You are on page 1of 26

12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Capítulo 1
BRIO Follow
Sep 18, 2015 · 27 min read

UMA ESTRADA FANTASMA


VOLTA A ASSOMBRAR
A BOLÍVIA
por BRIO Watchdog

A obra da estrada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos foi acusada de


superfaturamento, falta de transparência na licitação e no nanciamento
do BNDES, que aceitou que a rodovia atravessasse o TIPNIS, um parque
nacional e território indígena. O jornalista Raúl Peñaranda, primeiro
boliviano a receber uma bolsa Nieman da Universidade de Harvard,
mostra como a empresa OAS assumiu o projeto após um acordo político
entre Lula e Evo Morales, que envolvia o nanciamento do BNDES. Não
houve concorrência na licitação. Para Alejandro Almaraz, ex ministro do
governo Morales, a negociação foi feita em uma viagem ao Brasil do vice-
presidente Álvaro García Linera. “Essa circunstância obscura da
aterrisagem da OAS tem a ver com uma viagem, nos primeiros meses ou
semanas do governo Evo Morales.” O projeto desconsiderou aspectos
ambientais e sociais e gerou uma crise entre a Bolívia e a empresa.
Documento do próprio governo brasileiro deixa claro a falta de critérios
técnicos no nanciamento: “A estrada foi paradigmática, pelo que,
valendo-se da experiência do Banco Mundial, conviria revisar
cuidadosamente os parâmetros para a aprovação dos nanciamentos”.
Após protestos, o BNDES se retirou sem desembolsar dinheiro.

. . .

A indígena Rosa Chao sente de longe que algo está errado. Enviada
para ajudar a assar uma carne doada a um agricultor local, ela
estava fora do acampamento ocupado por seus colegas manifestantes

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 1/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

no Território Indígena e Parque Nacional de Isiboro-Secure (TIPNIS),


na Bolívia. Quando estava preparando o carvão para acender o fogo,
ouviu sons irreconhecíveis. Alguns minutos depois tudo fica audível:
sim, o que ela escuta são gritos de socorro, prantos de crianças, insultos
e armas que “vomitam” gás lacrimogêneo e balas de borracha.

Corre com angústia para o acampamento e custa a processar o que vê:


policiais golpeando homens indefesos, arrastando mulheres
algemadas, perseguindo meninos e meninas ainda na tenra idade e
ameaçando jovens assustados, tudo em meio a uma nuvem de balas e
de gás.

Algumas de suas companheiras foram amordaçadas, além de


algemadas com as mãos nas costas e, se os policiais as soltassem,
cairiam com o rosto no chão, de bruços. Em meio à confusão, Rosa
corre para uma pequena montanha e ali um menino com os olhos
suplicantes se alegra ao ver um rosto amigo. Ele teve mais sorte do que
outros que fugiram para campos de espinhos e que, na corrida louca,
sofreram ferimentos profundos.

Mais tarde, ela percebe que não pode ficar muito mais tempo no mato e
se entrega. Juntamente com várias centenas de manifestantes, é
colocada à força em diversos ônibus pelas mãos da polícia. Embora
ainda não soubesse, Rosa era parte de um dos mais impressionantes e
impactantes atos repressivos da política boliviana recente. Denominado
“massacre de Chaparina” (referência à cidade onde ocorreu), a
repressão brutal do contingente da polícia antimotim contra aqueles
manifestantes é um marco nefasto da democracia boliviana e do
governo de Evo Morales.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 2/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Rosa Chao foi uma das líderes da marcha contrária à obra aprovada pelo BNDES, que terminou brutalmente reprimida. Imagem: Felipe Rodrigues

Naquele dia, 25 de setembro de 2011, concluía-se uma etapa da luta


iniciada anos antes por índios das terras baixas contra a construção de
uma estrada através do Território Indígena Isiboro e Parque Nacional
de Seguro, localizado no centro da Bolívia, e maior do que a extensão
de Porto Rico. É uma zona tropical altamente úmida, que tem 170 lagos
e é a segunda maior reserva de água doce da América Latina.

A marcha contra a construção da estrada, que iria atravessar o


território indígena, começou em 15 de agosto, em Trinidad, localizada
a 160 metros acima do nível do mar, no coração da Amazônia boliviana
e onde as temperaturas podem chegar a 32 graus à sombra, em agosto.
A caminhada tinha como objetivo chegar à sede do governo, o que
significaria subir 4.500 metros por meio das montanhas, com
temperaturas abaixo de zero, para descer novamente e alcançar 3.600
metros em La Paz. Acreditava-se que a marcha, que percorreria 596
km, levaria cerca de 35 dias.

A estrada, a que repudiavam os indígenas, de 306 km de comprimento,


tinha sido entregue três anos antes para a construtora brasileira OAS e
tinha um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES). Dos US$ 415 milhões necessários (sem
incluir o pavimento), o BNDES iria fornecer US$ 332 milhões e o
restante seria financiado pelo Estado boliviano. Para o advogado

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 3/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Alejandro Almaraz, ex-ministro de Terras do governo Evo Morales, a


entrada da OAS no país é “obscura”. “Não há processos transparente de
licitação”, afirma ele.

“Essa circunstância obscura da aterrisagem da OAS tem a ver com uma


viagem, nos primeiros meses ou semanas do governo Evo Morales, que
fizeram o vice-presidente Álvaro García Linera e Patricia Ballivián, que
nesse instante era diretora administrativa e financeira do Serviço
Nacional de Estradas.”

