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A exclusividade da função acusatória e a

limitação da atividade do Juiz


Inteligência do princípio da separação de poderes e do
princípio acusatório

Leonardo Augusto Marinho Marques

Sumário
1. Introdução. 2. O processo penal no marco
do constitucionalismo democrático. 3. Princípio
inquisitório x princípio acusatório: o problema
da gestão da prova no processo penal sob a
perspectiva constitucional da separação de po-
deres. 4. O avanço no Anteprojeto de Reforma
do Código de Processo Penal.

1. Introdução
Este artigo pretende, inicialmente, situar
o processo penal no marco do constitucio-
nalismo democrático, demonstrando que o
Estado Democrático de Direito resulta da
superação dos paradigmas antecedentes do
Estado Liberal e do Estado Social.
Em seguida, com ênfase tanto na mo-
derna leitura do princípio constitucional da
separação de poderes, compreendido como
técnica eficiente de controle e promoção de
poder, quanto na inteligência do princípio
constitucional acusatório, conformador
da técnica processual vigente, objetiva-se
justificar a exclusividade da função acusa-
tória para o Ministério Público e explicar
a vedação da atuação supletiva do Juiz na
proposição da prova.
Leonardo Augusto Marinho Marques é Dou-
tor em Ciências Penais pela UFMG, Professor A análise da realidade histórica e legis-
da Graduação e do Programa de Mestrado em lativa brasileira e a mudança promovida
Processo da PUCMinas, Advogado em Belo pelo recente Anteprojeto de Reforma do
Horizonte. Código de Processo Penal enriquecerão

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bastante o entendimento de que enquanto Exposição de Motivos, de “pesudodireitos
o Ministério Público se desincumbe da individuais”, “franquias”, “imunidades” e
função acusatória, o Juiz volta toda a sua “extenso catálogo de garantias e favores”.
atenção para a difícil tarefa de promover a Distanciando-se da Constituição, vis-
tutela dos direitos fundamentais, nesse am- ta equivocadamente a como um Direito
biente plural de permanente tensão entre superior e diferente do demais Direito
normas jurídicas que concorrem, entre si, (Cf. CARVALHO NETTO, 2004, p. 25), e
para regerem intricadas situações. refletindo aquela tensão entre faticidade
e validade inerente a qualquer realidade
2. O processo penal no marco do social, o processo penal passa a desen-
constitucionalismo democrático volver sua própria prática interpretativa
e argumentativa, ganhando foro de legi-
A observação feita por Oliveira (2004, p. timidade na legislação processual penal
1) de que no Brasil, neste início do século infra-constitucional (Cf. OLIVEIRA, 2007,
XXI, a teoria do processo penal se conscien- p.145). Por conseguinte, inúmeras práticas
tizou de que a pesquisa dogmática precisa antigas, que a Constituição pretendeu abo-
se desenvolver a partir do referencial consti- lir, mantêm seu dinamismo na realidade
tucional, à primeira vista, parece ser bastan- cotidiana, exatamente porque o Código de
te óbvia e até mesmo dispensável. Afinal, 1941 se torna autossuficiente na justificação
em todo Estado Democrático de Direito, a do processo penal.
Constituição sempre cumpre o papel de le- Complementando o raciocínio, entende-
gitimar e de articular tanto o Estado quanto se que a observação de Oliveira (2004) é
o Direito, evitando, consequentemente, que extremamente relevante e precisa ser devi-
ambos se fundem em si mesmo. (Cf. CAR- damente contextualizada no paradigma do
VALHO NETTO, 2004, p. 25-26) Estado Democrático de Direito, sob pena de
Porém, o comentário perde toda a sua não ser apreendida em toda sua exatidão.
obviedade diante da nossa realidade social Pensar o processo penal por meio do
que revela uma forte tradição autoritária, referencial constitucional significa bem mais
cujas raízes se fincaram no período colonial do que partir de um modelo pré ordenante,
das capitanias hereditárias e dos senhores no qual os direitos fundamentais ocupam a
de engenho e cujos frutos se consolidaram centralidade do ordenamento, expressando
na República Velha e na República Nova, ora o limite imposto ao poder estatal em
em décadas de coronelismo e ditadura. Essa favor da liberdade individual (Estado Libe-
tradição tem sobrevivido em tempos moder- ral), ora o consenso ético em torno do qual
nos, permitindo que práticas constitucionais os cidadãos se reúnem em sociedade, bus-
anteriores, típicas de uma ordem autocrática, cando o bem comum (Estado do Bem-Estar
passem a concorrer com as práticas novas, Social). (Cf. PEREIRA, 2008, p. 82-84)
próprias de uma ordem democrática. Pensar o processo penal no contexto do
Necessário compreender que, na reali- Estado Democrático de Direito pressupõe a
dade do processo penal, as práticas autori- compreensão histórica de que a modernida-
tárias antigas encontram sobrevida no atual de já superou os paradigmas anteriores do
Código de 1941, infeliz cópia do Projeto Estado Liberal e do Estado Social. Enfim,
do Código fascista de Benito Mussolini, exige-se, por coerência epistemológica,
que, despudoradamente, prima por uma que se tenha em mente que o constitucio-
ação repressiva, justificada na primazia do nalismo democrático se assenta em bases
interesse público sobre o interesse do indi- específicas. Senão, corre-se o sério risco de
víduo, e que acaba por renunciar à tutela se empreender uma pesquisa dogmática
dos direitos fundamentais, classificados na fora do referencial constitucional contem-

