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Estatuto Filosófico da Organização ou Para uma Crítica aos Estudos Organizacionais

Autoria: Elcemir Paço-Cunha

Resumo
O artigo discute o estatuto filosófico da “organização” e em que medida este estatuto se
apresenta como efetivo. A partir dessa reflexão, o artigo propõe uma guinada para a vida
organizada como objeto efetivo para os estudos organizacionais, em detrimento da
organização abstrata. Propõe ainda categorias marxianas para o estudo deste objeto e, ao
final, tece críticas aos estudos organizacionais em relação à administração e o pensamento
social.

1. Introdução
O grande conjunto formado pelos estudos organizacionais, em toda a sua diversidade,
decorre de idéias e discussões advindas da “filosofia social” – quer se queira aceitar isso ou
não – entendida como a conjunção de diferentes formas de pensamento sobre a “vida dos
homens com os homens”. Ora, por que o pensamento nos estudos organizacionais em geral se
limita pelo objeto empírico “organização”, dada a filiação intelectual?
Deixando de lado a administração, entendo os estudos organizacionais como
derivações diretas e indiretas das ciências humanas (filosofia, sociologia, psicologia, letras,
para citar algumas) – incluindo aqui a economia heterodoxa – com cuja ajuda se delineia
questões ontológico-epistêmicas na “compreensão-explicação”, na “crítica” e também na
“prescrição” de e em determinadas temáticas circunscritas pelos limites de uma ou de várias
“organizações”. É assim que, por exemplo, as temáticas são definidas: “indivíduo nas
organizações”, “poder nas organizações”, “autonomia nas organizações”, etc. Embora os
termos sigam esta estrutura (tema-objeto) a prevalência é do objeto, não importando o quão
diverso seja o tema. Isto também é verdade para os textos de cunho teórico: “contribuições
das idéias de Bourdieu aos estudos organizacionais”, “Adorno e o atentado contra a tradição
epistemológica nos estudos organizacionais”, etc. O mesmo pode ser dito em relação ao tipo
de organização: pequena empresa, agronegócio, ONG, estado, etc. Tanto nos textos teóricos
quanto nos teórico-empíricos o pensamento é delimitado pelo objeto empírico. Tudo isso se
passa como se houvesse uma necessária ascendência dos estudos organizacionais às diferentes
formas de “filosofia social”, determinando o primeiro em sua condição secundária na história
do pensamento social. Esta condição foi relativamente mostrada por Burrell e Morgan (1979),
mas não quiseram “ver” ou superar. É preciso, pois, colocar a primeira questão: a
organização possui um estatuto filosófico?
Existe uma outra questão implicada nessa pergunta: a busca pela particularidade de
uma dada organização. Em geral, muitos estudos nas organizações também são orientados
para a indicação da singularidade, isto é, elementos que permitam compreender determinada
organização em relação à outra ou como determinado fenômeno se desenrola em diferentes
organizações. Esta singularidade é bem denotada pelos estudos teórico-empíricos de
inclinação ideográfica, que se esforçam na realização de estudos longitudinais em busca de
uma “profundidade” presumida. Por este termo entendo um engano, não pela negatividade de
uma dada tradição epistemológica. Em outras palavras, os estudos organizacionais lidam com
a singularidade de seu objeto privilegiado presumindo a “profundidade” do fenômeno quando
na verdade especificam o superficial. A verdadeira profundidade não está na singularidade,
mas nas múltiplas determinações da vida efetiva dos homens com os homens. Alheios a esta
questão, os estudos das organizações partem explícita ou implicitamente das análises
ascendente, descendente ou de maneira combinada. Para indicar essas formas de análise e
suas limitações precisaremos também responder àquela questão sobre o estatuto filosófico da
“organização”.

1
Nesse sentido, a preocupação central neste texto não é sobre a impossibilidade de se
estudar uma organização particular, como se o critério de definição da medida do adequado
fosse uma atribuição sensata. A preocupação central é produzir uma reflexão que permita
questionar a delimitação do pensamento nos estudos organizacionais pelo objeto, o que
permite também questionar a “condição” dos estudos organizacionais na história do
pensamento social, isto é, questionar sua eterna ascendência que representa também sua
condição secundária. Trata-se, portanto, de uma auto-reflexão crítica em relação à prática da
pesquisa e da reflexão nesta área, especificamente em relação ao irracionalismo dominante.

2. Organização abstractum
Por mais que diferentes estudos não se esforcem por esclarecer o que se entende por
“organização” é possível buscar nas entrelinhas tal especificidade. Nos textos didáticos ocorre
o oposto: as definições são quase infinitas. Mas uma delas consagra a visão hegemônica;
aquela que entende a organização como um conjunto de pessoas que se unem artificialmente
para realizar objetivos que sozinhas não conseguiriam. Este entendimento vago e paradisíaco
permitiu com que outras visões fossem lançadas: micro-sociedades, construções sociais,
produção da ansiedade humana, etc.
Entretanto, uma outra questão quase nunca é colocada: do que se trata uma “não-
organização”? Desconsiderando as respostas rápidas que indicariam o caos, a desarmonia, o
desequilíbrio, a luta de todos contra todos – parafraseando Hobbes –, a não-organização seria
tudo aquilo que está, dependendo do ponto de vista, aquém ou além da organização. A não-
organização se trata daquilo que estaria fora deste objeto. Derivando a partir daí, chegaríamos
a um setor, de um ponto de vista econômico, ou a um campo, de um ponto de vista
institucional. Se a derivação persistir até onde for possível, chegaríamos à sociedade em geral.
Guardadas as devidas particularidades, este tipo de procedimento é mais ou menos comum às
diferentes abordagens. Por exemplo, a conhecida abordagem sistêmica que dispensa
referência (macro-ambiente, ambiente de operação e a organização propriamente dita) e a
psicanalítica (instâncias mítica, social-histórica, institucional, organizacional, grupal,
individual, pulsional) (ENRIQUEZ, 1997).
A questão que se desponta aqui é a de que, para delimitar uma organização, faz-se
simultaneamente a delimitação ou não da não-organização. De maneira apressada, poderia
aparecer aqui uma mera questão de diferença, isto é, aquilo que define a organização é o que
não define a não-organização. Seria necessário então supor as diferenças radicais que separam
uma coisa da outra e, portanto, instaurar os limites de uma e de outra (1). Por outro lado,
poderia aparecer o argumento sobre a ausência de diferença determinante e que tudo aquilo
que se passa na não-organização se repete ou se reproduz na organização (2), o que implica
descendência. Esta lógica poderia ser invertida, mantendo a ausência da diferença, para supor
o contrário: que tudo aquilo que se passa na organização se repete ou se reproduz na não-
organização (3), o que implica ascendência. Outro ainda: a questão não é a diferença nem
supor a reprodução de uma coisa na outra, mas indicar em quais circunstâncias empíricas e
históricas essas “operações” se processam (4), o que implica combinação.
No primeiro caso, trata-se de uma apreensão próxima, por exemplo, aos estudos
econômico-sociais sobre redes organizacionais (e.g. NORHIA; ECCLES, 1992) que denotam,
em fundamento, que a organização é aquilo que o mercado não é e que a rede não é nem
aquilo nem isto. No segundo, os estudos que se esforçam em apontar as implicações das
culturas nacionais sobre a cultura das organizações (e.g. FREITAS, 1997) e os que apontam
as implicações institucionais sobre a estrutura, tecnologia e práticas nas organizações (e.g.
DIMAGGIO; POWELL, 1991). No terceiro, as linhas de trabalho que indicam o
transbordamento dos valores gerenciais, instrumentais, típicos das organizações capitalistas
para organizações públicas (e.g. BRITO, 2000) e mesmo para espaços “não-organizacionais”,