Para ex-ministro, chegada “obscura” da OAS tem relação com viagem de vice-presidente. Imagens:
Olé Produções

O banco é uma instituição financeira operada pelo governo brasileiro e


que tem um programa de crédito específico para a exportação de bens e
serviços por parte de companhias do Brasil. Essa rubrica passou a ser
utilizada especialmente na última década como uma plataforma para a
internacionalização de empresas brasileiras, especialmente as do setor
de construção, como OAS, Odebrecht, Camargo Correa e Andrade
Gutierrez.

Empresas originárias do Brasil e especializada em infraestrutura têm se


beneficiado com contratos milionários de obras públicas na América
Latina, em grande parte graças aos acordos firmados entre aliados
políticos de Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil entre 2003 e
2010. Muitos projetos são bons negócios para as empresas e aumentam
o fluxo de dinheiro para o Brasil.

Um estudo da consultoria Abeceb, da Argentina, mostra que entre 2001


e 2010 houve um salto de 1.185% nos financiamentos do BNDES para
empresas brasileiras atuarem em outros países. Além disso, o
documento afirma que uma das principais vantagens dos créditos
fornecidos pelo banco brasileiro é apresentar menos limitações do que,

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 4/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

por exemplo, o Banco Mundial, que tem exigências mais fortes do


ponto de vista social e ambiental para seus empréstimos.O banco diz
que o salto é menor.

A política de financiamento do BNDES também faz parte da política


externa do Brasil. As obras financiadas buscavam a consolidação da
infraestrutura da América do Sul, promovendo a integração da região.

Apesar do volume significativo de recursos públicos envolvidos,


durante muitos anos pouco se soube sobre esses negócios. O BNDES
argumentava que os dados separados por projetos quebram o sigilo
bancário e afetam a competitividade das empresas brasileiras no
exterior.

No dia 2 de junho, no entanto, o banco informou que passará a divulgar


dados sobre os financiamentos feitos no exterior. A partir de agora,
haverá informações sobre os projetos, valores envolvidos, garantias e
anos para o pagamento. A decisão coincide com esta investigação,
iniciada por BRIO em 26/03/2013. Naquela data, por meio da Lei de
Acesso à informação, BRIO pediu “cópia ou acesso à tabela de
financiamentos para exportação entre 2006 e 2013, separado por país
de destino, empresa que recebeu o financiamento, valor do
financiamento, ano da assinatura do contrato e projeto financiado”. As
informações divulgadas agora são muito semelhantes às solicitadas
pela reportagem.

A primeira resposta ao pedido de BRIO veio em abril de 2013. “Dados


individualizados de operações de financiamento à exportação que
revelem informação comercial sigilosa, a exemplo do valor do
financiamento, que tem relação direta com o preço do produto
exportado, elemento de natureza estritamente comercial, privativa e
estratégica do exportador, não podem ser fornecidos em razão do sigilo
a que o BNDES está obrigado”.

BRIO perseguiu todas as instâncias de recurso previstas pela lei. Oito


meses após o pedido inicial, a área técnica da Controladoria-Geral da
União elaborou parecer argumentando “tratar-se de informação de
natureza pública (seja ela ostensiva ou não), cujo acesso é alçado
constitucionalmente à categoria de Direito Fundamental”. Traduzindo:
os dados deveriam ser informados ao BRIO. O documento da CGU
esclarecia, ainda, que “não há um liame lógico e claro entre a
divulgação da informação e a perda de posição das empresas brasileiras
no mercado internacional”.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 5/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Mesmo assim, o Ouvidor-Geral da União, José Eduardo Romão, deu


parecer contrário ao dos técnicos da CGU. Ele entendeu que o BNDES
“conseguiu esclarecer minimamente” os seus argumentos e negou a
divulgação das informações. Escreveu o ouvidor: “Mesmo
considerando que o BNDES poderia ter esclarecido detalhadamente o
denominado nexo de causalidade entre a divulgação das informações e
o risco à competividade (uma vez que divulga informações
semelhantes, como acusa o parecer), entendo que a razão de negativa
apresentada tem respaldo normativo nos termos indicados”.

O caso seguiu, então, para um conselho de ministros do governo


federal. Entre outros, estiveram na mesa os titulares de Casa Civil,
Justiça, Relações Exteriores, Fazenda, Planejamento e Defesa. A
negativa final foi enviada em 31 de março de 2014. Os ministros
mantiveram os dados sob sigilo, mas recomendaram que o BNDES
inserisse nos futuros contratos uma cláusula alertando as empresas que
informações sem sigilo “poderão ser divulgadas” pelo banco.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 6/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

A confidencialidade das transações também foi a norma na Bolívia — o


BNDES nunca divulgou oficialmente os valores do projeto ou
informações sobre as negociações com o governo local e a empresa
brasileira.

O TIPNIS é a segunda maior reserva de água doce da América Latina. Imagem: Agencia AFKA

Mas uma investigação jornalística e documentos obtidos por BRIO


demonstram que o contrato para a construção da estrada tinha uma
série de irregularidades. Primeiro, a construção da estrada estava em
um território indígena, mas não fora aprovada por consulta popular,
conforme estipulado pela Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, da qual a Bolívia é signatária. Em segundo
lugar, não foi previamente estabelecido o trajeto exato no qual a
estrada seria construída. O caso entra para os anais de obras irregulares
com um crédito milionário liberado sem que se soubesse exatamente
onde a estrada passaria.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 7/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Em terceiro lugar, o trecho dois da estrada, justamente o que passaria


por dentro do parque, não tinha licenças ambientais exigidas pelas leis
do Brasil e da Bolívia. Em quarto, o governo determinou o custo da
obra sem ter um estudo de viabilidade técnica, como atestou Gonzalo
Maldonado, então presidente emérito da associação de engenheiros de
Cochabamba. Quinto: foi “imaginada”, em 2008, sem prazo para
acabar, e com um custo de US$ 415 milhões. Sexto, o preço acordado
não incluía a pavimentação, que era para ser fornecido pelo Estado
boliviano a um custo de US$ 28 milhões de dólares. Sétimo, o preço
estabelecido para a obra é quase o dobro do custo médio de estradas
similares no país.

