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Ascensão e queda
+
de um crustáceo
aristocrata
Por Ricardo Dias Felner
Israel em Angola
Quando Benguela
era a terra prometida
A Revista do Expresso
Por Fernando Sobral
EDIÇÃO 2419
9/MARÇO/2019
© Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1568752 - Joao.paulo.filipe@gmail.com - 172.17.21.102 (09-03-19 07:21)
T R O F É U V O L A N T E D E C R I S T A L 2 0 1 9
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PLUMA CAPRICHOSA
O VAPOR DA CATAPLANA
P
O PAÍS COMPÕE-SE, OU VAI-SE COMPONDO, NÃO COMO UM TODO, MAS COMO UMA
EXPERIÊNCIA FRAGMENTÁRIA ONDE A DISSIDÊNCIA É SUFOCADA À NASCENÇA E CASO A CASO
ortugal não tem problemas com o populismo. o Governo no Parlamento. Quero saber porque é que a ambição é
Portugal inventou o “nacional porreirismo”, vista como um defeito e os melhores de nós continuam a emigrar
uma fórmula que providencia a estagnação do para outros mundos tal como no tempo das caravelas. Quero saber
sistema e impede qualquer progressão, incluindo porque é que a regionalização é um desígnio nacional quando nem
a progressão para os extremos do pensamento as ruas da capital a descentralização consegue limpar. Quero saber
político. Nem existe pensamento político, o porque é que os sistemas judicial e judiciário continuam a albergar
que existe é comentário político reduzido a o racismo, a homofobia e a violência contra as mulheres como
entretenimento, um cenário mediático onde se fossem atos da natureza. Quero saber porque é que o futebol
os políticos se comentam a eles mesmos e o e os clubes continuam a ter um regime benéfico de isenções e a
jornalismo em autofagia prescindiu do papel manifestar-se acima das leis. Quero saber porque é que a proteção
de mediador e produtor da informação para se do ambiente e dos ecossistemas são luxos para privilegiados.
remeter a moderador da cacofonia. Quero saber porque é que os feriados e as pontes continuam a ser
Nesta ordem natural das coisas, tivemos o primeiro-ministro a a expressão máxima da felicidade coletiva e constituem privilégios
confecionar uma cataplana de peixe acompanhado da família e intocáveis. Quero saber porque é que as famílias e os apelidos
tivemos o Ti Celito a desembarcar em Luanda para o desfile de continuam a regular a mobilidade social exceto quando substituídos
Carnaval. E tudo o resto, como diria o Ti Celito com a inteligência pelo nepotismo das famílias partidárias. Quero saber porque é
que o caracteriza, são “insignificâncias”. que a normalidade, uma vida normal, continua a ser a medida
Não nos desassosseguemos com as ameaças de partidos populistas da retribuição e porque é que a originalidade é punida, exceto se
dirigidos por palhaços, os palhaços estão no meio de nós. O país integrada. Quero saber porque é que tanto o proletariado como a
compõe-se, ou vai-se compondo, não como um todo, mas como burguesia nunca se constituíram como consciência, preferindo
uma experiência fragmentária onde a dissidência é sufocada à a anestesia do hipermercado e da televisão. Quero saber quem
nascença e caso a caso. Onde nada é importante durante muito são os arquitetos da nossa venda progressiva a países e estados
tempo e Pedrógão ou a revolta dos enfermeiros passam a ser uma inimigos da democracia e da transparência. Quero saber porque é
alínea entre o tempero e a remexida do molho. Gostamos muito que os professores estão em guerra há anos e ninguém se lembrou
de nós e de ser assim, nada provoca a nossa cólera e praticamos a de reformar um sistema calcificado que se recusa a evoluir. Quero
exemplar indignação. Somos o país do conformismo erigido em saber porque é que as universidades portuguesas subsistem na
sistema de governação. O primeiro faz uma cataplana? A oposição indigência financeira e doutrinária. Quero saber porque é que o
faz um arroz de atum. único tema são os funcionários públicos. Quero saber porque é que
Nada obsta a que continuemos a ser endemicamente pobres, que o nosso sistema fiscal é sacrificial sem reciprocidade. Quero saber
boa parte do nosso capitalismo não transcenda o parasitismo, que porque é que reduzimos a austeridade e a escassez a uma qualidade
a banca tenha sido uma falácia com avultados pensionistas que intrínseca da cidadania.
a arruinaram, e que a clientela senatorial dos partidos se tenha Não existe em Portugal um pensamento antagonista, ou uma
apossado da máquina administrativa, repartindo benesses na contracultura digna do nome. O Estado arrebanha os “intelectuais”
proporção do voto. É preciso que tudo mude para que tudo fique na com uma viagem ao México ou à Colômbia e subsidia a arte de modo
mesma. E nas traseiras do espetáculo que nos mantém entretidos a mantê-la no seu bem-comportado lugar. O Estado tornou-se mais
com as improvisações de políticos fungíveis, o sistema mantém-se do que o pagador da cultura, tornou-se o anfitrião. Nada existe, em
em vigor, imutável, arcaico, fossilizado, corporativo, opaco, e, para Portugal, fora do Estado. Cozemos todos, ética e esteticamente, no
quem não o controla ou não controla uma parcela, aterrador. vapor da cataplana. b
Não preciso da receita da cataplana nem estou interessada em
conhecer “o homem” por trás do político. Do homem espero a
dignidade do cargo, comprometida pelo populismo suado que as
redes incentivam e as audiências aplaudem. E da mulher espero a
mesma coisa. Ideias. Desígnios. Não a medida do sal e da pimenta.
O que quero saber é simples e não cabe aqui. Quero saber porque
é que o partido socialista está a destruir sem reformar, de forma
errática, odiosamente injusta para com os destituídos, a melhor
invenção da democracia, o Sistema Nacional de Saúde. Quero saber
porque é que a Segurança Social, a tal reformada com sucesso,
demora um ano a entregar as pensões ou obriga os reformados
a apurar os cálculos finais, onde quase sempre faltam anos e
descontos. Quero saber porque é que a velhice em Portugal é a
mais desoladora da Europa e porque é que se tornou um negócio
rentável a sobrepor à tragédia demográfica. Quero saber porque
é que apesar de anos de reformas administrativas, a burocracia / CLARA
continua um mistério dependente da boa vontade de funcionários e
não da agilidade do sistema. Quero saber porque é que todos os dias
FERREIRA
há uma greve impulsionada pelos mesmos partidos que sustentam ALVES
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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2419
9/MARÇO/2019
Coordenadores
CRÓNICAS Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Rui Tentúgal
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 24 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia rtentugal@expresso.impresa.pt
75 Isto Anda Tudo Ligado por Ana Cristina Leonardo | 83 A Desarmonia das Esferas por João Lisboa Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia)
89 A Tabela Periódica por Jorge Calado | 92 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça João Carlos Santos (Fotografia)
96 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 106 Fraco Consolo por Pedro Mexia Mário Henriques (Desenho)
IMAGEM DA CAPA: ILUSTRAÇÃO PRODUZIDA A PARTIR DE UM CARTAZ DO FILME “UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES” (1981), DE JOHN LANDIS
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A ESCOLHA DE CINDY CRAWFORD
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Expresso
24h Angola quer Preço da
eletricidade baixa
Marcelo traz
Michel Barnier
reaver obras 3,5% em janeiro
de arte do
Michel Barnier, negociador
do ‘Brexit’ pela Comissão
Europeia, vem ao Conselho Governo entregou ao sistema elétrico. Segundo um
de Estado a 17 de janeiro, a regulador da energia um documento da ERSE, a que o
convite de Marcelo Rebelo de despacho que aprova mais Expresso teve acesso, a nova
tempo colonial
Sousa. O Presidente da Repú- 189 milhões de euros para previsão é que as tarifas afinal
blica também já escolheu os reduzir tarifas elétricas baixem 3,5% em janeiro para
temas para os encontros se- as famílias em Portugal Con-
guintes: Em março, é a situa- O Conselho Tarifário do regu- tinental, o equivalente a uma
ção económica internacional. lador da energia vai ter uma poupança média de 1,5 euros
E antes do verão, já com a reunião extraordinária na pró- por mês. Nas regiões autóno-
campanha eleitoral na rua, xima segunda-feira para anali- mas da Madeira e dos Açores a
debate-se o interior. sar uma revisão da proposta de descida será de 0,6%. P6
preços anunciada em outubro,
Favorita de Merkel > Governo angolano vai fazer um levantamento que previa uma subida das ta-
rifas das famílias de 0,1%. A 30
lidera CDU dos bens culturais que devem ser restituídos de novembro o Governo enviou PROCESSO PINHO
Annegret Kramp-Karren-
bauer é a nova líder dos de- e que saíram do país na época colonial > Ministério à Entidade Reguladora dos Ser- EX-MINISTRO
viços Energéticos (ERSE) um DO AMBIENTE DE
mocratas-cristãos alemães.
Eleita por 517 dos 999 dele-
da Cultura não tem lista de obras em risco despacho que aprova a canali-
zação de uma verba adicional SÓCRATES NO DCIAP
gados ao congresso da CDU, > Polémica internacional chega a Portugal P22 de 189 milhões de euros para o
era a preferida de Angela
Merkel, que se mantém como
chanceler. P38
resolutiva do documento de
62 para 21 pontos.
tirar escarpa da Arrábida. Depois,
dispara para Rui Moreira, re-
Ao sábado 2ª a sábado
Atchim! Enfim,
é a primavera da vida
FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES
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fisga
H
á lá coisa mais poética do que a A concentração polínica aumenta com a chegada
primavera. Tem cor, tem aroma, tem flora da primavera, sobretudo em dias mais quentes
a florear, tem o desabrochar de novas e mais ventosos. “O calor faz libertar os pólenes
vidas, tem a juventude de dias maiores e mais das plantas e o vento transporta-os a grandes
quentes. Tem, em suma, uma biodiversidade distâncias, até 50 ou 100 quilómetros da origem”,
infinita de metáforas, reunidas como bonitos adverte o especialista. As inflamações surgem
ramalhetes de orquídeas no poema. É o esplendor pela sensibilidade e pela estimulação dos nervos
da metamorfose. É também o adeus às noites sensitivos quando o ser humano entra em
gélidas e um passeio acompanhado por uma brisa contacto com o pó proveniente das gramíneas,
amena. É o tempo da transição. E das alergias. das oliveiras ou dos vidoeiros, algumas das
A rinite é a tipologia mais comum e alastra-se plantas que mais reações alérgicas provocam em
a um quarto da população. Mas há também a Portugal. “O nosso clima favorece as alergias, mas
conjuntivite. A rinoconjuntivite, uma receita há diferenças na verticalidade do país, de norte
cozinhada pelo diabo com os sintomas das duas a sul. Os agentes polínicos no Alentejo têm uma
primeiras. A sinusite. Eczema, eczantema e outras gravidade superior aos do norte, em particular
mais complicadas, como a asma, compõem o em relação às regiões do litoral”, aponta
leque de patologias das vias respiratórias que o João Fonseca, salientando que as alterações
vento primaveril levanta e propaga. “A alergia aos climáticas também são um motivo de comichão,
pólenes é a principal durante esta estação, afetando “aumentando as épocas de proliferação” das
vários órgãos”, começa por explicar João Almeida patologias semeadas nesta época do ano.
Fonseca, vice-presidente do Sociedade Portuguesa “Algumas fotografias de satélite denunciam o
de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC). aparecimento de grandes nuvens polínicas no
Olhos vermelhos inundados em lágrimas, prurido norte e centro da Europa, o que era impensável no
cutâneo, coceira no céu da boca e na garganta, o passado”, constata o dirigente da SPAIC.
nariz a pingar, espirros, peso e ardor ao respirar, Os números da Organização Mundial de Saúde
assim como tosse aguda e seca são os suspeitos estimam que 40% da população global possa
do costume. “Quando há comichão, e estão sofrer com os alergénios e 22% das crianças
envolvidos mediadores como a histamina, há europeias acaba por ser atacada por esta epidemia
normalmente uma causa alérgica. No caso do empoeirada. Filhos de pais com este tipo de
pólen, a comichão no nariz e nos olhos é muito patologias têm uma propensão 75% superior
frequente. As secreções nasais e o lacrimejo de, também eles, desenvolverem uma maior
são também muito característicos”, acrescenta sensibilidade. Os dados da Sociedade Portuguesa
o docente na Faculdade de Medicina da de Alergologia e Imunidade Clínica estimam
Universidade do Porto. que um terço dos portugueses pode ser alérgico.
Ninguém está a salvo e não existem grupos mais
suscetíveis, exceto os indivíduos sujeitos ao fumo
“A DOENÇA ALÉRGICA, FORMADA POR do tabaco, frisa o representante da SPAIC, devido
à “agressividade dos muitos compostos que
FATORES GENÉTICOS E AMBIENTAIS, facilitam o desequilíbrio na superfície da pele e
NÃO É MAIS DO QUE UMA RESPOSTA nas mucosas”.
DESADEQUADA E EXAGERADA DO
TEM ALERGIA? OLHE QUE É O SEU CORPO
SISTEMA IMUNOLÓGICO, SEMPRE EM A EXAGERAR
GRANDE REBOLIÇO, E, PORTANTO, EM Ao contrário da ideia enraizada socialmente, o
QUALQUER ALTURA DA VIDA PODE corpo não vai ficando mais resistente à exposição
polínica com a longevidade. “Uma pessoa pode
PASSAR A TER TAL COMPORTAMENTO”, começar a ter sintomas na primavera aos 50, 60
ESCLARECE JOÃO FONSECA ou 80 anos. Já vi de tudo”, conta, ao Expresso,
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DOENÇAS CRÓNICAS MAIS COMUNS EM PORTUGAL
Homens Mulheres
Hipertensão Hipertensão
25,1 26,1
Colesterol elevado Colesterol elevado
PORTUGAL 23,7 25,7
Artrose
1/3
Alergia
11,4 20,6
DE ALÉRGICOS
Diabetes Alergia
10,4 18,1
Dor crónica Depressão
7,4 15,2
Artrose Dor crónica
7,3 13,5
FONTE: SOCIEDADE PORTUGUESA DE ALERGOLOGIA E IMUNOLOGIA
ALÉRGICA FONTE: INSTITUTO NACIONAL DE SAÚDE DR. RICARDO JORGE
João Fonseca. “A doença alérgica, formada por AS INFLAMAÇÕES SURGEM NÃO FUJA DO PROBLEMA,
fatores genéticos e ambientais, não é mais do MAS TENHA CUIDADO
que uma resposta desadequada e exagerada
PELA SENSIBILIDADE E PELA “Fugir da exposição não é o que mais beneficia
do sistema imunológico, sempre em grande ESTIMULAÇÃO DOS NERVOS as pessoas”, é a resposta do vice-presidente da
reboliço, e, portanto, em qualquer altura da vida SENSITIVOS QUANDO O SER SPAIC, quando questionado sobre os cuidados
pode passar a ter tal comportamento”, esclarece a ter para despistar as ocorrências sazonais.
o perito em imunoalergologia de 49 anos. “O HUMANO ENTRA EM CONTACTO “Querer evitar o contacto com o alergénio era
organismo está constantemente a reagir a tudo COM O PÓ PROVENIENTE DAS uma estratégia de há mais de 20 anos”, lembra
aquilo com que contactamos e passa a identificar GRAMÍNEAS, DAS OLIVEIRAS OU João Almeida Fonseca, para quem a tática é
como perigosos os alergénios, que nada têm de simples: ter um spray nasal anti-inflamatório
agressores”, salienta o coordenador da Unidade DOS VIDOEIROS, ALGUMAS DAS sempre à mão. “Ao tratar o nariz, os sintomas
de Alergia do Instituto CUF Porto. PLANTAS QUE MAIS REAÇÕES ao nível dos olhos e da garganta podem ser
Quando tal se verifica, o corpo faz soar as ALÉRGICAS PROVOCAM aliviados”, sumaria o professor da FMUP.
sirenes e produz imediatamente histamina, “Atualmente, temos uma lógica muito diferente,
elemento biogénico e com propriedades EM PORTUGAL baseada na indução de tolerância — passando
irritantes, libertado para defender o organismo as pessoas a tolerar os pólenes. Esta mudança
de bactérias e parasitas. É aqui que entram em de mentalidade favorece a continuidade de
ação os anti-histamínicos, “bloqueando as vida normal. Colocar 12 a 15% dos portugueses
células onde a substância de defesa se costuma em redomas, impossibilitando esta fração de
ligar”, aclara o mentor do núcleo de investigação indivíduos de fazer caminhadas ou andar de
MEDIDA (Medicina, Educação, Investigação, bicicleta, faz cada vez menos sentido”, considera
Desenvolvimento e Avaliação) e coautor de mais o alergologista, recomendando, ainda assim, a
de 250 artigos científicos. A administração dos utilização de óculos de sol, a abertura das janelas
referidos fármacos servem, acrescenta João para arejar os quartos, bem como escolher o
Almeida Fonseca, para “atenuar os sintomas”, início do dia ou o final da tarde para as atividades
enquanto as vacinas vão à raiz do problema, ao ar livre.
servindo para que “as defesas deixem de reagir ao Atchim! Enfim, é assim a primavera da vida. Não
contacto com alergénios”. deixe que o medo o impeça de vivê-la. b
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fisga
DO CÉU AO INFERNO
A SEMANA EM REVISTA POR VALDEMAR CRUZ
A vitória de Conan Osíris no Festival da Canção reavivou os apelos ao boicote ao Festival
da Eurovisão em Telavive, que estará a ser aproveitado para o branqueamento de Israel,
um país várias vezes condenado pela ONU por violação dos direitos humanos. Tentativa
de branqueamento de uma ditadura brutal é o que acontece na Arábia Saudita, enquanto a França
é instada pela ONU a fazer um inquérito à atuação das polícias nas manifestações dos ‘coletes
amarelos’. O Pritzker veio tarde, mas ainda a tempo de consagrar a obra do japonês Arata Isozaki.
Arata Isozaki
O arquiteto japonês só aos 87 anos vê o
seu trabalho consagrado com o Pritzker,
BATATA
muitos anos depois dos seus tempos de
grande criatividade e inovação, centrados
QUENTE
entre as décadas de 1960 e 1980. PERGUNTAS
Conan Osíris
Olga Roriz IMPERTINENTES
Enquanto artista,
Com Cristina Piedade e está muito para
Rui Pinto
João Pedro Fonseca, a lá do que possa
coreógrafa assina, no CCB, representar
vai ser
em Lisboa, a cenografia de a monotonia
“O Castelo do Barba-Azul”, do Festival da
extraditado?
de Bartók, e “A Voz Canção. Venceu
Humana”, de Poulenc, duas para surpresa de
óperas fundidas muitos, indignação
num só espetáculo. Uma juíza de um tribunal
de uns quantos e
satisfação de quem húngaro decidiu na ter-
valoriza a diferença ça-feira passada que o
criativa. whistleblower do Football
Leaks deve ser extraditado
para Portugal, concordan-
Rui Pinto do assim com um pedido
O hacker oscila entre o estatuto feito pelo Ministério Público
de herói e de vilão. Para já, perdeu Steven Spielberg
português, mas a defesa
uma batalha. A justiça húngara Como cineasta, terá razão nas suas
decidiu que deve ser extraditado objeções à aceitação das produções
vai recorrer da decisão,
para Portugal, onde está indiciado da da Netflix na luta pelos Óscares e Rui Pinto aguardará em
prática de seis crimes. de Hollywood, mas poderá estar a prisão preventiva até que
alimentar uma batalha perdida. os tribunais superiores em
Budapeste se pronunciem
se será mesmo isso que vai
acontecer ou não. Rui Pinto
já admitiu publicamente ser
ele o “John” que forneceu
70 milhões de ficheiros à
“Der Spiegel” — e que foram
partilhados por esta revista
alemã com o European
Investigative Collaborations
(EIC), consórcio de que o
Expresso faz parte —, mas
Mohammad bin Salman Mário Centeno não assumiu ser um hacker.
As mudanças cosméticas na Em Portugal, está indiciado
O Novo Banco tornou-se
Arábia Saudita não anulam a Emmanuel Macron um sorvedouro de dinheiro
de tentativa de extorsão,
realidade de uma ditadura brutal, A ONU solicitou à França um inquérito para os contribuintes violação de segredo e aces-
onde se pratica o apartheid de urgente sobre as denúncias de uso portugueses. so indevido a dados com
género, nem fazem esquecer o excessivo por parte das forças policiais nas Centeno nunca base numa queixa apre-
assassínio do manifestações dos ‘coletes amarelos’, que quis inverter as
jornalista Jamal
sentada pela Doyen Sports,
tinham como alvo as políticas de Macron. más decisões
Khashoggi. um dos maiores fundos de
tomadas por Passos
Coelho e Maria Luís investimento em futebol da
Albuquerque. Europa, responsável pelo
pagamento de comissões
secretas ligadas a transfe-
rências de jogadores. Tendo
como diretor o português
Nélio Lucas, a Doyen foi ex-
posta em artigos do Football
Leaks publicados pelo EIC.
/ MICAEL PEREIRA
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15 + 17 março
sexta, 19:00 e domingo, 18:00 — M/6
Romeu
e Julieta
Charles Gounod
GULBENKIAN.PT
mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas principal
música e natureza estágios gulbenkian para orquestra concertos de domingo ciclo piano coro gulbenkian gulbenkian música
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NÚMEROS
PRIMOS
ELES FALAM
25
MIL PORTUGUESES TÊM TESTAMENTO
VITAL REGISTADO
241
das mulheres não deixa de ser um juiz machista que coloca
em causa a segurança das mulheres só porque se ofende
que digam que é um juiz machista que coloca
em causa a segurança das mulheres” METROS QUADRADOS
É O TAMANHO MÉDIO DAS CASAS
MARIANA MORTÁGUA, ECONOMISTA E DEPUTADA DO BLOCO DE ESQUERDA DAS FAMÍLIAS AMERICANAS
Espaço
Falando de um juiz-desembargador que se tem feito notar dentro e fora do país pelas considerações
que faz em decisões sobre casos de violência doméstica
As casas das famílias nos Estados Unidos
têm vindo a aumentar e agora têm cerca de
241 metros quadrados. Só que o tamanho da
“Com esta ‘almofada’ o dono do banco família diminuiu, o que significa que em média
em vez de tentar cobrar aqueles cada pessoa ganhou ainda mais espaço, com
uma média de 90 m2.
créditos vai buscar o dinheiro fácil”
1700
LUÍS MARQUES MENDES, ADVOGADO,
COMENTADOR TELEVISIVO E EX-PRESIDENTE DO PSD
Referindo-se às garantias que o Estado aceitou dar ao fundo
de investimento que comprou o Novo Banco.