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porâneo e de se extrair conclusões que não ploração do homem pelo próprio homem,
mais se sustentam. formando um ambiente hostil de miséria
Ora, no paradigma do Estado Liberal ou e de profunda injustiça social. Surgiram,
do Estado de Direito, os esforços se volta- então, os primeiros movimentos sociais,
vam para impedir o retorno ao absolutismo. reivindicando paulatinamente a inclusão,
A lei limitava o poder do Estado na esfera na pauta jurídica, dos direitos sociais e co-
pública da sociedade política, assegurando letivos. Após a Primeira Guerra Mundial,
aos cidadãos livres o pleno exercício de sua esses movimentos, antes classificados como
autonomia na esfera privada da sociedade casos de polícia, ganham a força necessária
civil. Nesse quadro, o ideal da separação para desferir o golpe final contra o Estado
de poderes representava a mais bem ela- de Direito.
borada técnica de controle do poder, capaz Assim, nasceu o Estado do Bem-Estar
de assegurar racionalmente a proteção do Social com a tarefa de intervir na socie-
indivíduo contra a arbitrariedade. (Cf. PE- dade para atender as demandas sociais.
REIRA, 2008, p. 239-241) Como o bem-estar da população depende
Verdadeira amarra da legalidade no efetivamente das prestações positivas do
paradigma liberal, a separação de poderes Estado, os direitos sociais e coletivos foram
criou esferas rígidas de competência. O constitucionalizados e legitimaram a nova
Legislativo, interpretando a vontade polí- forma de atuação do Leviatã.
tica da população já associada à soberania Imediatamente, a liberdade de fazer
popular, encarregava-se da produção das tudo o que não está proibido perdeu sua
leis e da fiscalização da administração pú- condição absoluta. A legislação liberal foi
blica. Uma legislação mínima para não ferir ampliada para absorver leis que contem-
a meta de liberdade máxima. plem a seguridade social, a saúde pública,
O Judiciário nada interpretava, apenas o direito à greve, ao salário mínimo, à
reproduzia a palavra da lei, exercendo livre organização sindical e partidária.
aquela atividade mecânica de aplicação si- Abandonou-se o modelo consubstanciado
logística da norma ao caso concreto. Partin- na igualdade formal perante a lei e na liber-
do da premissa de que os textos legislativos dade plena para instituir-se a restrição de
deveriam ser claros e precisos, bastava dizer liberdade em favor da igualdade material.
a lei. Sintetizando, a atividade jurisdicional Na nova realidade que se configura,
se resumia ao jus dicere e não alcançava o jus o Direito público se sobrepõe ao Direito
dare (Cf. FERRAJOLI, 2006, p. 41). privado, do mesmo modo que o Estado
O Executivo, considerando a redução se sobrepõe à sociedade. E o Direito, que
do espaço público ao estritamente neces- antes dava ênfase à sociedade civil, agora
sário à contenção do poder, orientava-se se organiza em torno da sociedade política,
pela proposta do Estado mínimo, que não refletindo uma suposta identidade ética. A
interviria jamais na esfera de liberdade dos Constituição é concebida como uma ordem
cidadãos. O que não era proibido era ime- de valores pretensamente compartilhada
diatamente permitido. Consequentemente, pelos integrantes da sociedade política
competia-lhe policiar a sociedade para que (Cf. CARVALHO NETTO, 2004, p. 35-37;
a liberdade individual não fosse violada. CRUZ, 2001, p. 219-222; OLIVEIRA, 2007,
(Cf. CRUZ, 2001, p. 217-218; CARVALHO p. 32-33 e 116).
NETTO, 2004, p. 32-34) No plano teórico, a primeira dificuldade
A prevalência da liberdade sobre a a ser enfrentada é concepção liberal da se-
igualdade, o exercício indiscriminado do paração rígida de funções. Aquela divisão
direito de propriedade e a concentração do estanque cedeu lugar à cooperação entre
capital em poucas mãos promoveram a ex- os poderes, argumento indispensável para