O percurso começa em Villa Tunari, uma cidade que está no coração do


Chapare, a região que mais produz folha de coca na Bolívia e é o berço
de apoio político do presidente Morales. A rota, oficialmente chamada
Villa Tunari-San Ignacio de Moxos, teria três seções. A primeira, a
partir do sul ao norte, deveria unir Villa Tunari e Isinuta, com um
comprimento de 47 km. A seção II penetraria no território indígena.
Essa é a seção que não tinha traçado definido, nenhum estudo técnico e
não tinha uma licença ambiental. Sua distância aproximada de 177 km
juntaria Isinuta e Monte Grande del Aperé. O terceiro e última uniria
essa cidade com San Ignacio de Moxos.

. . .

OAS, uma relação de amor e ódio.

A relação entre o governo boliviano e a empresa OAS passou em três


anos de um amor tórrido ao mais profundo desprezo. Para entender
como uma obra negociada como um projeto considerado politicamente
prioritário por Lula e Evo transformou-se em uma crise diplomática,
social e política é preciso montar uma cronologia precisa dos fatos.

Um passo fundamental para a entrada da OAS na Bolívia foram os


entendimentos que levaram a empreiteira a substituir Queiroz Galvão,
expulso da Bolívia por acusações de não cumprimento do contrato na
construção da estrada Tarija-Potosí, que tem 80 km de extensão. A obra
foi iniciada em 2003. A negociação entre os governos da Bolívia e do
Brasil tentava evitar o rompimento do contrato de financiamento do
BNDES para essa obra e os inevitáveis atrasos na execução. Em 2009, o
projeto foi repassado para a OAS, com um valor de US$ 226 milhões
que deveria incluir reparos na estrada.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 8/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Lula e Evo Morales assinam acordo de cooperação para a estrada, em 2009. Imagem: Aizar
Raldes/AFP/Getty Images

Ocorre que a Tarija-Potosí era considerada pouco lucrativa. Quem


acompanhou de perto a negociação garante: isso implicava que a OAS
seria compensada com outros contratos, de modo a compensar o
prejuízo inevitável na obra deixada pela Queiroz. Para interlocutores
brasileiros e bolivianos, o que nascera como solução técnica para um
problema político criado pela expulsão da Queiroz Galvão tornou-se
um plano complexo e obscuro que misturava negócios privados,
interesses políticos e o dinheiro do BNDES.

A estrada através do TIPNIS teve um orçamento muito maior, os US$


415 milhões mencionados, o que poderia “compensar” o negócio pouco
atraente da Potosí-Tarija, estrada de 364 km de comprimento. Em
seguida, a empresa também ganhou outra estrada, a Potosí-Villazón,
onde mostrou ineficiência e atrasos.

O negócio começou efetivamente no dia 25 de julho de 2008, quando


Patricia Ballivián, em nome da Administradora Boliviana de Estradas
(ABC), presidiu a abertura de envelopes após o convite a empresas
internacionais para participação na construção da estrada em TIPNIS.
No entanto, não havia muito suspense durante o evento porque
Ballivián tinha apenas um envelope para abrir. Todos sabiam que a
única oferta tinha sido feita pela OAS, o que incluía um empréstimo do
BNDES de US$ 332 milhões (80% do total), deixando os outros 20%
(US$ 83 milhões) restantes a serem financiados pelo Estado boliviano,
além da pavimentação por US$ 28 milhões.

No dia 1º de agosto de 2008, Ballivián concedeu a construção de 306


quilômetros à OAS. O contrato foi assinado em 4 de agosto em Ishinuta,

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 9/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

no Chapare, na presença do presidente Evo Morales. Um mês depois, os


presidentes Morales e Lula assinaram o acordo de financiamento da
obra. No dia 1º de abril de 2009, o Conselho de Ministros aprovou o
chamado Decreto Supremo 062, autorizando o “convênio subsidiário”
de crédito do BNDES. Em 15 de fevereiro de 2011, o governo boliviano
e o BNDES assinaram oficialmente o contrato de empréstimo e, em
maio, a Assembleia Legislativa ratificou a medida por lei. A obra
poderia começar. O presidente ordenou que tivesse início em 3 de
junho. As grandes máquinas da OAS que estavam paradas na região
começaram a trabalhar.

O processo havia demorado principalmente porque o governo não


conseguia obter a aprovação da licença ambiental. Ativistas em favor
dos direitos da terra intervieram. O ex-vice-ministro de Meio Ambiente
Juan Pablo Ramos, e o ex-Diretor de Meio Ambiente, Luis Beltrán,
estavam relutantes em liberar a documentação por um longo tempo e
retardaram o processo. Em julho de 2010, eles renunciaram a seus
cargos alegando que as autoridades tentaram forçá-los a assinar as
licenças ambientais. Em agosto daquele ano, a nova vice-ministra,
Cinthia Silva, deu licenças para os incisos I e III, mas não para o trecho
que corta o parque. Ter aprovado o crédito sem uma licença para essa
seção foi uma das muitas irregularidades.