Há dias o banco pediu ao Estado mais 1149 milhões de euros
ESPÉCIES ANIMAIS EM RISCO
DE DESAPARECER ATÉ 2070
Vida
“A comunicação social nunca gostou A ocupação humana de habitats faz com que
“A língua
6,7%
TAXA DE DESEMPREGO NO FIM DE 2018
como uma
desemprego era de 6,7%, mostra o INE. A
percentagem é mais baixa entre os homens
(6%) do que entre as mulheres(7,3%).
bomba atómica” / RAQUEL ALBUQUERQUE
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“OLÁ O MEU NOME É FRANCISCA E DURANTE ANOS FUI VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
PEÇO-LHE QUE NÃO DESLIGUE JÁ, ESPERE SÓ UM POUCO. NÃO TANTO TEMPO COMO EU ESPEREI.
ESPEREI DEMASIADO, ESPEREI QUE ELE VOLTASSE A SER O HOMEM POR QUEM UM DIA ME APAIXONEI.
FOI UMA ILUSÃO, ESSA PESSOA NUNCA EXISTIU. ESPEREI ATÉ AO MEU LIMITE. HOJE SEI QUE O AMOR
NÃO TEM NADA A VER COM VIOLÊNCIA. SEI QUE NÃO TEM QUE SER ASSIM. NÃO É FÁCIL MAS
É PRECISO PEDIR AJUDA. FOI O QUE FIZ, POR MIM E PELA MINHA FILHA. FOI ELA QUEM ME DEU
A CORAGEM, A FORÇA PARA DEIXAR DE ESPERAR. SEJAM 15 DIAS OU 15 ANOS, NÃO ESPERE MAIS.
LIGUE A ALGUÉM DA SUA CONFIANÇA, LIGUE À POLÍCIA, PEÇA AJUDA. UM DIA TAMBÉM HOUVE
ALGUÉM QUE ME ATENDEU O TELEFONE E TEVE TEMPO PARA ME OUVIR. SE É VÍTIMA DE VIOLÊNCIA
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fisga
O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL
Arata Isozaki
Aos 87 anos, e depois de várias distinções internacionais, o japonês Arata Isozaki é o vencedor do 40º Prémio Pritzker,
uma espécie de Nobel da arquitetura. É o oitavo japonês a consegui-lo (Siza Vieira e Souto de Moura são os representantes
portugueses) e receberá o prémio numa cerimónia a decorrer em maio, em França. O júri chamou-lhe uma “grande figura da
arquitetura contemporânea” e Isozaki chamou ao prémio “uma coroa na lápide funerária”. / JOÃO DIOGO CORREIA
1931
Uma gota na ilha 2019
Nasce em julho, em Oita, na ilha japonesa Cereja no topo do bolo
de Kyushu, onde ficará até ingressar
Em entrevista ao “The New
na universidade. A Oita voltará com
York Times”, chamou-lhe uma
frequência, apresentando os edifícios
“coroa na lápide funerária”,
que projetou para a cidade.
mas o Pritzker é também o
reconhecimento de uma carreira
cheia, variada, premiada e, não
raras vezes, lúdica.
2017
Retiro
1945 Doa a biblioteca pessoal e muda-se
com a mulher de Tóquio para Okinawa,
Convívio com o caos com temperaturas mais altas.
A primeira bomba atómica rebenta em Aquece assim o inverno da vida
Hiroxima, não muito longe da cidade num apartamento com vista para o mar.
natal do ainda adolescente. A destruição
que se segue à II Guerra Mundial há de
marcá-lo para sempre. “A minha primeira
experiência de arquitetura foi o vazio.”
GETTY IMAGES
1954
Chegada à capital
Vai estudar na Universidade
2003
de Tóquio, uma das mais 1986 Em Portugal
prestigiadas do Japão. É
aluno de arquitetura de Fora de portas É um já amplamente premiado
Isozaki que chega a Portugal para
Kenzo Tange, primeiro Inaugura o primeiro edifício apresentar “Electric Labyrinth”
japonês a vencer o Pritzker, fora da Ásia, o Museu de Arte (Labirinto Elétrico) no Museu
que viria a ser seu mestre. Contemporânea de Los Angeles, de Serralves. É o projeto de uma
nos Estados Unidos. À Europa cidade do futuro, concebida a
1963 chega anos depois, com o Estádio partir da destruição de Hiroxima
de Sant Jordi, desenhado para as
Emancipado Olimpíadas de Barcelona (1992).
e Nagasáqui.
Sai da asa de Tange ao abrir um
ateliê em nome próprio, Arata
Isozaki & Associates. Um ano
antes tinha escrito o poema que
descreve como a sua primeira peça
arquitetónica. “Planeamento urbano
que não inclua a ideia de destruição
deve ser feito em casas de repouso”,
lê-se em “Incubation Process”.
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OITO DA MANHÃ
PELA FRESCA
Conan Osíris
As manhãs de Tiago Miranda, que se dá a conhecer musicalmente como Conan
Osíris, são cada vez mais atípicas. Variam de semana para semana. “O dia típico
neste momento não está a ser nada típico”, assume, dois dias depois de se sagrar
vencedor do Festival da Canção. “Esta semana, como estou mais dedicado à
imprensa, vou acordar e deitar-me muito cedo, porque a logística das rádios resulta
mais de manhã. Se for uma época mais criativa, se calhar acordo às 14h e deito-me
às 5h. Na realidade, sou muito adaptável aos horários.” Acordar e começar logo a
compor é algo que acontece raramente. “Resulta mais ao contrário. Quando vou
para a cama, às vezes, estou ali deitado e começa a surgir um zunzum qualquer”,
explica. “Mas uma cena ótima é lavar a loiça! Estou ali a lavar as panelas em casa
da minha mãe e é um brinquinho, começam logo as ideias todas a aparecer.” Os
próximos tempos vão ser atribulados, entre concertos (vai estar no Super Bock
Super Rock) e ensaios para a Eurovisão, mas diz ter o “modo regenerativo ativado”:
“Estou ainda na fase de arquiteturar uma forma de lidar com todas estas coisas que
são muito novas para mim.” / TIAGO MIRANDA (FOTOGRAFIA) E MÁRIO RUI VIEIRA (TEXTO)
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PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR NUNO GALOPIM
ARQUEOLOGIA
Pistas novas em
busca do túmulo
de Alexandre
BRUNO LOPES/FUNDAÇÃO EDP
Um dos maiores conquistadores da história, Alexandre, O
Grande (356-323 a.C.) começou por herdar do pai o reino da
Macedónia tendo, em apenas 12 anos, alargado as fronteiras
das terras sob o seu domínio por toda a Ásia Menor, avançando
da Pérsia até à Índia, entrando também pelo Egito. Apesar
da grandiosidade dos seus feitos militares e das heranças da
expansão da cultura helenística, o paradeiro do seu corpo ficou
perdido no tempo. Alexandre morreu, aos 32 anos, no antigo EXPOSIÇÃO
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FLASHES LIVROS
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PASSEIO PÚBLICO
35 MINUTOS COM
JOÃO PIRES
“SUGERIR
É NUNCA
ASSUMIR
NADA COMO
GARANTIDO”
O ÚNICO MESTRE SOMMELIER DA PENÍNSULA
IBÉRICA É O GRANDE VENCEDOR DO
PRÉMIO CARREIRA BOA CAMA BOA MESA 2019
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PASSEIO PÚBLICO
Como se sentiu quando soube que lhe havia sido atribuído este Prémio
Carreira Boa Cama Boa Mesa?
Qual a harmonização que considera perfeita? Senti-me, honestamente, bastante honrado.
A que o cliente e cada um de nós mais gosta. Mas... champanhe com
ostras não é de desprezar... O que acha que pode representar para si? E para os sommelier
portugueses?
E o prato ou ingrediente mais difícil de harmonizar? Representou muito, um reconhecimento que na verdade não esperava.
Nós, sommeliers, temos que aceitar que nem todos os pratos se Para os sommelier portugueses, penso que poderá eventualmente
harmonizam e que nem todos os vinhos têm uma solução. Depois não ajudar a nossa vocação, a ter uma imagem mais forte em Portugal.
se trata só dos ingredientes, mas fundamentalmente da forma como
os ingredientes são preparados. Os livros dizem-nos que espargos, Quantos vinhos já provou?
ovos, alcachofras, chocolate, para dar apenas alguns exemplos, Já perdi a conta, mas foram muitos.
são impossíveis de harmonizar com vinho. Posso garantir-lhe que
dependendo da preparação são excelentes harmonias. Finalmente, Qual vinho recomendava para quem queira perceber, realmente, o que é
é preciso não esquecer que somos todos diferentes e que quatro um vinho de qualidade?
pessoas há volta da mesa com o mesmo menu podem ter sensibilidades Existem milhares de garrafas de vinho de qualidade por esse mundo fora,
diferentes. Depois depende muito também do fator cultural. por isso é arriscado e injusto escolher uma.
Tem na carta dos restaurantes que coordena vinhos portugueses? Trabalha em Macau. O regresso a Portugal é uma vontade?
Sim, claro. Por exemplo, o restaurante francês com duas estrelas Gostava muito de regressar, está nos meus planos e espero que venha a
Michelin The Tasting Room oferece cerca de 60 vinhos portugueses, concretizar-se. Aguardo uma oportunidade. b
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CARTAS ABERTAS
/ COMENDADOR
MARQUES DE CORREIA
E
DURANTE O CARNAVAL E NÃO SÓ
ESTRANHEI QUE A MÁSCARA MAIS USADA FOSSE A DE VÍTOR GASPAR.
SE NÃO DERAM POR ISSO, AINDA SÃO MAIS ESTRANHOS DO QUE OS MASCARADOS
Gaspar. Por isso, eu não sou daqueles que dizem que ele fez
tudo mal, sou dos que dizem que ele comunicou tudo mal.
Não sei se era por falar devagarinho e não ter tempo para mais
explicações, mas penso que ficou demonstrado que é possível
dizer aos portugueses que a austeridade acabou e continuar a
austeridade por outros meios, no essencial continuando a obra
começada pelo dr. Gaspar. É algo que tem de ser visto com
cuidado, mas que é perfeitamente possível.
O meu nome é Mário Centeno.
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SABORES E ‘GLAMOUR’
PARISIENSES EM LISBOA
Reconhecida pelos já icónicos
macarons recheados com um
delicioso ganache,
a Maison Ladurée delicia
e deslumbra os sentidos JOAQUIM DE SOUSA
com uma ementa exclusiva O ‘CHEF’
e um ambiente de luxo
ao estilo Marie Antoinette
DA LADURÉE
GALARDOADO
LOCALIZADO na zona mais O chefe executivo de pastelaria
sofisticada da capital portuguesa, a dos restaurantes Ladurée Portugal
Avenida da Liberdade, o restaurante e JNcQUOI, Joaquim de Sousa,
Ladurée Fashion Clinic, no Tivoli é o responsável por replicar todas as
Fórum, atrai as atenções e os paladares. sobremesas da casa em Lisboa, desde
Numa primeira impressão pela sua DE PARIS PARA O MUNDO a sua abertura, em novembro de 2017.
atmosfera elegante, inspirada na corte A atual Maison Ladurée tem uma Em janeiro passado viu o seu trabalho
francesa do século XVIII, e depois pelo experiência e história com mais de reconhecido pelos Prémios Mesa
Marcada (um blog de gastronomia
cartão de visita da casa: a sua vasta 150 anos. Foi em 1862 que a família
que desde 2009 elege os melhores
coleção dos famosos macarons double Ladurée abriu uma padaria no número chefes de cozinha e restaurantes de
decked recheados. Mas neste espaço 16 da Rue Royale, uma pequena rua cada ano), através do Prémio Especial
requintado há outras iguarias doces e no coração de Paris. Um incêndio Delta Chefe Pasteleiro do Ano (2018),
salgadas que convidam a verdadeiras obrigou a uma remodelação que atribuído por um painel composto por
experiências sensoriais, como toda a transformou em pastelaria e, 27 chefes especialistas em pastelaria.
uma gama de viennoiseries, chás mais tarde, viria a tornar-se um dos Joaquim de Sousa é um especialista
gourmands e de autoria, sobremesas primeiros salões de chá com lugar de topo em pastelaria com quase
geladas irresistíveis, entre menus para reservado na cultura fervilhante três décadas de experiência. A
pequenos-almoços, almoços e lanches, da Cidade-Luz. A atmosfera sofisticada sua carreira desenrolou-se tanto
com destaque para o Le Brunch, ideal e a história deste espaço de culto viriam em França, onde nasceu, como em
Portugal, tendo passado por vários
para fins de semana descontraídos. e tranquilidade, onde se incluem os a seduzir o empresário David Holder,
restaurantes com estrelas Michelin
Servido entre as 10 e as 16 horas, clássicos croissants e pain au chocolat, do Grupo Holder, que, em 1993, e por hotéis de renome, como os
aos sábados, domingos e feriados, pain perdu e chocolate quente Ladurée. decidiu adquirir a icónica casa gaulesa do Grupo Pestana, Tivoli e mais
esta refeição informal, que substitui Para além do brunch, existem dois e expandir o negócio. A Ladurée está recentemente pelo The Oitavos
o pequeno-almoço e o almoço, pequenos-almoços completos atualmente presente em 24 países, Palace Hotel, além de ser formador
é composta por uma seleção de (o Ladurée e o Champs-Elysées), espalhadas pelos grandes continentes na Escola de Hotelaria e Turismo
especialidades a degustar com prazer ou pratos como os Ovos Bénédictine. europeu, asiático e americano. do Estoril.
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DANIEL LEAL-OLIVAS/AFP/GETTY IMAGES
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os últimos 20 anos, aprendi a gostar de chá e a con- 12 DE JANEIRO, SÁBADO TERRENO O jornalista
duzir no lado errado da estrada. Casado com a es- Outra estatística de início de ano. Em 2018, a Re- Paulo Anunciação
critora inglesa Christina Lamb, troquei o sol do Es- pública da Irlanda recebeu quase 200 mil pedidos numa das várias
toril por uma casa em Londres, onde diariamente se de nacionalidade apresentados por cidadãos bri- manifestações
testam os méritos da mais velha aliança do mun- tânicos. O Governo, em Dublin, teve de aumentar motivadas pelo ‘Brexit’
do. Nos últimos tempos, o ‘Brexit’ tomou conta da o número de funcionários, de forma a lidar com o
vida da minha família — e de tantas outras — do aumento de pedidos, que mais do que duplicaram
Reino Unido. desde o referendo de 2016. Quem for neto de irlan-
dês nascido na Irlanda tem grande possibilidade de
4 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA receber passaporte.
Hoje fomos ao teatro ver uma reposição de “Barber
Shop Chronicles”, uma peça fascinante e diverti- 13 DE JANEIRO, DOMINGO
da escrita pelo nigeriano Inua Ellams. Depois do Costuma dizer-se, por aqui, que houve 17 milhões
teatro encontrámo-nos com Nicolas Kent, que nos de razões para deixar a União Europeia — uma por
tinha oferecido os bilhetes. Nick é um homem en- cada eleitor que votou a favor do ‘Brexit’ no refe-
cantador, de 74 anos. Ao longo de três décadas, foi rendo de 23 de junho de 2016 (na verdade, foram
encenador e diretor artístico do Tricycle Theatre, 17.410.742 votos a favor do ‘Brexit’). Na noite do
em Londres, um teatro que criou, com ele, uma referendo, lembro-me de ver uma reportagem do
enorme tradição de intervenção política. Quan- Channel 4 num lugarejo do País de Gales profun-
do a conversa aterrou, invariavelmente, no tema do. Esta região receberá, no total, mais de 2 mil
‘Brexit’, Nick fez uma revelação surpreendente. O milhões de libras dos fundos estruturais da União
pai dele era um empresário judeu alemão que se Europeia no período entre 2014 e 2020. Em termos
refugiara na Inglaterra em 1936. Durante a guer- per capita, o País de Gales recebe mais do dobro de
ra, mudara o nome de Kahn para Kent. Os Kahn qualquer outra região do Reino Unido. A maioria
judeus que ficaram para trás, na Alemanha nazi, dos galeses (53%), no entanto, escolheu o ‘Brexit’.
acabaram nos campos de extermínio do Holocaus- Na reportagem, uma eleitora, idosa, queixava-se da
to. Nick contou-nos, agora, que tinha pedido a na- União Europeia. Ela votara ‘Brexit’, explicou, por-
cionalidade alemã, ao abrigo da legislação germâ- que alguém mandara demolir uma casa de banho
nica que reconhece o direito aos descendentes de pública de que ela gostava particularmente no cen-
judeus alemães — como o pai — que tinham fugido tro da aldeola. As motivações para o voto, de fac-
do país e perdido a nacionalidade por força de um to, surpreendem. O meu sogro, por exemplo, que
decreto nazi de 1941. “Porquê a Alemanha? Por um sempre votou no Partido Trabalhista, anunciou que
lado, por repulsa do isolacionismo do ‘Brexit’. Mas ia votar a favor da saída da União Europeia apenas
também por admiração pela nova Alemanha”, ex- por causa de uma enorme antipatia em relação ao
plicou Nick. “E, já agora, para continuar a ter um (então) primeiro-ministro David Cameron. Menino
passaporte da União Europeia.” Ele não é o único. rico, neto de baronete, com o cabelo sempre impe-
Mais de 3600 britânicos descendentes de judeus cavelmente puxado para trás da testa luzidia, Ca-
alemães pediram a nacionalidade do mesmo país meron teve o percurso típico (colégio de Eton, Uni-
cujo regime, no século passado, dizimou tantos versidade de Oxford, Partido Conservador) e exibe
dos seus avós e tios-avós. aquela enorme autoconfiança, quase arrogância, de
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uma classe privilegiada que o meu sogro tanto des-
preza. O meu sogro tem mais de 90 anos e, infeliz-
mente, não é totalmente independente em termos
de mobilidade. No dia do referendo, a minha sogra
foi votar (ela é fervorosamente contra o ‘Brexit’).
Deixou o marido em casa sozinho.
18 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA
A família da minha mulher está dividida ao meio,
como o resto do país. Logo em junho de 2016, eu
comentei que essa divisão coincidia, curiosamen-
te, com a divisão entre quem estudou ou quem não
estudou na universidade. Ou seja: os familiares
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dela que têm estudos superiores votaram contra
o ‘Brexit’; os familiares que não têm estudos su-
periores votaram a favor do ‘Brexit’. A minha mu-
lher fica incomodada com esta conversa. Claro que
nem sempre se devem fazer generalizações deste
tipo. É muito provável, por exemplo, que todos os
racistas britânicos tenham votado a favor da saída obrigatória votaram a favor do ‘Brexit’. Vou a cor- 23 DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA
da União Europeia. Mas será que os 17,4 milhões rer, de revista na mão (e sorriso de vitória nos lá- “Na manhã seguinte ao referendo tivemos uma
que votaram a favor do ‘Brexit’ são racistas? Cla- bios), mostrar o artigo à minha mulher. reunião plenária de docentes e lembro-me de ver
ro que não. Um terço do eleitorado britânico que várias pessoas a chorar”, conta-me o professor João
pertence a uma minoria étnica votou ‘Brexit’. O 20 DE JANEIRO, DOMINGO Paulo Silvestre, do King’s College London. Hoje à noi-
saldo migratório no país atingiu um número re- Café e bolo na Lisboa Patisserie, em Golborne Road, te, um grupo de professores e alunos desta universi-
corde de 333 mil pessoas durante o último ano do a dois passos de Portobello. Nos últimos anos, os dade — que tem, com orgulho, a mais antiga (1919)
Governo do primeiro-ministro David Cameron e pastéis de nata tomaram conta de Londres. Mas eu cátedra de Estudos Portugueses no país — organizou
da então ministra da Administração Interna The- continuo fiel aos da Pastelaria Lisboa, que abriu há um serão de poesia e música lusófonas na capela. Po-
resa May — as mesmas duas pessoas que passaram 33 anos, numa rua onde antiquários e restaurantes emas de Sophia, José Régio, Ana Luísa Amaral, Ramos
anos a garantir que iriam reduzir drasticamente a muito cool começam agora a tomar o lugar das an- Rosa, entre outros. Por vezes ditos com um inespera-
imigração. Aquela estatística oficial dos 333 mil, tigas lojas de portugueses e de magrebinos. Na fila do toque tropical. No final, entre azeitonas e um copo
divulgada no dia 29 de maio de 2016 — a poucas de mesas de pedra fria, debaixo do painel de azu- de vinho, Silvestre explica que o ‘Brexit’ pôs em risco
semanas do referendo —, foi talvez o fator que lejos com uma imagem da Lisboa quinhentista, um a componente europeia dos cursos de línguas moder-
mais influenciou a vitória do ‘Brexit’. Não deixo de grupo de mulheres portuguesas discute a subida nas e que nos últimos dois anos houve um decréscimo
reparar, no entanto, num estudo sobre o referen- dos preços nos supermercados londrinos. O Rei- de 50% no número de estudantes britânicos. Mas o
do de 2016 publicado hoje nas páginas da “Eco- no Unido importa mais de metade da comida que número de portugueses no King’s College aumentou.
nomist”. Parece que, afinal, mais de dois terços consome. A libra valia mais de 1,40 euros em 2015 “Por enquanto, os portugueses ainda pagam a mesma
dos eleitores com estudos superiores votaram a e 1,26 euros na véspera do referendo de 2016. Ago- coisa que os britânicos, mas com o ‘Brexit’ não sabe-
favor da permanência na União Europeia, enquan- ra ronda 1,11 euros, sem quaisquer sinais de uma mos se vai continuar assim.” Como numa corrida aos
to 70% dos eleitores que só têm a escolaridade tendência inversa. últimos dias de saldos.