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instrumentalizando-os (e.g. TEODÓSIO; ALVES, 2006, especialmente na p. 8, por
influências das idéias de Habermas). No quarto e último caso, tanto Weber (2002; 2004a;
2004b) quanto Foucault (2004) são ilustrativos. No primeiro surge a indicação de como
determinada ética particular “encarnada” num tipo de indivíduo “empreendedor”, por assim
dizer, preparou ou potencializou o desenvolvimento de uma sociedade racional-legal na qual a
organização é burocrática por excelência (a referência aqui é atinente apenas às burocracias
racionalizadas e não às burocracias históricas egípcias e chinesas). Há aqui uma mútua
implicação entre organização burocrática e não-organização racional-legal cuja distinção de
uma coisa da outra é bastante frágil, pois o tipo ideal como recurso metodológico não é
critério de separação, mas precisamente o oposto. O segundo apontou os movimentos das
diferentes forças em jogo na não-organização (população, monarca, criminoso, intelectuais,
juristas, carrascos, jornais e mesmo os cadafalsos desempenharam algum tipo de força), que
favoreceram a constituição do tratamento “racional” do crime e do corpo do criminoso, e de
instituições penais cujas práticas disciplinares foram incorporadas às indústrias, donde, mais
tarde, transbordou para a sociedade dita, assim, disciplinar. Além do compromisso louvável
dos dois estudiosos em relação à história e das dificuldades de se fazer uma distinção clara
entre organização e não-organização, destacamos o principal: que não se trata da historicidade
de uma organização particular e, portanto, não se tem a organização como objeto (a não ser
como objeto secundário), mas sim a combinação entre “não-organização” e organização.
Muitos trabalhos que utilizam Weber ou Foucault nos estudos organizacionais desconsideram
esta questão óbvia, mas relevante.
Nos três primeiros casos, talvez também em função dessa desconsideração, a ênfase na
particularidade produz uma questão interessante. Enriquez (1997), por exemplo, exaltou a
psicanálise como uma abordagem indispensável ao estudo dos “conjuntos organizados”, o que
tem se materializado inclusive no Brasil (e.g. MOTTA; FREITAS, 2000). Diz Enriquez que
“a ciência que essa abordagem clínica promete é uma ciência do concreto, do singular, do
diverso” (1997, p. 297, grifos no original). Para tal, a organização recebe uma caracterização
geral como “objeto-sujeito social” (p. 296-97). É só assim que “a organização tenta prender
os indivíduos nas armadilhas de seus próprios desejos de afirmação narcisista ... a
organização tende a substituir seu próprio imaginário pelo deles” (p. 35, grifos nossos).
Para o autor, “toda organização se apresenta como formação e luta contra o caos
desorganizador...” (p. 85, grifos no original), logo, ela é fruto de um ato de criação, de pulsão
de vida. Em seguida vemos que a “organização tenta se defender das pulsões de destruição
que poderiam atacar seu funcionamento interno. Ela também tenderá a limitar a competição
interna repartindo os poderes ... Ela tende igualmente a canalizar a pulsão da vida para
unicamente o trabalho produtivo. Ela teme, realmente,” (idem, grifos nossos em negrito) as
condutas irracionais. “Assim sendo, as organizações são o lugar privilegiado da compulsão à
repetição (p. 87, grifos nossos)”, logo, de manifestação da pulsão de morte. Vemos nessas
passagens a organização como espaço (objeto) de repetição, de pulsão de morte, mas também
como criação da vida que luta contra o caos desorganizador (sujeito); caos que é pulsão de
morte. Então podemos concluir que a organização é fruto da pulsão de vida que luta contra a
pulsão de morte que a caracteriza! Como Enriquez não mostra nenhuma dialética, a
organização é uma auto-negação, um sujeito que se nega.
Enriquez opera sua análise tomando a organização-sujeito como objeto; isto é claro.
Mas, para indicar a organização como sujeito, existe uma passagem muito interessante que
vale explicitar. Diz ele:

As organizações suportam mal a idéia de que poderiam viver sob a ameaça de uma “castração”, que elas
poderiam então ser mortais, rompidas, conflituosas, que não seria o belo objeto ideal proposto à
admiração dos colaboradores e do público. ... Naturalmente, a negação é acompanhada também do
reconhecimento (eu sei... mas apesar disso...) da coisa negada (sabe-se que o fetichista nega ao mesmo

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tempo a percepção da falta do pênis na mulher e reconhece essa ausência [e sente angústia]). É o que se
denominou a clivagem do eu. Na organização, o tempo e a morte serão ao mesmo tempo negados e
aceitos (p. 127).

Desta passagem podemos concluir apenas sobre a concretude da clivagem do eu


organizacional fetichista!
Ora, esta abordagem se interessa pelo particular, pela organização singularizada. Mas,
a história está à mercê da historicidade do particular? E mais, a empreitada de colocar a
organização no divã, como um sujeito, assumir que a organização faz, tende, teme, coloca
qualquer organização em paridade com o indivíduo. Para além da problemática do freudismo
contido nas linhas de Enriquez (que merece uma crítica dedicada), sua ambição é qualquer
coisa, menos concreta. Assim como nos três primeiros casos sobre a relação organização/não-
organização i, em Enriquez a organização é abstractum. (Se bem que Weber e Foucault
sabiam disso, por motivos diferentes. O primeiro em função do kantismo e, o segundo, da
questão do poder-verdade).
Eis o estatuto filosófico da organização em relação à não-organização. Eis a verdade
da falsidade dos estudos organizacionais. A verdade está no fato de lidar com uma abstração;
sua falsidade, em tomar o abstrato como concreto. Embora a organização enquanto objeto
apareça aos estudiosos e ao homem efetivo como sendo muito concreta, ela não passa de
abstração. Mas não se trata de uma abstração acadêmica meramente, de idealidade. Trata-se
de considerar o poder de abstração investido na abstração, isto é, o poder de abstrair, ou
melhor, o processo histórico de reificação. Pois não foram as organizações que fizeram os
homens; os homens fizeram as organizações. Se elas aparecem como “fazendo” hoje os
homens, deve-se então considerar as organizações, em sua verdade, como uma forma de
abstração dos homens: uma abstração que abstrai, e trai tanto o pensamento acadêmico quanto
o homem efetivo, pois ambos são concretos e, na concretude, a mesma coisa. Para precisar
melhor, entendo abstração aqui não como oposição à coisa, isto é, não se trata de idealidade
em oposição à objetividade. Aqui abstração faz referência à mistificação e à coisificação,
pois, por um lado, a organização aparece como “objeto-sujeito” e, por outro, por ser
mistificação, coisifica, reifica todos os elementos humanos que à abstração se relacionam.
Deve ter ficado claro que a abstração não é apenas fruto do pensar acadêmico reificado, mas
resultado das lutas, das relações de forças historicamente determinadas, que exigem do pensar
e do fazer acadêmicos a mesma qualidade abstrata do seu objeto.
Se o estatuto filosófico da organização está em sua falsidade, como já adiantado
acima, não há razão para não se esperar a auto-realização do conceito – como no caso de
Enriquez que se adianta e realiza aquilo que poderia vir a ser realizado – nem para não se
tomar o homem abstraído como critério de verdade para, em seguida, dar à abstração o
estatuto que ela desejar, já que é sujeito clivado, desejante; e, da parte dos estudiosos, tomar o
proferido do homem abstraído como o profético. Deste ponto, organização e família,
organização e indivíduo podem ser realmente a mesma e exata coisa. No caso da auto-
realização do conceito, teríamos que nos render à entificação, à organização que tem “alma”
particular e merece estar no divã, e, no caso do homem abstraído, darmos as mãos e
reconhecermos que o “paraíso” é aqui e agora.
Por outro lado, se este estatuto filosófico da organização é falso, falso porque não é
concreto, não é efetivo por si mesmo, é mistificação, ele deve então ser buscado em outro
“lugar”. Nunca é demais esclarecer que a materialidade requerida neste argumento não pende
para o materialismo vulgar, para uma negação da subjetividade. É, sim, preciso negar o
subjetivismo que produz falsos problemas, que trouxe consigo a frenética busca pela
“profundidade” onde precisamente ela não está, mascarando a efetividade da vida em que as
abstratas dualidades se resolvem. A efetividade aqui conclamada está na terrenalidade
inerente à vida dos homens com os homens: a luta entre os homens que produziu as

