma, são levados para cada
vez mais longe da "terra do sonho"!
Desde meados do século XX, com a exploração das riquezas do solo, antigos
lugares de culto são ainda mais profanados e destruídos.
• Estima-se que, ainda no século XX, cem mil crianças mestiças tenham sido até
1970 separadas, à força, de seus pais.
ABORÍGINES NO SUPERMERCADO:
CONFLITO ENTRE DUAS CULTURAS
Será verdade que a situação dos aborígines veio aos poucos melhorando no últi-
mo terço do século XX? Sem dúvida. Mas, em comparação com a população bran-
ca, as deficiências continuam grandes. Em 1967, finalmente, os aborígines adquiri-
ram equiparação jurídica com os brancos e, em 1992, também um certo reconheci-
mento de seus antigos direitos territoriais. Mas o governo australiano se vê confron-
tado agora com maciças e crescentes exigências territoriais, o que ocasiona violentos
conflitos cuja' solução ainda se encontra distante. Com seus protestos contra as gri-
tantes irregularidades, os aborígines passaram também a contar com um crescente
apoio dos brancos. Progrediram os pequenos entendimentos entre brancos e negros
em igrejas, municípios e escolas. Mas a grande réconciliação das duas culturas ainda
está distante.
3S
RELIGIÕES DO MUNDO
como, orientado pelas pegadas de possum, ele vai para outro acampamento;
• como ali quatro mulheres estão procurando folhas de tabaco;
como ele tenta, com uma cantiga de amor, levá-las a entrar em transe;
por fim, como ele encontra aqui sua companheira.
Mas essa história-possum, ou dança-possurn, é uma luta de duas tribos por uma
fonte de água, onde cada dançarino representa um possum, cada cor, cada movi-
mento tem um ou vários significados, muitas vezes diferentes para iniciados e não-
iniciados; para muitos aborígines esses antigos mitos, ritos, símbolos, centros, não
36
RELIGIÕES TRIBAIS
estão em contradição com a civilização moderna. E eles vêem nisso mais do que
folclore e nostalgia. Por isso desejariam mantê-los vivos. Gostariam também de con-
servar os antigos nomes e lugares sagrados e de conhecer os mitos, cantos e cerimô-
nias a eles ligados. Assim essa religião - contrariando rodas as profecias - não está
morta. Não obstante...
Quase não dá para acreditar: cerca de oito mil quilômetros separam hoje a Aus-
trália da África. Mas, dois bilhões de anos atrás, as duas - e a Índia, a Nova Ze-
lândia, a América do Sul e a Antártida - formavam um grande continente austral
(Condwana).
No cretáceo inferior, há cerca de cento e trinta milhões de anos, ou mais recente-
mente ainda, essa gigantesca massa de terra se dividiu, separando-se cada vez mais.
Desde então, Austrália e África são dois continentes separados. A África continuou
37
RELIGIÕES DO MUNDO
como o segundo maior continente, onde facilmente cabem ao mesmo tempo Esta-
dos Unidos, Índia e China. De ;ul a norte, da Cidade do Cabo até Tânger, são mais
uma vez quase oito mil quilômetros. Do ponto de vista geológico, a África é um
continente muito antigo, onde a história geológica de nossa terra pode ser estudada
melhor do que em qualquer outro. Mas, também do ponto de vista histórico, a África
é um antiqüíssimo reduto do homem - de extrema importância para os inícios da
cultura humana, que para os paleontólogos começa já na antiga idade da pedra (o
paleolítico), com os seres produtores de ferramentas.
Por isso nós nos dirigimos agora para a África Negra, começando pelo maior rio
da África, ao sul do Saara: o rio Zambeze - espetáculo da natureza sem par! Ele corre
do centro da África para o leste. E aqui, entre a Zâmbia e o Zimbábue, ele se preci-
pita trovejando, para baixo, de uma altura de mais cem metros, antes de atravessar o
Moçambique e desaguar no Oceano Índico: as cataratas de Vitória, a maior cortina
de água do planeta. Quem as "descobriu"?
Foi o "missionário, aventureiro e descobridor David Livingstone" - diz a inscrição
no monumento erguido diretamente ao lado das quedas - o primeiro europeu a ver as
quedas do Zambeze, batizando-as com o nome da então rainha da Inglaterra, Vitória.
A nuvem de espuma das cataratas já pôde ser por ele avistada de uma distância de
sessenta quilômetros. E aqui ele se deparou com essa visão que, mesmo de um homem
tão sóbrio como ele, provocou esta observação: "Aqui até mesmo os anjos ficariam
mudos de espanto, no seu vôo." Convém não esquecermos que foi justamente aqui
que Livingstone perdeu sua mulher - que corajosamente o havia acompanhado em
todas as suas viagens -, vitimada pela febre amarela, que ainda hoje continua sendo
uma ameaça aos viajantes. Foram enormes as dificuldades que todos os "descobrido-
res" dos cursos d'água e das terras da África tiveram que enfrentar. Mas o que aqui nos
interessa é outra questão: Será possível provar que as origens biológicas da humanida-
de, como um todo, se encontram exatamente neste velho continente?
38
RELIGIÕES TRIBAIS
no tufo vulcânico na região da garganta do Olduvai no Quênia e, com base nas cama-
das geológicas, ele conseguiu esfabelecer sua idade entre 2 120 000 a 2 160 000 anos.
Desde então numerosas novas descobertas ocorreram. A África acompanhou o de-
senvolvimentos dos outros continentes na antiga e média idade da pedra. É o que
demonstram instrumentos de pedra cada vez mais aperfeiçoados, assim como os de-
senhos rupestres. Na região do Zambeze, tanto as descobertas de ferramentas quan-
to os túmulos permitem acompanhar com clareza o desenvolvimento do homohabilis,
até nosso antepassado direto, o homo sapiens.
A REVOLUÇÃO NEOLíTICA
39
RELIGIÕES DO MUNDO
É a isso que nos referimos quando falamos da revolução neolítica: da passagem não
apenas para os utensílios de pedra polida, arcos e cerâmica, mas também para a produ-
ção (as plantações, a domesticação e criação de animais) e para o capital (sob a forma
de animais domesticados, sementes, matérias-primas). Com a agricultura e com a
pecuária surgiu a tendência à propriedade privada, passaram a ocorrer as chamadas
guerras "justas", configurou-se a dominação de poucos sobre muitos. A paisagem na-
tural tornou-se paisagem cultural, as aldeias transformaram-se em cidades.
Por fim, de cinco mil anos para cá, desde a virada do quarto para o terceiro
milênio antes de Cristo, passaram a existir as grandes culturas primitivas e as gran-
des religiões associadas à invenção da escrita, com cidades e estados sendo formados
na proximidade dos grandes rios. Ainda não existe uma explicação satisfatória para
o fato de tais culturas terem surgido precisamente no Eufrates e, mais tarde, no Indo
e no rio Amarelo, mas na África, por essa época, elas haverem surgido apenas no
Nilo, e não no Zambeze ou em algum outro lugar da África meridional. Só milhares
de anos mais tarde algumas cortes isoladas e sociedades secretas passam a ter conhe-
cimento da escrita que, com o objetivo de manter o poder, elas evitam transmitir ao
povo simples.
Mas entre os séculos XI e V a.c. também na África agricultores e criadores de
gado avançam do norte em direção ao sul, obrigando Os habitantes primitivos, os
sans, a se retirarem para outras regiões, quase sempre desertas. Eles constituem a
família lingüística dos bantos ("seres humanos"), que também abrange grupos étni-
cos muito diferentes, desde Camarões, passando pela África central e oriental, até a
África meridional. Quando se visita uma de suas aldeias, a gente pode verificar
como ainda hoje a antiga ordem social funciona bem. Mas o que aqui nos interessa
é, antes de tudo, a religiosidade.
40
RELIGIÕES TRIBAIS
A cerimônia toda começa já oito dias antes, com a abstenção sexual, alcançando
um primeiro clímax na véspera, com canto, dança e cerveja preparada por mulheres
mais velhas, que já não podem se tornar impuras pela menstruação.
Manifestamente é tudo uma festa de alegria e não de medo. Mas quem agora fala
com voz profunda já não é mais o próprio médium, e sim o espírito ancestral. Ele
exige gratidão: "Gente", ele diz, "vocês chegaram a mim querendo chuva, então
tiveram chuva e uma boa colheita. Por isso valorizem o que fizemos por vocês, e
vivam da maneira como aprenderam". O povo responde ao fazedor de chuva com a
aclamação: "Cabra, nós te oferecemos agora!"
Precisamos saber que os espíritos dos mortos primeiramente vagueiam por aí, ira-
dos e perigosos. Mas, por meio de ritos adequados, eles podem ser trazidos de volta e
transformados em ancestrais protetores. Os ancestrais são os donos da terra. Eles são
os responsáveis pelo bem-estar dos vivos. Trazem saúde, chuva e boa colheita.
Mas agora é chegado o momento do sacrifício. Os auxiliares estão a postos para
realizar o ato sagrado. O sangue corre. Beber o sangue, porém, só quem pode fazer
é o médium. É precisamente através disso que ele adquire a força sobrenatural e
consegue o domínio sobre os espíritos. Mas, para o povo, o que importa é outra
coisa: "A cabra está morta", grita-se, "há carne para comer!" Também há cerveja,
oferecida em grandes canecas, símbolo da união. E se dança e se continua a dançar,
e reina a alegria: por causa do sacrifício e porque os espíritos foram acalmados.
41
RELIGIÕES DO MUNDO
• Uma mulher acredita ser uma bruxa; ela prejudicou outras pessoas. O curandei-
ro, quase sempre em transe, repreende os espíritos. Ela é tocada com o bastão e
aspergida com água sagrada. Sente então a força da cura, e os espíritos se dão por
vencidos. Curada, a mulher se arrasta sozinha para o campo.
• Outra mulher está doente - doente do coração e do estômago. Mas os espíritos
que tomaram posse dela são teimosos, e sua resistência é violenta. A mulher é
tratada com dureza, com muita dureza. Mas nem mesmo a água salgada na boca e
no nariz consegue curá-la. O tratamento tem que ser adiado para mais tarde. Aqui
se pode ver que a cura não se dá automaticamente. E o bastão do curandeiro não é
nenhum bastão mágico.
42
RELIGiÕES TRIBAIS
CONTRA A BRUXARIA
Não sei o que se dá com vocês, mas para nós,europeus, essas curas podem
parecer muito brutais, desumanasmesmo.;9s,africanos, ent~~t9nto,,,,,&em isso
com olhos diferentes. Eles riem e diiem: ':Os'espítitós maus só põdem seLexpul~ .
·sos com violência. " .. . . ' ..' . ." .
.A coisa,;evi men
'"0 el~~qb~~.: ,urn{
"... óntecer:oqueaconte
·;·~à·totâlmenteinocente
cutada.
Eis um preconceito que continua muito difundido: antes das missões e da coloni-
zação, os negros da África eram tidos como "selvagens". Povos primitivos, grosseiros,
sem a mínima cultura. Puro engano. Mesmo sem falar das antigas culturas do Egito,
da Núbia e da Etiópia, também os povos da África Negra evoluíram. Eles consegui-
ram chegar a uma cultura que supera de longe os aborígines da Austrália, ou, em
certos aspectos, pode mesmo ser comparada à cultura medieval da Europa.
Do final do século XII até o final do século XVI, a África Negra passou por um
grande crescimento econômico, político e cultural: para ela foram esses os seus grandes
séculos. A cidade do Grande Zimbábue, por exemplo, com suas gigantescas cons-
truções graníticas: ao sul do Saara não existe nenhum monumento cultural maior e
mais impressionante do que essa antiga capital. Em nosso século ela haveria de dar
nome ao país inteiro: dzimba dza mabwe: "casas de pedra", ou dizimba waye: "casas
veneráveis". Toda a extensão da cidade, com torre cônica e castelo, é, a partir de
1986, considerada pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade.
A grande pergunta é: Quem construiu tudo isso? Há quatro séculos se vem espe-
culando a esse respeito:
43
RELIGIÕES DO MUNDO
Como sempre, não podem ter sido os negros da África! Esse foi um preconceito
dos europeus ao longo dos séculos. Só em 1950 o primeiro arqueólogo profissional,
o inglês David Randall-Mclver, conseguiu abalar esses preconceitos que estiveram
em vigor até então. Ele provou de maneira inquestionável: foram os negros africa-
nos, os aborígines da tribo chona de Caranga, que construíram essa cidade.
Também os pesquisadores que vieram mais tarde confirmaram-no. Mas isso a
população colonial britânica não quis de maneira nenhuma admitir. Ainda em 1973,
o respeitado arqueólogo Peter Garlake, que de 1964 a 1970 chegou a ser o encarre-
gado dos monumentos, foi expulso do país por causa do seu livro, que documenta-
va amplamente a origem africana. Mas hoje ninguém mais duvida de que negros
africanos, que haviam enriquecido sobretudo com o comércio do ouro, construíram o
Grande Zimbábue no século XIV: uma cidade representativa, de 12 mil a vinte mil
habitantes, que passou por seu apogeu no século XV.
Ainda hoje muitos brancos não sabem: apesar das gigantescas barreiras naturais
do Saara que atravessam rodo o continente e que só podiam ser atravessadas pelos
difíceis e perigosos caminhos das caravanas, na Idade Média européia também os
povos africanos viveram um movimento de progresso cultural. Após uma fase de
movimentos migratórios e de trocas com o mundo exterior por intermédio dos
árabes, os países negros da África parecem haver alcançado um certo equilíbrio.
Ao tempo das primeiras e corajosas expedições portuguesas no século XV - Por-
tugal era então a potência marítima européia mais avançada -, já existiam reinos
negros com uma estrutura social diferenciada, com elaborado equilíbrio de poderes
entre os diversos grupos de interesse e também com uma arte e com uma cultura
respeitáveis. Eram sistemas de dominação mais ou menos centralizados, porém só
raras vezes eram governados por um só homem. Apesar de todas as diferenças, eles
44
RELIGIÕES TRIBAIS
foram comparados aos estados europeus do início da Idade Média: no Sudão oci-
dental, os reinos de Mali e Cao; no Sudão central, os estados Hausa e Kanem-
Bornu; no golfo de Guiné, os reinos Yoruba e Benin; na África central, o reino do
Congo; na costa oriental da África, várias cidades-estado; e mais tarde, no Zimbábue,
o reino monomotapa, que haveria de acolher a população do Grande Zimbábue.
"Que nos irá trazer o futuro? Teremos bastante para comer?" Assim clama o orá-
culo na caverna. Perguntas dos homens de então - perguntas dos homens de hoje.
Poderia ele prever que um dia os habitantes iriam deixar seu Grande Zimbábue sem
combate - por causa da seca, por causa da exploração da natureza, por causa de uma
crise do comércio do ouro ... ?
Sim: o que o futuro irá trazer para esse país, que mais tarde irá ter em seu brasão
uma ave, símbolo do Grande Zimbábue? "Que nos irá trazer o futuro? Teremos bas-
tante para comer?" A terra irá ser conquistada e passará a chamar-se Rodésia do Sul.
Pois, mesmo depois que no século XIX pôde ser proibida a venda de africanos
como escravos, a exploração continuou. Se, pelo tráfico de escravos, os africanos fo-
ram roubados, à África, agora acontece o contrário: a África é roubada aos africanos.
Após um período de bases comerciais, marítimas e militares colonialistas no litoral,
chega-se, no século XIX-XX, à criação de áreas coloniais ou mesmo a impérios colo-
niais africanos fechados. Isso se torna claro justamente no caso do Zimbábue, onde
o império britânico construiu seu domínio. Como se deu isso, em concreto?
45
RELIGIÕES DO MUNDO
A COLONIZAÇÃO IMPERIALISTA
Do ponto de vista da Europa, a segunda metade do século XIX foi uma época
de heróicos descobridores e pesquisadores europeus, que enfrentaram perigos cons-
tantes. Eles estudaram as misteriosas nascentes do Zambeze, do Níger, do Nilo, a
África central e oriental. Grandes nomes: Mungo Park, os irmãos Lander, o erudi-
to alemão Heinrich Barth e o escocês Livingstone, por muito tempo desaparecido
e que terminou sendo descoberto no Burundi pelo jornalista americano Stanley.
Não deixa de existir suspense quando lemos suas realizações pioneiras em meio a
indizíveis privações. .
Mas, do ponto de vista da África, tudo é diametralmente diferente: as informações
obtidas por esses descobridores e pesquisadores foram utilizadas por militares, aventu-
reiros, comerciantes e negociantes. Para estes, nenhum meio para submeter a África ao
domínio de algum império europeu era por demais abominável e baixo: dos embustes
aos "acordos de proteção" extorquidos, passando por aguardente e armas, chegando
mesmo à maior crueldade e violência e aos massacres sem escrúpulos. Estarei exage-
rando? Poderei ser mais bem compreendido se relatar em poucas palavras a história
particularmente instrutiva da Rodésia do Sul, que agora se chama Zimbábue.
46
RELIGIÕES TRIBAIS
tado, como ministro das finanças e, por último, como presidente dos ministros da
colônia britânica do Cabo, ele foi o mais determinado pioneiro do imperialismo
britânico. Seu sonho: unir politicamente toda a África, do Cabo até o Cairo (por
meio de uma estrada de ferro), sob bandeira britânica. Em 1889 ele fundou a British
South Africa Cornpany, que nos anos seguintes "adquiriu" toda a região que, por
causa de Rhodes, viria a chamar-se Rodésia.
Adquiriu? Sim, mas através da mentira e do embuste! Para o rei Lobengula, que
dentre os brancos não confiava a não ser nos missionários, Cecil Rhodes se utilizou
em Bulawayo do pouco expressivo filho do missionário Moffat, JOOn, para em 1888
conseguir um exclusivo "contrato de amizade" (Tratado Moffat). Lobengula, por
uma tradução errada da passagem decisiva, foi levado a acreditar que permanecia
senhor de sua terra. Mas, de acordo com o texto original, ele admitia não fazer no
futuro nenhum tratado sem licença do governo britânico. Resultado: ainda no mes-
mo ano conseguiu-se do rei um tratado sobre direito de utilização do solo. Um
missionário a que se recorreu como tradutor para o enviado de Rhodes, muito bem
pago pelo serviço, insinuou que o rei estava renunciando unicamente a "um grande
buraco" em favor de alguns mineradores de ouro. De fato, o acordo concedeu aos
ingleses direitos ilimitados de escavação e de comércio.
Pondo os pingos nos is: o rei dos nedebele, fraudado, sem querer arrendou seu
reino ao império britânico. Mesmo dois enviados especiais a Londres, à rainha Vitó-
ria, não conseguiram desfazer o contrato: a Carta Real da rainha ia muito além da-
quilo com que Lobengula havia concordado e não estabelecia limites em direção ao
norte. Assim, pouco tempo depois, também a Zâmbia meridional (com o Malawi)
pôde ser considerada como fazendo parte do que, com toda a naturalidade, é chama-
do agora de país de Rhodes, mais precisamente, Rodésia do Norte e Rodésia do Sul.
Agora os ingleses eram senhores de tudo, com uma autoridade administrativa
apoiada pelo exército. Sua obrigação era apenas desenvolver infra-estrutura e livre
comércio. Já em 1890 chegou o primeiro contingente pioneiro da África do Sul. Du-
zentos e doze colonos brancos, com igual número de mercenários negros e mais qui-
nhentos soldados ingleses levantaram seus "fortes" no Zimbábue: por fim, em meio à
terra dos chonas, erigiram também o Forte Salisbury (assim chamado em considera-
ção ao primeiro ministro britânico) e a nova capital, a atual Harare. Avançou-se
também, com pretextos pífios, para a terra dos matabele. Ao contrário dos chonas, os
nedebele resistiram desesperadamente. Chegou-se à guerra. Em Bulawayo caíram 15
mil nedebele sob uma saraivada de balas de modernas armas de fogo. A cidade foi
incendiada. O rei fugiu para a montanha e morreu, certamente ele próprio pondo fim
à vida. A sede do governo britânico foi erigida no terreno onde ficava sua residência.
Para seu adversário CeciI Rhodes os últimos sete anos foram também uma grande
decepção: por causa de um golpe malsucedido contra os bôeres no Transvaal, em
1895 ("Jameson Raid"), ele foi obrigado a abdicar de todos os cargos políticos. As
tensões entre colonizadores britânicos e bôeres levaram à Guerra dos Bôeres, em
47
RELIGIÕES DO MUNDO
1899. A questão do até então misógino Rhodes com a intrigante, depois prisioneira,
princesa Radziwill, assumiu dimensões de um processo sensacional. Mas Rhodes
morreu em 1902, antes do fim da guerra e do processo.
Em um cortejo triunfal sem precedentes, ele foi agora levado através da África,
desde a Cidade do Cabo até o Zimbábue. Foi sepultado em Bulawayo, nas colinas
Matopo, no local que ele mesmo havia escolhido e que, em razão de sua vista glorio-
sa, ele chamou de View ofthe World [Vista do mundo]. Constituiu uma surpresa seu
bem pensado testamento: quase toda a imensa fortuna de Rhodes foi deixada para
os bolsistas das colônias, dos EUA e da Alemanha concluírem os estudos em sua
antiga Universidade de Oxford. Até hoje muitos "Rhodes-Scholars" do mundo in-
teiro, brancos e de todas as cores, lhe são gratos por isso.
48
RELIGIÕES TRIBAIS
hor·raça:G~;[hy~anj~~g~~;~~~anto·rnai~~~~slJ.P~trT1()Slt~Qlg
.'..•••.'. ".Nóssomos-a•• mel .•.• .>
melhor para toda a humanidaqe:u'Es~aJf~~~~p[~Vé~ de ceçil,~hog.?s;>q'f~ndaggr:'···
da Rodésia .colonial.E naEuro~an1uitospensavamcomo ele.Ospa9ãos;precisp~<
vam ser convertidos, os selvageriscivilizados. Eessa era a tarefa das igrejas,
Mas serei eu obrigado a culpar meu próprio tio, que já nas décadas de 1930e
1940, no século XX, construi~Yrna grande estrÇão missionária aqui neste país?
. Por mero acaso passamos. pel9'?Jpta próxin1aa();FgrteYitóriaevirnºsia.li,emurn~
placa que indicava o caminhq:":.(jokomerE'u'8~scle ainfânciaeu:cof)heciaess~
nome e 'pensei comigo' mesmo:.".. Deve.seresta.aestaçãomissiçnáripH':Efetiva-,." .;
mente, quando chegamos, centenas decrianç~svieram aO'f1os~C?ef)cºntro,tº; ..
.'das' bem vestidas.Tudoindical~y}?lasrecebemrq ui urna .' b()aJ()[rDpç~().. . <" ••.••,.
E.·assim nãO.Se • podec()l1te~!~r.qlJey~a~rc9nge • ·P9rted~Ss~s!rni?siºnáriçS'ex'!
irmãs seenvolverarnP?ss?ªlrn.~iJt~;icorn~Uitr;~.~cJiS?ÇãO,.ÇOrn.mYitg~~criffcio,\'
.:Ür90balhandP.nãoapenas•• pela.~~Rv~rSã().cJ()S.pgg~~;,mas~f~.tj\lrrn,~.2t~$mfaY~rc~.ii
d;s africanos. Enenhumafric~5o'há'de negarqueasigrejas fizeram' muita coisaO'"
em favor da educação e dasr.Yge.. .•••••. ••.••••. . ! L ; .•
Mas, por outro lado, evid~m~mente, tambémnão sepode conte?tarqueas
igrejas e as missões aplanaram o caminho para que as potências européias che-
gassem à dominação sobre a.África inteira, ou mesmo que elas legitimaram e
apoiaram ideológica e teologicamente o poder imperialista. Só muito mais tarde
foi que elas perceberam que isso não podia continuar. E, aos poucos, elas foram-
se desvinculando do colonialismo e se colocando do lado dos negros em sua
grande luta de libertação: por~ma Africa african~' uma Africapara os africanos!
Que os missionários setenham oposto ao queé negativo na religiosidade afri-
cana é compreensível. E não devemos pensar unicamente nossacriffcios de ani-
mais, nas bebidas inebriantes ou nos exuberantes ritos extáticos. Basta lembrar a
miséria de milhões de mulheres, baseada em antiqüíssimos costumes tribais, mas
que continua em vigor mesmonas atuais metrópoles da Africa Negra. Infelizmente
isso ainda é apologeticamente aceito por muitas mulheres africanas: a começar
pelas exigências associadas à poligamia e à família numerosa e chegando até a
cruel prática da circuncisão dOditóris já antes do casamento-com o objetivo de
enfraquecer o desejo sexuale~Omesmo tempo cómbgarantia?defidelidade.
Mas, quer quisessem quer não os missionários, quer eles pagassem tributo à
Idade Média católica e à Contra-Reforma, como os jesuítas, quer à Reforma pro-
49
RELIGIÕES DO MUNDO
UM CRISTO AFRICANIZADO
CRIATIVIDADE AFRICANA
50
REUGIÓES TRIBAIS
em 1964, numa época difícil, quando o plantador de tabaco Tom Blomefield, amea-
çado por causa das sanções econômicas ocidentais e da crise econômica, procurou
uma alternativa para sua fazenda de tabaco. Com seus trabalhadores ele começou a
produzir esculturas a partir da serpentina, uma rocha vulcânica escura. Para a maioria
desses antigos trabalhadores itinerantes, que na época da colheita voltavam a trabalhar
nas fazendas, a produção artística em pedra constituía uma novidade. Mas seu exem-
plo foi imitado, literalmente, por milhares, cujos trabalhos, em número incalculável,
são oferecidos hoje em lojas de souuenirs, em mercados ou mesmo na beira da praia.
Muitos artistas africanos progrediram também internacionalmente. Um dos mais
importantes é Henry Munjaradzi que, ao contrário de outros, não emigrou para a
Europa nem para a América, mas permaneceu no Zimbábue. Uma obra impressio-
nante, mesmo para nós hoje: Criança recém-nascida. Mas primeiro foi necessário que
o cubismo e o expressionismo europeu, com suas formas próprias e com sua incomum
força de expressão - como mais um exemplo: O bom pastor e a ovelha perdida-, le-
vassem os europeus a compreender a pintura africana. Há dez anos fiquei de tal
forma impressionado com os trabalhos dos artistas do Zimbábue que adquiri um:
um homem com grandes olhos redondos e um braço com grandes mãos colocadas
sobre a cabeça: um homem com dor de cabeça - contra a dor de cabeça.
51
RELlGIÓES DO MUNDO
52
RELIGIÕES TRIBAIS
53
A invasão ariana
no continente indiano
500,m (Mapa atual)
11
Hinduísmo
DANÇA DE KRI5HNA
55
RELIGIÕES DO MUNDO
sido trocados e, com isso, ele escapou ao infanticídio do rei Kamsa. Com sua beleza
e com o som de sua flauta, ele envolve as meninas pastoras, sobretudo sua amada
Radha. Derrama sobre elas uma chuva de flores de ouro. Mas, durante a dança, ele
se multiplica, para poder se entregar a todas as suas amantes.
Nós nos deparamos aqui com a origem lendária das danças mímicas (rasas) pra-
ticadas até hoje. Deixemos, porém, que os intérpretes hindus nos digam como com-
preender essa cena pastoril: como uma suave estória de amor erótico, ou como o
eterno jogo de amor de Deus com sua amada, a alma individuaI - uma idéia que
pode ser encontrada na mística de muitas religiões. De qualquer modo, nessa dança
circular em torno de uma pessoa colocada no centro, os hindus vêem representadas
as relações pessoais entre o homem (em forma feminina) e a divindade (em forma
masculina): os sentimentos do amor e da entrega ao mundo (radhas) elevados à
condição de amor e de entrega a Deus (sob a forma de Krishna). Seja como for, ele,
Krishna, é o mais amado de todos os deuses hindus. Porém...
56
HINDUíSMO
, ',', - '"
FORÇAS E FRAQUEZAS
57
RELIGIÕES DO MUNDO
Hoje em dia costuma-se exaltar, com muita freqüência, os antigos ideais indianos,
mas, ao mesmo tempo, deixa-se de ver as contradições sociais. Em concreto eis o
que isso significa:
• As elites sociais favorecidas pela ordem eterna gostam de insistir nos direitos e
privilégios que possuem desde sempre. Ao mesmo tempo, menosprezam seus
deveres e fazem de tudo para preservar o monopólio do poder e do conheci-
mento.
• Contra toda e qualquer mudança e melhoria das condições, os fundamentalistas
sempre podem insistir: "Na índia sempre foi assim"; "Nunca foi diferente"; "Se
for diferente, está errado".
• Já os de pensamento crítico e os reformadores, que gostariam de modificar o
status quo da ordem social que se tornou histórica (por exemplo, a posição da
mulher, as castas superiores ou os sem casta), encontram dificuldades.
E, não obstante, a história da religião indiana conhece também movimentos de
reforma e mudanças de paradigma: transições para uma nova constelação global,
muitas vezes difíceis de ser percebidas porque certos fatores da época anterior
são assumidos na nova época sob uma forma diferente. Freqüentemente são
difíceis de definir, porque a data de muitos escritos não pode ser determinada
com clareza.
A MÃE GANGA
Tudo no universo tem seu darma, sua destinação, sua ordem: deuses, homens,
animais, plantas e também a natureza inanimada. Até rios e córregos têm seu desti-
no. Têm que correr, purificar, sustentar, mas também arrancar ou mesmo destruir.
Das montanhas dos deuses, cobertas de neve, dos cumes do Himalaia, desce esta
grande torrente que, após percorrer 2700 quilômetros, termina por desaguar no
Golfo de Bengala. Para os hindus não existe nenhum rio mais importante nem mais
sagrado do que este: o Ganges. Ao contrário do mar, que é "masculino", para eles o
Ganges é "feminino": chamam-no Mãe Ganga, eles que conhecem uma deusa Ganga.
A água do Ganges é usada em muitas cerimônias religiosas (pujas). Ao moribundo
freqüentemente se dá de beber um gole de água do Ganges.
Ganges, "o rio da vida": deslizando calmo e tranqüilo, na aparência lento, mas
perseverante, sem que nada o possa deter, por vezes arrastando tudo tempestuosa-
mente, sempre o mesmo e, no entanto, sempre a modificar-se - para muitos india-
nos ele é a imagem do próprio hinduísmo. Muitas vezes claro .~ limpo, muitas vezes
barrento e opaco. Muita coisa ele fecunda, mas vez por outra transborda, submer-
gindo em suas águas as criaturas. Entretanto...
58
RELIGIÕES DO MUNDO
Hoje em dia costuma-se exaltar, com muita freqüência, os antigos ideais indianos,
mas, ao mesmo tempo, deixa-se de ver as contradições sociais. Em concreto eis o
que isso significa:
• As elites sociais favorecidas pela ordem eterna gostam de insistir nos direitos e
privilégios que possuem desde sempre. Ao mesmo tempo, menosprezam seus
deveres e fazem de tudo para preservar o monopólio do poder e do conheci-
mento.
• Contra toda e qualquer mudança e melhoria das condições, os fundamentalistas
sempre podem insistir: "Na fndia sempre foi assim"; "Nunca foi diferente"; "Se
for diferente, está errado".
Já os de pensamento crítico e os reformadores, que gostariam de modificar o
status quo da ordem social que se tornou histórica (por exemplo, a posição da
mulher, as castas superiores ou os sem casta), encontram dificuldades.
• E, não obstante, a história da religião indiana conhece também movimentos de
reforma e mudanças de paradigma: transições para uma nova constelação global,
muitas vezes difíceis de ser percebidas porque certos fatores da época anterior
são assumidos na nova época sob uma forma diferente. Freqüentemente são
difíceis de definir, porque a data de muitos escritos não pode ser determinada
com clareza.
A MÃE GANGA
Tudo no universo tem seu darma, sua destinação, sua ordem: deuses, homens,
animais, plantas e também a natureza inanimada. Até rios e córregos têm seu desti-
no. Têm que correr, purificar, sustentar, mas também arrancar ou mesmo destruir.
Das montanhas dos deuses, cobertas de neve, dos cumes do Himalaia, desce esta
grande torrente que, após percorrer 2700 quilômetros, termina por desaguar no
Golfo de Bengala. Para os hindus não existe nenhum rio mais importante nem mais
sagrado do que este: o Ganges. Ao contrário do mar, que é "masculino", para eles o
Ganges é "feminino": chamam-no Mãe Ganga, eles que conhecem uma deusa Ganga.
A água do Ganges é usada em muitas cerimônias religiosas (pujas). Ao moribundo
freqüentemente se dá de beber um gole de água do Ganges.
Ganges, "o rio da vida": deslizando calmo e tranqüilo, na aparência lento, mas
perseverante, sem que nada o possa deter, por vezes arrastando tudo tempestuosa-
mente, sempre I:) mesmo e, no entanto, sempre a modificar-se - para muitos india-
nos ele é a imagem do próprio hinduísmo. Muitas vezes claro e limpo, muitas vezes
barrento e opaco. Muita coisa ele fecunda, mas vez por outra transborda, submer-
gindo em suas águas as criaturas. Entretanto...
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HINDUíSMO
.
POR QUE TOMAR BANHO NO GANGES?
Em uma cidade de duzentos mil habitantes, uns bons 214 quilômetros a noroeste
da capital Délhi, a jovem Ganga desce das montanhas para a planície: Haridwar é uma
das mais sagradas cidades da Índia. Desde tempos remotos célebre centro de peregri-
nações, é o ponto de partida para toda a região montanhosa, com rotas de peregrina-
ção que chegam até a quatro mil metros de altura.
Haridwar significa "porta de Hari", em que "Hari" é apenas um outro nome para o
deus Vishnu. Aqui este teria deixado suas pegadas: Hari-ke-cbaran, "pegada de Vishnu",
e é esseo mais importante ponto de atração da cidade. Na Índia, desde sempre, os rios
foram considerados sagrados, e especialmente sagrados também os lugares de acesso à
água, para beber ou para banhar-se, que receberam a visita de um ser tão poderoso
como Vishnu. Por isso aí podem acontecer milagres.
Na primavera de 1998, cinco milhões de peregrinos vieram para a grande festa da
Kumbh Mela, que acontece a cada quatro anos. Mas por que essas pessoas entram
no rio? Não em primeiro lugar por razões de higiene, mas sim por obrigação ritual,
para se purificarem dos pecados: "Nosso espírito e nosso corpo", é nessa ordem que
diz o jovem indiano, "nosso espírito e nosso corpo são purificados. E isso nos traz
paz de espírito, paz de alma". .
Desde tempos antiqüíssimos, o banho (snana) serve para os indianos como um
ato de purificação (sodhana). Quando corretamente realizado, ele alcança a pure-
za do corpo e, ao mesmo tempo, a santidade espiritual. Melhor do que em águas
paradas, e melhor ainda do que no mar, onde se reúne toda impureza, o banho é
feito na água corrente de uma fonte ou de um rio. E que rio haveria de ser mais
adequado, que rio seria mais eficaz para isso do que o mais sagrado dos rios, Mãe
Ganga? Seja qual for a água que se utilize, diz-se na Índia, ela deve ser considerada
como água do Ganges, mesmo sem o ser. Nos degraus sagrados do banho - os ghats
(ghatas) , que pretendem facilitar aos fiéis o acesso à água -, o banhista se une ao céu
e à terra.
Uma grande cultura desenvolveu-se no Ganges já nos anos 1000 a 500 a.C, Mas
a primeira das grandes culturas indianas é a cultura harappa no vale do Indo, cujos
precursores remontam já ao quarto, ou mesmo ao sétimo milênio.
Sabemos pouquíssimo, hoje, a respeito da vida do povo do Indo, que deu nome
aos indianos. Sabe-se pelo menos que o vale do Indo, no atual Paquistão, é o terceiro
grande berço da cultura humana, comparável à Mesopotâmia e ao Egito, onde a alta
cultura também aparece associada à escrita. Essa cultura do Indo teve seu apogeu já
no terceiro e no segundo milênio antes de Cristo. Até hoje, porém, sua escrita não
59
RELIGIÕES DO MUNDO
foi decifrada. Só muito recentemente se julga haver decifrado umas poucas palavras.
E o que se esconde nesses escritos nós não podemos senão imaginar.
Mas há muitos achados, armas, objetos de uso de toda espécie e sobretudo vários
milhares de sinetes de esteatita (pedra-sabão), a maioria encontrados nas cidades de
Mohenjo-Daro e Harappa - o lugar que deu nome a essa civilização. Mas o que
significa, nos sinetes, por exemplo, o lendário e fabuloso unicórnio, cuja pátria na
Antigüidade sempre foi considerada a Índia? Ou que função possui, no sinete, um
homem sentado: um "senhor de animais", uma espécie de proto-Shiva, ou um iogue
em meditação? Pelo menos alguns pesquisadores suspeitam que determinadas técni-
cas de respiração e meditação, assim como certos elementos do culto da fertilidade,
já remontam à cultura do Indo. Talvez, portanto, um estágio prévio da religião hindu.
Nós apenas sabemos que as altamente desenvolvidas cidades hindus foram destruídas
por volta de 1750 a.c., juntamente com sua agricultura, seus sistemas de canais para a
distribuição de água e seus artesãos. Por causa de modificações climáticas repentinas?
Por uma lenta decadência provocada pela regionalização? Ou pela violência da guerra?
Uma coisa é certa: entre 1700 e 1200 chegou a essa região um povo inteiramente
diferente, de tribos nômades - os árias, os nobres, como a si próprios se denominavam.
De onde vieram? Supõe-se que do centro da Ásia meridional, como todos os numero-
sos povos pertencentes à mesma família lingüística e ao mesmo espaço cultural, que
por essa razão são chamados de indo-europeus (anteriormente chamados também indo-
germânicos): não somente os germanos, mas ainda os celtas, eslavos e baltos, também
os romanos e os gregos e, com os iranianos, os indianos.
Já bem cedo os indo-europeus haviam-se dividido. E assim chegaram os que a si
próprios se denominavam árias, certamente depois de haverem atravessando o pla-
nalto iraniano para o vale do Indo e depois também para o do Ganges: nos anos de
1000 a 800 chegaram ao vale superior, por volta de 850 também ao vale inferior. Por
essa época ainda viviam em toda essa região caçadores e ceifeiros, que só haviam
chegado a utilizar armas de bronze. Uma população primitiva de pele morena, do-
minada pelos árias de pele alva, que já dispunham da tecnologia do ferro e de cavalos
e que se consideravam, sob todos os sentidos, superiores. Mas estes - ao contrário
dos mesopotâmios ou dos egípcios - não formaram grandes reinos unificados, e sim
numerosos pequenos reinos, que só centenas de anos mais tarde se transformaram
em unidades maiores. Desse tempo para cá a cor alva da pele passou a ser mais
apreciada entre os indianos, e os primitivos habitantes passaram a ocupar o lugar
mais baixo na sociedade indiana, fortemente hierarquizada.
Quando em uma cidade da Índia observamos pessoas tão diferentes umas das
outras, sobretudo ao vermos as grandes massas que, em conseqüência da super-
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HINDUíSMO
Para os indianos, essas quatro camadas sociais não eram chamadas de estados e
sim de varnas, que originalmente significava "cores", e que talvez tenha algo a ver
com sua origem. De qualquer modo, foram só os colonizadores portugueses que as
. castus (puro,
ch amaram de castas, do Iaurn " " "casto "). Isso nos aponta uma caracte-
rística importante: como antes, entre os "estados" na Europa, assim também na
índia as pessoas ainda preferem casar-se "de acordo com o estado", dentro da mesma
casta (endogamia) e, na medida do possível, sentar-se à mesa em companhia de seus
iguais (comensalidade). E, como na Europa, já bem cedo as castas se configuraram
em inúmeras' unidades menores (os diversos graus do clero, da nobreza, das corpo-
rações ...), assim também na Índia em subcastas, que são chamadas de jati ("nasci-
mente"). Seu número é incalculável: até hoje ainda não existe uma classificação clara
das castas. Em 1881, numa primeira contagem, só para as províncias centrais foram
registrados cerca de 25 mil nomes de castas.
61
RELIGIÕES DO MUNDO
Uma pergunta que não podemos deixar de fazer: De onde surgiu essa divisão de
uma sociedade inteira em castas? A isso a pesquisa histórica dá várias respostas:
• Isso veio da especialização profissional, diz uma delas. Mas, o ordenamento por
castas é certamente mais do que um mero fenômeno social, a ponto de ser ele
próprio o determinante da escolha da profissão.
• É uma ordem de classes inventada pelos sacerdotes, diz a outra resposta. Porém,
por mais que os brâmanes tenham contribuído para estabelecer e organizar a
ordem das castas, ela não é um fenômeno apenas religioso.
o mais importante deve ter sido a evolução histórica global. Não se pode negar:
os árias imigrantes queriam diferenciar-se da primitiva população escura e preservar
sua "pureza". Seja como for, nessa época se formaram aquelas "cores" sociais, varnas,
grupos. Logo passaram a ser entendidas também como instituições religiosas, orga-
nizaram-se hierarquicamente e começaram a usar um nome comum.
Já na literatura indiana mais antiga, o Rig-Veda, se encontra (se bem que numa
parte relativamente tardia) uma fundamentação religiosa para a hierarquia das cas-
tas. Consideremos o "Hino a Purusha", um ser cósmico primordial semelhante ao
homem, de quem o mundo inteiro surgiu (Rig-Veda 10,90). Enquanto três quartas
partes desse estranho ser são espirituais e transcendentes, uma quarta parte dele é
apresentada aos deuses no fogo do sacrifício. E dessa maneira surge tudo quanto
existe: as coleções de textos dos Vedas, os animais, também as quatro classes de
homens e, por fim, os astros, os elementos, o céu e a terra.
62
HINDUíSMO
Observe-se, no entanto, que nesse texto não se encontra ainda a rígida separação
entre as castas, que exclui os casamentos entre os membros de castas diferentes, assim
como a mudança de casta. Isso só é encontrado no influente Código de Manu
(manusmrti, presumivelmente do século III d.C.), que é atribuído a Manu ("homem'),
o ancestral da humanidade. É esse código que passa a ser o fundamento da sociedade
hindu, de sua religião e de seus comportamentos: a primeira e mais importante obra
da "tradição" védica (smrti).
Só pela época da Idade Média é que se impõe aquele rigorismo das castas, que
estabelece tanto o casamento quanto a escolha da profissão e o prestígio social do
indivíduo. É muito central aqui a idéia de pureza ritual. Sua sombra é o medo de
macular-se. Já é considerado impuro o contato físico com castas inferiores, mais
ainda o partilhar a refeição e, pior que tudo, a relação sexual. Toda e qualquer impu-
reza exige, na medida do possível, uma purificação adequada. Para isso os brâmanes
desenvolveram inúmeras prescrições, proibições, ritos de purificação, mas também
a excomunhão. E uma conseqüência particularmente grave: as classes inferiores es-
tão excluídas também do estudo dos escritos sagrados hindus, os Vedas.