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26 DE JANEIRO, SÁBADO
Jantar em casa de M., embaixadora do Reino Unido
e amiga da minha mulher. Numa fase de transição
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entre o último posto (num país do Médio Oriente)
e o próximo posto (num país africano), M. está a
passar uma temporada a trabalhar em Londres, no
Foreign Office, o Ministério dos Negócios Estran-
geiros britânico. Ela é surpreendentemente franca
nas críticas ao antigo ministro Boris Johnson. No presente na rua principal de qualquer cidadezinha
dia 6 de julho de 2018, Johnson apoiou o chama- das Ilhas Britânicas. Hoje de manhã, ela foi visi-
do Chequers Plan, proposto pela primeira-minis- tar a nova loja, descrita algo pomposamente como
tra Theresa May. Mas quando soube que o ministro “boutique independente de ótica”. Pouco depois,
do ‘Brexit’, David Davis, pedira a demissão, Boris uma mulher que parecia ter 30 e poucos anos en-
Johnson não quis ficar para trás. No dia 9 demitiu- trou de rompante na loja. Trocou umas palavras de
-se do Foreign Office. “Não imaginam o enorme circunstância com o empregado, pegou no saco
suspiro de alívio que se ouviu em todos os gabi- que a loja já tinha preparado e perguntou, ansiosa:
netes e corredores”, diz M. Como ministro, Boris “Para 12 meses?” “Sim, para 12 meses”, garantiu
Johnson tinha dificuldade em concentrar-se nos o empregado. Ela correu de volta para o Lexus pre-
detalhes da diplomacia e da política externa. “Um to que deixara na rua com o motor a trabalhar e as
bluff total. Mal preparado, desinteressado, preocu- quatro luzes a piscar. 12 meses de lentes de contacto
pava-se unicamente na autopromoção. Não havia são muitas lentes de contacto. “‘Brexit!’”, suspirou
um único ministro europeu que o levasse a sério.” o empregado. “Alguns dos nossos clientes estão a
Johnson regressou entretanto ao seu antigo lugar, abastecer-se para o que der e vier.”
na retaguarda da bancada parlamentar. “The Dai-
ly Telegraph” ofereceu-lhe um contrato de 275 mil 2 DE FEVEREIRO, SÁBADO
libras (320 mil euros) anuais para escrever uma co- Jantar de família, em nossa casa. Chris Heaton-
luna semanal. Todas as segundas-feiras, Johnson -Harris é casado com Jayne, prima direita da mi-
— figura maior do projeto ‘Brexit’ — enche as pági- nha mulher. Chris foi deputado europeu durante 10
nas do jornal com uma foto em pose churchilliana anos. Em 2010 foi eleito para o Parlamento nacional
e um texto que mistura as habituais metáforas, as e agora é igualmente secretário de Estado no Go-
citações pretensiosas de clássicos e os comentários verno de Theresa May, no Department for Exiting
pouco coerentes sobre o ‘Brexit’, a fronteira na Ir- the European Union — mais conhecido, apenas,
landa ou o futuro glorioso da nação. “The Daily Te- como Ministério para o ‘Brexit’. Antes de ser cha-
legraph”, por sinal, é o único diário generalista que mado para o Governo, Chris presidiu durante anos
mantém o antigo formato broadsheet — o tamanho ao European Research Group, o bloco de deputa-
ideal, explicaram-me, para os ingleses que querem dos conservadores mais eurocéticos. Falamos sobre
esconder-se e evitar a todo o custo o contacto vi- as férias na América do Sul, os filhos, as novidades
sual com estranhos no metropolitano. do Netflix ou mesmo sobre futebol (Chris foi árbi-
tro federado). Como em tantas outras famílias bri-
28 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA tânicas, hoje em dia, a conversa sobre o ‘Brexit’ e a
No final do ano passado abriu um novo oculista Europa não chega à mesa de jantar. Por uma ques-
no nosso bairro. A minha mulher usa óculos para tão de maneiras. Chris está com menos cabelo e pa-
escrever e não estava contente com o serviço de- receu-nos mais velho (“É o que acontece a quem
sinteressado que recebeu no Boots local, a gigan- defende o ‘Brexit’”, comentou a minha sogra, com
tesca rede de farmácias-oculistas-artigos de saúde enorme crueldade, no dia seguinte).
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3 DE FEVEREIRO, DOMINGO 6 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA ou cancelados. A primeira semana de abril será, em
Passeio pelo Hyde Park, incluindo uns minutos no Karen Dacre, editora de moda do “London Evening princípio, a primeira semana do Reino Unido após
Speakers’ Corner, na extremidade do parque per- Standard”, encontrou um paralelo entre o ‘Brexit’ e o ‘Brexit’. Decidimos não arriscar.
to de Marble Arch. Lembro-me de ir lá em crian- o famoso Lipstick Index, o Índice Batom, inventado
ça com o meu pai. Ele nunca foi grande anglófilo, por Leonard Lauder, patrão da gigante do mundo 13 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA
talvez porque nunca chegou a dominar a língua da cosmética Estée Lauder. Segundo as leis daque- Parece que não fomos os únicos a pensar assim. Os
inglesa tão bem quanto a francesa (a França era a le índice, as vendas de batom costumam aumen- operadores turísticos queixam-se de um abranda-
mãe-pátria, e as duas semanas de férias em Paris, tar de forma significativa em tempos de crise eco- mento significativo no número de reservas feitas
em setembro, eram uma espécie de ritual sagra- nómica. Dacre garante que o número anormal de em janeiro e fevereiro, os meses em que tradicio-
do). Mas lembro-me de como admirava o Spea- vestidos de cor amarela vendidos nas últimas se- nalmente os britânicos programam as suas férias
kers’ Corner. Naquele canto do Hyde Park, aos do- manas, no Reino Unido, está ligado ao ‘Brexit’. Tal de verão. As famílias têm medo de filas nos portos
mingos, ele olhava com fascínio aquele punhado como o batom, os vestidos de cor radiante atual- e aeroportos, cancelamentos ou mesmo eventuais
de oradores espontâneos que, de pé num caixote mente bestsellers na Boden e na Net-A-Porter serão problemas nas estradas europeias (no caso de ‘Bre-
de madeira, discursavam sobre tudo e mais al- uma espécie de antídoto contra a ‘Brexhaustion’ (a xit’ sem acordo, as cartas de condução britânicas
guma coisa, esbracejavam e debatiam com quem exaustão provocada pelo tema ‘Brexit’) ou a BAD deixarão de ser válidas na União Europeia, a não ser
parasse para ouvir, mantendo viva a tradição bri- (de ‘Brexit’ Anxiety Disorder, ou perturbação de que estejam acompanhadas por uma licença inter-
tânica da liberdade de expressão. Essa tradição ansiedade provocada pelo ‘Brexit’). Vou estar mais nacional). Os operadores turísticos passaram a in-
continua. Os oradores, hoje, trocaram os caixotes atento nas ruas de Londres. cluir a chamada “taxa ‘Brexit’” nos pacotes — uma
de madeira por pequenos escadotes de alumínio, taxa que pode chegar aos 8% e que será cobrada no
e a maioria dos discursos e dos debates parece ser 8 DE FEVEREIRO, SEXTA-FEIRA caso de um “aumento demonstrável” dos custos de
sobre religião. Quando chegámos, um americano Com o novo livro quase pronto e a entrar na fase de um pacote provocado por variações cambiais sig-
de calças vermelhas, botas e chapéu texano ten- revisões, a minha mulher pondera a possibilidade nificativas ou novas taxas e impostos. “Mudámos
tava responder com trechos da Bíblia às interpo- de aceitar ou não um convite para participar numa os planos das férias da Páscoa. Vamos para Devon
lações provocatórias de um grupo de jovens. As conferência-debate em Paris. A palestra seria na em vez de ir para Portugal. Ficámos com medo das
interrupções e os protestos fazem parte do Spe- quinta-feira, e a perspetiva de um fim de semana eventuais filas nas fronteiras, poucos dias depois do
akers’ Corner. Outro orador pregava o evangelho alargado a explorar as livrarias, os cafés e as galerias ‘Brexit’. Temos crianças de 10 meses e de 5 anos e
do veganismo. Um outro ainda dizia-se represen- dos quartiers parisienses anima a conversa do pe- não quisemos correr o risco”, explica Charlotte Bu-
tante do partido Justice for Men & Boys, um tal queno-almoço. Mas há um problema. A conferên- tler, diretora de uma agência de consultoria, nas
J4MB de defesa dos direitos dos homens e dos ra- cia está marcada para a primeira semana de abril. E páginas do “The Times” de hoje.
pazes. Curiosamente, não havia ninguém a deba- de repente tudo muda na imagem que se guarda das
ter as virtudes e os defeitos da União Europeia ou viagens Londres-Paris. Em vez do copo de cham- 17 DE FEVEREIRO, DOMINGO
do ‘Brexit’. A tradição do Speakers’ Corner existe panhe na estação de St. Pancras e do rápido con- Primeiro foi Sir James Dyson, inventor da tecno-
há mais de um século, e os casos de violência são trolo fronteiriço, com passaporte eletrónico, antes logia ciclone para aspiradores. Em janeiro ficámos
raríssimos. Dois agentes estavam sentados, mais de se entrar no comboio Eurostar — que nos deixa a saber que a sede da Dyson vai mudar-se do Rei-
ou menos aborrecidos, dentro de um carro da Me- no centro de Paris umas duas horas e pouco mais no Unido para Singapura. Hoje é a vez de Sir Jim
tropolitan Police arrumado por perto. “A única vez tarde —, surge esta imagem meio nebulosa, a pre- Ratcliffe. O homem mais rico das Ilhas Britânicas,
em que vi confusão por aqui foi por causa de uma to e branco, de uma locomotiva a vapor, de enor- dono da gigante petroquímica Ineos, vai mudar-
discussão sobre o ‘Brexit’”, diz-me Mike, um dos mes filas, crianças a chorar, apitos e gestos frené- -se para o Mónaco. Tanto Dyson como Ratcliffe são
ativistas do J4MB. ticos dos guardas ferroviários, comboios atrasados dois brexiteers que passaram horas a garantir-nos,
HANNAH MCKAY/REUTERS
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durante a campanha, que o ‘Brexit’ iria ser um êxi-
to. Mas depois decidem que o melhor, mesmo, é
não ficar cá a desfrutar desse êxito.
19 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA
Antigamente, a barreira maior, intransponível, era a
da religião: protestante não devia/podia casar com
católico, ponto final. Mas isso é coisa do passado.
Agora, até mesmo o herdeiro da Coroa britânica está
autorizado a casar com católicos (o decreto de 1701
foi alterado em 2013). O anátema, hoje em dia, é di-
ferente. Anda à procura de amor? Então não menci-
one o ‘Brexit’. Segundo uma sondagem da YouGov,
37% dos remainers (a favor da União Europeia) fa-
riam tudo para travar o casamento de um familiar
que tivesse o desaforo de querer desposar um apoi-
ante do ‘Brexit’. Gillian McCallum, CEO da DDM —
a mais antiga agência matrimonial do país, fundada
na década de 1980 —, aparece nas páginas de vários
jornais do dia. A DDM cobra 6800 libras, quase 8 mil
euros, por cliente. Os homens, diz ela, não são tão
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exigentes quanto as mulheres. “A primeira coisa que
eles pedem é bondade e gentileza e a segunda é nada
de cirurgias plásticas.” As clientes femininas procu-
ram, em primeiro lugar, homens altos. Mas, segun-
do McCallum, o ‘Brexit’ tornou-se a palavra referida
mais vezes pelos clientes da agência como obstáculo
intransponível a um potencial relacionamento. “Os
remainers são mais irredutíveis. Eles pura e simples-
mente recusam qualquer encontro romântico com
um candidato que seja a favor do ‘Brexit’”, diz. A “Horrid Henry”, que venderam mais de 20 milhões
senhora tem 40 anos, dentes perfeitos, um colar de de exemplares (“Henrique, o Terrível”, na tradução
pérolas e uma longa cabeleira castanha, de duquesa. portuguesa, pouco feliz). No afterparty, não demora
Curiosamente, continua solteira. muito até alguém falar na ‘palavra que começa por
B’. A história de “The Monstrous Child” é sobre uma
19 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA (II) miúda, filha do deus nórdico Loki, e da missão dela
A Honda anunciou agora que vai fechar a fábrica à procura de um lugar próprio no mundo da mito-
de Swindon, no sudoeste da Inglaterra, até 2021. logia. Há quem veja um paralelo com a saga da Grã-
Pelo menos 3500 pessoas vão perder o emprego. -Bretanha num mundo após o ‘Brexit’. Francesca
Algumas semanas antes, outro fabricante automó- parece mais preocupada com Louis e a possibilida-
vel japonês, a Nissan, anunciara que a produção de de ele deixar de poder viajar livremente com ela
dos SUV X-Trail iria deixar de ser feita em Sun- para a casa no sul de França. Louis é um Spaniel Ti-
derland, no nordeste da Inglaterra. Esta fábrica betano. As viagens para lá da Mancha nunca são um
emprega mais de 7 mil trabalhadores. As marcas problema (o cão tem um passaporte comunitário).
japonesas usam o Reino Unido como plataforma Chegou a altura, talvez, de me esconder num canto.
para a Europa, mas o ‘Brexit’ complica esse arran- Fixo-me no ecrã do telemóvel, peneirando rapida-
jo. A Nissan foi bem clara, justificando a decisão mente as mensagens que me chegam do Porto e de
com a “incerteza continuada à volta da relação fu- Lisboa. Outros deuses, outra saga mitológica, luta-
tura do Reino Unido com a Europa”. Num artigo vam naquela altura no relvado do Estádio do Dragão.
no “The Sunday Times”, no entanto, o antigo mi- Esqueci o ‘Brexit’.
nistro do ‘Brexit’, David Davies, não perde o oti-
mismo. Os fabricantes de automóveis na Alema- 4 DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA
nha, diz ele, vendem cerca de um terço dos seus O turbilhão do referendo deixou o país dividi-
carros no Reino Unido e estão em pânico com a do, quebrado ao meio. O impasse no Parlamen-
possibilidade de perder o acesso ao mercado bri- to vai prolongar-se, provavelmente, até meados
tânico. Este foi, aliás, um tema forte da campa- de março. Será que vai vingar a versão do ‘Brexit’
nha do ‘Brexit’: a Europa precisa mais de nós do proposta por Theresa May (e que ninguém quer)?
que nós precisamos dela e por isso vai tudo correr Ou teremos um ‘Brexit’ duro, sem acordo ou sem
bem. Mas será mesmo assim? Na verdade, apenas período de transição? Ou um adiamento do ‘Bre-
17,6% dos carros exportados pela Alemanha vão xit’? Ou mesmo um novo referendo? Ninguém
para o Reino Unido. E quase 54% das exportações sabe o que vai de facto acontecer nas próximas
de automóveis britânicos vão para a UE. Quem semanas. Mas é sempre bom ver que os ingleses
terá, afinal, mais razões para pânico? não perdem o sentido de humor. Quando entro
na pequena livraria familiar na rua principal do
2 DE MARÇO, SÁBADO meu bairro, reparo no anúncio perto da secção de
Noite na Royal Opera House para uma das últimas ficção: “Nota da Direção — Os livros da secção de
apresentações de “The Monstrous Child”, uma ópera Ficção Pós-Apocalíptica passaram para a secção
da escritora Francesca Simon e do compositor Ga- de Política Atual.” b
vin Higgins. Francesca é amiga da minha mulher e
é conhecida, sobretudo, pelos livros infantis da série e@expresso.impresa.pt
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OS SEGREDOS
TEXTO
RICARDO DIAS FELNER
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DA LAGOSTA
É a mais valiosa comida do mar e a sua história está
feita de mistérios, guerras e milhões. Mas até quando
subsistirá o ícone do luxo gourmet? Mergulho nas águas
profundas da lagosta, entre Cascais e a Mauritânia
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O
À falta de matéria-prima acresce o facto de a la-
gosta ser muito delicada. As boas marisqueiras têm
aquários ou mesmo viveiros com temperatura con- EXEMPLAR Uma Palinurus elephas
trolada, água bombada do mar e oxigenação artifi- é retirada dos novos viveiros
cial. Mas não há nada a fazer. As lagostas começam do restaurante Furnas do Guincho
a morrer assim que as tiram do oceano — e o facto
de estarem vivas não significa que estejam frescas.
Daí que seja sempre aconselhável fazer o teste do
rabo: se pegar numa e ela chicotear o ar vigorosa-
mente com a cauda é bom sinal; caso contrário, es-
colha outra.
Depois, há ainda as lagostas que não estão expos-
tas nem em aquários nem em sítio nenhum. Os tro-
ços ou fiapos do crustáceo que aparecem em sopas
de marisco, arrozes ou açordas, são muitas vezes de
lagostas congeladas (oriundas, por exemplo, de Cuba
ou de outras zonas das Caraíbas) ou que morreram
nos viveiros ou no caminho. Neste caso, os vende-
dores chamam-na de “lagosta da volta”, porque su-
postamente sucumbiu no transporte, desde a captu-
dono do restaurante O Pescador, Fernando Pinto, faz ra até ao restaurante. O preço pode ser quatro, cin-
a visita guiada. Nas paredes, veem-se artes de pes- co vezes mais barato do que o da lagosta viva, mas
ca e muitas fotografias. Às tantas, detém-se. “Foi a há riscos: a morte acelera a putrefação; em poucos
partir deste dia que a casa começou a encher”, in- minutos a carne torna-se mole e esponjosa, o amo-
dica, apontando para uma moldura. Na imagem a níaco alastra.
preto e branco aparece o pai mostrando um crustá- A razão dessa decomposição rápida tem a ver
ceo enorme de patas esbracejantes. À mesa da pe- com aquilo que também torna a lagosta particular-
quena taberna da baía de Cascais estavam os atores mente saborosa: o hepatopâncreas. Esta espécie de
Audrey Hepburn, Zsa Zsa Gábor, Douglas Fairbanks fígado, situado no cefalotórax, a parte posterior da
e Gina Lollobrigida, todos convidados para a célebre lagosta (cabeça e tronco), é um concentrado notável
festa Patiño. de ácidos gordos polinsaturados, ricos em ómega 3.
Corria então o ano de 1968. Eram os tempos áu- Daí que os especialistas nunca aceitem uma lagos-
reos de Cascais como destino de gente famosa e es- ta sem antes a inspecionar, nem que lhes sirvam só
trelas de Hollywood. De repente, a antiga tasca de o rabo, preferindo-a inteira, cozida ou grelhada, e
pescadores via-se transformada num poiso para aberta ao meio. Para se perceber o que está em cau-
amantes de peixe e marisco do mundo inteiro. O pai sa, basta lembrarmo-nos do que acontece quando
de Fernando era um homem simples, mas cozinhava chupamos o cefalotórax suculento (a cabeça) de um
a lagosta como poucos. “O Patiño mudou este res- outro crustáceo decapoda, o camarão.
taurante. Ele vinha aqui e gostava muito de lagosta.
Quando foi a festa Patiño trouxe os convidados”, ex- DO FUNDO DA HISTÓRIA
plica o atual gerente. À tasca passou a acorrer a soci- Uma lagosta nas mãos de um chefe que desconheça
edade de Cascais, famosos e aristocratas: um jovem o bicho pode ser, portanto, um dos grandes desaires
Mick Jagger esteve lá, o Rei Constantino da Grécia da culinária. O chefe José Avillez — que irá reabrir
esteve lá, Ricardo Salgado tornou-se cliente e o em- em breve o restaurante Raio Verde, no Guincho —
presário Patrick Monteiro de Barros vai lá desde ado- lembra a sua estreia, enquanto consumidor, como
lescente e é, ainda hoje, um assíduo consumidor dos um fracasso. “Já devia ter uns 15 anos e fiquei de-
crustáceos da casa. siludido porque não estava muito bem cozinhada”,
Na mesa, nunca faltou lagosta, mas hoje em dia conta ao Expresso. O problema terá sido o excesso de
os aquários estão menos recheados. O marisco mais cozedura, um erro habitual que torna a carne seca.
caro do mundo começa a falhar no mar e isso nota- Hoje em dia, Avillez é um apreciador da delicadeza
TIAGO MIRANDA
-se em terra. Quem quer o melhor produto, tem de das lagostas nacionais, com 800 gramas a um qui-
comprar por baixo da mesa ou bater-se com os es- lo de peso.
panhóis. “Chega quase tudo aqui à doca e vai dire- A preferência pelas lagostas portuguesas é anti-
tamente para Vila Real de Santo António, para ser ga e ultrapassa fronteiras. Em Portugal, desde pelo
vendido aos espanhóis”, diz Fernando Pinto. menos o século XIX que o seu valor está registado.
O quilo da lagosta nacional, a Palinurus elephas, E se Cascais é uma espécie de capital cultural des- na imprensa da altura. Um artigo do jornal “Povo
de cor castanha-violeta, anda entre os 50 e os 70 eu- te marisco, a costa de Peniche até à Ericeira sempre Marítimo” dava, inclusive, conta de episódios de
ros, na venda aos restaurantes, e pode chegar aos 130 teve fama de albergar os melhores exemplares, cha- troca de tiros em alto mar, envolvendo embarcações
euros para o consumidor final. Por causa do preço, mando pesqueiros do resto da Europa. gaulesas e de Peniche. O autor do texto sublinhava
frequentemente, mesmo em restaurantes da espe- No livro “As Chalupas Francesas”, de Francis- a importância da lagosta para a economia nacio-
cialidade, os exemplares que se veem nos aquári- co Esteves, dá-se conta da invasão de embarcações nal e indignava-se com a ousadia. “A pesca da la-
os são da espécie Palinurus mauritanicus, a também francesas — as tais chalupas — carregadas de covos, gosta é importante em Portugal. Só no ano de 1907
chamada lagosta verde, de cor mais clara. Vêm de então uma novidade por estas bandas. Em França e se pescaram 106.276 destes crustáceos, num valor
Marrocos, Cabo Verde e Mauritânia e a sua carne é Espanha, por volta de 1900, a lagosta era já uma das de 20.923$241 réis. A sua qualidade é excelente, o
mais fibrosa, mais adocicada, com o lombo mais es- iguarias preferidas da aristocracia, razão pela qual que tenta os estrangeiros a vi-los arrancar às nos-
treito. O preço destas lagostas africanas, em janei- as águas entre o Cabo de São Vicente e as Berlen- sas águas.”
ro, andava pelos 40 a 50 euros o quilo, na revenda gas estavam cheias de barcos espanhóis e, sobretu- Numa edição da revista “Ilustração Portugue-
aos restaurantes; neste momento, com a abertura da do, franceses. sa”, de 1912, chamava-se também a atenção para
pesca na Mauritânia, em fevereiro, já terão baixado Essa intromissão haveria de resultar em conflitos o seu valor comercial, que andaria pelo equivalen-
para os 30 a 40 euros. armados e diplomáticos, abundantemente relatados te hoje a 10-15 euros a unidade, o dobro do preço
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do lavagante. Certos exemplares de eleição podiam lagosta portuguesa, sobretudo da que habita o mar pelo menos de 15 em 15 dias. Homem viajado, ma-
atingir preços impensáveis para a época, como no frio e batido entre o Cabo da Roca e as Berlengas. Já rinheiro, sabe do que fala. “O marisco da Galiza até
caso das seis lagostas nacionais que se diz terem su- pescou uma com 2,3 quilos, hoje uma raridade, mas ao cabo de São Vicente [em Sagres] tem águas frias. E
bido a “bordo do yatch ‘Albert’, a dois mil réis cada” “a média anda nos 700, 800 gramas”, adianta, “sen- na região do Cabo da Roca e Cascais a percentagem
(perto de 90 euros). O barco em causa era o célebre do que o ideal é terem um quilo”. de iodo é mais alta e isso penetra na carne”, justifica.
iate “HMC Victoria and Albert”, embarcação dos reis O maior problema é mesmo a quantidade. “Com No livro “Camarões e Lagostas da Costa Conti-
de Inglaterra, apreciadores daquele “mimo raro.” A redes, o máximo que se pode pescar de lagosta é cin- nental Portuguesa”, dos investigadores Ricardo Ca-
procura estrangeira — lia-se no artigo — fazia escas- co por cento de toda a pescaria”, diz, defendendo lado e Luís Narciso, estão referenciadas duas espé-
sear o produto nas “esplêndidas saladas” que “eram que sejam adotadas medidas ainda mais drásticas, cies e um primo lagosteiro, entre os que têm valor
a delícia, o aperitivo, o soberbo petisco apreciado como o alargamento da época de defeso, atualmente comercial. Além da Palinurus elephas, encontra-se
como um prato bem nacional”. estabelecido entre 1 de outubro e 1 de janeiro. a Palinurus mauritanicus, de cor rosácea, que Tor-
Hoje em dia, estes lamentos mantêm-se, tal Parte das lagostas que António Torcato pesca vão cato chama de lagosta tourina “e que vive a mais
como a ideia de que Peniche é a campeã da lagos- parar ao estômago de Patrick Monteiro de Barros. de 100 metros de profundidade”. O primo é o lava-
ta nacional. António Torcato, pescador experiente O velejador e empresário português é também um gante, mais comum no Norte da Europa e nos EUA,
de Peniche, não tem dúvidas sobre a qualidade da grande apreciador de lagosta nacional, que degusta mas que no século XVIII era comida de presidiário
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CONFEÇÃO 1 A lagosta nacional distingue-se por ter uma cor castanha-escura e manchas amareladas 2 O preço por quilo pode chegar aos 130 euros
3 A cozedura deve ser breve. Vinte minutos por cada quilo, sugere Paulo Félix, do Furnas 4 Para se fazer o corte ao meio tem de se ter uma faca muito afiada
5 Pronta a servir. Nunca deixe que a sirvam cozida sem a cabeça e a casca 6 A carne da lagosta é firme, delicada e ligeiramente doce
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FOTOGRAFIAS TIAGO MIRANDA
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e estrume para os campos. Quer o lavagante quer a pela qual os viveiristas estão sempre em alerta para comprar e algumas pediam para as cozer ou grelhar,
lagosta portuguesa são indicados no livro, editado já as mudanças de carapaça — um dos fenómenos mais no local”, diz Alexandre Ramos. À superfície, nas-
em 2002, como estando em perigo de conservação. fascinantes do mundo animal. Quando isso aconte- ceu então um prefabricado abarracado, que se foi
De fora da listagem de camarões e lagostas pode- ce, o exoesqueleto da lagosta é substituído para que modernizando até ser o que é hoje: um restauran-
rão ter ficado espécies não autóctones, introduzidas o corpo continue a crescer. O problema é que a troca te com capacidade para 300 lugares sentados, uma
pelos humanos na costa portuguesa, por descuido. demora e, nesse intervalo, a lagosta fica particular- confortável bancada sobre o Atlântico.