Outra causa da demora foi que, em 2008, quando Ballivián fez a


abertura dos envelopes, não tinha desenhado um plano que indicasse
os passos a serem seguidos: formalizar o crédito do BNDES, aprovar
uma lei específica e, como foi dito, contar com a licença ambiental.

A relação de amor do governo com a OAS durou três anos. Nesse


período, os porta-vozes de Morales defenderam a empresa a todo custo,
negaram a existência de sobrepreço, justificaram que não haveria
nenhum problema no trecho que iria atravessar o território indígena e
referendaram a capacidade técnica da empresa.

“A OAS tem mais acesso a Evo que eu!”, chegou a dizer o então ministro
de Obras Públicas, Walter Delgadillo, a um representante da embaixada
do Brasil, no começo de 2011. Em tom de desgosto, o ministro disse
que não suportava as pretensões da empresa.

Em agosto de 2011, mês em que os indígenas iniciaram sua marcha,


Lula viajou até a Bolívia em um jato privado da OAS para se reunir com
Morales e tentar evitar a crise. Não teve êxito.

Pois assim como houve amor, depois houve desdém.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 10/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Em agosto, a marcha começou, e três dias depois da repressão de


Chaparina, 28 de Setembro de 2011, o governo brasileiro decidiu
congelar crédito. Na segunda-feira, 9 abril de 2012, o presidente
Morales deu uma guinada de 180 graus na sua posição anterior e
enviou um pedido de rescisão de contrato, indicando algo menos
controverso: a empresa não tinha avançado o suficiente nas obras da
estrada. Afinal, o país estava em guerra contra essas obras. E já não
havia o financiamento para ela.

Evo Morales visita o Tipnis: embaixada do Brasil tentou resolver crise com a OAS e recomendou revisão de parâmetros para aprovação de nanciamentos.
Imagem: Agencia AFKA

A OAS terminou na pior posição possível. Já não era alvo de críticas


apenas por parte de indígenas, ambientalistas e líderes da oposição
boliviana, mas também das autoridades. A empresa já não tinha
condições estruturais de se defender. Diante da crise, o governo
brasileiro tentou usar suas últimas cartas para ajudar a construtora. O
então embaixador brasileiro na Bolívia, Marcel Biato, se reuniu com a
ex-ministra do Planejamento Viviana Car, para tentar resolver algumas
questões pendentes. A OAS observou que já tinha reembolsado, de

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 11/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

recursos próprios, a soma de US$ 100 milhões, que procurou recuperar


uma vez que o contrato havia sido suspenso. O objetivo da reunião foi
tentar reduzir as perdas.

A reunião, registrada em documento enviado para Brasília e obtido


pelo BRIO, tinha como pauta tratar de “pendências relacionadas a
projetos financiados pelo BNDES”.

No documento, o embaixador brasileiro informa quatro pendências do


BNDES no país e sinaliza que havia tentado mandar recados da OAS
para a ABC (Administradora Boliviana de Estradas) para tentar, ao
menos, destravar o dinheiro de ressarcimento após a rescisão do
contrato da rodovia de TIPNIS. A OAS cobrava a devolução do dinheiro
que ela própria já havia gastado, já que as verbas do banco brasileiro só
seriam liberadas após a comprovação com notas fiscais.

A conversa entre o embaixador brasileiro e a representante do governo


boliviano deixam claro a falta de critérios técnicos do projeto.

“Sobre a estrada entre Villa Turani e San Ignacio Moxos, informei que,
conforme havia sido acordado, a OAS já havia entregado à ABC sua
proposta para a conciliação de contas com vistas ao ressarcimento de
valores à empresa, derivado da rescisão antecipada unilateralmente
pela ABC do contrato. A OAS queixa-se de ausência de resposta por
parte da ABC”, diz a mensagem diplomática obtida por BRIO.

Mais à frente na comunicação, o embaixador registra que acompanhava


com “interesse” o financiamento do Banco Mundial para estradas e
afirma que “apesar do rigor, [eles] tinham o mérito de assegurar o
melhor andamento dos projetos e de proteger os entes envolvidos”.

A continuidade do raciocínio de Biato mostra que, na visão do


representante do Estado brasileiro na Bolívia, os empréstimos do
BNDES não primam pelo rigor. “Afirmei que a experiência com a
estrada de [TIPNIS] foi paradigmática, pelo que, valendo-se da
experiência do Banco Mundial, conviria revisar cuidadosamente os
parâmetros para a aprovação dos financiamentos”.

Segundo o embaixador, a ministra concordou com o desejo de ter


“critérios mais estritos e acompanhamentos rigorosos” em futuras
obras.

Para o banco, “os procedimentos adotados pelo BNDES, de


cumprimento da legislação local, e a cautela demonstrada pelo Banco
(não foram realizados desembolsos) permitiram que não houvesse

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 12/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

nenhum tipo de perda com o cancelamento da operação nem prejuízos


para a comunidade local”.

Já a OAS não respondeu aos pedidos de informação. A empresa, que


em 2015 entrou com pedido pela Lei de Falência, foi em 2012 a terceira
maior de construção civil no Brasil.

Na Bolívia, a estrada de TIPNIS não era o seu único problema. A


empresa recebeu fortes críticas de autoridades locais e nacionais sobre
os atrasos na construção das estradas Potosí-Tarija e Potosí-Villazón. O
governo chegou a ameaçar encerrar ambos os contratos e cobrar as
garantias acordadas com a empresa. As duas estradas mencionadas
tiveram um custo de US$ 226 milhões.

