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textos

Roland
Barthes
e o signo
fotográfico
Rodrigo Fontanari

Alexandre Camanho

112 REVISTA USP • São Paulo • n. 97 • p. 112-118 • MARçO/ABRIL/MAIO 2013


OS SIGNOS PERDEM “Para caminhar é preciso fixar etapas; no
ROLAND BARTHES final, o que interessa é o próprio caminho, e
os desvios que nele se encontram. Pesquisar
Ao analisar o mundo barthesiano, o pri- como se soubesse o que se busca; levantar,
meiro questionamento que se faz é: afinal, universalmente, hipóteses; adotar, cientifi-
quem foi Roland Barthes? Ao propor essa camente, métodos; efetuar, diligentemente,
pergunta, outras tantas inquietações são sus- o trabalho. Mas saber que a hipótese é uma
citadas: um teórico da literatura? Um crítico miragem, o método uma bengala que a certo
literário, teatral, cultural? Um semioticista, ponto se pode jogar fora, e que todo trabalho
analista das imagens e da moda? Um teórico que vale a pena se nutre do desejo e por ele
da fotografia? Um filósofo? Um conselheiro se justifica”.
sentimental? Resta ainda uma outra impor-
tante questão: em que corrente intelectual Muito desse “anarquismo” barthesiano
situá-lo? Foi um marxista? Um estruturalis- tem a ver com seu modo de pensar o ensino,
ta? Um subjetivista? E, afinal, a que gênero sempre vinculado à figura da mãe que enco-
pertencem seus escritos? Jornalístico, ensa- raja, incita, cerca. Um ensino guiado pelo pa-
ístico, romanesco, didático? radigma do mestre que, na literalidade, nada
Uma possível resposta é que Roland ensina, mas desperta o sujeito para seu saber.
Barthes foi tudo isso sucessivamente e ao Tal fato coloca em desconforto ainda
mesmo tempo. Tal é seu vertiginoso deslo- quem ousa investigar o pensamento de Bar-
camento teórico e temático que o levou a se thes, um dos maiores pensadores franceses
definir, como está expressamente exposto do século XX, pois não faltam a eles críticas
nas primeiras linhas de Aula, como “sujeito que alvejam principalmente aqueles que bus-
incerto” e – por que não dizer? – um sujeito cam delinear uma provável linha mestra em
impuro. Um pensador que não estabeleceu torno de algumas temáticas que foram suas
para si amarras metodológicas. Trilhou ca- obsessões. Não obstante, sabemos o quanto
minhos (metodologias) interessantes guiados pesa fazer esse tipo de afirmação que vai à
ao sabor das suas intuições, sem ter o rigor contracorrente dos seus críticos que interpre-
acadêmico da precisão do método. Barthes tam apressadamente os textos do autor e dos
(2003), lembrando Baudelaire, afirma que próprios comentadores. Sempre se questiona
deveria ser incluído na Declaração dos Di- a validação de atribuir, em meio a esse ema-
reitos do Homem o direito de ir embora e de ranhado de fios de fusos que constituem os
se contradizer. O projeto de Barthes era en- vários textos reflexivos de Barthes, a força de
sinar a “sonhar alto” sua pesquisa, “sem que- uma teoria, posto que é o próprio autor que
rer agarrar tudo” (“ne pas vouloir saisir”), coloca de saída o não desejo da sua obra em
querer tudo saber, o que causava verdadeira ser uma teoria para o objeto. E mesmo em
vertigem e decepção naqueles que buscavam meio à biografia do autor, Louis-Jean Calvet
inscrever e situar suas pesquisas sobre a ru- coloca que o “Sistema Barthes” (o método
brica de pensamento “barthesiano”. Como barthesiano) depende muito mais de uma
aponta Haroldo de Campos em seu Metali- “forma de olhar” que de uma teoria.
guagem & Outras Metas, a obra de Barthes O que parece porém, é que esses críticos
não pode ser definida por um “ismo”, já que esqueceram, no que toca à própria afirma-
sua abordagem dos fenômenos culturais e ção de Barthes, o quanto ele foi um sujeito RODRIGO FONTANARI
literários nunca teve um rigor metodológico subversivo, que desejava que aqueles que é doutorando
no Programa
em suas análises. seguiam seus cursos na École Pratique des de Pós-graduação
Corroborando esse pensamento, magis- Hautes Études en Science Sociale e no Collè- em Comunicação e
Semiótica da PUC/SP,
tralmente Leyla Perrone-Moisés (1985, p. 80), ge de France mantivessem com seus objetos com período de estágio
em seu livro Barthes: Saber com Sabor, analisa de pesquisa uma “relação amorosa” para que no Centre Roland
Barthes (Université
a questão do método de pesquisa para Barthes: seus trabalhos não se tornassem um murmú- de Paris VII).