Na zona da Guia, por exemplo, muitos ouviram a mente vulnerável: se estiver junto de outros congé- Pelo meio, no entanto, houve um devaneio.
história de uma comunidade budista que comprou neres — e nos viveiros acontece haver 10 bichos por Quando se tornou sócio, em 1981, ao lado do gene-
lagostas sul-africanas à empresa Pesca Verde, para metro quadrado — não tem hipótese. ral Pires Veloso (tio do cantor Rui Veloso), o que lhe
depois as soltar no mar, como um ritual de liberta- interessava era mesmo a gruta. Era aí que tencionava
ção das almas. A espécie era a Jasus lalandii, conhe- PIANO À BEIRA-MAR construir uma grande discoteca. “Tinha um piano-
cida pela sua agressividade. Este tipo de prática, já De O Pescador, no porto de pesca de Cascais, an- -bar em Cascais, só sabia do negócio da noite. Não
referenciada noutras partes do mundo, pode causar damos meia dúzia de quilómetros, até ao Furnas do percebia nada de restaurantes”, confessa. O projeto
sérios desequilíbrios no habitat marinho e constitui Guincho. O restaurante tem uma localização notá- megalómano concretizou-se num bar com músi-
um crime ambiental. vel, o mar mesmo ali ao lado, golfinhos a passear ca ao vivo, mas haveria de ser boicotado pela natu-
ao largo. Por estes dias, é o mais procurado da zona reza, aquando das marés vivas. “O mar até o piano
DINHEIRO NAS ROCHAS para peixe e marisco. Fernando Pinto leva-nos a me levou”, conta. Hoje, Alexandre Ramos recorda
A ameaça aos stocks de lagosta em Portugal é ala- conhecer o proprietário e concorrente, Alexandre com graça a história, mas na altura perdeu “mui-
vancada por um negócio de milhões. De acordo com Ramos, conhecido por “Xana”. “Está aqui o Pors- to dinheiro”.
pessoas ligadas ao sector, o mercado é pouco trans- che dele, é porque está cá”, atira, caminhando nas No escritório, na parede, estão fotografias desse
parente e dominado por clãs. Um vendedor de ma- suas sapatilhas Alexander McQueen, no parque de tempo onde se vê a escada corrida que descia até às
risco, que não se quis identificar, garante que a la- estacionamento. catacumbas, vinda do parque de estacionamento. O
gosta nacional é vendida “pela porta do cavalo, sem Nas traseiras do restaurante, encontramos Ale- acesso está agora vedado, só restando o buraco por
faturas”. Dois chefes portugueses, com experiência xandre à secretária, concentrado a contar moedas de onde se descia, uma cratera natural a que chama-
nesta matéria, confirmaram esta ideia. A compra e dois cêntimos, a máquina de calcular à frente. “Es- vam de Furna dos Cavalos, por servir de cemitério
venda de marisco é um mercado “mafioso”, em que tás a ver, é assim que se enriquece”, diz Fernando, a estes animais.
os preços e os produtos disponíveis, de crustáceos a cumprimentando-o. A razão da visita tem a ver com Se o Furnas do Guincho é o que mais lagostas
bivalves, são “combinados” entre os maiores ope- o facto de ali mesmo por baixo, no subsolo, terem vende no Guincho, antigamente outros restauran-
radores, concretiza um deles. “Quem não entra no existido umas furnas lagosteiras míticas. Do lado do tes brilhavam na região, atraindo os milionários e os
esquema sofre as consequências”, corrobora outro mar, nas rochas, ainda hoje é possível ver a enorme gourmands do concelho. O que chegou mais alto foi
cozinheiro. Ambos recusaram ser identificados, com garganta na laje, semitapada com tijolos furados. Lá o Pipas, na vila de Cascais, aberto em 1970 por dois
medo de represálias. dentro, há uma caverna com o comprimento de um galegos e um sócio português. O restaurante have-
O Expresso procurou ouvir um dos mais refe- campo de futebol, 110 metros. No início do século, ria de alcançar a estrela Michelin em 1974, conser-
renciados importadores e revendedores de lagosta essa gruta serviu de depósito para milhares de la- vando-a até 1978. Um dos pratos que mais clientes
em Portugal, Ataíde Conceição Martins. Juntamente gostas, com o começo da exploração a datar de 1921. atraía (entre eles Juan de Borbón, pai de Juan Carlos
com a mulher, é sócio-gerente da Pesca Verde, que “Os primeiros donos eram pescadores algarvi- de Espanha) era a parrilhada, uma travessa de ma-
comercializa lagostas vivas, sobretudo oriundas de os. A partir de 1940 as pessoas começaram a vir cá risco grelhado onde não faltava a lagosta.
África: mares de Marrocos, Cabo Verde e Mauritânia.
Nem ele nem nenhum outro funcionário da empre- A MELHOR RECEITA
sa aceitaram responder pessoalmente, por telefone No restaurante O Faroleiro, já a chegar à praia do
ou por e-mail às perguntas enviadas pelo Expresso.
Ao telefone, um funcionário justificou a recusa com “Eram as Guincho, José Pratas é dono de um segredo com dé-
cadas, guardado como um tesouro que perdeu a va-
o segredo comercial e a desconfiança face a jorna-
listas. “Jornalistas, nem pensar.” nossas saídas lidade. “Suba comigo ao primeiro andar”, convida.
No escritório do restaurante, procura agora a carta
De acordo com os testemunhos de pessoas que
já estiveram nos viveiros da empresa, a Pesca Ver- quando onde está manuscrita a célebre receita da Lagosta À
Faroleiro. “Eu tenho quase a certeza que a guardei
de terá cerca de meia centena de tanques, cada um
com uma tonelada de lagostas vivas. Situados entre tínhamos aqui”, diz, esgravatando nas gavetas. “Ei-la!”
A receita está dentro de um envelope. Fez as de-
a estrada do Guincho e o mar, incrustados nas ro-
chas, estes depósitos de crustáceos são dos poucos dinheiro lícias de cascalenses durante décadas e foi passada a
José Pratas quando comprou o restaurante às irmãs
que perduram na zona. Nas décadas de 50 e 60, vá-
rios restaurantes das redondezas (e mesmo de Lis- para a lagosta. Fernanda e Alda Santos do Cabo. Ambas eram filhas
do faroleiro que operava mesmo em frente e diz-se
boa, caso da cervejaria Solmar) tinham ali os seus
próprios viveiros, à beira-mar, por vezes estruturas Estou quase que o terreno ter-lhes-á sido concedido pelo presi-
dente da câmara, pelos serviços prestados pelo pai.
toscas de cimento encastradas nas pedras. Os cons-
tantes roubos de marisco pela calada da noite e a a chorar de A base da receita tinha parecenças com a então do-
minante lagosta à americana (ou armoricana), mas
não consonância com exigências legais respeitantes
às instalações, foram levando ao seu encerramento. saudades”, alguns detalhes fazem a diferença: o Vinho do Porto
indicado é Kopke tinto e no final deve-se polvilhar o
Outro drama dos viveiristas teve, desde sempre,
que ver com a própria natureza do bicho. Apesar de recorda Maria molho de orégãos, por exemplo.
Uma das clientes regulares d’O Faroleiro era Ma-
se reproduzirem em grande quantidade (100 mil
ovos de uma vez), os seus predadores são vários: há de Lourdes ria de Lourdes Modesto. A gastrónoma, estrela de
programas de culinária na RTP nas décadas de 60
os humanos, há os polvos e peixes grandes — e há
as outras lagostas. Acresce que o crescimento é len- Modesto, e 70, lembra com emoção esses tempos. “O que fa-
zia este prato ser tão popular, penso eu, é que vinha
to. Para chegar às 450 gramas demora 5 anos, bem
mais do que os seus primos da ordem dos decapodas, referindo-se com muito molho de tomate e assim uma lagosta
dava para quatro. Eram as nossas saídas quando tí-
como o camarão e os caranguejos. Uns e outros são
artrópodes, grupo onde entram invertebrados tidos à lagosta de nhamos dinheiro para a lagosta. Estou quase a cho-
rar de saudades”, recorda, ao Expresso.
como repugnantes, como a aranha ou o escorpião. A
espécie é, além do mais, carnívora e canibal, razão O Faroleiro O facto de a tripa ser tirada com o bicho ain-
da vivo seguia a técnica habitual para este tipo de
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HISTÓRICO 1 Foto das antigas furnas lagosteiras do Furnas do Guincho, transformadas em bar 2 E as escadas até à gruta, construídas a partir do atual parque
de estacionamento do restaurante 3 Uma lagosta enorme, no restaurante o Pescador, em Cascais, com o Conde de Barcelona, pai do rei Juan Carlos, à direita
4 Mick Jagger foi uma das estrelas do showbiz que passaram pelo O Pescador 5 Chico Buarque terá comprovado que a lagosta nacional é menos doce do
que a brasileira 6 Antenor Patiño, de frente, com camisa branca, apresentou a lagosta de O Pescador a várias celebridades, como Wallis Simpson, ao seu lado,
casada com Edward VIII de Inglaterra 7 A cantora e atriz francesa Juliette Gréco avalia a matéria-prima em O Pescador
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pratos, em que o crustáceo era cortado às rodelas. O de a lagosta ter sido imersa ainda podíamos ouvi-la sobrolhos carregados. Professor no Departamen-
empratamento usava frequentemente de enfeites de espernear. Quando a lagosta é grelhada, a reação é to de Biologia Animal da Faculdade de Ciências, já
alface em juliana, tomatinhos em quartos e ovo co- ainda mais impactante: “Começa a guinchar.” estudou vários assuntos exóticos, do “desempenho
zido, dando-se assim maior dignidade — e dimen- No caso de alguns restaurantes japoneses e chi- da desova em cativeiro do ouriço-do-mar” até ao
são — ao marisco. neses, como o Estoril Mandarim, por outro lado, é controlo da “reprodução de camarão Penaeus kera-
Na mesma linha da lagosta à Faroleiro estavam regra o sashimi de lagosta ser servido com o animal thurus”. Mas nada o terá entusiasmado tanto como
outras receitas coligidas por cozinheiros do século vivo. O chefe dá um golpe no cérebro e depois fatia a possibilidade — inédita — de completar o ciclo de
XX. Maria Odette Cortes Valente, no livro “Cozinha a carne. A apresentação é feita em travessa, com o vida das lagostas em cativeiro — dito de forma bruta:
Regional Portuguesa”, de 1987, identifica quatro re- sashimi montado na sua carapaça, as patas ainda a de conseguir produzir lagostas em regime de aqua-
ceitas lusas, entre elas uma lagosta à açoriana, terri- mexer-se como prova de frescura. cultura. O que tem para reportar, no entanto, é um
tório de onde vem atualmente muita da lagosta na- Alguns estudos provaram que a lagosta demora falhanço. “O problema foi que nas fases iniciais da
cional. Já Manuel Ferreira, autor do monumental “A cerca de seis minutos a morrer, em água a mais de vida não lhes conseguimos dar aquilo de que elas
Cozinha Ideal”, de 1933, anota uma lagosta à Cabo 100 graus. Estas descobertas levaram a Suíça a pro- precisavam”, lamenta.
Raso, porventura aludindo a algum prato do Guin- ibir a prática, no ano passado, obrigando a que os A batalha perdeu-se, mas não a guerra. Orlando
cho. Levava molho de maionese, tomate frio, molho crustáceos fossem atordoados antes de mortos. Hoje Luís acredita que ainda se irá descobrir a fórmula
inglês e alcaparras. em dia, biólogos marinhos e associações de defesa certa. E até poderá ser ele a fazê-lo. “Estou quase a
Com o tempo, a maioria destas preparações foi dos animais estão de acordo de que esta é a forma reformar-me. Mas gostava de ir para o Senegal [onde
caindo em desuso. Em restaurantes como o Furnas menos dolorosa de matar uma lagosta. Como? Já há abunda a espécie Panulirus regius] e continuar com
ou O Pescador, os clientes preferem-na cozida ou uma máquina, conhecida como Crostatun, que o as minhas investigações.”
grelhada. “Se a lagosta for cozida tem mais aprovei- faz, através de choques elétricos, mas custa quase Enquanto isso não acontecer, enquanto o preço
tamento e seca menos”, atira Alexandre Ramos. Os 4000 euros. Pelo que a maneira mais caseira e eco- não baixar, as lagostas vão desaparecendo tanto do
tempos de cozedura (só uns 20 minutos por quilo, nómica de atordoar uma lagosta é colocá-la em gelo mar como da mesa. Fernando Pinto, d’O Pescador,
contando desde que a água ferve), têm de ser rigo- e sal, durante 30 minutos, antes de a sacrificar. dá uma ideia dessa evolução. Nos anos 60 vendia
rosamente cumpridos — mas mesmo para uma téc- 5000 quilos de lagosta por ano; nos anos 1980-90,
nica tão simples, há truques. No Furnas, por exem- O NOVO LUXO o valor desceu para uns 1000 quilos. No ano passa-
plo, a lagosta é cozida na mesma água e no mesmo Do lado de fora, o Forte de Nossa Senhora da Guia, do, 2018, serviu 500 quilos. Também n’O Farolei-
tacho onde já cozeram os camarões que vão para os em Cascais, parece ao que soa: uma fortaleza para ro o crustáceo está em desuso. Um empregado diz
couverts. “Dá-lhes mais sabor”, explica Paulo Félix, defender o país dos espanhóis. “Foi nesta laje que que, em média, os clientes pedem uma por semana,
quem normalmente toma conta da operação. os espanhóis desembarcaram e nos levaram a Inde- quando antigamente era às quatro e cinco por dia.
Patrick Monteiro de Barros, por sua vez, prefe- pendência”, diz Rui Rosa, responsável pelo Labora- “Eram pessoas com mais poder de compra”, justi-
re-as grelhadas, mas não descura os acompanha- tório Marítimo da Guia, na varanda do edifício sobre fica o proprietário, José Pratas.
mentos, muitos acompanhamentos: batata a mur- o oceano. Assim que entramos, todavia, o ambien- À conta bancária dos consumidores e ao preço
ro com molho de manteiga e molho de malagueta, te muda. Há mapas nas paredes, livros desarruma- galopante do marisco juntam-se mudanças cultu-
brócolos e arroz. dos pelas secretárias, aquários com meixão, peque- rais, de gosto, de moda. Na era dos chefes, a lagosta
Fora as preparações mais simples, de todo o re- nos tubarões pata-roxa, linguados. O espaço é uma deixou de ser obrigatória nos menus de fine dining.
ceituário vintage em voga nos salões dos anos 70 e mistura de biblioteca científica e loja de peixinhos. A exclusividade do produto vale tanto como a cria-
80, a receita mais popular em Portugal continua a Atualmente, o principal foco do laboratório (um tividade. E é normal um restaurante cobrar 200 eu-
ser a lagosta suada de Peniche, única que aparece polo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lis- ros por cabeça sem oferecer um grama de caviar, de
em “Cozinha Tradicional Portuguesa”. Também usa boa) está no efeito das alterações climáticas nos mares. foie gras, de ostra — ou de lagosta. José Avillez sin-
de um refogado bem puxado, com cebola, alho e to- As mudanças também afetam as lagostas. “A acidifi- tetiza: “O conceito de luxo mudou.”
mate, mas acrescenta-lhe malagueta e embebeda- cação dos oceanos, por causa do aumento de CO2, di- É verdade que se perguntarmos a Orlando Luís
-a com vinho branco, Vinho do Porto e Aguardente ficulta a calcificação das carapaças e isso implica com se ele gosta de lagosta, ele tem a mesma opinião de
Velha. Maria de Lourdes Modesto sublinha que todo o seu crescimento.” Neste momento, o laboratório não sempre (“Então, não! Nunca enjoei). O mesmo dirá
o processo, antes da cozedura (limpar a tripa, san- tem em curso qualquer experiência com lagostas, mas Patrick Monteiro de Barros (“É o meu prato favori-
grar, cortar), deve ser feito com o bicho vivo. “Eu tem o homem que mais as estudou no país. to”). Mas inquéritos fortuitos e empíricos resultam
apresentei a receita na televisão e até houve quem “Vou apresentar-lhe o professor Orlando”, frequentemente num “gosto, mas prefiro carabinei-
me chamasse o carrasco da lagosta.” diz Rui Rosa. Orlando Luís está no seu gabinete, ros” ou num “gosto, mas prefiro bruxas” ou até num
carnívoro “gosto, mas prefiro bife maturado”.
VIDA E MORTE DE UM CRUSTÁCEO Independentemente do sabor, a lagosta tem mui-
O tema da morte da lagosta tem gerado longos en- ta coisa contra ela. Cresce pouco, tem predadores,
saios e estudos, sobretudo nos EUA e na Europa. O
problema começa por estar no bicho. É que a lagosta Há muito não se dá bem com a poluição. A isso soma-se ser
cara, ter lâminas e picos que cortam como facas e de
não tem um sistema nervoso central. O cérebro está
situado na cabeça e recebe sensações das antenas e petisco de ricos precisar de conhecimentos superiores para ser cozi-
nhada. Até há alguns anos, tudo isso impedia que se
dos olhos, mas cada segmento do corpo tem as suas
próprias centrais nervosas. Espetar uma faca brus- e famosos, transformasse em comida do povo. Mas nada disso
desmobilizava as classes mais abastadas e gourmand
camente, no cefalotórax, por exemplo, não acaba
com a vida nem atenua o sofrimento. a lagosta está — sempre com apetência para o exclusivo e raro.
Hoje, contudo, a lagosta parece ter saído de moda.
Durante muitos anos, houve quem questionasse
se estes crustáceos teriam sentimentos como os hu- a desaparecer Acabando a sua hegemonia nas mesas gourmet,
acaba todo um ritual da aristocracia, morre um ícone
manos — se sentiriam dor. A dúvida foi ultrapassada
pela ciência e pelo senso comum. Dias depois, have- da alta cozinha. de glamour que marcou uma época na restauração
portuguesa. A razão desta tendência tanto pode estar
ríamos de ir assistir à preparação de uma lagosta, no
Furnas do Guincho. E assim que Paulo Félix agarrou José Avillez no facto de ser cada vez mais difícil pescar o crustá-
ceo como na ideia de que, afinal, o marisco preferido
numa Palinurus elephas, preparando-se para a afun-
dar num tacho de água borbulhante, a criatura abriu justifica: dos ricos não é assim tão especial. Nessa altura, o in-
seto aquático que encantou dinastias, milionários e
as patas, contraída, como se antecipasse o fim. “Às
vezes, se o tacho é mais pequeno, ouve-se a tampa a “O conceito famosos, passará a ser só isso, outra vez. Um inseto
aquático. Em vias de extinção. b
bater, é ela a tentar sair”, explicava o cozinheiro. No
caso, a tampa estava longe, mas 30 segundos depois de luxo mudou” e@expresso.impresa.pt
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E se
Israel
fosse
em
Angola?