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ampliação da competência do Executivo e verticalmente pelo Estado Social, será sem-
do Judiciário, mediante constante delegação pre incapaz de atender as expectativas de
dos poderes do Legislativo. Inevitavelmen- grupos tão heterogêneos.
te, o Executivo obteve destaque no modelo Para contemplar a multiplicidade de
do Bem-Estar, porque passou a intervir valores étnicos, religiosos, morais e cul-
diretamente na realidade para atingir as turais, o novo Estado e o novo Direito
metas sociais e reduzir a desigualdade. precisam se fundamentar na dignidade
Na reformulação da separação de po- humana. Os direitos humanos continuarão
deres, o juiz se viu obrigado a abandonar ocupando a centralidade do ordenamento,
o raciocínio silogístico de subsunção da lei não para limitar o poder estatal em favor
ao caso concreto e passou a se esforçar para da liberdade individual ou para refletir o
compreender o espírito da lei e a vontade consenso ético dos cidadãos na busca do
do legislador, promovendo uma análise te- bem comum, mas essencialmente para
leológica, sistêmica e histórica da legislação. explicar que todos os projetos de vida são
Ampliando consideravelmente o horizonte igualmente válidos quando giram na órbita
liberal da boca que profere a palavra da lei, o da dignidade humana.
Judiciário agora se depara com o quadro de Galuppo (2001, p. 54) explica que:
leituras possíveis, resultante da suposta car- “o Estado Democrático de Direito
ga axiológica subjacente ao Direito. Recorre pressupõe que o pluralismo é consti-
à ponderação dos valores, na análise do caso tutivo da sociedade contemporânea
concreto, e decide com discricionariedade, , e que, portanto, não se pode legiti-
tornando-se verdadeiro o aliado do Execu- mamente, eliminar qualquer projeto
tivo na eleição das prioridades sociais. de vida sem interferir na auto-identi-
Ocorre que o Estado Social não suportou dade de uma determinada sociedade.
tamanha responsabilidade e frustrou ex- Ao contrário, ele deve reconhecer que
pectativas, no momento em que se revelou todos os projetos que compõem uma
incapaz de promover a igualdade material e sociedade, inclusive os minoritários,
de reduzir o prejuízo social proporcionado são relevantes na composição de sua
pelo capitalismo. O modelo do Bem-Estar identidade. Se os diversos projetos
também não deu conta de demandas he- estão em conflito, a solução dada ao
terogêneas que ultrapassavam a fronteira problema pelo Estado Democrático de
daquele projeto ético para a consecução do Direito não é pressupor que um con-
bem comum, construído a partir de uma senso radical, homogêneo e ilimitado
visão unitária do mundo. seja historicamente possível, ou que
Foi assim que novos movimentos, com seja possível criar-se, artificialmente
novas reivindicações, abriram espaço para (ou seja, sem a participação popular
o pluralismo de ideias e incluíram na pauta no processo decisório), um projeto
jurídica a diferença étnica, religiosa, moral, ´alternativo´, mas que é possível, por
sexual e cultural, forçando o Estado e o meio de um debate público o mais
Direito a enxergar modos de vida alterna- ilimitado possível, preservarem-se
tivos, mas igualmente legítimos, porque condições mínimas para que todos
afirmativos da dignidade humana. os projetos se realizem”
Com Cittadino (1999, p. 77-78), Galu- Conforme adiantado por Galuppo
ppo (2001, p. 51-52) e Wolkmer (1994, p. (2001, p. 54), a diferença, como elemento
160) aprende-se que a sociedade moderna conformador do Estado Democrático Di-
se caracteriza pela diferença e não pela reito, promoverá um resgate da cidadania
homogeneidade. Portanto, aquele projeto e incentivará a participação dos cidadãos
único do que seja uma vida boa, imposto nos mecanismos de decisão. Afinal, a gestão

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democrática de poder exige que as decisões cution´ e policy control´, atribuindo a
resultem o máximo possível do debate pú- esta o lugar de centralidade, sobretudo
blico, absorvendo, sempre que for viável, a ao definir o constitucionalismo como
argumentação de todos os interessados. No governo contido e responsável”.
constitucionalismo democrático, os direitos Percebam que, na democracia consti-
fundamentais e a dimensão participativa tucional, o controle de poder forçará uma
nas instâncias decisórias se consubstanciam releitura do princípio da separação de po-
como fatores de legitimação do poder e de deres, que afetará tanto o intervencionismo
preservação do pluralismo. do Poder Executivo quanto a analise axio-
Entretanto, o poder que, na visão liberal lógica desenvolvida pelo Poder Judiciário.
precisava ser freado para evitar o arbítrio, O pluralismo característico da sociedade
e na visão social devia intervir para pro- moderna reclama por um “Direito partici-
mover a igualdade, agora se rende ao ideal pativo, pluralista e aberto” (CARVALHO
democrático de exercício compartilhado, no NETTO, 2004, p. 37). Em consequência, a
qual os direitos fundamentais constituem hermenêutica romperá com aquela inter-
sempre a fronteira intransponível. Mas o pretação valorativa de leituras possíveis,
Estado Democrático de Direito não se satis- no qual a ponderação e a discricionariedade
faz com aquela fórmula negativa-limitadora do julgador eram determinantes para se
de contenção do poder, indispensável para resolver o caso concreto.
a tutela da liberdade individual, proposta A nova hermenêutica sugere que se
pelo liberalismo. desenvolva um raciocínio problematizado,
Nele, a atenção se volta para a possibili- em homenagem à complexidade do Direito.
dade de desvio do poder, e a preocupação A ideia de integridade (Dworkin) substitui
se concentra no momento em que ele está a antiga concepção de que o Direito é um
sendo exercido, ou mais precisamente, conjunto de regras hierárquicas e harmô-
“dirige-se ao controle da adequação do nicas (Kelsen) e que, diante de leituras
exercício de certas condutas” (PEREIRA, possíveis, basta ao Juiz, fundamentar sua
2008, p. 35). Logicamente, esta foi uma das escolha em uma regra isolada desse con-
lições extraídas do intervencionismo exage- junto, aplicando-a imediatamente ao caso.
rado promovido pelo Estado Social. Agora, exige-se que o Juiz inverta esse
Pereira (2008, p. 20) elucida essa relação caminho, que ele parta do caso concreto em
entre poder e controle no constitucionalis- direção ao Direito, e identifique as leituras
mo democrático, ao passar pelo pensamen- possíveis, não porque o ordenamento en-
to de Karl Loewenstein: cerra uma carga axiológica, mas porque o
“O controle de poder é, pois, concebi- Direito em sua integralidade se apresenta
do como a chave para a compreensão como “um mar revolto de normas em per-
da diferença entre os sistemas auto- manente tensão concorrendo entre si para
cráticos e democráticos. Ao postular o regerem situações” (CARVALHO NETTO,
controle dos ´destinatários do poder´ 2004, p. 40). Concretamente, espera-se que
(power addressees) sobre os ´detento- desse raciocínio problematizado, constru-
res do poder´ (power holders) como ído sob o alicerce do pluralismo social e
a essência do Estado constitucional, jurídico, resulte a resposta adequada para
distingue-se sistemas com exercício cada situação individualizada, obviamente
compartilhado e controle de poder de sis- contando com a participação das partes na
temas de exercício concentrado e ausên- elaboração do provimento.
cia de controle. Redesenha a divisão de Pois bem, delimitado o paradigma do
poderes e cria uma nova tripartição: Estado Democrático de Direito, em breves
´policy determination´, ´policy exe- linhas, inúmeras frentes se apresentam