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rio de pesquisas indiferentes e indiferenciá- assinalar o signo e tentar indicar o que existe
veis. Esqueceram, principalmente, a lição além do mecanismo de construção de senti-
da palavra teoria. Tomemos a etimologia da do empregado no processo de enunciação.
palavra em francês, théorie, proveniente do Diante da linguagem, estamos ao mes-
grego thea, que significa um “modo de ver”; mo tempo perante uma luta contra duas faces
um “modo privilegiado de olhar próximo de linguísticas: de um lado, no plano dos signi-
Deus”; ou ainda uma “ação de observar”. ficados (problemas semânticos) e, de outro,
Nesse sentido, encontramos em Barthes uma na destruição dos significantes, depondo e
teoria, ainda que não de forma evidente, pois, opondo contra o signo.
se tomarmos alguns textos a partir do plano Cabe, a essa altura, uma ressalva: o século
da expressão, eles são considerados poéticos XX é notadamente marcado pelo apogeu do
demais para ser ciência. Já no plano do con- paradigma semiótico de cunho estruturalis-
teúdo, ficam mais evidentes a articulação e ta na obra de Roland Barthes. Como aponta
a construção de um pensamento. Na medida Winfried Nörth em A Semiótica no Século
em que podemos encontrar em seus textos XX, os termos “semiótica” ou “semiologia”
uma articulação de conceitos, é possível, por e “estruturalismo” são tomados praticamen-
consequência, depararmos com a constitui- te quase como sinônimos. Para todo efeito e
ção de uma teoria (visão) a respeito do objeto com a finalidade de desfazer a problemática
(corpus) tomado para análise. da nomenclatura “semiótica” ou “semiologia”,
podemos dizer que, para alguns autores, o ter-
O PROJETO SEMIOLÓGICO mo “semiologia” está a serviço dos objetos
OU SEMIÓTICO linguísticos fortemente marcados pela tradi-
ção dos estudos de Ferdinand Saussure (1857-
Parece necessário delinearmos, nesse ho- 1913), ao passo que a “semiótica” estaria para
rizonte, a unidade que liga toda a obra de Bar- aqueles não linguísticos, vinculados, sobretu-
thes, desde O Grau Zero da Escrita até seu do, à tradição anglo-saxã, que tem como figu-
derradeiro livro em vida, A Câmara Clara. ra-mestre Charles Senders Peirce (1839-1914).
A estrutura comum que parece unir a De maneira geral, para ambas as ciências, é
abertura e o fechamento dessa magistral obra o signo que importa em meio a esse jogo de
poderia ser resumida num projeto comum: nomenclatura, como elemento produtor de se-
a caça às falsas evidências. Havia em Bar- miose, processo inerente ao ser humano e no
thes essa vontade de desvendar e de revelar o qual se estabelece uma relação entre o signo,
compromisso histórico (político) de qualquer o seu objeto (conteúdo) e a sua interpretação.
discurso, tendo na linguagem o seu material Portanto, a semiótica barthesiana consis-
evidente, seja na forma de texto literário te num olhar político sobre os signos, que
ou então encontrado por debaixo, raspando nada mais é senão excitação do olhar crítico.
a crosta sígnica que recobre o discurso do Essa excitação é uma desconstrução do mun-
vestuário, do cartaz publicitário em outros do que nos rodeia, de tal forma que nele en-
objetos da cultura. contremos a função-signo, isto é, um mundo
O esforço de Barthes está para além de signo dele mesmo. Essa função-signo ocorre
compreender o signo, perpassa pelo meio em muitos sistemas semiológicos cuja subs-
ambiente quotidiano, pela cultura, na medida tância de expressão não é significar. São ob-
em que aí se encontram, ao mesmo tempo, jetos de uso sobre os quais a sociedade impôs
objeto e instrumento de comunicação. significação derivada pela finalidade de uso
O que é subversivo na semiótica barthe- no contexto social. Esforçamo-nos por en-
siana é a dissecação, que não consiste em contrar neles um desvio de significação que
opor os signos a outros signos, mas em escan- o código constrói por meio da linguagem.
cará-los, mostrar do que são feitos. Em outras O projeto semiótico de Barthes está nesse
palavras, a semiótica de Barthes consiste em imbricamento entre o explícito e o implíci-

