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AS AGONIAS DO LIBERALISMO IMMANUEL WALLERSTEIN Encontramo-nos em um triplo aniversdrio: o 25° aniversario da fundagiie da Kyoto Scika University, em 1968, 0 25° aniversdrio da revo- lugao mundial de 1968 ¢ o 52° aniversdrio do exato dia, ao menos segundo ‘o calendério norte americano, do bombardeio de Pearl Harbor pela esqua- dra japonesa. Iniciarei apontando o que penso que cada um destes ani- versdrios representa! A fundagiio da Kyoto Scika University é um sfmbolo de um dos mais importantes desenvelvimentos na histéria do nosso sistema mundial: a extraordindria expanso quantitativa das estruturas universitérias nos anos cingilenta ¢ sessenta.2 Num certo sentido, este periodo foi o da culmi- nagio da promessa iluminista de progresso por meio da educagio. Em si mesmo, isto foi algo maravilhoso, e que celebramos hoje, aqui. Mas, como intitas coisas maravilhosas, teve suas complicagdes € seus custos, Uma das complicagées foi a de que a expansiie do ensino superior produziu um grande ntimero de gracuaclos que insistiam em empregos ¢ saldries condi- Zenles COM sell Status, é CoMegou a surgir alguma dificuldade em respon- der a esta demanda, pelo menos tio pronta e¢ completamente quanto foi formulada. O custo foi o custo social de manutengdo desta educagio supe- rior expandida, o que era apenas uma parte do custo do bem-estar em geral para o significativamente ampliado estrato médio do sistema mundial. Este custo ampliade do bem-estar comegaria 4 pesar para os tesouros estatais e, em 1993, discute-se no mundo todo a crise fiscal dos Estados. * "The Agonies of Liberalism. What Hope Progress?" New Left Review 204, mango - absil de 1994, pp.3-17. Tendugiio de Simone Rossi Pugin. T Esta palestra fot proferida durante 0 25° aniversdsio da fundagdo da Kyoto Seika University, em OT de dezembro de 1993 2 Ver Meyer, Folin W, et alli. "The World Educational Revolution, 1950-1970". in Meyer, JW. ¢ Hannan, M.T, Natiowa! Developuent 1980-1970. Chicago, 1979. LIB LUA.NOVA BP 34-94 Isto nos traz ao segundo aniversdrio, aquele da revolugao mundial de 1968. Esta revolugdo iniciou-se na maior parte dos paises, mas nfio.em to- dos, no interior das universidades. Uma das quest6es que serviu de catalisa- dor foi sem diivida a siibita ansiedade destes futuros graduados quanto as suas perspectivas de emprego. E claro que este fator egofsta nfo foi o foco principal da explosdo revoluciondria, mas apenas um sintoma a mais do pro- blema genérico, a preocupagéo com o contetido real de todo o conjunto de promessas contidas no cendrio iluminista de progresso— promessas que, na sua superficie, pareceram realizadas no perfodo posterior a 1945. E isto nos traz ao terceiro aniversdrio, o ataque a Pearl Harbor. Foi este ataque que trouxe os Estados Unidos @ Segunda Guerra Mundial como um participante formal. Mas a guerra nao foi principalmentecatre.o Japioe os Estados Unidos, o Japdo, se me permitem dizé-lo, foi um jogacor de segundo n{vel neste drama global,coscu ataque, um evento menorem uma batalha de grande duragao. . guerra foi fundamentalmente entre a Alemanha os Esta- dos Unidos, e¢ vinha sendo, de fato, desde 1914, uma guerra continua, uma “guerra de trinta anos" entre os dois principais contendores pela sucessiio da Gri-Bretanha como poder hegeménico do sistema mundial. Como sabemos, os Estados Unidos venceriam esta guerra, se tornariam hegeménicoseseriam, com isso, os que presidiriam ¢ triunfo mundial das promessas iluministas, Assim, organizarei minhas observagGes a partir desse conjunto de temas, caracterizados por meio destes trés aniversdrios, Discutirei primeira- mente aera de esperanga e luta pelos ideais iluministas, de 1789 a 1945. Em seguida procurarei analisar a eva de realizagio das esperangas iluministas, esperangas que foram, no