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para se pensar o processo penal a partir do constitucional definitivamente são múlti-
referencial constitucional, evitando que ele plas e não podem ser apontadas uma a uma
se funde em si mesmo e passe a desenvolver neste tópico. Por delimitação metodológica,
autonomamente sua própria prática inter- tomar-se-á como referência no constitucio-
pretativa e argumentativa. nalismo democrático, para desenvolver o
Contudo, fica a advertência de que o presente trabalho, o princípio da separação
novo Direito Processual Penal, participati- de poderes compreendida como técnica efi-
vo, pluralista e aberto, capaz de expressar ciente de controle e promoção de poder.
a força normativa da Constituição, foi A preocupação inicial com o intervencio-
inaugurado em 1988 e não se compatibiliza nismo do Poder Executivo no Estado Social
com a ideologia repressiva, centralizadora fez amadurecer a ideia de que o princípio da
e fechada adotada pelo Código fascista de separação de poderes precisava evoluir da
1941. condição de técnica de liberdade, em que se
Registre-se, por exemplo, que no mo- manifestava como mecanismo de controle
delo constitucional de processo penal, a e contenção, para a condição de técnica de
dimensão participativa revigora o contra- eficiência, na qual se manifesta como meca-
ditório e potencializa direito de defesa, do nismo eficiente de controle e promoção de
mesmo modo que permite rever e justificar poder. (Cf. PEREIRA, 2008, p. 236-250)
a atuação da vítima para além dos interes- Segundo Pereira (2008, p. 247), a “se-
ses patrimoniais consagrados numa futura paração de poderes seria, então, um meca-
ação de reparação de dano, que raramente nismo dirigido a atribuir a correta função
se inicia após a condenação. Igualmente, o à correta instituição a fim de melhor servir
pluralismo traz novos ares para a interdis- aos objetivos para os quais a ação coletiva
ciplinariedade em matérias tormentosas foi tomada”
como a insanidade mental, o erro médico Este é o ponto de partida para se compre-
e o sistema financeiro, dentre tantas que ender, a partir de uma leitura constitucional
extrapolam o universo jurídico e, em espe- adequada, por que a função acusatória deve
cial, o orbe do processo penal. ser exercida exclusivamente pelo Ministério
Há ainda a importante contribuição de Público. Antes, porém, precisamos mergu-
Oliveira (2004), que, após a empreender sua lhar na realidade dos métodos processuais e
pesquisa dogmática a partir da moderna entender de que forma seus princípios rei-
hermenêutica constitucional, concluiu tores, inquisitório e acusatório, negaram ou
acertadamente que o processo penal não conformaram a gestão da prova no processo
pode mais se fundamentar na perspectiva penal, fazendo prevalecer ou o exercício
liberal do conflito entre segurança pública e concentrado e sem controle de poder ou o
liberdade individual. Ao demonstrar que o exercício compartilhado e controlado.
processo penal se depara com uma relação
de complementariedade e de reciprocida- 3. Princípio inquisitório x princípio
de entre direitos fundamentais potencias acusatório: o problema da gestão da
(perspectiva pública) e direitos potenciais
prova no processo penal sob a perspectiva
individualizados (perspectiva do acusado),
e ao apresentar sua proposta de transfor-
constitucional da separação de poderes
mar o processo penal em um abrangente Na dogmática processual penal, o estu-
ambiente de proteção aos direitos funda- do dos princípios inquisitório e acusatório
mentais, Oliveira reposicionou a teoria, está interligado ao estudo do sistema pro-
apontando para uma nova direção. cessual correspondente, que seria composto
As frentes que se apresentam para pen- de normas e princípios ordenados, mas
sar o processo penal a partir do referencial especialmente orientado pelo princípio

