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da Bahia.
Resumo
Este trabalho de pesquisa teve como objetivo estudar o ajeun, especificamente o rito de
comensalidade e partilha em um terreiro de Candomblé, juntamente com o conjunto das
expressões simbólicas que o envolve e compõe. A ênfase recairá sobre os significados e
sentidos que envolvem o ato de cozinhar para os orixás. Buscando contribuir nas
reflexões sobre a comida e a sua importância para a religião dos Orixás. Compartilhar
do mesmo alimento em grupo é um ato socializante, um exemplo é a comida distribuída
no intervalo das grandes festas públicas no candomblé. Desta forma, este trabalho parte
da noção de comensalidade, ato de comer junto ou partilhar o alimento, tomando como
base as práticas rituais para a elaboração da comida dos orixás, a qual terá seu repasto
dividido com os convidados e a família de santo, durante os festejos. A cozinha afro-
brasileira é objeto de muitos estudos, desde a época em que Manuel Querino (1851-
1923) escreveu a Arte Culinária na Bahia,em 1928, incluindo os livros de Sodré
Vianna, Cadernos de Xangô, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Donald Pierson,
Deóscoredes dos Santos, Roger Bastide também falaram sobre a comida de santo sem,
contudo, tratar especificamente da comensalidade e das expressões simbólicas
relacionadas à comida de santo.
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Mestrando no PPGSA/IFCS da UFRJ.
artigos da Revista Brazileira, para a qual redigiu um prefácio abordando a importância
da obra.Rodrigues, no capítulo IV – Cerimônias do Culto Fetichista: Candomblés,
Sacrifícios, Ritos Funerários – nos informa que “chamam-se candomblés as grandes
festas públicas do culto yorubano, qualquer que seja a sua causa”, e que “são chamadas
de dar de comer ao santo”, consistindo essencialmente em práticas de sacrifícios.
(RODRIGUES, 2006 p.343) Sobre o sacrifício Rodrigues apresenta uma relevante
interpretação:
Entre os negros bahianos, como entre os seus ascendentes de Guiné, o
sacrificio chegou a essa phase do seu aperfeiçoamento ou evolução em
que, instigado pelo desejo de fazer economias, o crente substitui o
todo péla parte. Isto é, destina-se ao santo o sangue ou uma parte das
visceras dos animaes, sendo o corpo servido aos donos da festa e seus
convidados. (RODRIGUES, 2006 p.343)
Parece ter sido, mesmo, Manuel Querino (1851-1923) o primeiro a falar sobre a
comida de santo com propriedade e um pouco mais de profundidade. Como nessa
passagem de Costumes Africanos no Brasil em que descreve o peji: “Num dos dias da
semana varre-se o santuário, substitui-se as águas das quartinhas, renova-se as comidas
dos pratos. Cada invocação tem sua comida especial: Omolu alimenta-se de orobó e
pipocas; Xangô de caruru, e assim por diante”. (QUERINO, 1988, p.38). É interessante
a observação que Querino trás de que tais cultos:
No parágrafo seguinte, discorre acerca do ritual que denominou Inhame Novo relatando
o tributo de homenagem a Oxalá, santo principal do Gontois: “logo em seguida
sacrificam um caprino, que é cozido juntamente com o inhame, não sendo permitido o
azeite-de-dendê, que é substituído por limo-da-costa. Retirada do fogo a refeição é
distribuída pelas pessoas presentes, que depois se retiram”. (QUERINO, 1988, p.39)
Ainda na mesma página nos apresenta o que chamou de dar comida à cabeça:
Na edição que tive acesso, além das notas de Artur Ramos, possui notas de Raul Lody.