No século XXI, já não se aceita universalmente que só os membros das três castas
superiores possam ter acesso ao conhecimento dos Vedas, ouvir suas palavras sagra-
das e estudá-los. Tradicionalmente, a iniciação acontecia em uma cerimônia própria
- que possui alguma semelhança com o batismo cristão. Celebrava-se um "segundo
nascimento", quando os que iriam ser iniciados recebiam o fio de algodão sobre o.
ombro esquerdo (certamente o resquício ritual de uma veste anterior). Somente'
esses "nascidos duas vezes" é que estavam capacitados para ouvir as sagradas palavras
reveladas e assistir aos rituais correspondentes.
Em toda a Índia existem hoje pessoas e círculos que procuram levar a uma
maior unidade o país, dividido em grupos étnicos, castas, religiões e partidos. Por
exemplo, existe em Haridwar o grande centro espiritual Shantikunj, ligado a uma
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RELIGIÕES DO MUNDO
academia para dois mil estudantes candidatos a professores. Esse centro inspira
um movimento de renovação moral e espiritual, para o qual estão convidadas "todas
as pessoas, sem limites de casta, de fé, de sexo ou de religião". Muito consciente-
mente se procura aqui, além de um sério estudo das modernas disciplinas huma-
nas e científicas, atacar a difundida ignorância, o fanatismo, o ódio, a luta e a divi-
são das pessoas, e se trabalha pela compreensão e harmonia, pela unidade na varie-
dade, pela paz e pelo humanitarismo. E em tudo se faz referência - na linha do
Arya Samaj {"Comunidade dos Árias"), fundado pelo reformador social e natura-
lista Dayanand Sarasvati (1824-1883) - antes de tudo ao hinduísmo em sua for-
ma original: à autoridade dos Vedas, àquele "conhecimento" sagrado que ainda
hoje a maioria dos hinduístas crentes considera como a fonte de roda a cultura
indiana.
Que faz um pequeno grupo de estudantes, já cedo, em um ritual védico matinal?
Ele se volta para o sol nascente: para o "gerador" (Savitri, também esposa de Brahma
e mãe dos quatro Vedas), para o deus-sol que traz luz e vida e que expulsa os perigos
das trevas.
Os vários versos são introduzidos pela sílaba primordial OM, o símbolo do co-
nhecimento e da força espiritual hinduísra. Por fim, recita-se a mais célebre de todas
as invocações ou mantras, que já foi sussurrada aos ouvidos dos membros das castas
superiores em sua iniciação e que precisa ser rezada todos os dias. É o mantra do
Gayatri (ou do Savitri), um dos versos mais sagrados do Rig-Veda (Livro lII, verso
62,10). Este mantra é considerado a quintessência da revelação védica, e dele exis-
tem, entrementes, dúzias de traduções:
O não-hindu precisa saber: com essa invocação matinal não se roga apenas a
bênção do sol (savitrl) sobre a terra. Pelo contrário, pronuncia-se uma fórmula mís-
tica de grande poder e força, que por isso é chamada de vedamatri, a "mãe dos Vedas".
Por quê? Suas 3 x 8 sílabas contêm a substância de todos os quatro Vedas e uma
força purificadora. Um ária que, por exemplo, tenha comido alimento impuro,
deveria, de acordo com as idéias tradicionais, rezar o gayatri 108 ou 1008 vezes,
conforme a gravidade da transgressão.
No rito dos jovens, o que ocupa o lugar central é o lado positivo: que o sol, capaz
de dar vida, mas também de destruir, lhes transmita algo de sua energia, para que
eles próprios se tornem pessoas melhores e possam também beneficiar outras pes-
soas. Mas o hinduísmo não se contenta com ritos, ele está empenhado também no
estudo dos escritos clássicos sagrados.
64
HINDUíSMO
• o Rig-Veda ("saber dos hinos"): hinos consagrados aos deuses, surgidos entre
1700 e 1200 a.c. no vale do Indo;
• o Sarna-Veda ("saber dos cânticos"): manual para formação dos que cantam nos
sacrifícios;
• o Yajur- Veda ("saber das fórmulas sacrificatórias"): uma coleção de textos para os
sacrifícios;
• o Atharva-Veda ("saber do 'sacerdote do fogo"'): uma coleção tardia de textos e
rituais mágicos e ocultos, não sacerdotais.
Textos muito amplos, ao todo cerca de seis vezes mais extensos do que a Bíblia!
Para o hinduista crente, eles possuem uma autoridade divina. São considerados
como shruti, "ouvidos", como parte "revelada" da tradição religiosa hindu. Em con-
traposição a estes, os smrti, "recordação": textos não revelados, considerados como
tentativas humanas de entenderas verdades reveladas. Mas, como parte da continua-
ção autêntica e da fidelidade à tradição, eles possuem uma importância equivalente
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RELIGIÕES DO MUNDO
O povo simples não vive muito preocupado com os escritos sagrados. Por mais
grandiosa que seja a tradição hindu, hoje quase a metade da população da Índia
não sabe ler nem escrever, e cerca de metade das crianças em idade escolar não
freqüenta a escola. Para todas essas pessoas o que mais importa são os inúmeros
ritos religiosos que acompanham toda a vida do hindu e que podem ser realizados
na natureza, em casa ou no templo.
Até hoje os fiéis hindus realizam seu ritual do fogo, seja em um local qualquer,
seja, corno na Universidade de Gurukul, em um altar artisticamente arrumado.
Já nos Vedas o fogo goza de extrema veneração. O que não é difícil de compreen-
der. Em suas origens, o homem quase que só conhecia a força do fogo através dos
incêndios que se seguiam à queda de um raio; e um passo decisivo do seu desen-
volvimento cultural (na Grécia antiga, ligado ao mito de Prometeu) foi dado quan-
do ele mesmo aprendeu a produzir o fogo esfregando dois pauzinhos e a utilizá-
lo de forma controlada. Não é de admirar que na tradição religiosa da Índia o fogo
tenha desempenhado um papel central: o fogo está no céu corno sol, está no ar
como raio, na terra como fogo do lar, no ritual como fogo do sacrifício e na crema-
ção de cadáveres como instrumento para levar as almas dos falecidos ao mundo
celeste.
O fogo aparece personificado no deus Agni, nos Vedas, o primeiro e mais antigo
sacerdote sacrificado r, que une os três mundos, ou seja, céu, ar e terra. Ao lado de
Indra, rei dos deuses, deus do firmamento, do tempo e da guerra, Agni é o deus
mais importante. A ele muitos hinos são dedicados, e a ele o brâmane oferece o
sacrifício para que a ordem do universo seja mantida. Agni recebe-o, queima-o e o faz
subir para os deuses. Tudo é minuciosamente regulamentado: corno escolher o
lugar do sacrifício, corno juntar a lenha para o fogo, como arrumar o lugar do fogo,
66
HINDUÍSMO
como preparar as ofertas, como acender o fogo e conservá-lo aceso, que cânticos
devem acompanhá-lo, as ações "e as orações rituais.
A todo ariano era prescrita a oração da manhã e da noite (o samdhya). Já para os
jovens, o fogo devia ser um símbolo de crescimento, de tendência para o alto, de
entrega. E devia ser ao mesmo tempo um símbolo para o eterno ciclo da natureza. O
fogo busca sempre subir da terra para o alto, e, com a matéria queimada, ele carrega
consigo aquilo que sustenta toda a vida, a água, levando-a para o céu onde ela se
transforma em nuvens, até voltar a cair sobre a terra como chuva e aí despertar a
matéria para uma vida nova. Não é tudo assim, na verdade, um eterno ciclo, sem
começo e sem fim? Sobre o pano de fundo dessa idéia, já nos textos bramânicos é
fundamentada uma doutrina que, como "doutrina dos cinco fogos", tenta nos
Upanixades encontrar uma resposta à pergunta sobre o de-onde e o para-onde do
homem. Essa resposta já aqui começa a ser desenvolvida naquela idéia cíclica do além
que, mais tarde, de uma forma eticizada e como doutrina do carma, vem a encontrar
adeptos mesmo fora do hinduísmo. Muitos consideram-na como o dogma central do
pensamento hindu, apesar de manifestamente só se haver desenvolvido com o tempo.
A crença numa reencarnação cíclica dos mortos, em uma migração das almas,
não nasceu na Índia. Desde muito ela faz parte de numerosas tradições culturais do
mundo. E mesmo na Índia não se teve nem se tem muita clareza a respeito de como
imaginar o destino dos morros. Seja como for, nos tempos védicos primitivos acre-
ditava-se de início que, com a cremação do cadáver, os mortos imediatamente che-
gavam ou à condenação eterna do mundo inferior ou à felicidade do paraíso no
mundo celeste. Porém, logo se começou a pôr isso em dúvida: não se deveria temer
que também no céu ocorresse uma "nova morte", e que os mortos tivessem que
voltar à terra e assumir uma nova existência para de novo saírem dela e, com a
morte, retornarem para o céu?
Sobre o que influencia este ciclo, existiam nos tempos antigos especulações con-
trovertidas: na lua, essa porta que leva do mundo para o céu, assim se pensava
inicialmente, existe um guarda que faz perguntas aos mortos sobre sua vida; as res-
postas a serem dadas a essas perguntas seriam de fundamental importância para o
destino do morto. Mais tarde, segundo a concepção dos brâmanes, seriam sobretu-
do os atos de sacrifícios realizados pelos mortos durante a vida que iriam determinar
seu destino após a morte. A palavra-chave era agora ação, e seria através da ação que
a tradição hindu da doutrina do carma (em sânscrito, kr: "agir", "fazer") iria impor-
se. O que mais importa em tudo isso é que, na visão do agir, começa em ampla
medida a ocorrer uma libertação das idéias míticas e rituais. Um processo comple-
xo, que ainda pode ser acompanhado nos Upanixades. Por fim, o critério decisivo
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RELIGIÕES DO MUNDO
para o tipo de reencarnação passou a ser simplesmente a conduta de vida, o reto agir
moral do morto enquanto ~iveu.
Para os hindus, como para muitos não-hindus, até hoje a idéia de um fluxo cícli-
co do tempo e dos acontecimentos conservou sua força sugestiva. Não se repetem
todos os acontecimentos da natureza? Os ciclos astrais, as estações, as fases da lua,
vão e vêm. Dia e noite se sucedem. Na visão hindu, isso constitui também uma
advertência para o fato de que os grandes não irão permanecer eternamente grandes
nem os pequenos eternamente pequenos. De acordo com os atuais conhecimentos
físicos, na verdade a natureza não executa unicamente movimentos cíclicos, mas
também - desde os núcleos dos átomos até as estrelas - ela realiza uma história que
marcha em uma direção determinada: uma história de bilhões de anos, que parte do
big bang e que caminha rumo a um final.
Mas a mitologia hindu também parte da idéia do "fim" deste mundo, assim como
é transmitida, por exemplo, no Código de Manu. Segundo esse código, nós nos en-
contramos na última das quatro eras do mundo (ruga), no sexto milênio do Kaliyuga.
Mas na Índia não há necessidade de nenhum alarme apocalíptico. Por quê? Porque
de acordo com um sistema de contagem imaginado posteriormente, a partir do
nosso ano 2000 ainda irão se passar 426 mil anos humanos até que, depois de 12 mil
anos divinos, ou seja, 4 320000 anos humanos, uma era divina (mahayuga) chegue ao
fim! E - para Brahma - mil dessas eras divinas são apenas um dia, a que depois de uma
destruição do mundo se há de seguir igualmente uma longa noite bramânica. Só
então um período do mundo (ka/pa) estará concluído! Fecha-se assim o ciclo de eras
iguais que se desenrolam eternamente - para logo começar tudo de novo.
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HINDUíSMO
tempo começou-se a perceber uma insatisfação com uma visão totalmente mitológica
do mundo. E passou-se a uma "compreensão filosófica, em busca de uma unidade
original que estaria por trás e por dentro de todas as coisas: TadEkam, "o Uno". Dele
diz, por exemplo, aquele hino da criação do Rig-Veda (X, 129,2), que no princípio
não havia nem ser nem não-ser, mas apenas este Uno e nada mais além dele.
Uma mudança de paradigma. Mas foi longo o caminho que levou dos brâmanes,
com sua ciência esotérica dos sacrifícios e com seus tateias e tentativas para apreender
em conceitos e concretizar aquela realidade primeira e última, até as primeiras concep-
ções filosóficas coerentes dos primeiros Upanixades que, havendo surgido entre o
oitavo e o quarto século pré-cristãos, são considerados como o "fim dos Vedas" (vedanta),
como o encerramento da parte revelada (Shrutl) da tradição religiosa da Índia.
Funda-se nisso uma visão unificada que, juntamente com a crença na reencarna-
ção e no carma, que aos poucos foi se impondo, constitui a nova constelação da
religião da era dos Upanixades (paradigma 11). Upa-ni-shad significa "estabelecer-se
(shad) ao lado (upa) ou um pouco abaixo (ni)". Isto é, estabelecer-se como discípulo
aos pés do mestre, em sinal de veneração e com o objetivo de ser introduzido em
uma doutrina quase sempre secreta. Os próprios Upanixades continuamente acen-
tuam o caráter secreto de suas doutrinas. E não oferecem algo assim como uma
"doutrina básica", ou como um sistema doutrinário coerente! Não, os textos apre-
sentam, todos eles, estilos literários muito diversos e também um amplo espectro de
diferentes doutrinas e concepções - a começar pelas perguntas sobre o destino indi-
vidual do homem, chegando até a relação do ser humano com o Absoluto. Mas não
se pode deixar de perceber a busca da unidade.
A BUSCA DAUNIDADE
.- ..... c', -. " ". " '->">~-'.-_'--"" ...'-,:-. ,>,.,
..,."-,'....:.. ..":,,':", :::::;.:' ..
69
RELIGiÕES DO MUNDO
.. 'partir:dar,' oS'mrsticos'pâJsaor~'rnidam~r
antes de tudo buscarDeus em ti:mesfllo:".· .
Dessa maneira uma das doutrinas dos Upanixades fez história, passando desde
então a marcar persistentemente o pensamento religioso dos hindus: que atrnã e
brâman (não confundir com o deus Brahma), no fundo, são uma só coisa. Uma
grande visão mística, formulada uns bons cinco séculos antes de Cristo. De início
ela foi explicada não tanto por meio de deduções filosóficas quanto por narrativas
doutrinárias.
O discípulo, desejoso de aprender, pergunta ao sábio como poderia experimentar
a verdade mais profunda da presença e eficácia universal do brâman, a suprema
realidade (segundo a Chandogya Upanixade 6,12,2-3). O discípulo é convidado a
abrir um figo - e aparecem muitos grãozinhos de semente. Agora ele deverá abrir
um desses grãos: não aparece mais nada. O sábio explica: "Meu caro, essa pequenez
que tu não percebes, precisamente por causa dessa pequenez é que a figueira se
encontra aí, tão grande. Acredita, meu caro, essa pequenez é o eu do universo. Essa
é a verdade; isso é o teu eu, a tua alma, isso és tu."
70
HINDUíSMO
RELIGIÃO E EROTISMO
71
RELIGIÕES DO MUNDO
o CREPÚSCULO DO TANTRISMO
Grande influência foi exercida por aquelas seitas que estavam ligadas ao shaktismo,
à veneração de divindades femininas (shakti, que dá nome a uma deusa: "energia",
"força primordial") e sobretudo ao shaktismo tântrico (tantra: "tecido", "sistema") e
aos seus ritos. Foi precisamente por essa época, de 600 a 900, que esse sistema
esotérico doutrinário e ritual começou a se difundir na Índia. O tantrismo também
chegou a Khajuraho, pelo menos a partir do século IX: há testemunho de um centro
da seita Yogini Kaula por esse tempo. Dessa forma, não deve causar espanto que
entre os séculos X e XII seja encontrado um número sempre maior de representa-
ções de dançarinas em poses sensuais e sedutoras e, também, com freqüência cada
vez maior, pares sexuais e gtupOS orgiásticos. No centro do tantrismo encontram-se
os cinco elementos que começam por m: madaya ("vinho"), matsya ("peixe"), mamsa
("carne"), mudra ("grãos torrados") e maithuna ("sexo").
Não precisamos, certamente, demonizar o tantrismo, mas tampouco glorificá-lo.
Por um lado, no tantrismo, ao contrário do hinduísmo ortodoxo, as mulheres fo-
ram inegavelmente valorizadas e os limites das castas foram retirados - o que valori-
zou até mesmo os "intocáveis". Mas, por outro lado, não se pode negar que os
rantristas muitas vezes pregavam e praticavam uma filosofia do sexo. No tantrismo
original é possível que a ligação entre ioga e sexualidade não tenha visado à mera
72
HINDUÍSMO
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RELIGIÕES DO MUNDO
AS EPOPÉIAS CLÁSSICAS
Nas grandes epopéias clássicas, as coleções mais importantes para todos os gêneros
da literatura indiana, que ainda hoje permanecem vivas em todas as camadas do
povo, os grandes deuses são Vishnu e Shiva.
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HINDUíSMO
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RELIGIÕES DO MUNDO
POLITEíSMO?
Mas de que maneira este divino Uno e Absoluto se relaciona com o mundo?
Como se explica que a essa pergunta básica, surgida já no período clássico, mais de
mil anos mais tarde sejam dadas nas escolas medievais da religião hindu, com base
76
HINDUíSMO
Modelo 1: O Absoluto e o mundo são a mesma coisa. Assim disseram e assim dizem
na Índia os filósofos da unidade, ou rnonistas, entre eles muitos intelectuais. À frente
de todos, o mais conhecido entre os pensadores do hinduísmo, Shankara, a quem no
século IX d.e. se deve a restauração da religião hindu contra o budismo e o jainismo.
É esta sua mensagem: no fundo, só existe o Uno, o Brâman, que é idêntico à
alma, ao atrnâ. O mundo é apenas aparência de realidade, apenas maia. Mas, para se
poder reconhecer isso, tem-se que ultrapassar o plano da verdade ingênua e comum,
onde existe uma pluralidade de coisas e de eus, Através da meditação se há de alcan-
çar o plano da verdade mística mais elevada. Aí, os diversos eus são uma só coisa
com o eterno, infinito e divino Eu, com o Absoluto, que em si mesmo é ser, cons-
ciência e bearitude: "Isto és tu!" Não se alcança, portanto, a redenção pelo conheci-
mento inferior nem por obras rituais e morais, mas unicamente pelo conhecimento
místico mais elevado do Uno e do Todo. Certo? Não, a contradição vem de uma
interpretação contrária do Vedanta.
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RELIGIÕES DO MUNDO
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HINDUíSMO
vida. Aqui profano e sagrado não estão separados. No mesmo rio sagrado lavam-se os
saris e os tapetes, mas são feitas também as abluções sagradas. Na vida do hindu são
inúmeros os ritos (pujas) que são repetidos regularmente: não só as grandes festas e
procissões nos templos em honra das divindades protetoras da aldeia ou da cidade,
mas também os períodos de jejum e sobretudo os ritos realizados diante da imagem do
Deus ou do altar doméstico. Na religião reina uma grande liberdade, desde que se
obedeça às complexas regras das castas - mas também uma grande confusão. Faz parte
da instrução religiosa e da orientação espiritual um guru, mestre ou guia espiritual,
muitas vezes para a família inteira. Nele o Divino está presente de maneira direta, e é
também ele quem introduz o jovem hindu na tradição religiosa.
E da mesma forma que o catolicismo romano, também o hinduísmo não pode
ser imaginado sem as peregrinações (yatra: "viagem") aos lugares de presença e de
graça divina (tirtha: "vau"; originalmente o lugar onde se podia atravessar um rio e,
em sentido figurado, as passagens que ajudam o homem a atravessar o rio do renas-
cimento): portanto rios, templos, e também pessoas santas, de cuja visita se esperam
merecimentos e salvação nos assuntos mundanos e espirituais. As peregrinações
podem ser feitas durante o ano todo. Mas em muitos lugares existem épocas consi-
deradas particularmente meritórias, como sobretudo a Kumbh Meia, que a cada
quatro anos - alternadamente em Haridwar e três outras cidades - é realizada com
a presença de milhões de peregrinos.
Mas o lugar entre todos preferido, ao qual todo hindu desejaria peregrinar pelo
menos uma vez na vida e que mais do que qualquer outro possibilita um encontro
com as diferentes comunidades e tendências religiosas é Varanasi (chamada pelos
ingleses de Benares), o mais sagrado lugar de peregrinações, e o mais turbulento,
com inúmeros lugares de culto. O que Jerusalém é para os judeus, Roma para os
católicos e Meca para os muçulmanos, é Varanasi para os hindus. Ao longo dos
séculos, várias vezes essa cidade foi destruída, com todos os seus templos. Hoje a
maioria dos templos é proveniente do século XVIII, quando Varanasi já não se
encontrava mais sob os muçulmanos e ainda não estava sob dominação britânica,
mas sob o domínio hinduísta dos mararhas,
Varanasi, hoje uma cidade com 1,2 milhão de habitantes, é talvez a mais antiga
região do subconrinenre habitada ininterruptamente. Seu nome atual de Varanasi
provém dos dois rios, Varuna e Asi, que confluem no Ganges. Enquanto Haridwar,
no vale superior do Ganges, é considerada antes de tudo como a cidade de Vishnu,
Varanasi, no vale médio, é considerada a cidade de Shiva. Este, depois do tempo em
que esteve no Himalaia, teria por muito tempo se demorado nessa cidade, sendo
por isso aqui venerado de maneira especial. Mas a cidade é teatro também de muitos
mitos e epopéias. Assim, em certos dias, com participação de todo o povo, represen-
ta-se de cor o Ramayana como grande teatro ao ar livre iramliia: "teatro de Rama").
E mais importante ainda: só com um banho no Ganges, segundo se acredita, Shiva
teria conseguido libertar-se do pecado da morte, após muitas tentativas fracassadas
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RELIGIÕES DO MUNDO
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HINDUisMO
Deus que o hindu professa como o de sua preferência: um vishnuíta quase sempre
usa riscos verticais com ou sem ponto, muitas vezes também um Vampliado, com
retas de outras cores no meio. Um shivaíta usa dois ou três riscos horizontais,
freqüentemente também com um ponto ou uma oval.
Aqui no Ganges muitos homens mandam raspar totalmente o cabelo. Com fre-
qüência essa raspagem do cabelo é pagamento de alguma promessa, muitas vezes
também um sinal de luto especial por parte dos parentes mais próximos de um
falecido. Para isso, desde tempos antigos se deixa um tufo de cabelos sem cortar,
uma trança que passou a ser obrigação para os que "nasceram duas vezes". Por quê?
O tufo de cabelos deve cobrir a fenda ou o ponto por onde o espírito entrou na
cabeça no dia do nascimento e por onde também o irá deixar no momento da
morte. Mas não é de admirar que tantos mandem cortar o cabelo justamente em
Varanasi. Pois nesta cidade de Shiva é celebrada não apenas a vida, mas também a
morte, e isso até mesmo durante a noite.
Mas na verdade as noites não são todas tristes no Ganges. Durante o dia, muitas
vezes, os fiéis ofertam à deusa Ganga flores (o odor de sua personalidade) ou frutos
(de seu trabalho). Uma vez por ano, numa noite de lua cheia de novembro, as
mulheres cujos maridos partiram para longe e não retornaram soltam luzes flutuan-
tes que descem o Ganges - para que o marido retorne, se ainda estiver vivo, ou para
que receba uma última saudação, se falecido. Um grandioso espetáculo de luzes.
Milhares, porém, vêm na velhice para Varanasi, a fim de morrerem aqui; outros
milhares, para aqui lançarem ao Ganges as cinzas de parentes; e ainda outros milha-
res para justamente aqui cremarem um cadáver. Sai cara essa cerimônia da crema-
ção, porque na Índia a madeira é rara e muito cara (se bem que não propriamente
para os ricos o sândalo), e para uma única cremação é preciso comprar cerca de
trezentos quilos de madeira seca; a isso se acrescenta uma urna para as cinzas. Quem
desde sempre é competente para toda a cerimônia é o clã dos doms.
Mas por que cremar o cadáver justamente aqui, com custos tão elevados? Hoje já
conhecemos o pano de fundo de tudo isso. É a doutrina do carma, proveniente da
Idade Média indiana, que explica por que as disposições, as chances e os destinos
dos homens são tão diferentes. Por que tanta diferença? Porque o atual destino de cada
um foi provocado por ele próprio em uma vida anterior, através de boas ou de más
ações. Assim, sempre existem na vida do homem determinadas condições e condicio-
namentos. Com isso o hindu consegue explicar por que tantas vezes o bom passa tão
mal (por causa de culpas anteriores) e o mau passa tão bem (por causa de boas ações
anteriores)! Não é claro tudo isso? As más ações levam a pessoa a renascer em uma
existência pior - em uma casta inferior, como animal, ou ao inferno (embora não
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RELIGIÕES DO MUNDO
para sempre!). As boas ações levam a renascer em uma existência melhor - em uma
casta mais elevada, até mesmo COmo brâmane ou como príncipe. Mas a meta última
é sair para sempre do ciclo dos nascimentos, do samsara.
Para o simples hindu, freqüentemente, essas especulações sobre antigos ou futu-
ros renascimentos não desempenham senão um papel secundário: para ele simples-
mente as más ações levam para o inferno, as boas ações e merecimentos levam para
o céu. A morte ou a cremação em um lugar sagrado pode de alguma maneira signi-
ficar um passo decisivo para libertar a pessoa do ciclo dos nascimentos. Acredita-se
que em Varanasi o próprio Shiva sussurra ao ouvido do moribundo um mantra
redentor, para que ele chegue diretamente ao céu e escape a um novo renascimento.
E assim, no célebre crematório do Manikarnika-Ghat, numa única noite, freqüen-
temente acontecem trinta a cinqüenta cremações de cadáveres a céu aberto. E isso
apesar de a cidade, por razões tanto de higiene quanto de economia, possuir um
grande crematório elétrico junto ao Ganges! Este é muito mais barato, mas não
pode garantir o que mais importa: que a alma vá diretamente para o céu.
Quando o cadáver, então, previamente mergulhado na água do Ganges - as mu-
lheres envolvidas em pano de cor, os homens em um pano branco -, é colocado
sobre a fogueira, os parentes ocupam os primeiros lugares ao redor dele. Então o
cônjuge, ou o filho mais velho (sempre um membro masculino da família), é convi-
dado a acender a fogueira. Para os hindus, só o estalo do crânio é o sinal certo de que
a alma se desprendeu; ela é imaginada como uma substância independente do cor-
po, que peregrina de vida em vida: desprende-se naquele mesmo ponto da cabeça
em que entrou no corpo ao nascer.
Após a cremação, primeiramente os parentes se retiram, voltando umas três horas
mais tarde para levar as cinzas. E, por vezes, eles ainda permanecem em luto em
Varanasi por vários dias. Crianças e sadhus não são queimados e sim enterrados, o
que leva alguns cientistas a concluírem que o enterro era universalmente adotado,
como parece encontrar confirmação também nos Vedas.
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HINDUíSMO
amarelo de pasta de sândalo, que o brâmane grava com o polegar ou com o indica-
dor em uma pessoa, é para abrir o "terceiro olho", o "olho da sabedoria", e trazer
conhecimento.
Também o dar esmola faz parte da peregrinação. Entre os inúmeros mendigos,
muitos já se dão por satisfeitos com um punhado de arroz. Nas ruas estreitas da
cidade velha existe um sem-número de lojas, que vendem tudo quanto é necessário
para a vida e principalmente para as oferendas. Da mesma forma que nos lugares de
peregrinação cristãos, também aqui a religião se mistura com o comércio e com lixo
kitsch.
E esse lugar de peregrinação hindu também está cheio de santos esquisitos de toda
espécie. Alguns deles, ao contrário de muitos brâmanes, atribuem grande valor a
não cortar o cabelo. Desde tempos antiqüíssimos (basta que lembremos o Sansão
bíblico), o cabelo é considerado como portador de alma e força vital, que não deve
ser desperdiçada quando é cortado de tempos em tempos. Como outras comunida-
des religiosas (por exemplo, o clero cristão ortodoxo do Oriente), também os sikhs
indianos rejeitam o corte do cabelo.
Muito prestigiados são os sanyasins, os ascetas brarnânicos, e os sadhus, ascetas
de outras castas, freqüentemente monges. Estes renunciaram a todas as alegrias
terrenas, consagrando a vida inteira ao seu deus. São inúmeros na Índia os ascetas
seminus ou inteiramente nus, os iogues, que carregam consigo suas míseras posses e
dependem de pequenas esmolas. Também em Varanasi, evidentemente, existem sa-
cerdotes locais, e mesmo uma verdadeira organização bramânico-sacerdotal. Eles
são responsáveis pelo atendimento e orientação (ponda) aos milhares de peregrinos
que falam línguas inteiramente diferentes: ensinam as fórmulas de oração necessá-
rias para a salvação da alma (mantras) e a reta execução dos ritos (pujart), diferentes
de acordo com o grupo ou com o templo religioso. Mesmo na Índia, a liturgia pode
ser bastante complicada...
TEMPLO E MESQUITA
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RELIGIÕES DO MUNDO
Mesmo não se podendo entrar no templo, como não-hindu, a gente sabe perfeita-
mente: também no centro desse templo, como em todos os templos de Shiva, en-
contra-se o !inga. Desse mito da luz, o distrito sagrado da cidade de Varanasi rece-
beu o seu nome: Cidade da Luz.
Mas uma coisa não se pode deixar de ver nesse templo: em sua imediata vizi-
nhança se encontra a branca e grande mesquita Gyanvapi, do último grão-mongol
muçulmano Aurangzep, de ingrata memória. Ao contrário do primeiro grão-mon-
gol importante do século XVI, Akbar, o Grande, que assim como seu sucessor pôs
em prática uma política de tolerância, no século XVII o sombrio e puritano
Aurangzep mandou destruir quase todos os templos hindus, inclusive em Varanasi.
Dia após dia, essa mesquita lembra aos hindus que por três séculos inteiros (desde
1194) Varanasi permaneceu sob o domínio muçulmano. Como aqui, também em
Ayodhya, o lugar onde Rama nasceu, os muçulmanos, rígidos monoteístas e mo-
ralistas, construíram uma mesquita no lugar do templo. Muitos hindus jamais se
conformaram com esse fato, como ficamos sabendo através dos recentes massa-
cres em Ayodhya.
Em condições normais, os hindus podiam realizar livremente seus múltiplos ri-
tos, os pujas: ou no templo, ou mais freqüentemente em família, porém dificilmen-
te em grandes concentrações comunitárias, como era comum no islã. Não obstante,
ao longo de toda a Idade Média, o grande desafio, às vezes uma ameaça extrema,
continuou sendo o islã. Por essa razão o desentendimento entre hindus e muçulma-
nos - no ano da independência, 1947 -levou também à divisão do subcontinente:
-a república secular da Índia e o estado islâmico do Paquistão. O Paquistão Oriental,
em 1971, se declarou independente, sob o nome de Bangladesh. A tremenda conse-
qüência foi um milhão de refugiados e centenas de milhares de mortos. E ainda hoje
muitos hindus consideram os muçulmanos da Índia e do Paquistão como seus prin-
cipais inimigos. Com dramática clareza evidencia-se aqui: não haverá paz entre as
nações sem paz entre as religiões.
84
HINDUÍSMO
"~,so.Masessamoderni4âç~9; "~nte'
. da religião.
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RELIGIÕES DO MUNDO
• Com a formação de uma elite de língua inglesa para a administração (civil service),
ciência, economia e exército e com a ajuda de uma tecnologia ocidental, cons-
truiu-se uma infra-estrutura moderna (pontes, estradas, canais, estradas de fer-
ro) e criaram-se novas instituições: imprensa, correio, telégrafo. A Índia é agora
um espaço econômico e administrativo unificado.
• Ao mesmo tempo, o sub continente indiano, extremamente heterogêneo, com
suas 15 línguas principais e com as diferentes religiões e confissões, foi unifi-
cado politicamente pela primeira vez. Criaram-se estruturas que, após a inde-
pendência, haveriam de consolidar-se na construção da maior democracia do
mundo: um sistema parlamentar democrático que, apesar de todos os trope-
ços e escândalos, funciona com uma tranqüila troca de poder através de elei-
ções (com uma liberdade e honestidade que são raridade na Ásia, e mais ainda
na África). Diferentemente da China, é admitida a liberdade de opinião e de
imprensa, os direitos básicos são respeitados e eficazmente protegidos por
meio de um sistema judiciário eficiente. Pelo menos do ponto de vista políti-
co e cultural, a democracia indiana é mais bem-sucedida do que a ditadura
chinesa.
• Pela proibição de práticas religiosas cruéis, conseguiu-se humanizar o hinduís-
mo: proibindo-se a auto-imolação voluntária das viúvas das castas superiores
(1829), as mortes rituais ainda em uso no culto de Kali (1831), os sacrifícios de
crianças e sobretudo de meninas (1823), a escravidão (1843). Passou a ser per-
mitido o segundo casamento das viúvas (1856) e introduziu-se o princípio da
igualdade das pessoas perante a lei. Além dos princípios da democracia e do
federalismo (estados confederados), a República da Índia também adota em sua
constituição o estado secular. Não se trata de secularismo, no sentido de uma
total irreligiosidade, mas sim de uma separação entre o estado e a religião e de
tolerância para com todas as religiões.
Do ponto de vista democrático, e como estado de direito, a Índia pode ser con-
siderada um perfeito modelo para a Ásia. Mas o grande senão é que, do ponto de
vista econômico e social, se dá exatamente o contrário. Terá isso alguma coisa a ver
com a religião?
Um problema central da Índia não pôde ser resolvido até hoje, nem pelos duzen-
tos anos de administração colonial britânica nem pelo governo democrático do
último meio século: a pobreza, que ontem como hoje continua um terrível flagelo,
e, de mãos dadas com a pobreza, o analfabetismo e o fatalismo das massas. A causa
principal é o crescimento da população, que nenhum governo consegue deter: nos
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HINDUÍSMO
87
RELIGiÕES DO MUNDO
Mas nas cidades, para onde as pessoas afluem em número cada vez maior, os
limites das castas se diluem cada vez mais, em conseqüência do contato sempre
maior no mundo do trabalho. Mesmo aí, porém, ainda se continua a pensar dentro
das tradicionais categorias de dominação e subordinação, que deixam a impressão
de dar a cada membro da sociedade o que lhe compete. Mas hoje é perfeitamente
possível que mesmo um brâmane viva na pobreza e ganhe a vida como cozinheiro,
ou como guia turístico, ao passo que as classes inferiores enriqueceram, por exem-
plo, através do comércio. Hoje em dia, quem geralmente se encontra em situação
econômica melhor não são os brâmanes, e sim os vaishyas, os comerciantes. Mas só
em nossos dias é que aos poucos se chegou a uma efetiva auto-organização dos sem-
casta - os dalirs, os oprimidos -, sob uma liderança política própria, que os outros
partidos devem respeitar.
A gente se interroga: Será que não se deveria favorecer aqui também uma "dita-
dura do desenvolvimento"? Não, o regime excepcional de Indira Gandhi, de 1975
a 1977, não deu certo, como é do conhecimento de todos. Mas mesmo uma libe-
ralização e uma desregulamentação não são suficientes, diante do número tão
grande de pessoas sem trabalho nem formação. O que se faz urgente e necessário
são reformas educacionais e sociais sérias, que reduzam o enorme fosso entre a elite
que fala inglês e as massas indianas e que corrijam as escandalosas condições de
vida das camadas mais baixas. Só assim é que deixarão de exercer atrativo os par-
tidos de orientação religiosa, que instrumentalizam o hinduísmo para seus objeti-
vos políticos, que têm como objetivo criar um estado hinduísta (Hindu-Rashtra)
e que ameaçam sufocar o sistema democrático. Filmes e histórias em quadrinhos
com temas muitas vezes míticos ou religiosos não são as armas mais apropriadas
contra isso.
Não. Frente à ameaça da desorientação moral e do esvaziamento espiritual será
difícil chegar-se a uma visão autocrítica e superar as mil formas de egoísmo e cor-
rupção, a uma autolimitação realista e a um esforço nacional comum, se não exis-
tirem fortes motivações éticas a partir da tradição religiosa da Índia. Mesmo líderes
indianos queixam-se de que a velha elite dos políticos, burocratas, militares e inte-
lectuais não conseguiu estabelecer padrões éticos universalmente válidos. E, infeliz-
mente, a Índia hoje quase não dispõe de lideranças espirituais da estatura do escritor
Rabindranath Tagore, dos filósofos da religião Sri Aurobindo ou Radakrishnan, ou
ainda do reformador social e ardoroso amante da verdade Mahatma Gandhi. Em si,
a formação ocidental da elite intelectual e religiosa do país não seria um fator desfa-
vorável para uma mudança básica, nem a progressiva urbanização e globalização
que em larga escala vão solapando a separação dos grupos profissionais, comum nas
aldeias e que sustenta o sistema de castas. Mas existe o perigo de a jovem elite empre-
sarial da nova classe média pensar em uma única coisa: no dinheiro.
Não deixa de ser um sinal de esperança que aquele "intocável" (casado com uma
mulher cristã!), eleito presidente com grande maioria, K. R. Narayanan, tenha ape-
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HINDUÍSMO
A Índia tem a incomparável honra de mostrar ao mundo que o homem não vive
só de pão. Os valores culturais, morais e espirituais sempre foram os esteios bási-
cos de nossa sociedade. E é precisamente aqui que a Índia se encontra diante do
seu maior desafio: o enfraquecimento destaestrutura moral e espiritual básicade
nossa vida pública. Os males do comunalismo (pensamento em termos de gru-
pos étnicos), da mentalidade de castas, da violência e sobretudo da corrupção
estão solapando a atual sociedade indiana.
A ÉTICA HINDUÍSTA
Os críticos do hinduísmo, dentro e fora da Índia, afirmam que ele possui muita
culpa na pobreza e na miséria das massas indianas. O pensamento voltado para o
além, a crença no destino, a resignação em face das injustiças sociais e sobretudo o
sistema de castas levariam à falta de responsabilidade política, à passividade social e
à indiferença face à crescente corrupção. Certamente, nisso existe muita coisa de
verdade.
Esses críticos, entretanto, não devem esquecer o que o presidente K. R. Narayanan
mencionou corno ponto positivo: que no hinduísmo, desde o início e sobretudo a
partir do movimento de renovação do século XIX, sempre existiu a vigorosa tradi-
ção de um etos, de valores, normas e atitudes éticas. E, se até nos aborígines da
Austrália é possível se encontrar um etos primordial que remonta às origens pré-
históricas do homem, com mais razão isso pode ser afirmado a respeito da grande
cultura escrita dos Vedas, que manifesta numerosos elementos de um etos (valores,
normas, virtudes), se bem que muito dispersos.
Falta no sânscrito urna palavra exata para etos (a que mais se aproxima talvez seja
achara, que significa "well-going", ou seja, "bom comportamento"). Também exis-
tem apenas poucos tratados sistemáticos de ética. Mas já no século II a.c. encon-
tramos urna primeira sistematização da ética. Provém de Patanjali, o fundador da
filosofia da ioga, de orientação muito prática. Ele ensina a libertar o espírito (atrnã
ou purusha) da matéria por meio de esforços sistemáticos para controlar as forças
físicas e psíquicas da natureza humana. O itinerário de oito níveis de seus sutras
de ioga se inicia no primeiro nível com a yama, o "autodomínio". Ele exige aqui
cinco exercícios éticos a serem realizados em pensamentos, palavras e obras, que
(em analogia à segunda tábua do Decálogo) poderíamos denominar de elementos
de um etos básico:
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RELIGIÕES DO MUNDO
• a veracidade (satya);
• o não furtar (a-steya);
• a castidade, a vida pura (brahmacharya);
• a não-cobiça, o não possuir (a-parigraha).
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HINDUíSMO
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RELIGIÕES DO MUNDO
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HINDUíSMO
nismo e as religiões orientais. Ele estava muito à frente do seu tempo quando, em
lugar dos atuais conflitos e confrontos, exigia uma harmonia entre as religiões do
Oriente e do Ocidente.
Condição para uma ética, de acordo com Vivekananda, é a orientação para Deus,
que é possível de muitas maneiras: "Toda alma é potencialmente divina. O objetivo
é manifestar essa divindade no interior, controlando a natureza exterior e interior-
mente. Faze isso por obras ou pelo culto divino ou por controle psíquico ou por
filosofia - por uma dessas formas ou por todas elas -, e sê livre. Isso é toda a religião:
doutrinas ou dogmas ou rituais ou livros ou templos, tudo é de somenos importân-
cia, é apenas detalhe."
Com isso, como bom hindu, Vivekananda voltava-se não apenas contra a sobreva-
lorização de doutrina, dogma e rito, mas defendia ao mesmo tempo a compatibilidade
e complementaridade dos três ou quatro caminhos práticos do hinduísmo. Quer o
caminho da meditação (ioga) ou o do conhecimento (jnana), quer o das obras (carma)
ou o do amor a Deus (bhaktt.), todos eles levam ao mesmo alvo, ao Deus único.
Essa concepção também determina em Vivekananda a atitude para com as outras
religiões: "Tenho orgulho de pertencer a uma religião", disse Vivekananda perante
os delegados, "que ensinou ao mundo a tolerância e a aceitação universal. Nós não
só acreditamos na tolerância universal, mas admitimos que todas as religiões são
verdadeiras".
Na verdade, ao mesmo tempo, a partir de sua perspectiva pessoal e interior, ele
entende o hinduísmo como a forma mais elevada, como a quintessência da verdadeira
religiosidade, o ideal da religião. Isso, naturalmente, os cristãos também haveriam de
exigir à sua maneira para o cristianismo, a partir de sua própria perspectiva interior
(ou os muçulmanos para o islã). Mas será que Vivekananda e Ramakrishna desejariam
o endeusamento que lhes é feito aqui em Belur Math e que também para muitos
hindus apresenta traços desagradáveis? Mas para mim o mais importante agora é:
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RELIGiÕES DO MUNDO
Chegamos ao fim da longa viagem, que nos levou das nascentes até a desemboca-
dura do Ganges, para a qual antigamente os peregrinos levavam cerca de seis anos de
ida e volta. A ilha de Gangasagar, no delta do Ganges (setenta quilômetros ao sul de
Calcutá) é considerada como a foz do Ganges, e por isso o templo dessa ilha é
particularmente sagrado. Mais do que à lenda desse lugar, no entanto, eu me sinto
ligado à "grande alma", ao "Mahatma" Gandhi que, com exemplar coragem, levou
adiante a renovação social, política e religiosa iniciada por seus antecessores: pela
agitação política com que mobilizou as massas, sem violência e muitas vezes na
desobediência civil.
Mas quem é Gandhi hoje? Canonizado, e dessa maneira posto de lado? O pró-
prio Gandhi não queria ser nenhum santo, mas sim alguém que busca a verdade,
para quem o que importa não é um sistema dogmático ou moral, mas sim uma
"adesão" (agraha) à "verdade" (satya), e, com isso, uma atitude ética. Sobretudo ele
queria uma Índia onde todas as religiões convivessem pacificamente. Onde o Deus
dos hindus (Ram) não fosse lançado contra o Deus dos muçulmanos (Rahim), mas
fosse um único: Ram-Rahirn. Onde hindus e muçulmanos, portanto, fossem ir-
mãos e todos juntos combatessem a desigualdade social, a exploração econômica e a
corrupção generalizada.