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estruturante ou unificador do qual o elementar de cada método, permitindo,
respectivo sistema herdaria o nome (Cf. pois, individualizá-los na teoria.
PRADO, 2006, p. 104; COUTINHO, 2000, O princípio inquisitório inspira-se na
p. 3; COUTINHO, 2004, p. 16). ideologia da defesa social e instrumenta-
Todavia, independente da relevância liza a gestão centralizada de poder. Mo-
teórica do estudo de cada princípio reitor, nopolizando toda informação relevante, o
tem-se insistido na substituição do termo princípio prima pelo poder concentrado e
sistema pelo termo método. A insistência sem controle, voltado para a realização do
se justifica porque a História não registra, Direito Penal. Ele molda o método inquisi-
em nenhum de seus cortes, a existência de tivo a partir de uma investigação secreta da
um modelo normativo lógico e racional que verdade, na qual o Juiz investigador detém
esteja orientando simultaneamente culturas a gestão da prova e o poder de demonstrar
jurídicas diversas. a culpa antecipadamente.
De fato, nunca houve um conjunto orgâ- Dotado de elevado grau de raciona-
nico que reunisse todas as características es- lidade, o princípio inquisitório promove
senciais de um determinado esquema, seja a descontinuidade entre a instrução e o
ele inquisitório ou acusatório. Ao contrário, julgamento e concentra na pessoa do Juiz
identificam-se, em vários momentos, estru- inquisidor todo o conhecimento adquirido
turas normativas acusatórias e inquisitórias na investigação. Acumulando as funções
não absolutamente coincidentes, conforme acusatória, defensiva e judicante, em um
reconhece Prado (2006, p. 7 e 53). procedimento sem partes, ele constrói so-
Com Binder (2003, p. 31-33), aprende- zinho, e em segredo, todo o saber que mais
se que nenhuma dessas estruturas confere tarde será enunciado como verdade real.
uma visão completa de um sistema pro- Essa é a construção teórica do princípio
cessual, elas são apenas o ponto de partida inquisitório a que se chega, consultando
para se compreender o Direito Processual os autores que são referência na matéria:
Penal ao longo de sua evolução histórica. Coutinho (2000, p. 2-3; 2004, p. 24); Maier
Diante desta realidade incontestável, (2004, p. 292 e 448); Gossel (2007, p. 16);
corre-se o risco de se incorrer em uma Lopes Junior (2005, p. 173-177 ); Prado
inadequada simplificação histórica e de (2006, p. 104-105).
sustentar uma tendência hegemônica sem Seguindo o caminho contrário, o princí-
validade universal. Preferível, portanto, pio acusatório viabiliza a democracia pro-
empregar o termo método, totalmente cessual, instituindo a descentralização do
desvinculado da hipótese de uma estrutura poder. Optando pelo poder compartilhado
normativa padrão e do aspecto temporal. e controlado, mira a tutela dos direitos fun-
Concebido no plano da idealidade, o damentais. O princípio configura o método
vocábulo método seria compreendido como acusatório como um debate público, oral,
o resultado do esforço teórico e da pesquisa contínuo, em contraditório, promovido
histórica de diversos modelos existentes. pelas partes. Na verdade, ele transforma o
Delineadas as características gerais de cada processo penal em um ambiente argumen-
método, seria possível então pensar na iden- tativo de abrangente proteção aos direitos
tificação do sistema processual eleito pela humanos.
Constituição, em cada realidade jurídica. A meta de exercício compartilhado e
Dentro da revisão proposta, o princípio controlado de poder exige que a função
inquisitório seria conformador do método acusatória e a função defensiva sejam entre-
inquisitório, assim como o princípio acu- gues às partes, abrangendo naturalmente
satório seria estruturante do método acu- a iniciativa probatória. Em consequência,
satório. Cada princípio definiria o núcleo as provas deixam de ser produzidas de

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ofício e sigilosamente, sob o argumento para viabilizar, ao lado do princípio acusa-
de que se busca a verdade, e passam a ser tório, a democracia processual. Resolve-se,
introduzidas pelos destinatários do provi- assim, no âmbito da constitucionalidade,
mento, à luz da publicidade, para serem eventual tensão existente entre faticidade
incorporadas no julgamento. e validade. Como mecanismo eficiente de
Nesse quadro, a decisão final deixa de controle e promoção de poder, lembre que
ser uma pré-compreensão de uma realida- a separação de poderes procura “atribuir a
de, formulada por um único sujeito, para correta função à correta instituição a fim de
se converter em um raciocínio devidamente melhor servir aos objetivos para os quais a
problematizado, que enfrenta possibilida- ação coletiva foi tomada” (PEREIRA, 2008,
des distintas e resulta da ampla argumenta- p. 247).
ção jurídica que se desenvolve em torno do No Estado Democrático de Direito, o
caso concreto. Decerto, o princípio acusa- controle de poder não se realiza somente
tório assegura a unidade entre a produção pelo compartilhamento, mas igualmente
da prova, o debate e o julgamento. pela atribuição de competências às insti-
Em linhas gerais, essa é a definição do tuições democráticas responsáveis pelo
princípio acusatório que se extrai de Bovino seu exercício (controle pela promoção). Na
(2005, p. 37-50); Cordero (2000, p. 88), Couti- realidade, o princípio acusatório densifica a
nho (2000, p. 5); Deu (2008, p. 121-150); Pra- separação de poderes no orbe do processo
do (2006, p. 106); Roxin (2003, p. 86-76). penal, ao redistribuir a função acusatória
Pelo ângulo da democracia constitucio- e a função defensiva entre as partes, e ao
nal, marco referencial da modernidade, não reservar a função judicante para o Juiz.
há dúvida de que o método acusatório deve No ponto, cumpre questionar: em que
gerir a prática cotidiana do processo penal, consistiria exatamente a função acusató-
justamente porque prima pela descentra- ria? Com certeza, trata-se de uma função
lização do poder, resgatando a dimensão pública, constitucionalmente atribuída ao
participativa, e preza pela tutela dos direi- Ministério Público, por ser a instituição
tos fundamentais. O princípio acusatório, adequada para atingir da maneira mais efi-
portanto, é subjacente ao paradigma do caz os objetivos traçados no processo penal
Estado Democrático de Direito e ao modelo para o exercício da acusação pública.
constitucional de processo penal. No exercício dessa função pública,
Em decorrência da força normativa compete-lhe privativamente: (1) formular
da Constituição e da opção pelo poder a hipótese acusatória, delimitando a res-
compartilhado e controlado, o processo ponsabilidade penal, em homenagem à
penal brasileiro precisa se converter defi- dignidade do acusado; (2) assumir o ônus
nitivamente em um processo de partes e se da prova, como consequência desfavorável
desenvolver por meio do debate público, proveniente da ausência de prova sobre a
oral, contínuo, em contraditório. responsabilidade penal; (3) realizar todos
No novo paradigma, as práticas auto- os atos inerentes à acusação, como o adita-
ritárias, derivadas do poder concentrado e mento da denúncia, a modificação da hipó-
sem controle, e que encontravam sobrevida tese acusatória (mutatio libelli), a proposição
no Código de 1941, não podem concorrer e a complementação da prova, a requisição
jamais com as práticas democráticas. Sim- de diligências finais, a sustentação do pe-
plesmente, porque, no Estado Constitucio- dido de condenação, ao final do processo,
nal moderno, o poder somente pode ser quando a prova permitir, a impugnação
exercido pelo canal democrático. das decisões desfavoráveis, etc.
Nesse instante, o princípio constitucio- Delimitada constitucionalmente a fun-
nal da separação de poderes entra em cena ção acusatória, com cláusula de exclusivi-