Dentre elas, a nota de número 56 complementa a descrição de Querino:
É importante salientar que nesta edição as notas organizadas por Lody podem levar o
leitor ao equívoco, pois reuniu as notas de Querino junto às suas, fazendo com que se
tenha dúvida sobre a autoria da nota algumas vezes. Segundo Vivaldo da Costa Lima:
“Manuel Querino é um autor que merece, senão necessita de uma avaliação crítica
sistemática, pela diversidade dos temas de que tratou em sua obra admirável” (LIMA,
2010, p.87). Lima atuou no resgate da importância de Manuel Querino, através de
conferências e palestras no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA), ao lado
de Cid Teixeira, Thales de Azevedo e Waldir Oliveira, nas décadas de 1970 e 1990. A
Arte Culinária na Bahia escrito em 1922 e com publicação póstuma em 1928 é
indiscutivelmente o primeiro trabalho sobre o tema até então ignorado ou relegado à
categoria de exótico. Nele Querino anunciava a cozinha como alimentação
culturalmente postulada de um povo. (LIMA, 2010.)
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Grifo do autor
através do elemento africano. O qual alterou profundamente as iguarias portuguesas
“com a sua condimentação requintada de exóticos adubos [...], resultando dali um
produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excele a
justificativa fama que procede a cozinha baiana” (QUERINO, 2006, p.21). Pois fora o
africano, segundo o autor, que introduziu o azeite de cheiro (dendê), o camarão seco, a
pimenta malagueta, o leite de coco na culinária da Bahia. Querino registra uma bebida
que no passado parece ter sido bastante famosa: “do dendezeiro era extraído um vinho
conhecido como vinho de palma ou vinho de dendê, através de uma incisão na parte
superior do tronco, que possibilitava o escoamento da seiva por um pedaço de bambu
para o interior de uma cabaça ali amarrada”. (QUERINO, 2006, p.32)
Alapatá – Acarajé.
Abalá – Abalá.
Olelê –
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Fundadora do terreiro Ilê Axé Opo Afonjá. (Salvador, 1869 / Salvador, 1938)
Maimane –
Angú – Preparado com arrôz, com milho, com inhame ou com fructa.
Deoscóredes dos Santos, ou Mestre Didi (1917-2013) – como era conhecido por toda
a gente da Bahia – publica em 1962 uma monografia com o título Axé Opô Afonjá:
Notícias Históricas de um Terreiro de Santo da Bahia. Que marca uma separação com
as produções literária até aquele momento sobre o candomblé, como afirmou Pierre
Verger no prefácio da referida obra: “mas nenhum dêles é, como Deoscóredes dos
Santos, nascido na ‘seita’, nem é como êle membro de direito, indiscutível e
indiscutido”. (DIDI, 1962, p.11)
Filho consanguíneo de Mãe Senhora, afamada iyalorixá da Bahia, e iniciado na infância
por Mãe Aninha, fundadora deste terreiro. Mestre Didi descreve o padê de Exu e as
festas do calendário litúrgico do terreiro. Relata, com a reserva ética de falar somente
sobre o que era possível de tornar público. Desta forma, com o devido cuidado,
informou sem prejudicar o caráter secreto das coisas ligadas aos “fundamentos” do
terreiro de candomblé – essa reserva tinha bastante importância para o povo de santo na
década de 1960. Assim, comunica ao leitor, os animais utilizados nos sacrifícios e os
pratos servidos nos intervalos da festa. Em 1988, publica uma segunda edição, revista e
ampliada, na qual dá continuidade a narrativa histórica do terreiro.