Gandhi orientou-se pelos princípios éticos não só da Bhagavadgita, mas também
do Sermão da Montanha de Jesus. Ele denunciou os sete pecados sociais modernos
e, com isso, apontou para um hinduísmo pós-moderno (paradigma VI). Estes são,
de acordo com ele, tais pecados:
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HINDUÍSMO
E, numa época em que a ele, o grande defensor dos direitos humanos, parecia que
mesmo na Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas de
1948 se falava por demais unilateralmente dos direitos humanos e se falava de me-
nos dos deveres humanos, ele clama à consciência do mundo: "O Ganges dos direi-
tos nasce no Himalaia dos deveres."
Mas também para o Ganges a meta é o mar, para onde correm todos os rios. A meta
de todas as religiões é o único Deus, a quem por diferentes caminhos elas conduzem.
É o que muitos hindus aprendem ainda como crianças, com estes versos:
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Religiões chinesas
A dança dos leões - algo que poderia acontecer em qualquer lugar da China. As
danças dos leões existem desde o tempo dos imperadores Han, no começo da nossa
era. De início, em verdade, quase não existiam leões verdadeiros na China; os pri-
meiros foram enviados aos imperadores chineses pelos soberanos das regiões do
atual Irã e Afeganistão.
Circula entre o povo a fábula de que, em tempos remotos, chegou à China um
monstro (nian) que devorava homens e animais. Nem o tigre nem a raposa puderam
ajudar. Só um leão conseguiu ferir e expulsar o monstro, que, no entanto, prometeu
estar de volta dali a um ano. Mas então o leão já estava ocupado em guardar a entrada
do palácio imperial. As pessoas tiveram, elas próprias, que dar um jeito. Fizeram uma
imagem do leão, com pano e varas de bambu, e expulsaram o monstro para sempre.
Desde então se realiza a dança dos leões, sobretudo na véspera do Ano Novo, a mais
importante festa dos chineses. Os leões devem afugentar o mal por um ano e trazer
sorte, muitas vezes simbolizada por uma grande pérola com a qual o leão brinca.
Mas nossos leões também dançam na cidade dos leões: em "Singa Pura", onde
também não existiram leões verdadeiros. No entanto, o poderoso leão que controla
hoje o porto de Cingapura, o segundo maior porto do mundo, certamente simboli-
za vigor econômico e poder político. Estrategicamente situado, este estado-ilha,
como todos sabem, é a encruzilhada do Sudeste Asiático. Contando com apenas 23
quilômetros de largura (de norte a sul) e 42 de comprimento (de leste a oeste),
Cingapura.rcorn algumas ilhas vizinhas, realizou um milagre econômico sem para-
lelo: em apenas uma geração transformou-se de uma feia e pobre cidade caótica,
infestada de malária, em uma metrópole moderna, rica, limpa e verde. Os três mi-
lhões de habitantes possuem um dos mais elevados produtos internos brutos do
mundo e dispõem do sétimo maior aeroporto.
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RELIGIÃO CHINESA
Um fato paradoxal e, não obstante, típico de Cingapura: sob as arcadas dos altos
blocos residenciais, local onde a maioria das pessoas têm que viver, é perfeitamente
possível assistirmos a celebrações chinesas dos mortos, realizadas de modo total-
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RELIGIÕES DO MUNDO
mente tradicional. Para os chineses nem tudo se acaba com a morte. A morte é a
passagem para uma vida diferente, e as relações entre os vivos e os mortos continuam
a existir.
Para os chineses, o conceito de família também se estende, em essência, aos ante-
passados e ao tempo anterior. A piedade (xiao) filial visa à reciprocidade e vigora
para além da morte. Assim, desde tempos antiqüíssimos, a veneração dos mortos
ocupa o centro da piedade chinesa. Não poder mais se comunicar com os mortos-
para muitos chineses essa foi e continua a ser a razão mais importante para não se
converterem ao cristianismo.
De acordo com a posição social e'com as posses do falecido, o enterro é celebrado
com menor ou maior pompa. Um aspecto importante, aqui, é o lugar exato. Só
assim o espírito do morto, ao voltar, encontrará as ofertas de sua família. Isso pode
ocasionar desentendimentos entre famílias pertencentes a religiões diferentes. Quando
uma família malaia, por exemplo, já houver reservado com antecedência o local
para um casamento, e depois os chineses quiserem celebrar nesse mesmo lacaio seu
culto aos mortos, nós nos encontramos diante de um problema não apenas de data,
mas também de rito: os malaios haveriam de considerar esse local impuro e total-
mente inadequado para um casamento. A administração de Cingapura, no entanto,
busca estabelecer regras para conflitos interculturais desse tipo.
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RELIGIÃO CHINESA
espírito do ancestral, o que pode ficar bastante dispendioso. Por isso aconselha-se
também a que não se queimem coisas excessivamente caras.
Por fim o esquife é levado, e os parentes acompanham-no por uma parte do
caminho. O enterro ou a incineração é feita no cemitério chinês. Chama atenção o
fato de não existir mistura de religiões no lugar do último repouso. De qualquer
maneira, os malaios, como muçulmanos, não precisam de caixão. Eles simplesmen-
te envolvem o morto com panos brancos e, se possível, enterram-no ainda no mes-
mo dia, enquanto os chineses muitas vezessó enterram seus mortos depois de meri-
tórias celebrações, que podem se estender por vários dias.
Após o enterro, o retrato do falecido ou da falecida é colocado sobre o altar da casa,
ao lado dos deuses domésticos. Dessa forma, o morto assume seu lugar como ances-
tral da família. Ancestrais e deuses são honrados e venerados com incenso, gestos e
invocações. Afinal de contas, em certa medida as realizações da geração presente se
fundamentam nas boas ações das gerações passadas. Não é sem razão que as home-
nagens aos antepassados também ocorrem em outras religiões, se bem que não com
a mesma intensidade que entre os chineses. Em tudo isso as formas tradicionais -
não sem dificuldades - são muitas vezes adaptadas às modernas condições de vida.
99
RELIGiÕES DO MUNDO
100
RELIGIÃO CHINESA
palavras proferidas por Lee Kuan Yew pouco antes de deixar o cargo de primeiro
ministro, em 1990 - ele que e~ 1959 levou Cingapura à autonomia com relação à
Inglaterra e em 1965, à independência e ao vertiginoso crescimento econômico.
101
RELIGIÕES DO MUNDO
Tudo isso demonstra que, aqueles que nessa supermoderna metrópole comercial
consideram as pessoas unicamente do ponto de vista econômico-tecnológica-políti-
co, estarão enxergando apenas uma parte da realidade. As pessoas querem ser com-
preendidas também a partir do aspecto cultural e filosófico-ético-religioso. Símbolo
disso é o templo de Yue Hai Qing, no centro comercial de Cingapura.
102
RELIGIÃO CHINESA
Uma das mais belas paisagens fluviais do mundo: Guilin, na região meridional de
Guangxi. O rio Li corre tranqüilo por entre íngremes e verdes elevações calcárias em
forma de cone, que se espelham em suas águas. Trezentos milhões de anos atrás, um
vasto mar se estendia por essa região. O calcário das conchas depositou-se. Milênios
de erosão terminaram por criar essas formas bizarras dos montes, com um sem-
número de cavernas. A chuva tropical os tingiu de verde.
\03
RELIGIÕES DO MUNDO
Desde sempre todos esses montes foram ocasião para muitas lendas e inspiração
para os pintores chineses. Por exemplo, o monte Tromba de Elefante (xiangbi shan) ,
ou, em meio à cidade, o monte da Beleza Extraordinária (duxiufeng), ou, ao norte
da cidade, o monte Quebra-Mar (jubo shan). Inúmeros os quadros e inúmeros os
versos nos quais é celebrada a beleza do Guilin. Para muitos, essa paisagem espeta-
cular é considerada como tipicamente chinesa. Mas é totalmente diferente das pai-
sagens montanhosas comuns e muito distante das fecundas planícies e metrópoles
do Oriente, a 2 200 quilômetros do centro político de Pequim -:- uma distância mais
ou menos como a que vai de Nápoles a Copenhague.
A China é, por assim dizer, um continente em si mesma: uma gigantesca massa
de terra, quase trinta vezes maior do que a Alemanha, dois terços da qual são mon-
tanhosos. Isolada em grande parte por desertos, estepes e montanhas, com toda a
naturalidade a China entendeu-se como o império do meio (zhongguo), como "tudo
quanto existe debaixo do céu" (tianxia): o centro do mundo por excelência! Ao
ocidente, a imensa barreira do Himalaia; ao norte, um amplo cinturão de estepes
desérticas; ao leste e ao sul, o Oceano Pacífico. Três caudais atravessam o país de
oeste para leste:
104
REUGIAo CHINESA
Já nas cerâmicas do período neolítico, entre 5000 e 4000 a.c., são encontrados
pequenos sinais gráficos, de onde evoluiu a escrita chinesa. É interessante, por exem-
plo, o sinal tian, para "céu", representado por um homem grande com duas pernas
- assim na dinastia Shang do segundo milênio a.c. O mesmo sinal, apenas com
ligeiras modificações, é encontrado na época clássica dos imperadores Han, que
governaram o país na época do império romano. O mesmo sinal de escrita pode ser
reproduzido pelos diferentes povos com palavras muito diferentes. Assim, ainda
hoje somos capazes de compreender sinais de escrita gravados dois mil anos atrás.
De fato, mesmo na escrita de hoje eles possuem ainda o mesmo significado.
Com auxílio da escrita chinesa, que nos últimos dois mil anos não passou por
muitas modificações, foi criado um enorme espaço "chinês" de Pyongyang até Taipé
e de Turfan até Tóquio. Diferentemente de qualquer outra escrita alfabetizada, os
sinais expressam sentidos, idéias de ordem e de valor, determinados substancial-
mente pela tradição confuciana, que tem mais de dois mil anos de idade.
Não foi a retórica, como entre os gregos e romanos, mas sim a arte da escrita que
desde bem cedo foi considerada pelos chineses como sinal de formação elevada.
Como arte, ela é considerada bem acima da pintura. Como o espírito e o caráter de
uma pessoa se expressam diretamente através da letra, eles vêem na caligrafia a mais
elevada forma de todas as artes.
105
RELIGIÕES DO MUNDO
dos escritos, que datam desde a idade da pedra mais recente (por volta de 5000 a.C.)
até a gloriosa dinastia Han. Seja o que for que se venha a admitir a respeito de uma
influência de povos orientais antigos e, sobretudo, de povos indo-europeus (no to-
cante ao trabalho com o bronze, à criação de cavalos e aos carros de combate), uma
coisa é certa: tanto a escrita quanto os instrumentos de bronze (armas e objetos de
culto) manifestam, desde o início, formas e motivos tipicamente chineses.
A ciência ocidental mais antiga admitia que a primitiva sociedade chinesa não era
propriamente uma sociedade religiosa. Mas, com freqüência, a China dos sinólogos
não estava de acordo com a China dos chineses. Primeiro, os estudos mais antigos
situaram o início da história chinesa muito tarde e, em segundo lugar, com excesso de
racionalismo restringiram a tradição chinesa a determinados escritos filosóficos. A
pesquisa mais recente nos apresenta um quadro bem mais diferenciado da China:
Não resta dúvida de que a sociedade chinesa primitiva era de caráter religioso.
Porém sua mitologia foi preservada apenas de uma forma fragmentária (por exem-
plo, o mito do ovo do mundo, de onde foram criados o céu e a terra). Mas suas
práticas divinatórias e seus cultos sacrificiais, que se encontram bem documentados,
persistiram até a deposição do último imperador. Recuando cinco mil anos para o
passado, até os primórdios da história chinesa, encontramos uma sociedade onde o
xamanismo, os adivinhos e o culto aos antepassados, e com eles a dimensão trans-
cendente e espiritual, perpassam a vida de cada dia. A preocupação central era cons-
tituída não pelo estabelecimento de um estado com limites bem determinados, mas
sim pelo fator religioso-ritual. A cultura chinesa original é, portanto, uma cultura
xamânica marcada pela religião (paradigma I), em cujo centro se encontram a vene-
ração dos ancestrais e os ritos.
106
RELIGIÃO CHINESA
XAMÃS E ADIVINHOS
Mas o que é um xamã? Xamã é uma palavra dos tungues, povos da Sibéria central
e oriental e também do noroeste da China, denominados o grupo lingüístico manchu-
tungue. Xamã significa alguém que está "excitado", "agitado" ou "exaltado". O xamã,
assim, é uma pessoa - homem ou mulher -, possuída pelo divino, possuída pelos
espíritos e que, ao mesmo tempo, domina os espíritos, ou, em determinadas cir-
cunstâncias, pode cair em transe controlado. Os xamãs podem funcionar como
simples intermediários dos espíritos, como curandeiros, exorcistas, intérpretes de
sonhos ou fazedores de chuva. Diz-se que eles são capazes de trazer de volta as almas
dos doentes ou dos mortos, ou mesmo de se deslocarem pelo ar. Na China, esse
xamanismo não é apenas um fenômeno do passado. Ainda hoje continua vivo nos
deuses e nas práticas da religião taoísta, em certas formas do budismo e na nova
religião popular chinesa, que surgiu da fusão de ambos.
Desde tempos remotíssimos existe na China a arte divinatória e ainda hoje pode
ser encontrada na rua, abertamente. Quem não gostaria de conhecer seu futuro,
mesmo que apenas lido na mão? Já as inscrições mais antigas encontradas na China,
muitas vezes muito curtas, freqüentemente contêm textos divinatórios, Tais inscri-
ções - ao contrário do que ocorre na Mesopotâmia - são de natureza não tanto
econômica, mas sim sagrada e, freqüentemente, também de natureza mágica: são
empregadas para buscar uma viva comunicação com os espíritos, com os ancestrais
e com os deuses, para relatar aos antepassados os sacrifícios e para relacionar as
oferendas nos túmulos. Na China o homem foi visto, desde o início, como um ser
vivo cheio de espírito ou de espíritos.
E como se dá a adivinhação na China antiga? Menos pela astrologia do que pelo
uso de ossos oraculares de carcaças de tartarugas ou omoplatas de gado. Os testemu-
nhos disso são encontrados sobretudo no início da dinastia Shang (cerca de 1766 a
1045 a.C,}, com a capital Anyang, da qual não foram conservados templos nem
palácios, mas sim - encontramo-nos aqui no apogeu da idade do bronze - utensílios
de culto, armas e instrumentos musicais, sobretudo sinos. Mas antes de tudo foram
encontrados cerca de duzentos mil fragmentos de ossos com inscrições. A partir do
neolítico inferior, no norte da China esses ossos são expostos ao fogo e aquecidos,
até surgirem fraturas e riscos, que então são interpretados. Como pode isso ser ima-
ginado?
Os ossos de animais são cuidadosamente preparados; os animais mortos, admi-
te-se, possuem forças especiais, capazes de estabelecer o contato com os ancestrais,
com os espíritos e com os deuses no outro mundo. A pergunta dirigida aos espíri-
tos ancestrais ou aos deuses - e que é referente à guerra, à caça, ao tempo, à co-
lheita, à viagem, à família - é gravada na parte da frente. Na parte de trás fazem-
se escavações e, em seguida, são pressionadas pontas incandescentes de madeira,
de chifre ou de metal. Aparecem riscos e fendas. Agora o rei, ou o intérprete do
lO?
RELIGiÕES DO l\lUNDO
oráculo, pode ler a resposta na parte da frente. Muitas vezes esta é também escrita
nos ossos. Foram encontrados cerca de dois mil a três mil diferentes sinais de
escrita.
A leitura dos oráculos, assim como a astrologia, não é uma questão privada, e
sim um assunto do soberano. Normalmente o ritual é realizado na corte, muitas
vezes associado a sacrifícios de animais. Envolve também música, dança, transe e
muito vinho, evidentemente: são numerosos os artísticos vasos de bronze dos ri-
tuais! O rei (wang), soberano político e chefe militar, muitas vezes atua também
como supremo xarnã (wu) e sacerdote (zhu), o mais alto mediador entre o divino
e o humano.
Já os antigos reis eram chamados de filhos do céu. Porém, ao contrário dos sobe-
ranos do Egito ou do Japão, eles jamais reivindicaram uma natureza divina, jamais
se proclamaram deuses. Mas mesmo assim possuem poderes ilimitados. Seja como
for, já na antiga China não existe separação entre realeza e sacerdócio, não existe o
dualismo de política e religião, não existe uma "igreja" em oposição ao estado. Com
isso, prefigura-se a absolutização do poder imperial. Aqui não existe, àpriori, muita
necessidade de uma teoria evoluída do estado ou de um direito que esteja acima de
todos, nem também de um senado que ajude a governar ou de uma magistratura
independente.
A vida é inteiramente dominada pelos rituais de sacrifícios e pela arte divinatória:
reis e nobres não querem tomar decisões nos assuntos de estado ou em sua vida
particular sem antes consultar os médiuns divinatórios, os espíritos ancestrais ou os
deuses. Do céu, dos poderes invisíveis, espera-se proteção e bênção. Presume-se que
desde um estágio inicial eram usados livros divinatórios, alguns dos quais foram
conservados. Por exemplo, o Livro dasmutações (yijing), já bem cedo filosoficamen-
te interpretado, cujos 64 símbolos oraculares ainda hoje são consultados por adivi-
nhos e geomantes.
Certas inscrições rituais em bronze, um pouco mais recentes, do início da di-
nastia Zhou (1045-249 a.C}, com a nova capital Xi'an, confirmam os achados da
dinastia Shang. Na historiografia chinesa, os Zhou são considerados mais huma-
nos do que os Shang; sob seu governo, a adivinhação com auxílio de talos de
aquiléia tornou-se popular. Esse pano de fundo religioso pode ter vigorado tam-
bém para a dinastia Xia, a primeira de todas as dinastias (por volta dos séculos
XXI a XVIII a.c.), à qual hoje, ao contrário dos míticos cinco imperadores, tam-
bém é atribuído um caráter histórico (achados de Editou). Na era primitiva, de
qualquer forma, temos que contar com um grande número de culturas com carac-
terísticas regionais.
lOS
RELIGIÃO CHINESA
Em nenhum lugar se está mais perto do céu do que sobre um monte sagrado
(shan). E, para os chineses, monte algum é mais sagrado do que o mítico Taishan,
relacionado com a criação do mundo. Pelo menos uma vez na vida, a maioria dos
imperadores terá subido a esse monte sagrado para ali sacrificar ao céu e dessa ma-
neira fazer jus ao título de Filho do Céu. O grandioso templo - mais de oitocentas
construções sagradas ao longo do tempo - faz parte, juntamente com o palácio
imperial de Pequim, das mais importantes construções da arquitetura clássica. Hoje
é fácil subir ao Taishan, e milhares de pessoas o fazem todos os dias.
As fitinhas vermelhas amarradas aos arbustos são pedidos de felicidade. As pe-
dras, colocadas sobre os galhos, devem livrar as pessoas das preocupações. Usos
109
RELIGIÕES DO MUNDO
como esses são encontrados em todas as culturas da terra e não devem ser leviana-
mente abolidos como práticà obsoleta de uma civilização superada.
Até hoje não se extinguiu o desejo do homem de saber o que o "destino" lhe reserva:
conhecer o futuro, o sentido da própria vida, certas circunstâncias ocultas da vida, por
exemplo, causas desconhecidas de doenças ou responsáveis que não são identificados.
Inúmeros são os meios para, por assim dizer, se participar do saber dos deuses: quer,
como na China antiga, por meio dos ossosou carcaças de tartarugas, ramos de aquiléias
e moedas; quer, como na antiga Roma, por meio do vôo dos pássaros e das entranhas
dos animais sacrificados; quer ainda, como hoje em toda a parte, simplesmente por
meio das linhas da mão ou de constelações de cartas ou de estrelas. Tudo isso pouco
tem a ver com as leis racionais e lógicasda ciência, mas tem muito a ver com a "lógicà'
pré-científica no próprio coração do "crente". De bom grado e com alegria este aceita
a possibilidade de um conhecimento extra-sensorial do futuro e das ligações ocultas e
está disposto a observar determinadas regras.
Oferendas de sacrifício e curas maravilhosas existem também no cristianismo,
justamente na forma que - de uma maneira mais ou menos orgânica - é chamada
hoje de religião popular. O que, entretanto, não significa que a pessoa esclarecida
tenha que aceitar tudo quanto pertence a esse mundo bizarro da crença popular.
Pelo contrário, precisamente em benefício da credibilidade da religião, convém
que se faça um discernimento racional dos "espíriros" (e não um ceticismo
racionalista). Discernir, por exemplo, entre veneração e culto dos ancestrais (manismo),
entre sacrifícios materiais e espirituais, mas, basicamente, também entre religião e
superstição.
DIFERENÇA ENTRE·RELlGIÃOE··SO~ERSTIÇÃO
110
RELIGIÃO CHINESA
determinar o único local favorável para um móvel, para uma casa, ou mesmo
para um banco, de acordo com as complicadas regras da chamada "ciência do
vento e da água" (feng shui, geomancia e astrologia), como sendo o lugar que
decidirá a sorte ou o azar, o lucro ou o prejuízo ..
Tudo isso é superstição. Mas não é superstição se em minha vida eu me sinto
comprometido com um poder, com uma autoridade ou com ma ordem divina.
Enão é superstjção,. porta~to,qu.ahdo .um é h i ' .:.;. ·.~I1~a
respeito pelo ,céu como símbolo de Claridade es~pâ' à' .
.minha compreensão, e quando, a partirdesse pód ,vontade .
do céu" ou a grande ordem do Tao.
De acordo com a tradição, os primeiros reis Zhou eram chefes humanitários. Pare-
ce que eles cumpriam conscienciosamente seus deveres para com o céu, para com os
ancestrais e para com o povo. O mesmo não se pode afirmar com respeito a seus
sucessores. A estes faltou a sabedoria política de seus antepassados. O resultado foi um
período de instabilidade política: o império é abalado por ataques de bárbaros. Em
conseqüência disso, a capital é transferida para o leste, para Luoyang. Mas, como
imperadores, estes "zhou orientais" possuem uma soberania apenas de nome. Os prín-
cipes feudais começam a combater seu governo, destruindo a unidade da China. Se tal
fato já não pode ser documentado diretamente, faz-se pelo menos representar simbo-
licamente por cenas estilizadas do teatro chinês de sombras e da Ópera de Pequim (a
mais conhecida das mais de trezentas formas de teatro chinês):
111
RELIGiÕES DO MUNDO
Só na China pode existir uma coisa destas: pai e filho, a 76ª e 77ª geração de uma
única e mesma família, aliás a mais célebre do país, com dois mil e quinhentos anos
de idade: a família de Confúcio, o sábio chinês por excelência; seu singelo túmulo é
visitado por um sem-número de pessoas em Qufu, cem quilômetros ao sul de Jinan
(Shandong), lugar onde ele nasceu e morreu.
Na verdade o tipo característico das religiões sapienciais no Extremo Oriente é o
sábio. Completamente diferente dele é o místico, tipo característico das religiões
indianas: hinduísmo e budismo. E diferente, ainda, o profeta, tipo característico das
três religiões proféticas oriundas do Oriente Próximo: judaísmo, cristianismo e is-
lamismo.
Com seus cerca de cinco mil anos de história, a China possui a cultura há mais
tempo existente em nosso planeta. Onde estão as culturas e religiões da Mesopotâ-
mia, dos sumérios, dos babilônios e dos assírios? Sumiram, assim como a dos egíp-
cios, dos gregos e dos romanos. Mas a cultura chinesa conservou-se, não obstante
todas as rupturas. As religiões chinesas, ao lado das religiões originárias do Orien-
te Próximo e da Índia, constituem mesmo uma terceira corrente religiosa autôno-
ma e de igual valor histórico-cultural, que terminou se espalhando para a Coréia
e Japão, para o Vietnã e Taiwan. Falar-se em "Ocidente e Oriente" é tão superficial e
ambíguo quanto falar em "valores ocidentais e asiáticos". Isto qualquer viajante é
capaz de verificar de imediato: Índia e China, Ásia meridional e Ásia oriental -
começando pela escrita e literatura, passando pela arte, dança e vestimenta e che-
. gando até a mentalidade das pessoas - são dois mundos diferentes. Frente ao di-
fundido misticismo e às mitologias indianas, a cultura chinesa é marcada com muito
112
RELIGIÃO CHINESA
mais profundidade por uma sóbria racionalidade, como também pelo pensamento
histórico.
Isso não deve ser confundido com racionalismo e historicismo. Não, o melhor é
dizer que as religiões chinesas possuem um caráter sapiencial. E, embora a etnologia
e a ciência das religiões sempre tenham tido dificuldades para determinar o que é
"tipicamente chinês", não podemos esquecer que o valor atribuído à velhice e à
sabedoria representa uma constante na cultura chinesa.
Nos textos clássicos, a palavra sheng refere-se a uma pessoa sábia e virtuosa, em
geral a um soberano de um passado distante. Nos ossos oraculares, o sinal de escrita
correspondente consiste em uma orelha grande e uma boca pequena, denotando
assim um ouvido apurado, talvez para as vozes dos espíritos, e a transmissão do que
foi ouvido. São considerados sábios os heróis da era mística da China: os Três Subli-
mes e os Cinco Imperadores Divinos, os heróis da cultura ou inventores primor-
diais, como o Grande Yu, o Imperador Amarelo, Yao ou Shun. Sábios são conside-
rados também os antigos reis da dinastia Shang e do início da dinastia Zhou, com
seus ministros. E como sábios, agora, em sentido verdadeiro e próprio, destacam-se
os mestres da sabedoria.
HUMANISMO ÉTICO
113
RELIGIÕES DO MUNDO
Quem vem a obter maior êxito entre as "cem escolas de pensadores" da nova faixa
instruída dessa época é alguém que só mais tarde haveria de ser guindado à condição
de sábio chinês e que se encontra sepultado no tranqüilo cemitério da família, rodeado
por um muro de dez quilômetros: Kong Fuzi (cerca de 551 a 479 a.C}, mestre
Kong, no Ocidente conhecido sob a forma latinizada de Confúcio.
Os contornos de sua aparência, tal como transmitida nos monumentos de pedra,
podem não ser históricos. Porém os traços básicos e os contornos de sua vida e de
suas doutrinas são historicamente bem fundamentados: proveniente de uma condi-
ção de pobreza e originário de uma família nobre decadente, esse homem viajou
muito pelos estados feudais de então. Mas buscou em vão um soberano que preci-
sasse de seus conselhos. Só por um ano, já aos cinqüenta de idade, ele ocupa uma
posição oficial, algo assim como um "ministro", mais provavelmente um supervisor.
Mas, a partir de então, ele passa a se dedicar inteiramente à orientação de seus
discípulos, ocasionalmente mantendo diálogos com soberanos ou ministros. Não se
ocupa com práticas divinatórias nem com magia, mas sim com música, poesia e
com o estudo dos antigos e veneráveis escritos.
Sua doutrina permaneceu viva. Para ele, as decisões oraculares (paradigma I) são
menos importantes do que as decisões éticas das pessoas (paradigma 11). Ele deseja
despertar não as forças mágicas da natureza, mas sim as forças morais do homem.
O perfil espiritual de Confúcio é inconfundível, e podemos reconhecê-lo a partir
dos Analectos (lun yu: "palavras recolhidas"), escritos por seus discípulos. Trata-se de
uma coleção relativamente curta de ditos isolados, episódios e conversas, que trans-
mitem não uma explicação especulativa do mundo (como nos pré-socráticos), mas
sim uma sabedoria inteiramente prática, baseada na experiência. A filosofia chinesa
é, desde o início, caracterizada por muito realismo, por uma forma concreta de
argumentação e pela aversão às deduções abstratas. Tudo isso nos traz à lembrança
um outro "mestre".
Assim como Jesus de Nazaré, quase meio milênio mais tarde, Confúcio vive tam-
bém em uma época de crise social do seu povo. Também ele tenta, como "doutor" e
"mestre", responder a essa crise através de sua mensagem. Também ele, sem que sua
própria família desempenhe nenhum papel, reúne em torno de si discípulos cuja
procedência social não é importante e que devem passar adiante suas visões.
Outros paralelos com Jesus se impõem. Também Confúcio não é nenhum asceta
ou monge que se retire do mundo; pelo contrário, ele atua em meio a esta vida. Não
é também nenhum místico que pratique auto-análise psicológica e ensine graus de
114
RELIGIÃO CHINESA
meditação: não busca o êxtase nem o nirvana. Tampouco é um metafísico que espe-
cule sobre Deus, sobre os fundãmentos do ser e sobre as últimas questões em geral.
Também jamais se referiu a si próprio como "Deus" ou como "filho de Deus". Em
lugar de veneração, ele exige de seus discípulos que o imitem na prática. Mas, por
outro lado, não é nenhum cético ou racionalista, que reduza todo pensamento à
racionalidade. Participa das idéias religiosas tradicionais que hoje por vezes nos pa-
recem estranhas, como a crença nos espíritos, presságios e sacrifícios. O mais impor-
tante, porém, é que ele também vive o que ensina.
Confúcio confronta-se com a ordem tradicional de uma forma inteiramente práti-
ca. E a interpreta de forma crítica, contra o conformismo exterior e a hipocrisia, bus-
cando uma atitude interior e uma responsabilidade pessoal. Também Confúcio não é,
como freqüentemente se tem afirmado, um mestre virtuoso ingênuo e piedoso, que
apenas prega a harmonia e o conformismo, dessa forma contribuindo para a estabili-
zação do sistema. Pelo contrário, ele defende uma ética muito individual e pessoal,
que se traduz em exigências morais claras. "Quando todos censuram, é necessário
analisar; quando todos elogiam é necessário também analisar" (Analectos 15,27). É
preciso até opor-se aos detentores do poder e, em certas circunstâncias, até mesmo
renunciar ao cargo, quando essas circunstâncias se afastam do reto caminho (Tao),
115
RELIGIÕES DO MUNDO
frente à grande tradição antiga. Dessa maneira, ele encontrará a harmonia consigo
mesmo e com o mundo. Uma ética que busca conciliar uma exigência moral univer-
sal com as tradições da cultura chinesa.
Quando se anda por Qufu, pela residência da família Kong, sempre de novo
reconstruída e reformada, e que na era imperial possuía dignidade de residência de
príncipe, a gente se interroga: Teria Confúcio desejado substituir a religião pela
moral? Teria ele realmente tido um horizonte religioso? Sem dúvida alguma, mas
esse horizonte é ao extremo diferente do horizonte religioso do judeu Jesus de Nazaré.
Confúcio afastou as primitivas figuras cheias de vida dos deuses da antiga China.
Nos Analectos, o "Senhor das alturas" (shang di) não é mencionado a não ser uma
vez. Mas o que sempre lhe está presente é o "céu" (tian), que ele entende como um
poder eficaz, como ordem, lei, essência. É o céu que está acima de tudo e cuja "vonta-
de" o homem, e especialmente o soberano, tem que compreender e cumprir: ''Aquele
que peca contra o céu não tem ninguém a quem possa orar" (Analectos 3,13).
Nos Analectos, a palavra tian é encontrada 18 vezes, sempre em conexão com a
vontade, com a ação e com a emoção. Também nos foi transmitida uma palavra
muito pessoal do sábio, quando ainda um desconhecido: ''Ah, não existe ninguém
que me conheça. Não murmuro contra o céu nem reclamo contra os homens. Bus-
co o conhecimento aqui embaixo, mas procuro subir àquele que se encontra lá em
cima. Só há um que me conhece: o céu" (14,37).
116
RELIGIÃO CHINESA
doria humanitária, cuja doutrina, entretanto, só vem a se impor muito tempo após
a sua morte. Uma visão racional do mundo, concentrada sobre o aquém. Ao ser
interrogado sobre o que é a sabedoria, mestre Kong responde: "Dedicar-se às suas
obrigações para com os homens, respeitar os demônios e os deuses e permanecer
longe deles, a isso é que podemos chamar de sabedoria" (6,20). Por conseguinte, os
seres fabulosos podem continuar sobre os telhados. Mais importantes, porém, são as
relações entre os homens. Também a arquitetura chinesa clássica expressa medidas
humanamente harmônicas: nada tende para as alturas, nenhuma construção ocupa
o centro, o todo precisa irradiar harmonia.
Respeitando o céu, portanto, mas conservando distância e reserva em relação aos
deuses e aos demônios, duas coisas são exigidas por Confúcio: renovar a constitui-
ção interior do indivíduo e, como conseqüência, também a constituição exterior do
estado! Em concreto isso tende ao restabelecimento e à consolidação ético-política
de um governo amigo do homem e de uma ordem e harmonia verdadeiramente
sociais na família e no Estado: "Quando se governa por decretos e se organiza por
castigos, o povo se retrai e não se torna consciente. Quando é dirigido pela virtude
e organizado pela moral, o povo tem consciência e alcança (o bem)" (2,3).
Perguntaram a Confúcio: "Existe uma palavra que possa servir de norma de ação
para a vida inteira?" Ele respondeu: "É a palavra 'reciprocidade' (shu)." Pois huma-
nidade significa, em concreto, cuidado e tolerância mútua: shu - para Confúcio
uma forma abreviada daquela Regra Áurea, que ele de imediato acrescenta: "O que
não desejas para ti mesmo, isso também não o faças aos outros" (15,24). Meio
milênio, portanto, antes do Sermão da Montanha, Confúcio prega a norma de con-
duta, inteiramente universal, que lá é formulada positivamente: "Tudo quanto quereis
que os homens vos façam, fazei-o também a eles!" (Mt 7,12).
Espantoso: no confucionismo, assim como no cristianismo, a ética da humani-
dade culmina no amor ao próximo. Humanidade (ren) significa, para Confúcio,
"amar as pessoas" (12,22). É certo que nele o amor ao próximo permanece total-
mente orientado pelo sentimento natural e pelos laços familiares e naturais, escalonado
segundo a proximidade social (diferentemente do sábio Mo Di, que exige um "amor
universal" por considerações de utilidade - porque isso compensa!).
Para Confúcio, o próximo é em primeiro lugar o membro da família. E Confúcio
não se inibe de exigir também que os chineses (ou seja, os Zhou) dominem sobre as
tribos "bárbaras", permitindo-lhes apenas o estilo de vida chinês. Mas também na
doutrina de Confúcio o amor ao próximo não se restringe à família em sentido
estrito; ele passa dos próprios filhos para os filhos, pais e idosos dos outros. "Assim,
dentro dos quatro mares, todos os homens são irmãos" (12,5). Retangular e rodeada
117
RELIGIÕES DO MUNDO
de mares - era assim que em rempos antigos imaginava-se a terra e, sobre ela, um
céu redondo de nove estágios:
118
RELIGIÃO CHINESA
da por normas éticas. O homem precisa em primeiro lugar ser um homo ethicus, e só
em segundo lugar um homo oeconomicus, que pensa no proveito próprio.
Aqui, junto ao túmulo destegrande sábio chinês, onde antes quase não havia
';9ttuênçia rTtashoje;<:bmparecemv,milh~res deip~sso~s( ,nãos~: p.ode..,~~ixar :de "..
'. ilertiDrar: o qüeocupao centro~éle~suã\l9,0triná;nâº:éaàutoridaêle':pàiriarcal/mas" ';
sim aquilo que éverdadeirame'rite·tiumano.,:.8urhanidade, reti; no;~êntidpde
carinho, bondade, bem-querer:'esse é o conéeito ético que ocorre com maior
freqüência nos Analectos de Confúcio.
Também hoje a humanidade poderia perfeitamente constituir o fundamento
para uma ética básica - não apenas na China; e sim na raça humana como um
todo. Humanidade que, segundo Confúcio deveser entendida como "recip~oci
dade" (shu), como atenção mútúá;tal como éoexplicado na Regra Áúrea: "O que
não desejas para ti mesmo, não o:faças também a outros."
.0 Segundo a norma básica d~;~erc:ladeira hUmanidade, p0c:le.:se; estabelecer·
o'. uma distinção entre o bem e o:,iTí;~1ge~.uma màn~iraoJ)em elem~I)!~r'~rque tem'
.validade para todos. De fato" ~~la';~os'~clÍines~~:hã6'~xist~ nenhufri:'";!afém do
bem e do mal". Só existem dois;caminhos, t';:ditó Confúcio: humanidade
desl.Jmanidade.}';- ;'''~ n}i--}~' -s<,'< --I'
~:Y:<;
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RELIGIÕES DO MUNDO
120
RELIGIÃO CHINESA
o filho de Qin sobrevive apenas por quatro anos ao seu genial e violento pai -
para os historiadores confucianos, o tirano por excelência. Desencadeia-se então,
por toda a parte, uma tempestade contra tal dominação "racional" legalista, que
desprezava todas as tradições. Na guerra civil, consegue por fim impor-se o velho
guerreiro Liu Bang, procedente do campo. Esse filho de camponeses assume o título
de imperador, mas pessoalmente continua modesto, e funda a gloriosa dinastia Han,
que se manteve no poder por quatrocentos anos (206 a.C.-220 d.C.). Ele deseja
manter a unificação do Estado, mas sem o totalitarismo do primeiro imperador.
Agora o povo pode respirar. Desenvolvem-se as indústrias do sal e do ferro. E a
moldura ética confuciana irá efetivamente garantir, durante séculos, a partir de den-
tro, a estabilidade do Estado.
É suspensa a proibição dos livros e tem início a minuciosa coleta e análise dos
escritos que foram conservados ou que ficaram escondidos; a cópia passa a ser con-
siderada como um trabalho meritório. Tem início agora o período clássico da Chi-
na: conclusão e ao mesmo tempo cumprimento da Antigüidade chinesa! Contem-
porâneos do império romano no Ocidente, os Han organizam e dirigem um impé-
rio que nada fica a dever àquele em extensão e população, e ao qual está ligado
comercialmente através da "rota da seda" (como são chamadas, pelo estudioso
Ferdinand von Richthofen, as rotas comerciais em torno do deserto de Taklamakan).
Até hoje os chineses étnicos se denominam a si próprios de chineses Han.
É sobretudo o imperador Wu, o mais importante soberano Han, que com sua
política externa cria as novas fronteiras e na política interna estabelece as novas estru-
turas do império. E um detalhe importante: quem realiza o culto do Estado não é uma
classe sacerdotal própria, mas sim o imperador em pessoa - paramentado como "filho
do Céu" e revestido do poder profano e sagrado. Mais tarde, o poder fica inteiramente
concentrado na grandiosa capital Chang'an (a atual Xi'an). Em nível local, o impera-
dor é representado por seus funcionários. E, em geral, o real poder político e militar
do imperador é mantido dentro dos limites pelo funcionalismo, com poderes cada vez
maiores, que muitas vezes aparece em segundo plano em relação à sua função simbó-
lico-ritual. O mandato celeste não transforma o imperador em Deus.
Na era Han é moldado em definitivo o estilo clássico da vida chinesa, que haveria
de manter-se por dois mil anos. Mas, em conseqüência dessa mudança de paradigma,
Confúcio, que na China feudalista do final da era Zhou era considerado apenas
como um mestre entre outros, passa a ser o mestre por excelência. Os clássicos
121
RELIGIÕES DO MUNDO
O que os raios X não conseguem mostrar, muitas vezes podemos sentir apalpan-
do. Quase todos conhecem a palavra acupuntura, o método aplicado na China há
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RELIGIÃO CHINESA
cerca de quatro mil anos para combater as dores, sobretudo reumatismo, nevralgia e
enxaqueca. Poucos sabem, no' entanto, que essa palavra é proveniente do século
XVII, dos jesuítas de Pequim, que a construíram a partir de acus: "agulha" (original-
mente de ouro ou de prata), e punctura: "picada". Efetivamente, trata-se de um
método de cura por meio de picadas de agulhas em determinados pontos da pele,
por sua vez relacionados com determinados órgãos internos, para descobrir e curar
doenças dos órgãos respiratórios, circulatórios e digestivos, do sistema nervoso e do
sangue. Mas quase ninguém sabe que essa arte e medicina chinesa representa em
larga escala um subproduto da religião de cura e salvação do taoísmo.
Ao contrário do confucionismo, preocupado primariamente com a harmonia exte-
rior do sistema social chinês - a organização da vida familiar e da política -, o taoísmo
enfoca a harmonia interior, a saúde e a cura da pessoa individual. Ele não apenas
promete redenção da culpa e do pecado, mas também vida longa e imortalidade. Foi
justamente no grande período clássico da China, sob os Han (do século III a.c. ao
século III d.C.), que a medicina chinesa distanciou-se dos oráculos e dos demônios e
voltou-se para novos métodos de cura, relacionados com uma determinada cosmologia
e antropologia. Também na medicina, portanto, ocorre uma mudança de paradigma.
A medicina de tradição taoísta procura ver o homem por inteiro: é preciso não
apenas localizar a doença como uma enfermidade orgânica que exige reparo, mas
entendê-la como uma perturbação do equilíbrio global das forças no organismo
humano, como conseqüência da desarmonia e da desigualdade. De acordo com o
taoísmo, o homem está inserido em um sistema universal de relações, correspon-
dências e fluxos de energia. Antes de tudo, é importante observar a lei de corres-
pondência entre o macrocosmo e o microcosmo. A vida do homem precisa estar em
harmonia com as leis macrocósmicas. Ao mesmo tempo, é necessário observar o
ritmo das duas forças cósmicas primordiais e, em caso de doença, restaurar o equi-
líbrio perturbado: tudo no mundo e no homem, desde o ritmo alternativo de dia e
noite até o ritmo do coração e da respiração, é determinado pelo yin - passivo,
feminino e escuro - e pelo yang - ativo, masculino e claro. A energia vital flui ao
longo dos 14 meridianos invisíveis do corpo. E assim, a partir dos cerca de trezentos
e sessenta pontos de acupuntura, é possível exercer influência sobre os órgãos inter-
nos e suas funções.
O que quér que venhamos a pensar sobre tais correspondências e regularidades
tao ístas, não podemos negar certos êxitos dessa medicina, da acupuntura, da
moxibustão (queima de cones de moxa sobre a pele) e de outros antigos métodos
terapêuticos, de determinados exercícios respiratórios, das massagens e da fisiotera-
pia. Igualmente instrutiva é a diferente classificação das doenças (nosologia), seus
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RELIGIÕES DO MUNDO
múltiplos diagnósticos pelo apalpamento do pulso e, por fim, o amplo acervo me-
dicamentoso, como pode ser encontrado em qualquer farmácia tradicional, mesmo
dos modernos hospitais chineses, por exemplo em Pequim. O texto clássico sobre
acupuntura e moxibustão foi escrito por Huangfu Mi (215-282).