Um enólogo
russo, funcionário
do Ministério
da Agricultura,
em Lisboa,
sonhou no início
do século XX que
a pátria do povo
judeu podia
ser Benguela
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O
para a Alemanha. Em 1896 cerca de 7 mil judeus Lisboa, sr. Alfredo Bensaúde. (…) Decidimos então
acabariam mesmo por comprar terras na Argenti- elaborar juntos um projeto de lei para o apresentar
na, para onde foram. ao Governo e à Câmara dos Deputados”. Depois de
Não admira que a proposta de uma zona de co- o mostrar a muitas pessoas, sofreu melhoramentos.
lonização em Angola agradasse a muitos deles, ape- (…) Em 26 de fevereiro (de 1912), o projeto é apre-
sar das divisões entre os líderes sionistas. A ideia sentado às Câmaras pelo deputado Manuel Bravo e,
nascera da cabeça engenhosa de Wolf Terló, que, em 27, é publicado no ‘Diário do Governo’. (…) Não
em março desse ano, tinha escrito uma carta à ITO, posso porém deixar de lembrar aqui algumas pa-
mostrando a possibilidade real de as suas ideias po- lavras do ilustre deputado por Benguela, Exmo. Sr.
derem ser concretizadas. Terló também tinha con- Dr. Caetano Gonçalves que, referindo-se ao projeto,
tactado a antagonista Organização Sionista de Ber- disse acreditar na possibilidade da sua realização e
lim, de que a ITO era dissidente, sobre a sua ideia. que o receio manifestado por alguns dos seus co-
Berlim deu uma resposta cuidadosa e encorajadora, legas de ver os judeus constituir uma nação inde-
mas não tinha interesse: a grande divergência entre pendente de Portugal o não assustava, pois se al-
a ITO e os sionistas de Berlim é que estes defendiam gum dia o fizessem, com isso Portugal nada perde-
que a futura pátria israelita tinha de ser na Pales- ria e a Humanidade lucraria muito. Portugal criou
tina, enquanto a ITO considerava que era possível já um grande império, o Brasil, não seria estranho
criar uma “pátria provisória”. que também criasse o de Israel”. Wolf Terló viria
Neste contexto o secretário das Colónias britâni- a republicar o texto no “Almanach Israelita”, de 9
co Joseph Chamberlain propôs que uma colónia de setembro de 1915, quando era vogal do Comité da
s tempos iam revoltosos. A I República tentava so- judeus russos se estabelecesse no Uganda. Sugestão Comunidade Israelita de Lisboa.
breviver às investidas monárquicas e o ambiente que foi rejeitada. A Itália propôs a zona de Cyrenai- Terló sabia qual era a fragilidade da República:
político e social era literalmente explosivo. Todos ca, na actual Líbia. Mas a facção sionista do ITO, que Angola era um dos alvos da cobiça colonial alemã,
tinham uma palavra a dizer. E naquela quarta-fei- não estava fixada na Palestina como única solução, e a Inglaterra fazia um jogo duplo de acordo com os
ra, 5 de junho de 1912, Wolf Terló partilhava as suas queria uma pátria provisória, chegou a estudar pos- seus interesses, e Portugal desejava ocupar o ter-
convicções com os leitores do jornal “O Século”: sibilidades de criar colónias nos estados americanos ritório mas não tinha nem colonos nem meios fi-
“Tudo nos diz que essa colonização se vai realizar do Idaho e Nevada, no estado de São Paulo no Brasil nanceiros e materiais para o concretizar. O projeto
com o maior sucesso”. O judeu de origem russa e mesmo na Rodésia do Norte (hoje Zimbabwe). Mas de “colonização israelita”, conhecido como 82-B
acreditava que Angola seria a pátria dos israelitas. Angola foi a hipótese mais credível. (e depois renumerado como nº 159), idealizado por
Nem que fosse a pátria provisória. Radicado em Terló vira uma oportunidade de ouro com a che- Terló e concretizado por Manuel Bravo, deputado
Portugal desde 1904, depois de ter vivido em Jaffa gada da República em 1910. No Boletim do Comité pela Covilhã, poderia ser a solução que agradava a
e de ter estudado enologia em Bordéus, fora funci- Representativo da Comunidade Israelita de Lisboa, todas as partes. Mas havia muitas reticências: al-
onário do Ministério da Agricultura e, nessa altura, de 12 de setembro de 1912, relembrou os passos da- guns deputados viam a proposta como a forma de
dedicava-se à exportação de vinho. Conhecia bem dos para a concretização do “projeto de colonização criar um “Estado dentro de um Estado”. O certo é
as sinuosidades do poder e para dar peso e credi- israelita no Planalto de Angola”. “Pouco depois da que Manuel Bravo apresentou a sua proposta a 1 de
bilidade à sua ambição trouxera até Lisboa uma proclamação da República, em dezembro de 1910, fevereiro de 1912 (reproduzida no “Diário da Câma-
poderosa delegação israelita: Jacob Teitel, o último conversando com o meu amigo, Exmo. Sr. José ra dos Deputados”, de 8 de fevereiro), onde defen-
juiz judeu de Moscovo (e que era amigo de Lenine e Relvas, ministro das Finanças do Governo Provi- dia: “A ocupação dos planaltos de Angola torna-se
de Máximo Gorky), Iochelman, presidente da Emi- sório, e com outras personagens políticas, propus- dia a dia mais urgente. Há poderosos interesses nas
gração dos Israelitas Russos de Kiev, Rubenstein, -lhes a colonização por israelitas das possessões vizinhanças, que não tardarão a manifestar-se. (…)
presidente do Comité Territorialista Suíço, e Israel portuguesas em África. A ideia agradou-lhes, mas Está bem comprovado que a decadência económica
Zangwill, presidente da ITO (Organização Territo- era preciso encontrar o modo de a pôr em prática. e intelectual de Portugal data da expulsão dos ju-
rial Judaica) e conhecido como escritor e mestre de Em 1911, comecei a criar com os meus correligio- deus. (…) Do que fica exposto se conclui que a co-
aforismos. Um deles era explícito: “Um povo esco- nários de Lisboa um grupo sionista, escolhendo- lonização dos planaltos de Angola é uma necessi-
lhido é, na verdade, um povo que escolhe”. -se, como presidente desse grupo o ilustre geólo- dade imprescindível para a manutenção do nosso
Nesse ameno junho de 1912, continuava a discu- go e diretor do Instituto Comercial e Industrial de predomínio naquelas regiões.”
tir-se na Câmara dos Deputados a autorização para Seria o início de um intenso debate que encon-
a fixação no planalto de Benguela, Angola, de mi- tramos em várias sessões na Câmara dos Deputa-
lhares de judeus vindos da Rússia, onde as perse- dos. A 14 de março, o deputado Ezequiel de Cam-
guições incentivadas pelas autoridades e do próprio pos, perante campanha da imprensa estrangeira
Czar, estavam a tornar impossível a sua vida ali. Em desfavorável às colónias portuguesas, questiona o
1891 tinham sido expulsos de Moscovo, depois de ministro das Colónias, Cerveira de Albuquerque:
uma grande vaga antissemita anterior, na Ucrânia, “Se no Ministério dos Negócios Estrangeiros há
em 1881. Novas perseguições aconteceram entre conhecimento oficial do tratado secreto entre a In-
1903 e 1906. Uma terra que os acolhesse era o que glaterra e a Alemanha celebrado em 1898, e no caso
mais desejavam. Cerca de 30 a 40 mil judeus che- afirmativo, se esse tratado ameaça de alguma forma
garam à Palestina entre 1904 e 1914, e muitos deles TEXTO a integridade e a independência do nosso domínio
seguiram depois para os EUA. Outros emigraram FERNANDO SOBRAL ultramarino.” Os sinais de alarme já soavam em São
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VISITA Fotografados em Lisboa
em junho de 1912, da esquerda para
a direira, Jacob Teitel, o último juiz judeu
de Moscovo e que era amigo de Lenine e de
Máximo Gorky; W. Terló, funcionário do Ministério
D.R.
da Agricultura; Israel Zangwill, presidente da ITO
— Organização Territorial Judaica; e Iochemann,
presidente da Emigração dos Israelitas Russos de Kiev
Angola era alvo
Bento. E este debate era o culminar de um longo proposta de Manuel Bravo que mencionava “con- da cobiça
processo que o trabalho pioneiro sobre o tema da
colonização israelita em Benguela, de João Medi-
cessões de terrenos a imigrantes israelitas”. A fra-
gilidade portuguesa ficou evidente a 18 de maio colonial alemã,
na e Joel Barromi (desenvolvido depois por Esther
Mucznik, em “A Grande Epopeia dos Judeus no Sé-
quando o deputado José Barbosa coloca a incómo-
da questão: “Mas podemos nós mandar imediata- Inglaterra fazia
culo XX”, e pela dissertação de mestrado de Ricar-
do Filipe Almeida São Bento, “Em busca de um lar
mente para essa região de Angola, 10 mil, 15 mil ou
20 mil portugueses? Não, porque os transportes são um jogo duplo
para os Judeus – A hipótese de Angola”), explici-
tam exemplarmente.
difíceis, caros”. A 21 de maio, Freitas Ribeiro defen-
de a sua proposta: “Se a Maçonaria conseguir levar e Portugal
Entretanto, o deputado Freitas Ribeiro — que
fora ministro das Colónias até 25 de janeiro de 1912
por diante o seu projeto de estabelecer uma coló-
nia agrícola pelo sistema de parceria no planalto desejava ocupar
—, apresenta o projeto de lei nº 111. Propunha uma
colonização feita por portugueses, ao contrário da
de Benguela, e se os israelitas se fixarem no mes-
mo planalto, mais uma razão para que o Governo o território
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para África. Hardinge estava muito cético sobre as encargos financeiros.” Se nessa altura, por influ- neoportuguesa”. Em 20 de junho de 1912, depois
ideias da ITO e informa o secretário dos Negóci- ência do marquês de Soveral, houvera lugar a um de Zangwill ter regressado a Londres, a Câmara dos
os Estrangeiros britânico, Edward Grey. Zangwill, compromisso entre os britânicos e Portugal, Lon- Deputados aprova a versão final da resolução 159.
que não queria ser apanhado em falso, perguntou dres continuara a negociar com Berlim. Haveria Nela avançava-se que cada colono teria cidadania
diretamente a Hardinge sobre os acordos secretos mesmo um acordo de princípio: os alemães ficari- portuguesa e 100 a 250 hectares de terreno. O pro-
anglo-alemães que envolviam as colónias portu- am com São Tomé e Angola até ao meridiano de 20 jeto segue então para o Senado. Fora de São Bento
guesas em África. Mas Hardinge, como bom diplo- graus e parte de Moçambique. a instabilidade continuava e os olhares voltavam-
mata, esquivou-se a responder. Nessa altura, nas Apesar das dúvidas, Angola era o paraíso pos- -se para outras notícias: a 15 de julho, o marato-
sombras, Londres e Berlim renegociavam os acor- sível. Mas havia outros. Zangwill sabia isso e mais nista Francisco Lázaro morre, devido a insolação,
dos de 1898. Tal como Teitel, Zangwill considerava tarde confessaria: “Não houve um local na Terra em na maratona dos Jogos Olímpicos de Estocolmo. O
que a República portuguesa, com uma enorme dí- que não tivéssemos pensado”. E assim foi. Em en- país comove-se.
vida externa e com graves problemas políticos in- trevista à “A Capital”, de 28 de maio de 1912, dizia: Mas nas páginas de “O Século”, de 2 de julho de
ternos, queria manter Angola com a ajuda dos ju- “Preciso investigar, estudar. Olhe, a Inglaterra ofe- 1912, surgiria o balde de água fria: a conferência da
deus, protegendo a colónia da voracidade alemã e receu-nos para ir para as suas colónias do leste de ITO, reunida sob a presidência de Israel Zangwill,
britânica. Mas temia que Portugal pudesse perder a África, a Itália oferece-nos ir para a Cineraica”. Mas agradecia a Portugal a aprovação da lei em que se
sua colónia, ou parte dela, porque era um elo franco o tempo corria rápido. Depois de aprovado o projeto ofereciam concessões de terrenos aos colonos ju-
na luta entre imperialismos. Ou seja, o projeto de no Parlamento português seguir-se-ia a validação deus na possessão de Angola, “mas, visto o estado
Benguela tinha potencial, mas era terreno minado. na conferência das diferentes instituições judaicas, de desordem e a falta de segurança que reina na-
No seu livro “A minha missão em Londres 1912- que se realizaria em Viena de Áustria em finais de quela região, e além disso, dada a ausência de ca-
1914”, o príncipe Lichnowsky, último embaixa- junho. A ideia defendida por Terló era de que, mais dastro, as dificuldades provenientes do clima e bem
dor alemão em Inglaterra, antes da guerra, relem- do que a República estar a compensar os judeus assim os preços elevados da alimentação e do tra-
bra: “Em 1898, o conde Hatzfeld havia firmado um pela sua expulsão em 1496, por D. Manuel I, Portu- balho”, via-se impossibilitada de recomendar esse
acordo secreto com Mr. Balfour para a divisão em gal precisava de outros emigrantes para colmatar “empreendimento arriscado”.
esferas de influência económica das colónias por- “a dificuldade, senão impossibilidade, de colonizar Zangwill acha que certas cláusulas pervertiam
tuguesas em África. Como o Governo português Angola com a raça portuguesa”, porque esta prefe- o estabelecimento de uma colónia. Ainda assim,
não tivesse os meios nem recursos necessários para ria ir para o Brasil e para os Estados Unidos. jogando em dois tabuleiros, a ITO envia a Angola
desenvolver as suas extensas possessões ou poder Assim, a chegada dos israelitas russos era uma uma expedição para analisar o problema. John W.
convenientemente administrá-las, era possível que garantia de ocupação, o que poderia servir, nas Gregory, reputado geólogo, liderará a expedição.
um dia as quisesse vender e assim aliviar os seus palavras de Terló, para a criação de uma “raça Na altura, os portugueses tinham má imprensa em
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condicionado. Inglaterra e Alemanha traçavam, nas
costas de Lisboa e da nova República, o destino de
Angola e Moçambique. O país, falido como sempre,
vivia uma permanente instabilidade governamen-
tal, entre as ameaças das incursões monárquicas e as
greves. Criou-se um Ministério das Colónias, a partir
do que os ilustres cosmopolitas tinham visto em Pa-
ris. Era um ministério de intenções: não havia nem
dinheiro, nem homens, nem meios. Bernardino Ma-
chado, que virá a ser Presidente da República, dizia
que África era um “chão sagrado”, mas a ocupação
era uma ficção. Os colonos de Benguela agitavam-se
perante a falta de autonomia política e de meios mili-
tares para garantir a segurança. Os emigrantes portu-
gueses que queriam fugir do Portugal pobre preferiam
o Brasil e os Estados Unidos. O novo governador-ge-
ral de Angola, Norton de Matos, tinha uma estratégia
D.R.
nele não cabia Todo este sonho tem de ser visto à luz de como as
potências europeias encaravam África nessa altura.
incluindo da Associação Comercial de Luanda. Com
a chegada da República o ambiente político em An-
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incluindo Caetano Gonçalves, por Benguela. Na se-
quência desta vitória começam as purgas políticas Os colonos na cabeça dos senadores. Afonso Costa, já na chefia
do Governo, também não tem simpatias pela ideia. A
e a desilusão com a República tornou-se evidente.
Desde meados do século XIX que se sonhava em brancos 13 de maio, “A Capital” ainda avança que, na Rússia,
já há uma forte campanha a favor do sonho angola-
transformar as colónias africanas num novo Brasil,
e o continente era a última fronteira para as potên- pugnavam no. Terló ainda pressiona: “Pedimos a concessão de
um milhão de hectares de terreno, pondo de parte a
pela autonomia
cias coloniais. Ali estavam escondidas as matéri- ideia de colonização individual pelos embaraços que
as-primas necessárias à industrialização. A fome dali resultariam para os emigrantes”. A 29 de junho
de Benguela.
europeia para repartir África mostrava claramente de 1913, o projeto é aprovado genericamente, mas
que Portugal não tinha uma estratégia colonial. A para que se considerasse definitivamente como lei
Sentiam
independência do Brasil tinha deixado Lisboa órfã. requeria reunião do Congresso da República (Câma-
A abertura do canal de Suez, entre o Mediterrâneo ra dos Deputados e Senado). O que nunca aconte-
que existiam
e o Mar Vermelho, em 1869, abrira uma nova fren- ceu. No início de 1914, Zangwill e Bensaúde chegam
te de colonização: África. A história do Mapa Cor a acordo para terminar o plano. A I Guerra Mundial,
as bases para
de Rosa e do Ultimato britânico começava aqui. A onde se enfrentavam várias potências coloniais, pu-
abertura do Suez tivera um efeito imediato no co- nha em causa todas as certezas. Em 1915, Zangwill
que fosse
mércio mundial, porque surgira concertado com o chegou a dizer que Angola tinha sido a melhor, mas
caminho de ferro que ligou as duas costas dos Esta- também a derradeira, hipótese para estabelecer um
dos Unidos nesse mesmo ano. O mundo poderia, a território. Resistiria durante mais algum tempo, tal
partir de então, ser percorrido continuamente num
tempo recorde. África era o destino. E Portugal ar-
uma nação como o da ITO de criar uma pátria provisória fora da
Palestina. Quem detinha as cordas do poder tinha
riscava-se a perder a sua parcela dele. Porque em-
patava o “progresso”.
plena, talvez outras ideias sobre o assunto. A declaração Balfour,
de 2 de novembro de 1917, que aceita a ideia de um
Portugal apenas tinha uma opção: reformular
o seu projeto africano. O mercado brasileiro en-
outro Brasil Estado judaico na Palestina, virá a ser a primeira ex-
pressão dessas negociações nos bastidores. Depois,
cerrara-se à importação de escravos africanos em a ITO foi-se desintegrando, mas ainda surgiram no-
1851. Mas, para ocupar África, eram precisos colo- vas hipóteses de pátrias provisórias para os judeus,
nos. E dinheiro. E uma estratégia administrativa. nomeadamente em Madagáscar (por iniciativa dos
Mais tarde, João de Andrade Corvo, um dos mais Nazis, a partir de 1933), na Tasmânia (Port Davey) e
esclarecidos políticos portugueses da segunda no Suriname. Mas a pátria israelita só se concreti-
metade do século XIX e um dos poucos com uma zaria mais tarde.
clara visão sobre as colónias, descreveria o que era Paralelamente a este intenso debate sobre a co-
uma das fraquezas nacionais: “Por efeito do pou- lonização israelita do planalto de Benguela, surgiu
co conhecimento de negócios, de pouca grandeza outro, lançado por Emílio Costa, um alentejano de
de alma e de excessiva cobiça de ganhar depressa Portalegre, muito importante no movimento libertá-
e muito, empregando pouco capital e fazendo pou- rio no início do século XX. Escreveu um longo artigo
cos esforços”, os projetos nunca se concretizavam que era a criação de um Estado judaico na Palestina em “A Capital” de 24 de maio de 1912, sob o título
cabalmente. Por culpa dos homens de negócios e otomana, mas as opiniões sobre a forma de o con- “As vantagens da colonização”. Nele propunha: “Su-
dos políticos. A Sociedade de Geografia e o Banco seguir não eram consensuais. Em 1905 decorre o VII ponhamos — quem dirá que isso acontecesse! — que
Nacional Ultramarino fazem, em meados do século Congresso Sionista, onde a proposta para a coloni- se espalhavam, pelos três distritos do Alentejo, trin-
XIX, parte de uma nova estratégia. Explorar a Áfri- zação judaica no Uganda (desenhada pelo Império ta mil judeus portugueses. Remediava-se o erro que
ca e dotá-la de meios financeiros para se desenvol- Britânico) é rejeitada, por o território disponibiliza- têm cometido os poderes públicos, de nunca terem
ver era o caminho. Já muito atrasada face à restante do pelos ingleses servir apenas para acolher 20 mil querido ou sabido desviar para o Alentejo, uma parte
Europa colonialista e sempre em marcha lenta. Em refugiados. Weizmann pretende o regresso à terra da emigração do norte do país, que se dirige quase
1912, pouco se conseguira avançar. ancestral. E não há nenhuma que a possa substituir. toda para o Brasil. E remediava-se o erro com gran-
Esta inconsequência portuguesa coincidia com Mas outros, com Zangwill como líder, referem que é des vantagens, porque a ação de trinta mil judeus
o sonho dos israelitas de encontrar uma pátria. A necessário uma pátria provisória, seja onde for. As- seria muito mais benéfica do que a de igual número
sua criação era comum a todas as tendências den- sim abandonam a Organização Sionista e fundam a de portugueses, de qualquer província”. No dia se-
tro dos movimentos judaicos. Desde o início do sé- ITO, com sede em Londres, onde vive. A ITO busca guinte, 25, na mesma “A Capital”, responde E. Cam-
culo XX, toda a política dos dirigentes sionistas e em pátrias provisórias, antes do regresso à Palestina. Por pos (supõe-se que o deputado Ezequiel de Campos):
particular de Chaim Weizmann (que seria, depois, o isso o sonho não terminaria em 1912. “Mas vejo uma grande dificuldade: a compra de ter-
primeiro Presidente de Israel), estava orientada para O projeto de colonização ainda renasce, em 1913, ra. O Alentejo está em boas mãos que não o deixam”.
negociar com as potências coloniais a obtenção de quando começa a ser discutido no Senado português E conclui: “Eu quero crer que não haverá necessida-
uma autonomia para a importante população judai- a proposta de lei nº 159. Nos debates surgem várias de nem sequer vantagem sensível de aproveitar os
ca no processo de assentamento na Palestina. Este opiniões contra, como se pode ver na sessão de 1 de israelitas para a cultura da nossa terra continental”.