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abstrações necessárias à reificação do homem pelo homem. Este poder que, antes de
“construir verdades”, como bem viu Foucault, abstrai e é irredutível a uma abstração em
particular, pois compõe o conjunto das abstrações e as investe de verdades. A pista não está
na não-organização em oposição à organização enquanto objeto, nem no inverso. Menos
ainda na busca de generalidade (no sentido da ciência positiva) para se contrapor à
profundidade no particular. Não está, portanto, nas análises ascendentes, descentes e, em
parte, nem na combinada. O argumento aponta para a vida organizada dos homens com os
homens. Quais são seus fundamentos?

3. Fundamentos da vida organizada


Por que o pensamento nos estudos organizacionais é limitado ou definido pelo objeto
empírico “organização” se se trata de uma abstração, de uma abstração que abstrai? Por que,
em adição, estudiosos consideram a organização como o núcleo privilegiado da empiricidade?
O fato de que a vida organizada em nossos dias perpassa inevitavelmente por essas abstrações
de todos os tipos, não pode ser um critério para aceitar que a abstração seja concreta. É
importante não incorrer no equívoco de reduzir todos os elementos produzidos pelo homem às
abstrações. Mas também não quer dizer que apenas o concreto seja apreensível. Como apontei
antes, não se trata de um materialismo vulgar. Mas também, é preciso adiantar, absolutamente
não se trata de um “marxismo nas organizações” (tema-objeto).
Conforme anteriormente, o homem se apresenta abstraído. Ele se apresenta, na relação
com as abstrações, como uma abstração. É dessa maneira que devemos entender a assertiva de
Bauman (1998, p. 10), de que “os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão
de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade” (grifos no original). Isto
não se refere à vida efetiva dos “homens e das mulheres”, pois este “conceito” requer
realização. Trata-se, portanto, de uma abstração de um tipo particular: abstração necessária
que (1) desloca a atenção para a possibilidade do consumo meramente e que, ao realizar, (2)
realiza uma maior dificuldade de entendimento sobre a atividade humana.
Para um início, não é o consumo, este momento da atividade produtiva, da atividade
humana produtiva, a raiz do homem. A questão não é, portanto, entender como os homens na
ordem social estabelecida lidam com os “consumidores falhos” de Bauman (1998, p.24), a
“sujeira”, a partir do ponto de vista da mesma ordem social, da “limpeza”, nem como farão
para a “sujeira virar limpeza”. Em outras palavras, a análise da condição humana, dos
“estranhos”, não deve partir do ponto de vista daqueles que estranham. Isto significa também
que esta condição do homem não pode ser alojada num lado ou no outro de um balancete
financeiro tão abstrato quanto os homens e as mulheres pós-modernos. O daltonismo de
Bauman só lhe permite ver azuis e vermelhos ii e colocar a raiz do homem num momento da
atividade humana como se fosse a atividade humana em si.
Ora, a efetividade da vida humana não é apenas uma questão de graduação da
radicalidade de uma crítica, embora esta radicalidade seja o que permite abarcá-la. É por este
motivo que hoje há tanta confusão nos estudos organizacionais sobre do que se trata a crítica.
Por exemplo, o “foco do sujeito” não deixa de ser “crítico”, porquanto seja capaz de ir além
do profético que emana do homem abstraído. O “foco no sujeito” também não deixa de o ser,
porquanto se livre das máscaras psicanalíticas, psicossociais, sociológico-clínicas que
recobrem e disfarçam o ponto de vista da gestão, do capital (isto é válido para ENRIQUEZ,
1997; GAULEJAC, 2006; etc.). Em geral, conforme a crítica de Marx (1995) a Proudhon em
relação à economia política, isto é, de que o segundo teria feito uma crítica a ela do ponto de
vista dela própria, tanto o “foco do sujeito” quanto o “foco no sujeito” precisam encontrar no
ad hominen a verdade da efetividade da vida humana para, em seguida, superar a mera crítica
à gestão do ponto de vista da própria gestão! Por conseguinte, o foco deve ser para o homem,
já que “para o homem, a raiz é o próprio homem” (MARX, 2005, p. 151); eis a radicalidade

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da crítica e sua dignidade. Isto é importante para a superação dos daltonismos, das
particularidades inexatas, para o reconhecimento da falsidade das abstrações imediatas tais
como “organização”, que permitiram, na história dos estudos organizacionais, tantos
paradigmas, abordagens, imagens, perspectivas, quanto foram necessárias a esta própria
abstração em particular. Ao reconhecer a “organização” como abstração, ao se tomar
consciência deste disparate, o “objeto” deixa de ser a própria abstração.
Para chegar a vias de precisar a vida organizada como objeto e também de precisar ao
menos os elementos importantes contidos nas idéias de Marx sobre este objeto (considerando
os limites impostos em termos de página), um recurso “metodológico” interessante é permitir
com que esses elementos apareçam a partir do tratamento dado (ou não) por outros autores.
Como são muitos e extensos, partirei da passagem de um texto em particular publicado no
Encontro Nacional de Estudos Organizacionais em 2006, que faz referência direta a Marx.
Há muita discussão e embates em torno das idéias de Marx. Mas, nos estudos
organizacionais brasileiros as confusões e distorções passam sem a devida avaliação.
Grzybovski e Klein (2006, p. 3, §5, §6, §7 do tópico dois: “pressupostos filosóficos do
imaginário”), por exemplo, pretenderam mostrar as “contribuições do imaginário
organizacional para os estudos organizacionais” (mais uma vez, tema-objeto). Numa
passagem interessante, de três parágrafos, as autoras iniciam apontando as problemáticas
impostas por análises sobre o social a partir dos métodos das ciências naturais. Argumentam
que a ruptura com este tipo de método “ocorre com os trabalhos desenvolvidos por Karl Marx
e Max Weber”. Daí as autoras derivam duas questões:

Essa ruptura dos elementos de análise do contexto social com métodos das ciências naturais (física, em
especial) ocorre com os trabalhos desenvolvidos por Karl Marx e Max Weber. Diante da complexidade
do mundo, são evidentes as razões pelas quais o paradigma determinista rígido não pode mais
reinar na esfera da análise da sociedade e de suas interrelações. Assim, é preciso repensar a
construção das teorias que sustentam a ciência social, especialmente as teorias da administração e as
funções da empresa (§5, grifos nossos).

Devemos entender aqui que Marx contribuiu, tanto quanto Weber, para o
questionamento do “paradigma determinista rígido” que não permite empreender uma
“análise da sociedade e de suas interrelações” adequadamente. Em seguida, devemos entender
que estes autores, “assim”, podem ajudar em repensar a construção de “teorias que sustentam
a ciência social”, mas principalmente “as teorias administrativas e as funções da empresa”. O
primeiro ponto a ser destacado é a preocupação das autoras sobre a importância de se utilizar
as contribuições de Marx e Weber para as “funções da empresa”, pois “teorias da
administração” em geral são precisamente as que prescrevem como as empresas devem
funcionar. Não obstante, as autoras prosseguem no texto e apontam que:

Karl Marx (1818-1883) acreditava conseguir construir uma sociedade verdadeiramente “humana”
sob a premissa da perfeição do homem. Ao compreender o homem portador de faculdades
essenciais, acreditava na capacidade de superação do estado inferiorizado em que se encontrava e
capaz de fazê-lo alcançar as formas mais altas da criatividade, o pensamento e a ação. Estes são os
conceitos subjacentes com os que Marx julgava e avaliava os sistemas sociais (p. 3, §6, grifos
nossos em negrito).