Tudo isso representa, sem dúvida alguma, um desafio para a moderna medicina
do Ocidente, para levá-la a refletir sobre o indissolúvel nexo entre cura e saúde na
medicina. Existe uma inter-relação entre higiene corporal e higiene moral. O indi-
víduo, a natureza e a sociedade, bem como o bem-estar físico e o bem-estar espiritual
e social não podem ser separados. Deveria levar-nos a refletir o fato de que o mais
antigo manual chinês de medicina e acupuntura, de inspiração taoísta, o Nei ]ing (A
doutrina interior), cujas primeiras compilações já são encontradas quinhentos anos
antes de Cristo, prescreve uma clara ordem de prioridade para as intervenções tera-
pêuticas: antes da acupuntura, os medicamentos; antes dos medicamentos, a ali-
mentação correta; mas, antes da alimentação correta, deve vir o tratamento do espí-
rito! A própria religião taoísta da saúde e da cura nos leva, portanto, bem para o
centro da "sabedoria chinesa", que tem a ver com o Tao, aquela lei primordial de
todos os eventos na humanidade e no universo à qual o homem tem que se adequar
na condução de sua vida.
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RELIGIÕES DO MUNDO
múltiplos diagnósticos pelo apalpamento do pulso e, por fim, o amplo acervo me-
dicamentoso, como pode ser encontrado em qualquer farmácia tradicional, mesmo
dos modernos hospitais chineses, por exemplo em Pequim. O texto clássico sobre
acupuntura e moxibustão foi escrito por Huangfu Mi (215-282).
Tudo isso representa, sem dúvida alguma, um desafio para a moderna medicina
do Ocidente, para levá-la a refletir sobre o indissolúvel nexo enrre cura e saúde na
medicina. Existe uma inter-relação entre higiene corporal e higiene moral. O indi-
víduo, a natureza e a sociedade, bem como o bem-estar físico e o bem-estar espiritual
e social não podem ser separados. Deveria levar-nos a refletir o fato de que o mais
antigo manual chinês de medicina e acupuntura, de inspiração taoísta, o Nei Jing (A
doutrina interior), cujas primeiras compilações já são encontradas quinhentos anos
antes de Cristo, prescreve uma clara ordem de prioridade para as intervenções tera-
pêuticas: antes da acupuntura, os medicamentos; antes dos medicamentos, a ali-
mentação correta; mas, antes da alimentação correta, deve vir o tratamento do espí-
rito! A própria religião taoísta da saúde e da cura nos leva, portanto, bem para o
centro da "sabedoria chinesa", que tem a ver com o Tao, aquela lei primordial de
todos os eventos na humanidade e no universo à qual o homem tem que se adequar
na condução de sua vida.
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RELIGIÃO CHINESA
Para isso a meditação tai chi deve ajudar: os exercícios suaves, fluidos e lentos são
destinados a coordenar consciência, respiração e movimento, a liberar as tensões no
corpo e os bloqueios nos meridianos de energia. Mas esses exercícios também po-
dem ser realizados com espada, lança ou faca, o que lembra que tai chi era, original-
mente, uma técnica de autodefesa. Como essas duas coisas se relacionam entre si?
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RELIGIÕES DO MUNDO
lar e social ao sistema político. Em lugar da ordem, dos rituais, das convenções dadas
a priori e do nivelamento através das instituições públicas, seria recomendável ado-
tar o caminho taoísta: deixar as pessoas como elas são e deixar a natureza como ela é
- então e só então haverá de reinar a harmonia. Por quê? Porque a raiz de todo o mal
está em o homem desligar-se da natureza.
Por isso os taoístas são contra uma organização social legalista e contra o ativismo
e moralismo confuciano, e em favor de um retorno à natureza, à qual o homem dos
tempos primitivos estava ligado harmonicamente. Ao contrário da tradicional opo-
sição entre homem e natureza, no taoísmo busca-se a unidade entre ambos. Mas a
unidade entre homem e natureza só pode ser realizada pelo indivíduo em plena
solidão ou em místico aprofundamento: pelo silêncio passivo e persistente, precisa-
mente aquele não-agir ou não-intervir (wu-wez), e justamente assim buscar a har-
monia com a Grande Natureza, com o Tao, que é a harmonia perfeita.
Um desejo de simplicidade, mais tarde conhecido também na Europa (retour à la
nature: "retorno à natureza"), já bem cedo manifesta-se no taoísmo. Sobre um pano
de fundo taoísta, a intuição, a inspiração, a imperscrutável essência da criatividade
artística, são mais fáceis de apreender em imagens e em palavras. Mas já então uma
tal atitude do indivíduo podia com facilidade ou ser monopolizada pelos detentores
do poder ou transformar-se em bárbara revolução cultural.
o taoísmo é muito mais do que uma filosofia. Ele tornou-se um verdadeiro mo-
vimento religioso. Assumiu muitos elementos da antiga religião chinesa dos xamãs e
adivinhos, mas, por outro lado, criou uma enorme obra escrita, considerada toda
ela como experiências divinas transmitidas aos taoístas em estado de transe, sem que
seja informado o autor nem o momento da redação. Por fim tudo foi reunido em
um cânon taoísta (daozang). Os dois tratados filosóficos de Laozi e Chuang-Tzu são
apenas dois entre os 1120 volumes. Ao lado dos cultos de purificação (exercícios de
ioga, dietética, ginástica, procura de elixires), foram integrados sobretudo os cultos
para o prolongamento da vida. Assim, tanto entre o povo simples quanto na aristo-
cracia, a religião taoísta tornou-se popular antes de tudo como uma religião da
imortalidade. Sua grande promessa: ao morrer, o taoísta vai para um dos paraísos,
ou para as ilhas da bem-aventurança fora da China.
Quase sempre se considera que a religião raoísta teria começado em Sichuan,
onde na era Han tardia o eremita Shang Daoling teria tido uma revelação do Supre-
mo Senhor Lao em 142 d.C. Segundo ele, o povo estaria faltando com o respeito
pela verdade e pelo bem e honrando mais os demônios que trazem a perdição. Zhang,
nessa revelação, é pelo deus Lao nomeado Mestre do Céu (tianshi), com a incum-
bência de abolir as práticas demoníacas e introduzir a verdadeira fé.
126
RELIGIÃO CHINESA
E de que maneira isso há de ser feito? A nova seita do Mestre do Céu rejeita os
lcrifícios sangrentos, que então eram oferecidos aos espíritos dos mortos, substituin-
o-os por bastões perfumados, incenso e legumes cozidos. Na cura dos enfermos é
ntroduzida a confissão dos pecados: em determinadas épocas do ano, em recintos
echados, os doentes escrevem seus pecados e os sacerdotes rezam por eles. Para
lcançar o perdão e a salvação, a lista dos pecados é apresentada ao céu nos cumes
los montes, ou à terra, sendo enterrada, ou aos rios, sendo mergulhada em suas
iguas.
A "IGREJA" TAOÍSTA
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RELIGIÕES DO MUNDO
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RELIGIÃO CHINESA
Ainda na era Han chegou-se a uma interpenetração cada vez maior entre taoísmo e
confucionismo. Contribuiu de maneira decisiva para isso o pensamento yin-yang, qUf
ganhou importância a partir do primeiro século antes de Cristo. A idéia é encontrada
já no Livro das Transformações (yi jing): todas as coisas e situações surgem de uma
combinação dos poderes cósmicos primordiais que, por sua interação, criam e pene-
tram todo o universo. Como todo grande monte, tudo no mundo possui dois lados
(talvez tenha se originado daí a idéia do yin e yang): um lado narre, sombrio, frio,
escuro, feminino (yin), e um lado sul, ensolarado, quente, claro, masculino (yang).
E, assim, toda a realidade pode ser vista dentro desta tensão de claro e escuro, ativo
e passivo, criativo e receptivo, duro e mole, masculino e feminino. Isso explica as
mudanças na natureza: calor e frio, dia e noite, verão e inverno, e também sol e lua, ou
sol e terra. E diante desses princípios, não por último relacionados com o sexo, não se
pode deixar de perceber que, nessa maneira de pensar, a mulher, como o elemento
passivo e escuro, está necessariamente em desvantagem com relação ao homem.
A harmonia de yin e yangencontra sua melhor expressão no célebre símbolo yin-
yang, aquele símbolo circular com as áreas complementares claras e escuras e os
pontos escuros e claros. Ele mostra que cada um dos elementos traz em si o germe de
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RELIGIÓES DO MUNDO
seu contrário e, no ponto mais elevado de sua formação, ele começa a transformar-
se em seu correspondente pblar, No símbolo da complementaridade de yin e yang,
taoísmo e confucianismo se completam e se apóiam:
• O taoísmo yin-yang pode ser cultivado sobretudo na vida privada, sendo em larga
escala determinante para a vida interior e espiritual do indivíduo e dos diferentes
grupos. Ele é mais a religião do povo, mas, em tempos de caos e de divisão política,
oferece também aos instruídos uma espécie de consolo filosófico.
• Mas o confucionismo yin-yang, que assume muita coisa da visão taoísta da nature-
za, é predominante na ideologia do estado, no funcionalismo instruído, na moral
oficial e na vida pública. Como religião em primeiro lugar da alta camada intelectual,
ele predomina nos períodos de lawand arder, ou seja, da lei e da ordem.
Assim, podem ser conciliadas na prática as duas atitudes básicas: o homem - para
simplificar - é confuciano no agir e taoísta no contemplar. E, ao mesmo tempo,
chegamos a uma nova e ampla síntese teórica: yin e yang são equiparados a céu e
terra, procedendo ambos da Última Realidade (entendida predominantemente no
sentido raoísta), do Grande Último (taijt). A interação dos dois, em grande como
em pequena escala, produz todas as coisas deste mundo, sobretudo os cinco elemen-
tos ou fases de transformação: fogo, água, terra, madeira, metal. As fases se transfor-
mam ininterruptamente, em um ciclo sem fim: do repouso (yin) para o movimento
(yang) , do movimento para o repouso. Assim, as leis do macrocosmo e do microcosmo
se correspondem em uma grande e natural harmonia e hierarquia. Pois a natureza
do homem é boa, ela apenas tem necessidade da educação moral. Mas é precisamen-
te nesse ponto que a cultura chinesa se confronta com um grande desafio.
o AVANÇO DO BUDISMO
130
RELIGIÃO CHINESA
oase em múltiplas assimilações dos conceitos chineses, chega-se por vezes a uma
coalizão com a religião natural taofsta, mas muitas vezes também a uma oposição,
sobretudo na corte imperial. Os elementos budistas encontram penetração sobretu-
do nos cultos populares.
Delineia-se algo como uma "primeira Idade Média" chinesa. Depois de três sécu-
los de divisão, de lutas e de ondas migratórias, ocorre no século VI uma segunda
unificação da China: foi levada a efeito pela dinastia Sui, proveniente do interior da
Mongólia, que chegou ao poder através de um golpe de estado. Permaneceu no
poder apenas por três décadas, mas, por meio de reformas (provas oficiais para os
funcionários), preparou a época seguinte. Não se deve esquecer a construção do
Grande Canal, do norte ao sul, o rio Amarelo e o Yang-rze, que finalmente chegou
a ter um comprimento de mais de 2 100 quilômetros.
Com a dinastia Tang (618-907), que veio a seguir, a China volta a alcançar valor
ea ser respeitada perante o mundo: um reino poderoso, na verdade não menos im-
portante que o contemporâneo império de Carlos Magno na Europa e o dos califas
orníadas de Damasco. Uma política externa de expansão cria segurança contra os
povos turcos e consegue o controle da rota da seda (Turfan). Por algum tempo o
poder da China se estende desde a península coreana, no leste, até a Ásia central do
Pamir e do lago Aral, no oeste.
A capital volta a ser mais uma vez a cidade cosmopolita de Chang'an (Xi'an),
agora com mais de um milhão de habitantes. Além dos budistas, desde 635 estão
estabelecidos aí também os cristãos nestorianos (a célebre coluna de pedra de Xi'an
de 781, escrita em siríaco e chinês, fornece as datas mais importantes da difusão do
cristianismo nestoriano). Um longo período de paz e de bem-estar leva a um flo-
rescimento da cultura chinesa. É a chamada idade de ouro da China, o que se aplica
tanto à historiografia quanto à ordem jurídica, à administração e ao exército, e ainda
à ciência, literatura e arte, que passam a servir de modelo para toda a Ásia oriental
até o Japão. Apesar de todas as suas raízes e características próprias, a partir da era
Tang o Japão passa a fazer parte do mundo cultural sinizado.
Sob a dominação dos cosmopolitas Tang, que se prolongou por trezentos anos, o
budismo, que por intermédio de não-chineses já no primeiro século depois de Cris-
to penetrara na China pela rota da seda na Ásia central e pela rota marítima meridio-
nal, passa a ter influência determinante. Em grande parte isso ocorre como resulta-
131
RELIGIÕES DO MUNDO
132
RELIGIÃO CHINESA
Também o brilhante império Tang termina por cair em tensóes sociais cada vez
mais perigosas. As grandes propriedades exaurem os pequenos, alastra-se a corrup-
ção, a decadência moral e a influência de eunucos. O império sucumbe a um
levante de governadores militares (907). Só depois de um período de divisões e
mudanças radicais (Cinco Dinastias) é que se chega, no final do século X, a uma
terceira unificação da China, sob a dinastia Song, que haveria de governar por
320 anos (960-1279). Uma época de reformas (xinfa: "nova política"), que no
todo resultou em paz exterior, estabilidade social, crescimento econômico e novo
florescimento da arte e das ciências. Em lugar da cultura nobre da dinastia Tang,
agora são estabelecidas as bases para uma cultura popular. A capital nortista dos
Song é Kaifeng e, depois que esta foi conquistada pelos jurchen em 1127, a capital
passou a ser a sulista Hangzhou. Estamos diante nada menos que de uma quarta
mudança de paradigma, a começar por uma nova confucianização da corte (Aca-
demia dos Príncipes): o que é proposto agora como ideal é não o monge, mas sim
o homem instruído sob todos os aspectos. Trata-se de uma renovação do confu-
cionismo de "alta Idade Média", hoje chamado de neo-confucionismo (paradig-
ma V).
Correspondendo à redescoberta da filosofia grega (Aristóteles) na alta Idade Mé-
dia cristã, também na China do período Song a herança clássica passa a ser repensa-
da, em resposta ao desafio budista. A moral racional do confucionismo é organica-
mente ligada às idéias cosmológicas e ontológicas do budismo e a certos rituais do
taoísmo. Passa-se a falar agora de uma unidade dos três caminhos. É significativo
que também na culrura chinesa quase não mais exista um limite constatável entre
estadistas, pensadores, poetas, pintores e calígrafos. Nesse período, desenvolve-se
ainda algo assim como uma escolástica chinesa.
Grandes sistemas especulativos, como o do estadista, historiador e filósofo Zhu
Xi, no século XII, podem perfeitamente comparar-se ao de Tomás de Aquino, no
século XIII. Todas as coisas surgem do Taiji, do Grande Último (que às vezes é cha-
mado também de Taiyi, o Supremo Uno), todas participam dele e, em um movi-
mento cíclico, retornam à sua ilimitada realidade suprema. No mundo interior e
133
RELlGIÓES DO MUNDO
exterior é encontrado um princípio ético de ordem (lt), a que o homem tem que
corresponder aprendendo; tradição confuciana e confrontando-a com a reali-
dade concreta. Sobre esse pano de fundo, Zhu Xi desenvolveu um sistema de
normas e regras éticas e de comportamentos sociais práticos.
Mais tarde, no século XVI-XVII, o filósofo, estadista e general Wang Yangming
(contemporâneo de Martinho Lutero), herdeiro de Zhu Xi, irá desenvolver uma
moderna concepção "idealista" da Última Realidade, por assim dizer. Todo conhe-
cimento e progresso moral pode ser alcançado olhando-se para o próprio "cora-
ção". Assim, a Última Realidade é entendida não apenas como um princípio obje-
tivo, mas também, subjetivamente, como o meu espírito que tudo contém e que se
identifica com o espírito do universo. Um espírito que, através do conhecimento
inato do homem, manifesta-se como lei moral universal. No homem, porém, exis-
te também um sentido inato para o certo e para o errado, ao qual o homem apenas
precisa permanecer fiel.
Mas voltemos ao império chinês medieval, que agora passa para os bárbaros. As
tribos mongóis das estepes do interior da Ásia sempre tiveram enorme atração pela
planície do norte da China, com suas riquezas e enormes reservas humanas. Sob a
direção de Gêngis Khan, tais tribos haviam-se reunido e organizado militarmente
e agora buscavam chegar ao domínio do mundo.
O neto de Gêngis Khan, Kubilai Khan, efetivamente consegue, no século XIII,
conquistar toda a China (1276). É também ele quem, fascinado pela cultura chi-
nesa, transfere sua residência e todas as repartições centrais de Karakorum para
Pequim (khan-balik: "cidade dos dominadores"), agora magnificamente construída.
Aí ele funda a dinastia mongol Yuan (1279-1368), com sua administração (dual)
mongol-chinesa.
Jamais todo o território chinês havia antes sido ocupado, todo ele, por um
conquistador "bárbaro". E a China era apenas uma parte, se bem que talvez o
coração, do gigantesco império mongol. Este estende-se agora desde o mar da
China, no Oriente, até o mar Negro, e desde a Sibéria até o Himalaia. E haveria
de durar por quase um século. No tocante às religiões, os mongóis são relativa-
mente tolerantes. Até mesmo, sob o signo da pax mongolica, pela primeira vez
passam a ser possíveis as viagens da Europa a Pequim. O mais importante viajan-
te da Idade Média européia para a Ásia, Marco Pala, não deixa de aproveitar a
ocasião, já sob Kubilai. No final da dominação mongol chega a Pequim, também,
como primeiro missionário católico romano, o franciscano italiano Giovanni di
Montecorvino.
134
RELIGIÃO CHINESA
Após diversos levantes contra a opressão mongol, em parte com fortes motiva-
ções religiosas, a dinastia Ming, a última dinastia nacional e a mais "chinesa" desse
milênio, consegue criar uma impressionante restauração chinesa nacionalista (1368-
1644): uma reconstrução econômica, a renovação do exame funcional inteiramente
de acordo com a doutrina confuciana Zhu Xi, uma reforma da ordem penal e reno-
vação das artes e das ciências e, sobretudo, uma administração civil rígida, controla-
da pelo exército. Reunificado o império, torna-se possível um período de paz e de
bem-estar. Até hoje a magnífica arquitetura da era Ming é admirada, assim como
sua porcelana azul e branca.
Todavia, não é das estepes do norte, mas sim dos mares do sul, que chega agora a
maior ameaça. Já bem cedo a modernidade européia anuncia-se na China: em 1514
surge em águas chinesas o primeiro navio português. Os portugueses logo tomam pé
em Cantão e em outras cidades portuárias. Eles obtêm permissão formal para estabe-
lecer uma colônia na ilha desabitada de Macau, em frente a Cantão. Esta, a mais
antiga colônia européia na China, constitui também o ponto de partida para a missão
cristã européia.
Já mil anos antes, como ouvimos, a cristandade siro-persa (nestoriana) havia pene-
trado até a China - como uma minoria étnica, sem intenções missionárias diretas. O
primeiro ater estas intenções foi o já citado Giovanni di Montecorvino (1294). Mas
com a dinastia mongol, chega ao fim também a missão cristã. Uma das razões para
isso é que, em todo esse tempo, nenhum chinês pôde ser ordenado sacerdote. Já a
missão chinesa dos jesuítas, no início da idade moderna na Europa, é um empreendi-
mento mais promissor, com um conceito mais ousado e mais bem refletido.
135
RELIGIÕES DO MUNDO
136
RELIGIÃO CHINESA
Ainda em vida de Ricci, que chegou a ser tão respeitado em Pequim, outros
missionários começaram a pregar ao povo de uma maneira simples, porém maciça.
137
RELIGiÕES DO MUNDO
Para os chineses, mais uma vez, isso deve ter parecido sempre mais um jogo sujo e
ambíguo. Por que para os instruídos os cristãos - em concordância com o confucio-
nismo - oferecem uma filosofia, uma moral e uma ciência, mas para o povo primitivo
- contradizendo a racionalidade confucionista - elesapresentam os dogmas e milagres
mais estranhos? Seja como for, quando as autoridades chinesas, que já desconfiavam
dos numerosos agrupamentos religiosos, observaram como sob a direção dos estran-
geiros eram formadas associações cristãs ilegais da "doutrina do Senhor do céu", que
em parte desenvolviam atividades secretas, ocorreu em 1617 (sete anos após a morte e
o sepultamento oficial de Ricci) a primeira expulsão dos missionários, que, apesar
disso, ou permaneceram secretamente ou retornaram em número ainda maior.
A confrontação decisiva só veio a ocorrer mais tarde, quando a dinastia Ming,
como outras anteriormente, já havia sucumbido aos contrastes sociais, ao esbanja-
mento e à corrupção, ao concubinato na corte e às intrigas de eunucos. Porém sua
política é levada adiante pela dinastia que veio depois, a dos imperadores manchus
do grupo lingüístico tungue, com o nome de dinastia Qing (1644-1912). Também
esta favoreceu a confucianização da sociedade chinesa. Segue-se primeiramente -
sob os importantes imperadores Kangxi e Qianlong - um período de estabilidade
social, de poder nacional e de progresso da ciência e da cultura.
Mas os missionários cristãos passam agora a falar contra o uso feito até então dos
nomes chineses dos deuses e introduzem conceitos latinizados para "Deus", "Espíri-
to Santo", "pessoa" e outros. Agora a mensagem do Deus cristão não pode deixar de
parecer aos asiáticos algo inteiramente estranho, importado da Europa, uma reli-
gião imposta à força. Apesar da disputa em torno dos nomes chineses dos deuses e
dos ritos (sobretudo da veneração dos ancestrais), de início a missão cristã na China,
mesmo assim, ainda fez progressos (em 1670 - quase cem anos após os inícios de
Ricci - podem ser contados aí cerca de 275 mil católicos).
O imperador da nova dinastia manchu, célebre até na Europa por sua formação,
magnanimidade e agilidade espiritual, o grande estadista confuciano Kangxi, per-
mite em 1692, por um novo edito de tolerância, a pregação do evangelho em toda a
China. Os jesuítas, na corte imperial, esperam a conversão desse esclarecido monar-
ca, que também o filósofo, ecumenista e diplomata Leibniz considera o maior prín-
cipe do mundo. Sob esse imperador, que governou durante sessenta anos, os jesuítas
Johann Adam Schal! von Bel! e depois Ferdinand Verbiest (ambos mandarins im-
periais honorários de primeira classe) tornam-se diretores do ofício astronômico, ao
qual incumbia o importantíssimo cálculo do calendário e a determinação dos dias
festivos. Entre 1708-1717 os jesuítas chegam até a realizar uma grande medição
topográfica da terra.
Mas a missão cristã fracassa sobretudo por causa de Roma. O destino dos jesuítas
na China é selado pela inquisição romana, hoje camufladamente chamada de Con-
gregação para a Doutrina da Fé. Em 1704, o papa Clemente XI, sob ameaça de
excomunhão, proíbe aos cristãos chineses os seus ritos, assim como a veneração dos
138
RELIGIÃO CHINESA
ancestrais e de· Confúcio e o uso dos dois nomes tradicionais de Deus: Senhor nas
Alturas e Senhor do Céu. Na realidàde, quem quiser permanecer ou se tornar cristão
terá que deixar de ser chinês. Um dos colossais erros daquela autoridade que, como
se sabe, gosta de se considerar infalível apelando para o Espírito de Deus. Em 1717
ocorre a reação chinesa por meio de uma sentença dos nove supremos tribunais da
China: expulsão dos missionários, destruição das igrejas, abjuração forçada da fé
cristã. A obra da vida de Ricci e dos jesuítas é reduzida a nada - pela própria direção
da igreja. Os missionários, na verdade, haveriam de voltar 120 anos mais tarde -
mas agora dentro de um contexto inteiramente novo.
Os Qing manchus governam o país até pouco antes da Primeira Guerra Mundial.
Nos séculos XVII e XVIII a China é ainda rica e poderosa. Na verdade, ela chega
agora à sua extensão máxima - até o sudoeste (1681) e a Mongólia exterior (1697),
ou mesmo até Taiwan (1683) e o Tibete (1759), e sobre isso a China atual se funda-
menta para suas pretensões territoriais. Interiormente, no entanto, o império apare-
ce cada vez mais fraco, por causa do aumento da população e da enorme extensão de .
um estado multiétnico e também pelo luxo nas cidades, pela corrupção na adminis-
tração e pela pobreza no campo. A conseqüência de tudo isso são revoltas no povo e
guerras civis. Soma-se ainda a constante ameaça externa por parte das potências
coloniais européias. Dominado por um neoconfucionismo ortodoxo enrijecido, len-
tamente o gigantesco império é, no século XIX, vitimado por um paralisante tra-
dicionalismo repressivo, contra o qual os numerosos pensadores progressistas nada
podem fazer. Oscilando muitas vezes entre o despotismo e a liberalidade, o regime
adere rigidamente ao dogma da superioridade cultural do "reino do meio".
Apesar das numerosas modernizações, a China, como um todo, revela-se assim
incapaz de enfrentar com criatividade o rápido progresso científico, tecnológico,
econômico e militar da Europa e de desenvolver um paradigma chinês realmente
moderno. Torna-se agora manifesto que a China não passou nem por uma reforma
nem por um iluminismo, no sentido moderno da palavra. E assim não está em
condições de modernizar sua burocrática economia agrícola pré-industrial nem de
democratizar seu sistema econômico e governamental pré-moderno. A longo prazo,
as conseqüências são a decadência interna e a impotência da política externa.
Na primeira metade do século, no auge do nacionalismo, colonialismo e imperia-
lismo europeus, mais uma vez ocorre uma onda missionária na China. Agora são
também missionários protestantes, vindos da Alemanha, Inglaterra, Holanda e Es-
tados Unidos, todos eles provenientes dos movimentos de renovação. Eles esperam
conquistar a China em preparação para a volta do Senhor que está próxima, através
de uma rápida evangelização de regiões inteiras, preparada pelo Espírito Santo.
139
RELIGiÕES DO MUNDO
Para as potências européias, a irrupção política ocorre em 1842 - até hoje um ano
de vexame nacional para os diineses. Após a vergonhosa guerra do ópio, da Inglater-
ra (que também foi unanimemente criticada pelos missionários), que visava grandes
vantagens na exportação britânica de ópio da Índia para a China, o governo chinês
capitula frente a oitenta navios de guerra britânicos no Yang-tse diante de Nanquim!
A China é obrigada a ceder Hong Kong para sempre (por tempos eternos), obriga-
se a criar cinco portos para os britânicos e é sucessivamente desmembrada pelas
potências ocidentais.
Nos famigerados "acordos desiguais" fechados então, podemos ver diretamente,
lado a lado: os comerciantes estrangeiros podem vender ópio em toda a China e os
missionários podem anunciar o evangelho. Roma também concorda: com isso a
missão - seja católica, seja protestante - fica inteiramente incluída nos cálculos
imperialistas das grandes potências ocidentais. Seus "pontos de apoio" espalham-se
pelo país inteiro. Colonização é o mesmo que cristianização, e vice-versa.
140
RELIGIÃO CHINESA
2. O levante dos boxers, em 1900, sob o signo dos "punhos da legalidade e da har-
monia": primeiro contra a dominação "estrangeira" manchu, depois contra as
potências esrrangeiras ocidentais e por último também contra os missionários,
que na segunda metade do século XIX estavam voltados menos para a próxima
chegada do reino dos céus do que para o estabelecimento de igrejas coloniais.
Foram mortos o embaixador alemão e outros diplomatas, 250 missionários e
cerca de noventa mil convertidos chineses. Terminou esmagado por um corpo
expedicionário da Alemanha, França, Inglaterra, Japão e Estados Unidos. Eleva-
das indenizações foram pagas por Pequim.
3. A revolução nacionalista dajuventude chinesa em favor da democracia, do nacio-
nalismo e do bem-estar do povo (reforma agrária), iniciada pelo médico Dr, Sun
Yatsen. A 12 de fevereiro de 1912, o último imperador Qing, Puji, renuncia
ainda criança. Abolição da monarquia, fim do império de 2 200 anos e institui-
ção da república. Em 1919, o movimento Quatro de Maio, iniciado pelos es-
tudantes de Pequim, volta-se contra os valores confucianos (obediência, respeito
à velhice, regras de boas maneiras e ritos). Após a morte de Sun Yatsen, em 1925,
Chiang Kai-Shek assume a condição de chefe do Partido Revolucionário Kuo-
rnin-tang. Em 1927 ele tenta liquidar os comunistas, até então aliados, e protela
a reforma agrária.
4. Ascensão do Partido Comunista Chinês, 1924-1934; em 1947-1949, com uma
orientação nacionalista (contra os japoneses) e social (mobilização dos campo-
neses), também radicalmente contrário ao cristianismo, considerado a "legião
estrangeira imperialista". Unificação forçada da China e proclamação da Repú-
blica Popular da China em l l1 de outubro de 1949, por Mao Tse-Tung: "O povo
chinês se ergueu!" Segue-se de imediato a expulsão de todos os missionários
estrangeiros, a proibição da imprensa das igrejas, e ainda o confisco de todas as
escolas, hospitais, instituições caritativas e de todos os bens das igrejas. Um tríplice
movimento foi requerido e encorajado pelo partido: autoconservação, auto-ad-
ministração e autodifusão das igrejas chinesas.
5. A Grande Revolução Cultural Proletária, 1966-1976: essa foi empreendida pela
mulher de Mao, pela "Gangue dos Quatro" e pela Guarda Vermelha conrra os
"quatro velhos": velhos usos, velhos costumes, velhas idéias, velha cultura e, na-
turalmente, também contra toda religião e contra tudo quanto é ocidental. Inú-
meros santuários foram danificados ou destruídos. Só após a morte de Mao, em
1977, é que ocorre uma guinada do estado e do partido para uma política mais
pragmática em relação à religião, na verdade evidenciando que, da mesma ma-
neira que as outras religiões, também o cristianismo chinês permaneceu vivo nos
pequenos grupos e "reuniões domésticas" e agora pode continuar a desenvolver-
se dentro de estreitos limites puramente religiosos (igrejas, seminários, rraduções
da Bíblia). Mas surge a pergunta...
141
RELIGIÕES DO MUNDO
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RELIGIÃO CHINESA
143
RELlGIÚES DO MUNDO
tão de saber que tipo de regime político e que visão de mundo acabarão por se
impor na nova China. '
FORÇA DO MERCADO?
Onde alguns anos atrás se viam apenas bicicletas e pessoas uniformizadas, o que se
vê hoje é um carro atrás do outro e as pessoas vestindo trajes ocidentais. É o mercado
que modifica a China. Se em Cingapura alguma coisa está se delineando, por assim
dizer, a partir da perspectiva do capitalismo ocidental, o mesmo acontece em Pequim,
Xangai, Cantão, Shenyang e em outras cidades chinesas menores, sobre o pano de
fundo de um socialismo que tenta modernizar-se unicamente do ponto de vista eco-
nômico. Mas incorre nos mesmos riscos: falta de consideração pela pessoa, ganância
de lucro, fé no poder do dinheiro, especulação imobiliária e do mercado de ações.
Impossível deixar de ver que está se difundindo na China um novo materialismo
de cunho ocidental, igualmente desumano; um consumismo disposto a abdicar de
todos os valores. E, apesar do aumento do bem-estar (sobretudo para uma pequena
camada de ricos e super-ricos), muitas pessoas vêem-se diante da ameaça de uma
nova pobreza, do desemprego e da maciça fuga para as cidades, ao mesmo tempo
que aumenta o sentimento da falta de sentido, da falta de compromisso, da
permissividade moral, criminalidade, corrupção e consumo de drogas, simultanea-
mente com uma crise da família. Em suma, há uma perda tanto da pátria social
quanto da pátria espiritual.
Mas essa decadência da tradição, com suas espantosas dimensões, leva também
muitas pessoas a ansiarem por valores e padrões espirituais, não materiais. Contraria-
mente a todas as profecias "científicas" de uma "morte" da religião, manifesta-se,
contudo, no novo contexto secular aquela força de sobrevivência das grandes reli-
giões, que se tem observado ao longo dos milênios: a grande capacidade de adapta-
ção, assimilação e integração. E mesmo os marxistas chineses reconhecem hoje que
as religiões não são simplesmente um "ópio para o povo", mas que são fenômenos
extremamente complexos e resistentes. Com profundas raízes étnicas e ao mesmo
tempo com difusão internacional, elas claramente constituem um elemento indis-
pensável também para a cultura chinesa, que não poderá de forma alguma ser com-
preendida sem o confucionismo, o taoísmo e o budismo.
144
RELIGIÃO CHINESA
mais diversas formas da religião chinesa tradicional, ou mesmo que se tenha mani-
festado na China algo assim como lima "febre religiosa". As igrejas cristãs são procu-
radas, tanto a oficial quanto a "subterrânea", Hoje, como ontem, a veneração aos
ancestrais continua viva, e seria interessante um estudo para saber até onde os ritos
e costumes, tanto na China quanto em Cingapura, adaptaram-se tacitamente às
condições modernas, em vez de desaparecerem.
Em muitos lugares voltam a ser reconstruídos os templos taoístas ou budistas
destruídos pela revolução cultural, ou constroem-se novos. E se não se pratica ne-
nhuma religião popular no dia-a-dia na China, como em Cingapura, Hong Kong
ou Taiwan, também na República Popular milhares e milhares de pessoas voltam a
afluir novamente aos conhecidos lugares de peregrinação. Embora se trate com fre-
qüência de turistas indiferentes ou céticos, eles não obstante vêem-se confrontados
com as velhas tradições religiosas. Em longos trechos das rodovias, como, por exem-
plo, diante do Taishan, são oferecidos objetos de uso religioso e, sem dúvida, tam-
bém muito kitsch.
Será que essa religião popular, que hoje volta à tona acompanhada por muita
superstição e que tantas vezes favoreceu a impotência, a resignação e a busca de
consolo por parte das pessoas, será capaz de exercer o efeito libertador hoje tão
necessário (e não um novo efeito escravizador)? Nós não sabemos. É certo que não
irá necessariamente trazer uma nova qualidade de vida aos marxistas instruídos.
Os anseios destes por um sentido da vida, pela moral, pela saúde do corpo e do
espírito serão satisfeitos por outros movimentos, que não deixam de ter sua relevân-
cia social e política. Disso fomos testemunha em Pequim: a polícia mostrou não
dispor de nenhum recurso quando, num domingo de abril de 1999, bem mais de
dez mil adeptos da seita Falun Gong ou Lei Budista ifalun: "roda do darma"; gong:
"técnica de respiração"), provenientes de toda a China e sem qualquer autorização,
permaneceram sentados em silêncio e concentração diante do Centro Partidário e
Governamental na praça da Paz Celestial, para só à noite voltarem a desaparecer
"sem deixar vestígios": desde junho de 1989 a maior demonstração, um protesto
silencioso desse movimento budista-taoísta. Eles praticam o Qigong, a tradicional
doutrina chinesa que através da meditação, dos exercícios de ioga e da medicina
chinesa tradicional procura despertar energias para a saúde do próprio corpo e para
a cura dos outros. Seu inspirador é um certo Li Hongzhi, que em 1998 se retirou
para a América. Segundo avaliação do próprio governo, essa organização conta com
cerca de setenta milhões de adeptos (dez milhões a mais que o Partido Comunista
da China). O movimento (como movimento budista) se empenha pela "Lei" ifa),
ou (como movimento taoísta) pelo "caminho" (tao), e é a favor da verdade, da tole-
rância e da cortesia, mas foi perseguido pelas autoridades regionais e, por isso, busca
proteção jurídica. Novas manifestações, em julho de 1999, foram então respondi-
das com dureza: dentro de curtíssimo tempo milhares de manifestantes foram pre-
sos, e a organização foi proibida, acusada de superstição.
145
RELIGIÕES DO MUNDO
146
RELIGIÃO CHINESA
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"sinal do céu" ~~I~f"'+~
céuea terra ..
147
RELIGIÕES DO MUNDO
No âmbito de uma nova ordem do mundo deve ser levado em conta o que o
confucionismo nunca deixou de acentuar: a prioridade da ética sobre a economia e
a política, e a prioridade da pessoa ética sobre toda e qualquer instituição. Mas
também...
A GRANDE MURALHA
148
Budismo
Atirar com arco e flecha... Não se trata aqui de um esporte, nem de um exercício
iilitar, nem também de um prazer estético. Não serve a nenhuma finalidade concre-
I. Serve para quê? Para disciplinar o espírito, para alcançar uma consciência clara e
rilhante. Serve para a pessoa se analisar, para tranqüilizar o próprio corpo, as pró-
rias emoções, para acalmar o espírito, para estar atento a tudo quanto faz, diz ou
ensa. Arqueiro ou arqueira tem que se entregar totalmente ao que faz, esquecer-se
e si, aprender. Conservar-se distante de qualquer premeditação - até que o tiro saia.
:oncentração total, extrema tensão, calma interior, presença de espírito.
Quem foi.o primeiro a aprender a arte de esquecer o próprio eu? Não foi nenhum
,sicólogo dos nossos tempos, mas sim o Buda, 2 500 anos atrás. Ele ensinou a arte
le viver com atenção, cujo símbolo veio a ser o tiro com arco e flecha. Para o Buda,
I reto esforço e a reta atenção (satz) constituem uma condição para a concentração
149
RELIGIÕES DO MUNDO
"terceiro olho" (urna), no meio da testa, simboliza a visão espiritual; os lóbulos alonga-
dos das orelhas (originalmente de certo os brincos do príncipe), a sabedoria do Buda.
Originalmente o budismo não se ocupa com elevadas especulações, mas sim com
superar as realidades da vida. E o jovem e rico príncipe Siddhartha Gautama, que se
casou bem cedo, experimentou essas realidades quando - de acordo com a lenda -
pela primeira vez deixou o luxo do palácio e foi percorrer o país.
Aí ele se defrontou com toda a dor do mundo, com todo o sofrimento a que as
pessoas estão expostas. Inevitavelmente todo homem envelhece. Todo homem adoece.
Todo homem vai morrer. Velhice, doença, morte: três símbolos do efêmero e do
transitório. É nisto que consiste o problema básico de toda existência humana: nada
na vida é estável. Todas as coisas sempre dependem de outras. Tudo muda, tudo
perece. Em última análise, tudo é sofrido, tudo está associado ao sofrimento.
150
BUDISMO
A ÁRVORE DA ILUMINAÇÃO
Tudo isso aconteceu há cerca de dois mil e quinhentos anos, no atual estado
indiano de Bihar, na cidadezinha de Uruvela. Por isso essa árvore, que descende da
figueira original, é chamada a árvore da iluminação. E a cidade de Uruvela, de Bodh-
Gaya. É o segundo maior lugar de recordação do budismo, depois do lugar de
nascimento de Siddhartha, Lumbini.
Na realidade é uma nova religião que nasce! Ela rejeita os fundamentos da antiga
religião indiana, a autoridade dos Vedas e, com isso, a dominação dos brâmanes e os
sacrifícios cruentos. Tudo isso passa agora a ser substituído pela espiritualização,
pela interiorização, pelo aprofundamento. Buda percorreu esse caminho por si pró-
prio, por suas próprias forças. Não obstante, esse despertar não é nenhuma auto-
redenção, pois não pode ser forçado pelo homem. Mas também não é um presente
de Deus: pois para o Buda não existe nenhum Deus criador rodo-poderoso.
Mais tarde os budistas, em agradecimento, delimitaram esse local de origem do
budismo como distrito sagrado e chamaram-no de trono diamantino. Já bem cedo
foi também aí construído um templo: o Templo Mahabodhi, o templo do grande
despertar. Esse templo passou por muitas mudanças, no decorrer dos séculos, e só
há pouco mais de cem anos (1881) é que foi restaurado por um rei birmanês, depois
de inteiramente abandonado.
151
RELIGIÕES DO MUNDO
Outros santuários antigos foram destruídos. Isso porque, durante algum tempo,
Bodh-Gaya voltou a ser t~talmente hinduísta. E, para os hindus, Buda é apenas a
nona encarnação (avatara) do deus Vishnu, que um dia será substituída pela décima.
Os outros pequenos templos e mosteiros são todos do século XX. De qualquer modo,
no local de origem do budismo, eles deixam bem evidente a grande difusão pela qual
o budismo passou mais tarde: há aí um templo tibetano e um chinês, um tailandês e
um japonês. O movimento monástico transformou-se em uma grande religião.
A RODA DA DOUTRINA
O próprio Buda, na verdade, não atribuía grande valor a templos, rituais e ceri-
mônias, nem tampouco a deuses e a demônios. Ele preferia deixar sem resposta a
pergunta sobre a última razão do mundo e ocupar-se com coisas mais importantes.
Aquele que é atingido por uma flecha envenenada não deve em primeiro lugar ocu-
par-se com o arqueiro que o feriu, mas sim com deixar-se tratar imediatamente por
um médico capacitado - essa é sua famosa resposta.
No bosque das gazelas de Sarnath, diante das portas de Varanasi, o Buda encon-
tra cinco ascetas ambulantes que antes o haviam abandonado, mas que passam a ser
agora os seus primeiros seguidores. Eles constituem o cerne da comunidade dos
monges, do sangha. De início eram cinco, logo seriam quinhentos e nos séculos V e
VII (como relatam peregrinos chineses), somente vivendo e ensinando em Sarnath,
já havia 1 500. Por isso esseé o terceiro memorial do budismo: aqui o Buda pôs em
movimento a roda da doutrina, do darma.
Durante cerca de quarenta e cinco anos o Buda peregrina com seus monges por
Bihar e Urrar Pradesh. Aos oitenta anos de idade (segundo uma antiga tradição, em
368 a.Ci) ele morre no Kushinagara (hoje Kasia), no Nepal, por causa de uma comi-
da envenenada - e esse é o quarto grande memorial budista. Com isso o Buda entrou
na redenção definitiva, no pariniruana, sem reencarnação. Ele não deixou nenhum
sucessor ou representante. Seus discípulos deveriam manter o darma, mas sem o
imporem a ninguém.
UMAiéTlCA DA
. .
RENÚNCIA DE SI
.' . . .... ... .. ' .. ' ...
Muitas vezes se tem afirmado que o budismo não seria na verdade uma reli":
gião, rrtas sim uma filosofia. Uma filosofia, no entanto, é o que o budismopreci-
samente não é. O que elep·retend.e of~r~ce~n~o'énenhUina explicação do rTlun'-: .
o'do " Ele'é' ~·rell·gl'a-o , e' dout'r','na-'/de':sa'lv'aç'a-o
, 'e' c'a''>:mg"llin'h'o' a;ç'a-'~'o::::'"x~'·' <,:-~ ';:'o~";:~~'?::k:\j':"'~
""âe':sa'Iv . ,
Ecom efeito o Buda, de certa forma, se entendeu como algo que seasseme- '
lha a um médico, alguém que pretende ajudar o homem sofrédor a encontrar
152
BUDISMO
7 ao cristão. •: : { ,
i"· ';;:;<:: -;,,'O:;~k,i~~;:\); ~:~jW~!ill; i;M~,,:,yt
153
RELIGIÓES DO MUNDO
PARALELOS NOTÁVEIS
154
BUDISMO
155
RELIGIÕES DO MUNDO
.
