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RESENHAS

WALLERSTEIN, Immanuel. O uni- debate gira em torno do que se quer dizer por
versalismo europeu: a retórica universalismo, diz o autor), seria necessário
do poder. Trad. Beatriz Medina, antes de mais nada historiar a análise intelec-
São Paulo: Boitempo, 2007, 144 pp. tual, mostrando, primeiro, que o “universa-
lismo” não é atemporal, mas produto do cha-
ARLENE E. CLEMESHA* mado “sistema-mundo moderno”. Em certo
sentido, diria Wallerstein, todos os sistemas
Immanuel Wallerstein, sem dúvida um históricos conhecidos afirmaram basear-se
dos principais autores da ciência da história- em valores universais. Portanto, o “univer-
mundo, junto com Fernand Braudel e Perry An- salismo” deve ser visto dentro de sua unida-
derson foi alvo de críticas de Edward Said, devi- de de análise específica, o “sistema-mundo
do àquilo que seria a tendência de es- moderno”, que para Wallerstein se encontra
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Said, Edward W., 2001. ses autores evitarem a relação entre o hoje no momento de sua crise estrutural, ou
Orientalism reconsidered. Re- imperialismo europeu e seus conhe- época de transição.
flexions on exile. Nova Deli:
Penguin, p. 210. cimentos relacionados, notadamen- No início do sistema-mundo mo-
te o orientalismo. Especificamente, derno, no século XVI, quando as Coroas
Said diria que “nas premissas metodológicas e de Espanha e Portugal dominaram, escra-
na prática da história-mundo – ideologicamente vizaram e dizimaram os índios da Améri-
antiimperialista – pouca ou nenhuma atenção é ca, o teólogo espanhol Sepúlveda elaborou
dada às práticas culturais, como o orientalismo os principais argumentos para justificar a
ou a etnografia, afiliadas ao imperialismo”.1 “intervenção” (a chamada “doutrina Se-
Dialogando ou não com Said (impossí- púlveda”). Deduziu da barbárie básica dos
vel determinar), Wallerstein, em O universalis- ameríndios o direito de a Coroa espanhola
mo europeu: a retórica do poder, desenvolve intervir. Afirmou que as práticas dos ame-
sua visão do sistema capitalista no nível, jus- ríndios eram tão prejudiciais a si mesmos
tamente, das idéias que acompanharam e jus- e aos outros que eles tinham de ser fisica-
tificaram a sua expansão mundial. Ao fazê-lo, mente impedidos de levá-las a efeito. A
analisa a relação entre o universalismo parcial pressão para converter os ameríndios era
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e distorcido das potências dominantes, que ele sustentada pela mesma linha de argumen-
chama de universalismo europeu, e a relação tação, qual seja, aquela dos benefícios es-
deste com o orientalismo; preenche a lacuna tendidos aos ameríndios pela colonização:
apontada por Said, e, mais do que isso, aponta salvar suas almas pagãs, aprender práticas
para o problema da superação do universalis- civilizadas, nem que para isso fosse neces-
mo europeu/orientalismo, rumo a um “univer- sário o emprego da força.
salismo mais universal”. No século XVIII, o “modo Sepúlveda”
Segundo Wallerstein, para evitar as começava a se desgastar, possibilitando ao
confusões mais corriqueiras (afinal, todo o “modo orientalista” desempenhar papel mais
importante. Como demonstra Wallerstein ou povo era cristão, hoje a principal con-
nesse livro, a disciplina acadêmica do orien- sideração é se eles são ou não “democráti-
talismo, especificamente, trouxe versões cos”. Os argumentos básicos, em todos os
mais sutis das velhas assertivas do colonia- casos, são os mesmos: a “barbárie dos ou-
lismo espanhol e português. Seus estudos tros”, o fim de práticas que violam os “valo-
de caso não seriam mais os chamados po- res universais”, a defesa de “inocentes” em
vos primitivos, mas “civilizações” que, no meio aos “cruéis” e a possibilidade de “dis-
entanto, não pertenciam ao cristianismo oci- seminar valores universais”.
dental. O orientalismo apresentaria a noção O que demonstra o autor é que, seja na
de que as “civilizações orientais”, apesar de conquista da América, na dominação da Ásia,
culturalmente ricas e sofisticadas – portanto, ou na invasão ao Iraque, deposição e morte
em certo sentido, iguais à “civilização cristã de Saddam Hussein no século XXI, os valo-
ocidental” – continham um defeito pequeno res dos interventores são impostos, e aceitos,
mas importantíssimo: algo que as tornava como universais, quando não passam de cria-
incapazes de avançar para a “modernidade”. ção social dos estratos dominantes de um sis-
A decorrência lógica disso seria a dissemi- tema-mundo específico.