É verdade que existem elementos de cognição nos textos de Marx, em particular o


elemento teleológico associado ao trabalho. É verdade também que aparecem faculdades
essenciais em relação aos homens; pensar e fazer, por exemplo. Ainda, também é verdade que
existe a categoria “superação”, mas como categoria ontológica por princípio e não como
capacidade meramente. A “premissa da perfeição do homem”, ao contrário, é um total
equívoco. A superação via desalienação não abarca todas as mediações da vida do homem,

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mas as de “segunda ordem” (ver adiante). Isto seria uma visão paradisíaca do mundo e uma
auto-visão messiânica e mística que definitivamente não estão presentes em Marx, mas em
várias interpretações dos seus textos, com ou sem a devida leitura dos textos de Marx. Em
seguida, as autoras apontam que “estes são os conceitos subjacentes com os que Marx julgava
e avaliava os sistemas sociais”. Ora, mas quais são estes conceitos?
Já no parágrafo subseqüente (§7), as autoras expressam que “inúmeros trabalhos foram
escritos por Marx para resolver o problema das ciências sociais”. É preciso esclarecer que “o
problema das ciências sociais” (que são muitos) só foi realmente aparecer e ser colocado
dessa maneira num registro filosófico muito diferente do de Marx (em especial, nas mãos de
Comte e Durkheim). As autoras indicam, na continuidade da frase, que Marx tentou resolver o
“problema das ciências sociais, substituindo-se o fator econômico como dominante por outros
fatores, tais como raça, clima, topografia, idéias filosóficas, poder político”. O despropósito
desta indicação é imenso, não porque Marx tenha sido um economista, mas por indicar que
houve tentativa de uma solução, por meio da “raça”, “clima”, “topografia”, etc., a um
problema que simplesmente não existia. Se houve algum problema, ele esteve relacionado aos
“interesses materiais” (MARX, 1974b), à condição de existência do homem – em seu pensar e
fazer –, e às idéias filosóficas existentes, em especial as de Hegel e Feuerbach (MARX,
1974a;c). Na seqüência do parágrafo elas argumentam que:

Marx (1982) também declara ser a consciência do homem determinada por seu ser social, e assim
mantém um caráter essencialmente mecanicista vendo o homem somente como fruto da atividade
profissional que exercia. Contudo, somente com os trabalhos de Max Weber foi possível elaborar uma
verdadeira teoria geral capaz de confrontar-se com as propostas teóricas de Marx.

A frase do Marx, ao menos aquela presente na edição portuguesa, é: “não é a


consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência” (1974b, p. 136). Marx realmente disso isso, mas em relação a quê
e com qual operatório? Por um lado, a crítica aqui é direcionada a Hegel e ao seu idealismo
místico, especialmente no que se refere à relação entre a sociedade civil e o Estado que, em
Hegel, assume a posição de “demiurgo” da primeira. A positividade do Estado em Hegel
ganha, em Marx (2005), uma negatividade em relação ao seu estatuto de máxima e sublime
realização da razão humana. Tal estatuto concedia um valor autônomo ao Estado em relação à
sociedade civil: o Estado como auto-realização da idéia, da vontade, do espírito. Por outro, a
crítica também se direciona a Feuerbach porque este não entendeu a atividade humana como
objetiva, mas ainda como algo teórico, ideacional, como fica claro nas “teses para Feuerbach”
(1974c). O objeto da crítica de Marx é este leque filosófico e motivada pelos “interesses
materiais” (Lei Punitiva dos Roubos de Lenha) que colocaram em suspeita a racionalidade do
Estado. A questão ontológica construída por Marx (2005) é a de que a sociedade civil é, pois,
o demiurgo do estado. Não só o estado é erigido pela sociedade civil, este “lugar” dos
embates entre os homens, mas também o sistema jurídico, o “processo em geral da vida
social”. A existência do homem não está no Estado, no sistema jurídico, na abstração. A
existência do homem está na sociedade civil, onde se determina o seu ser, seu modo de
existência, a forma efetiva por meio da qual os homens existem. O estado, o sistema jurídico,
etc., não são menos sociais que o gozo, que os sentidos. É por isso que Marx (1974a, p. 16)
também disse que “pensar e ser são pois, na verdade, diferentes, mas, ao mesmo tempo,
formam em conjunto uma unidade”, e que “o homem produz o homem, a si próprio e a outro
homem” (p. 15). Na seqüência da frase aparece que o homem só pode existir em sua forma
efetiva já que é a “própria sociedade que produz o homem enquanto homem”, isto é, não há o
caráter social do homem sem sociedade, e “assim também ela é produzida por ele” (idem). Por
este motivo, ou melhor, a partir desta ontologia, as “forças produtivas materiais da sociedade”
são pura e simplesmente a atividade humana produtiva, a práxis, isto é, como o homem

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transforma a natureza, relaciona-se com os outros e consigo mesmo. Assim os homens não
podem ser o que não são, ou seja, idéia, abstração. É assim também que a consciência, a idéia,
o estado, o sistema jurídico, o gozo, não podem vir antes do ser. Daí é que os homens pensam
o que são. Qual é o mecanicismo disso?
Outro problema na interpretação das autoras foi usar o operatório de “determinação
causal” e atribuí-lo a Marx. O que elas chamam de “caráter essencialmente mecanicista vendo
o homem somente como fruto da atividade profissional que exercia” é, como já mostrei em
parte, desprovido de conteúdo. Por um lado, como já ficou claro, o homem não é fruto da
atividade profissional. O homem social é produto da vida social, da sociedade em que vive, da
sua condição de existência efetiva. Só é possível dar crédito à crítica se acreditarmos que a
atividade profissional estava pronta antes dos profissionais, antes da sociedade. Mas esta
sociedade é uma sociedade determinada, específica em sua particularidade histórica. Por este
motivo, por exemplo, “a consciência sensível do fetichista é diferente da do grego porque seu
modo de existência sensível também é diferente” (1974a, p. 26). E, apesar de “pensar” e “ser”
serem diferentes e formarem em conjunto uma unidade, não significa que se possa isolar um
elemento do ser e fazê-lo corresponder mecanicamente e deterministicamente a um elemento
do pensar, ou que este elemento já esteja isolado por si mesmo pronto para ser mecanicamente
ligado, porquanto a “determinação causal” não pertença ao registro das “múltiplas
determinações”. É preciso, portanto, enfatizar que a “determinação causal”, a operação
mecânica, faz parte das teorias administrativas em geral e das funções da empresa em
particular. Num plano mais diretamente ligado às ciências positivas, as autoras argumentaram,
como mostrei, que Marx (assim como Weber) contribuiu para solapar os métodos das ciências
naturais e seu paradigma determinista rígido. Ora, então Marx recebe das autoras um mérito
que nunca lhe coube! Considerando que as autoras indicaram que Marx possuía um
mecanicismo, e apontaram o próprio Marx como contribuinte para a superação daquilo que
ele mesmo fez, só posso concluir duas coisas: ou que Marx sofria de esquizofrenia ou que as
autoras não conhecem os textos de Marx, pois o fato de possuir uma inclinação hegeliana ou
assumir outra posição crítica em relação às idéias de Marx, não dispensa a necessidade de dar
provas de ter entendido o objeto de crítica. E, outro mais, Weber não esteve assim tão longe
do positivismo e das determinações causais (e.g. DOMINGUES, 2004; HORKHEIMER,
2003).
A partir das dificuldades encontradas nos parágrafos analisados e da própria análise,
despontam-se quatro categorias importantes para precisar a vida organizada como objeto: (1)
a sociabilidade (caráter social), (2) a atividade humana, (3) as mediações de segunda ordem e
(4) a superação ou “transcendência” (Aufhebung). A partir desses quatro “elementos” será
possível, adiante, fazer considerações sobre a condição dos estudos organizacionais em
relação ao pensamento social, às ciências humanas, à filosofia social em geral, e em relação à
administração, esta ciência social aplicada (ou ideologia se for preferido [TRAGTENBERG,
1980]).
A sociabilidade é a universalidade (CHAZIN, 1995). Ao contrário de Hegel que via a
universalidade na idéia, Marx percebeu corretamente que a efetividade da vida humana possui
caráter social. Desenvolve-se, portanto, na sociedade civil antitética entre privados e na
relação com o mundo material. Um elemento importante nesta efetividade é o carecimento
(MARX, 1974a). Os homens carecem, na constituição de sua vida social, de relações com a
natureza, com o mundo material. Carecem evidentemente de outros que também carecem. Daí
é que o homem é carecimento. O próprio carecimento é social, o gozo é social, os sentidos são
sociais. Esta constatação encontra referência na famosa e bela passagem de A Ideologia
Alemã. Os homens se diferenciam dos demais animais, diz Marx, quando desenvolvem seus
“meios de existência”. A partir daí, os homens possuem “consciência”, mas não de tipo puro,