movimento é formalmente constituído em Basileia maio de 1913. A hostilidade é latente, e a proposta Mas isso é outra história. b
em 1897. Seguiam um objetivo político, definido pelo vai sendo sujeita a múltiplas alterações. O “medo de
seu doutrinador Theodor Herzl (falecido em 1904), perder a soberania de Angola” é um fantasma real e@expresso.impresa.pt
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portefólio
Cinco dias, uma carrinha Kangoo como casa e uma aventura
por um país pintado de branco. Foram 1200 quilómetros na Islândia
por estradas com paisagens lunares, de incertezas climáticas,
de explosões de cores no céu e de formações sublimes na terra
TEXTO E FOTOGRAFIAS ANA BRÍGIDA NA ISLÂNDIA
Gelo e pó numa
ode de amor
ao planeta
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ESTAÇÕES Passagem
para a Treasure Island Beach
no glaciar de Sveitarfélagið
Hornafjörður, no Sudeste
da Islândia. Todos os anos,
estas formações sofrem
mutações, uma vez que,
durante a primavera e o
verão, as grutas derretem:
rios e cascatas tomam conta
do lugar. Com a chegada do
frio, os rios, sendo os últimos
a congelar, vão criando estas
cavidades no gelo e novas
grutas são reveladas nas
épocas do outono e inverno
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O tempo de vida do icebergue acaba por ser curto, do glaciar
passeia pela lagoa e viaja até ao mar. O mar não o quer,
e com as ondas fortes, o enorme bloco de gelo é partido e dá à
costa numa praia que faz jus ao nome: Diamond Beach
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VIAGEM Diamond Beach, em Jokulsarlon. Com os icebergues a derreter, criou-se uma lagoa natural,
ligada ao mar. É uma prisão permanente: os enormes blocos de gelo rumam ao oceano, mas a força das
ondas atira-os de volta, partidos, para a praia de areia preta; Cemitério em Vik; Secret Lagoon, piscina
geotérmica no circuito do Golden Circle da Islândia; Solheimasandur Plane Wreck é um dos cenários mais
procurados pelos turistas para fotografar. O avião de 1973 da marinha americana, que tinha estado na
guerra da Coreia, aterrou de emergência por falta de combustível e todos os passageiros sobreviveram
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Uma leve luz
verde espreitava
pela montanha
e, pouco depois,
no centro do vale,
acontecia um
momento que
nos fez esquecer
o jantar. Cores
verdes e rosas
serpenteavam
em cima de nós,
na experiência
a três dimensões
mais emocionante
e sensorial
de sempre
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Entrevista
Nuno Maulide
As ligações
entre a
ciência e a
música são
infinitas”
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ANDREA BOSINA/UNIVERSIDADE DE VIENA
Eleito Cientista do Ano na Áustria, o português Nuno
Maulide, professor catedrático de química na
Universidade de Viena, já ganhou 18 prémios e é um
divulgador de ciência popular. Mas tem outra paixão:
o piano. E entra em concursos de pianistas amadores
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VIENA Uma das cinco ofertas em
países europeus que Nuno Maulide
teve para seguir carreira em 2013 foi
da Universidade de Viena. Mas eram
todas para professor catedrático
A
investiga. O cientista português Nuno oito horas por dia antes de escolher em Stanford, na Califórnia, concorri
Maulide, filho de mãe são-tomense a carreira académica. Hoje participa a uma vaga de investigador financi-
e de pai moçambicano, já ganhou 18 em concursos internacionais de pia- ada pela Max Planck Society, na Ale-
prémios, considera-se “um felizardo”, nistas amadores e, numa entrevista na manha, um concurso muito exigente
diz que não tem “ambições particula- TV austríaca, acabou a tocar piano e a e multidisciplinar, onde fiquei entre
res em termos de carreira” e defende explicar as semelhanças entre a ciên- os primeiros classificados. Comecei
que a missão de um investigador uni- cia e música. então em 2009, com 29 anos, a car-
versitário é “perguntar o que nunca reira independente num dos melho-
foi perguntado, ir à procura do que Como reagiu ao facto de ter sido con- res institutos Max Planck, localizado
ninguém antes encontrou, sonhar de siderado o Cientista do Ano de 2018 na pequena cidade de Mülheim an
olhos abertos”. Carlos Moedas, comis- na Áustria? der Ruhr. O contrato de cinco anos
sário europeu da Investigação, Ciência Foi uma grande surpresa e uma honra — com duas renovações possíveis de
e Inovação, conta que Nuno Maulide enorme ter sido eu o escolhido. Rece- dois anos cada, mas sem tenure track”
lhe foi apresentado há dois anos pelo bi o telefonema dentro de um avião, isto é, sem caminho para uma posi-
ministro austríaco da Ciência “como prestes a levantar voo, no meu dia de ção permanente — mentalizou-me
os 33 anos chegou a professor cate- um dos mais brilhantes cientistas da anos, 17 de dezembro. Pode dizer-se desde o começo para a noção de que
drático de química na Universidade sua geração”. E sublinha que o in- que foi a prenda de anos mais sui ge- esta era uma oportunidade única. Ia
de Viena e aos 39 anos foi considera- vestigador português, que toca piano, neris de que me lembro. ter condições excelentes para traba-
do o Cientista do Ano de 2018 na Áus- “demonstra mais uma vez que quem lhar, mas tinha de dar provas de com-
tria. Quando se mudou para Viena faz ciência ao mais alto nível tem uma É professor catedrático de Síntese Or- petência rapidamente, de forma a ser
mal falava alemão mas, hoje, tem um curiosa afinidade com a música”, re- gânica desde 2013, quando se mudou competitivo o suficiente para concor-
grande sucesso entre o público aus- cordando que Einstein tocava violino para a Universidade de Viena. Como rer a uma vaga de nomeação definiti-
tríaco de todas as idades, em especial e que Fabiola Gianotti, diretora-geral foi possível chegar a este posto apenas va noutra instituição. Isto quer dizer
as crianças e jovens, porque popula- da Organização Europeia para a Pes- com 33 anos? que a Max Planck Society me propor-
rizou a química e é um comunicador quisa Nuclear (CERN) e “uma das me- É algo de tão improvável que por vezes cionou acesso a verbas para contratar
de ciência nato que explica de for- lhores físicas da sua geração”, é tam- me custa a acreditar que tenha sucedi- os primeiros colaboradores, comprar
ma simples as coisas complexas que bém pianista. Nuno Maulide tocava do. Durante o meu pós-doutoramento equipamento e material de apoio à
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investigação. Cinco anos em ciência antigo e de dotação mais elevada (€32 roupas, os aditivos que tornam possí-
passam a correr, sobretudo quando há mil) da Academia de Ciências da Áus- vel a produção agrícola que é fulcral
tanta coisa nova para aprender: como tria — o Prémio Lieben, antigamente para alimentar a população mundial
liderar um grupo, escolher colabora- chamado “o Nobel austríaco” — ape- crescente, os novos aromas e fragrân-
dores, gerir orçamentos, conseguir fi- nas cinco anos após chegar a este país. cias em que se baseia grande parte da
nanciamento, publicar artigos e tantas Se não é o mais importante anda lá indústria cosmética, entre tantos ou-
outras coisas. Se eu já sou uma pessoa muito perto. tros — para se ajustar aos desafios de
despachada por definição, o contex- sustentabilidade do século XXI. Que-
to em que me encontrei na Alema- Já ganhou três bolsas do Conselho remos uma química mais sustentável,
nha incutiu em mim uma noção de Europeu de Investigação (ERC), um com menos “lixo” e menos produtos
urgência e qualidade que acabou por Starting Grant em 2011, um Conso- secundários. Por outro lado, desde que
ser muito boa. lidator Grant em 2016 e um Proof of chegámos a Viena, temos desenvolvi-
Concept em 2018. Qual foi o seu valor do um interesse considerável na cha-
E a ida para Viena? e que projetos financiaram? mada “síntese total de produtos natu-
Durante este percurso mantive-me Os ERC são bolsas que mudam a car- rais”. Os produtos naturais são molé-
muito atento a concursos que fossem reira de um investigador. O Starting culas fascinantes porque geralmente
abrindo em universidades por toda a valeu 1,5 milhões de euros e foi im- resultam de uma evolução de milhões
Europa. No quarto ano do meu contra- portante para nos lançar na área da e milhões de anos. E não raramente
to a Universidade de Viena abriu um síntese de moléculas com estrutura são estruturas complicadíssimas com
concurso para professor catedrático. tridimensional, um tópico de muita atividades biológicas espetaculares.
Concorri, fiz uma entrevista e ganhei. atividade em Química Orgânica. O Um dos nossos projetos atuais está
E após quatro meses de negociações, Consolidator, de dois milhões de eu- centrado num produto natural com
assinei o contrato em fevereiro de 2013 ros, foi fulcral porque ocorreu pouco potente atividade imunossupresso-
e em outubro do mesmo ano mudei- depois da minha mudança para Viena ra — a terapia de imunossupressão é
-me com 10 colaboradores de armas e demonstrou que o Starting não ti- muito importante no transplante de
e bagagens para a Áustria. Viena foi nha sido ‘acidente’ mas que a minha órgãos ou até na luta contra o cancro.
uma de entre cinco ofertas que tinha equipa estava realmente a evoluir na O dito composto é extraído de uma
em aberto para prosseguir carreira, direção correta. Todas as moléculas esponja marinha, mas é preciso ma-
em diversos países europeus e todas têm um determinado nível de ener- tar e extrair 10 quilos de esponjas para
de nomeação definitiva e ao nível de gia — as reações químicas precisam isolar cinco miligramas do produto
professor catedrático. de uma força motriz — e neste proje- natural. Ou seja, ser capaz de repro-
ANDREA BOSINA/UNIVERSIDADE DE VIENA
to olhamos mais de perto para molé- duzir este mesmo composto em la-
Tem ganho inúmeros prémios. Qual culas de alta energia conhecidas por boratório, onde podemos fazer muito
foi o mais importante para a sua intermediários reacionais instáveis mais do que cinco miligramas, é uma
carreira? e tentamos explorá-los para levar a tarefa deveras importante. A estrutura
É difícil dizer. Acho que o ideal seria cabo reações químicas mais eficien- é muito complexa e a preparação deste
poder generalizar que o melhor pré- tes, que gerem menos lixo. O Proof of produto natural implica muita ‘tenta-
mio que recebi até hoje foi o mais re- Concept leva-nos para o domínio da tiva e erro’, quase como tentar escalar
cente de todos. Sou um felizardo, por- aplicação translacional daquilo que o Monte Evereste sem equipamento
que esta situação talvez se aplique a fazemos, ou seja, como será possível especializado. Reproduzir fidedigna-
mim: acabo de receber o prémio mais pegar numa reação acidentalmente mente um produto natural em labo-
descoberta num projeto de investiga- ratório é uma empreitada comparável
ção fundamental e aplicá-la a um dos a compor uma sinfonia ou pintar uma
problemas mais complexos e de mai- obra de arte.
or relevância para a indústria fina, a
síntese do mentol. Apesar de o men- E no campo da investigação mais
tol ser um produto natural, isolado aplicada?
em boas quantidades das folhas de Temos um interesse muito grande em
menta, a produção agrícola de men- levar a química para um domínio mais
ta não é suficiente para dar resposta à aplicado. No projeto para uma sín-
procura. Como consequência, por ano tese mais eficiente do mentol que já
são produzidos milhares de toneladas referi, estamos a falar de uma indús-
catedrático aos
tética. E se a nossa nova descoberta para conceber novos materiais, no-
for realmente aplicada para melhorar meadamente novas lacas para pintu-
essa síntese, podemos ter um impacto ra automóvel e espumas — para o col-
custa a acreditar
a química que é responsável pela pro- das propriedades macroscópicas. Por
dução das moléculas nas quais se ba- exemplo, o polietileno é um plástico e
seia a sociedade — os medicamentos se substituir os quatro átomos de hi-
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frigideiras antiaderentes. É uma mu- comunicação. Desde que cheguei a
dança notável. Viena e comecei a ser capaz de falar
alemão com um nível razoável que a
Quantas pessoas tem a sua equipa? comunicação científica me fascina. E
O grupo é muito internacional e é de o público que mais me fascina são as
momento composto por 28 pessoas, crianças e os jovens. Para esta faixa
todas sob a minha liderança. etária temos feito ‘aulas para a famí-
lia’, lições de ciência com muito en-
Que disciplinas leciona? tretenimento à mistura para grupos
Leciono Química Orgânica II, em ale- de 650 crianças, o que não é brinca-
mão, no semestre de inverno, uma deira nenhuma. Temos tentado de-
disciplina de bacharelato tipicamen- pois transmitir o bichinho da quími-
te com 100 a 120 alunos. No semes- ca a adolescentes e pré-adolescentes
tre de verão leciono uma cadeira de com visitas a escolas ou matinés aqui
mestrado, alternando entre Estraté- mesmo no nosso Instituto de Quími-
gias de Síntese Orgânica e Química de ca Orgânica, onde acolhemos uma
Heteroátomos. classe inteira para fazer experiênci-
as interessantes. E temos em curso
E quantos artigos científicos já ideias e iniciativas para chegar com
publicou? mais frequência aos adultos, mas a
Publiquei 121 artigos, mas o de maior mim interessa-me sobretudo chegar
sucesso saiu na revista “Science” em a quem não tem inclinação natural
2018. É um artigo tão fabuloso quanto ou interesse inato pela ciência. São
fundamental porque resolve um pro- estas pessoas que temos de alcançar
blema para o qual não havia solução na para realmente começarmos a mudar PIANO “A minha vocação
Química de Síntese: a preparação dos mentalidades em relação à ciência na inata é ser pianista, mas a
chamados compostos químicos 1,4 — sociedade. minha antiga professora dizia
dicarbonil. Quando o artigo foi publi- que é mais fácil ser pianista
cado recebi e-mails de colegas meus de Por que razão a química é, como cos- amador e químico profissional
todo o mundo a dar-me os parabéns. tuma dizer, um dos campos científi- do que o contrário”
O carbonil é um grupo funcional da cos menos presentes nos media?
química em que um átomo de carbo- É uma questão multidimensional.
no está ligado a um átomo de oxigénio Olhe, uma das razões que não se po-
através de uma ligação dupla. Na quí- dem esconder é certamente a menor
mica orgânica adoramos este grupo propensão dos químicos para comu- Mas então porque desperta Não sei se é essencial mas acho que é
funcional, porque tem uma panóplia nicar o que fazem ao público em ge- sentimentos? uma responsabilidade que temos. So-
de reações químicas sem fim. Aliás, ral. Já viu como há Richard Feynman, Se calhar a culpa é em grande parte mos financiados, de uma forma ou de
na licenciatura em química em qual- Carl Sagan, Albert Einstein, mas não nossa, dos químicos. A verdade é que outra, por dinheiros públicos. É, pois,
quer universidade do mundo as cadei- há nenhuma figura de dimensão com- se não existissem pesticidas e herbici- perfeitamente natural que o público te-
ras de Química Orgânica só falam do parável num campo científico tão ful- das a revolução verde que alimentou a nha direito a indagar “o que é que andas
grupo carbonil. O uso dos compostos cral para aquilo que é o nosso modo de explosão demográfica no planeta não a fazer com os meus impostos”. E mos-
1,4 — dicarbonil pode ser importante vida, aquilo que são as coisas que to- teria acontecido. Mas é uma das mais trar ao público que estamos a fazer algo
no desenvolvimento de medicamentos mamos como adquiridas no dia a dia, importantes aplicações da Química de apaixonante, que estamos a quebrar
contra o cancro. Há métodos ou boas como a química? A isso teremos certa- de Síntese, só que as pessoas não gos- as fronteiras do conhecimento, a nave-
soluções para fazer todas as combina- mente de juntar a progressiva associa- tam de falar nisso porque não é sexy. gar em mares nunca dantes navegados.
ções possíveis (1,1 ou 1,2 ou 1,3 ou 1,5 ção da química à poluição, uma asso- Obviamente que é preciso ter cuidado
etc.), mas a combinação 1,4 não estava ciação que tem tanto de rápido como com o uso dos pesticidas e herbicidas Se tivesse de recomendar livros sobre
resolvida. Mas agora está. de errado. Mas tudo se pode corrigir. na agricultura. ciência ao público quais escolhia?
Escolhia dois, “O Erro de Descartes”,
Tem uma grande ambição em termos O que tem de errado? É fácil comunicar a química apesar da de António Damásio, e “Cathedrals of
de carreira? Há uma tendência para as pessoas sua aparente complexidade e é possí- Science”, de Patrick Coffey, um livro
Não tenho ambições particulares em pensarem em compostos químicos vel transmitir ao público a paixão pela que explica porque há cientistas bri-
termos de carreira. O ter chegado ao bons — os naturais — e maus — os ciência? lhantes que ganham o Prémio Nobel e
topo da chamada carreira académica que foram fabricados — mas a verda- Claro! Os cientistas são pessoas com outros não. Tudo o que podemos pre-
com uma cátedra aos 33 anos mos- de é que não são nem uma coisa nem emoções e sonhos e a ciência está lon- ver na ciência não é muito surpreen-
trou-me que não vale a pena tentar outra, isto é, tudo depende do que fa- ge de ser algo de frio e insensível. E se dente, é expectável. Por isso, as desco-
prever o que vai acontecer. O melhor zemos deles. O bom exemplo são as os conceitos de base da química são bertas mais fabulosas, com maior po-
é simplesmente continuar a trabalhar moléculas de polietileno, os plásticos, abstratos, pode ser mais simples expli- tencial, são feitas por acidente e deram
mais e melhor para fazer todos os dias porque acabam nos oceanos mas ao cá-los usando analogias e exemplos do prémios Nobel.
algo de diferente, algo de novo. Essa é mesmo tempo servem imensos pro- dia a dia. Quer isto dizer que qualquer
a nossa missão como investigadores pósitos na nossa vida diária. A própria pessoa no Metro é capaz de entender Comunicar ciência em alemão é fácil
universitários: perguntar o que nun- expressão “compostos químicos” tem ao pormenor o tópico do meu último para um português?
ca foi perguntado, ir à procura do que uma conotação negativa, mas uma artigo científico? Não, mas será que eu No princípio não foi fácil, mas obri-
ninguém antes encontrou, sonhar de maçã, uma pera ou uma banana são conseguiria entender ao pormenor o guei-me a aprender alemão, até por-
olhos abertos. conjuntos de compostos químicos. A que faz um mecânico ou o último caso que o meu contrato com a Universi-
banana é capaz de ter uma lista com defendido por um advogado? dade de Viena incluía essa obrigação.
O que tem feito na comunicação da 200! No fundo, a expressão não de- Aprendi logo no primeiro ano porque
ciência na Áustria? via despertar sentimentos negati- A divulgação da ciência junto do pú- queria lecionar a cadeira de Química
O prémio de Cientista do Ano da vos ou positivos, mas simplesmente blico é essencial para a carreira de um Orgânica II, que era dada em alemão.
Áustria é sobretudo um prémio de curiosidade. cientista? O essencial era aprender 300 palavras
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O que sempre
me motivou
ao longo da minha
carreira foi
o desejo de crescer,
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Aquele
suave
Brasil
Trouxeram de São Paulo
um disco gravado mas
desmontaram-no em
Lisboa. Sexta-feira
chega finalmente o ‘dia
claro’ dos Capitão
Fausto, um demorado
puzzle transatlântico
de uma banda que
complica para ser pop
ENTREVISTA LUÍS GUERRA
FOTOGRAFIAS RITA CARMO
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O
negócio era de sonho: despesas
pagas pelo mecenato moderno,
os Capitão Fausto iam ao Brasil,
bebiam caldo de cana com palhinha,
gravavam um álbum dengoso
e voltavam para mostrar o seu
sambinha português a quem saltitou,
vitaminado, com “Gazela” (2011),
imergiu no magma psicadélico de
“Pesar o Sol” (2014) e vestiu o fato
clássico com “Capitão Fausto Têm
Os Dias Contados” (2016). Era bom
demais para ser verdade, mas “A
Invenção do Dia Claro” — a colagem
ao título do livro de 1921 de Almada
Negreiros é intencional — não
acabou nos Red Bull Studios de São
Paulo, do outro lado do vidro da
‘sala das máquinas’ do produtor
Rodrigo 'Funai' Costa. Pelo contrário,
começou aí o álbum mais demorado
das vidas de Tomás Wallenstein
(voz, guitarra, piano), Manuel
Palha (guitarra, piano), Francisco
Ferreira (teclados), Domingos
Coimbra (baixo) e Salvador Seabra
(bateria), oito canções onde o Brasil
é tão intencional como discreto, tão
concreto como idealizado. Um disco
que só Lisboa e o estúdio caseiro
da banda, no bairro de Alvalade,
poderiam ajudar a completar, e que
— contam-nos Tomás e Manuel —
tem pandeiro, cavaquinho e violão
todo, março de 2019, mas não nos
deixámos afetar por isso a partir do
11 dias de estúdio que tínhamos
marcado não iam chegar, mas ao fim
“Como é que
mas não é de chorinho. É, arrisca- momento em que percebemos que de quatro já tínhamos gravado tudo se inventa,
se, um espécime pop à moda dos precisávamos de tempo para acabar. menos uma canção. O disco todo
Capitão Fausto, tão simples que nem São Paulo está praticamente todo no foi o nosso processo mais comprido, sucessivamente,
parece que já foi complicado. disco, mas pegámos em tudo outra
vez e refizemos o puzzle. Não foi
mas a sessão de estúdio foi a mais
rápida.
o amanhecer
Gravado do outro lado do oceano frustrante, mas foi stressante. do dia seguinte?
num já longínquo dezembro de 2017,
“A Invenção do Dia Claro” sai a 15 Qual foi a parte mais difícil do
Aquilo que o Brasil trouxe ao disco é
o mesmo que à partida esperariam
Onde é que vamos
de março de 2019. Onde é que este processo? encontrar? encontrar alegria?
disco esteve o tempo todo? T.W. — Foi sentir que em algumas T.W. — Eu acho que sim. Já sabíamos
Tomás Wallenstein (T.W.) — No músicas existia algo que não estava a que íamos gravar lá e deixámo- Como é que
nosso disco rígido, mas a ser
constantemente acedido. Depois de
resultar, sem sabermos muito bem o
quê. Passámos então às experiências
nos influenciar pela nossa ideia do
que iria ser a nossa passagem pelo
alimentamos as
voltarmos de São Paulo, estivemos em laboratório: “agora tira esta Brasil. Falámos antecipadamente pessoas que nos
a trabalhá-lo aqui [no estúdio do coisa”, “não, não era isto”, “então com músicos de lá para que estes
grupo em Lisboa] e o processo foi tira esta”, “também não era isto”. aparecessem no estúdio nos dois
fazem bem?”
demorando... últimos dias, de forma a gravarem
TOMÁS WALLENSTEIN
Manuel Palha (M.P.) — Sabíamos que Quando embarcaram, o que é que ia connosco coisas que já tínhamos
teria de haver um processo extra, até na bagagem? imaginado e testado em Portugal.
porque tivemos um tempo limitado M.P. — Tivemos um momento de
para lá estar. Em São Paulo ficaram composição anterior: juntámo-nos e Como por exemplo?
gravadas as bases fundamentais de reunimos ideias. Quando partimos, M.P. — Seis das oito músicas têm
tudo, mas era preciso mais. tínhamos o esqueleto. um pequeno ensemble do que
T.W. — A nossa deadline não era, de T.W. — Achávamos que os 10 ou idealizámos como sendo o som do
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Capitão Fausto: Domingos música pedia um pano de fundo alimentamos as pessoas que nos
Coimbra, Tomás Wallenstein, mais intrusivo? fazem bem?
Salvador Seabra, Manuel Palha e T.W. — É um piscar de olho aos
Francisco Ferreira (da esq. para a coros femininos de Jorge Ben Jor. Nas letras há uma dialética constante
dir.). “A Invenção do Dia Claro”
Acabou por não soar demasiado entre ‘eu’ e ‘tu’…
será apresentado dia 4 de abril no
‘colado’ porque nos coros brasileiros T.W. — O mote é uma relação
Porto (Casa da Música) e 6 de
as palavras fazem das melodias uma específica, uma pessoa específica,
abril em Lisboa (Capitólio)
música diferente. À medida que íamos e até que ponto conseguimos
avançando, fomo-nos lembrando de questionar tudo quando nos
outras referências muito portuguesas, acontece uma determinada tristeza.
da música tradicional ou do O disco fala sobre uma situação
cancioneiro popular dos anos 70 e 80. menos desejada, mas fala sobre
encarar as situações menos desejadas
Uma canção como ‘Amor, a Nossa com esperança e pontos de apoio. As
Vida’ é o que se pode designar, de letras são sobre a conduta, sobre a
forma simples, de balada. Este soft palavra, sobre o que se diz, mais do
rock ao piano seria possível num dos que sobre os sentimentos em si.
discos anteriores?