A mãe-de-santo (ou Iyalorixá) Olga do Alaketu fornece informações que outrora seriam
consideradas como limitadas às categorias iniciáticas, contudo como ela afirmou: “essas
coisas podem ser ditas e sabidas porque o que tem força mesmo é o fundamento”
(COSTA LIMA, 2010, p.8-9). Esta afirmação é complementada por Vivaldo da Costa
Lima: “Fundamento que é o conceito último do conhecimento teológico do candomblé,
associado às complexas cadências dos rituais ‘de santo’, da tradição ancestral revivida
no cotidiano dos terreiros”. (COSTA LIMA, 2010, p.9)
Costa Lima ao abordar ebó que de modo geral é determinado pelo jogo de búzios, o tipo
de sacrifício que deve ser feito, a comida que deve ser preparada e o animal que se deve
imolar. Divide o sacrifício em duas amplas categorias: a que constitui ou provocam
festas e a dos sacrifícios propiciatórios, nas situações de crise. Na primeira categoria, a
comida é partilhada, primeiro pelos santos e depois pela comunidade de fiéis e
visitantes presentes à festa. Na segunda categoria, o sacrifício e a comida servem para
purificar, pagar promessas ou redimir ofensas. O autor publicou, ainda, uma série de
artigos relacionados à antropologia da alimentação e à comida de Santo. (LIMA, 1999;
LIMA, 2010a; LIMA, 2010b).
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Antônio Milena/ABr - Agência Brasil. Mãe Olga, Gilberto Gil (Ministro da Cultura na Época) e Mãe Stella no Ilê Axé
Opo Afonjá.
Os sacerdotes africanos, conhecedores dos mitos e dos ritos
de seu povo, ali restabeleciam, reconstituíam, por assim dizer,
suas igrejas - os templos, os santuários que congregavam a
comunidade de fiéis iniciados. E com o culto e tudo o mais que
envolve uma religião grandemente ritualizada - vieram os
sacrifícios e as oferendas, na forma do que Bastide viria a
chamar a cozinha dos deuses. (LIMA, 1999, p.322)
Esse artigo foi originalmente preparado para uma das quatro aulas proferida por Costa
Lima na Fundação Casa de Jorge Amado em setembro de 19885.
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Obs.: Na terceira aula, tratarei dos aspectos simbólicos da cozinha ritual dos candomblés e das
mudanças e criações que vem naturalmente ocorrendo na dieta sacrifical dos terreiros. (p.33)
do consumo promocional do turismo, mas sobretudo, a comida ritual
dos sacrifícios e oferendas do candomblé.
Raul Lody (1952-) apresenta no livro Santo também come: estudo sócio-cultural da
alimentação cerimonial em terreiros afro-brasileiros uma relação de 150 alimentos dos
terreiros de religião de matriz afro-brasileira (LODY, 1979). Nesta obra, apresenta
brevemente as características de cada um. Contudo, não menciona o contexto em que
essas comidas são empregadas, para quais orixás, voduns, inquices ou encantados são
ofertadas. Em diversos momentos do texto indica o local de onde recolheu a informação
– Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Alagoas.
Fábio Lima publicou, em 2010, uma segunda versão do seu livro Quartas de Xangô, na
qual inclui um novo capítulo sobre a comida de santo.
Lima refere-se à antropóloga Maria Eunice Maciel (2001) ao dizer que “a cozinha é, por
excelência, o local da passagem do estado de natureza para a cultura, na domesticação
do fogo” (LIMA, 2010, p.76). Para em seguida remeter-se ao triângulo culinário de
Lévi-Strauss (1965): “a cozinha, o simbolismo da cozinha e das maneiras à mesa é uma
linguagem, um meio de comunicação, um código complexo das estruturas inconscientes
que permitem compreender cada sociedade”. Afirma que “a cozinha do candomblé é o
local da abundância, da fartura”. (LIMA, 2010, p.77). Segundo Lima, a cozinha (Ilé
Idana) está sobe responsabilidade da iyabassé e de outras egbomi agbá – aquelas com
mais de trinta anos de iniciação, nas palavras do autor: “Nos terreiros de candomblé a
cozinha é considerada como a casa da vida, do fogo, o Ilé Idana, estando sob os
domínios de Xangô e Exu, por ser o espaço do movimento, da dinâmica e da
transformação”. (LIMA, 2010, p.77).