8
porquanto esteja o homem “amaldiçoamente” ligado à efetividade, à natureza, aos outros, à
“matéria”, que aqui:

se apresenta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, ou seja, de linguagem. A linguagem


é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe também para os
outros homens e que, assim existe igualmente para mim; e a linguagem surge como consciência da
incompletude, da necessidade dos intercâmbios com os outros homens. Onde existe uma relação, ela
existe para mim. (...) A consciência, consequentemente, desde o início é um produto social, e o
continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, antes de tudo, mera consciência do meio
sensível mais próximo e consciência de uma interdependência limitada com as demais pessoas e coisas
que estão situadas fora do indivíduo que se torna consciência; ao mesmo tempo é a consciência da
natureza que, a princípio, aparece aos homens como uma força completamente estranha, onipotente,
inexpugnável, com a qual os homens se relacionam de forma puramente animal e diante da qual se
deixam impressionar como se fossem um rebanho; é por isso, uma consciência puramente animal da
natureza (religião natural). (...) Por outro lado, a consciência da necessidade de estabelecer relações com
os indivíduos que o cercam é o início, para o homem, da tomada de consciência de que vive em
sociedade (MARX, 2006, p. 56-7).

Mais uma vez, é por este motivo que os homens pensam o que são. Mas, nesta
passagem de Marx, outras questões são igualmente importantes. A tomada de consciência da
incompletude coloca nos outros, naqueles que me cercam, minha própria “essência”, isto é, a
de que preciso dos outros em meu carecimento; os demais são objeto de meu carimento assim
como sou o deles. Esta consciência é uma consciência de vida em sociedade. Assim, os
homens erguem os meios de existência que estão colocados primeiramente pela própria
natureza, que continua inexpugnável enquanto não for “transformada pela história”, ou seja,
enquanto não for transformada pelos próprios homens. A sociabilidade é, portanto, mais do
que uma “competência”, mais do que um “capital”; é aquilo que define o homem em relação
ao outro, à natureza, aos objetos do mundo sensível. É claro que estes objetos não estão
colocados objetivamente e subjetivamente de maneira adequada ao homem, porque o começo
do homem é o começo da história, assim como é o homem o começo e o fim de todo o
movimento (MARX, 1974a, p.15).
Homem e história; atividade sensível. A este respeito, Chazin (1995) argumentou
sobre a onto-prática representada pela atividade humana sensível, pela práxis, mediadora entre
objetividade e subjetividade, entre atividade ideal e atividade real, “enquanto momentos
típicos e necessários do ser social, cuja potência se expressa pela síntese delas, enquanto
construtor de si e de seu mundo” (p. 397, grifos no original). A onto-prática que Chazin
atribui a Marx encontra sustentação em inúmeras passagens que denotam, inclusive, a não
importância do grau de contraditoriedade entre objetividade e subjetividade, à medida que a
transitividade é mediada pela própria prática em sua falsidade ou verdade, pela “energia
prática do homem”:

Vê-se pois, como somente no estado social, subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo,
atividade e passividade deixam de ser contrários e perdem com isso seu modo de existência como tais
contrários; vê-se como a solução das mesmas oposições teóricas só é possível de modo prático, só é
possível mediante a energia prática do homem e que, por isso, esta solução não é, de modo algum,
tarefa exclusiva do conhecimento, mas uma tarefa efetiva da vida que a filosofia não pôde resolver,
precisamente porque a tomava unicamente como tarefa teórica (1974, p. 19)

Atividade sensível, pois, que constrói e transforma as condições de existência e,


portanto, a própria história. Atividade que é dação de forma, específica, muito próxima ou
muito afastada da sociabilidade. Atividade humana que especifica o ser social, a condição
como se apresenta objetivamente, a relação do homem com a natureza, com os outros e com
ele mesmo. Para o homem, o homem é a raiz do próprio homem.

9
Esta categoria, da atividade sensível, permite apreender a edificação das coisas que
fazem parte deste mundo, das abstrações de todo tipo, de abstrações sobre abstrações. Como
se sabe, muito embora se esqueça com freqüência, a “organização” não é uma invenção do
contemporâneo, como não o são as burocracias, o dinheiro, etc. Trata-se de reconhecer que a
abstração organização recobre e disfarça objetividades, isto é, mediações que estão em jogo
no estranhamento do homem em relação à natureza, ao outro e a ele mesmo. Mediações que
são produto da luta entre os homens e que se tornaram mistificações. São forças abstratas,
representações, transformadas em forças efetivas, ao mesmo tempo em que as forças efetivas,
as relações sociais efetivas, são transformadas em imaginação do indivíduo (MARX, 1974a).
Se entendermos que a relação do homem com os “objetos” que o cercam é realizada por
diferentes tipos de mediações, passamos então a compreender em relação a quais delas Marx
se opunha.
Mészáros (2006) especificou de maneira perspicaz a distinção entre a “mediação de
primeira ordem” e a de “segunda ordem”. Diz ele, com base nos textos de Marx, que a
“mediação de primeira ordem” aparece como uma resolução ontológica ao indicar a atividade
(Tätigkeit) produtiva como tal enquanto um “fator ontológico absoluto da condição humana”
(p. 78). Como indiquei antes, a atividade sensível, a práxis, delineia as condições de
existência ao transformar a natureza, ao implicar na relação entre homens que carecem
mutuamente. A “mediação de segunda ordem” deve ser entendida em relação à de primeira.
Porquanto seja a “mediação de primeira ordem” uma resolução ontológica, ela se coloca
como absoluto “porque o modo de existência humano é inconcebível sem as transformações
da natureza realizadas pela atividade produtiva” (idem). Transcendendo as análises de
Mészáros, esta “mediação de primeira ordem” passa a ser o “critério de verdade” com o qual
Marx avaliou a vida organizada sob a égide do capital, a vida organizada à burguesa. Isto
permitiu a ele compreender, nas palavras de Mészáros, a atividade produtiva absoluta, como o
“mediador na ‘relação sujeito-objeto’ entre homem e natureza, (...) que permite ao homem
conduzir um modo humano de existência, assegurando que ele não recaia de volta na
natureza, que não se dissolva no ‘objeto’” (2006, p. 79). É assim que Marx irá apontar, nesse
sentido, as “mediações de segunda ordem”, “mediação da mediação”, como elementos que
colocam a condição do homem como condição alienada, considerando as especificidades da
forma pela qual a vida organizada à burguesa se apresenta. Assim, o trabalho aparece como
“uma expressão da atividade humana no interior da alienação, da exteriorização da vida como
alienação da vida” (1974a, p. 30); o dinheiro como proxeneta, rameira geral, “para fazer da
representação efetividade e da efetividade uma pura representação” (1974a, p. 37, grifos no
original); a propriedade privada, em associação com o trabalho e com o dinheiro. Dito de
outra forma:
In Capital-Profit, or better Capital-Interest, Land-Rent, Labor-Wages of Labor, in this economic trinity
expressing professedly the connection of value and of wealth in general with their sources, we have the
complete mystification of the capitalist mode of production, the transformation of social conditions into
things, the indiscriminate amalgamation of the material conditions of production with their historical
and social forms. It is an enchanted, perverted, topsy-turvy world, in which Mister Capital and Mistress
Land carry on their goblin tricks as social characters and at the same time as mere things (MARX, 1909,
p. 996-7).