. . .

O sobrepreço, a teimosia e o anúncio de uma maldição.

José María Bakovic, morto em 2013, foi um dos principais engenheiros


da Bolívia. Tendo trabalhado quase duas décadas no setor de
infraestrutura do Banco Mundial, ele foi persuadido pelo ex-presidente
Jorge Quiroga a voltar à Bolívia para ser o presidente do Serviço
Nacional de Estradas (SNC), mais tarde chamada de Administradora
Boliviana de Estradas (ABC). Dirigiu a entidade até Evo Morales chegar
ao poder.

O novo governo, precisando se diferenciar do passado, promoveu


acusações contra Bakovic por razões pueris e ordenou, em 2008, sua
detenção. As acusações de irregularidades que serviram de justificativa
para a prisão não convenceram entidades da sociedade civil e os seus
advogados defenderam que elas eram sem sentido ou improcedentes.
Ainda que vários municípios e outras entidades locais tenham iniciado
os julgamentos, os advogados de Bakovic disseram que o governo
manipulava os processos.

Bakovic denunciou, a partir de sua cela na prisão de San Pedro de La


Paz, onde passou quase um ano, que a estrada iria atravessar TIPNIS
com quase US$ 200 milhões de sobrepreço. Ele disse ainda uma frase
que marcou o país: a de que a estrada se converteria em uma
“maldição” para Evo Morales. Era setembro de 2008.

Em uma entrevista em 2012, disse Bakovic: “Queiroz Galvao, Patricia


Ballivián y OAS fizeram um acordo para liberar a primeira empresa de
suas obrigações e entregar sem licitação a obra à segunda. Essa entrega
seria parte de um pacote em nível plurinacional, com a inclusão de

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 13/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Potosí — Uyuni e Villa Funari –, e San Ignacio de Moxos, que o MAS


teria comprometido com a OAS como pagamento do aporte que teria
sido feito por essa empresa às campanhas políticas de Lula e Evo”.

Em artigo recente, intitulado “Evo, TIPNIS, OAS e Lava Jato”, o


antropólogo Winston Estremadoiro, um dos mais importantes da
Bolívia, questionou em sua famosa coluna “a política governamental
com os bilhões de dólares que Lula da Silva levantou para que o Brasil
favorecesse a OAS com o financiamento”. Faz referência à Operação da
Polícia Federal brasileira que levou o ex-presidente da OAS para a
cadeia, em meio a uma investigação de corrupção envolvendo todas as
maiores construtoras do Brasil.

Depois da denúncia de Bakovic, mas ainda três anos antes da


construção da estrada explodir nas mãos de Morales, houve várias
denúncias de superfaturamento da obra. Sem um estudo final foi difícil
estabelecer a magnitude desse custo excessivo, mas no geral foi
estimado entre 100 e 200 milhões de dólares por especialistas e
associações de engenheiros.

Se estimava que o custo de US$ 1,44 milhão por quilômetro era


totalmente desproporcional e que não deveria ser superior a US$ 750
mil, o valor médio para estradas com complexidades similares. Já a
média nacional é ainda menor: US$ 550 mil por quilômetro.

O presidente da Sociedade de Engenheiros da Bolívia-Cochabamba


(SIB), José Méndez, disse que, após um estudo realizado por sua
instituição, o sobrepreço era de pelo menos US$ 100 milhões. Por sua
parte, o presidente emérito da Associação de Engenheiros de
Cochabamba (Asieme), Gonzalo Maldonado, assegurou que a estrada
não deveria ter um orçamento maior que US$ 265 milhões, o que
significa sobrepreço de US$ 151 milhões. Juan del Granado, ex-prefeito
e ex-deputado boliviano, coincidiu com Bakovic e denunciou que o
trabalho tinha custos excessivos de US$ 200 milhões.

Ainda assim, o custo financeiro foi considerado menor do que o


ambiental. Ambientalistas afirmaram insistentemente que o parque e
território indígena seriam totalmente destruídos se estrada de alto
tráfego atravessasse seu núcleo.

O TIPNIS está localizado em uma zona de inundação da Amazônia, que


fica alagada boa parte do ano, mas o local também tem colinas, no sopé
da Cordilheira dos Andes. Todos os rios atravessam a área do Oeste ao
Nordeste. Portanto, a estrada cortaria o fluxo de água, afetando todo o
equilíbrio ecológico.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 14/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

No parque, vivem 108 espécies de mamíferos, um terço de todo o país,


incluindo os grandes felinos como a onça-pintada, vários macacos e
tamanduás, golfinhos de rio popularmente conhecidos como botos,
além da capivara, o maior roedor do mundo, espécie de rato gigante de
60 centímetros de altura e um metro de comprimento.

Foto aérea da região do TIPNIS: parque abrange 10.910 quilômetros quadrados, o dobro da área da Holanda. Imagem: Agencia AFKA

O parque abrange 10.910 quilômetros quadrados, o dobro da área da


Holanda, e abriga ainda 470 espécies de aves, quase o mesmo número
de aves da Europa, que vão desde pequenos beija-flores, de poucos
centímetros de tamanho, até o gavião-real, que, com uma envergadura
de dois metros, é uma das maiores aves de rapina do mundo e
proporcionalmente um dos animais mais fortes da Terra (levanta e leva
durante um voo até três vezes o seu próprio peso). Macacos, preguiças,
cobras e até mesmo pequenos jacarés compõem a fauna.