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dade, sob que perspectiva seria possível imaginário, na memória, e que, por isso,
justificar a atuação supletiva do Juiz na jamais será real.”
proposição da prova, senão pelos mitos de Como a Inquisição tinha todo um ritual
que o processo penal deve buscar a verdade para promover a propaganda do triunfo
real e de que o Juiz é o órgão suprapartes contra a heresia – procissão, sermão, lei-
que tem condições de desvelar, a qualquer tura pública da confissão, leitura pública
instante, a verdade absoluta. da sentença e o suplício (Cf. PAIM, 2000,
Definitivamente, chegou a hora de p. 140-144) – o mito da verdade real se
desconstruir esse mito que foi forjado na desvinculou da intolerância religiosa, saiu
Inquisição. Coutinho (2001, p. 26) comenta das dependências do Tribunal do Santo
que “a verdade possibilita a rendição dos Ofício, resistiu à sua extinção e continuou
pecados”. Acreditando nessa hipótese, a seduzindo o processo penal no mundo
Inquisição pregava a salvação da alma pela laico de hoje.
confissão, demonstração inequívoca de ar- Na atualidade, a verdade real aparece
rependimento. Não importa se a confissão retratada como sinônimo de justiça. Seduz,
foi extraída mediante tormento ou se ela porque está associada ao discurso de com-
conduz à morte. O suplício purifica a alma bate à impunidade, corolário da ideologia
do pecador. da defesa social. Esse discurso contamina o
Boff (2003, p. 9-11) ensina que a verdade método acusatório ao colocar em segundo
absoluta é intolerante e resulta da crença de plano a tutela dos direitos fundamentais.
que “a humanidade foi criada na graça de Claro está que o mito da verdade absoluta
Deus”. Na medida em que os homens não legitima os poderes instrutórios do Juiz,
mais conseguem compreender a vontade permitindo-lhe correr atrás de informações
divina, e dela começam a se distanciar, penalmente relevantes, depois de encerra-
as escrituras sagradas precisam ser rein- da a instrução e desenvolvida a atividade
terpretadas, porque é necessário manter probatória das partes.
a humanidade em sua caminhada rumo à Negando a possibilidade concreta de
vida eterna. inexistirem provas que sustentem hipóte-
Entretanto, essa interpretação não cabe se acusatória, ele, o Juiz inquisidor, mais
ao homem comum, mas a quem está mais vivo do que nunca e convencido de que
perto de Deus, inegavelmente o Papa – seu há responsabilidade penal, reassume a
enviado direto – e os Bispos – seus legítimos gestão da prova e redireciona processo
representantes. Por sinal, os Bispos, que para o caminho da condenação. Mera coin-
se transformaram nos Juízes inquisidores cidência? Não, raramente a proposição de
nos Tribunais Eclesiásticos, receberam do provas ocorre porque a hipótese acusatória
Papa o poder de declarar a verdade contra o incomoda o Julgador e porque ele quer
herege, uma verdade inquestionável que se fundamentar a absolvição. O benefício da
alimentava do calor da fogueira. Os meios dúvida já socorreria o Juiz democrata nessa
se justificavam para combater a heresia. (Cf. situação.
LOPES JUNIOR, 2005, p. 163) O que se verifica é que a tensão entre
Atente-se à lição sábia de Lopes Junior faticidade e validade está se distanciando
(2005, p. 267): “A verdade real é inalcan- da norma constitucional e se resolvendo
çável, até porque a verdade está no todo, por meio de uma prática interpretativa e
não na parte; e o todo é demais para nós argumentativa característica do Código
(....) a reconstrução de um fato histórico é fascista de 1941, em benefício da ideologia
sempre minimalista e imperfeita (....). É o repressiva por ele adotada.
absurdo de equiparar o real ao imaginário, No momento em que o conhecimento
esquecendo que o passado só existe no científico se rende à teoria da relatividade,