nação da idéia de que apenas com a ajuda Mais do que isso, no cerne da relação
do mundo ocidental o Oriente poderia rom- entre o poder dominador e sua retórica jus-
per os limites que sua própria civilização tificadora, estaria o que Wallerstein chama
lhe impusera, cultural e tecnologicamente. de orientalismo em seu sentido amplo: a ten-
A dominação ocidental, não obstante tem- dência a essencializar certas características
porária e transitória, seria essencial para o particulares dos “outros”, descritos em seus
progresso do mundo. moldes “civilizacionais” (acompanhada, se
No século XX o orientalismo seria re- quisermos, da universalização dos valores
ciclado em ideologias como aquela do “cho- das camadas dominantes dos interventores,
que de civilizações”, mas a ênfase maior da justificando sua dominação).
retórica do poder recairia sobre a defesa da As revoluções anticoloniais de mea-
doutrina dos direitos humanos. O que ve- dos do século XX, em especial no período
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mos em todos os casos é a fabricação de jus- de 1945 a 1970, elevariam o direito moral
tificativas morais para a intervenção (que, dos povos oprimidos de recusar a interven-
na prática, sempre foi um direito apropriado ção direta ou a supervisão paternalista dos
pelos fortes): a lei natural e o cristianismo povos que se diziam civilizados. Direito
no século XVI, a missão civilizadora no sé- esse que passou a ter maior legitimidade nas
culo XIX e os direitos humanos e a demo- estruturas políticas e instituições mundiais,
cracia no final do século XX e início do sé- cujo ápice foi a adoção pela ONU, em 1960,
culo XXI. Com efeito, enquanto no século da Declaração de Concessão da Independên-
XVI a principal consideração era se o país cia aos Países e Povos Coloniais. O fato de
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que esse assunto fora, como lembra o autor, da recusa das caracterizações essencialistas
totalmente escamoteado no Estatuto das Na- da realidade social, dependeria da superação
ções Unidas, escrito apenas quinze anos an- do orientalismo (em seu sentido mais am-
tes, é o indício mais claro e inconteste de que plo), da capacidade de ver “com olhos extre-
o Estatuto, ou a própria Declaração Univer- mamente clínicos e bastante céticos todas as
sal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, justificativas de ‘intervenção’ dos poderosos
não podem ser aceitos como universais. contra os fracos”. Caberia aos intelectuais
O filósofo François Jullien, autor de descartar as restrições de uma falsa neutrali-
Acerca do universal, do uniforme, do co- dade de valores, para desempenhar, “dentro
mum e do diálogo entre culturas , diria que
2
da transição pela qual estamos passando, um
os direitos do homem, longe de serem uni- papel que vale a pena” (p. 20).
versais, são “universalizantes”, porque são Mais especificamente, para Wallers-
fator, agente e promotor do universal. Não tein, encontramo-nos no fim de uma época
são da ordem do saber, mas do fazer-se; não longa que pode ser chamada por vários no-
são verdade, mas recurso. Nele, o universal mes. Um nome adequado seria época do uni-
encontra-se em vias de se realizar; sendo, em versalismo europeu. Estamos passando para
si mesmo, vetor do universal. uma época posterior, melhor ou pior do que
2
Jullien, François, 2008. De
A proposta de mudança de ter- a atual. A luta entre o universalismo europeu
l’universel, de l’ uniforme, du com-
mum et du dialogue entre cultures. minologia, substituindo “uni- e o universalismo universal seria a luta ide-
Paris: Fayard.
versal” por “universalizante”, ológica central do mundo contemporâneo,
ajudaria a escapar do etnocentrismo implíci- cujo resultado será fator importantíssimo
to em toda afirmação do universal. Como di- para determinar como será estruturado o sis-
ria Wallerstein, não há nada tão etnocêntri- tema-mundo futuro. A alternativa seria “um
co, tão particularista quanto a pretensão ao novo mundo hierárquico e desigual que afir-
universalismo. A própria defesa do univer- mará basear-se em valores universais, mas
salismo só pode se dar a partir de um quadro no qual o racismo e o sexismo continuarão a
ideológico particular, que é o mesmo do uni- dominar na prática, muito possivelmente de
versalismo que se pretende julgar. maneira mais cruel do que no sistema-mun-
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Para Wallerstein , ainda estamos lon- do atual” (p. 124). Em última instância, seria
ge de atingir algo como um universalismo necessária a criação de uma “base concreta”
global, ou mesmo de saber quais seriam os diferente da que existe hoje; isto é, um mun-
valores universais globais. Para chegar até do mais igualitário.
eles, seria necessário ir além do ponto de
vista ideológico dos fortes (expresso no uni-
versalismo europeu). O caminho rumo a um * DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS DA UNIVER-
“universalismo mais universal” dependeria SIDADE DE SÃO PAULO.

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