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to, o denotado e o conotado do processo de nos significativos – o sistema de objetos de
comunicação-significação. É a ciência de uso (função-signo), as artes e a comunicação
todas as significações e, estando as signifi- de massa – a partir de um viés mais socio-
cações em todas as instâncias socioculturais, lógico, vendo nesses diversos segmentos um
até mesmo nos objetos de uso, é a ciência da fundo de linguagem umectada de ideologia.
sociedade enquanto se significa e, ao mesmo Barthes busca, nesses vários textos, a tessitu-
tempo, se distorce, acenando que a semiótica ra do conteúdo latente (o sentido conotativo)
barthesiana tenderia a tornar-se a ciência da da linguagem. Nas palavras do próprio Bar-
ideologia, ou uma ciência que teria a ideo- thes (1980, p. 39),
logia como último objeto de estudo. Muito
mais do que uma busca pela denúncia do fal- “[…] A semiologia não é uma chave, ela
sário no discurso, seu projeto se apresenta não permite apreender diretamente o real,
em meio à sua heterogeneidade de objetos impondo-lhe um transparente geral que o
e de métodos, um continuum maior que o tornaria inteligível; o real, ela busca antes
olhar ácido sobre o signo. soerguê-lo, em certos pontos e em certos
Roland Barthes é tido como um impostor momentos, e ela diz que esses efeitos de so-
no campo da semiologia para Troubetzkov, levamento do real são possíveis sem chave:
Buysses, Martinet, Prieto, na medida em aliás, é precisamente quando a semiologia
que esses autores acusavam-no de embara- quer ser uma chave que ela não desvenda
lhar as nomenclaturas (signo/símbolo/índi- coisa alguma”.
ce) e de tomar emprestados aleatoriamente
os conceitos e métodos saídos da linguísti- SABER COM SABOR:
ca e aplicá-los aos seus objetos de estudo. O SIGNO SENSÍVEL
Como aponta François Dôsse em A História
do Estruturalismo, Barthes, com sua noção Para Roland Barthes, a semiologia é con-
muito ampla de signo – tudo que se reves- comitantemente ativa e negativa, ou melhor,
te de uma significação –, leva seus críticos apofática (do grego apofatikos, “negativo”):
em semiologia a afirmar que ele desviou o “ela é negativa não por negar o signo, mas
projeto original estabelecido por Saussure de porque nega que seja possível atribuir-lhe
desenvolver uma semiologia da comunicação caracteres positivos, fixos, a-históricos, a-
para estabelecer uma simples semiologia da -corpóreos, em suma: científicos” (Barthes,
significação. 1980, p. 39).
A semiologia da comunicação joga com Nesse momento, lançam-se as diretrizes
a hipótese de que nesse instrumento deno- epistemológicas que rompem com o méto-
minado língua predomina a função de co- do estruturalista, na medida em que o autor
municação. Todo sistema de signo tal como já não crê mais ser possível viabilizar uma
a língua tem como função principal a comu- ciência do signo sem que se leve em con-
nicação. O termo “comunicação” é entendido ta o contexto sociopolítico e histórico. Na
como a intenção de propagar (emitir) men- concepção barthesiana mais madura, esses
sagem através de um meio que o destinatá- fatores parecem querer dizer muito mais e
rio reconhece como meio de comunicação. produzir muito mais sentido sobre o signo.
Para esse campo de investigação, a língua é O signo passa a ser tomado a partir de sua
um instrumento neutro que não pertence ao realidade linguística e translinguística, sendo
campo das relações sociais e políticas. Ela inseparáveis suas faces social e histórica. A
se ocupa da descrição do funcionamento dos semiologia barthesiana seria uma aventura
sistemas de comunicação não linguísticos. (aquilo que acontece) que vem do significan-
Na contracorrente, a semiologia da signifi- te: uma hegemonia do significante em rela-
cação, que tem em Barthes seu representante ção ao significado. O signo é lido como uma
ilustre, entende a língua e todos os fenôme- produção social e histórica.