Nesse sentido, como bem viu Mészáros, e em detrimento da “premissa da perfeição do


homem”, Marx não argumentou para uma “negação de toda mediação”. Ao contrário, “uma
rejeição de toda mediação estaria perigosamente próxima do simples misticismo, em sua
idealização da ‘identidade entre sujeito e objeto’” (2006, p. 78). Marx, portanto, opunha-se às
“mediações de segunda ordem”: “trabalho – divisão do trabalho – propriedade privada –
intercâmbio” (idem), mas também a moral religiosa e a moral da economia política (1974a, p.
25), pois ambas são falsas moralidades; e arrisco-me a dizer: esta última que persiste nos
10
nossos dias sob o manto do “consumo”, do “corpo”, do “sucesso profissional e pessoal”,
centrado no indivíduo como um “átomo social” que trabalha e consome.
O confronto entre a “mediação de primeira ordem” e as de segunda permite apreender
que, ao contrário de Hegel, nem toda exteriorização do homem é alienação do homem. O
problema aqui é a exteriorização alienada, o afastamento do homem dele mesmo, de sua
sociabilidade. A tese de Mészáros (2006), segundo a qual a compreensão adequada da
superação ou “transcendência” (Aufhebung) depende da compreensão correta da alienação e
não o contrário, encontra neste ponto uma importante base de sustentação. A desalienação
deve estar associada à superação positiva e prática, e não ideal, das “mediações de segunda
ordem”, da “auto-alienação do homem”, isto é, “como apropriação efetiva da essência
humana através do homem e para ele; por isso, como retorno do homem a si enquanto homem
social, isto é, humano; retorno acabado, consciente e que veio a ser no interior de toda a
riqueza do desenvolvimento até o presente” (1974a, p. 16). Nunca é o bastante esclarecer que
não se trata do comunismo histórico como se passou, nem de um naturalismo infantil, menos
ainda de uma antropologia ou de uma “perfeição do homem”, ainda menos de plena
identidade sujeito-objeto. Mas também não é reforma institucional, aperfeiçoamento, nem
pequenas liberdades ou autonomia nas organizações. Não se trata, portanto, de “foco do
sujeito” ou “foco no sujeito”, mas de ad hominen.
É precisamente neste ponto que vejo a verdade e a falsidade dos estudos
organizacionais. Aqui, como anteriormente, a verdade está em lidar com uma abstração, e a
falsidade em tomá-la como concreta. A organização, enquanto abstração, também é uma
forma de mediação, mas uma espécie de mediação das mediações da mediação. É tão distante
em abstração das relações efetivas do homem, de sua sociabilidade e de sua atividade
produtiva como tal, absoluta, que frequentemente é tomada como sendo equivalente
(organização-sujeito). Não se toma a organização como mediação ligada às de segunda ordem
porque é exatamente daí que deriva. Ou é exatamente sobre as de segunda ordem que se erige
a abstração organização. A abstração organização é, portanto, uma mediação de terceira
ordem. Por isso, a organização a que me oponho é aquela que, como abstração, abstrai o
homem. Não me oponho a toda e qualquer forma de organização da vida que ainda está por
vir, pois seria uma total futilidade. Oponho-me à ingenuidade da “organização substantiva”, à
consideração da emancipação por meio das abstrações.
Deste ponto em diante, torna-se difícil considerar a abstração organização um objeto
privilegiado da “empiricidade”, no sentido concreto e não no sentido do empirismo. O estudo
da vida organizada não deve partir da mediação de terceira ordem, mas da de primeira ordem.
É importante, então, compreender que a abstração organização só pôde aparecer
historicamente por conta do desenvolvimento das mediações de segunda ordem em alienação
da mediação de primeira ordem, de forma que a abstração significa falseamento da realidade
objetiva; conjunção histórica de reificação e falsa consciência. Sem este entendimento corre-
se sempre o risco de cair no subjetivismo, nos palavreados psicanalíticos falsos (não fazendo
referência aqui a toda forma de psicanálise) que nublam a efetividade e deslocam a atenção
para a subjetivação dos elementos concretos. A abstração organização não é, assim, mediação
direta entre o homem e a sociedade. É sim uma mediação das mediações de segunda ordem
que medeiam as relações entre os homens na vida organizada à burguesa. Podemos
questionar a partir disso o abandono da categoria trabalho (assalariado) em nome da “ação
comunicativa”, ou em nome do “consumo como lastro do sujeito”, ao deslocar a atenção para
a relação entre indivíduo e sociedade, com cuja ajuda se extingue as mediações e imputa
questões sociais como questões subjetivas, que exigem a adaptação constante do homem a um
enchanted, topsy-turvy world. Dessa forma, o objeto pode ser a abstração, mas
secundariamente, considerando a efetividade, a atividade sensível, produtiva enquanto tal.