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 149


o exame de DNA afirma uma probabilidade novamente pelo Leviatã. Preferível que
inferior a cem por cento, a Nova História cada instituição dê conta de sua função
reconhece registros alternativos como fon- constitucional.
te de dados relevantes, o processo penal E mais, atribuir com exclusividade a
mantém sua arrogância. Declara-se em con- função acusatória para o Ministério Público,
dições de reconstruir o fato com absoluta incluindo a proposição de provas, em nada
fidelidade e capaz de enunciar, ao final, a diminui a magnitude da Magistratura. Se a
verdade absoluta. dimensão participativa entregue ao Parquet
Desconsidera-se simplesmente a vulne- resgata a cidadania e afirma a democracia,
rabilidade humana diante da apuração do a tutela dos direitos fundamentais entregue
fato, da produção da prova, da interpreta- aos Juízes consolida o constitucionalismo.
ção do Direito e da própria realização da Nesse ambiente argumentativo de abran-
Justiça. Se o Juiz é feito da mesma matriz gente proteção aos direitos humanos, a
humana do Promotor de Justiça, portanto Constituição delegou aos Juízes a mais no-
igualmente vulnerável, de que forma ele bre responsabilidade. Portanto, o processo
vai desvelar essa verdade absoluta e evitar penal pode se satisfazer perfeitamente com
a temida impunidade, quando o Ministério a verdade possível ou, mais precisamente,
Público humanamente falhar? Bom lembrar a verdade construída processualmente com
que ele está suscetível à mesma limitação a contribuição das partes.
humana e incorre no mesmo risco de não Não é exagero caracterizar a verdade
conseguir demonstrar a responsabilidade processual como bricolage de significantes
penal. Nesse aspecto, certamente, o Ma- (ROSA, 2006, p. 363-369), nem tampouco di-
gistrado não leva nenhuma vantagem em zer que ela não depende da pré-compreen-
relação ao Promotor Público. são de um único sujeito, do modo exclusivo
Registre-se que a falha humana foi cogi- como ele enxerga determinada realidade.
tada apenas porque não pode ser afastada Ela deriva do raciocínio problematizado,
da realidade concreta. Há de se reconhecer que enfrenta possibilidades distintas, den-
que o Ministério Público exerce satisfatoria- tre elas a absolvição e a condenação, e preci-
mente a função acusatória no processo pe- sa refletir necessariamente a argumentação
nal. Se, ordinariamente, o Juiz não precisa jurídica que envolve o caso concreto.
exercer supletivamente a função acusatória, Podemos, sim, nos confortar na poesia
porque o órgão legitimado se desincumbe de Andrade (2009)
de sua função a contento, nas hipóteses “A porta da verdade estava aberta,
excepcionais, ele não pode fazê-lo, por- mas só deixava passar meia pessoa
que encontra-se impedido pelo princípio de cada vez. Assim não era possível
constitucional da separação de poderes e atingir toda a verdade, porque a meia
pelo princípio constitucional acusatório. pessoa que entrava só trazia o perfil
Desrespeitando-se as regras do jogo, o pro- de meia verdade. E a segunda metade
cesso penal se desnatura e se transforma em voltava igualmente com o meio perfil.
uma guerra de todos contra um. E os meios perfis não coincidiam (...).
Concluindo, a democracia constitucio- Chegou-se a discutir qual a metade
nal representa uma conquista da qual a mais bela. E nenhuma das duas era
sociedade moderna não pode abrir mão totalmente bela. E carecia optar. Cada
em favor da ideologia da defesa social. O um optou conforme seu capricho, sua
poder que se legitima na técnica de controle ilusão, sua miopia.”
e de promoção deve ser compartilhado Assim, a questão se concentra no ponto
entre instituições. Essa regra é sagrada. exato: o importante é saber de que forma
Do contrário, a sociedade vai ser engolida o Juiz deve se portar diante produção das