A região também tem 39 variedades de répteis, 53 tipos de anfíbios e


cerca de 200 espécies de peixes. Sua riqueza florestal é ainda mais
impressionante, com três mil espécies de árvores e outras plantas
superiores, incluindo tajibo, o ipê amarelo, cedro e o mogno, quase
completamente extintas no resto das Américas.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 15/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Usando modelagem de computador, especialistas em meio ambiente


relataram em 2011 que a construção da estrada significaria a
destruição de cerca de 610.000 hectares de floresta em um período de
18 anos, ou seja, 43% da extensão total.

De acordo com o estudo, feito pelo Programa de Pesquisa Estratégico


da Bolívia, uma clareira normalmente se estende a uma distância de
três a 15 km em ambos os lados de uma estrada. Em seguida, o
aumento da população, o comércio e o próprio transporte acabam
afetando áreas de até 50 quilômetros nos lados da rota.

Por que essa rota?

Uma estrada que ligue Villa Tunari, em Cochabamba, até San Ignacio
de Moxos, em Beni, foi pensada desde o período colonial, mas foi
mesmo estudada seriamente a partir dos anos 90 do século passado.
Em 2003, o engenheiro Bakovic solicitou uma opção de estudo, mas na
fronteira leste com o parque, para evitar entrar no núcleo dele.

A Bolívia é um país de mais de um milhão de quilômetros quadrados,


com a menor concentração de estradas da América do Sul. Uma nação
que se estende desde os quatro mil metros de suas terras altas a oeste e
com a Floresta Amazônica a leste. Tem uma população de apenas dez
milhões de pessoas que dão a menor densidade populacional por
quilômetro da região. Ela necessita de estradas para o seu próprio
desenvolvimento. E precisa desesperadamente. Mas por que a estrada
tinha que ser dessa forma?

Como território indígena e parque nacional, o TIPNIS é praticamente


desabitado. Cerca de 6.000 índios vivem por lá. A parte sul das
fronteiras TIPNIS, como se disse anteriormente, faz fronteira com o
Chapare, o maior produtor de coca da Bolívia e um dos líderes da
América do Sul. A parte norte é uma região desabitada e
economicamente inativa, exceto por uma produção pecuária não
extensa.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 16/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

A cidade de Villa Tunari, início da estrada que cortaria o TIPNIS, é o coração da região que mais produz folha de coca na Bolívia e berço político de Morales.
Imagem: Agencia AFKA

Entretanto, o presidente Morales e seu governo lançaram-se cegamente


na construção de uma obra que, aos olhos de bolivianos, não era
justificada pelo custo ambiental, político e financeiro. O governo
deveria tirar o pé do acelerador e evitar o conflito quando este ficou
iminente, mas preferiu redobrar a aposta. Defendeu o acordo com o
BNDES, negando o sobrepreço e atestando a qualidade do trabalho da
OAS.

A teimosia das autoridades para levar adiante o trabalho era tão


incompreensível que começaram a surgir todo tipo de teoria da
conspiração: que o Brasil queria a estrada para expandir sua influência
na Bolívia (o que não faz sentido porque a estrada não se junta com
qualquer outra rumo ao Brasil); que o governo queria levar sua
influência para Santa Cruz, a cidade que concentra votos opositores a
Evo, e unir à zona andina com as chamadas terras baixas (o que não se
sustenta porque são áreas economicamente sem importância); que Evo
permitiria a expansão do cultivo de folhas de coca no parque (o
governo tem, de forma eficaz, reduzido a coca no Chapare e não teria
sentido incentivá-la em outras áreas); Que a obra seria feita para
recolher, com o sobrepreço, o financiamento às campanhas eleitorais
do partido no poder, o MAS (também não faz sentido porque essa força
política ganhou, em outras ocasiões, as eleições sem esses recursos).

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 17/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Por fim, que construir a rota seria uma forma de pagar favores políticos
que a OAS tinha com Lula, aliado de Evo. Quem sabe a resposta correta
seja simplesmente a mentalidade de Evo: quanto mais a oposição se
coloca contra algo, mais ele se empenha em fazer do seu jeito.

. . .

Uma marcha “ghandiana” emociona o país.

A VIII marcha indígena boliviana começou perto de Trinidad, no Estado


de Beni, em 15 de agosto de 2011, pouco mais de dois meses após o
início oficial da construção. Indígenas do TIPNIS, das etnias Yuracaré,
Xamã e Yuki, haviam se reunido várias vezes para discutir a situação e
decidiram que, antes de a construção começar, o Estado boliviano
deveria realizar a “consulta prévia”, para respeitar assim, como já
observado, a Convenção 169 e também por se autoproclamar um
governo com duas características: defensor dos direitos dos povos
indígenas e protetor da Pachamama, a chamada Mãe Terra.

Desde o início, os indígenas de TIPNIS não se opuseram à estrada, mas


ao traçado. Eles estavam dispostos a negociar um trajeto alternativo
que atravessaria o território pela fronteira oriental, como Bakovic havia
sugerido em 2003. Sentiam que a estrada poderia ser benéfica para o
desenvolvimento da região, mas se penetrasse no centro do território
indígena, o frágil equilíbrio ecológico dessas paisagens exuberantes
seria permanentemente danificada. Os rios não iriam mais fornecer
peixes para o almoço, árvores não dariam sombra e frutos e plantas não
poderiam ser utilizadas como medicamentos.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 18/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Homem participa da marcha contra a estrada, em 2011. Imagem: Agencia AFKA

O insistente e tedioso discurso do governo de que a estrada traria


“progresso” para a população do território e que iria melhorar a
qualidade da educação e da saúde, além de aumentar a renda da
população não seduziu. Então, os líderes indígenas insistiram que era
com “consulta prévia ou nada”. Mas o governo se recusou a convocar
essa consulta e o presidente, desafiante, disse a seus opositores que a
rota seria construída “querendo ou não”.