11
Outro risco é a embriagues da particularidade definida pela abstração propriamente
dita. Quanto mais “profundo se vai à particularidade”, quanto mais se crê ver a singularidade,
mais distante se está da relação dialética entre universalidade e particularidade. A fórmula da
imanência de Adorno e Horkheimer (ver ROUANET, 2001), segundo a qual toda totalidade
absoluta é falsa – negando a colocação de Hegel –, explicita a proeminência do universal no
particular. Não significa a preponderância de um sobre o outro, mas a busca pelos “traços ou
elementos” da universalidade no particular, isto é, no meu entendimento, uma questão
dialética. Nesse sentido, a abstração organização em sua particularidade guarda “elementos”
do universal, já que consideramos, agora, tal abstração como mediação das mediações da
mediação. Dessa forma, se a concretude está na sociedade civil, na efetividade da vida dos
homens, não há nada de equivocado em considerar a “verdadeira profundidade” nem na
particularidade nem na universalidade. Como coloca Mészáros, “’específico’ e ‘universal’ não
são opostos entre si, mas constituem uma unidade dialética” (2006, p. 19, grifos no original).
Isto é válido para a compreensão do ser social, “genérico”, tanto quanto em relação aos
produtos desse ser. O perigo da particularidade, da singularidade, é, entre outras coisas, tomar
as “múltiplas determinações” por mera “multiplicidade” de elementos isolados. Assim como o
processo histórico de reificação não permite a apreensão das múltiplas conexões dialéticas
entre os elementos da realidade, assim também o pensamento acadêmico se apresenta
encantado pela singularidade: a abstração organização se torna auto-evidente em si mesma,
com sentidos próprios, com desejos fetichistas, com temores, etc.
Agora temos melhores condições para questionar as análises ascendente, descendente
e combinada. Em relação às duas primeiras, a dialética está ausente, assim como a “mediação
de primeira ordem” e as de segunda ordem. Em relação à segunda, por mais que elementos
dialéticos estejam presentes, a ausência da resolução ontológica acerca da “atividade
produtiva enquanto tal” degenera qualquer dialética, porque na ausência da atividade sensível,
da práxis como mediadora entre sujeito e objeto, descamba-se ou para a proeminência do
sujeito ou para a proeminência do objeto. Dessa forma, como já adiantado antes, as abstratas
dualidades objetivo-subjetivo, passividade-atividade, sensibilidade-espiritualidade, etc.,
continuam a consagrar as disputas intelectuais em torno de “problemas” que não são, como
Marx apontou na segunda tese “Ad Feuerbach”, um “problema” que cabe exclusivamente ao
conhecimento, porque “é na prática que o homem deve demonstrar a verdade, a saber, a
efetividade e o poder, a citerioridade de seu pensamento. A disputa sobre a efetividade ou
não-efetividade do pensamento-isolado da práxis – é uma questão puramente escolástica”
(1974c, p. 57).
É importante dizer que outras questões muito pertinentes não poderiam ser tratadas
neste texto. Isto equivale a dizer que elementos específicos da vida social como o poder, por
exemplo, exigem uma dedicação exclusiva, assim como a ideologia, a produção e o consumo
entendido como um momento da atividade produtiva, e não descolado dela.
Por fim, e para tornar mais claro, argumento que a “vida organizada” pode e deve ser
um “objeto” para os estudos organizacionais, o que também significa o rompimento dos
limites impostos pelo objeto abstrato organização, se for considerado falso seu estatuto
filosófico enquanto abstração. A verdade está então em sua consideração como abstração e
como “mediação das mediações da mediação”, o que exige considerar o homem como raiz do
homem e seu caráter social como início e fim de todo movimento. A dignidade da teoria está,
portanto, em sua radicalidade. Poderemos agora considerar os estudos organizacionais e sua
relação com o pensamento social e a administração.

4. Estudos organizacionais e o que há de ser superado


É difícil negar que, embora estejam historicamente ligados à administração – esta
ciência aplicada de cunho gerencial –, os estudos organizacionais não sejam profundamente

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implicados pelas questões provenientes das ciências humanas em geral. Para exemplificar
aquilo que já é muito bem conhecido, os estudos sobre o poder nas organizações são
inegavelmente decorrentes de diferentes autores das ciências humanas em geral: de Hobbes a
Foucault. Algo semelhante ocorre com os estudos do simbólico, das práticas, das estruturas,
da linguagem, etc. Podemos então considerar que de fato os estudos organizacionais estão
mais associados às ciências humanas, ao pensamento social em geral, do que à administração,
embora as estruturas curriculares digam outra coisa.
A prática da pesquisa e a reflexão nos estudos organizacionais, em relação ao
pensamento social, “funciona”, entretanto, como um tipo de “funil” (para dizerem que
metaforizei), de boca larga e saída bem estreita. Poder nas organizações, cultura nas
organizações, etc.; o tema está na amplitude do pensamento social (a boca) e as organizações,
na saída, do “funil”. Isto tem implicado historicamente a seleção de idéias que interessam, a
bricolagem impensada de autores diferentes e, por vezes, com registros filosóficos muito
distintos, a deformação e, por fim, a “aplicação” às organizações. Vale repetir uma idéia
contida na introdução: o caminho, a operação se apresenta sempre com o tema seguido pelo
objeto, com prevalência do segundo em detrimento da vastidão do primeiro. Ora, em
fundamento, o que distingue os estudos organizacionais da ciência social aplicada?
Estudiosos da área de estudos organizacionais conhecem bem a diferença, mas, do
ponto de vista do pensamento social, esta distinção inexiste. Isto pode explicar as “restrições”
que muitos estudiosos da sociologia, das letras, da filosofia, da pedagogia, da psicologia, etc.,
alimentam em relação à administração e aos estudos organizacionais. Não fazem distinção
entre as duas coisas e crêem que pesquisadores e professores dos estudos organizacionais
pensam como (sujeito-)empresas (pensam). Daí, a análise do discurso empreendida por
estudiosos da organização de formação em administração é vista com muita suspeita. O
mesmo pode ser dito em relação à etnografia nas organizações, porquanto seja necessário ser
antropólogo para fazer etnografia (a lista de impedimentos poderia ser mais extensa).
Estas “restrições” de todas as áreas do pensamento social em relação à administração
são compreensíveis, dado o caráter gerencialista e tacanho, com cuja ajuda mantêm-se as
abstrações – “o braço armado do capital”, para usar a expressão de Aktouf (2004). Já em
relação aos estudos organizacionais elas são no mínimo questionáveis. Contudo, estas
“restrições” aos estudos organizacionais em particular foram erigidas historicamente pelos
próprios estudiosos da área. Contentamo-nos à condição histórica de “funil”.
Um outro indicativo dessas “restrições” se refere aos cursos Stricto Sensu. Em geral,
parece ser menos problemático aos estudantes das ciências humanas ingressarem nos
mestrados e doutorados em administração do que o oposto. Por este motivo, quando vemos
um “administrador” ou estudioso das organizações receber um título de mestre ou doutor em
filosofia, sociologia, psicologia, etc., é digno de mérito; o oposto, demérito.
Não são apenas as “restrições” colocadas por outros. É porque talvez aqui “embaixo
do funil” não só a estreiteza da saída persiste. A freqüente declaração proferida no Encontro
Nacional de Pós-Graduação em Administração, realizado sempre nos melhores hotéis das
capitais, sobre a baixa qualidade dos trabalhos das áreas em geral, e dos estudos
organizacionais em particular, é um sintoma que não será superado enquanto não for superada
essa condição de “funil”. A crítica comum feita aos quantitativistas de que seus trabalhos são
replicações de modelos e constructos já aplicados em outras partes do globo, serve também
aos próprios trabalhos dos estudos organizacionais, porquanto se faz a mesma coisa, mas de
maneira “não-estruturada” e a partir de bricolagens, por vezes, insensatas. Não se cria nos
estudos organizacionais, tanto em terras tupiniquins quanto longe delas, porque “funil” não
cria, afunila. E, curiosamente ou não, o produto não tem sido a seleção das melhores coisas,
mas as piores coisas da seleção.

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Rapidamente se desponta: as questões que estão aquém ou além da abstração
organização não dizem respeito aos estudos organizacionais? Dito de outra forma: a condição
dos estudos organizacionais é ser representada metaforicamente pelo “funil”? Se a resposta
for positiva, isto é, “sim, não diz respeito” e “sim, esta é a condição que nos cabe”, não vejo
motivo qualquer para se questionar a qualidade da produção da área, porque a produção está
ligada a esta condição. Como dito antes, os estudos organizacionais se vinculam, por um lado,
concretamente à administração e, por outro, intelectualmente às ciências humanas. Esta
condição histórica levou a uma forma de operação do tipo “pensar lá e aplicar aqui”. Mas é
verdade também que historicamente os estudos organizacionais têm gradativamente ganhado
certa autonomia em relação à administração, ao menos no Brasil. Se aquela resposta for
negativa, e se homens como Tragtenberg podem hoje ser responsabilizados por essa gradativa
autonomia, talvez seja o momento histórico para a superação prática dos estudos
organizacionais em relação à administração, mas também em relação às ciências humanas,
rompendo, assim, com aquela operação típica. Evidentemente, isso requer uma série de
movimentos efetivos que envolvem inúmeras questões, tais como: em que medida as
estruturas curriculares permitiriam uma aproximação decisiva dos estudos organizacionais em
relação às ciências humanas se mestrandos e doutorandos são “obrigados”, por assim dizer, a
freqüentar as disciplinas sobre as parafernálias das funções administrativas, como marketing,
finanças, produção, recursos humanos? Afinal, os mestrados e doutorados são em
administração. Como realizar isso se alunos da graduação em administração são em sua
grande maioria “treinados a pensar como empresa”, ou melhor, “para a empresa”? É fácil
desconfiar das pequenas intervenções isoladas nas disciplinas ou na estrutura curricular sem
superar o vínculo concreto. De qualquer forma, eu jamais poderia especificar os movimentos
práticos aqui ou em qualquer outro lugar. Seria um tipo de autoritarismo especificar tais meios
de superação. No máximo, este texto pretendeu fazer uma crítica, produzir reverberações.
Por fim, a indicação aqui não é que os estudos organizacionais devam ser equivalentes
às ciências humanas, mas também não é que os estudos organizacionais devam ser diferentes.
Considerando a condição histórica desta área, entre as ciências humanas e a administração,
parece haver hoje uma especificidade peculiar. Ao menos no Brasil, as organizações não são
objetos considerados “nobres”, por assim dizer, entre os estudiosos de outras áreas do
conhecimento. Nesse sentido, os estudiosos das organizações estão em melhores condições de
situar a abstração organização nas conexões efetivas da vida organizada. Se a diversidade dos
estudos organizacionais aponta para uma “zona” de convergência entre o pensamento social e
as organizações, isto deveria ser levado até o seu último limite. As conseqüências não são
previsíveis.