150 Revista de Informação Legislativa


provas, como mero expectador? Não, por- que exerce o papel de articular e de legiti-
que ele precisa formar o seu convencimen- mar o processo penal. Dizer que os limites
to. Como todo ser humano, ninguém pode estão no Código significa aceitar que ele
retirar do Juiz o direito de ter dúvida sobre funda o processo penal, independentemen-
a prova proposta, sobre a argumentação te da existência da Carta de 1988.
desenvolvida. Impedir-lhe de esclarecer Fora esse grave deslize, encontramos
dúvidas simples e prováveis inviabilizaria nas disposições especiais relativas ao in-
o processo penal. terrogatório em juízo a consolidação da
O ordenamento jurídico, em sua integri- estrutura acusatória, visto que as perguntas
dade, não sugere absolvição pela dúvida, sobre as condições pessoais, oportunidades
quando a convicção do juízo está ao alcance de desenvolvimento pessoal e conduta so-
de uma simples pergunta à testemunha, à cial ficaram sob a responsabilidade do juiz,
vítima ou ao acusado, nas audiências, ou mas as relacionadas ao fato foram opor-
ao alcance de um mero pedido de esclare- tunizadas às partes (artigo 71 e parágrafo
cimento ao perito. A atividade probatória único). De se elogiar que o interrogatório,
do Juiz é extremamente saudável e se difere previsto como direito de defesa (artigo 63),
essencialmente da proposição da prova. está inserido no Capítulo III, intitulado Do
Sua participação ativa na instrução não Acusado e seu Defensor.
revela incompatibilidade com o princípio Essa orientação se repete no Título VIII,
da separação de poderes e com o princípio destinado à Prova. A regra processual
acusatório, ao contrário deriva de uma determina que as provas serão propostas
leitura constitucionalmente adequada e pelas partes, sendo facultado ao juiz escla-
do reconhecimento de que o Juiz, como recer dúvida sobre a prova produzida (Cf.
sujeito de conhecimento, interage com a artigo 162 e parágrafo único). Sem dúvida,
realidade. a fase de instrução se orienta pelo princípio
da separação de poderes e pelo princípio
4. O avanço no Anteprojeto de Reforma acusatório, assegurando a exclusividade
do Código de Processo Penal da função acusatória.
Mais adiante, no Capítulo II, que re-
O Anteprojeto de Reforma do Código gulamenta os meios de prova, a estrutura
de Processo Penal, convertido no Projeto acusatória ganha maior densidade, porque
de Lei número 156 de 2009, deu um enor- resta claro que as perguntas às testemunhas
me passo para adequar o processo penal serão formuladas pelas partes diretamente
brasileiro ao modelo constitucional acusa- (artigo 175), sendo permitido ao juiz com-
tório. Ao dispor no Título dos Princípios plementar a inquirição sobre pontos não
Fundamentais que o processo penal terá esclarecidos (parágrafo primeiro do artigo
estrutura acusatória e ao vedar a iniciativa 175). Embora não haja previsão expressa
do juiz na fase de investigação e a substi- nesse sentido quanto às perguntas dirigi-
tuição da atuação probatória do órgão de das à vítima (artigo 187), por coerência, o
acusação (Cf. artigo 4o), o Projeto rompeu método acusatório deve prevalecer, confe-
com a matriz inquisitória que formata a rindo às partes a iniciativa de perguntar e,
realidade processual brasileira desde as ao juiz, subsidiariamente, a faculdade de
Ordenações. elidir eventual dúvida.
A redação do artigo 4o seria perfeita se A seção V, que se dedica à prova peri-
não fosse o registro de que os limites da cial, regulamentou a formulação de quesi-
estrutura acusatória estão definidos no Pro- tos como direitos das partes, do indiciado
jeto. Na verdade, as diretrizes do sistema e da vítima (artigo 196, parágrafo 4o). Não
acusatório brasileiro estão na Constituição, há menção direta à possibilidade do juiz

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apresentar quesitos, mas ela é perfeitamen- rium inquisitorium – Manual dos inquisidores. Brasília:
te possível, primeiro porque não se pode Rosa dos Tempos, 1993.
afastar a possibilidade de dúvida da reali- BOVINO, Alberto. Princípios políticos del procedi-
dade. Ademais preservou-se a liberdade do miento penal. Buenos Aires: Del Puerto, 2005.
juiz para aceitar ou rejeitar o laudo, parcial CARVALHO NETTO, Menelick. A Hermenêutica
e integralmente. (artigo 199). Invocando constitucional sob o paradigma do estado democrático
novamente a integridade do Direito, bem de direito. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni
de (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no
melhor esclarecer dúvida sobre a perícia do
estado democrático de direito. Belo Horizonte: Manda-
que simplesmente rejeitar o laudo porque mentos, 2004.
o juiz não conseguiu formar sua convicção.
CITTADINO, Gisele. Pluralismo direito e justiça fistri-
Segundo, porque na hipótese de exame por
butva. Elementos de filosofia constitucional contem-
precatória, o Projeto determinou a transcri- porânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
ção dos quesitos do juiz no instrumento a
CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Santa Fé de
ser enviado ao juiz deprecado (artigo 210,
Bogotá: Temis, 2000.
parágrafo único). Esta previsão elimina
qualquer controvérsia a respeito. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução
aos princípios do direito processual Penal brasileiro.
Se assim for aprovado, o Projeto número Separata ITEC, ano 1, n. 4, jan. /fev. /mar. 2000.
156 de 2009, encerra a tradição inquisitória
da produção da prova de ofício pelo juiz, ______. O papel do novo juiz no processo penal. In:
Crítica à teoria geral do direito processual penal. Jacinto
que se iniciou no período das Ordenações Nelson de Miranda Coutinho (Coord.). Rio de Janeiro:
com a adoção das inquisições-devassas do Renovar, 2001.
Direito Canônico. A instrução de ofício pelo
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitu-
juiz se perpetuou no Código de Processo cional e a efetividades dos direitos fundamentais. In:
Criminal de 1832 e nas reformas seguin- SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo
tes, promovidas em 1841 e em 1871, com de Sousa (Coords.). Hermenêutica e jurisdição constitu-
o procedimento de formação antecipada cional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
da culpa, que antecedia a fase processual. DEU, Tereza Armenta. Estudios sobre el proceso penal.
Esta tradição permaneceu viva no Código Santa-fé: Rubinzal-Culzoni, 2008.
de 1941, com os poderes instrutórios que FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantis-
permitiam ao juiz produzir prova, antes do mo penal. 2 ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos
julgamento, logo após o encerramento da Tribunais, 2006.
instrução (artigo 156). E, lamentavelmente,
não se modificou com a reforma parcial
GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica e ju-
promovida pela Lei 11.960 de 2008. O Códi- risdição constitucional. In: SAMPAIO, José Adércio
go de Processo Penal reformado continuou Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Sousa (Coord.).
concedendo ao juiz a oportunidade de pro- Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte:
duzir prova antes de proferir a sentença Del Rey, 2004).
GOSSEL, Karl Heinz. El derecho procesal penal em el
estado de derecho: obras completas. Tomo 1. Santa Fe:
Rubinzal-Culzoni, 2007.
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PAIM, Antônio. Momentos decisivos da história do Brasil.
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