MONGES BUDISTAS E MONGES CRISTÃOS: SEMELHANÇAS
156
BUDISMO
Entre os fiéis budistas, poucos são tão venerados na vida quotidiana quanto os
monges, os mestres espirituais (gurus). Caracterizados por túnicas de cor vermelho
escura, preta, cinza ou amarelo-açafrão, eles se distinguem claramente da massa das
pessoas. Oferecem ao povo o alimento espiritual e, em contrapartida, o povo forne-
ce-lhes o apoio material.
De fato, os monges oferecem ao povo o darma, a doutrina de Buda. E estão à
disposição para as cerimônias domésticas: casamento, celebrações fúnebres, bênção
de uma casa ou de uma nova moradia. Aí eles recitam as palavras dos escritos sagra-
dos, destinadas a atrair bênção para a casa e para a família, e seus mantras e seus
instrumentos expulsam os espíritos. Seus cantos, em voz de barítono, são destina-
dos a controlar ou expulsar as forças elementares. Por isso os monges podem receber
do povo alimentos, dinheiro e presentes. As ofertas de manteiga yak, sobretudo
entre os tibetanos, desempenham um papel importante.
Já bem cedo o budismo, que rejeita um Deus criador todo-poderoso, se uniu em
toda a parte à religião popular e aos seus deuses, como à religião mago-xamanista
bon, oriunda do Tibete, e ao tantrismo indiano. Os poderosos deuses da natureza,
das montanhas, da tempestade e do granizo sempre precisam ser aplacados com
157
RELIGiÕES DO MUNDO
invocações e dádivas. Templos budistas muitas vezes são defendidos por dragões e
serpentes - que no Oriente são venerados como seres sobrenaturais e benfazejos!
Muitas vezes eles protegem também os músicos e dançarinos celestes. Estátuas guer-
reiras de olhar feroz, ou então divindades amigas e pacíficas, muitas vezes protegem
o limiar do santuário. Da mesma forma que na Idade Média européia, é necessário,
pela recitação de sutras ou então por meio de música e barulho, expulsar os inúme-
ros espíritos maus que estão presentes por toda a parte. Pondo a girar uma grande
ou pequena roda de oração, esta deve ser repetida sem parar.
Nos países Theravada, como Birmânia e Tailândia, em parte a comida costuma
ser doada aos monges na rua. Hoje em dia, no entanto, quase sempre o auxílio
material é dado de uma forma diferente, como nas ordens mendicantes cristãs. Em
sinal de sua renúncia ao mundo, os monges raspam o cabelo e abrem mão da proprie-
dade pessoal. Dessa última regra, no entanto, ficam excluídos seis itens: prato de
esmolas, cinto, navalha de barbear, agulha, palito e peneira para coar da água os
organismos vivos. Hoje em dia, na verdade, freqüentes vezes os monges dispõem de
outras posses pessoais, gozando de especial preferência os relógios.
Já com seis ou sete anos de idade, uma criança - só os meninos, não as meninas-
pode ser admitida à escola monástica. Isso manifesta grande merecimento e também
uma honra para os pais. À criança é garantida uma boa formação monástica. Os
noviços aprendem de cor os textos sagrados em livros finos de formato largo, que,
como é usual na China antiga, são impressos com matrizes de madeira. Mas no
mosteiro os discípulos também podem ter aulas de inglês, por exemplo. Aí são esta-
belecidos muitos contatos para a vida futura, de grande urilidade mesmo se a crian-
ça não ficar no mosteiro após o noviciado.
Passar da comunidade monástica para a comunidade leiga, e vice-versa, é, portan-
to, muito mais fácil do que no cristianismo. Monges e freiras podem a qualquer mo-
mento sair ou então entrar novamente. Nos paísesTheravada, como na Tailândia, os
meninos mandam cortar o cabelo e entram no mosteiro por três meses, a fim de
estudar as doutrinas budistas. Os adultos também podem entrar no mosteiro por um
período mais curto - para uma espécie de "dias de reflexão" ou de retiro espiritual.
Além da meditação e das cerimônias, a vida no sangha inclui também o estudo
aprofundado dos escritos budistas oficiais. Os estudantes têm não apenas que estu-
dar o darma, J!1as também praticá-lo e, caso não venham a escolher a vida meditati-
va, transmiti-lo a outros. Durante os debates, aquele que está sendo examinado fica
sentado. O examinador dirige-lhe a pergunta com grande ênfase e encerra sempre
batendo palmas. Assim se aprende a dialética e a retórica, o pensamento analítico
rápido e a força do convencimento retórico.
158
BUDISMO
159
RELIGIÕES DO MUNDO
• não matar,
• não mentir,
• não furtar,
• abster-se da devassidão
' . ' .Ó, ""',. ":', ", ...•,: .. , : Ó:
160
.
Ilustrações
• RELIGIOES TRIBAIS
HINDUÍSMO
• RELIGIOES CHINESAS
BUDISMO.
JUDAÍSMO
CRISTIANISMO.
'i1 ISLAMISMO
• Religiões tribais
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"Vazio".
Por muitos dias os monges trabalham fazendo uma mandala de areia: não se trata
de um trabalho, mas sim de um exerdcio meditativo.
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1:
e
110
Itzhak Rabin teve que pagar com a vida seu empenho pela paz e pela reconciliação:
aqui em Te! Aviv, com um tiro de um israelense radical.
Cristianismo
• A cruz: de sinal de vergonha a
sinal de salvação.
Kairuan: a mesquita mais antiga do norte da África, quarto lugar sagrado do islã,
depois de Meca, Medina e Jerusalém.
Marabut: túmulo ou memorial de um santo.
Não violar a integridade corporal; não violar a posse e a propriedade; não violar
a verdade em palavras e em ações; não violar a fidelidade conjugal. Essas quatro ou
cinco regras éticas (sila) como que constituem um compêndio da moral budista.
Em muitos mosteiros, elas são recitadas pelos monges após a "fórmula de refúgio",
e pelos discípulos leigos, para confirmar sua conversão. A isso acrescenta-se ainda
no budismo a Regra Áurea contra todo egoísmo: "Como posso fazer a alguém
alguma coisa que não deve ser feita a mim mesmo?"
Não se pode deixar de lembrar que às monjas budistas - a contragosto admitidas
pelo Buda - cabe um status nitidamente inferior ao dos monges. Uma subvalorização
da mulher - que infelizmente não é exclusividade do budismo!
161
RELIGIÕES DO MUNDO
162
BUDISMO
A DIVISÃO DO SANGHA
Para os monges que renunciam ao mundo, a religião, a partir de Ashoka, passa a ser
uma força de transformação política e de configuração do mundo. Uma mentalidade
de agressão e de guerra para conquistar o mundo, como entre os cristãos e muçulma-
nos, dificilmente encontra acolhida. Pois uma "política realista" que diverge das nor-
163
RELIGIÕES DO MUNDO
mas éticas não encontra apoio no Buda nem em Jesus de Nazaré. Mas, de maneira
semelhante ao que sucedeu com a Bizâncio cristã - e apesar de todas as diferenças que
existem entre o sangha e a igreja -, o soberano secular continua sendo o patrono da
comunidade religiosa: uma perfeita unidade, também nos países budistas clássicos
(budismo de Theravada), entre Estado, cultura e religião. A direção do Estado promove
o sangha. E o sangha legitima e apóia - até hoje - a direção do Estado. Não sem razão
se tem falado da Birmânia, Tailândia e Sri Lanka como "estados-igreja" do budismo.
Já por volta de 250 a.c., a doutrina do Theravada se havia difundido por amplas
regiões do sudeste asiático. Sri Lanka passa a ser o principal centro da tradição. De
fato, no século XI o grosso do país indiano fica definitivamente perdido para o bu-
dismo, em parte por causa das invasões muçulmanas e em parte por causa da deca-
dência dos ricos mosteiros budistas, que haviam se tornado excessivamente podero-
sos! Os escritos do Theravada, redigidos em páli (um estágio intermediário da evo-
lução lingüística da Índia), constituem até hoje as coleções mais numerosas e com-
pletas dos textos budistas primitivos. Por isso os budistas Theravada se entendem
até hoje como os guardiães da verdadeira doutrina. Para eles, esta se encontra reuni-
da no cânon pálio E este inclui os "três cestos" (tripitaka): a regra da ordem (vinaya),
as prescrições doutrinárias (sutras) e a doutrina mais elevada (abhidharma).
Dessa forma o budismo, a partir da Índia, se difunde sobretudo pelo caminho
marítimo - numa "rota meridional" para Sri Lanka, Birmânia, Tailândia, Camboja e
Laos, até a Indonésia - deixando por toda a Ásia meridional magníficas construções.
Ao mesmo tempo que passa por essa grande expansão, o budismo, na verdade, não
fica imune às conseqüências ambíguas de sua "guinada constantiniana", Nos paísesda
Theravada difunde-se algo assim como uma "Idade Média" budista. Pois por toda a
parte se passa agora a construir sobre as relíquias ou sobre os textos de Buda inúmeros
stupas, como obras rnerirórias, Dessa forma consegue-se, também arquitetonicamen-
te, expressar até que ponto, mesmo para os monges, a prática budista, em lugar de
basear-se em não reunir carma (para poder entrar no nirvana), passa a concentrar-se
no reunir urnbom carma: acumular méritos para uma melhor reencarnação. Mas com
o tempo, da mesma forma como aconteceu na Idade Média cristã, isso leva a uma
justiça pelas obras, que se esforça por acumular méritos religiosos.
Essa primeira mudança de paradigma, da primitiva religião da elite para uma
religião das massas, já tem, portanto, como conseqüência, também no budismo,
164
BUDISMO
165
RELIGIÕES DO MUNDO
No Pequeno Veículo, o ideal era o arhat monástico (paradigma 11), que alcança a
salvação unicamente para si mesmo - o ideal da busca da redenção individual. Em
oposição a isso impõe-se o ideal do santo amigo do homem, da iluminação, do
bodisatva (paradigma I1I), que também é basicamente diferente do santo mágico ou
siddha do tantrismo (paradigma IV), dono de forças miraculosas. O bodisatva não
procura o caminho mais curto para o nirvana. Ele se empenha também pela salva-
ção dos outros. Pode-se pedir auxílio a ele em toda e qualquer situação de necessida-
de, pois, com uma compaixão sem limites, ele deseja ajudar a todos a alcançar a
salvação. Mas aquele que quiser realizar o ideal do bodisatva tem que, no decurso de
sua existência, alcançar as seis perfeições (paramita): generosidade, ética (sita), paciên-
cia, energia e, por último, com o aprofundamento (dhyana), atingir os níveis mais
elevados da meditação, para assim poder chegar à sabedoria (prajana), meta da vida
do bodisarva,
O mabayana tem o inegável mérito de haver dissolvido a tensão básica entre exis-
tência monástica e existência leiga. Em ampla escala, essa tensão já se havia instalado
no Theravada, apesar de aí se ter dissolvido por meio da piedade da esmola (dana). É
justificada a denominação Grande Veículo, na medida em que se trata de transportar
os outros para o outro lado do grande rio do sofrimento (da redenção). Ora, o cami-
nho da redenção definitiva deve estar aberto não apenas a um pequeno número dos
monges, mas precisa agora tornar-se acessível a muitos. De uma religião de monges
chega-se assim cada vez mais a uma religião de leigos, que promete também aos não-
monges, e mesmo às mulheres, a possibilidade de alcançar a iluminação.
Não obstante, apesar de toda a abertura para os leigos, no mabayana acabaram
por se formar grandes hierarquias monásticas, a que se pode aplicar o nome de
"igreja superior" - com importantes títulos (abades, arquiabades, abades gerais),
vestes preciosas e grandes riquezas de templos e de mosteiros. Os monges superiores
são tratados pelo povo com o mesmo respeito, ou com a mesma submissão, como
muitos hierarcas cristãos. E quando, por exemplo, para a festa do outono, na antiga
capital japonesa de Nara, se reúne um grande número de monges da China (em
mantos amarelos), da Coréia (cinzentos), do Tibete (vermelhos) e do Japão (roxos)
na maior construção de madeira do mundo, eles se apresentam não apenas como
uma assembléia extremamente multicolorida, mas também altamente cerimonial,
ou mesmo como uma religião clerical.
Ou então, quando nessa festividade (hoyo) se recitam sutras e se fazem invocações
diante da estátua do grande Buda, os leigos têm muito a admirar, mas muito pouco
166
BUDISMO
dizer. Será então mero acaso que nas línguas européias a palavra japonesa banzo
Ie bozu: "sacerdote", "monge") tenha conservado o significado depreciativo de um
rncionario espiritual distante do povo, como em alemão o termo depreciativo pjàffe
ligo assim como "padreco") para os clérigos?
Na China, como vimos (religião chinesa, paradigma IV), o budismo teve uma
história cheia de conseqüências, que se manifestam até o presente, sobretudo no
Japão. Quando hoje contemplamos certos templos no Japão, podemos pensar que
estamos na China, na idade de ouro da dinastia budista Tang (618-906). Mas
estamos no Japão, talvez em Nara, lá onde a cultura chinesa clássica dos Tang
estabeleceu-se e marcou época. E com ela o budismo, que já em 594, através de
uma constituição, foi no segundo dos" 17 artigos" do príncipe Shokotu declarada
religião do estado. O budismo - com sua ética de características fortemente con-
fucianas - haveria, .de fato, de marcar o Japão mais do que qualquer outra religião
estrangeira.
Antes quase não existia no Japão uma língua escrita difundida por todo o país.
Não havia técnicas refinadas de pintura, escultura, arquitetura ou urbanismo, não
havia calendários, não existia uma filosofia nem uma religião de alto nível. Ou
lG7
RELIGIÕES DO MUNDO
mesmo, não havia antes nenhum governo unitário, nem administração estatal, nem
uma capital. De forma alguma se pode negar: assim como Grécia e Roma fornece-
ram as bases para a ascensão cultural da Europa, também China e Coréia, então
amplamente budistas, forneceram as condições para a ascensão cultural do Japão. E
como no tempo dos francos a herança da Grécia e de Roma se misturou com a
cultura dos povos germânicos bárbaros, passando a constituir algo novo, assim, na
época de Nara, a herança da China misturou-se com a cultura dos japoneses, ainda
pouco desenvolvida.
O budismo chega ao Japão como uma religião já altamente desenvolvida, do
ponto de vista organizativo e filosófico. Mas, por mais ricos e substanciosos que
sejam seus escritos, por mais magníficas que sejam suas cerimônias, por mais técnica
e esteticamente refinada que seja sua arte, a religião japonesa primitiva do shinto,
com a veneração da natureza e seu animismo (xamanismo), não se deixará, sem mais
nem menos, desalojar.
Pelo contrário: o budismo (butsudo: "caminho do Buda") e o shinto(kami no miehi:
"caminho dos karni") se unem de muitas maneiras. Estátuas de budas e bodisarvas,
muito admiradas, são veneradas agora lado a lado com as divindades da natureza
(kaml), e dessas havia oitocentos milhares. Ou mesmo, muitas divindades xintoístas
são agora entendidas como manifestações e encarnações de budas e bodisatvas e, como
protetoras, incorporadas ao budismo. Dessa forma ocorre uma admirável osmose:
quanto mais o budismo se difunde no Japão, tanto mais ele é japonizado, ao mesmo
tempo que a religião xintoísta nativa é "budificadà'. Através desse processo é que
surge o budismo caracteristicamente japonês.
o BUDA SUPRATERRENO
168
BUDISMO
Para explicar essa dou~.ina "sublime" sobre Buda, foi desenvolvida uma teoria
dos três corpos (trikaya)/de que existem paralelos também na cristalagia (o corpo
do Cristo terreno, o corpo do Cristo glorificado, o corpo do Cristo identificado
com o eterno Logos). Além do corpo visível com que o Buda histórico se mani-
festa (nirmanakaya), existiria ainda um corpo da felicidade no paraíso de Buda
(samboghakaya) e, por último, o corpo do darma cósmico (dharmakaya). Este últi-
mo identifica-se com a lei do universo, com o Absoluto.
Mas tem mais ainda. Sendo eterno, o Buda também pode agir em todos os tem-
pos. Segundo os theravadin, o Buda, de acordo com a antiga concepção indiana, já
havia passado por numerosos nascimentos anteriores. No mahayana vai-se ainda
mais longe. De acordo com ele, em épocas anteriores já teria havido mesmo outros
Budas supraterrenos, eternos e transcendentes. Contam-se pelo menos três, antes do
Buda terreno. O primeiro deles é aquele Buda cósmico Vairochana, o "igual ao sol",
representado em Todaiji com o gesto de quem ensina e distribui graças. Vairochana
é o mais elevado dos cinco Budas transcendentes. Identifica-se com o Adi-Buddha
ou Buda primordial, que por sua vez é uma personificação do Dharmakaya, do
Absoluto. Ele é, por assim dizer, "igual a Deus"! Assim, esse budismo chega a ter
mesmo traços messiânicos. Pois depois do Buda Gautama - o quarto dos budas
transcendentes -, quando o estado do mundo se tornar ainda pior, deverá aparecer
o último Buda para essa época do mundo: o Buda Maitreya, "o amante" , que perso-
nificará o amor que tudo abrange.
169
RELIGIÕES DO MUNDO
Porém - e isto seja dito aqui em uma única frase -, parece que todas essas idéias
dos Budas distanciaram-se m~is ainda do Buda original Gautama do que as especu-
lações cristológicas e trinitárias medievais sobre o Jesus de Nazaré original. E aqui os
budistas que possuem autocrítica se interrogam: "Será que este budismo 'medieval'
tem algum futuro?"
Que futuro tem a religião no Japão? Que voz a geração jovem deseja escutar? Essa
pergunta é levantada não apenas pelos representantes da "religião nacional" do
170
BUDISMO
Dessas três opções falaremos a seguir, a começar pela meditação-zen, que teve e
continua a ter grande influência sobre toda a cultura japonesa.
CALIGRAFIA: "ZEN"
171
RELIGIÕES DO MUNDO
Ser aceito em um mosteiro zen não é coisa fácil. É um ritual rigorosamente regu-
lamentado. O postulante terá que apresentar por escrito sua solicitação para ser
aceito e colocá-la na porta de entrada. Primeiramente ele ouvirá lá de dentro, por
detrás da porta, uma resposta negativa: "Não há mais lugar neste mosteiro. Em
Kyoto existem outros mosteiros, como Nanzen-ji... " Muitas vezes o aspirante tem
que ficar à espera por horas ou dias inteiros. Isso também faz parte do ritual. Por fim
será aceito.
No mundo moderno, aquele que dá valor à concentração religiosa, à simplicida-
de, à interiorização e à experiência direta do coração poderá encontrar tudo isso,
melhor que em qualquer outro lugar, no budismo de meditação da tradição mabayana.
Desde os primórdios a meditação é um dos meios para se chegar à intensa autodis-
ciplina espiritual na vereda óctupla do budismo. Mas nos países Theravada freqüen-
tes vezes ela tem ficado em segundo plano, dando lugar a doutrinas, ritos e mereci-
mentos budistas.
Em sua era de florescimento, do séculoVIII ao XIII, o movimento reformador
chinês do budismo de meditação Ch'an (do sânscrito dhyana: "concentração") assu-
miu muita coisa do misticismo da natureza e da forma de vida do taoísmo. Já no
início do século XIII esse movimento penetrou no Japão, onde é chamado de zen,
que também significa concentração e recolhimento. Como caminho real para a
iluminação (satori) é praticado o zazen: o "ficar sentado em contemplação", em
silêncio e sem outra finalidade. Para isso devem ajudar certos enigmas paradoxais e
tarefas intelectuais quase insolúveis (koan), que fazem a pessoa sair dos limites do
pensamento racional.
172
BUDISMO
173
RELIGIÕES DO MUNDO
Nas pinturas japonesas pode-se perceber corno elas se caracterizam pela esponta-
neidade, assimetria, transparência e espaço vazio: uma associação de extrema sim-
plicidade e perfeição artística. Muitas vezes a representação das coisas mais simples
da natureza apresenta-se apenas esboçada; muitas delas tentam apresentar a unidade
de forma e de vazio. Tudo isso em consonância com o dito zen: "As árvores mostram
a forma corpórea do vento."
Até hoje o espírito meditativo zen influencia a pintura japonesa e sobretudo a
jardinagem. Os jardins, dentro do espírito zen, chamam a atenção por sua configu-
ração artística. Tentam expressar naturalidade e transparência por meio de uma con-
tida simplicidade. Também o jardim de pedras procura expressar a mesma coisa,
com o cascalho sempre cuidadosamente arrumado do mesmo jeito com um anci-
nho. Pretende expressar liberdade, amplidão, abertura, esvaziamento. Vazio e orga-
nizado como o jardim deve ser também o espírito do monge, livre da ganância, do
ódio e da cegueira.
Mas o que significa vazio? Um conceito de compreensão difícil para os ociden-
tais. Para podermos compreendê-lo, precisamos saber que a mudança de paradigma
do Grande Veículo modificou também a visão da salvação, do nirvana. O nirvana
não é para ser alcançado só no final do samsara, do ciclo da vida, mas sim em meio
ao samsara, no aqui e agora, pois para o budista as coisas deste mundo não possuem
consistência, não têm substância permanente, não têm uma essência imutável. E
aquele que é iluminado sabe que a verdadeira essência do universo consiste em não
ter essência.
Esse conhecimento deve levar a um estado de leveza do ser, à sabedoria, à tran-
qüilidade, ou mesmo à alegria em meio à vida. É o que muitas vezes é representado
através do sorriso do Buda. Mesmo tendo ainda que sofrer após a iluminação, para
ele o sofrimento e a morte perderam o gosto amargo. Todo aquele que tenha enten-
dido a realidade deste mundo corno vazia, sem substância, a esse também nem mes-
mo a velhice, a doença e a morte conseguem abalar. Ele é capaz de transformar o
sofrimento em paz e alegria. Sabe que participa da natureza do Buda.
Com facilidade o calígrafo escreve a palavra vazio, embora seu significado seja
difícil. É um outro importante atributo. Mas há uma pergunta que não se pode
deixar de fazer: Aquele que reconheceu o vazio encontra-se também além do bem e
do mal? Que seja possível usar - e abusar - da meditação para todo tipo de propósito,
demonstraram-no os guerreiros samurai da ditadura militar tokugawa e depois, no
século XX, mais urna vez os militaristas japoneses e muitos comerciantes agressivos.
174
BUDISMO
Que padrões morais devem então ser observados por monges, administradores e
militares? Pode o soldado matar, o político mentir e o comerciante roubar, uma vez
que tudo é "vazio", tudo é indiferente? Não deverá aquele que se encontra no cami-
nho da iluminação viver também de acordo com isso e observar pelo menos as
quatro obrigações elementares do Buda? É essa exatamente a pergunta que se fazem
os adeptos autocríticos do zen.
o BUDISMO DA FÉ:
CONFIANTE INVOCAÇÃO DO NOME DE BUDA (SHIN)
Existe uma segunda escola budista, que conhece diretamente uma liturgia minu-
ciosamente regulamentada, a começar pelo toque do sino. O homem que, na socie-
dade moderna, considera insuportável a responsabilidade total do zen-budismo para
sua própria salvação, pode encontrar no budismo da fé um caminho para a salvação,
visto que nesse caso tudo o que importa é a confiança no Buda, mais precisamente
no Buda Amida, o Buda do "paraíso ocidental".
Quem no Japão possui o maior número de adeptos não é o zen, mas sim esse
budismo da fé. ou budismo Amida: sobretudo aquela "verdadeira escola da terra
pura" (em japonês,jodo shin-sho) , que foi fundada numa era de crise da sociedade e
da religião .na Idade Média japonesa, na era Kamakura, no monte Hiei, por Shinran
Shonen ("o santo") (1173-1262), contemporâneo dos grandes mestres-zen Eisai e
Dogen, mas também de Tomás de Aquino e Boaventura na Europa. Por seu mes-
tre Honen Shonin (1133-1212) Shinran foi levado a acreditar no Buda Amida,
passando desde então a considerar como único meio de salvação a recitação do
nome de Buda.
O ponto de partida do seu movimento teria sido uma crise inteiramente pessoal.
Na verdade, de uma maneira semelhante ao que mais tarde ocorreu no cristianismo
com o monge Martinho Lutero, o monge Shinran experimentou a viva sensação de
que as muitas obras da piedade tradicional não traziam a salvação. Shinran rompe
assim com a ordem e a tradição monástica. Desesperado com sua incapacidade e
insegurança para salvar-se, após vinte anos ele deixa o mosteiro no monte Hiei.
Casa-se, funda uma família e difunde sua doutrina, primeiro entre os camponeses
do Japão oriental, depois, novamente a partir de Kyoto: a mensagem da pureza da
terra. Que é importante para ele?
Em um ponto central, com sua mensagem, Shinran está em oposição à doutrina
budista clássica. De acordo com esta, o homem pode realizar a salvação por sua
"própria força" (em japonês, jirikz) - portanto, sem um Deus de bondade e sem a
intercessão de santos ou de sacrificios de sacerdotes. Baseado em sua própria experiên-
cia existencial, no entanto, Shinran chegou à convicção de que o homem permanece
um ser envolvido em suas paixões, um ser submetido ao carma. Ele é incapaz de
175
RELIGIÕES DO MUNDO
salvar-se a si próprio, de superar seus sofrimentos por si mesmo. Quer seja monge,
quer leigo, homem ou mulher, instruído ou ignorante, ele só pode alcançar a salva-
ção pela confiança em uma "outra força" (em japonês, tarikr), portanto, só com base
na fé - voltando-se para a promessa do Buda Amida. Pois a tradição diz isto: o Buda
Amida (em sânscrito, amithaba), em vidas anteriores um rei, depois um monge, é
agora o Buda da "luz infinita". Em todas as representações ele está sentado em meio
a uma flor de lótus, símbolo da pureza sobre o pântano; ele governa o "paraíso
ocidental" e irradia infinita compaixão e sabedoria.
LITURGIA BUDISTA
Os fiéis são constantemente confirmados por meio da liturgia. Isso já ocorre pela
leitura de um escrito de Shinran ou de um clássico dessa escola. E, de acordo com
Shinran, é particularmente importante reconhecer primeiramente a própria culpa,
ou, como se diz: "Primeiro deve-se reconhecer um profundo pecado; essa é a pri-
meira coisa que se deve fazer, nada mais do que isso."
Não resta dúvida de que aqui se abre um novo caminho de salvação que atrai
muitos fiéis, até mesmo alguns adeptos do zen, que em última análise não querem
confiar na "própria força". Grande é, então, também a promessa: as reencarnações
sem fim deixam de ser necessárias. A salvação já pode ocorrer aqui e agora! Como?
Simplesmente por uma crente e confiante invocação do nome de Amida Buda,
como é solenemente cantado no Nembutsu da liturgia xintoísta, mas com particular
eficácia na hora da morte: "Namu (veneração) de Amida Butsu (Buda)!"
Olhando assim seu despertar da morte em uma flor de lótus na Terra Pura do
paraíso, o fiel já agora pode haurir confiança e força para a vida diária. Como se
pôde ouvir de uma pregadora no final da cerimônia: "Eu vivo agora no final do
século XX, e há muitas coisas sobre as quais preciso refletir: a insegurança na socie-
dade e o motivo por que nasci." A isso o Amida Buda dá uma resposta.
A piedade Amida, evidentemente, pode levar a pessoa a empenhar-se pela fé e a
negligenciar a ética - uma objeção que foi levantada também contra a fé confiante de
Martinho Lutero. As quatro obrigações fundamentais do Buda também parecem não
ser mais ensinadas expressamente. Mas todo shin-budista sabe perfeitamente: ele pre-
cisa viver de tal forma que não tenha que se envergonhar diante do Buda Amida!
BUDISMO SOCIOPOLÍTICO:
FUNDAÇÃO DO REINO DE BUDA (NICHIREN)
176
BUDISMO
Entre cerca de uma dúzia de universidades em Kyoto, cinco são de origem budis-
ta. Uma delas, a Universidade Ryokuku, surpreendentemente criada já em 1639,
dispõe hoje de três campi, com cerca de 17 mil estudantes. No emblema da univer-
sidade encontram-se representados os três valores do budismo: o Buda, o darma e o
177
RELIGIÕES DO MUNDO
ron a- o:
>"-':5':'(,";'-.-,,'''' _ _ ,'t>;"",,</
b'émsequer saber se,
..<,Qão irá. pre~t~r: ~jydaeq'ual
:respônder'a isso(OmÍ'T)aisJ,:/~,:" :~/!""<" ~."
:o Buda da compaixão, ~ nes .Já:dé:dnt~thão·9s·shir1}.
·engajados. E. também as novas. ões'origiriàdásde Nichire s ~o'\/oltadás
· para a açãona vida social dehóje;Lim grupoéom~ o Rissho:Koséi- ai
mostra-se
atuante não somente no TerceiroMundo, mas também na ç:onf~rência Mundial
das Religiões pela Paz.
Uma coisa que é comum aJodos.os·budistas e.. aJodos:os'japoneses é o
· cabedal ético; que o Japãoàdqúiri~a partirc:lo:confucionismo :é~d~Í1tro',d~ qual
determinados deveres.são naturais e evidentes.:Nãci Obstànte/c~m:muita fre~
qüência se têm acentuado no :Japãoos deveres dos debaixo óm os de
· cima. Mas hoje, em face detantQs problernàs,in~iste~sé mai~~m que os ci~ cim~,'
como os políticos, também têm }feveres para ~~in osâebaixo,:e4u'e aqui é
necessário que sejam levadas asériô determinadasnormas de ~oral{dade, como
'~não mentir, nãoroubàr" t : .
178
BUDISMO
• não apenas ciência, mas também sabedoria, para impedir os abusos da pesquisa
científica;
• não apenas tecnologia, mas também energia espiritual, para manter sob controle
os riscos imprevisíveis de uma tecnologia de alta eficiência;
• não apenas indústria, mas também ecologia, que numa era de globalização possa
fazer frente a uma economia sempre em expansão;
• não apenas democracia, mas também uma ética, que seja capaz de enfrentar os
maciços interesses das pessoas e grupos que detêm o poder: em um mundo
globalizado, uma ética global, um etos comum da humanidade, uma ética
mundial.
179
P I (Comunidades primitivas)
P 11 (T~~ravada)
P 111 (Mahayana)
P IV (Budismo tibetano)
Judaísmo
181
RELIGIÕES DO MUNDO
o ENIGMA DO JUDAíSMO
Os judeus têm um Estado, mas em sua maioria não são cidadãos desse Estado.
• Eles são um povo, mas ao mesmo tempo não são; são uma comunidade de lín-
gua, mas ao mesmo tempo não são; são uma comunidade religiosa, mas ao mes-
mo tempo não são.
TRAJES JUDAICOS?
182
JUDAíSMO
inal de respeito. Eles não vêem razão para, no mundo moderno - como o fazem os
:hassidim -, usarem nos afazeres diàrios um traje proveniente da Polônia do século
(VJI, sobretudo o chapéu preto. Durante muitos séculos, a maioria dos judeus não
:onhecia nenhum traje que os distinguisse.
Reconhecidos ou não pelo traje, contrariamente ao que acontece em Nova York e
em Israel, no mundo inteiro os judeus são numericamente uma pequena minoria.
Mas, do ponto de vista espiritual, religioso, cultural e econômico, eles são uma
~rande potência, que escreveu e viveu ela própria a história do mundo: uma grande
religião com caráter próprio. Em todo o mundo essa religião tem suas sinagogas.
Em Nova York, a mais antiga sinagoga ainda em uso é a Central Synagogue na Park
Avenue.
Já bem cedo a pátria do povo judeu veio a ser Canaã. É uma estreita faixa de
passagem entre o Mediterrâneo ao oeste e o deserto sírio e árabe ao leste. Ao sul a
grande potência do Egito e ao norte a potência contrária da Mesopotâmia. É um
país com desertos, montanhas e apenas umas poucas planícies férteis.
183
RELIGIÕES DO MUNDO
De início essas histórias bem simples, sobre vultos como Abraão, Isaac e Jacó,
etam transmitidas apenas de boca em boca. E, historicamente, elas são tão impossí-
veis de ser verificadas quanto as epopéias de Homero, a canção de Rolando, a saga
de TeUou a canção dos Nibelungos. Essas coisas todas não são biografias, mas tam-
bém não são puras lendas. São sagas.
As sagas distinguem-se pela brevidade, pela simplificação e por se concentrarem
sobre um pequeno número de pessoas. Por via de regra, elas possuem um núcleo
histórico, mesmo que às vezes seja difícil datá-lo. E possuem fUndamento histórico.
Pois naquelas narrativas bíblicas dos patriarcas transparecem com precisão as condi-
ções socioculturais que devem ter vigorado na Palestina nos cerca de cinco séculos
que vão de 1900 a 1400 a.c. Essas condições já nos são conhecidas de fontes
extrabíblicas, como Sinuhe, o egípcio, que viveu ali entre semi-nômades (século XX
a.C.). Com nomes de pessoas comuns entre os semitas ocidentais, essas sagas termi-
naram sendo lançadas por escrito no primeiro livro da Bíblia, o Gênesis. Esse livro
foi composto a partir de diversas fontes orais, num processo que pode ter levado
cinco séculos.
E agora algo que provoca admiração: esse povo tem perfeita consciência de que,
em comparação com os povos vizinhos, ele é um povo relativamente novo, que não
existiu sempre. Ao contrário dos povos do Egito e da Mesopotâmia, ele não associa
sua história a nenhuma história mítica de deuses. Pelo contrário, tem consciência de
haver nascido tardiamente em terra estrangeira. A primeira menção histórica do
nome de Israel também só é encontrada na estela de Israel do Faraó Amenófis UI, na
18l dinastia (século XIV a.C).
Na verdade o livro do Gênesis conta primeiramente uma longa história dos
primórdios, uma história universal da humanidade como tal: a criação do mundo e
do homem, a queda no pecado, o dilúvio, a aliança com Noé, a torre de Babel (cap.
1-11). Só então é que, de certa forma como uma pré-história, seguem-se os três
ciclos de sagas em torno dos patriarcas Abraão, Isaac (como também de Ismael) e
Jacó, chamado Israel (bem como de Esaú) (cap. 12-36). Tudo isso não é mais do que
uma grande introdução à história das 12 tribos, daqueles 11 irmãos que venderam o
filho predileto de Jacó, José, para o Egito (cap. 37-50).
184
JUDAÍSMO
ABRAÃO, UM IMIGRANTE
A tradição nos diz que Abraão, com seu clã de pastores nômades, emigrou da
Mesopotâmia, país das construções em forma de torres: mais precisamente, da rica
cidade de Ur, na Mesopotâmia meridional, com seu templo de vários andares
(zigurate) dedicado ao deus da lua, Sino
De acordo com a tradição, Abraão mudou-se com sua família para a cidade de
Harã, na Mesopotâmia setentrional, na grande curva do Eufrates. E de lá para a
Palestina, então habitada pelos cananeus. Desde o início, portanto, Abraão não era
um nativo e sim um imigrante, que permaneceu até sua morte, em idade avançada,
um "estrangeiro". Abraão pode ter vivido em sua época como hoje os beduínos, na
periferia das cidades.
Mas por que Abraão desempenha até hoje um papel tão fundamental não
apenas na Bíblia hebraica, mas também no Novo Testamento, e até mesmo no
Corão, onde, depois de Moisés, é ele a figura bíblica mais freqüentemente men-
cionada? A razão é que todos descendem dele: primeiramente Isaac e Jacó, os
patriarcas de Israel e de Jesus Cristo. E também Ismael, o patriarca dos árabes e,
mais tarde, dos muçulmanos.
Todos eles escutam promessas de Deus. Israel deverá tornar-se um grande povo
e ganhar uma terra para morar. Também Ismael há de tornar-se um povo, e assim
Abraão tornar-se-á uma bênção para todos os povos.
Por essa razão, Abraão adquiriu um incomparável significado ecumênico, como
patriarca das três grandes religiões de origem semítica do Oriente Médio. Em sua
vida, o patriarca talvez tenha conhecido ainda outros deuses, abaixo do único
Deus supremo (só com o tempo é que, a partir do henoteísmo, desenvolveu-se o
monoteísmo rígido e exclusivo), porém de forma alguma conheceu um deus con-
trário e mau ou a parceria de uma divindade feminina. Por isso, para as três reli-
giões, Abraão é o representante primordial do monoteísmo, o arquétipo das religiões
proféticas.
A fé de Abraão é profundamente distinta da religiosidade encontrada nas reli-
giões míticas da Índia ou nas religiões sapienciais da China. Pois Abraão é o ho-
mem que não conhece Deus "em si", como os indianos, nem também simplesmen-
te "acima de si", como os chineses. Não, ele está "na presença de Deus" e com isso
manifesta, em relação a Deus, uma incondicional e inabalável confiança, ou seja, a
fé - mesmo quando Deus parece exigir dele o sacrifício de seu filho; o pintor judeu
Marc Chagall conferiu à fé de Abraão uma expressão inigualável. Por isso, às três
religiões abraâmicas se dá, também, o nome de religiões da fé.
185
RELIGIÕES DO MUNDO
A única propriedade que Abraão adquiriu teria sido um pedaço de terra perto
de Hebron, para servir de túmulo para sua família. Mas a Bíblia insiste em que ele
não tomou a terra pela força. Antes, negociou respeitosamente com aqueles que
havia séculos já se encontravam estabelecidos ali e cujo direito ele de antemão reco-
nheceu.
Até hoje o túmulo de Abraão é mostrado aos peregrinos e turistas judeus, cristãos
e muçulmanos - em Hebron (Kyriat Arba). Um lugar hoje majoritariamente pales-
tinense, com uma nova colônia judaica no centro; esta, sobretudo depois do massa-
cre de um colono judeu no túmulo, que vitimou 29 muçulmanos, precisa ser prote-
gida por um grande contingente de soldados israelenses. Hoje o grande monumen-
to é literalmente uma construção das três religiões, pois sobre o túmulo de Abraão
foi construída uma fortaleza do rei Herodes e, por cima desta, uma mesquita, que os
cruzados transformaram em basílica.
Mas hoje - para evitar novos conflitos - muçulmanos e judeus só podem visitar
o túmulo de Abraão e dos outros patriarcas em horários diferentes e por entradas
diferentes. Ao meio-dia, pela entrada do lado esquerdo, convocados pelos rnuezins,
chegam os muçulmanos. Para estes, Abraão - em árabe, Ibrahim - recebeu a revela-
ção primitiva e original, como se encontra, sem erros, unicamente no Corão. De
tarde, então, subindo a entrada do lado direito, os colonos judeus, rigorosamente
vigiados. O "povo de Israel" tem direito à "terra de Israel": para eles isso já se funda-
menta na figura de Abraão.
Facilmente fica no esquecimento o que judeus e muçulmanos possuem em co-
mum. Pois já do ponto de vista étnico, judeus e muçulmanos não são unidos entre
si? Uns e outros são semitas, uns e outros têm uma língua semelhante. E também os
cristãos reconhecem em Abraão o modelo de sua fé. Para as três religiões proféticas,
Abraão é o pai da fé.
Não obstante, ao longo dos séculos, cada uma das três religiões tentou monopo-
lizar Abraão para si.
186
JUDAÍSMO
187
RELIGIÕES DO MUNDO
No livro do Êxodo, na narrativa sobre a saída do Egito, se diz: "Nesse dia explica-
rás ao teu filho: Tudo isso é p;lo que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito"
(13,8). A pergunta tradicional é feita pelo membro mais jovem da família: "Qual é
a diferença entre esta noite e todas as outras noites?" A resposta: "Em todas as outras
noites nós comemos (pão) fermentado e não fermentado, mas esta noite só pão sem
fermento, só ervas amargas."
Nessa noite deve ser lido algum trecho da Haggada, a "narrativa do êxodo". Em
muitas imagens (são célebres as da Haggada de Sarajevo) são representados sobretu-
do os trabalhos forçados no Egito, a obstinação do Faraó e as dez pragas infligidas
ao seu povo, bem como a travessia do mar dos Juncos para libertar-se do Egito.
Artisticamente estruturado, o ciclo bíblico do Êxodo é, em muitos pontos, impe-
netrável, e historicamente muita coisa também é contestada. É possível que o grupo
do Êxodo, o grupo de Javé ou de Moisés, tenha sido formado apenas por algumas
tribos. Mas qualquer que tenha sido o fato acontecido historicamente, a recordação
de uma primeira libertação do povo da escravidão do Egito é e continua a ser até
hoje fundamental para a autocompreensão de todo o povo de Israel. Por isso o
ponto central da celebração do Pesacb é a narrativa do êxodo, lida pelo chefe da
família. Essa é a hora do nascimento do povo de Israel.
É instituída então a ceia do Pesacb: a coxa de um cordeiro, um ovo, frutas da
primavera e os mazzen, os pães que ficaram sem ser fermentados por causa da pressa
da saída. A partilha desse pão, assim como do vinho que é servido, lembra aos
cristãos a última ceia de Jesus, que para muitos teria sido uma festa de Pesacb.
Mas outra característica do Pesach judaico é que também se comem não apenas
pães não fermentados. São servidas ainda ervas amargas. Elas devem lembrar o
amargor da escravidão do Egito. Esse é um amargor que todos experimentam com
aversão depois de consumidas as ervas.
Bebem-se quatro taças de vinho. Enche-se ainda uma quinta taça, mas que não é
esvaziada. É a "taça de Elias". Ela lembra a esperança de redenção final do povo de
Israel. Por isso a porta é aberta: em todo Pesacb constantemente se espera a volta
de Elias, prenúncio da chegada do Messias, que está diante da porta.
Mas a grande figura simbólica do povo de Israel não é Elias, e sim Moisés. Este, o
mensageiro de Deus, o guia do povo, o legislador, o representante do próprio Deus,
é uma figura carismática extremamente complexa. Chefe inspirado, mas que não
participa da luta. Um detentor da revelação, mas um homem com muitas fraquezas.
O criador do culto, mas que pessoalmente não apresenta sacrifícios.
Não resta dúvida de que as diversas religiões também tentaram monopolizar
Moisés: ele tem sido "judaizado" (como o "rabino" Moisés), "cristianizado" (como
188
JUDAíSMO
A SOLUÇÃO DO ENIGMA
189
RELIGIÕES DO MUNDO
À oferta da aliança por parte de Deus corresponde, por parte do povo, a obriga-
ção de observar a aliança. À conclusão da aliança corresponde a doação da lei.
Aliança (berit) e código da aliança (torah) são inseparáveis. Mas a Torá certamente
não foi desde o início um corpo legislativo que abrangesse tudo. Tratava-se não
tanto de "leis" no sentido estrito quanto de "instruções", "mandamentos". De fato,
muitas regras bíblicas de comportamento procedem do ambiente nômade não
javístico, passando agora a ser subordinadas à vontade de Javé. Muitas só foram
codificadas depois que o povo se estabeleceu na Palestina.