5. Auto-crítica ao autor ou considerações finais


– Vossas críticas possuem mesmo alguma pertinência. Mas no geral as vejo como puro
devaneio. Primeiro, o senhor parece tomar os “estudos organizacionais” como um sujeito,
caindo na armadilha que antes apontou. Segundo, sua análise sobre o que precisa ser superado
aponta para uma aproximação em direção às ciências humanas, de forma tal que não posso
ver qual seria a diferença entre uma coisa e outra. O senhor parece sugerir que a área de
estudos organizacionais migre da administração para as ciências humanas. Isso é um tanto
zombeteiro. Não seria também uma questão de maturidade da área?
– Na verdade, a superação a qual me referi foi em relação à condição de operatório “pensar lá
e aplicar aqui”, que se trata de uma derivação da problemática, antes indicada, sobre a
limitação da relação tema-objeto e da determinação da organização abstração como concreta.
Posso realmente concordar que a idéia de superação desta condição aponta para uma
proximidade maior entre os estudos organizacionais e as ciências humanas, mas não de
qualquer maneira. Tentei mostrar que a vida organizada pode ser um objeto de reflexão e

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mesmo de estudos empíricos em detrimento dos limites impostos pelo objeto organização;
esta herança da administração. Aqui está a contradição dos estudos organizacionais: não estar
lá nem aqui, mas simplesmente estar sendo definido por um objeto abstrato, historicamente.
Entretanto, não estou realmente certo, nem de como operar esta superação, nem de quais
conseqüências isto pode e que provavelmente irá trazer. Mas de forma alguma indiquei esta
migração que o senhor sugere. Em relação à colocação dos estudos organizacionais como uma
espécie de sujeito, na verdade o esforço foi o de indicar, pela idéia de condição dos estudos
organizacionais, não a condição dos estudiosos das organizações, mas a condição efetiva da
prática da pesquisa e da reflexão nessa área. A intenção, e espero ter realizado, foi a de não
colocar os estudos organizacionais ou os estudiosos das organizações no divã. Em relação à
vossa última colocação, digo apenas que, no meu entendimento, maturidade não é uma
questão de tempo, mas de tomada de consciência.
– De qualquer forma, o senhor coloca a problemática para os estudiosos das organizações de
uma maneira que dificilmente eles iriam concordar, ou seja, de que a área é tão limitada ou
limitadora. Penso precisamente o oposto. Penso que os estudos organizacionais são a área
mais abrangente da administração. Além disso, quando o senhor profere vossas críticas
parecem ser menos uma visão coletiva ou compartilhada do que uma verbalização de vossa
condição, em descontentamento particular, pessoal. Tudo indica uma “projeção” do senhor
em relação à área. Em outras palavras, o senhor é que está errado, devendo estar em outro
lugar.
– Não posso de forma alguma concordar com o senhor. Quando fiz referência aos estudos
organizacionais, fiz referência também à definição pelo objeto empírico “organização”. De
todo modo, realmente vejo a abrangência, ou melhor, suas possibilidades efetivas. Mas, de
modo geral, não escolhemos o quê iremos estudar, escolhemos que abordagem dar à “coisa”
que, por sua vez, já está prontamente definida; a “organização”. Minha preocupação não é
tanto em relação aos estudiosos das organizações quanto é pelo objeto que delimita as
possibilidades de reflexão e pesquisa. O fato de que fazer a crítica ao objeto seja também
fazer a crítica aos estudiosos, não incorre em uma escolha, mas em uma crítica necessária. Por
outro lado, realmente não posso saber em que medida esta visão é ou não compartilhada.
Terei que descobrir isto posteriormente. Mas, de todo modo, não posso fazer distinção entre
aquilo que verbalizo e aquilo que sou, pois seria uma ilusão ou no mínimo concordar com
minha própria auto-abstração. Penso sobre a impossibilidade de fazer qualquer estudo
empírico ou, o que é caso, qualquer estudo teor-ético com abnegação, com neutralidade
axiológica. Não quero dizer com isso que a “ciência” deve ou não apontar como os homens
devem viver, mas, pelo menos, não deve negar que está definitivamente implicada com isso.
Caso o senhor esteja correto, serei, como tantos outros foram, objeto de uma psicanálise
normativa.
– Uma última questão. O senhor argumentou sobre a vida organizada e sobre o estatuto
abstrato da organização. Nessa argumentação, terminou por apontar um tipo de marxismo
para as organizações em detrimento de outras abordagens. Isso fica um tanto limitado ante a
diversidade dos estudos organizacionais ou se trata uma aspiração de delimitar.
– Não acho que seja uma questão de escolha entre tantas abordagens. Quando parto do
princípio de que é a efetividade da vida dos homens a resolução ontológica necessária,
preciso, em seguida, perguntar qual outra abordagem favorece em relação a este ponto. Penso
que esta linha de argumentação afasta, não em definitivo, o perigo das ilusões abstratas, das
ficções sobre a preponderância da subjetividade sobre a objetividade e vice-versa, por
exemplo. Como eu disse, não é uma questão de escolha. Por outro lado, jamais poderia propor
um marxismo para as organizações se durante todo o texto a crítica foi exatamente esta, quero
dizer, a superação da relação tema-objeto, do operatório “lá e aqui”. No máximo, poderia

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aceitar é um tipo de marxismo ou das idéias marxianas para os homens da vida organizada
que se encontram abstraídos em abstrações organizacionais, mas isso seria pura redundância.

Referências
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CHAZIN, J. Marx – Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: TEIXEIRA, F.J.S. Pensando com Marx.
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i
E arrisco-me a dizer que para o quarto caso isto também é válido, mas em parte. Este “em parte” será explorado
mais adiante.
ii
“Não há nenhum ganho sem perda, e a esperança de uma purificação admirável dos ganhos a partir das perdas
é tão fútil quanto o sonho proverbial de um almoço de graça – mas os ganhos e perdas próprios a qualquer
disposição da coabitação humana precisam ser cuidadosamente levados em conta, de modo que o ótimo
equilíbrio entre os dois possa ser procurado, mesmo se (ou, antes, porque) a sobriedade e sabedoria duramente
conquistadas nos impedem, aos homem e mulheres pós-modernos, de nos entregar a uma fantasia sobre um
balanço financeiro que tenha apenas a coluna de créditos” (BAUMAN, 1998, p. 10). Não sei como ele faz isso
sem ver o cinza.

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