M.P. — A realidade diz que nos discos Existe nas suas letras uma
anteriores não está lá uma música moralidade autoimposta?
assim. T.W. — Na minha própria pessoa
T.W. — Existe um risco maior em existe uma moralidade autoimposta.
tentar fazer uma música assim, e nós
sempre soubemos isso. Ficamos mais Pelo menos no tempo da canção,
expostos. penaliza-se pela transgressão quase
instantaneamente…
Numa balada podem rebentar as T.W. — Eu sou um transgressor
costuras… nato que está sempre a tentar
M.P. — Nós começámos a banda não o ser. Referencio-me pelos
com coisas muito mais cheias, com comportamentos bons à minha volta
barulho, distorção, peso. Com o para tentar imitá-los.
tempo, ganhámos interesse em fazer
algo mais ágil, mais despido, com Rasga mais papel do que antes?
mais ar. T.W. — Sim. Foi o disco em que gastei
mais tempo a escrever, mesmo já
Em ‘Faço as Vontades’, um dos sabendo sobre o queria falar, desde o
singles que antecederam o álbum, início. Houve coisas que demoraram
há uma referência constante à figura muito a sair, mas predispus-me a
materna. Há no Tomás, autor das questionar mais antes de chegar ao
letras, um eterno menino da mamã? resultado final.
T.W. — Na verdade, à medida que
me vou tornando menos menino da Quando bloqueia, a que ‘santo’ reza?
choro: pandeiro, cavaquinho, flauta, mais pura, é a mais difícil de mamã, dou valor às figuras paternais. T.W. — Gosto da maneira de escrever
violão de sete cordas. Juntámos esses alcançar. Em relação aos últimos Quando somos adolescentes, do B Fachada, apesar de ele já não
ingredientes de forma ténue para que discos, reduzimos um bocadinho as nem sequer nos apercebemos da lançar nada [novo] desde 2014.
estes desempenhassem pequenos gorduras que às vezes vêm da ideia importância que teve a presença
papéis. Nunca esteve para ser um inicial e que acabam por ficar até ao daquelas pessoas [mãe e pai], mas Os Capitão Fausto já não são, como
disco de samba. fim. Desta vez, houve uma fase de agora que estou a envelhecer, vem- se chegou a dizer, “os Tame Impala
questionamento maior e aspetos que me mais à cabeça. Quando escrevo portugueses”. Estão a aproximar-se
Como é que se consegue que um foram sendo eliminados, purgados, sobre a mãe, é direcionado mas de um maior classicismo, de uma
ambiente que se instala por opção até ficarem em bruto. Se calhar, de também é metafórico. Este disco fala ideia de canção desligada de um
conviva com uma identidade já facto, isso traz ligeireza. sobre isso: onde é que nos sentimos género musical?
existente? mais protegidos? Pode ser nos M.P. — Temos conseguido encontrar
T.W. — Tentámos que fosse um disco Alguém que se tenha enamorado amigos, na família, nas relações que uma voz nossa. O género é o nosso,
nosso, mas que a circunstância de o dos Capitão Fausto mais torrenciais temos de alimentar. são estes cinco. O Salvador não vai
gravarmos ali trouxesse alguma coisa de “Pesar o Sol” pode perguntar- fazer um beat igual a não sei quem. O
diferente, mas não o suficiente para vos o que é que vocês fizeram às Aqui está a ligação com “A Tomás não vai cantar com uma voz
sair demasiado vincado. Deixámos guitarras? Invenção do Dia Claro”, de Almada diferente. O facto de não estarmos
para a ornamentação uma abertura T.W. — Há menos guitarras. Há Negreiros… presos a géneros de catálogo
um bocadinho maior. músicas em que o Manel toca apenas T.W. — Exatamente. O título não permite-nos fazer o que quisermos.
piano ou eu toco apenas piano, por surgiu muito cedo, mas eu sabia que T.W. — Queremos assumidamente
É o vosso disco mais leve e arejado… isso as linhas de guitarra passaram ia começar de uma maneira, que afastar-nos de um género específico.
M.P. — Havia prenúncios em canções a ser uma em vez de duas. Não foi as músicas do meio seriam assim Dá-nos maior liberdade de fazer em
que fizemos antes, por isso não é um estratégia, foi resultado. e que iria acabar de determinada vez de parecer. b
choque. Não mudámos de direção, forma. Como é que se inventa, lguerra@blitz.impresa.pt
tentámos foi simplificar. Esse Há um coro feminino omnipresente sucessivamente, o amanhecer do
“arejado” é resultado disso. onde antes havia harmonias vocais dia seguinte? Onde é que vamos Ver crítica a “A Invenção do Dia Claro”
T.W. — A ideia essencial, a forma feitas por vocês mesmos. Esta encontrar alegria? Como é que na pág. 83
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Um recital de McEnroe
Conversa com o realizador francês Julien Faraut sobre “O Domínio da Perfeição”, um filme em
torno da lenda norte-americana do ténis que é muito mais do que um documentário desportivo
E
TEXTO FRANCISCO FERREIRA EM PARIS
ste “John McEnroe: O Domínio da “O Domínio da Perfeição” — que com a sua câmara de 16mm, Gil de
Perfeição”, como todos os que se abre com uma canção dos Sonic Karmadec. Esses pedaços de filmes
distinguem, escapa-se com brio Youth e fecha com The Ramones —, de Karmadec, material inédito que
a qualquer catalogação: a priori, é é muito mais do que isso. Há alguns jamais fora montado, incidiam em
um filme teórico sobre o poder das anos, Julien Faraut, cineasta que John McEnroe e em particular no
imagens. Abre com uma frase de se tem especializado em filmes de torneio de Roland Garros de 1984.
Godard que este texto contextualiza arquivo relacionados com despor- Foi um torneio histórico, um dos
mais à frente: “O cinema mente, o to, ele que, em 2013, já se tinha mais recordados e discutidos da
desporto não”. Mas a experiência de feito notar com “Un regard neuf história daquele desporto. McEnroe
o descobrir, e que tem um fundo de sur Olympia 52” (“Olympia 52” foi reinava despoticamente no ténis
ficção, nunca deixa de ser aprazível. o primeiro filme de Chris Marker, mundial (depois do abandono de
Estamos a falar de um documen- dedicado aos Jogos Olímpicos de Borg). Em Paris, esmaga todos os
tário sobre o mítico esquerdino Helsínquia daquele ano), descobriu adversários, atinge a final, vence
que tinha mau génio e dominou as rushes de um cineasta amador os dois primeiros sets e até chega a
os courts da década de 80? Sim, a que consagrou uma boa parte da uma vantagem de 4-2 no terceiro,
definição também se encaixa. Mas vida a filmar partidas de ténis mas o seu oponente, frio como gelo
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Unifrance com Julien Faraut sobre
a obra que agora chega às salas. “A
“Foi um choque atingir. McEnroe sofreu a bom
sofrer naquela final. Se ele fosse ator
verdade é que tudo começa com o visual reencontrar e estivesse numa rodagem, teria
meu espanto ao descobrir aquelas
rushes de Karmadec, jamais me
aquele torneio abandonado o set.”
tinha passado pela cabeça fazer um filmado em 16mm. “HE LIKED IT!”
filme sobre ténis. Foi um choque Julien Faraut trabalha há 15 anos
visual reencontrar aquele torneio É que a televisão no I.N.S.E.P. (Institut National
filmado em 16mm. Não o digo por
nostalgia da película, mas sim pela
nos anos 80 já é du Sport, de l’Expertise et de la
Performance) e é responsável pela
raridade do que está aqui em causa feita em vídeo” gestão e conservação da coleção
e pela ambiguidade que a pelícu- cinematográfica daquele organismo
JULIEN FARAUT
la cria: é que a televisão nos anos do Estado francês. Este filme e o
80 já é feita em vídeo. E é pela TV acesso ao seu material não surgem
que conhecemos a final de 1984. do acaso. “São filmes de instrução,
Aquelas rushes mostram as ‘cos- difíceis de exibir e que escapam a
turas’ do jogo. São como o making interferência, que a rodagem está a todos os radares dos programadores,
of de um filme que se está a fazer. operar sobre ela [no termo da final apesar de alguns terem uma grande
Mostram-nos as conversas furiosas do torneio, vemos McEnroe à raque- riqueza cinematográfica. Não foram
de McEnroe com árbitros e fotógra- tada na câmara de TV que lhe tenta destinados à difusão televisiva nem
fos, por exemplo. Os pormenores roubar um grande plano].” à exploração comercial em sala e,
da sua ansiedade entre cada ponto “Depois há outro aspeto que eu por isso, praticamente ‘não exis-
conquistado ou perdido.” queria focar”, continua Faraut: tem’ aos olhos do público.” Quando
“Há uma clivagem, sobretudo em começou a trabalhar, Faraut não
GODARD E DANEY França, entre cultura e despor- queria sequer associar o nome de
ENTRAM EM JOGO to, os dois nunca casam bem na McEnroe ao projeto (o título original
“O cinema mente, o desporto não” opinião pública, há um desprezo em francês é apenas “L’Empire de la
é o título de uma longa entrevista recíproco. As pessoas que adoram perfection”). “O que me interessa é
que Godard deu ao jornal desportivo desporto têm tendência a desprezar o seu génio de jogador, a habilidade
“L’Équipe” em 2001 e que serviu a cultura, acham-na elitista e snob. técnica e gestual, a inteligência e a
de mote ao filme de Faraut. “Sa- E os amantes da cultura olham para criatividade, não a sua vida pessoal.
bemos como Godard é mordaz e o desporto como uma atividade Vi bastantes entrevistas que ele deu
provocador nas entrevistas que deu reles, o ópio do povo. Ora, Godard e naquela época, e era um terror, con-
ao longo da vida. Usa trocadilhos, Daney, dois intelectuais brilhantes seguia ser especialmente desagra-
subentendidos, etc. Mas naquela que amam o ténis, contradizem esta dável com os jornalistas. Não ousei
John McEnroe em Roland entrevista, e ao contrário do que se ideia com uma devoção sincera. No aproximar-me. Mas a uma dada
Garros, no torneio de 1984 (que espera, temos antes um Godard ob- artigo do ‘L’Équipe’, Godard tem a altura, a meio do trabalho, o meu
ele perdeu para Ivan Lendl) jetivo, sincero, perspicaz, com uma ideia genial de se perguntar porque produtor entra em contacto com o
grande exatidão nos pormenores.” é que as transmissões televisivas dos agente dele, que nos desconsidera.
Faraut partiu daqui para apontar o desportos tendem a usar o mesmo Depois, o filme é selecionado para
— o ainda pouco conhecido Ivan dedo a várias coisas, “e uma delas tipo de câmara, o mesmo ritmo Berlim, e o mesmo agente contacta-
Lendl —, vira o resultado, conquis- é a própria noção de documentário. constante, etc., quando na verdade -nos: queria uma cópia. Nesta troca
tando o seu primeiro Grand Slam (e É que se o cinema de ficção mente, um jogo de futebol ou uma parti- de e-mails, perguntámos-lhe se
outra rivalidade histórica começaria também o documentário mente. da de ténis são feitos de imagens McEnroe tinha gostado e recebemos
a partir daqui entre o americano Vejo-o, aliás, como uma forma ‘mal empolgantes, outras aborrecidas, um seco ‘he liked it!’, nada mais.”
e o checo). Roland Garros 1984 foi assumida’ de cinema. Na ficção, outras violentas e surpreendentes. Meses depois, frisa Faraut, o filme
o torneio do Grand Slam em que temos a possibilidade de autorizar o Godard defende então que a trans- estreia-se nos Estados Unidos. Sai
McEnroe percebeu que não era que queremos. Até podemos fingir missão em direto deveria fazer um sobre o mesmo um grande artigo em
indestrutível — para os biógrafos do que estamos a fazer um documen- esforço para se adequar à dramatur- “The New York Times”. “O próprio
atleta e amantes de ténis, a derrota tário...” O cineasta explica-se: “O gia do próprio evento desportivo — é McEnroe escreve-me então: diz-me
mais dura da sua carreira. documentário na sua forma mais uma verdadeira ideia de cineasta.” que, não só gosta muito do filme,
Estreado no Fórum de Berlim em pura — aquele que, por defeito, Esta ideia atravessa por inteiro como quer um link para o mostrar
2018, “John McEnroe: O Domínio imerge no real sem comentários e “John McEnroe: O Domínio da aos amigos. A comunicação entre
da Perfeição” é essencialmente um sem musica — procura apagar todos Perfeição”. Faraut está a trabalhar nós ficou-se por aí.” b
trabalho de montagem que adiciona os rastos de ficção. Acontece que há com pedaços do jogo em bruto, não
ao já referido material de Karmadec sempre manipulação: o lugar onde com uma versão editada do jogo, “e O Expresso viajou a convite da Unifrance
pedaços de outros filmes didáticos a câmara é colocada, por exemplo, isso permitiu-me reformular a dra-
relacionados com o ténis, também já é uma construção. O próprio facto maturgia da final de Roland Garros
reflexões de Godard e do crítico de um entrevistado saber que está a partir de coisas incompletas, de
francês Serge Daney, que escreveu a ser filmado já o leva a verbalizar elipses e de repetições. No início
abundantemente sobre o desporto o que ele diz de outro modo. Isto é: do jogo, McEnroe entra como um
(as suas crónicas sobre o assunto es- mesmo na sua forma mais pura, o autêntico bulldozer. Quando Lendl QQQQ
tão reunidas no livro “L’amateur de documentário permanece impuro. começa a recuperar, sublinho os JOHN MCENROE:
tennis”), por fim, uma construção Ora, o meu filme acaba por dialogar mesmos falhanços de McEnroe de O DOMÍNIO DA PERFEIÇÃO
dramática dos acontecimentos de com esta ideia e com a frase de Go- pontos de vista diferentes, acen- De Julien Faraut
Roland Garros em 1984 até à derrota dard porque é um filme de rushes. tuo o seu desespero através de um Com John McEnroe, Ivan Lendl,
que magoou McEnroe. Em janeiro Estas rushes mostram a realidade artifício que uma transmissão em Mathieu Amalric (narrador) (França)
deste ano, falámos nos encontros da e, em simultâneo, a modificação, a continuidade na TV não conseguiria Documentário M/12
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H
A música e a dança
num requiem onde
Mozart ganha
novas expressões
Enquanto
do Congo (há um português entre
eles), num cenário austero, também
de Platel, que cita o Memorial do
Holocausto em Berlim. Ao fundo,
num ecrã gigante, desde o primei-
ro segundo em que as luzes da sala
ela morre
se apagam, está o rosto de L, L de
Lucie, pousado sobre almofadas com
motivos floridos. A imagem a preto e
branco mostra os olhos muitas vezes
fechados, pontualmente entrea-
bertos, por vezes inesperadamente
expressivos, a vaguear em redor,
inclinando a cabeça para declinar
amor à sua volta, a boca seca, e a
persistente insistência em hume-
decer os lábios com a língua. Nos
Lucie deixou-se filmar nos seus últimos momentos de vida. “Requiem
primeiros instantes existe apenas para L”, do compositor Fabrizio Cassol e do coreógrafo Alain Platel,
Lucie e o som de respiração tocante
do acordeão, tocado pelo português confrontam o público com essa imagem, num Mozart reinventado, em
João Barradas. Do início do espetá-
culo, até passar cerca de uma hora
que a morte tem o rosto desconcertante de uma doçura apaziguadora
e quarenta minutos, Lucie está pre- TEXTO CLAUDIA GALHÓS EM ESTRASBURGO
sente. Tudo acontece enquanto Lucie
morre. É impossível ficar indiferente.
Em Estrasburgo, onde o Expresso viva. Em “Gardenia” (2010) levou
assistiu a uma sessão esgotada, o para cena travestis e transexuais na
final foi recebido em apoteose. Platel reforma. Em “Tauberbach” (2014)
é o primeiro a partilhar os dilemas falou-nos da vida para lá do limite
que esta criação lhe colocaram e da razão de Estamira, a mulher que
como ainda hoje recebe críticas de vivia numa lixeira no Brasil. Antes,
exploração voyeurista, de como al- já tinha criado um espetáculo numa
gumas pessoas saem zangadas, mas pista de carrinhos de choque, “Ber-
a maioria do público reage como nardetje” (1996) — em Lisboa foi
o de Estrasburgo, irrompe num montada na praça do museu do CCB.
aplauso entusiasmado que recusa Em “Wolf” (2003) foi particular-
silenciar-se. “Chega a ser catártico, mente polémico, ao reunir em palco
dou-me conta que muitos levam os bailarinos, cantores líricos, músicos
seus mortos para o espetáculo.” de uma orquestra de câmara e uma
Platel tem mais de três décadas de matilha de cães de grande porte.
experiência nestas andanças do “Wolf” tinha música de Mozart, uma
realismo das emoções tornados arte exceção para um percurso artístico
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onde os compositores têm sido concretizámos na performance, é da vida da pessoa que morreu”, diz.
vários, mas em que Bach predomina. para mim já um milagre. Falando “Chega a ser Ainda assim, há fraturas radicais
Ainda assim, não é de estranhar a com a Lucie, tendo este intenso con-
tacto com a sua família, falando com
catártico, entre países da mesma Europa. Pla-
forma como sensibilidades sonoras, tel afirma, sem hesitar, “sou muito
gestuais e humanas muito distintas o elenco e a equipa e testemunhar dou-me conta feliz por viver na Bélgica, onde o
se encontram no mundo de Platel,
como nesta nova colaboração com
como a maioria do público abraça
esta ideia, torna claro que este é um
que muitos aspeto legal da eutanásia é bastante
progressivo, comparado com outros
Cassol, onde os cantos polifónicos projeto importante, na forma como [espectadores] países”. É o caso de Portugal. Em
africanos se harmonizam com o lidamos com a parte mais essencial 2018, foram chumbados na Assem-
canto lírico e instrumentos como a da nossa vida que é a morte. Esta levam os seus bleia da República os projetos de
guitarra elétrica, o acordeão, o eufó-
nio, a bateria e o likembe.
é a única certeza que partilhamos
enquanto seres humanos com todas
mortos para despenalização da morte assistida.
Lucie tem uma história pessoal que
A proposta de partir de “Requiem” as pessoas. Há grandes diferen- o espetáculo” também aconteceu, por acaso, não
de Mozart foi de Cassol. Quando ças no modo como lidamos com ser indiferente a este tema. Platel
Platel se envolveu, soube imediata- a morte em diferentes partes do ALAIN PLATEL partilha connosco a forma como ela
mente que não podia tomar decisões mundo. Na Europa, em particular lutou pela legalização do aborto e da
superficiais. Mas como falar da na Bélgica e Alemanha, onde vivo, eutanásia. “Através de Lucie e das
morte de um modo profundamente é um tema obscuro.” A psicóloga histórias que vivi com este médico,
real? O tema tem estado presente na Marie de Hennezel, no livro “A Arte conheci várias pessoas que esta-
sua obra, mas desta vez queria que de Morrer”, lembra como somos vam a enfrentar a aproximação da
fosse o mais real possível. Pensou na quotidianamente invadidos com morte, compreendi que a eutaná-
possibilidade de ter em cena o filme imagens de morte, ao mesmo tempo sia é uma decisão muito pessoal.
dos últimos momentos de vida de que persiste o tabu da morte íntima, Só posso ser a favor. É algo que
uma pessoa, mas com a certeza — “aquela que toca ou tocará cada um acontece de forma muito íntima,
diz “200% de convicção” — de que de entre nós um dia, no coração das de proximidade profunda entre as
nunca se iria concretizar. Começou nossas vidas. Esta morte é ocultada, pessoas, elas próprias, a sua família,
a trabalhar sobre essa possibilidade escondida, despojada da sua dimen- amigos e médico. Penso que não
com um amigo médico, implicado são humana”. É precisamente aqui Mozart morre enquanto tenta imitar há nada que possa ser argumenta-
nos cuidados paliativos. No processo, que toca este “Requiem para L”, “com a sua boca os tímbales do seu do contra isso e não compreendo
teve momentos de grande dúvida. “É um toque recorrentemente evocado ‘Requiem’”, recordará Sophie mais porque as pessoas se opõem tanto a
bom ter uma ideia artística, mas é também nessa presença desarmante tarde. isso.” Lucie, enfrentando uma vida
outra coisa a sua concretização. Lu- das mãos, as mãos dos familiares e Hennezel diz-nos, a propósito deste condenada, decidiu as circuns-
cie é uma pessoa. Ela morre em maio amigos de Lucie que a acariciam, tabu, que “se começarmos a olhar a tâncias da sua morte, rodeada de
de 2017 e nós começamos a trabalhar que lhe levam um urso de peluche realidade da morte, é sobre as pro- amor. Platel filmou-a. Agora, a cada
neste projeto com os músicos em ou- ao peito, que se agarram a ela ao fundezas de si próprio que o olhar se nova apresentação do espetáculo, é
tubro de 2017, cerca de cinco meses mesmo tempo que a deixam ir, e as debruça. E é dessa interioridade que como se escutássemos, em ternura
depois. Quando estávamos a ensaiar mãos que ganham um protagonismo a nossa sociedade foge e se esconde e celebração da vida, as palavras de
já com as imagens, as filhas da Lucie coreográfico e musical em palco, ao tanto quanto pode”. Platel conta Mozart. “É preciso que fiques esta
falavam-nos sobre a sua mãe.” Nesta vivo e nas fotos que a divulgação da que levou dois músicos do Congo, noite e me vejas morrer.” b
fase, já tinham ultrapassado os pri- companhia disponibilizou. Aqui não que entram em “Requiem”, a um
meiros obstáculos e dúvidas: obter a há paralisia afetiva, há a eloquência funeral na Bélgica e estes ficaram O Expresso viajou a convite da Culturgest
autorização de Lucie para ser filma- expressiva, contagiante e vibrante chocados com a atmosfera depres-
da, a permissão da família, envolver do afeto. O “Requiem” de Mozart siva que encontraram. No Congo,
o elenco para descobrir se, e como, já traz essa dimensão da intimida- disseram-lhe, alguns funerais che-
era possível integrar as filmagens na de vivida da morte, na atmosfera gam a durar uma semana, e há festa.
performance. No caminho, questio- sonora mas também no enigma em Platel sente que algo está a mudar. REQUIEM PARA L
naram sempre: “Podemos confron- que está enleada. O conde Franz “As pessoas começam a tornar os De Alain Platel e Fabrizio Cassol
tar o público com estas imagens?” von Walsegg, querendo passar a funerais momentos de celebração Culturgest, Lisboa, de 14 a 16
Este não é simplesmente mais um celebrar todos os anos a vida da fale-
processo de criação artística. “Foi cida esposa, Anna, no aniversário
muito duro a nível ético e emocio- da sua morte, terá encomendado a
nal”, diz Platel. obra a Mozart, mas tentando depois
O espetáculo é celebração: da fazer-se passar por seu autor. Consta
imaginação humana, do dom da também que Mozart terá dito que
partilha, da comunhão, do virtuo- compunha o “Requiem” para si
sismo vocal e físico dos artistas próprio. Mozart não chegou a ter-
envolvidos. “Requiem para L” é uma minar a obra. As circunstâncias da
celebração da vida com a presença morte do compositor recolocam-nos
de Lucie enquanto vai morrendo, do nesse lugar do tabu e da intimidade.
princípio ao fim do espetáculo. Ali Mozart tem 35 anos, está na miséria,
não há possibilidade de distração do deixa um filho de 6 anos e é Sophie
facto de que este é o inevitável final Haibel, a irmã mais nova da viúva,
da história. Essa é uma questão que Constance, que deixa escrito o teste-
Platel não evita também. “Que- munho dessas últimas horas. Mozart
ro absolutamente falar sobre isso. está na cama, Constance chora
Devo dizer que a primeira coisa sobre ele, e Mozart diz a Sophie: “É
que penso relativamente a toda preciso que fiques esta noite e me
+ info www.teatroaberto.com
esta ideia, e consciencializar que a vejas morrer”... É isso que sucede.