190
JUDAÍSMO
Não sabemos precisamente corno a terra foi, pouco a pouco, ocupada. De qual-
quer modo, aos poucos se desenvolveu uma comunidade de destino das tribos de
Israel. Ainda no século XII a.C, as grandes famílias, clãs, aldeias e tribos dos israelitas
vivem em uma constelação global pré-monárquica, pré-estatal. Um paradigma tribal
(paradigma I): urna frouxa federação de tribos com urna ordem patriarcal, com
anciãos, com vários santuários de Javé e com sacerdotes de Javé.
Na hora do perigo e da ameaça comum, surgem os vultos salvadores (sofetim:
"juízes"). Mas não existe nenhum aparato administrativo, nem um exército profissio-
nal. O que nos primeiros séculos constitui a constelação primordial de Israel não é
um estado, mas sim urna sociedade tribal.
Em face, porém, da ameaça externa (dos filisteus) e dos problemas políticos in-
ternos, as tribos de Israel terminaram por adotar uma instituição que havia muito
já se estabelecera nos pequenos estados da região: a realeza. O primeiro rei, Saul
(1012-1004), dá início a esta mudança de paradigma de urna constelação pré-
191
RELIGIÕES DO MUNDO
estatal para uma constelação estatal. Em sua terra natal, Gabaon, foi descoberta,
em nossos dias, uma pequena fortaleza primitiva - a primeira construção israelita
importante de que temos conhecimento. Mas Saul fracassa, tanto pessoal como
militarmente.
Como já havia acontecido com Abraão e Moisés, também Davi foi mais tarde
seletivamente percebido e monopolizado nas três religiões proféticas. Davi foi:
• "judaizado": estilizado como fiel à lei e mestre da lei, dessa forma sendo promo-
vido a prefiguração do Messias que há de vir;
• "cristianizado": ele só passa ainda a ser visto como o ancestral de Jesus, como a
prefiguração do Messias que já veio;
• "islamizado": ele é considerado como o profeta que serviu de exemplo para o
profeta Maomé.
192
JUDAÍSMO
Apesar disso, Davi é e continua a ser o terceiro modelo das três religiões abraâmi-
cas: como o mais importante rei da história israelita, ele é considerado a mistura
ideal de bom governante, poeta genial (a ele são atribuídos os salmos), orante exem-
plar e grande penitente. E os salmos, de qualquer forma, quer provenham de Davi
quer de outros, são a mais rica e profunda expressão da piedade profética "diante de
Deus". Só com seus sucessores o grande rei de Judá e de Israel não haveria de ter a
mesma sorte.
Ao longo dos séculos e até depois da Segunda Guerra Mundial, o tempo de David
Ben-Gurion, o primeiro presidente do novo Estado de Israel, o reino de Davi, con-
quistado há três mil anos, permaneceu para os judeus um ideal paradigmático:
Até hoje se reza em Jerusalém junto ao legendário túmulo de Davi, muitas vezes
com um tradicional movimento do corpo inteiro. Até hoje o reino de Davi, tendo
Jerusalém como capital, continua a ser o ideal político para muitos judeus. Mesmo
os limites do seu grande reino constituem, para muitos, o objetivo a ser alcançado,
embora desde os tempos de Davi esses limites tenham sido contestados, e já depois
da morte de seu filho Salomão o reino voltasse a se dividir.
A Bíblia hebraica não transfigura Davi. Pelo contrário, ele é gravemente censura-
do por causa do adultério com a bela Betsabé. Essa cena foi genialmente reproduzida
por Marc Chagall. Quase todos os grandes profetas de Israel opuseram-se aos reis e
aos sacerdotes, como atestam antiqüíssimos manuscristos, cornoàquele de Qumran,
redescoberto e atualmente exposto no Museu Hebraico de Jerusalém.
Passados apenas uns setenta anos desde a possede Davi, aí pelo ano de 927, ocorre
a fatídica separação dos reinos. A imagem deixada pelo governo de seu filho Salo-
mão, amante da pompa e construtor do primeiro templo, foi muito conflituosa.
"Salomão em toda.a sua glória" viveu como um potentado oriental, com uma gran-
de corte (harém), com muitas construções e armamentos. O resultado foi a dureza
dos trabalhos forçados e o empobrecimento das massas.
Depois da morte de Salomão, o Reino do Norte, Israel (com a nova capital Samaria),
se separa do Reino do Sul, Judá (com a velha capitalJerusalém). E, a partir daí, os dois
193
RELIGIÕES DO MUNDO
reinos vivem lado a lado, às vezes aliados, às vezes em guerra fratricida, até a queda
primeiramente do Reino do Norte e depois também do Reino do Sul.
Ao todo, o período da realeza, primeiro do reino unido e depois dividido, não
dura mais de quatrocentos anos. Esse é também o período do profetismo clássico,
que de uma maneira única distingue a religião israelita de todas as outras religiões.
Em que outra religião teriam os profetas se oposto com tanta coragem aos reis e
sacerdo tesl?
Estamos nos referindo aos grandes profetas, como Isaías, Jeremias ou Ezequiel,
que se entenderam a si próprios como especialmente chamados para serem os porta-
vozes de Deus. Eles experimentavam diretamente a orientação de Deus e transmi-
tiam-na ao povo: "Assim fala o Senhor". Esses porta-vozes não pretendem anunciar
um futuro distante, mas sim preservar, repreender, examinar e advertir no presente.
Formulada sempre de forma vigorosa, a crítica profética volta-se contra a falta de
fé e contra a auto-suficiência do povo, contra o culto ritualista dos sacerdotes, con-
tra a injustiça dos governantes. Mas os profetas anunciam também a salvação para as
pessoas e para o povo. Seja como for, jamais encontramos qualquer coisa de uma
incitação a "guerras santas", mas, em lugar disso, muitos discursos contra a guerra e
a favor da paz entre os povos. E, além de tudo, também uma luta pela fé no único
Deus, que não admite outros poderes e figuras ao lado de si.
É impressionante sobretudo o empenho dos profetas por uma ética fundamental:
as exigências humanas de justiça, sinceridade, fidelidade, paz e amor são apresenta-
das como sendo exigências do próprio Deus. Não existe serviço de Deus sem servi-
ço aos homens. Essa visão fundamental, Israel a agradece sobretudo aos seus profe-
tas. As vozes potentes dos profetas ecoam mesmo até os nossos dias... apesar de em
todas as três religiões abraâmicas muitas e muitas vezes se haver tentado domesticá-
las através da interpretação e subordiná-las aos doutores da lei e aos hierarcas, de
modo que o profetismo parece estar extinto nessas religiões.
194
JUDAÍSMO
preso como traidor da pátria durante o cerco de Jerusalém. É libertado pelos ba-
bilônios, mas os rebelados o obrigàm a emigrar para o Egito, onde ele morre. Um
"destino de profeta" sem igual, que pode ser lido no rosto do Jeremias de Chagall.
Toda a alta camada israelita, juntamente com o rei, é deportada para a Babilônia,
onde este encontra a morre. Chegava ao fim a realeza davídica, encerrava-se uma
época. Por cerca de dois milênios e meio (desconsiderando o intermezzo da era dos
macabeus), o povo judeu haveria de perder a independência como estado. A seguir
vieram principalmente os quase cinqüenta anos de golah ("deportação"): o exílio
babilônico (586-538).
E o poder político? Por duzentos anos este permanece agora em mãos dos persas,
a seguir de Alexandre Magno e de seus sucessores, por último dos romanos. Israel já
não possui mais uma realeza. Em lugar disso, depois do exílio, Israel ganha um
novo, segundo templo e, relacionada com ele, toda uma hierarquia do templo em
Jerusalém, considerado agora como o único lugar de culto. Esse segundo templo, na
verdade, não possui mais a arca da aliança. Mas volta a possuir um grande candela-
bro de sete braços (menorah) , que passa a ser um tema importante para a arte religio-
sa judaica e em 1948 se torna o emblema do novo Estado de Israel.
Agora o povo possui também um bem-determinado corpo de escritos sagrados,
que passam a ser obrigatórios. Só agora é que o judaísmo passa a ser a religião do livro,
com um cânon escriturístico exatamente definido. Este consiste da lei e das instruções
(torah), dos profetas (newiim) e dos escritores (ketuwim) que, juntos, constituem a
Bíblia hebraica (chamada de tenak, de acordo com as iniciais das três partes).
195
RELIGIÕES DO MUNDO
Mas os círculos zelotes, por meio de uma revolução de todo o povo contra a
potência mundial dos romanos, queriam novamente chegar à independência políti-
ca de Israel, que no século 11 a.C. fora. reconquistada durante umas poucas décadas,
sob os macabeus. Os revolucionários zelotes eram impelidos por uma muito difun-
dida expectativa apocalíptica do reino messiânico. Mas o apocalipse se transformou
em realidade de uma forma diferente do que se esperava. Sobre esses terríveis acon-
tecimentos, apenas umas breves observações:
• Os judeus perdem a primeira guerra contra Roma, nos anos de 66 a 70. Conse-
qüência: cerca de seiscentos mil judeus morros, a devastação de Jerusalém, o
incêndio do templo, a menorá carregada pelas ruas de Roma na marcha triunfal
de Tito e representada ali até o dia de hoje em seu arco de triunfo, mas desde a
invasão dos vândalos desaparecida.
• Os judeus perdem também a segunda guerra contra Roma, entre 132 e 135.
Também dessa vez os resultados foram devastadores: 850 mil judeus mortos,
Jerusalém arrasada, todos os judeus exilados sob pena de morre. Chega mesmo a
ser construída uma nova cidade helenista, consagrada a Júpiter Capitolino: Aelia
Capitolina, no lugar de Jerusalém. A teocracia chega definitivamente ao fim.
Foi uma catástrofe nacional, pior ainda do que o exílio. Até hoje ela é chorada e
lamentada publicamente pelos judeus junto ao chamado Muro das Lamentações do
templo destruído, ou muro ocidental.
Mas uma coisa é de causar espanto: mesmo sem a realeza, sem o templo, sem
sacerdócio, sem um supremo conselho e sem um sumo sacerdote, o povo judeu
196
JUDAíSMO
obrevive. E sobrevive até mesmo sem todo aquele sistema teocrático construído
lesde o exílio babilônico. O povo'judeu sobrevive, apesar de encontrar-se agora
-spalhado pelo mundo todo.
Com toda a certeza, essa sobrevivência não se resume a um mero fato biológico.
Iarnbérn não é apenas uma continuidade baseada na psicologia, e menos ainda um
nilagre histórico. Não, sem dúvida alguma essa sobrevivência do povo judeu está
relacionada com a sobrevivência da religião judaica. De fato, foi a religião que deu
10 povo apátrida uma nova pátria espiritual. O que permaneceu importante até os
dias de hoje para os judeus ortodoxos:
• O lugar do altar destruído passou a ser ocupado pelos rolos da Torá, e o lugar do
culto no templo foi ocupado pela oração, pelas boas obras e pelo estudo da Torá.
• O lugar do sacerdócio hereditário passou a ser ocupado pelos escribas, pelos
rabinos, e o da dignidade dos sacerdotes e levitas, herdada de pai para filho,
pela dignidade de rabino, conquistada através de uma formação erudita.
Torá - rabinos - sinagogas: essas são as colunas básicas da longa Idade Média
judaica, que começa já no século I-lI e que irá durar até o século XVIII. O judaísmo,
tal como se configurou após a destruição do segundo templo, no ano 70, já havia
tomado plena forma por volta do ano 600. Agora a esperança messiânica estava
ligada à estrita obediência à lei, com seus 613 mandamentos (mizwot), com isso
perdendo o vigor. Uma religião nacional de orientação messiânica transformou-se
inteiramente em uma religião da Torá.
A nacionalidade passa para segundo plano, em benefício da pureza ritual e moral
frente às nações, das quais os judeus mais do que nunca se isolam. Disso já cuida a
exigência da refeição rirualmente pura (kosher: "útil"). E a isso se acrescenta a velha
197
RELIGIÕES DO MUNDO
Os judeus vivem agora num gueto forçado. E, para esse tipo de vida, duas coisas
são importantes:
198
JUDAÍSMO
direito religioso, privado e familiar, o que provoca um conflito básico entre or-
todoxos e seculares. Mas, em comparação com a tradição oral, que existe também
no catolicismo, o judaísmo rabínico está menos interessado na reta fé (ortodoxia)
do que no reto agir conforme a lei (ortopráxis). Todos os numerosos mandamen-
tos e proibições, tanto da tradição escrita como oral da Torá, devem ser necessaria-
mente obedecidos como revelação de Deus: o sábado, as prescrições sobre pureza
e alimentação, da mesma forma que as prescrições para a oração e para o culto
divino.
Os inúmeros mandamentos abrangem todo o decurso do dia (desde a manhã até
a noite), todo o decurso do ano (dias de trabalho, sábados e dias festivos), todo o
decurso da vida: desde nascimento e circuncisão, passando por maturidade sexual,
casamento e família, até a morte e o enterro. Mas, o que caracteriza a piedade e o
estilo de vida rabínico nesse paradigma medieval não é uma queixa por causa do
peso da lei, mas antes a gratidão pela lei, grande dom de Deus ao homem, assim
como a alegria com o cumprimento da lei. A sombra, na verdade, é o auto-isola-
mento religioso e social em relação a todos os não-judeus, iniciado já no exílio
babilônico e agora praticamente total.
O mundo não judeu muitas vezes reagiu a essa sobrevivência dos judeus não com
respeito, mas sim com agressão e repressão. Já na era pré-cristã existiu um antiju-
daísmo "pagão": o primeiro pogrom contra os judeus ocorreu em Alexandria, no ano
38 d.C.! E a partir daí o antijudaísmo pagão terminou por evoluir para um anti-
judaísmo da igreja cristã. Mais ou menos desde o tempo do imperador Constan-
tino, esse antijudaísmo manifesta-se não apenas como o pagão, de uma maneira
esporádica, geograficamente limitada e não oficial, mas sim de uma forma constan-
te e universal. Ele conta com a proteção oficial e com justificativas teológicas por
parte da igreja cristã - por haverem os judeus rejeitado o Messias Jesus e serem
responsáveis por sua crucifixão. Na verdade, as leis de exceção do estado eclesiásti-
co, acompanhadas de medidas repressivas, não chegam ainda a ser promulgadas por
Constantino, mas sim pelos imperadores cristãos Teodósio 11, no século V, e Jus-
tiniano, no século VI. Ambos passam a ser determinantes para a legislação medieval
contra os judeus por parte do estado e da igreja.
Mas não é certo apresentar a história judaica no período cristão como uma pura
história de sofrimento. Como o demonstraram historiadores judeus modernos, em
muitos períodos ela foi uma admirável história de sucessos. Até o início das cruza-
das, vigoram de uma maneira bastante ampla relações de boa vizinhança entre os
cristãos e a minoria judaica que no império cristão soube, em muitos pontos, afir-
mar-se melhor do que qualquer outra minoria ou pequeno povo.
199
RELIGIÕES DO MUNDO
A cidade de Worms foi sede de uma das mais antigas comunidades judaicas da
Alemanha, que pode ser comprovada historicamente já no século X. Mas ao Reno os
judeus já haviam chegado junto com as legiões romanas. Desde o século XI os judeus
de Worms possuíam uma sinagoga e, já antes, um cemitério próprio, o mais antigo da
Europa, conservado até hoje. Para o florescimento do judaísmo na Alemanha, tor-
nou-se quase proverbial a palavra shum (daí se formou a palavra alemã bescbummeln,
com o sentido de enganar por brincadeira, de maneira inofensiva), formada pelas
iniciais hebraicas das cidades de 5peyer (5), Worms (W = U) e Mainz (M).
Do começo do século XI até o final da Idade Média, Worms é um centro espiri-
tual do judaísmo europeu. Em 1084 a comunidade judaica de Worms é distinguida
por Henrique IV com muitos privilégios: fica diretamente sujeita à jurisdição real.
Na escola talmúdica superior de Worms, atuam grandes eruditos judeus, os sábios
de Worms. Nela estuda o rabino Salornon ben Isaak, apelidado Raschi (1040-1105).
Por muito tempo ele, cuja autoridade pode perfeitamente ser equiparada à do últi-
mo chefe da escola (gaon) de Babilônia, é considerado o principal comentarista da
Bíblia e do Talmude.
Mas que enorme contraste entre a modesta sinagoga e a superpoderosa igreja
cristã! De início as duas convivem aqui pacificamente. Mas no final do século XI
ocorrem as primeiras atrocidades. Por causa da luta histórica contra o islã, a igreja
julga que deve considerar os judeus como aliados dos muçulmanos. Com a primeira
cruzada de 1096, "cruzados", camponeses e outras pessoas das circunvizinhanças
atacam os judeus de Worms, ficando dessa maneira livres de suas dívidas. São con-
tados oitocentos mártires, muitos dos quais, no desespero, chegam a matar ou quei-
mar primeiro os seus filhos e depois a si próprios.
Mais tarde a comunidade consegue reconstituir-se, mas nos séculos XIII e XIV
também ocorrem perseguições e extermínios de um bom número de comunidades
judaicas no Reno e no Mosela. Um novo ponto baixo é o ano de 1349, quando por
toda a parte é atribuída aos judeus a culpa pela peste, e só um número relativamente
pequeno, também em Worms, consegue escapar ao massacre. Também a Reforma-
na manifestação decisiva de Lutero, na Dieta de Worms - não trouxe, como se sabe,
nenhum alívio.
Mais tarde, entretanto, a sede do rabinato em Worms, com o supremo rabino,
volta a ser de importância determinante para os judeus alemães. Mas permanece em
uso a mikwe, o banho de purificação na sinagoga. Qualquer um que se tenha torna-
do ritualrnente impuro por haver tocado um morto, ou por menstruação, pode ser
purificado por um mergulho em água "viva" (água corrente), nesse caso água coleta-
da da chuva.
Da França e da Inglaterra, e mais tarde também da Espanha e de Portugal, os
judeus sem pátria são expulsos às centenas de milhares. O resultado são grandes
200
JUDAÍSMO
201
RELIGIÕES DO MUNDO
SAINDO DO GUETO
A Revolução Francesa - como modelo para toda a Europa - confere aos judeus
irrestritos direitos civis. Os judeus são incluídos na Declaração Americana dos Di-
reitos Humanos de 1776, da mesma forma que na francesa de 1789. Não obstante,
os direitos civis ilimitados, concedidos por decreto parlamentar, não se aplicam aos
judeus como grupo religioso, mas sim aos cidadãos individuais.
Isso é reforçado também por Napoleão, que convoca um "grande sinédrio" e com
seus exércitos impõe o código napoleônico, a começar pela Alemanha. Ali - após as
interações entre judeus e helenistas em Alexandria e judeus e mouros na Espanha-
haver-se-ia de chegar a uma interação fecunda, a terceira da história, entre a cultura
judaica e uma cultura estranha. Por último - em 1870, imediatamente após a defi-
nição da infalibilidade papal - caem também os muros do gueto nos Estados
Pontifícios, após a marcha do exército italiano de libertação.
Só na Europa oriental é que o grosso dos judeus, quase intocado pelo iluminismo,
permanece sob a influência do hassidismo. Isso, provocado por pogroms (em russo:
"massacre") e por medidas forçadas na Rússia, na Romênia e na Polônia, haveria de
202
JUDAÍSMO
levar a novas migrações dos judeus - agora novamente para o oeste, para a Europa
ocidental e, por último, pata os EStados Unidos.
Desde o século XIX, portanto, os judeus - mais cedo e de forma mais radical que
os muçulmanos - ficam totalmente expostos ao espírito da modernidade. Chega-se
assim a uma saída do gueto, também sob o aspecto intelectual! É precisamente na
Alemanha que ocorre a grande discussão em torno da reforma do judaísmo. O
antigo movimento de retorno à Bíblia dos "careus" (de kara'im: "ler"), bastante di-
fundido do século IX ao XII, ainda não conseguira, com seu ascetismo rigoroso, se
impor contra o establisbment rabínico; não se conseguiu chegar a nenhuma reforma
judaica que pudesse servir de pressuposto para um iluminismo judeu. Mas agora,
pelo contrário, o iluminismo racional criou as condições para uma reforma religiosa
do judaísmo. Formou-se uma ciência histórica crítica judaica, e estudantes judeus
insistiram nas profissões que agora lhes estavam abertas, como a de advogado e a de
médico: mas para eles os postos de funcionários continuavam fechados.
203
RELIGIÕES DO MUNDO
204
JUDAíSMO
melhor das hipóteses, celebram as festas por tradição: judeus socialistas, agnósticos
ateus e, mais tarde, sionistas. Rejeitam a ortodoxia rígida e legalista e, tendo inte-
riorizado a crítica européia da religião (Marx e Freud são de origem judaica!), por
isso rejeitam toda religião. Seu judaísmo já não é mais determinado pela fé em
Deus, mas sim cada vez mais pela fé "sionista" em um Estado de Israel.
205
RELlGIÚES DO MUNDO
Ainda hoje nós nos interr6gamos como foi possível chegar-se à esta imensa
catástrofe da shoah. Sábemosque só Hitler e seús auxiliares não explicam todo
esse desenvolvimento ,catastrófico. Tudo isso não teria' podido acontecer se
não fosse a omissão, a.tolerálKia ,e a cumpli~idade das el;tesdomin~ntesno
funcionalismo, nas forças a~rn;âdas, na economia e, infeli~ménté,'também' nas
igrejas.
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JUDAÍSMO
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RELIGIÕES DO MUNDO
208
JUDAÍSMO
Todas as religiões encontram-se hoje num conflito básico entre tradição e ino-
vação. E é precisamente no judaísmo que se enfeixam, como no foco de uma
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RELIGIÕES DO MUNDO
o DECÁLOGO COMO
210
JUDAÍSMO
A noite cai sobre Tel Aviv. Ninguém sabe hoje como irá terminar esta "guerra
cultural" entre seculares e religiosos.
Certo é que também aqui as pessoas anseiam por paz, por amizade, amor e felici-
dade. O judaísmo, essa religião de uma continuidade, de uma vida e de um dina-
mismo tão admiráveis, certamente há de encontrar aqui e em outros lugares o cami-
nho para um futuro onde se possa experimentar o que todos os dias diz uma de suas
palavras primordiais: Shalom, a paz de Deus para o povo e para os povos.
211
VI
Cristianismo
DESESPERAR DO CRISTIANISMO?
Será que a essência do cristianismo pode ser encontrada exatamente aqui, nas
favelas da América Latina? Muitos europeus perderam a esperança no cristianismo,
desenganaram-se dele. Voltaram as costas para as igrejas. Identificam o cristianismo
com burocracia e pompa, com a ditadura doutrinária, com a hostilidade à mulher e
ao sexo, com a igreja oficial autoritária e incompreensiva... j
Em San Salvador, a capital 93% católica da menor e mais densamente povoada
república da América Central, EI Salvador (cerca de seis milhões de habitantes),
evidentemente também existe tudo isso. Mas não só. Entre a gente pobre que mora
ao lado dos conjuntos cercados e fortificados da camada superior branca, na favela
de La Chacra, com cerca de vinte mil pessoas vivendo em míseros barracos, para
muitos o cristianismo é um grande sinal de esperança.
As pessoas aqui simplesmente identificam o cristianismo com o seu pároco, o
padre jesuíta Daniel Sanchez. Há quase quinze anos ele se preocupa com todos os
problemas, físicos e espirituais, dessas pessoas. Numa época em que a falta de sacer-
dotes é absoluta, ele construiu, a partir da base, uma comunidade viva, com um
grande número de pequenas equipes para as celebrações litúrgicas, para o canto,
para a catequese, para a ajuda aos vizinhos ... A igreja não como "hierarquia", "go-
verno sagrado", mas sim como a comunidade dos que crêem: igreja popular, igreja
do povo, tal como se encontra presente em inúmeras favelas e aldeias da América
Latina.
Aqui não nos encontramos perante uma igreja dividida em duas classes, clero e
leigos. O padre não é o dono da paróquia; pelo contrário, é o servo da comunidade
de fé. É claro que essa comunidade vive satisfeita por ainda dispor de um padre.
Sem a inspiração, coordenação e direção dele, às vezes também sem a sua interven-
ção, muita coisa não seria possível.
212
CRISTIANISMO
.olaboradoras tentam pôr em prática, pelo menos em pequena escala, urna cultura
la não-violência, da justiça social e da paz. Cristianismo vivido.
Celebra-se ali, por exemplo, o Dia das Mães, e por isso as mães são curnprimen-
:adase valorizadas de uma maneira especial. O amor das mães é visto pelo pregador
i. luz do amor do próprio Deus, que para nós - aqui isto não provoca qualquer
escândalo - é pai e mãe ao mesmo tempo.
Muita coisa lembra o cristianismo primitivo. Como na comunidade de Paulo
em Corinto, aqui neste culto também todos podem falar. Mesmo as mulheres fa-
lam de suas experiências e lêem a Bíblia como se esta fosse escrita para elas, pes-
soalmente. Elas se reencontram nas comunidades do cristianismo primitivo. Aqui
as mulheres não ficam caladas nas assembléias, como se diz em uma passagem
paulina inautêntica, mas, com naturalidade, tomam a palavra. Todos rezam e can-
tam juntos e celebram a eucaristia. Uma igreja que se compreende como povo de
Deus.
Mas ao mesmo tempo aqui tudo está claro: a fé cristã precisa ter conseqüências
na prática. Ela não pode, em nenhuma hipótese, justificar a opressão e a explora-
ção, mas sim buscar superá-las. A celebração litúrgica e o serviço ao próximo, liturgia
e engajamento social, têm que andar juntos. É bem verdade: quem no tempo da
ditadura militar insistisse sobre reformas sociais e direitos humanos, esse corria
perigo e tinha que temer pela vida - mesmo no altar.
Um nome, como representante de muitos outros: Oscar Romero, arcebispo de
EI Salvador. Ele subira no establishment da igreja. Mas as imensas necessidades das
pessoas e o assassinato de um padre amigo mudaram sua vida. Engajou-se na defesa
dos direitos do seu povo oprimido. Por isso ele teve que pagar com a vida em 1980,
enquanto se encontrava no altar.
213
RELIGiÕES DO MUNDO
ouo pastor e defensor dos direitos civis LutherKing, ouo padre polonês Popieluszko, ,
e inúmerosoutros. O que todos eles possuíaínemcomum:
TESTEMUNHAS DA FÉ
Isto é algo que eu nunca seria capaz de imaginar. Em 1989, nove anos depois da
morte de Oscar Romero, aqui em San Salvador, seis professores jesuítas, meus amigos,
foram brutalmente massacrados por um esquadrão da morte, na casa da Universidade
Centro-Americana (UCA), onde, em 1987, eu havia me hospedado: seis padres, in-
clusive o reitor da universidade, Ignacio Ellacuria, e dois empregados. Jon Sobrino,
um dos mais respeitados teólogos da libertação, que por acaso se encontrava viajando,
foi o único dos meus amigos que escapou. Nas fotografias eu quase não os conseguia
reconhecer.
Eles eram docentes da universidade e, ao mesmo tempo, dedicavam-se, desde déca-
das, aos mais pobres dos pobres - de acordo com a Bíblia, os prediletos de Deus. Ne-
nhum deles tinha vontade de ser mártir, nenhum deles era asceta, mas todos eram pes-
soas inteiramente normais, se bem que cristãos engajados. Queriam simplesmente
orientar sua vida pela vontade de Deus. E isso significa empenhar-se pelo bem dos
semelhantes-e inteiramente no seguimento do crucificado. Pregar, portanto, não a into-
lerância, o ódio ou a violência, mas sim pôr em prática a abertura para todos, a bondade,
o perdão e a solidariedade, o amor a Deus e ao próximo: amar o outro como a si mesmo.
O espírito de Jesus encontrava-se vivo em todos esses vultos e em inúmeros outros
que, à sua maneira, são no dia-a-dia membros engajados do cristianismo, testernu-
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CRISTIANISMO
lhas sinceras de uma fé pela qual o próprio Jesus se guiava: o doutor das selvas
\lbert Schweitzer, o secretário geràl da ONl; Dag Hamrnarskjõld, o papa João
(XIII, o patriarca Atenágoras, dom Hélder Câmara, o arcebispo Desmond Tutu,
nadre Teresa de Calcutá, o abade Pierre... O que os une a todos é o fato de se dei-
<arem orientar pela figura humana concreta de Jesus, que desde os primórdios é
chamado o Cristo, o Ungido, o Messias.
Realmente, todas essas pessoas confiavam na causa cristã porque ela está encarna-
da nesta pessoa, de uma maneira única, irrepetível e indispensável:
• É só por seu espírito que o cristianismo permaneceu presente como uma potên-
cia espiritual: Cristo é sua inspiração básica.
• É só por seu nome que os diferentes escritos do Novo Testamento, assim como
as diferentes igrejas cristãs, permanecem unidas: Cristo é sua figura básica.
• É só por causa de sua história que algo como um "fio de ouro" perpassa o tecido
sempre renovado da história da igreja, tantas vezes lacerada e obscura: em toda a
tradição, liturgia, teologia e piedade cristã, Cristo permanece o tema fundamental
que, mesmo nos momentos de maior decadência, jamais se perdeu inteiramente.
Mas precisamente por isso, constantemente se faz necessária uma reflexão sobre
as origens: sobre a mensagem original da Bíblia e, dessa forma, também sobre a
figura original de Jesus Cristo. É ele, e não o cristianismo que existe concretamente
em cada época nesta ou naquela igreja; ele, e não qualquer autoridade do estado ou
da igreja, que é o critério do que é ser cristão: o que importa é a presença viva dessa
origem, desse fundamento, desse centro.
Mas este Jesus só nos é conhecido através de urna enorme distância cronológica.
E todo povo, toda geração tem o direito de destacar dessa figura única a dimensão
que lhe é própria. O critério, porém, tem que ser não um Cristo sonhado ou imagi-
nado, mas sim o Cristo real: a figura inteiramente concreta e humana, em sua reali-
dade histórica imutável.
Todos os vultos cristãos eminentes do nosso século tornam claro, à sua maneira,
que a figura-guia a que se referem é inconfundível em seus contornos decisivos. Nas
fontes do Novo Testamento, todas escritas por homens, pode-se de certo discutir a
respeito de muitos detalhes, pois o Novo Testamento é, de longe, o livro mais exaus-
tivamente pesquisado da literatura mundial. Sobre cada uma de suas frases existe em
todas as línguas possíveis um número quase infinito de pesquisas. Quase sobre cada
palavra empregada nele foram escritos grandes tratados. Muitas coisas são obscuras,
ou podem ser interpretadas de diferentes maneiras.
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RELIGIÕES DO MUNDO
Mas, para todas as testemunhas cristãs do nosso século, o que importa na mensa-
gem de Jesus está perfeitamente'claro. A alegre mensagem de uma nova liberdade: não
se deixar dominar pelo desejo do dinheiro e do prestígio, pela ânsia do poder, pelo
instinto do sexo ou pela busca do prazer e do goro, mas tornar-se livre para Deus e
para os semelhantes. Em tudo isso o homem não deve se transformar em um asceta;
como se sabe, Jesus também tomou parte em banquetes. Mas o homem também não
deve satisfazer de maneira egoísta seus próprios interesses e necessidades.
Pelo contrário, o que importa é que, em vista do reino de Deus, ele viva segundo
a vontade de Deus e leve em conta o bem do próximo: não querer dominar sobre o
outro, mas procurar servir. Uma nova solidariedade com os fracos, com os peque-
nos e com os pobres. Praticar a bondade e o perdão. Não apenas observar os manda-
mentos: não matar, não mentir, não roubar, não praticar luxúria. Mas engajar-se
despretensiosamente com o próximo: um amor que também respeita o adversário e
não liquida o inimigo. Uma mensagem de não-violência, de misericórdia e de paz.
UM DESTINO DRAMÁTICO
Se Jesus tivesse morrido de morte natural, em idade avançada, neste recanto afas-
tado do império romano, a Galiléia, suas palavras, suas parábolas e o célebre Sermão
da Montanha dificilmente teriam sido transmitidos à posteridade. Pois a força de
sua mensagem está relacionada com seu dramático destino, que chegou ao clímax
na cidade santa de Jerusalém.
O judeu Jesus não anuncia nenhum estado judeu teocrático, nem também a ins-
tituição de uma igreja. Anuncia, isso sim, a chegada do reino de Deus, com suas
promessas e exigências. Mas sua mensagem e sua prática levam ao confronto com o
establisbment político-religioso: um conflito de vida e morte! Por demais radical sua
crítica à religiosidade tradicional e à prática do poder pelos poderosos. Por demais
liberal sua convivência com a lei religiosa e com as regulamentações referentes ao
sábado, à pureza e aos alimentos. Por demais escandalosa sua solidariedade com os
pobres, com os miseráveis, com os "pobres diabos": ele tem compaixão do povo.
Para escândalo dos piedosos, demonstra por demais compreensão com os que ofen-
dem a lei, os "pecadores". Nos casos concretos, perdoar sem limites, renunciar sem
esperar retribuição, servir sem olhar a quem - é ao que visam suas parábolas e seu
exemplo de vida.
O conflito histórico de uma figura histórica: sempre que quis ir ao templo, ele
teve que percorrer a estrada construída pelo rei Herodes, a qual só recentemente foi
redescoberta. Hoje se pode ver também a subida para o templo, onde o conflito de
Jesus com as autoridades religiosas do seu tempo se exacerbou. E o protesto contra
o comércio no templo, contra sua hierarquia e seus beneficiários foi, certamente, a
provocação decisiva de Jesus, que terminou por levá-lo à prisão e condenação. Tam-
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CRISTIANISMO
ém é visível ainda hoje o antigo arco da entrada (há muito tempo murado). E
imbém se conserva a praça do Templo, onde Jesus ensinava e discutia. Por último,
.ode-se ainda reconhecer - no outro lado da cidade - o pretório romano: aqui o
overnador romano, Pôncio Pilatos, condenou o Nazareno como revolucionário
-olítico - o que ele não era.
O terrível fim é conhecido, e a Igreja do Sepulcro lembra tudo isto: ele morreu
overn, com cerca de trinta anos, depois de uma atuação espantosamente breve de
lO máximo três anos, ou possivelmente apenas poucos meses. Traído e negado por
eus discípulos e adeptos. Escarnecido e ridicularizado por seus adversários, aban-
lonado por Deus e pelos homens. Uma morte cruel, que a jurisprudência romana
iâo permitia ser aplicada a cidadãos romanos. Só os escravos fugidos e os rebeldes
Mas uma pergunta permanece sem resposta até hoje: Como pôde o escândalo da
:ruz passar a ser sinal de salvação para os primeiros crentes em Jesus? Pois é fato que
eles logo passaram a ver a cruz sob uma luz inteiramente diferente. Por quê? Com
base em determinadas experiências, visões, "aparições" e também em certos padrões
de que dispunham para a interpretação da Bíblia hebraica, eles chegaram a esta
convicção: este Jesus não permaneceu na morte, mas foi despertado por Deus para
a vida eterna, acolhido na glória de Deus.
Como deve isso ser imaginado? Não podemos fazer nenhuma idéia, nenhuma
imagem exata da realidade de Deus; mesmo a arte se depara aqui com seus limites.
Mas desde então é esta a convicção de fé dos cristãos: este Jesus Cristo não morreu
para cair no nada, mas sim para a mais real das realidades - ele morreu para entrar
em Deus.
Já enquanto viveu, essa grande e vibrante figura profética, sem cargo nem título,
por palavras e ações reclamava para si uma autoridade mais elevada que a dos rabi-
nos ou profetas. Alguns viam nele o Messias. Na grande disputa por justificar-se, ele
sempre apelava para o próprio Deus, a quem com escandalosa familiaridade ousava
dirigir-se com a palavra Abba ("paizinho", "querido papai"). Com base em suas
experiências da ressurreição, a comunidade primitiva o invoca como Filho de Deus
- um título antes reservado aos reis de Israel.
Quaisquer que sejam, no entanto, os numerosos títulos, ele próprio é e continua
a ser desde então a encarnação viva de sua causa. Para os cristãos, surgiu com ele o
reino de Deus. Os cristãos confiam nele e em seu caminho. O Crucificado é o grande
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RELIGIÕES DO MUNDO
sinal de esperança numa vida eterna, como se diz na primitiva comunidade de fé, no
início da Epístola aos Romanos: "Constituído Filho de Deus no poder, a partir da
ressurreição dos morros" (Rm 1,4). Mas é também um fato histórico que a filiação
divina de Jesus tornou-se sinal de divisão: primeiro entre cristãos e judeus, mais
tarde também entre cristãos e muçulmanos. Uma tragédia da história das religiões.
4.
5.
Até hoje entre os judeus perdura o questionamento sobre até que ponto se é
obrigado a observar, além de uma ética fundamental, uma lei religiosa - pergunta,
aliás, já debatida entre os primeiros cristãos.
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CRISTIANISMO
e exacerbou. Desde o início era óbvio que os primeiros cristãos deviam observar a
Iora e suas exigências éticas fundamentais. Mas discutia-se se os fiéis cristãos, mes-
no não sendo de origem judaica, deveriam observar também todos os 613 manda-
nentos do culto e do ritual da lei judaica, a halaca. Os cristãos do paganismo teriam
~ealmente que assumir a forma de vida judaica: circuncisão, festas, as múltiplas
orescriçôes sobre o sábado, as abluções e os alimentos?
A primeira grande disputa na primeira comunidade cristã não foi, portanto, em
:orno de dogmas como a filiação divina de Cristo ou a trindade de Deus, mas sim
em torno da lei religiosa judaica: até que ponto se é obrigado a observá-la? Deverá
ser ela obrigatória também para os fiéis cristãos que não eram judeus de nascimento,
e sim pagãos?
Não, diz o apóstolo Paulo, responsável pela missão dos pagãos, um judeu-cristão
criado em ambiente helenista na cidade de Tarso (hoje no sul da Turquia). Com base
em sua experiência de vocação (a experiência de Damasco), ele se considera legiti-
mado a anunciar Jesus, o Messias de Israel, como Messias do mundo inteiro, não
apenas dos judeus, mas também dos pagãos.
O teste logo se apresentou e inflamou-se em uma das mais importantes questões
da lei judaica até hoje: Que é que é permitido comer? O que é kosher ("puro") e o
que não é? E, relacionada com isso, a questão: Quem pode comer com quem? Um
"concílio apostólico" em Jerusalém, no ano 48, parece haver encontrado uma solu-
ção de compromisso aceitável para os cristãos do paganismo: liberdade da lei reli-
giosa - mas só para os fiéis de origem pagã.
E, não obstante, o conflito ocorre - e na capital síria de Antioquia que, depois de
Roma e Alexandria, é a mais importante cidade do império. Ali se haviam formado
as primeiras comunidades cristãs de gentios. Para lá se dirigira Pedro, chamado Ce-
fas, "a pedra", responsável pela missão entre os judeus. Primeiro ele costumava ado-
tar, como Paulo, o convívio de mesa com os pagãos convertidos. Mas desistiu, logo
que de Jerusalém chegaram adeptos do rigoroso e legalista irmão do Senhor, Tiago
(com Pedro e João uma das "três colunas" da comunidade primitiva). Estes exigiram
alimento rigorosamente puro e separaram-se.
Paulo, que viu toda a sua obra da missão entre os pagãos ameaçada, defendeu,
agora pública e apaixonadamente, a liberdade do cristão precisamente nos assuntos
da mesa comum. No segundo capítulo de sua carta à comunidade da província
romana da Caldeia; ele faz pessoalmente um relato a esse respeito. "Mas quando
Cefas veio para Antioquia, opus-me a ele abertamente porque era digno de censura.
Pois, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os pagãos. Mas quan-
do aqueles chegaram, se retraía e se afastava, com medo dos circuncidados. E os
demais judeus o acompanharam nesta inconseqüência" (v. 11-13). E Paulo: "Quan-
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RELIGIÕES DO MUNDO
do vi que não procediam com retidão segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas
na presença de todos: 'Se t~) sendo judeu, vivescomo pagão e não como judeu, por
que obrigas os pagãos a adotar os costumes judaicos?" (v. 14).
E então seguem-se suas palavras sobre a jusrificação do pecador pela fé, que have-
riam de fazer história: "Nós (Pedro e Paulo), judeus de nascimento e não pecadores
do paganismo, aprendemos que o homem se justifica não pelas obras da lei, mas
pela fé em Jesus Cristo. É por isso que temos fé em Jesus Cristo, esperando ser
justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei (da halaca), pois pelas obras da
lei homem algum é justificado" (v. 15-16).
Portanto, não importa se judeu ou pagão, se homem ou mulher, o homem torna-
se justo diante de Deus não pelas obras da lei ritual judaica, mas sim pela fé e
confiança em Deus, como ele se manifestou em Cristo. A partir de então os cristãos
do paganismo estavam livres do rigor da lei religiosa judaica.
Foi um debate local, certamente - mas com que conseqüências históricas, com que
sacrifícios! De fato, com essa discussão o judeu-cristianismo (paradigma I) levou a
pior. Não só permaneceu numericamente pequeno, mas, com as catástrofes das guer-
ras judaico-romanas, ele perdeu o seu centro, Jerusalém, a cidade sagrada de todos os
judeus. No ano 70 o Templo é destruído; no ano 135 é destruída a cidade inteira.
Os judeu-cristãos mudam-se para o Oriente, para alérn-jordão, e espalham-se
pela Babilônia e Arábia, ou mesmo pela Etiópia e índia meridional. Mas em toda a
parte levam uma vida bastante isolada. No correr das décadas, em razão de bispos e
de teólogos gentio-cristãos que se encheram de orgulho, eles são denunciados como
uma seita herética: porque associam sua fé em Cristo com a observação da lei judai-
ca (o que, no entanto, para os judeu-cristãos era legítimo). E mais importante ainda:
os judeu-cristãos não acompanham o rápido desenvolvimento rumo a uma cristologia
"de cima", expressa em categorias gregas e que diviniza Jesus cada vez mais.
Muito tempo depois, na dispersão, o judeu-cristianismo dissolve-se amplamente
no maniqueísmo e no islã. As raízes judaicas se perdem - uma perda incalculável
para o cristianismo! Uma perda que teve como conseqüência a unilateral helenização
de suas concepções de fé e de suas normas de vida. Com o judeu-cristianismo dei-
xou de existir também a ligação entre a sinagoga e a igreja.
o CRISTIANISMO SE HELENIZA
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CRISTIANISMO
A HIERARQUIA SE ESTABELECE
Uma ou duas gerações depois de Paulo, como encontramos atestado nos Atos
dos Apóstolos, de Lucas, nas epístolas pastorais e nas epístolas de Inácio de An-
tioquia, é precisamente em Antioquia que, por motivos práticos, é estabelecida
uma hierarquia, um "governo sagrado" - um episcopado monárquico, ou mes-
mo uma hierarquia de três níveis: bispos, presbíteros (sacerdotes) e diáconos.