Os indígenas da chamada Cidod, que reúne os grupos nativos de terras


baixas da Bolívia, em coordenação com grupos sociais bolivianos das
terras altas, finalmente convocaram a marcha.

Começando em Trinidad, localizada a 160 metros acima do nível do


mar, no coração da Amazônia boliviana, o ato tinha como objetivo
chegar à sede do governo, que fica a 4.500 metros de altitude, já nas
cordilheiras, com temperaturas abaixo de zero, para depois descer
novamente e alcançar os 3.600 metros de La Paz. Acreditava-se que a
marcha levaria cerca de 35 dias.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 19/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

A caminhada, de 596 km, seria levada ao cabo por várias centenas de


índios, além de ativistas que apoiaram o protesto e voluntários que se
ofereceram para ajudar. Os indígenas, e outros movimentos sociais
bolivianos, usam as marchas, um protesto pacífico, sempre para exigir
suas demandas. O método tem sido classificado como “gandhiano”, por
se basear na privação e sacrifício e evitar a violência para atingir um
objetivo maior.

Durante a repressão à marcha contrária a estrada, crianças foram separadas de seus pais e algumas foram consideradas desaparecidas por dois dias. Imagem:
Agencia AFKA

Em 1990 foi feita a primeira marcha indígena, também de Trinidad


para La Paz. Como consequência o parque Isiboro Seguro, criado em
1965, foi declarado Território Indígena. Em 1990, o presidente Jaime
Paz Zamora recebeu os indígenas nos arredores de La Paz e aceitou
quase todas as suas exigências: que os territórios indígenas das terras
baixas fossem oficialmente reconhecidos pelo Estado e que eles fossem
consultados antes que os governos empreendam obras que afetem suas
riquezas.

Entre a primeira e a oitava marchas, vários setores da sociedade


passaram a exercer essa forma de protesto, incluindo o então aguerrido
líder cocaleiro Evo Morales, que exigia respeito para a folha de coca e o
fim do domínio dos Estados Unidos na luta contra o tráfico de drogas.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 20/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Todavia, como presidente, Morales se mostrou relutante em falar com


os manifestantes e, em geral, o seu governo pressionou e assediou-os
durante toda a marcha, seja com acusações e abuso verbal, ou com gás
lacrimogêneo e balas de borracha, como aconteceu no 25 setembro, em
Chaparina.

Poucos dias antes daquele evento, agricultores pró-governo decidiram


bloquear a ponte Chaparina para parar a marcha. Nos longos dias em
que ficaram bloqueados, esses agricultores também impediram o
acesso à água limpa, tanto para os manifestantes quanto para as
crianças, criando uma crise alimentar e de saúde. Horas antes da
repressão, o governo convocou jornali2stas para a cidade vizinha
Yucumo, supostamente para dar uma conferência de imprensa. Na
verdade, mais tarde isso se tornaria claro, o objetivo era evitar registros
de brutalidade policial. Mas por acaso, dois dos operadores de câmara,
dos 20 que estavam em Yucumo, voltaram mais cedo. E suas imagens
impressionantes foram transmitidas por todo o país no mesmo
domingo.

Uma vez desencadeada a repressão, para evitar a violência, muitos


manifestantes esconderam-se na floresta. As crianças foram separadas
de suas mães. Algumas delas foram consideradas desaparecidas por
dois ou mais dias. Rosa Chao e várias centenas de manifestantes foram
presos e forçados a embarcar nos ônibus que a polícia tinha contratado.
“Para o Brasil, não importa se a gente morrer”, diz Rosa ao BRIO.

Rosa Chao diz que o protesto não era contra a estrada, mas contra o trajeto. Imagens: Olé Produções

Ônibus lotados de manifestantes foram levados para o leste de San


Borja, com a ideia de, posteriormente, levá-los a seus lugares de
origem, mas a população da cidade, com a notícia da repressão,
bloqueou a estrada, queimando toras, o que forçou os ônibus a ir mais
para o norte, na cidade de Rurrenabaque. Eles chegaram lá à noite; na

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 21/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

madrugada seguinte o governo decidiu que aviões Hércules, alguns


solicitados da embaixada dos EUA, fossem a essa cidade para buscar os
manifestantes.

As pessoas, ainda enfurecidas, tomaram a pista, impedindo a chegada


das aeronaves. O governo, atordoado, libertou centenas de mulheres,
homens e crianças em Rurrenabaque. A grotesca repressão gerou
reação tão incomum e espontânea das cidades vizinhas que nem o
presidente Morales nem seus ministros deram explicação das cinco da
tarde, hora da operação policial, até a manhã do dia seguinte. Foram
16 horas sem governo.

Evo Morales, o vice-presidente Álvaro García Linera e o ministro de


governo Sacha Llorenti negaram ter dado a ordem para agir e disseram
que a polícia iniciou a repressão após uma “ruptura de comando” e
asseguraram que souberam dos fatos somente após a “informação dos
jornalistas”. Llorenti e todos os policiais acusados dos fatos foram
isentados de qualquer responsabilidade. A popularidade do governo
caiu no chão.