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O conceito apofático leva o ensino da faz um trabalho árduo de retirar as pedras


semiótica barthesiana a duas consequên- de tudo o que encobre a superfície do signo
cias. A primeira é entender a semiologia (uma desmontagem para se trazer à tona o
como uma metalinguagem, uma vez que, verdadeiro sentido). Nesse sentido, o signo é
desde sua origem, pressupunha-se ser lin- muito uma ficção ou mesmo um véu pintado:
guagem sobre linguagens, o signo pleno que não basta ter olhos dotados de aparatos que
se esconde e se revela sob o olhar de uma possam cercar o objeto e trazer à tona o real
leitura apurada do semiólogo em signo va- sentido do signo (vazio), mas é preciso ter
zio. Mas isso não nos leva a crer em “me- antes corpo e sentidos corporais apurados
talinguagem e ciência, como se uma fosse de uma sensibilidade selvagem (sem código)
a condição obrigatória da outra, quando a para que possamos espantar com tudo o que
primeira não é mais do que signo históri- nos cai a nossa frente, e nos deparar com
co da segunda, refutável” (Barthes, 1980, aquilo que está evidente.
p. 38). A segunda consequência apontada A semiótica barthesiana rompe com o
pelo autor é a de que a semiologia tem uma conceito nietzschiano de ciência adiafórica,
relação com a ciência, mas ela mesma não isto é, indiferente com relação ao seu obje-
pode ser considerada como uma disciplina: to. Barthes (2003, p.25) almejava não uma
“[…] ela pode ajudar certas ciências, ser, por semiótica que fosse mais “um murmúrio de
algum tempo, sua companheira de viagem, trabalhos indiferentes, que indiferenciavam o
propor-lhe um protocolo operatório a partir objeto, o texto, o corpo”, mas uma ciência que
do qual cada ciência deve especificar a dife- provocasse estalo (“tilt”), perturbação. Essa
rença do seu corpus” (Barthes, 1980, p. 38). ciência perturbadora nasce a partir da per-
Quando Barthes se refere à semiologia cepção de um corpus como um conjunto de
ativa, ele quer dizer que ela não repousa textos com o qual possamos manter uma “re-
numa semiófisis, uma naturalidade inerte lação amorosa”, na qual consigamos abstrair
do signo, nem mesmo uma semioclastia, a figura da enunciação (o sujeito que fala), e
destruição do signo (como pretendiam seus não como mera serventia do imaginário cien-
primeiros escritos semiológicos), mas, sim, tífico, de onde possamos retirar a estrutura.
uma semitropia, uma ciência voltada para o Se a semiótica é uma leitura clara e sen-
próprio signo: “[…] este a cativa e ela o re- sual dos vários “textos” que a cultura produz,
cebe, o trata, e, se preciso for, o imita, como ela não poderia ter por objeto de estudo se-
espetáculo imaginário” (Barthes, 1980, p. não “todos os textos do imaginário: as narra-
40). Portanto, o semiólogo é um sujeito que tivas, os retratos, as imagens, as expressões,
joga com os signos, “cuja fascinação sabo- os idioletos, as paixões, as estruturas que
reia, quer fazer saborear e compreender. O jogam, ao mesmo tempo, com uma aparên-
signo […] é sempre imediato, regrado por cia de verossimilhança e com a incerteza de
uma espécie de evidência que lhe salta aos verdade” (Barthes, 1980, p. 41).
olhos, como estalo imaginário” (Barthes,
1980, p. 40).
A semiótica barthesiana não é hermenêu- A CÂMARA CLARA, UMA
tica, não tem a pretensão de ser uma ciência TEORIA SEMIÓTICA
que tem como objeto a interpretação de um SUI GENERIS DO SIGNO
conjunto de signos, pois não é necessário FOTOGRÁFICO?
implodir o signo (semioclastia), mas apren-
der a desenvolver um olhar apurado e crítico É o Barthes do corpo que fala nesse texto,
do signo. O semioticista muito mais depo- no entanto, um corpo melancólico que sofre
sita sobre o signo (tela incolor) gotículas de a dor do luto de uma perda recente – sua mãe.
tinta colorida que antes ali não estavam (lê Diante de A Câmara Clara defrontamos com
o sentido evidente do significante) do que o negativo fotográfico do qual o positivo