Logo ela se torna predominante também nas comunidades paulinas e, a partir
do Oriente, encontra acolhida também no Ocidente e em Roma. De acordo
com os documentos do Novo Testamento, não se pode falar de uma "instituição"
dessa hierarquia por Cristo ou pelos apóstolos; por isso também não se pode -
não obstante toda a ideologia eclesiástica - declará-la imutável. Pelo contrário,
assim como a exclusiva "sucessão apostólica" dos bispos (separada de párocos e
leigos), ela é o resultado de um (quase inevitável) desenvolvimento histórico. A
igreja pode ser organizada assim, mas não precisa necessariamente ser organiza-
da assim.
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RELIGIÕES DO MUNDO
Durante quase três séculos os cristãos foram uma minoria oprimida, por vezes
também perseguida. Mas essa pequena "seita" judaica dos cristãos, apolítica e pací-
fica, desenvolveu, numa silenciosa revolução a partir "de baixo", uma força capaz de
transformar o mundo. Aos poucos veio a transformar-se em uma religião universal,
através da qual Oriente e Ocidente haveriam de unir-se um ao outro mais solida-
mente do que por Alexandre Magno.
Nos primeiros séculos, a nova religião foi uma força moral, que transformou a
sociedade por meio de um novo ideal ético, no espírito de Jesus:
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CRISTIANISMO
imo e império, que era apenas uma questão de tempo. No quarto século o mo-
ento chegou.
223
RELIGiÕES DO MUNDO
resolveu. Por último ela revelou-se como infeliz. Os judeu-cristãos, que sem dúvida
alguma a teriam rejeitado, se não impedido, no concílio, vêem-se agora definitiva-
mente excomungados. Para os judeus, e mais tarde para os muçulmanos, a fórmula
permaneceu incompreensível. E mesmo os cristãos contemporâneos encontram nela
insuperáveis problemas, assim como no dogma da Trindade, de um Deus em três
pessoas, que mais tarde se desenvolveu a partir daí.
Mas precisamente este dogma da Trindade, imposto no século IV-V, passa a ser o
coroamento do cristianismo como religião do estado, que sob o imperador Teodósio
(379-395) já se encontra plenamente institucionalizado no final do século IV: a
igreja católica é agora a igreja do estado, e a heresia um crime contra o estado. A
conseqüência foi que agora, não poucas vezes, a igreja passou de igreja perseguida a
igreja perseguidora: em nome de Jesus Cristo, que pregou a não-violência e a paz
(ou também em nome da Trindade), os que professavam outra fé - em primeiro
lugar os judeus - passaram a ser perseguidos e logo também mortos, sendo destruídos
tesouros culturais (livros!) e artísticos inestimáveis.
A fé deixa agora de ser vista, como no Novo Testamento, principalmente como
uma entrega confiante a Deus e a seu Cristo. Fé, agora, é sobretudo crer retamente,
ortodoxia: a convicção de que determinadas teses doutrinárias da igreja sobre Deus,
sobre Cristo e sobre o Espírito Santo, tais como formuladas pelos sete concílios
ecumênicos e sancionadas pelo Estado, está "correta". É a exigência da ortodoxia
que distingue a igreja bizantina do cristianismo primitivo e, por fim, também de
outras igrejas, e que, ao mesmo tempo, passou a ser o seu nome próprio.
Entrementes a igreja ocidental, agora latina, sob os bispos de Roma, havia seguido
caminhos próprios e tentara impor o primado do bispo de Roma também sobre o
Oriente. A isso a igreja oriental opõe-se decididamente. No século XI, após um longo
processo de afastamento e alienação, ocorreu a ruptura definitiva do papa, agora auto-
crata, com a igreja bizantina: em 1054 a bula romana de excomunhão é deixada pelo
cardeal legado sobre o altar de Santa Sofia. Mas o então imperador, Constantino IX
Monomachos, representado num mosaico de Santa Sofia, teria entregue ao príncipe
Vladimir de Kiev as insígnias do império - após a queda de Bizâncio, cria-se a base
lendária para a teoria, surgida muito mais tarde, de Moscou como terceira Roma.
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CRISTIANISMO
mais tarde conhecido por seu nome monástico de Cirilo, foi quem inventou a pri-
meira escrita eslava. Esse alfabeto eslavo antigo (glagolítico), mais tarde chamado
simplesmente cirílico, continua em uso até hoje. Na Morávia e Panônia, os irmãos
Metódio e Cirilo não usavam o latim como os francos, nem o grego como os demais
bizantinos, mas sim o eslavo. Assim tornaram possível um cristianismo eslavo. Fo-
ram eles os primeiros a lançar entre os eslavos meridionais (os búlgaros, mais tarde
os sérvios) a base para um ecúmeno bizantino-eslavo (paradigma 11).
Diferente foi o destino dos húngaros, dos eslavos ocidentais (Boêmia, Polônia) e
do sudoeste (croatas, eslovenos). Por causa da antiga divisão de Roma entre império
oriental e ocidental, estes não se orientam por Bizâncio, e sim por Roma. Dessa
forma, o mundo eslavo ficou dividido entre a igreja bizantina e a igreja romana. Já
bem cedo esboçaram-se aqui dois modelos inteiramente diferentes: por um lado o
modelo helenista da igreja antiga, por outro o modelo medieval católico-romano. Já
no século IX, com essa divisão, ficou decidido o destino dos mais tarde eslavos do
sul (iugoslavos). Ocorreram desenvolvimentos extremamente diferentes: um alfabe-
to diferente, uma língua litúrgica e literária diferente, culturas diferentes, muitas
vezes regimes diferentes. A recentíssima divisão da Iugoslávia nas antigas unidades
religiosas e culturais só poderia ter sido evitada por uma oportuna cooperação
ecumênica das igrejas e por um decidido envolvimento dos políticos por uma solu-
ção federativa (talvez segundo o modelo da Confederação Helvética).
Mais importantes, do ponto de vista histórico, são as tribos eslavas orientais, que
também assumiram o cristianismo bizantino (paradigma II) e construíram o impé-
rio russo: em uma primeira fase, em Kiev, o reino dos rus, de onde procedem russos,
ucranianos e bielo-russos. Como data de fundação do cristianismo russo é considerda
a conversão do príncipe Vladimir e o batismo em massa, no Dnjeper, por sacerdotes
gregos, no ano de 988. Ao reino de Kiev haveria de seguir-se, numa segunda fase,
após os dois séculos de domínio mongólico dos tártaros, o reino de Moscou e, na
terceira fase, o reino de S. Petersburgo.
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RELIGIÕES DO MUNDO
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CRISTIANISMO
Depois da queda do comunismo, o magnífico culto da era dos czares foi restaura-
do em todo o seu esplendor bizantino. Iluminada como nunca o fora, resplende
agora o interior da catedral do Kremlin, já desde antes totalmente ornamentada com
muitas dezenas de magníficos afrescosda vida de Maria e de Jesus. Nas colunas estão
representados 135 mártires do cristianismo ortodoxo - orgulho da ortodoxia.
Muitos russos, porém, ainda não chegaram a esquecer que a igreja ortodoxa,
assim como a nobreza, o exército e a polícia, foi a garantia e apoio do regime
czarista e que por isso a revolução de 1917 foi dirigida contra o Estado e contra a
igreja. Esta recebera de volta seu patriarcado, mas, na pessoa do patriarca Tikhon,
voltou-se contra a revolução. De acordo com a palavra de Marx, modificada por
Lenin, a religião era de fato não apenas "ópio do povo", mas um ópio intencional-
mente oferecido ao povo, e haveria de ser com todos os meios combatida pelos
bolchevistas.
Com razão a igreja responde, contudo, que a revolução de Lenin foi, sob Stalin,
transformada em um brutal e mortífero regime de terror: milhares de padres foram
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RELIGIÕES DO MUNDO
FESTA DA PÁSCOA.ORTODOXA
As festas litúrgicas desde sempre tiveram muito significado para o povo russo e
ainda hoje têm; antes de qualquer outra, a Festa da Páscoa, festa máxima da cristan-
dade. Por causa do calendário juliano, introduzido por Júlio César e ainda hoje
válido na igreja russa, quase sempre a Páscoa é celebrada em uma data diferente da
igreja ocidental, onde vigora o calendário gregoriano (do papa Gregório XIII), cor-
rigido em 1582.
Mesmo na época da opressão comunista, podiam ser vistos milhares e milhares
de pessoas em silêncio, na frente e dentro das poucas igrejas abertas. Mas hoje em
dia as festas já podem ser celebradas em toda a parte com som e alegria. Inúmeros
moscovitas o fazem, e mandam benzer, como diante da Igreja de São Nicolau, os pães
da Páscoa, que levam consigo para a celebração em casa com a família. Todos gostam
também de deixar-se aspergir com água benta.
A festa da ressurreição do Senhor é toda ela uma festa de velas, de luzes e de
alegria. Em tempos antigos, podia-se ouvir nessa noite o toque dos muitos milhares
de sinos das quarenta vezes quarenta igrejas de Moscou. Durante e após a revolução
eles estiveram mudos. Mas "ressuscitaram" de um silêncio de dezenas de anos, e hoje
muitos deles voltam a repicar.
No Oriente, o que ocupa o centro da liturgia é muito mais o Ressuscitado do que
o Crucificado. Ele é o grande sinal da esperança na vida eterna. Esperança que se
expressa pela aclamação dirigida pelo sacerdote a cada fiel: "Cristo ressuscitou!", a
que os fiéis respondem com alegria: "Sim, ele ressuscitou verdadeiramente." A liturgia
encerra-se com o ósculo de paz dos sacerdotes e com a recepção dos dons eucarísticos
O pão, mergulhado em vinho, é servido com uma colher.
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CRISTIANISMO
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RELIGIÕES DO MUNDO
AM~ÇAS E ESPE~N~SD~',ORTODOXI
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CRISTIANISMO
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RELIGIÓES DO MUNDO
o PAPADO SE FIRMA
Mas o fato decisivo é que, desde a transferência do governo imperial para Cons-
tantinopla, no Ocidente os bispos de Roma aproveitam o vácuo do poder. Atribuem-
se cada vez mais poder (potestas), primeiro na igreja; depois, condicionados pela con-
fusão das invasões bárbaras, também no estado. O discurso do serviço à igreja e ao
estado passa agora a ser mera formalidade.
De início Roma quase não fez exigências jurídicas fundamentadas em Pedro. A
passagem do evangelho de Mateus, tão fundamental para os atuais bispos de Roma:
"Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igrejà' (16,18s), que agora enfeita
a cúpula da Basílica de São Pedro com letras de dois metros de altura sobre fundo
dourado, não aparece nem uma única vez completa em toda a literatura cristã dos
primeiros séculos. Só em meados do terceiro século, pela primeira vez um bispo de
Roma (Estêvão) apela para o primado de Pedro na disputa com outras igrejas. E só
muito depois da guinada constantiniana é que a citação da pedra é usada em apoio às
exigências primaciais romanas. Mas precisamente essa interpretação não foi acompa-
nhada por todo o Oriente cristão, nem por Agostinho, por exemplo. Pois em toda a
parte, quando se fala da "pedra", pensa-se até hoje na fé de Pedro em Cristo, que é o
fundamento da igreja. Sobre uma autoridade jurídica de Pedro sobre toda a igreja e,
mais ainda, de um primado do sucessor romano de Pedro, mesmo em Roma, pOl
muito tempo não se sabia coisa alguma, como em todo o Oriente, compreensivel-
mente, nada se quer saber até hoje.
Também só no período pós-constantiniano, a partir da segunda metade do sécu-
lo IV, é que os bispos de Roma tentam energicamente impor na prática uma estru-
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CRISTIANISMO
ura sempre mais monárquica na igreja. Mas ainda no primeiro concílio ecumênico
te Nicéia, em 325, Roma desfruta ae privilégios como os outros grandes bispados
le Alexandria, Antioquia e Jerusalém, mas não exerce nenhum primado sobre toda
igreja.Também os mais importantes bispos e teólogos da igreja ocidental, Ambrósio
, Agostinho, desconhecem esse primado.
No segundo mais importante concílio ecumênico, o de Calcedônia, em 451, o
iispo de Roma, Leão Magno, consegue um grande êxito com sua fórmula cristológica
ie Cristo como uma pessoa em duas naturezas. Mas também aqui ninguém pensa
-m conferir a Roma uma primazia sobre as outras igrejas. Pelo contrário, precisa-
nente Leão, que já sonha com uma pretensa plenitudo potestatis ("plenitude de po-
[er") dada ao bispo de Roma, e que por isso assume o título do supremo sacerdote
Jagão, "Pontifex maximus", é forçado a inteirar-se de que o mesmo concílio, sem
qualquer cerimônia, confere à sede da Nova Roma (Constantinopla), em seu célebre
cânon 28, o mesmo primado honorífico que à antiga capital do império. O enérgico
protesto de Leão contra essa valorização da segunda Roma não encontra qualquer
eco. De qualquer modo, ele é o primeiro dos bispos de Roma a ser sepultado na
basílica constantiniana de são Pedro. E Roma, a partir de então, irá com predileção
reportar-se justamente a ele, a quem por sua teoria e prática do primado cabe, no
verdadeiro sentido, o título de "papá'.
Mas que presunção - esse o sentimento que se teve e ainda se tem na ortodoxia
oriental - a de um bispo isolado, na igreja, tentar atribuir a si a responsabilidade
pessoal e o poder do apóstolo Pedro! Totalmente inaceitável parece, sobretudo, que
a partir do poder apostólico de Pedro - por uma hábil combinação de argumentos
teológicos e jurídicos -, se deduzam todas as possíveis conseqüências jurídicas para
uma exigência de domínio absoluto. A incessante vontade de poder de Roma não
recua nem mesmo diante das mais flagrantes falsificações. Basta pensar na "doação
constantiniana" (antes de partir para o Oriente, Constantino teria dado ao bispo de
Roma uma posição semelhante à do imperador e o primado sobre todas as igrejas).
Basta pensar nas falsificações simaquianas (''A primeira sede não é julgada por ne-
nhuma outra. "), e sobretudo nas do Pseudo-Isidoro, de que a igreja antiga teria sido,
até nos mínimos detalhes, governada por decretos dos papas. Tais manipulações,
únicas na história universal, não são de forma alguma uma curiosidade "da época",
mas sim um fator de poder até hoje. No Código do Direito Canônico, revisado em
1982, elas são, na verdade, veladas, mas continuam atuantes no absolutismo papal,
que efetivamente mais uma vez corroboram.
233
RELIGiÕES DO MUNDO
resolvida entre a igreja do Oriente e do Ocidente. Sobre isso até hoje nunca se
discutiu em um concílio ecumênico entre Oriente e Ocidente, nem muito menos
foi definida coisa alguma. Por isso, a nova teoria e prática do primado de Roma
carrega a culpa maior pelo cisma entre igreja do Oriente e do Ocidente. Mesmo
no Ocidente, o paradigma teológico, político e jurídico iniciado na igreja católi-
ca só pôde ser posto em prática com muitos recuos e estagnações. Antigamente as
deposições de papas (por imperadores bizantinos ou alemães) e os processos e
condenações contra os papas eram numerosos. Até o século XI, Roma não é con-
siderada como verdadeira autoridade magisterial no sentido jurídico, nem, mui-
to menos, as decisões papais consideradas infalíveis. Assim como houve impera-
dores heréticos (na disputa das imagens), assim também houve papas heréticos (o
caso mais célebre é o de Honório I, no século VII, por vários concílios condenado
como herege).
Mas o papado, que no século X isaeculum obscurum: o "século obscuro") havia
decaído moralmente, foi reformado pelos imperadores alemães: estes nomearam
uma série de papas, quase todos de origem alemã. Assim fortalecido, ele voltou-se
no século XI contra seus protetores imperiais, ao mesmo tempo que acreditava
poder sustentar um "cabo-de-guerra" com Bizâncio. Na antiga Roma, bem no espí-
rito das falsificações, sempre mais a igreja inteira é derivada do poder papal.
E não é por acaso que o mesmo cardeal Humberto da Silva Candida, que pela
primeira vez fundamentou o poder absoluto do papa na igreja e sua primazia mes-
mo sobre qualquer poder temporal, fosse justamente aquele legado papal que, em
1054, deixou na Hagia Sophia a fatídica excomunhão do patriarca ortodoxo junta-
mente com toda a igreja oriental. Esta é considerada a ruptura definitiva entre a
igreja do Oriente e do Ocidente. E selada pela infeliz Quarta Cruzada (1204), com
a conquista e saque de Constantinopla pelos latinos e com a imposição de um
imperador e um patriarca "latinos"! O cardeal Humberto, por sua vez, chegou a ter
a presunção de simplesmente descrever a relação entre igreja e papa como a relação
entre porta e gonzo, entre família e mãe, entre edifício e alicerce, entre rio e fonte.
Na época somente teoria, mas que logo iria transformar-se em prática de Roma.
O apóstolo Paulo, que um dia resistiu em face a Pedro, tinha entrementes perdi-
do decisivamente importância com relação a Pedro, que sozinho tem que sustentar
as exigências de poder. Tríplice coroa, "anel do pescador", vestes pontificais - são
essas agora as insígnias papais. Com isso a imagem de Pedro é ainda hoje equipada
na Basílica de São Pedro, no dia de são Pedro. O sucessor do pescador galileu
transformou-se, ao longo dos séculos, no senhor da igreja, que aprecia mandar urbi
et orbi, à cidade e ao globo terrestre.
234
CRISTIANISMO
Quando um papa como João Paulo II sobe à "Confissão de Bernini" sobre o túmulo
de Pedro, ele é o símbolo daquela concepção absolutista e monárquica da igreja, des-
conhecida no primeiro milênio. Só no século XI, sob o regime do férreo Gregório VII
(1073-85; antes ele era colega daquele cardeal Humberto), ela se impôs no Ocidente
com uma nova constituição da igreja, chamada reforma gregoriana: toda a igreja está
voltada para o papa, que possui o poder de, para todos os homens, interpretar au-
torizadamente o evangelho na teoria e na prática. Ele quer ser não apenas o sucessor de
Pedro, mas também o representante de Cristo, ou mesmo de Deus.
Completa-se assim a mudança de paradigma - que se afasta do paradigma cole-
gial ecumênico da igreja antiga (paradigma lI) e se aproxima do paradigma católico-
romano da Idade Média (paradigma III). Com auxílio de todas as falsificações, é
sugerida e propagada uma imagem da igreja inteiramente centralizada na autorida-
de do papa: a realização de concílios estaria ligada à autoridade do papa, todos os
assuntos importantes na igreja estariam submetidos ao julgamento do papa, as leis
contrárias dos estados seriam inválidas, os bispos seriam inteiramente dependentes
do papa - tudo isso pode ser encontrado nos decretais falsificados e em suas poste-
riores confirmações oficiais.
o SISTEMA ROMANO
A igreja católica - um novo Imperium Romanum. Uma expressão disso nos dias
de hoje: o pálio conferido na festa de são Pedro aos arcebispos recém-nomeados do
mundo inteiro. O pálio, sinal da autoridade arquiepiscopal. O papa reservou a si,
pessoalmente, a concessão do pálio. Assim, também aqui ele exerce o controle e o
domínio. Pois só com o pálio um arcebispo pode exercer seus direitos de metropolita.
Estes ele só os recebe quando (como todos os bispos do mundo) tiver feito na liturgia
- apesar de o próprio Jesus haver proibido o juramento - um juramento pessoal de
obediência ao papa, com o seguinte teor: "Eu ... , arcebispo de ... , serei sempre fiel ao
bem-aventurado apóstolo Pedro, à igreja apostólica de Roma e a ti, sumo pontífice,
e a teus legítimos sucessores. Assim me ajude o Deus todo-poderoso." Depois de tão
solene juramento ao papa, não é de admirar que professores de teologia antes críti-
cos prestem ao papa uma obediência descriteriosa, semelhante à que os generais
alemães prestavam ao Führer. Assim o sistema funciona sem atritos.
Mas de maneira alguma se deve com a água do banho jogar fora a criança e com
o sistema romano condenar também a igreja católica. Não resta dúvida, essa Roma
também foi, durante todos estes séculos, um fator de continuidade: continuidade
da fé cristã, do rito e da ética. Não se deve contestar que, em princípio, a substância
da fé cristã foi çonservada também em Roma: o mesmo evangelho, o mesmo rito de
admissão (batismo), o mesmo rito de comunhão (eucaristia), o mesmo etos (do
amor ao próximo).
235
RELIGIÕES DO MUNDO
Só desde a alta Idade Média a igreja católica é assim como nos aparece hoje:
• O papa reclama o direito do primado sobre toda a igreja, sobre todos os patriar-
cas, bispos, sacerdotes e cada fiel- o que até hoje tem sido rejeitado pelas igrejas
orientais.
• O poder espiritual é basicamente colocado acima dos leigos - o que levou à
grande disputa entre papa e imperador, e depois entre papa e o estado moderno,
uma disputa que o papado vem perdendo em toda a linha.
• A proibição do casamento agora é lei para todo o clero - o que contradiz a
tradição milenar do casamento dos padres também na igreja ocidental e lhe acar-
reta inúmeros problemas desnecessários, nos dias de hoje sobretudo uma catas-
trófica carência de sacerdotes.
236
CRISTIANISMO
237
RELIGIÕES DO MUNDO
Essas queixas já têm mais de quinhentos anos. Elas levaram, nessa ocasião, ao
histórico conflito entre o papa e um jovem monge alemão. Em 1510, em uma via-
gem de serviço para Roma, este monge morou no convento dos eremitas agostinianos,
perto de Santa Maria del Popolo: Martinho Lutero.
238
CRISTIANISMO
RETORNO AO EVANGELHO
Que é que para Lutero é importante? O que a ele importa é pura e simplesmente
o retorno da igreja ao evangelho de Jesus Cristo, como ele havia experimentado
vivamente nas Sagradas Escrituras e, sobretudo, em Paulo. Por isso ele traduz nova-
mente a Bíblia para o alemão, para que a palavra de Deus, única senhora da igreja,
sua mensagem e seu destino voltem a tornar-se compreensíveis para as pessoas. Em
concreto isso significa:
239
RELIGIÕES DO MUNDO
nos libertou! Ficai, portanto, firmes e não vos curveis de novo sob o jugo da escravi-
dão!" (GI 5,1). Essa palavra de Paulo é particularmente citada no rito que, desde
Lutero, tornou-se característico para a igreja reformada: no rito da confirmação, do
fortalecimento na fé. Os jovens cristãos de ambos os sexos devem, de todas as for-
mas, ser acolhidos na comunidade. Depois da profissão de fé, com a oração e com a
imposição das mãos, eles se tornam membros adultos da comunidade, com todos os
direitos e deveres. Só então é que são admitidos à ceia eucarística.
Evidentemente, todo pastor evangélico se interroga hoje quantos desses, que são
declarados cristãos adultos, irão no futuro participar do culto comunitário. E da
ceia eucarística. Desde o início um ponto fraco nas igrejas evangélicas. Precisamente
por causa da ceia eucarística, já nos tempos de Lutero chegou-se à primeira divisão
no campo reformado.
Hoje está historicamente estabelecido: é Roma (e não Lutero) que arca com a
maior responsabilidade pelo fato de a disputa teológica em torno do reto caminho
de salvação e da reflexão prática sobre o evangelho haver-se rapidamente transfor-
mado em uma disputa básica sobre a autoridade da igreja e sobre a infalibilidade do
papa e dos concílios. Um primado pastoral ou de serviço do papa, orientado e ins-
pirado no evangelho no interesse da unidade da igreja, em princípio também teria
sido aceito por Lutero; muitos de seus unilateralismos e exageros poderiam ter sido
corrigidos em um diálogo compreensivo.
Mas em Roma - e no episcopado alemão - não se podia nem se queria então ouvir
este apelo à penitência e à conversão, à reflexão e à reforma. Quanta coisa não poderia
haver sido modificada então! Toda a teologia poderia ter recebido uma orientação
nova, toda a igreja uma estrutura nova. Poderia ter sido feita uma mudança de paradig-
ma por excelência, uma mudança da constelação global: uma nova compreensão de
Deus e do homem, da igrejae dos sacramentos, a abolição das indulgências, a introdu-
ção da língua vernácula na liturgia, a suspensão da lei do celibato e tanta coisa mais.
Mas para isso Roma e o episcopado da Alemanha nem estavam dispostos nem
tinham capacidade. Roma conseguiu excomungar Lutero, mas não pôde deter a
radical reformulação da vida da igreja segundo o evangelho e o progressivo movi-
mento de reforma. Assim, logo se estabeleceu com firmeza o novo paradigma refor-
mado da teologia e da igreja. A que preço, no entanto? O preço certamente foi que,
ao grande dsma entre Oriente e Ocidente, se acrescenta o não menor cisma entre
Norte e Sul. Um processo histórico de primeiríssima categoria, com imprevisíveis
efeitos sobre estado, sociedade, economia, ciência e arte e logo também sobre a
situação do mundo: a América Latina torna-se católica (paradigma III), a América
do Norte protestante (paradigma IV).
240
CRISTIANISMO
o que começara tão bem com Lutero terminou, no entanto, com resultados
iasrante ambíguos. O programa da'reforrna era claro, mas sua realização duvidosa.
)ois:
1. Lutero havia invocado espíritos de que só pôde libertar-se com violência. Che-
gou-se a uma irrupção do fanatismo [Schwãrrnertum], sobretudo do movimen-
to anabatista, que logo forçou Lutero a criar uma segunda frente. Esses adversá-
rios à esquerda fizeram-no parecer conservador, e sua tomada de partido na
guerra dos camponeses - contra os camponeses explorados e a favor dos prínci-
pes e da nobreza - como reacionário.
2. A unidade no campo reformador não pôde ser preservada. Foi a visão diferente
da eucaristia que separou Lutero definitivamente de seu companheiro suíço mais
radical Ulrich Zwingli (Zurique). Quem saiu ganhando em nível mundial foi
João Calvino (Genebra), que nessa questão assumiu uma posição intermediária
e, como grande inspirador e organizador de uma rede internacional, levou o
protestantismo à condição de potência mundial. O cristianismo "reformado",
bem como a Reforma conseqüente, torna-se também politicamente ativo - atra-
vés dos huguenotes na França, dos calvinistas nos Países Baixos e dos puritanos
na Inglaterra. A constituição presbiterial-sinodal da igreja de Calvino irá, indire-
tamente, tornar-se importante para a evolução da democracia moderna.
3. A reforma deparou-se não apenas com uma crescente resistência política, mas o
entusiasmo reformador original também logo arrefeceu. Os muitos que não es-
tavam maduros para a "liberdade do cristão", com a queda do sistema romano
perderam também a base eclesiástica.
4. O ideal da igreja cristã livre, como Lutero esboçara entusiasticamente aos con-
temporâneos em seus escritos programáticos de 1520, não se tornou realidade
no império alemão. As igrejas luteranas libertadas do "cativeiro da Babilônia",
isto é, de Roma, rapidamente caíram em uma não menos opressiva dependência
dos príncipes seculares e dos magistrados das cidades. Na Alemanha a reforma
não preparou o caminho para a modernidade nem para a liberdade religiosa,
mas de início favoreceu o estado autoritário e o absolutismo dos príncipes.
241
RELIGIÕES DO MUNDO
242
CRISTIANISMO
• René Descartes: é o pai da nova filosofia racionalista. Ele inicia uma revolução
copernicana do pensamento. Toda a realidade é agora constituída a partir do
sujeito humano.
• Galileu Galilei: é o precursor da nova ciência empírico-matemática. Essa é a
condição para a tecnologia e industrialização que logo haveria de começar, atin-
gindo seu ponto culminante no século XIX.
243
RELIGIÕES DO MUNDO
o CRISTIANISMO NA DEFENSIVA
244
CRISTIANISMO
exercício da religião. Não se chega, como na França, a uma ruptura total com o
assado, mas sim ao estabelecimento-de uma moderna democracia liberal, como de-
ois vai aos poucos sendo implantada também na Europa ocidental do século XIX.
Os pontos de vista globais sempre mais passam a ocupar o primeiro plano. De
ucio, quase sem se perceber, a constelação eurocêntrica é substituída por uma cons-
elação policêntrica das diversas regiões do mundo. E, quanto mais se amplia do
onto de vista geográfico, cultural e espiritual o horizonte mundial, tanto mais se
videncia a relatividade do cristianismo de cunho europeu.
Mas quanto mais a modernidade avança, tanto mais se evidencia também sua
irópria relatividade. Muita coisa negativa aconteceu em nome de Deus, e muita
:oisa negativa acontece também em nome da razão, do progresso e da nação.
A MODERNIDADE EM CRISE
245
RELlGIOES DO MUNDO
para uma nova época, para um paradigma pós-moderno (paradigma VI). Este não
possui ainda um nome, mas pode ser descrito negativamente como:
Como deve o cristianismo contribuir para essa nova constelação mundial? Três
imperativos se impõem:
A nova constelação mundial exige uma nova ordem mundial, que não pode ser
alcançada pelas nações se não contarem com o apoio das religiões. No tocante a
isso, a organização mundial das Nações Unidas - muitas vezes criticada e mais
vezes ainda ignorada e entregue à própria sorte - encontra-se diante de tarefas
imensas neste novo milênio:
246
CRISTIANISMO
AVISÁO DA ESPERANÇA
Não, não perdemos a esperança. Os povos da terra não podem perder a esperan-
ça, ao menos por causa dos filhos, por causa das gerações vindouras. E precisamente
os nossos filhos, que um dia irão configurar o futuro, podem aproveitar o que há
dois mil anos o Nazareno anunciou e viveu: tolerância, compreensão, bondade,
prontidão para ajudar, partilha, perdão, amor. Ideais na verdade, mesmo depois de
dois mil anos, não superados!
Nosso globo se encontra ameaçado a partir de dentro. Ele pode explodir. Mas
nosso globo também pode voltar a ser são, mais pacífico; mais humano - onde quer
que as pessoas, em vez de se ameaçarem e se combaterem, dialoguem umas com as
outras, se tolerem e se respeitem mutuamente:
247
RELlGIÓES DO MUNDO
Para nações, grupos e indivíduos, é mais atual do que nunca a Regra Áurea,
formulada por Jesus não apenas de maneira negativa, e sim positivamente: "Tudo o
que quiseres que te seja feito, faze-o também aos outros!" (Mt 7,12). Uma orienta-
ção básica para todo o longo caminho da vida.
A violência é hoje um problema em todas as sociedades. Mas a palavra do grande
profeta judeu Isaías, "transformar espadas em arados" (Is 2,4), é entendida hoje em
todas as nações e religiões.
Já os jovens devem aprender que a violência não pode ser um método de discus-
são. Só assim surgirá aos poucos:
As guerras são sobretudo desumanas e têm que ser evitadas a todo o custo. Não
disse o Nazareno: "Felizesos pacíficos, pois serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9)?
248
VII
Islamismo
MUÇULMANOS EM MARSELHA
Marco da mais célebre cidade portuária da França, que deu nome ao hino nacio-
nal francês: Notre Dame de la Garde! Inúmeros marinheiros têm vindo aqui, em
peregrinação, para agradecer à Madona por terem sido poupados dos perigos do mar.
Marselha, fundada já em 600 a.c. pelos gregos é desde o tempo dos romanos o
maior centro comercial do Mediterrâneo ocidental e há mais de mil e seiscentos
anos sede de um bispado. A Marselha medieval passou por um período de flores-
cimento no tempo das cruzadas.
Notre Dame de la Garde: muitas pessoas da cidade inteira e de todo o mundo
têm vindo a esse lugar de peregrinação implorar ajuda, pedir auxílio nas múltiplas
tempestades da vida. Inúmeras as imagens, inúmeras as necessidades. Pois existem
situações em que o homem não sabe como se ajudar a si próprio. Nisso nada se
modificou.
Não nos enganemos, porém: nem em Marselha nem na França em geral, a igreja
não é mais o grande referencial de orientação espiritual para a sociedade. Muita
coisa é relíquia do passado. Nos tempos mais recentes, a igreja católica perdeu o mo-
nopólio sobre o mercado das doutrinas de salvação. A França está mais secularizada
do que a maioria dos outros países da Europa. O número de católicos praticantes
caiu para uma pequena porcentagem, muitas vezes não substancialmente maior do
que a dos muçulmanos residentes que, com cerca de 4,5%, representam a maior
parcela da população da Europa. Na França existem mais de três milhões de muçul-
manos. Mas tanto na Alemanha como na Inglaterra logo esse número deverá chegar
a três milhões. Na Europa os muçulmanos constituem agora a maior comunidade
religiosa depois dos cristãos. E essa tendência se mantém.
250
ISLAMISMO
. oração ritual (salat) cinco vezes \?or dia e em horas determinadas. A isso ele é
:onvidado publicamente pelo encarregado, o muezim, do alto da torre da mes-
luita, o minarete: de manhã, ao meio-dia, à tarde, ao pôr do sol e à noite. Mas, hoje
.rn dia, freqüentemente o anúncio é feito por fita cassete e alto-falante e por vezes
.m uma barulhenta competição, esquecendo-se do que se pode encontrar no pró-
orio Alcorão: "Tanto faz se o chamas de Deus ou de Misericordioso; como quer
lue o chames, dele são os mais sublimes atributos. Não profiras a tua oração em voz
muito alta, nem em voz demasiado baixa, mas procura um tom médio entre am-
oas!" (Sura 17,110).
A mesquita (masjid: "lugar onde a gente se lança por terra", "lugar de adoração")
é o lugar não apenas do culto de oração comunitária e da oração pessoal, mas tam-
bém de reuniões, de negociações e de julgamentos, assim como de ensino e de estu-
do teológico. De sua mobília fazem parte: o nicho de oração (mihrab) na direção
(qibla) de Meca, o púlpito (minbar) para o presidente do culto da sexta-feira, uma
estante para o Alcorão, candelabros e lâmpadas, esteiras e tapetes. A casa de Deus
dos muçulmanos não conhece imagens, nem estátuas, nem objetos de devoção. Bas-
tam as palavras do Alcorão, artisticamente configuradas em grandes letras arábicas,
além de ornamentos não figurativos. Nada de música solene, de instrumentos ou de
canto coral. A solene recitação do Alcorão é música suficiente.
civilisetions; o temido
251
RELIGIÕES DO MUNDO
:J;;;Deus:de·Âbraão .
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Y:;,..-- ;--":;,,:>:; ).\;'S c;;:
252
ISLAMISMO
Um inimigo nos alivia. A culpa não é nossa nem dos nossos amigos, mas é toda
do inimigo! Nossos sentimentos de culpa reprimidos e nosso complexo de infe-
rioridade, nossas agressões e frustrações, podem, sem qualquer risco, voltar-se
para fora, ser projetadas sobre ele. Um inimigo nos torna possível uma mentali-
dade de bode expiatório.
Um inimigo une. Se em muitas coisas somos desunidos, diante do inimigo
somos conjurados! Um inimigo comum reforça a coesão. Faz-nos cerrar filei-
ras firmemente e isolar os que discordam. Um inimigo favorece o pensar em
conjunto.
Um inimigo polariza. Ao se reduzirem as possibilidades a uma alternativa úni-
ca, as pessoas podem efetivamente categorizar as outras, numa discussão políti-
ca, como amigas e inimigas. Se não sabemos a favor de quem somos, ao menos
sabemos contra quem somos. As frentes ficam daras. Cada um sabe onde se
encontra. Um inimigo impele todo o mundo para um esquema amigo-inimigo.
• Um inimigo ativa. Torna desnecessária a informação e orientação própria. Po-
demos e devemos defender-nos contra os outros, contra os estranhos, contra
os inimigos, quer externos, quer internos. Então temos necessidade não ape-
nas da desconfiança, mas também da inimizade e, se for preciso, também da
violência contra coisas e pessoas, violência física, psíquica, política ou até mes-
mo militar. Um inimigo leva-nos a superar escrúpulos de matar, leva-nos com
facilidade à guerra, fria e quente.
Quando fala do islã, nossa mídia gosta de mostrar mulás barbudos, terroristas
violentos e inescrupulosos, xeiques do petróleo super-ricos ou mulheres com o rosto
velado. Os inúmeros muçulmanos pacíficos, tolerantes e abertos sofrem com esses
estereótipos europeus, que destacam nos muçulmanos sobretudo a intolerância in-
terior, a militância exterior e a rigidez e o atraso sob todos os aspectos.
É urgente que se façam certas perguntas autocríticas aos cristãos: Será que tantas
vezeso que fazemos não é comparar uma imagem negativa do islã com uma imagem
ideal do cristão? Será que no Ocidente, ou mesmo no cristianismo, não existe tam-
bém intolerância, militância e atraso e, vice-versa, que também no islã existe tole-
rância, amor à paz e progresso? Ou será, então, que com um esquema amigo-inimi-
253
RELlGIOES DO MUNDO
go O que procuramos não é denegrir e isolar o que não conhecemos? Será que é essa
a imagem verdadeira e real do islã? Os cristãos devem entender o islã assim como ele
próprio se entende. Perguntas críticas, portanto, são perfeitamente legítimas, assim
como é perfeitamente desejável uma competição por uma compreensão mais pro-
funda de Deus.
Já um olhar para o mapa provoca esta pergunta: Por que, no cinturão do globo,
quase um bilhão de pessoas professa o islamismo, da costa atlântica da África até as
ilhas da Indonésia, das estepes da Ásia central até Moçambique? Por que essa reli-
gião conseguiu congregar em uma grande família religiosa pessoas tão diferentes
como berberes nômades, negros africanos, árabes do Oriente Médio, mas também
turcos, persas, paquistaneses, indianos, chineses e malaios?
Para os próprios muçulmanos o islã é a religião mais nova e, por isso, também a
melhor. Judeus e cristãos, na verdade, receberam a revelação de Deus já antes, mas
depois a adulteraram. Só o islã a restaurou sem falsificações. Por isso, para os mu-
çulmanos, o islã é também a religião mais antiga e mais universal. De fato, já Adão,
o primeiro homem, teria sido um muslim. Por quê? Porque já Adão praticou o
islam, que literalmente significa "submissão", "sujeição", "entrega" à vontade de Deus
na vida e na morte.
Ao contrário dos judeus do período tardio, até hoje os muçulmanos não têm
qualquer escrúpulo em pronunciar o nome de Deus. Mas, no tocante à proibição
das imagens, eles são talvez ainda mais radicais do que os judeus. O lugar das ima-
gens proibidas é ocupado entre eles pela escrita, o das artes representativas pela
caligrafia: a arte da bela escrita, antigamente cultivada também nos mais altos
círculos.
A escrita árabe clássica evoluiu de uma forma do aramaico. Seu precursor é o
alfabeto aramaico dos árabes nabateus (capital Petra, na atual jordânia). Os mais
antigos testemunhos da escrita árabe descobertos até agora são inscrições trilíngües,
em siríaco, grego e árabe, do ano 512-513. Trata-se de uma escrita consonantal,
escrita da direita para a esquerda; com o correr do tempo, para evitar interpreta-
ções múltiplas e errôneas, as vogais passaram a ser indicadas com sinais diacríticos
(distintivos).
254
ISLAMISMO
255
RELlGIOES DO MUNDO
o ALCORÃO: UM LIVRO
256
ISLAMISMO
recitado em público, em voz alta. ~ran vem do verbo qaraa, "ler em voz alta", e
significa "leitura", nos dois sentidos da palavra: tanto o ato de apresentar ou recitar,
como aquilo que é recitado, o que é lido, o lecionário. O que o Profeta ouviu, isso
ele transmitiu aos homens. É um livro que ressoa com a prosa rimada de suas suras
e versos e que pode e deve ser recitado ou cantado. Suas palavras e frases acompa-
nham o muçulmano desde a hora do nascimento, quando a profissão corânica de fé
lhe é cantada ao ouvido, até a última hora, quando as palavras do Alcorão o acom-
panham para a eternidade. Pelo ouvir, pelo decorar e pelo recitar, o muçulmano
professa a revelação de Deus, ao mesmo tempo que se apropria dela.
Trata-se de um livro sagrado. O Alcorão não é um livro como outro qualquer,
para ser tocado com mãos sujas e espírito impuro. Não, antes de ler, é necessário que
se lavem as mãos com água ou areia e que se abra o coração por uma oração humil-
de. Não é um livro profano, mas sim um livro inteiramente sagrado e, precisamente
por isso, onipresente. Artisticamente gravados em pedra ou faiança, seus versos or-
namentam edifícios sagrados, mas também obras de metal ou de madeira, cerâmicas
e miniaturas. Com impressionante estética e com diversas escritas diferentes, desta-
cam-se sobretudo os exemplares do próprio Alcorão, muitas vezes preciosamente
encadernados e quase sempre enfeitados com arabescos coloridos.
Para a oração da sexta-feira, até mesmo a rua, em frente da mesquita, fica cheia,
em cidades como Marselha. A rua é inteiramente coberta de tapetes para a oração.
257
RELIGIC>E5 DO MUNDO
Mas todas essas pessoas que estão orando têm perfeita consciência: ninguém se tor-
na realmente muçulmano só por fazer a profissão de fé. Verdadeiramente muçulma-
no é apenas aquele que na prática se submete a Deus na sua vida, portanto aquele que
tenta viver a vontade de Deus. E isso de acordo com o modelo do profeta Maomé.
Mas quem foi esse Maomé? Em muitos outros fundadores de religião, a existência
histórica perde-se nas lendas e nos mitos. Não é isso que acontece com Maomé.
A rica Arábia do sul (Iêrnen, Hadramut), por causa do clima favorável, do lucra-
tivo monopólio do incenso e do comércio com a Índia, é chamada de Arabiafelix,
Arábia "feliz". Muito diferente era e é a Arábia do norte: seca, inóspita, arenosa, rocho-
sa, sem todos aqueles mares e rios, só com rios de leito seco. Urna terra que exige de
plantas, animais e homens o máximo em dureza, persistência e espírito de luta!
Mas é justamente esse norte, dos desertos, estepes e montanhas, mas também dos
oásis, que possibilita aos beduínos o sedentarismo, a agricultura e o comércio (a
criação de camelos e, mais tarde, de cavalos, cada vez mais importantes para o exér-
cito): é exatamente esse norte que haveria de sofrer profundas modificações com o
tráfego vigorosamente crescente das caravanas na "rota do incenso", que haveria de
organizar-se e ser protegido e favorecido. E é justamente esse norte ou, melhor fa-
lando, o noroeste, que é a verdadeira pátria dos árabes e que, com suas cidades
Meca, Ta'if, Medina e Nairan, é o berço do islã. É a ele que o futuro haveria de
pertencer.
SURGE UM PROFETA
Maomé nasceu por volta de 570 em Meca, da tribo dos coraixitas (quraish) e do
clã dos Hashim. Tendo perdido os pais, é criado pelo avô e, mais tarde, pelo tio e
chefe do clã. Torna-se administrador da rica viúva de um negociante, com quem se
casa aos 25 anos. Para ela, ele realiza grandes viagens de negócios pelo deserto até a
Palestina e a Síria. Porém, cada vez mais freqüentemente, ele se retira dos negócios
para a solidão da montanha. Mais importante do que o comércio com todas as suas
preciosidades, passam a ser para ele, com o correr do tempo, a oração e a meditação.
Naquele tempo, na Arábia pré-islâmica e pagã com seus deuses, filhos e filhas de
deuses, existiam não poucos que "procuravam a Deus" (hanij) , que buscavam uma
fé mais pura, a fé no Deus único.