entanto, falsamente realizadas, entre 1945-1989, Em terceiro lugar, voltarei 4 era atual, o "Perfodo Negro”, iniciado em 1989 e que continuard por possivelmente meio século. Finalmente, tratarei das es- colhas que se apresentam diante de nds —agora, e também logo mais. AS FUNGOES DO LIBERALISMO A primeira grande expressio polftica do [luminismo, em todas as suas ambigilidades, foi sem dtivida a Revolugao Francesa. O que foi afi- nal esta RevolugHe é uma questie que se tornou, em si mesma, uma das grandes ambigtiidades da nossa era. O Bicentendrio na Franga em 1989 foi a ocasiao de um importante esfergo para substituir, por uma nova interpre- tago deste grande acontecimento, a hd muito dominante "interpretagda so- cial", tida agora como fora de moda.3 3 Para uma excelente c bastante detalhada descrigo dos debates intelectunis sobre o bicente- nério na Franca, ver Kaplan, Steve, Adiew 89, Paris, 1993 AS AGONIAS DO LIBERALISMO 119 A Revolugao Francesa em si mesma foi o ponto final de ur lon- go processo, nio apenas na Franga, mas em toda a economia-mundo capi- talista como um sistema histérico. Daf boa parte do globo, em 1789, ja se encontrar inserida neste sistema historico por trés séculos, durante os quais a maioria das suas instituigdes-chave haviarn sido estabelecidas ¢ consoli- dadas: a axial divisio do trabalho, com uma transferéncia significativa de mais-valia de zonas periféricas para zonas centrais; 0 primado da recom- pensa para aqueles operando ne interesse de uma intermindvel acumulagio do capital; o sistema interestatal composto pelos chamados Estados sobe- ranos, 0S quais entretanto eram constrangidos pela estrutura ¢ pelas “‘re- gras" deste sistema interestatal; ¢ a crescente polarizagio deste sistema mundial, nfo apenas econdmica, mas social, e que estava no limite de tor- nar-se também demografica. O que ainda faltava a esse sistema mundial, contudo, era wma geocultura legitimadora, As doutrinas basicas estavam sendo forjadas pe- los te6ricos do Huminismo no século XVIII (e ainda antes disso), mas se- riam socialmente institucionalizadas apenas com a Revolug&o Francesa. Assim, 0 que a Revolugio Francesa fez foi desencadear apoio pliblico, ¢ alé mesmo clamor, para a aceitagdo de duas novas visGes mundiais: a mu- danga politica entendida come algo normal ¢ nio excepcional; ¢ a sobera- nia residindo no "povo" e nfo em um soberano. Em 1815, Napoledo, her- deiro e protagonista mundial da Revolugdo Francesa, foi vencido, seguindo- se entdio uma suposta "restauragéo" na Franga e em todos os lugares onde os anciens régimes haviam sido derrubados. Mas a restauragao nao pode, & nao poderia, desfazer a vasta aceitagao dessas visdes mundinis, ¢, a fim de enfrentar a nova situagiio, foi criada a trindade das ideologias do século XIX — o conservadorismo, o liberalismo ¢ o socialismo —, que fornece- ram a linguagem dos debates polfticos subseqiientes no interior da economia mundial capita * Das trés ideclogias, entretanto, foi o liberalismo que emergiu triunfante, e tio cedo quanto o que pode ser entendido como a primeira re- yolugo mundial desse sistema, a revolugao de 1848.5 Isto porque o libera- lismo foi o mais capaz de fornecer uma geocultura vidvel para a econo- mia-mundo capitalista, legitimando as outras instituigées tanto aos olhos ise. deste processo, ver o meu “The French Revolution as a World-Historical king Social Science: The Limits of Nineteenti-Century Paradigms. Cam- 4 Para uma and Event", in Unthi bridge, 1991. $0 processo pelo qual o liberalismo ocupou o centro do palca e transformou as seus dois concorrentes, conservadorismo ¢ socialism, em virtuais subordinadas, ao invés de opo- nentes, € discutido no meu “Trois idéologies on une seule? La problématique de la moderni- 1€" in Geneses 9, 1992.

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