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seria O Império dos Signos. Nesse livro o e frágil. A consciência encontra-se diante de
escritor encontra o gozo do signo que o tex- uma pura qualidade de sentimento. Deixar-se
to projeta sobre a realidade, enquanto, por guiar pela qualidade dispara em Barthes uma
oposição, naquele o prazer é substituído pela sensação, provocando um sentimento, uma
dor da perda. O texto sugere uma maneira de reação específica, uma comoção do indiví-
pensar a realidade diante do signo fotográ- duo em relação ao estímulo. A ação se con-
fico. Nessa obra, o autor faz do signo foto- cretizou na forma de escritura. A qualidade
gráfico – diluído no signo verbal – uma for- do sentimento que provocou uma reação se
ma de luto. Em termos barthesianos, temos traduziu, por meio da mente interpretadora
que uma foto é sempre uma perda (a falta). de Barthes, em verbo – o verbo se faz car-
Em termos do estatuto semiótica da fo- ne. O que era mera qualidade encarnada no
tografia, como bem insere Martine Joly em signo fotográfico desperta em Barthes uma
A Imagem e Sua Interpretação, os escritos sensação que o coloca em posição de escri-
de Barthes a respeito da imagem fotográfica tura, um deleite do signo – tanto para pra-
não tratam da procura de “outras teologias” zer, quanto para dor – que pode despertar
(expressão do próprio autor) para criticar as numa mente interpretadora. Para Barthes, é
teorias que o precederam. De maneira ele- inegável a fulgurância de alguns signos fo-
gante, sem um discurso repleto de palavras tográficos, que são, na sua mera qualidade
de ordem, o autor soube conduzir o olhar do de signo, capazes de despertar os mais pro-
leitor para pensar “[…] a novidade e o futuro fundos sentimentos. Nesse sentido, há, em A
da reflexão sobre o significado e a interpreta- Câmara Clara, uma semiótica da fotografia,
ção da imagem nas nossas sociedades” (Joly, do signo fotográfico, em termos sensíveis em
2002, pp. 257-8). que faz o signo passar pelo corpo. Sendo uma
A escritura barthesiana faz do plano de pura ficção, um véu pintado, o signo é a pon-
expressão (forma) o próprio conteúdo. Em te da mediação entre o corpo e os sentidos
seu derradeiro ensaio em vida, Barthes deixa corporais do ser humano com o mundo. Um
uma silhueta evanescente, rastros, pegadas, processo de mediação – semiose – sem fim.
gestos escriturais para se pensar, seriamente, Ao expressar, ao fazer a mediação do sig-
a fotografia – registro fotoquímico de que no fotográfico com o mundo, Barthes sente
algo existiu e aconteceu (“ça a été”). a necessidade de nomear dicotomicamente
A fotografia não é mais um objeto de es- esse mundo sígnico que advém da fotografia,
tudo teórico relativo, mas o sujeito de uma que ele denominou por meio de duas pala-
experiência absoluta – prática, afetiva e exis- vras latinas: studium e punctum.
tencial. Passamos, então, de uma problemáti- Studium vem do verbo studare, que é um
ca da imagem como um objeto para aquela do estudo do mundo: tudo aquilo que não tem
sujeito em face da imagem fotográfica. Nes- pungência, o mundo demasiadamente clica-
se livro, o semioticista interroga sobre o visí- do. É o esforço por parte do fotógrafo em
vel e não sobre o que se dá a ver: aquilo que agradar ao gosto de alguma maneira: “ao in-
é concretamente visto pelo sujeito. Trata-se teresse geral, cultural, civilizado, que se tem
de pensar na “configuração semiótica da luz” por uma foto” (Barthes, 2004, p. 42).
e de como ela se apresenta como construção. O punctum vem do verbo latino pungere,
Para a escritura desse livro, Barthes se “picar”, “furar”, “perfurar”. Conotativamen-
coloca na posição do selvagem que se espanta te, trata-se daquilo que é pungente, que corta,
com tudo o que vê à sua frente. Experimenta, fere, sensibiliza, alfineta e amortiza. Refere-
em plena sensibilidade, a qualidade do signo -se àquelas fotos que o tocavam “[…] mais
– que provém da fotografia – quando pousa o vivamente do que por seu interesse geral, por
seu olhar sobre ela. É a qualidade da consci- um pormenor que vem me prender, me cati-
ência imediata, uma impressão (sentimento) var, me acordar, me surpreender, de maneira
in totum, indivisível, não analisável, inocente bastante enigmática” (Barthes, 2004, p. 42).