Que surpresa, assim, quando já aos quarenta anos ele se apresenta comunicando
que havia recebido revelações de Deus! Anuncia-as unicamente no círculo da famí-
lia e dos amigos. E termina conseguindo aí um pequeno grupo de fiéis. Só com o
258
ISLAMISMO
tempo torna-se claro para ele tudo quanto envolve sua tarefa profética. De fato,
recebe sempre novas revelações, que apresenta e recita para os seus seguidores.
Mas, quando três anos mais tarde Maomé anuncia publicamente as revelações,
ele é por quase todos rejeitado, até mesmo ridicularizado, como aquele que "repreen-
de" e "adverte". E, compreensivelmente, 'por duas razões.
Em primeiro lugar, em meio à laboriosa cidade comercial de Meca, na rota do
incenso - numa época de ascensão das caravanas comerciais do Iêmen até Gaza e
Damasco -, Maomé defende uma ética da justiça. Ele confronta seus concidadãos
com o juízo vindouro, ameaça com rigorosos castigos no além e exige conversão e
solidariedade social. Uma ameaça para o egoísmo e para o materialismo dos ricos
negociantes e comerciantes!
Além disso, Maomé defende a submissão ao Deus uno e único, o Justo e Miseri-
cordioso. Uma ameaça para o culto dos deuses e para o comércio em torno da
Caaba, para todo o movimento de peregrinações e, com isso, para o sistema finan-
ceiro e econômico de Meca. Isso chega até mesmo a pôr em risco a unidade e o
prestígio de sua tribo, os coraixitas. Os problemas sociais estão intimamente ligados
à problemática religiosa. Vida econômica e estrutura social, por um lado, e religião
e concepções morais, por outro, constituem um entrelaçado quase inextricável de
idéias e instituições.
Não obstante, forma-se uma comunidade muçulmana, cuja base não é um deter-
minado status social, mal> sim a fé comum, a oração ritual, a piedade dirigida para o
final dos tempos, bem como o etos da justiça. A conseqüência é um amargo confli-
to, que durou dez anos. A situação do profeta em Meca termina por tornar-se insus-
tentável. Sua mulher havia falecido, pouco tempo depois também seu tio e protetor.
Outro tio, que havia tomado uma mulher do clã dos Umayya, hostil a Maomé,
coloca-se contra ele. A busca de um refúgio fora de sua tribo nos arredores de Meca
não dá resultado.
Só resta uma solução: a emigração, a hégira. No ano 622 - que mais tarde passou
a ser o primeiro ano da nova era islâmica - o Profeta emigra para Yarhrib, que depois
haveria de chamar-se Medina (al-Madina: "cidade" do profeta). Medina não é uma
cidade com um movimento de comércio, peregrinações e mercados, como Meca,
mas antes um oásis de tamareiras e cereais, portanto de agricultura, que de fato era
ali praticada sobretudo por tribos judaicas. Mas em Medina várias tribos e clãs estão
259
RELIGIOES00 MUNOO
em luta uns com os outros. Eles precisam de um juiz e pacificador. Nessa cidade,
trezentos quilômetros ao norte, alguns homens já haviam peregrinado a Meca e se
encontrado, às ocultas, com Maomé, adotando sua mensagem.
Os muçulmanos saem agora em pequenos grupos: isso foi um êxodo da própria
tribo e um rompimento das relações com o próprio clã - por causa da fé! Verdadei-
ramente, uma passagem para um mundo diferente. O que conta já não é mais o
parentesco da tribo, mas sim a comunidade de fé; não mais os antigos deuses, mas
sim o Deus único. A comunidade dos árabes passa a ser a comunidade dos muçul-
manos. Em Medina o Profeta funda sua primeira comunidade muçulmana, a Umma,
que é o núcleo da mais tarde grande comunidade muçulmana, que até hoje também
é chamada de Um ma.
Desde o início ela é as duas coisas ao mesmo tempo: comunidade religiosa e
comunidade política. Não existe, portanto, separação entre religião e estado! O es-
tado islâmico é, desde o início, uma teocracia, um governo de Deus. Mas é grande a
decepção de Maomé: justamente as três tribos judaicas em Medina rejeitam sua
autoridade profética; para elas, ele não é nenhum profeta. A imagem que Maomé
tem dos judeus passa a ser negativa. Duas dessas tribos são forçadas por ele a emi-
grar, e a terceira é entregue ao massacre. Esta é também uma característica do profe-
ta árabe: ele é estadista e chefe militar ao mesmo tempo.
Durante seis anos ele faz guerra contra sua tribo natal. Mas no ano 630 entra paci-
ficamente, como vencedor, em Meca e volta a residir em Medina. Aqui se encontra o
modelo original de todas as mesquitas. É aquela casa mandada construir em Medina
pelo próprio Maomé: um pátio quadrado cercado por muros de barro; dentro, dois
átrios com toldos para dar sombra, apoiados em troncos de palmeira, com um sinal
indicando a direção de Meca, e um púlpito simples; adjacente ao muro oriental,
encontram-se cabanas de folhas de palmeira para o Profeta e suas mulheres.
260
ISLAMISMO
saíram, sua origem e a pátria de sua religião. Basta que se imagine uma linha reta
éstendida, marcando a direção, para se ficar sabendo para onde se deve, sem falta,
viajar pelo menos uma vez na vida. Todo muçulmano adulto deve fazer essa peregri-
nação, mesmo que de fato hoje ela só possa ser feita por um pequeno número (por
isso essa viagem pode ser feita também por um representante).
Com base no Alcorão, já na comunidade muçulmana primitiva foram desen-
volvidos os cinco pilares básicos do islã, sobre os quais todo o edifício do islã está
construído: ao lado da profissão de fé no Deus único e em seu Profeta, cujo túmulo
é venerado em Medina, e da oração diária obrigatória, ainda:
A grande peregrinação dos muçulmanos para Meca só pode ser feita no mês da
peregrinação. Pelo menos uma vez na vida o muçulmano deve retirar-se do mundo
e voltar-se inteiramente para Deus. Porém, na verdade, isso nada tem a ver com uma
viagem de certa forma agradável, como costuma ser feita pelos cristãos para Lourdes
ou Roma.
É necessário realizar um grande número de rituais, em parte cansativos. Em pri-
meiro lugar, os peregrinos têm que colocar-se em estado de consagração: as mulhe-
res vestem trajes brancos sem costuras; os homens, duas vestes brancas, e não devem
barbear-se ou pentear-se. Ninguém deve cortar o cabelo ou as unhas, usar perfume,
ter relação sexual e, se usar calçado, que seja sem costura. O traje igual fortalece o
sentimento de igualdade de todos os homens perante Deus.
De acordo com a concepção muçulmana, Abraão e seu filho Ismael levantaram a
Caaba (palavra árabe que significa "cubo") e purificaram o lugar do culto dos ído-
los. É preciso dar sete voltas em torno daquele antiqüíssimo santuário de Meca e,
enquanto isso, saudar, tocar ou mesmo beijar a Pedra Negra, certamente um meteorito
basáltico. A Caaba é considerada pelos muçulmanos como um lugar de presença
especial de Deus. Tudo quanto entra em contato com ela participa da força de
bênção divina.
A "pequena" peregrinação - possível durante o ano todo - consiste simplesmente
em rodear a Caaba. Mas na "grande" peregrinação sai-se para a planície de Arafat e
sobe-se o monte sagrado Rahma, onde se obtém o perdão dos pecados. Acrescen-
tam-se ainda na grande peregrinação, nos dias seguintes, uma série de ritos em luga-
res sagrados em torno de Meca. Um desses ritos consiste sobretudo em juntar seixos
261
RELIGIOES DO MUNDO
e atirá-los contra um pilar de pedra. Esse pilar é símbolo do diabo que, segundo se
diz, habita em ruínas, túmulos e "lugares impuros"; diz-se ainda que ele gosta de
música e dança e que é capaz de assumir todas as formas.
Diferentemente de judeus e cristãos, os muçulmanos praticam ainda os anti-
qüíssimos sacrifícios de animais para expiação dos pecados. Os animais sacrificados
- um carneiro, uma cabra ou um camelo, muitas veres para todo um grupo de pe-
regrinos - são reunidos. Com a invocação do nome de Deus é-lhes cortada a gargan-
ta na direção da Caaba. Uma pequena parcela da carne é entregue para consumo dos
peregrinos, e o restante é para os pobres. Em suma, uma alegre festa de sacrifício,
com mais de um milhão de pessoas e centenas de milhares de animais sacrificados.
Isso certamente não pode ser feito sem uma organização racional muito grande.
Depois dos sacrifícios, os homens fazem a barba, cortam o cabelo e vestem roupas
novas.
No fim da segunda semana dá-se mais uma volta em torno da Caaba. Segue-se a
grande oração final: "Allahu akbar", ou: "Só Alá é grande!" Não resta dúvida: para
todo muçulmano e para toda muçulmana essa peregrinação é a vivência de fé por
excelência de sua vida.
262
ISLAMISMO
ainda assumir a suprema direção do exército. Tão novas eram as tarefas do califa que
não se encontravam em parte alguma delineadas. É verdade que a palavra califa ocor-
re várias vezes no Alcorão, mas em nenhuma passagem ela possui claramente o
significado de um possível sucessor político-religioso do Profeta no governo da co-
munidade. Assim, seria de admirar que, já bem cedo, tenham surgido entre os mu-
çulmanos disputas em torno das características, da competência e da forma de em-
possamento do califa?
Mas de uma coisa os muçulmanos estão agora, cada vez mais, conscientes: embora
o Profeta não se encontre mais entre os vivos, permanece o Alcorão, que, como eterna
palavra de Deus, é vivo e indestrutível. Na sucessão política, o estadista Maomé é
substituído na comunidade primitiva pelo califa. O califado irá comprovar-se de fato
como uma instituição duradoura. Mas, do ponto de vista religioso, não há qualquer
autoridade doutrinal suprema. O lugar do profeta Maomé é ocupado pelo Alcorão
como palavra de Deus, e com ela também pelo exemplo do enviado de Deus, a tradi-
ção sobre o Profeta, a Suna. Com o tempo, Alcorão e Suna passam a ser a autoridade
religiosa por excelência (e indiretamente também a autoridade política).
Já sob os primeiros quatro califas "legais" (632-661) ocorre uma primeira onda
de conquistas. Enormes regiões passam a ser muçulmanas a partir daquela época: a
Síria, antes cristã, com Damasco e Jerusalém, o reino persa dos sassânidas, com a
Mesopotâmia e o Azerbaijão e, por último, o Egito cristão. Nenhuma outra religião
teve tão grande difusão em tão pouco tempo e de forma tão duradoura como o islã.
Não resta dúvida de que fatores não religiosos também tiveram aqui um papel a
desempenhar: a política de conquista e colonização adotada pelas elites de Meca e
Medina para conrrolar as tribos beduínas rivais, o caráter voluntário das ligas, a tática
militar mais eficiente de pequenas unidades muito móveis, assim como a perspectiva
de baixos impostos exigidos dos povos conquistados. Mas o fator decisivo - e a pes-
quisa mais recente confirma aqui a visão islâmica tradicional - foi o poder espiritual
da religião do livro, que trouxe aos muçulmanos força de fé e consciência de missão,
motivação religiosa para a guerra e justificativa moral para suas conquistas.
Efetivamente, o que de fato interessava aos califas era, em primeiro lugar, a am-
pliação territorial do estado islâmico e não a difusão espiritual da religião. Os cris-
tãos, os judeus e os zoroastrianos não precisavam converter-se, bastava que pagas-
sem os impostos para financiar o estado islâmico. Eles são considerados como mi-
norias protegidas (dhimmi), porém cidadãos de segunda classe, com um status jurí-
dico bastante inferior. Gozam de autonomia interna e de proteção para o corpo,
para a vida e para a propriedade, mas são excluídos do serviço do estado e do serviço
militar.
263
RELIGIOES DO MUNDO
264
ISLAMISMO
Tanto para os judeus como para os cristãos, isso trouxe conseqüências até hoje: já no
primeiro avanço contra a província bizantina cristã da Síria, em 635, os árabes conquis-
tam Jerusalém, a "cidade santa" de judeus e cristãos. Excluindo o século das cruzadas,
ela permaneceu islâmica desde então até os nossos dias; é chamada al-Quds, "o santuá-
rio". Em tudo isso, não se deve esquecer que os judeus, que depois da completa destrui-
ção de Jerusalém pelos romanos em 135 não tinham mais permissão de entrar na cidade
(proibição que foi mantida pelos imperadores cristãos), agora voltaram a ter acesso a
ela, graças aos muçulmanos. Não é, pois, de admirar que os judeus que permaneciam
então na Palestina tenham considerado a conquista muçulmana como uma libertação.
Para os muçulmanos, a antiga praça do templo é nobre e sagrada (haram esh sherif).
É o terceiro lugar mais sagrado do mundo, depois de Meca e Medina, que os muçulma-
nos protegem como a pupila dos olhos. Mas sob a cúpula dourada do Domo do Roche-
do nenhum culto divino é realizado, pois nessa construção redonda a rígida ordem de
oração usual dos muçulmanos nem sequer seria viável.
Precisamenre debaixo da cúpula se encontra o gigantesco e irregular rochedo nu do
monte Moriá. Nele, segundo uma antiga tradição, Abraão teria sido preservado de
sacrificar seu filho Isaac. Nele o primeiro homem teria sido criado; nele o profeta Mao-
mé teria subido ao céu, podendo-se ainda hoje observar suas pegadas; nele, por fim,
também irá acontecer um dia o juízo final. Para os muçulmanos, o Domo do Roche-
do (kubbet es sachra) não é, portanto, uma mesquita, mas sim um lugar eminente,
onde pode ser lembrado o Deus único de Abraão. Um lugar de oração silenciosa.
O Domo do Rochedo - muitas vezes erroneamente chamado de Mesquita de Omar,
embora o califa Ornar não tenha ele mesmo conquistado Jerusalém - é uma obra-
prima arquitetônica única, construída, como se diz, no lugar do Santo dos Santos
original, no ano 72 da Hégira, 691-692 da nossa era, sob o omíada Abd al-Malik. É
considerado a mais antiga, mais bela e mais perfeita realização da arquitetura islâmica,
surpreendentemente não imitada em lugar algum do mundo islâmico.
Essa mais sagrada praça do templo dos judeus foi profanada pelos romanos e negli-
genciada pelos cristãos bizantinos. Não teria ela sido novamenre santificada pelos 12
séculos de adoração dos muçulmanos a Deus? Com o Domo do Rochedo, de qual-
quer maneira, já existe um santuário do único Deus de Abraão. Não poderia ele,
numa desejada época de paz entre as três religiões abraâmicas, vir a ser um santuário
ecumênico comum?
A DIVISÃO DO ISLÃ
Não foram as disputas sobre a ortodoxia, mas sim as disputas em torno da legítima
sucessão do Profeta que deram ocasião à primeira guerra civil muçulmana, rigorosa-
265
.
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RELIGIOES00 MUNOO
• o partido sunita, que até hoje abrange a grande maioria dos muçulmanos que
querem manter a Suna e todos os quatro califas legais;
• o partido xiita, o "partido" (shia) de Ali, primo e genro assassinado de Maomé,
que até hoje constitui a minoria (cerca de 10%) dos muçulmanos (no Irã, Iraque
e Líbano) e que, como legítimo sucessor do Profeta, reconhece somente Ali;
• o harigita, o partido dos "sucessores" (kharidjitas), que, como sucessor do Profe-
ta, independentemente da origem tribal ou familiar, só deseja reconhecer o me-
lhor dos muçulmanos (mesmo que seja um escravo abissínia). Com sua orienta-
ção puritana, por muito tempo provocou duras lutas com os califas sunitas e
hoje só é representado, ainda, entre os berberes, em Omã e Zanzibar.
Depois de grandes lutas contra o partido xiita, com graves perdas, termina se
impondo a família dos omíadas de Meca, originalmente contrária a Maomé. Com
eles o partido majoritário dos sunitas sai vencedor. Os omíadas transferem a resi-
dência do califa para Damasco e fazem da Síria a potência islâmica predominante.
O primeiro dos 13 califas omíadas, Muawiya, unifica as tribos árabes e, em lugar da
federação dessas tribos, estabelece um estado centralizado e burocratizado, com exér-
cito, chancelaria, serviços postais e de informação.
266
ISLAMISMO
Mas nem o princípio dinástico nem o poder central consegue demover o partido da
oposição dentro do paradigma do império árabe, o partido de Ali, mais tarde os xiitas,
de aderirem firmemente a Ali e sobretudo a seu filho mais novo, Husain, o neto do
Profeta. Uma segunda guerra civil, onde Husain vem a perder a vida em Kerbela, forta-
lece a divisão da Umma e transforma Husain em mártir, objeto de um culto único no
islã. Dessa forma, a sbia passa a ser no islã uma confissão própria, para quem Ali é o
único verdadeiro califa e Husain sua testemunha-chave. Até hoje as estórias de sofri-
mento, os espetáculos de paixão e o culto, em parte sangrento, do mártir (com autofe-
rimentos e auto flagelações) , desempenham um papel importante na esfera xiita. Em vez
da dinastia hereditária dos califas omíadas, aceita-se unicamente a sucessão dos irnãs
(chefes espirituais supremos), o último dos quais, desaparecido, um dia irá voltar.
Os omíadas empreendem uma segunda grande onda de conquistas, em direção
tanto ao ocidente como ao oriente. Nem cem anos eram decorridos desde a morte do
Profeta, e o império árabe dos omíadas (661-750) estende-se da índia e da fronteira
da China até o Marrocos e a Espanha, do Himalaia até os Pireneus. Em toda a histó-
ria das religiões não existe nenhum avanço vitorioso que tenha ocorrido com tanta
rapidez, tamanha amplitude, e que, ao mesmo tempo, tenha sido tão duradouro -
motivo de orgulho para os muçulmanos até hoje.
Por toda a parte existiam nas fronteiras do império islâmico os pontos de apoio
fortificados. Os soldados da fé viviam aí em ribat, como membros de uma ordem
religiosa. Era uma estranha associação de serviço militar e rígida prática religiosa, que
mais tarde irá caracterizar também os cruzados e as ordens de cavalaria.
RELIGIÃO E VIOLÊNCIA .
Já bem cedo, ao longo de toda a costa norte-africana, . sições estratégicas
como aqui, os árabes fundaram mosteiros de defesa, seg o modelo dos con-
ventos-fortaleza dosbizantinos. Oribat, mosteiro-fortaleza de Monastir, tira seu nome
do grego monasterion, "convento", uma dás mais antigase imponentesfortalezas
dos muçulmanos no norte da'África. A partir daqui, eles fazémsuas guerras contra
a Sicflia cristã, que ficava bemperto. Masde maneira alguméá1uero:deixar a impres-
são de que só no islã tenhamexistido conflitosreligiosos: Houve conflitos religiosos
também no judaísmo, em nomede Deus. Enaturalmente, no cristianismo, ascruza-
das, e também asconquistas coloniais e missões emquas ... ... o mundo islâmico-
que para os muçulmanos constituem um tràumaaté:os .. hoje!
Em todasasreligiões o problema da violência sein,anif todas asreligiões
a violência existe. Massobretudo elaexiste nas religiÕes p s,'quese orientam
para fora, que são ativas, combativas, missionárias. Esobre u o existe violência no
islã, justamente porque o próprio Maomé foi não somenteUm profeta, mastam-
bém um bem-sucedido general - e disso se orgulham os muçulmanos.
267
RELIGIOES DO MUNDO
forçar-se no caminho para Deus" deve. ser entendido como uma.• "obrigação de
lutar contra os inimigos infiéis"
Depois de um século de vigorosa expansão, o reino dos árabes cai em uma peri-
gosa crise. É grande demais o contraste entre os muçulmanos árabes e os neo-rnu-
çulmanos não árabes! Estes, sentindo-se prejudicados, questionam a dominação árabe,
precisamente em nome do islã. Tudo impele a uma revolução.
São os abássidas, descendentes de Abbas, tio do Profeta, que em 750 provocam
violentamente a "guinada" (daula): uma renovação do império, não sobre uma base
árabe, mas sim sobre uma base islâmica. Em lugar de um império puramente árabe,
propaga-se e estabelece-se agora o império de todos os muçulmanos. A mudança
para a nova capital Bagdá é sintomática da mudança para o paradigma islâmico
clássico de religião mundial (paradigma III): Bagdá - uma cidade de muitos povos
em um estado multiétnico.
Sob os abássidas (750-1258), o islã deixa de ser apenas uma religião árabe para
passar a ser uma religião universal, abrangendo todos os povos. Em lugar da tradicio-
nallealdade das tribos árabes, vale agora a ordem e fraternidade islâmica universal.
Todas as diferenças entre árabes e não-árabes devem desaparecer, sendo que os pró-
prios califas, como "representantes de Deus" e "príncipes dos crentes", devem ser
ainda mais destacados como soberanos do povo e também da aristocracia. Seu abso-
lutismo e seu luxo logo haveriam de sobrepujar o dos omíadas.
Alguns dos modestos testemunhos arquitetônicos dessa época são os palácios dos
califas e o minarete em forma de espiral da Grande Mesquita de Samarra, por algum
tempo residência dos abássidas; e, ainda, a mesquita do governador turco lbn Tulun,
no Cairo, construída no "estilo imperial" abássida, também com minarete espiralado.
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ISLAMISMO
DIREITO ISLÂMICO
TEOLOGIA ISLÂMICA
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RELIGIOES00 MUNDO
Dificilmente o islã teria sobrevivido ao período sem califas se não fossem os sábios
da religião islâmica, os ulemás, como atuaram sobretudo na Zitouna de Túnis. Essa
Mesquita da Oliveira (Djama ez Zitouna, rambém chamada de Grande Mesquita) é
o mais importante santuário da Tunísia, depois da Mesquita Sidi Oqba de Kairuan.
270
ISLAMISMO
Já em 732 fora construída aí, sob os omíadas, uma modesta casa de Deus. Em 864,
sob os aglábidas (emires por graça dos abássidas), foi construída uma mesquita in-
teiramente nova, que entre os séculos XIII e XV; sob os hafsidas, foi ampliada em
um grande complexo de escolas superiores, com numerosas construções auxiliares.
Nesse período a Zitouna desenvolveu-se como o mais respeitado lugar de ensino
teológico e jurídico do islã, ao lado da Al Azhar, do Cairo, e da Qarawiyin, de Fez,
no Marrocos.
Dentro ou ao redor de cada mesquita é possível fazer as abluções rituais, purifi-
car-se das impurezas causadas por necessidades fisiológicas, relações sexuais e mens-
truação, assim como também tirar um sono. Aí se lava o rosto, as mãos, as axilas e os
pés; se não houver água, basta usar areia. Somente então se está pronto para orar.
Assim ensinam os sábios religiosos, ou seja, os ulemás.
271
RELlGIOES DO MUNDO
272
ISLAMISMO
Toda religião tem que tolerar alguma coisa que deinfciorejeitou. Mesmo o
islamismo, inteiramente concentrado no único Deus, tolera ainda hoje a venera-
ção dos santos, cujos túmulos ou mernoriaissão encontrados até no Saara. A
sóbria piedade dos doutores da lei.,q~e dia após di~ir:fl:tem sobre a Suna e
sobre o Alcorão, dificilmente será cap~~8e satisfázera n:cessidade religiosa de
experiências. A religião não deve falar unicamente à cabeça, à razão, mas tam-
bém ao coração, ao sentimento.
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RELIGIOES DO MUNDO
'~'!0':':~:7:r3!~~1Z~:~~1T~~~t'?r~~,~:,
··,.~:f .'~xtq~ntérnébt~,1~rnc3·t~~;r~,~i:~9'H~E", . . •~.•.... ;, •. t~
'tirradonalismo;' na'suPéfStiÇãó{nai6usca'dõs:rnl,à~~;"'u .....ligiaoque!,
bé;n não possa,sere~tenâida, refletida, E!nsiÍ1f~af"~ãoserve.de nada. Mas~
religião não devefálarápenas'à'.umaelite intelectual, eladevepenetrartambé rn , '
nas necessidades religiosas do povo. E o sufismbfaz isso. através da poesia, do
canto, da música. da dança e da festa.
Na realidade, a crItica à veneração sufista dos santos, às manifestações musi-
cais e também à magia, muitas vezes assumida dos cultos pagãos, insistente-
mente se faz ouvir desde a Idade Média. Os reformadores islâmicos exigiam o
retorno à pureza do islã, E os detentores do poder político muitas vezes temiam
a influência das ordens sufistas. De fato muitos "santos" e Ifderes sufistas de-
sempenharam na polftica um papel nada favorável. Assim também é possível
compreender que em muitos lugares as ordens sufistas tenham sido reprimidas,
e que Atatürk, o pai da moderna Turquia, tenha praticamente proibido as ordens
religiosas e politicamente reacionárias de dervixes e sufis.
Até agora o islã já atravessou e superou toda uma série de mudanças de paradigma.
Mas irá ele saber lidar com a nova constelação moderna (paradigma V)? A era das
descobertas na Europa provoca efeitos também sobre o mundo islâmico. Os três
grandes reinos islâmicos surgidos a partir do século XVI não podem simplesmente
fechar-se à invasão das potências européias.
274
ISLAMISMO
Dessa forma, a partir do século XVII, mesmo o poderoso reino otomano cai na
defensiva. A modernidade européia avança por toda a parte: com os transportes, com
a ciência, com a teconologia, com a indústria e também com a democracia. Assim, as
potências européias não encontram obstáculos para tornar-se cada vez mais fortes e os
otomanos sempre mais fracos, econômica, política e militarmente. Esse processo da
modernização e secularização européia parece não poder ser detido.
Por um período demasiadamente longo os autoconfiantes soberanos islâmicos
confiam no poder que lhes foi dado por Deus sobre a terra. Negligenciam levar a
sério as modificações espirituais na Europa. Por influência de ulemás tradicionalis-
tas e de sufis reacionários, também no império otomano a vida espiritual e social
ameaça ficar paralisada.
Não resta dúvida de que, ao longo dos séculos, foi muito grande a força de inte-
gração e a firmeza da fé do islã. Por muito tempo nada refreou sua expansão: uma
história imponente e sem igual de vencedores e de vitórias, de que dão testemunho
as imensas mesquitas em Istambul.
Porém, já no século XIX a decadência política do reino otomano é evidente, e
com isso também a crise de identidade do islã: difunde-se um sentimento de impo-
tência e alienação, com perda da autoconsciência e da dignidade islâmica. É verdade
que a Hagia Sophia, reformada como muçulmana, continua a ser um símbolo da
vitória do islã sobre o cristianismo, mas já no século XIX se ironiza, na Europa, o
"homem enfermo do Bósforo".
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RELlGIOES DO MUNDO
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ISLAMISMO
o fato de, hoje, exatamente as mulheres jovens quererem cobrir a cabeça com um
pano, pode provocar admiração, mas não precisa ser necessariamente um sinal de
atraso. Aliás, não deixa de ser também um dogmatismo quando secularistas convic-
tos, na França ou na Turquia, pretendem eliminar da vida pública todos os símbolos
religiosos. i'.' . .
o REDESPERTAR DO ISLÃ:
DÚVIDAS SOBRE O PARADIGMA MODERNO
Mas uma coisa Atatürk, que acreditava na Europa, jamais haveria de esperar: um
redespertar do islã, como veio a realizar-se após a Segunda Guerra Mundial. Os
fatores decisivos são conhecidos:
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RELIGIOES00 MUNOO
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ISLAMISMO
Quando nos encontramos diante desta grande ponte suspensa sobre o Bósforo,
que antes ninguém teria consideradopossfvel, esta ppnteentrea Europa eaÁsia,
entre o Ocidente e o Oriente, entr~os tempo~ântigoseosnovós, nós nos interroga-
mos: Qual há de ser o futuro para estacidade; para este estadOtãocheio de contras-
tes? Qual há de ser ofuturo pafÔ9islã, aqui e emoutros pafses?Quais haverão de
ser os herdeiros desta religião eq.lltura que já tem.1300 anos de. existência?
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RELlGIOES00 MUNDO
j~.':'<~'3?';~~,.
Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões.
Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões.
Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais.
Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etos global,
uma ética para o mundo inteiro.
?RO
Epflogo
Muito antes que eu me tornasse seu amigo, Lord Yehudi Menuhin, o genial mú-
sico e humanista, forneceu-me, sem querer, a idéia para este livro Religiões do mun-
do. Em 1979, como autor e apresentador de uma série de TV em oito partes, da
Canadian Broadcasting Corporation (CBC), com o título TheMusic 01Man [A mú-
sica do homem], ele conduziu os espectadores, de uma maneira apaixonanre, pelo
reino da música. Que poderia existir de mais belo, pensei então comigo mesmo, do
que, de maneira semelhante, conduzir os leitores pelo reino das religiões?
Mas ao mesmo tempo me conscientizei de que o reino das religiões era bem mais
difícil de pesquisar, e mais difícil ainda de apresentar. Yehudi Menuhim precisava
apenas pegar seu violino ou sua batuta para, mesmo a ignorantes ou a ouvidos talvez
pouco musicais, abrir o coração para o fascinante mundo da música. Mas como
seria possível abrir ouvidos e corações para o mundo igualmente misterioso e dife-
rente da religião?
Aliás, eu tinha ainda infinitas coisas a aprender antes de me abalançar a uma
aventura desse porte, se é que algum dia me fosse possível pô-la em prática. Algumas
circunstâncias favoráveis, em minha vida possibilitaram que eu conhecesse a Europa
logo após a Segunda Guerra Mundial. Em 1955 eu já me encontrava na África
muçulmana e, poucos anos mais tarde, realizava minha primeira viagem ao redor do
mundo. Nas quatro décadas seguintes ocorreria um sem-número de conversas e
encontros, palestras e conferências, simpósios e congressos, além de vários semestres
na América, que serviram para trazer-me a necessária experiência, sem a qual todo
conhecimento livresco, sobretudo em matéria de religião, permanece abstrato.
Mas acima de tudo eu precisava conhecer bem minha religião cristã para poder
ocupar-me em profundidade com as outras religiões. Quem se propõe dialogar com
os outros sem conhecer a própria posição, mais confunde do que aproxima. Só ao
longo de décadas de estudos, preleções e diálogos com peritos de outras religiões é
que consegui chegar aos fundamentos teológicos e às visões básicas sem os quais o
Projeto Etos Mundial, com que se ocupam tanto os filmes como o livro, não teria
sido possível:
281
RELIGIOES DO MUNDO
Assim, também, tudo na vida tem que ter o seu tempo, e mais uma vez vivi a
experiência de que, quando o momento é chegado, a oportunidade também se ofe-
rece. Em 1984 fui .consultado pela BBC a respeito de uma grande série de docu-
mentários para a TV, que eu deveria organizar como autor e apresentador. Respon-
der negativamente a uma consulta como essa, justamente da BBC, parecia-me
injustificável, e assim trabalhei em uma concepção básica para a redação, que tam-
bém foi aceita.
Mas, ao mesmo tempo, eu tinha sérias dúvidas sobre a possibilidade de harmoni-
zar um projeto tão vasto com as minhas obrigações de professor em Tübingen. E,
quando olho para trás, mais uma vez julgo perceber uma "mão oculta" sobre a mi-
nha vida: o projeto foi rejeitado pela diretoria da BBC - por causa dos custos avul-
tados que se podiam prever.
Em lugar disso, alguns anos mais tarde, quando contei essa história em uma
rodinha privada, o então diretor de TV do Süddeutscher Rundfunk (SDR, agora
S\'VR, emissora do sul da Alemanha), Dr. Hans Heiner Boelte, espontaneamente
declarou-se disposto: "Isso nós topamos!" Assim, tanto a série de TV como o livro
nasceram.
Muitas vezes as pessoas me perguntam: "Quanto tempo o senhor levou para es-
crever este ou aquele livro?" Para o presente livro posso responder sem titubear: a
282
EPíLOGO
minha vida toda, ou pelo menos as cinco décadas de minha vida teológica. Já deve
ter ficado claro que, como "profissional da religião", eu não podia abordar este
projeto à maneira de um repórter de televisão. Não podia simplesmente gravar se-
qüências atuais ou interessantes para em seguida redigir comentários sobre essas
cenas. Tive que escolher uma abordagem diferente, que ao pessoal da televisão pode
ter parecido muito complicada.
O método que adotei exigiu muita pesquisa e muito tempo. Fiquei feliz por poder
discutir cada passo com meus assessores científicos, Prof. Dr. Karl-Josef Kuschel e
Dipl.-Theol. Stephan Schlensog. Todos os meus manuscritos, em suas diversas fases,
foram lidos, criticados e corrigidos pelos colaboradores da Fundação Eros Mundial.
Hans Küng
Sugestões de leitura
FREVO E A QlIEST..\O 0;\ RELIGIÃO tHans Küng)
Neste livro, Hans Küng, influente teólogo alemão, analisa o ateísmo do pai da psicanálise e procura
explicações para ele, passando pela infância de Freud e seu convívio com a família e com os ritos
judaicos, até seus estudos de fisiologia e sua teoria psicanalítica. Além de Frcud, Küng também
analisa a questão da religião em outros autores que viriam a discordar das idéias freudianas.
Pou Ql.IE AI'iOA SER CnlSTÃO HO.JE'? tHans Kz'ing)
Hans Küng nos lança o desafio de, numa época carente de orientação, encontrarmos na fé claros
impulsos para a práxis individual e social. Trata-se de uma meditação sobre os sólidos fundamentos
e sobre os impulsos do cristianismo para o futuro. Com este livro Hans Küng aponta os contornos de
uma fé capaz de enfrentar os desafios do tempo.
SÃO JOS~: - A rEnsO:'\IFICAÇ.-\O 00 PAI (Leonardo Bo(f)
Na história do cristianismo existem cerca de vinte mil escritos que tratam de São José. Entre todos
esses não havia nenhum em língua portuguesa que tratasse, de forma ampla e profunda, desta figura
tão importante para a vivência dos cristãos. A presente obra se propõe preencher esta lacuna. Repre-
senta o trabalho de muitos anos de pesquisa nas melhores bibliotecas especializadas sobre São José.
No".\S f'HO'iTEIR,\S 0.\ IGRE.JA (Leonardo Bofl)
Fundamentado nos conceitos conciliares t Vaticano 11) de Igreja-sociedade (que privilcgia a hicrar-
quia) e de Igreja-comunhão (que valoriza a participação leiga e o Povo de Deus). o autor propõe uma
ponte eficaz entre essas duas vivências. segundo moldes, amplamente expostos no livro, que j;'\
ocorrem na América Latina, e apresenta as premissas da teologia libertadora, formulando. no concre-
to, "um novo modo de toda a Igreja ser".
ÉTICA E ECO-ESPIRITUAUOADE (Leonardo B(~fI)
De que espiritual idade precisamos para dar um sentido humano ao processo de globalização? Que
princípios éticos nos poderão orientar para convivermos com um mínimo ele paz e de cooperacào
entre os povos'? O presente livro procura abrir clareiras no emaranhado dessas questões, para que
possamos entender melhor e assumir mais decididamente nossa missão de guardiães e curadores da
Terra e da vida.
CRISE, OrORTlJNID.\DE DE CRESCIMENTO (Leonardo Bo(l)
Este é um livro de esperança. Fala da crise que atinge os fundamentos das convicções estabelecidas,
das culturas, elas religiões, dos valores, das poliiicus c do cotidiano e a crise sempre pressupõe
riscos. Mas onde há crise há também inúmeras oportunidades que conduzem ao amadurecimento e
crescimento do ser humano enquanto indivíduo c membro da sociedade.
EXPERIMENT\R DEUS (Leonardo BolJ)
O interesse de Leonardo Boff, através deste livro, está em criar espaço para que cada um possa fazer
sua própria experiência de Deus. Afirma que "para encontrarmos o Deus vivo e verdadeiro a quem
podemos entregar o coração, precisamos negar aquele Deus construido pelo imaginário religioso e
aprisionado nas malhas das doutrinas. Experimentar Deus não c pensar sobre Deus, mas sentir Deus
com a totalidade de nosso ser. Experimentar Deus não c falar de Deus aos outros, mas falar a Deus
junto com os outros".
A CRl.IZ NOSSA DE CADA ()JA (Leonardo Bom
O leitor é convidado a refletir sobre esta verdade incontestável: "Todos carregamos alguma cruz ou
nas costas ou no coração". Como encarar essa cruz, como assumi-Ia. como abraçá-Ia como instru-
r
mento de libertação, não se deixando sucumbir por ela - eis o segredo de uma vida em que reina a
harmonia interior e exterior. Leitura indispensável.
VIA-SACRA PARA QlmM QUER VIV~:R (Leonardo BoJ])
Deitando o olhar sobre cada passo de Jesus naquele ontem histórico, o autor nos faz ver o mesmo fato
sob outros prismas e conduz nosso olhar para o presente, levando-nos a refletir sobre hoje, sobre a
via-sacra que se impõe a todo aquele que quer viver. Sempre atual, sempre necessária ... esta medita-
ção nos ajuda a olhar para nossa própria vida, para a história que estamos construindo, nesta via que
vamos aprendendo a tornar sagrada ;\ medida que buscamos mirar o Cristo para vivermos a justiça.
a fé, a esperança e o amor.
E POI{ FALAR EM MITOS••• Uosepli Campbelh
Neste livro - em forma de entrevista - Joscph Campbcll fala sobre os mitos c sua influência em nossa
vida. levando-nos a jornadas distantes e oferecendo não apenas informações sobre a mitologia do
mundo inteiro. mas também uma visão mais ampla da história aliada à capacidade de olhar para a
própria vida, de interpretá-Ia e melhor compreendê-Ia.
UM 'OVO C1{ISTL\:\ISMO PARA UM 'OVO MU'I>O Uohn Shelby Spong)
Spong prega uma nova Igreja, onde haja amor, Justiça e respeito pelas diferenças. Ele indica os
caminhos de uma reforma que vai abalar todos os velhos conceitos sobre o que ou quem é Deus c atê
mesmo sobre a veracidade de alguns fatos bíblicos - se essa renovação não for feita, pode haver
graves conseqüências para a humanidade e para a própria fê em Deus c em Jesus,
JESUS E SUAS IlIMENSÜES (Anselm Grüní
Neste livro, Ansclm Grün, renomado autor e mestre espiritual, apresenta cinqüenta dimensões de
Jesus. Ao entrarmos em contato com cada uma das dimensões aqui apresentadas, passamos a vislum-
brar urna figura de Jesus que, livre de lodos os clichês. assume possibilidades que nos auxiliam em
nossa Jornada rumo às nossas próprias dimensões.
OI'l)S DEI - OS BASTIDORES
(Dario Fortes Ferreira, Jean Lauand é' Mareio Fernandes da Si/I'{/)
O Opus Dei é a instituição da Igreja sobre a qual recaem mais críticas e suspeitas, além de ser a mais
intrigante e polêmica. Baseados em sua própria vivência e nos testemunhos e depoimentos de muitos
ex-membros da Obra. os autores trazem a polêmica até o grande: público. no esforço de esclarecer.
oferecer dados para serias reflexões. denunciar atitudes abusivas. preconceituosas, castradoras opor-
tunistas. a partir das quais se conclui naturalmente que a história que: o Opus Dei conta de si mesmo
absolutamente não coincide com a que os ex-membros relatam sobre ele.
NOR\IOSE, A PATOLOGIA DA NOlnJ..\UDADE
tPierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema)
Tudo indica --- conforme os autores ~ que o conceito de normose, com o seu aprofundamento e:
desenvolvimento, provoca um importante questionamento a respeito do que: se considera normalida-
de. A tomada de consciência dessa realidade poderá facilitar urna profunda mudança na visão e: na
consideração de certas opiniões, hábitos c .nitudcs comportamcnrais considerados normais C 11(//11-
rais pelas mentes mais desatentas e adormecidas.
Os \IlT\'iIES (Picrre Weil)
Este: livro ê urna preciosidade. Raras são as vczc«que ternos acesso a urna visão râo clara, 1;10 direta.
t,IO lúcida do ser humano hoje. Só alguém que experimentou em si mesmo a angústia de ser tiucionado
e o chamado a' ivcr as mais diversas experiências, passando por todas as etapas de mutação rumo ao
despertar para o Ser... Só alguém que aceitou sofrer a dor e a alegria da mudança e que pôde, então.
superar-se ... Esse: sim é capaz de olhar os seres humanos, enxergá-los realmente e detetar o e:St~lgIO
em que se: encontram. Estagnantcs? Mutantcs? Picrrc \Veil tem muito a nos dizer. F um mestre. F um
ser desperto.
SEIT\S, ICRLJ\S E RELlGIÚES i.lean- Y\'é'S Leloupv
Jcan-Yvcs l.cloup dcsconstrói, (I..: modo esclarecedor e COIll seriedade. o universo das se:llas c'
daqueles que se dizem profetas ou messias dos novos tempos. explicando como e:ks Lons..:gue:lll
arrebanhar milhares de adeptos a suas idéias e dogmas e demonstrando o mecanismo por trás de um
grupo que se proclama detentor da verdade absoluta e da salvação.
O RO\1A!\'CE DE MARIA MADALENA tJean-Yves Leloup)
Quem foi a Maria Madalena dos evangelhos? Uma beleza provocante e inocente? Uma mulher
paradoxal, iniciada no mistério do amor e prostituída? Uma apaixonada? Uma mística? Nenhuma
dessas possihil idades c todas ao mesmo tempo, porque Maria Madalena é o arquétipo feminino em
todas as suas dimensões. das mais carnais às mais espirituais: é a mulher eterna. Filósofo e teólogo,
Jean- Yvcs Leloup mescla história e ficção. teologia e poesia, para abarcar as infinitas facetas de Maria
em uma obra magnífica e exuberante.
O ABSURDO E A GR\ÇA tJean- Yves Leloup)
A surpreendente autobiografia de um homem que. marcado por uma vida em que se manifestam
inúmeras snuaçõc» de "absurdo", vai em busca da graça, encontra-a e passa a viver dela. Filósofo,
padre ortodoxo e conferencista de renome internacional, Jean- Yves Leloup mostra sem rodeios as
suas experiências humanas c espirituais. as suas quedas e reabilitações. Muito mais que o relato de
uma trajetória, 0 uma confissão surpreendente, é a vida de um homem de fé inquestionável, de alguém
que possui um respeito profundo pelo ser humano e pela liberdade.
:\:\t\R•••. \PIS\R DE TUDO (.fean-Y"es Leloupv
Jean- Y vc-, l.cloup nos convida a dar um passo consciente em direção a uma vida plenamente assumi-
da. Fala-no, daquilo que está dentro de nosso ser, no mais profundo de nós - o amor -r-, c vai lançando
luzes para permitir que cada aspecto aflore, que tomemos consciência e que nos rendamos à proposta
de mudança que a vida nos faz. Considerando nossa vida tal qual ela se apresenta, o autor nos induz
~I buscar nosso caminho pessoal, nossa resposta pessoal que sempre encontra pleno sentido no amor.