A festa do Olubajé
No dia 27 de outubro de 2014 foi realizada a festa do Olubajé no terreiro Ilê Axé Opo
Afonjá. A seguir, apresento trechos de entrevista realizada com ebômi6 Cida, a Otun
Dagã do terreiro, posto, ou cargo que ela própria define como: “A dagã é para organizar
tudo, de iaô ao ajeum [...] e todos os títulos tem otum e ossi, lado direito e lado
esquerdo”. Neste caso, ebômi Cida é a otun dagã do terreiro.
Então vai estar ela ali dizendo: - você botou muito azeite, muito
camarão. Porque tem também o toque, nada é exagerado, na
quantidade. E ela tem essa experiência da quantidade: - não bote mais
senão vai ficar mais vermelho. Então isso ai já é profissão da iabassê
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Filha de santo com mais de sete anos de feitura, confirmados.
mesmo. Todo mundo sabe cozinhar, na cozinha, mas imagina uma
cozinha, todo mundo mandando. (ebômi Cida, entrevista realizada em
13/06/2014)
O ato de ingerir os alimentos preparados pelas yabassés reforça a união das pessoas que
tem o mesmo objetivo e as mesmas crenças religiosas (LODY, 1999), é possível
relacionar está ideia à afirmação feita por ebômi Cida:
Ainda nas palavras de Cida: “Então, cada festa é uma comida diferente. A única que
tem certo mesmo é o amalá, que se coloca por ser Xangô o dono da casa. Então, em
todas as festas a gente coloca o quiabo”. Contudo a festa do Olubajé apresenta uma
particularidade em relação a esta regra acima descrita: “menos no Olubajé. Porque o
olubajé já é servido na folha. Então o quiabo ali na folha vai melar tudo. E só serve
mesmo as comidas de Omulu, Nana, Oxumarê e Ewá”.
O olubajé, das festas todas que se realizam no terreiro, é uma das mais concorridas,
muita gente da comunidade do entorno vem participar:
Na noite da festa eu fiquei auxiliando na montagem dos pratos, na verdade, não eram
pratos e sim folhas grandes de mamona dentro das quais estavam os diversos pratos
oferecidos aos presentes na festa. Nesta ocasião pude perceber que as filhas de santo
mais velhas, as ebômis, preocupavam-se em saber se os visitantes haviam comido.
Mesmo que ficassem elas próprias sem alguma das comidas ou viessem a comer
somente no final. Neste banquete foram partilhadas diversas comidas:
Por fim, título deste trabalho – ARÁAYÉ A JE NBO – vem da música cantada na festa
do Olubajé, cuja tradução significa: Povo da terra, vamos comer! “O Olubajé chama o
povo, os vizinhos pra comer, o cheiro vai longe! Alimenta toda a terra. Tanto que
quando se acaba de comer, se coloca aquelas folhas todas num balaio e é despachado no
mato no outro dia.” (ebômi Cida,entrevista realizada em 01/12/2014)
REFERÊNCIAS
BASTIDE, Roger.
1978. O candomblé da Bahia (rito Nagô). São Paulo: Brasiliana.
CARNEIRO, Édison.
1987. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint142.
LIMA, Fábio.
2009. Quartas de Xangô. Salvador: Editora Uneb.
2014. A Cozinha de Xangô na Diáspora. (no prelo)
LODY, Raul.
1979. Santo também come: estudo sócio-cultural da alimentação cerimonial em
terreiros afro-brasileiros. Recife: Artenova.
1977. Alimentação Ritual. Ciência & Trópico. Recife, Instituto Joaquim Nabuco de
Pesquisas Sociais, 5(1): 37-47. jan./jun.
QUERINO, Manuel.
2006 (1928). A Arte Culinária na Bahia. Salvador, BA: P555 Edições.
1938. Costumes Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
PIERSON, Donald.
1971. Brancos e Pretos na Bahia (estudos de contato racial), São Paulo, Editora
Nacional.
RAMOS, Arthur.
1934. O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1934.
1979. As Culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Ed Nacional, 1979. 248p.
2012 [1998]. Nota sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no
Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Edusp.