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Quando o autor analisa o mundo do signo e reconhecer o que está posto na superfície
fotográfico e o articula por meio desse par do registro fotográfico. Na esteira do pensa-
opositivo – studium/punctum –, é evidente mento barthesiano, a fotografia é considerada
que, sem ter o desejo de fazer uma teoria como suporte de sentimentalidade, onde há
do signo fotográfico, acaba por efetuá-la. um curto-circuito temporal, a ternura mani-
Roland Barthes coloca seu leitor em estado festa diante daquilo que não volta mais, da-
de meditação e o faz pensar, e sentir – como quilo que é inapreensível. Isso pertence ao
ele fez na tessitura do próprio texto do li- que poderíamos denominar de primeiro nível
vro – o signo fotográfico, e incita o leitor, de apreensão de uma foto. Num segundo ní-
o observador, o contemplador que se coloca vel, observamos uma foto, reconhecemos o
diante de uma foto, à difícil tarefa de escutar que nela (suporte) está registrado, seus moti-
o significante e de encontrar ou não, nesse vos. Por fim, há ainda um terceiro e instigante
processo, a pungência do fotográfico no li- nível de análise que opõe o simples ato de ver
mite da linguagem. fotos ao de lê-las. Ler requer um olhar aten-
O recorte metodológico que aparece em to que saiba decifrar uma linguagem visual
A Câmara Clara constitui uma leitura das e as suas especificidades. A chave do pen-
imagens técnicas através de um olhar – lente sar semiótico de Barthes está, antes, no sentir
fotográfica – que, embora um pouco mecâni- aquilo que está posto diante dos olhos. Pura
co, sabe, na retina do tempo, sentir, conhecer poética da imagem; puro deleite dos sentidos.

B I B LI O G R AFIA

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. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios Críticos III. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
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