Nos dias seguintes, os índios recuperaram as forças. Atendidos por


médicos voluntários, receberam suprimentos alimentares dos cidadãos
em todo o país. E retomaram a marcha. Venceram a parte mais difícil, a
subida ao cume, e chegaram a La Paz em 19 de outubro, um mês mais
tarde do que o previsto. Lá, foram recebidos por centenas de milhares
de pessoas nas ruas, que os aplaudiram, abraçaram e beijaram.
Acredita-se que 600 mil dos 800 mil habitantes da cidade tomaram as
ruas para saudá-los. Na história da Bolívia, não houve antes, e talvez
nunca volte a existir, uma demonstração de afeto com essas
características.

Em uma reunião tensa na mesma noite, entre os líderes da marcha e o


presidente Morales, no Palácio do Governo, ele prometeu não construir
a estrada. Foi a maior vitória dos movimentos sociais contrários a Evo e
maior derrota do governo em seus nove anos. A popularidade do
presidente estava baixíssima.

Morales promulgou depois uma lei nesse sentido, em 24 de outubro de


2011, denominada “inviolabilidade”. Os indígenas sinalizaram que a
norma tinha, em realidade, o objetivo não só de proibir a estrada, mas
de castigá-los e impedir qualquer atividade econômica. Por exemplo,
no parque havia operadores turísticos, que compartilhavam seus
ganhos com as comunidades. Elas foram expulsas pelo governo depois
da aprovação da lei.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 22/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Mas não por muito tempo.

Poucos dias depois, mudou de ideia e aprovou uma lei sobre “consulta
prévia” (consulta posterior, neste caso), em que, havendo resultado
positivo, a estrada seria construída. A “consulta posterior” foi liderada
pelo Ministério das Obras Públicas e, após um processo controverso,
que incluiu a divisão de instituições indígenas, a perseguição de seus
líderes, a doação de presentes para as comunidades no meio do
processo, concluiu, em dezembro 2012, um relatório que dizia que os
habitantes de TIPNIS, mesmo após a marcha, desejavam a estrada. O
governo então rescindiu a lei da “inviolabilidade”.

. . .

A morte de um engenheiro e uma maldição pendente.

Em sua longa carreira, Morales mostrou ser uma pessoa que não desiste
nunca. Isso ficou demonstrado em seu programa de governo
apresentado nas eleições de outubro de 2014, quando venceu para um
terceiro mandato. Apesar dos problemas enfrentados pela construção
da estrada em TIPNIS, ela aparece novamente como uma de suas
prioridades para os próximos anos.

Entre 2008 e 2013, a situação legal do engenheiro Bakovic, que havia


previsto que a estrada através do parque e da reserva indígena se
tornaria a maldição de Evo, não melhorou. Ele continuou a denunciar
as irregularidades da estrada e outras obras construídas pelo governo.
Em 2013, havia acumulado 73 ações judiciais incentivadas pelo
governo, todas por supostas irregularidades durante o seu mandato à
frente da ABC. Algumas vezes era chamado pelos juízes a aparecer nos
tribunais no mesmo dia e hora, mas em cidades diferentes.

Podendo voltar para os EUA, onde vive parte de sua família, Bakovic
decidiu ficar para defender-se e tentar limpar o seu nome. Contratou
um grupo de advogados e assistiu a todas as audiências ordenadas pela
justiça. Passava grande parte do tempo nelas ou viajando de um lugar
para outro no país para atendê-las, além de responder jornalistas, que
pediam sua avaliação sobre as polêmicas construções espalhadas pelo
país.

O que não fez foi ouvir seus médicos ou sua filha Kalica, que pediam
para ele reduzir um pouco seu estilo de vida e não assistir às sessões do
tribunal na altitude de La Paz, porque sofria de um grave problema
cardiovascular. Mas Bakovic insistiu em sua tentativa de provar que era
inocente das acusações.

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 23/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

Devido à doença do cliente, seus advogados pediram aos promotores


que ele não fosse obrigado a depor a 3.600 metros de La Paz. Mas,
forçado, ele viajou. Em outubro de 2013, durante uma sessão do
tribunal, ele sentiu-se mal, sofreu uma parada cardíaca e morreu
poucas horas depois.

Apesar dos problemas enfrentados na construção da estrada pelo meio


do TIPNIS, o projeto voltou ao programa de governo de Morales nas
eleições de outubro de 2014, quando foi eleito para seu terceiro
mandato. Figura novamente como uma das prioridades do governo.

Hoje, a China aparece como favorita para financiar o trabalho, não


mais o BNDES, segundo informou o ministro René Orellana em maio
de 2015, antes de viajar para a Ásia para negociar a assinatura de um
acordo, que incluiria o financiamento da rota. Em 5 de junho, Morales
disse no Chapare que a estrada será realizada. No terceiro mandato de
Evo, que termina em 2019, será possível saber se a maldição de Bakovic
será cumprida ou não.

. . .

Leia a seguir o capítulo 2:


Compra na mira do FBI.
Documentos inéditos obtidos
por BRIO mostram que a
compra de aviões Embraer pela
Austral Lineas Aéreas, da
Argentina, é investigada pelo FBI e pelo Departamento de Justiça dos
Estados Unidos, além de SEC (Securities and Exchange Commission).

. . .

Publicado originalmente em 9 de junho de 2015, em http://brio.media

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 24/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 25/26
12/06/2019 A MÃO INVISÍVEL DO BNDES NA AMÉRICA LATINA – BRIO STORIES – Medium

https://medium.com/brio-stories/a-mão-invisível-do-bndes-na-américa-latina-81bfcd8154a9 26/26

You might also like