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MICHAEL PUTLAND/GETTY IMAGES
Li
vros
O Dylan de tudo
N
Aguardada com muita expectativa, a última grande entrevista inúmeros cadernos. Morreu em
que concedeu, Leonard Novembro de 2016, antes de
a antologia póstuma de textos inéditos Cohen impacientou-se completar a tarefa, concluída
de Leonard Cohen, o cantor com o director da “New Yorker”
por causa de um equívoco quanto
depois por dois académicos, Robert
Faggen e Alexandra Pleshoyano.
canadiano desaparecido em 2016, às horas do encontro. David Podemos especular se o volume que
Remnick conta que ouviu uma Cohen entregaria para publicação
é um livro caótico e decepcionante descompostura monumental, seria ou não muito diferente de “A
inesperada na boca de um homem Chama” (2018), mas somos forçados
TEXTO PEDRO MEXIA
tão gentil, que no entanto explicou a admitir que “A Chama” é um livro
que estava velho e doente e não caótico e decepcionante. Adam
tinha tempo a perder. Desde Cohen, na introdução, escreve que
os poemas juvenis que Cohen o pai se considerou “acima de tudo,
manifestava a vontade, ou assumia um poeta”, o que é verdade; mas
a missão, de ter uma “carreira sabemos que a sua aceitação como
poética”, uma “obra poética”, e nos poeta foi sempre menos unânime
QQ últimos meses de vida dedicou- do que o seu reconhecimento
se a “deixar tudo em ordem”, enquanto escritor de canções. E
A CHAMA
organizando uma antologia de é curiosíssimo perceber que um
Leonard Cohen
Relógio D’Água, 2019, trad. de Inês Dias, textos inéditos em livro, recentes dos temas fortes de “A Chama”
368 págs., €18 alguns, e outros antigos, escolhidos é justamente a discussão sobre o
Poesia de mais de três mil páginas em estatuto poético de Leonard Cohen,
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Deixada incompleta,
a obra final de Leonard
Cohen foi concluída
por dois académicos,
Robert Faggen e
Alexandra Pleshoyano
questão debatida com auto-ironia a uma língua de chegada, porque ESTACIONAR COM
e ansiedade. “Eu trabalhava sem
parar/ Só que nunca lhe chamei
nesse trânsito perdem a dimensão
cantabile, o fascínio das repetições, TECNOLOGIA
arte”, diz um poema. E outro, o pulsar rítmico, como um vinil a Os utilizadores da aplicação MobiCascais
intitulado ‘A minha carreira’, tem tocar nas rotações erradas. vão ter acesso à identificação
apenas estes três versos: “Tão Não se julgue, no entanto, que as de lugares livres em tempo real
pouco para dizer/ Tão urgente/ fraquezas de “A Chama” se devem nos estacionamentos da praia de
dizê-lo”. Texto após texto, Cohen todas às incapacidade da tradução, Carcavelos e da Boca do Inferno. Esta
considera-se “uma criatura de quer dizer, de qualquer tradução: funcionalidade de smart parking
segunda categoria” que produziu a escolha dos poemas e dos surgirá integrada na app da Cascais
“decorações aceitáveis”, um autor “fragmentos” do arquivo também Próxima, e foi desenvolvida pela
“pretensioso e insignificante”, é pouco menos que desastrosa. Vodafone recorrendo a duas tecnologias
atreito ao “kitsch usado Os poemas retomam a temática distintas: na Boca do Inferno a solução
habilmente”. Mas comparado com coheniana habitual, a que chamou funcionará com recurso a sensores de
quem? Com os seus mestres, Rumi, “demónios (...) mansos, de classe NarrowBand-IoT (uma nova tecnologia
Kaváfis, Lorca, Layton? Com os seus média”, a depressão, a elegância, o de transmissão) escondidos no subsolo;
pares, como Hank Williams ou Bob zen, os fortes e os fracos, o divino, já na praia de Carcavelos serão instaladas
Dylan? Ou com os ídolos de agora? as mulheres, os inimigos, “o que câmaras inteligentes que monitorizam
Um poema sarcástico assevera: aí vem”, a serpente no jardim os lugares disponíveis e controlam os
“Kanye West não é Picasso/ Eu sou do Éden, a derrota, o “eu” como veículos mal estacionados. vodafone.pt
Picasso/ (...) Jay-Z não é o Dylan de ancião duvidoso e falso sábio.
nada/ Eu sou o Dylan de tudo”. E se Quem visitava o site “The Leonard
os anti-Nobel-a-Dylan exclamaram Cohen Files”, onde muitos dos
“ao menos se fosse o Cohen”, Cohen poemas tardios foram aparecendo, À PROCURA
interroga-se: “O que aconteceu sabe que é fácil fazer com esse
ao meu lugar/ na Antologia de material sete ou oito antologias DO SOL
Literatura Anglófona?”, quase do mais interessantes do que esta, A Billabong Women dá as
mesmo modo que Dylan negou ser derivativa, frouxa, inexplicável até. boas-vindas aos dias mais quentes
um poeta ao mesmo tempo que E que dizer então da selecção de com a coleção Seekers of the Sun.
se comparava astuciosamente a anotações e rascunhos? Apenas Dominada por uma paleta de tons
Shakespeare. A literatura é ainda que interessam a estudiosos e femininos, é inspirada na beleza da
um poderoso fantasma. a mais ninguém, porque são primavera e na pura tranquilidade
“Stanger Music” (1993), a antologia tremendamente inferiores aos californiana, surgindo com motivos
canónica dos poemas e canções poemas publicados, ruminações florais e listas modernas. Na imagem,
de Cohen, tornava verosímil essa avulsas sobre Moisés ou Nico que
o jumper Easy Going, uma das várias
candidatura ao panteão dos poetas; em muitos casos deram origem a
propostas que são um verdadeiro
mas o mesmo não se pode dizer bons poemas e canções mas que
convite a desfrutar do sol, saboreando
de “A Chama”. Tal como o volume valem pouco autonomamente, com
a liberdade da maresia na areia da
anterior, “A Chama” inclui poemas excepção de um ou outro verso,
praia com mergulhos no mar azul.
e lyrics (os últimos quatro álbuns), de uma ou outra imagem. Salva-
billabong.com
e acrescenta-lhes excertos dos já se um texto em prosa, um óptimo
referidos cadernos. Começando discurso de aceitação do Prémio
pelas “letras de canções”: não há Príncipe das Astúrias, onde vem
nada de errado com elas, bem pelo ao de cima o Cohen grato, amável, CONTRA
contrário, algumas “velhas ideias” e
alguns “problemas populares” não
que explica que toda a sua carreira
se deve a Espanha: a Lorca, com
A BICHARADA
ficam mal ao lado do cancioneiro quem aprendeu a escrever lamentos Dicas para evitar os piolhos há muitas,
clássico do autor; acontece que a belos e dignos, e ao flamenco, mas para se livrar efetivamente deles
transposição para o português não que lhe ensinou a progressão de nada melhor do que recorrer a produtos
funciona, uma vez que os textos seis acordes com que compôs as especializados. A marca italiana HAIRMED,
cantados de Cohen precisam da canções. E salvam-se os desenhos por exemplo, propõe um tratamento radical
rima, e sem o suporte da rima do autor, aqui reproduzidos, não à base de substâncias naturais através
parecem não débeis exactamente pela excelência artística mas pelo dos produtos com a marca Pidox. O pack
mas, digamos, traduzidos, dom implacável para o auto- inclui um fluído que não irrita o couro
visivelmente traduzidos. E não se retrato. b cabeludo – porque não contém fenóis
trata de qualquer inabilidade da nem cetonas –, e um pente específico
tradutora, Inês Dias, poeta que, Pedro Mexia escreve de acordo que ajuda a espalhar a loção e a remover
tal como antes Jorge Sousa Braga, com a antiga ortografia piolhos mortos. Na mesma linha pode ainda
Margarida Vale de Gato ou Vasco encontrar um shampoo atóxico à base de
Gato, tem sempre mais sucesso com Ver mais sobre “The Flame”, óleos e substâncias vegetais, sem SLES
os poemas do que com as canções. de Leonard Cohen, (lauril éter sulfato de sódio) nem parabenos,
As canções é que não se prestam em “A Desarmonia das Esferas”, pág. 83 recomendado para lavagem após o uso
do fluído, ou em substituição do shampoo
normal, para uma ação preventiva.
procasa.pt
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QQQ
PRIMEIRA LINHA DE FOGO
Ana Margarida de Carvalho
Nova Mymosa, 2019, 18 págs., €8,5
Conto
Q
ue a palavra socialismo tenha religioso, dirigindo-lhes argumentos “O Tacão de Ferro” não aspira a a vida a discutir, embora vivessem
voltado a estar na moda a que eles têm dificuldade em valer pelo estilo. Mesmo assim, há juntos na mesma casa minúscula e
nos EUA é significativo. responder. Os argumentos têm que passagens como esta, durante os partilhassem até a mesma cama.
A desigualdade de rendimentos ver com miséria e injustiça, e a massacres da chamada Comuna Dois homens que se antagonizaram
regressou a níveis que lembram cada uma dessas cenas o fascínio de de Chicago: “Já tinha visto o povo durante décadas, só existindo em
os de há cem anos, quando havia Avis por Ernest aumenta. Ao ponto do abismo, percorrido os seus função da hostilidade que senti-
crianças a trabalhar longas horas de ela — após investigar um caso guetos (...) mas descobri que o via am um pelo outro. O dispositivo
em fábricas (uma situação que o particularmente sinistro revelado pela primeira vez. A apatia obtusa ficcional é simples: a “senhora
Supremo Tribunal aprovou, como por Ernest, onde se confirma que tinha desaparecido. Tornara-se um jornalista” nunca se dá a ver, limita-
nota o presente livro) e milhões de a aliança entre os vários poderes, povo dinâmico, uma fascinante -se a escutar a voz daquela vizinha
pessoas morriam literalmente de incluindo a imprensa, destruiu a demonstração de terror. Avançava à intemporal, talvez uma emanação
fome. Hoje é diferente, mas muita vida de um inocente — resolver minha frente em ondas concretas de do próprio bairro, uma figura que
gente continua a não ganhar o entregar-se à causa tal como ao ira, rosnando e rugindo, carnívoro, parece tudo conhecer e ocultar ao
suficiente para ter uma vida digna. homem. embriagado do uísque dos armazéns mesmo tempo, enquanto desenrola
As evoluções políticas e fiscais das É uma decisão jubilosa e fatídica, saqueados, embriagado de ódio, a história com o vagar de quem há
últimas décadas, não sendo o único que arrasta para a penúria não embriagado de sangue (...) símios séculos vê passar as caravanas no
fator, contribuíram bastante para só Avis como o pai, um reputado e tigres, tuberculosos anímicos e deserto, o monstro sempre presen-
esse estado de coisas, o que leva cientista que tem o azar de valorizar bestas de carga enormes e peludas, te que se rebela contra os homens
a uma renovada exigência de um os factos (o único que lhe escapou rostos pálidos a que uma sociedade e os fustiga com tempestades
sistema radicalmente mais justo, é que a sua prosperidade não vampiresca sugara todo o suco da de areia, uma espécie de “útero
sobretudo desde a crise financeira estava garantida) e ainda um bispo vida, formas inchadas de gordura seco, áspero e mirrado” que “não
de 2008. Assim, “O Tacão de Ferro” invulgarmente bem intencionado. física e corrupção, bruxas mirradas desiste, avança, avança sempre,
reencontra o seu momento. A guerra da oligarquia contra os e caveiras com barba de patriarca, em angústia lacrimosa, em conluio
Publicado em 1908, é o único revolucionários vai-se tornando jovens e velhos apodrecidos...” de amante com o vento”. O efeito
romance político de Jack London. cada vez mais violenta, e eles / LUÍS M. FARIA de estranheza é acentuado pela
Embora formalmente seja ficção começam a responder. Em tudo forma oblíqua como o “litígio muito
— e ficção futurista, pois a história isto há ecos de acontecimentos antigo e íntimo” entre aqueles dois
projeta-se até sete séculos depois do século XIX e do início do XX, homens – no fundo amigos na
— o que o torna poderoso são as mas também posteriores ao livro. inimizade, unidos umbilicalmente
elocuções do seu protagonista, o Durante a leitura, vários pormenores às duas faces de um mesmo “ódio
socialista Ernest Everhard, cuja recordam a ascensão do fascismo — perfeito”, alfaiates desenhando li-
história é contada pela sua mulher, Trotsky reforça essa perceção numa nhas de separação territorial no es-
Avis, falando na primeira pessoa. carta que aqui serve de posfácio — paço comum, com os fios do ofício
Avis é o exemplo clássico de um embora também mostrem os limites – se inscreve na memória coletiva
membro das classes privilegiadas da previsão, pois ignoram o poder como uma espécie de metáfora
que se apaixona ao mesmo tempo terrível do nacionalismo. QQQQ de todas as guerras santas (mas
por um inimigo delas e pelos ideais Sendo tanto romance como O TACÃO DE FERRO também das laicas), no que têm de
que ele encarna. Forte de físico e argumentário, ainda por cima com Jack London terrível e triste, mas sobretudo de
de eloquência, Ernest enfrenta em abundantes notas de rodapé de Antígona, 2019, trad. de Inês Dias, irracional. Ou como se diz às tantas:
cenários diversos representantes um historiador futuro que lembra 304 págs., €17,50 “Isto da natureza humana vá lá a
do poder económico, político e factos contemporâneos da história, Romance gente entendê-la.” / J.M.S.
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Cinquenta anos depois,
a obra de estreia de Manuel
ISTO ANDA
da Silva Ramos continua TUDO LIGADO
a ser radicalmente nova
a descer a
setenta e cinco. De sol. Falo: sou magro. Peso de 2010 —, venha a ser: “E você, também foi
sessenta e oito quilos. De raiva. Falo agora processado pelo juiz?” E a continuar a saga, e os
com emoção: nasci à beira dum rio num mapa fundamentos da saga, assim como era motivo de
grande cidade
Além das outras duas ficções que sempre de Sophia de Mello Breyner —, tal-qualmente
acompanharam o texto principal — ‘Um Longo haverá de parecer mal não se ter sido levado à
Nascimento’ e ‘A Respiração’, igualmente barra do tribunal pelo juiz. Há quem com justiça
viscerais e luminosas —, esta quarta se esforce. “Processe-me!” é uma exigência que
encarnação de “Os Três Seios...”, com direito a toma de assalto a alma dos portugueses e, por
E
m 1969, uma novela escrita por um rapaz capa dura e a um conjunto de belas ilustrações maioria de razão, das portuguesas. O movimento
de 21 anos, aluno de Direito em Lisboa de António Carmo, inclui ainda um dicionário “Pelo processo! Pelo progresso!” ganha adeptos
(vindo da Covilhã e de uma infância pessoalíssimo, de Z a A, que é um verdadeiro todos os dias. Agiganta-se. Se o juiz cita a Bíblia
de pobreza rural), agitou o meio literário ‘Manual do Silva Ramos’, onde se congregam e a sharia, dê-se-lhe com “A Letra Escarlate” e
português. Narrativa muito diferente de as suas obsessões, as suas provocações, as “O Amante de Lady Chatterley”. Se o juiz cita a
tudo o que se escrevia então por cá, “Os Três suas ideias sobre o país, a literatura, a arte punição da adúltera, dê-se-lhe com a “Justine, ou
Seios de Novélia” estava condenada a dividir de viver, mas também, mesmo se um pouco os Infortúnios da Virtude”. Os campos estão bem
as águas. Com um carácter fragmentário e escondidas, as suas verdades. definidos e a pairar sobre l’air du temps, como a
vanguardista, onírico e surrealizante, a que Sinal dos tempos, a releitura de “Os Três mãe de Woody Allen pairava nos céus de Nova
se acrescentava uma voltagem erótica pouco Seios...” deixa-nos a certeza de estarmos Iorque para vergonha do filho, acima de tudo e de
usual, o texto gerou grandes entusiasmos perante um livro tão radicalmente novo hoje todos, paira nos céus do Porto a grande, a enorme,
e francas antipatias. Entre os primeiros como o era há meio século. E isto talvez diga a impagável, a inultrapassável mulher, artista e
destaca-se o júri do Prémio de Novelística mais sobre o estado da literatura atual do que humorista Mae West, gritando aos ouvidos do
Almeida Garrett (formado por Óscar Lopes, outra coisa qualquer. / JOSÉ MÁRIO SILVA juiz que, derivado de não lhe terem esmurrado
Mário Sacramento e Eduardo Prado Coelho), os tímpanos, ouve perfeitamente. E pergunta-
que não teve pejo em distinguir um jovem lhe ela: “Is that a gun in your pocket, or are you
em cuja prosa reconhecia “a mais flagrante just happy to see me?” Na impossibilidade de
expressão de uma já célebre inscrição mural: processar Mae West pela razão evidente de esta
‘L’imagination au pouvoir!’” E reconhecia estar morta deste 1980 (embora, recorde-se, o
bem, porque Manuel da Silva Ramos, não facto de se estar morto não ter sido impedimento
podendo estar em Paris com os estudantes para a Segurança Social, que andou a distribuir
que atiravam paralelepípedos à polícia de 3,7 milhões de euros a almas do outro mundo…), o
intervenção, fez na escrita o seu Maio de juiz faz-se de orelhas moucas; limita-se a clamar
68. Nada que impressionasse o crítico João pela sua honra e bom nome, muito menos do
Gaspar Simões, que, do alto do seu reduto QQQQ que será permitido às mulheres que já morreram
conservador, se mostrou lapidar, destroçando OS TRÊS SEIOS DE NOVÉLIA este ano às mãos de uma violência que o mesmo
o que considerou uma “autêntica palhaçada Manuel da Silva Ramos parece considerar enfatizada. Está ofendido, diz
literária”, sem prescindir do espúrio Parsifal, 2019, 159 págs., €16 ele. É caso para alguém lhe lembrar que mais vale
argumento etário: “Só há uma coisa a dizer ao Novelas um juiz ofendido do que uma vítima morta. b
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Ci
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Taxi driver
Vore (Eero Milonoff)
e Tina (Eva Melander)
em “Na Fronteira”
E
sta primeira longa de de emancipação (até então, ela
Martinessi chega-nos só saíra de casa para ir à prisão)
de um país do qual não que cedo a levará a cruzar-se
que eu gostaria de escrever. Sorte, costumamos receber notícias: o com uma mulher mais nova, cuja
sentido prático e um bocadinho Paraguai. Apesar desta anomalia desenvoltura reativará nela uma
de criatividade: para mim, este é o estatística, ela instala-nos num série de pulsões que — deduz-se —
triângulo que me resume. Acho que território formal que nos é familiar, há muito estavam em latência.
esta falta de relação sentimental apropriando-se de algumas das O filme cativa-nos pela subtileza
com o cinema também acaba por marcas de estilo que caracterizam com que estuda a metamorfose
determinar a estranheza dos filmes o cinema sul-americano do emocional da protagonista (quase
que faço.” Abbasi não reconhece século XXI. De facto, aqui como tudo fica aqui ao nível da sugestão e
nada de persa no seu trabalho (nem em muitos dos filmes de Larraín, do understatement, muito por mérito
quando lhe perguntamos sobre a Lelio ou Martel, encontramos uma da superlativa interpretação de
tradição do cinema de género no realização que se destaca pelo seu Brun), num exercício que, porém,
Irão, popular dentro de portas, tom descritivo (prescindindo quase nada tem de próprio, limitando-se a
mas quase invisível no Ocidente), em absoluto da psicologia), pelo seguir uma receita abundantemente
está perfeitamente enraizado na seu desejo de articular o íntimo testada. Sente-se aliás que — como
Dinamarca, conhece melhor a obra e o político… Mas também, e muitos dos character studies de
de Lars von Trier (“um cineasta de sobretudo, pelo uso de uma câmara Larraín, Lelio ou Martel — “As
que não gosto especialmente, mas que se cola em grande plano — e Herdeiras” procura projetar a
que me ensinou a não ter medo de obsessivamente — a um rosto. personagem que ausculta como
nada”) do que a de Kiarostami (“que Falamos do de Chela, uma a metáfora política de uma classe
admiro sem devoção, à distância”). sexagenária que, na primeira média adormecida, que precisa
E depois falou-nos de sonhos. “Na sequência, se esconde por trás de urgentemente de se confrontar
Fronteira” tem algo que está nessa uma porta para assistir à venda com o seu fora de campo, isto é:
dimensão. “Prefiro olhar para a das relíquias familiares que com uma realidade social que
realidade através de um universo compõem o recheio da casa onde faz os possíveis por ignorar, e à
paralelo, inexplicável para nós. vive com a amante. A luxuosa qual Martinessi alude nas últimas
Não sou pessoa de contar os meus decrepitude desse décor pintado sequências. Mas de um modo a
próprios problemas no ecrã. Mas em tons pardacentos, essa, basta tal ponto apressado e evasivo, que
do sueco John Ajvide Lindqvist não fujo do quotidiano, que por para denunciar a queda social damos por nós a perguntar se o
(“Gräns”). Há uma história vezes me deixa aterrado de medo. daquele casal da classe média filme tem, na realidade, um mínimo
traumática de filiação entre Tina e Por isso escolho procurar outros alta de Assunção. Sobre as razões de alcance político. Simpático, mas
o pai que ela julga ser o dela (tema corpos, novos impulsos, e testar o que explicam essa débâcle, pouco não mais. / VASCO BAPTISTA MARQUES
que Ali Abbasi já havia explorado que daqui pode vir de absurdo, de ficaremos a saber: apenas que
na sua estreia na longa-metragem surreal como no cinema de Buñuel, a cara-metade da protagonista
de 2016, “Shelley”). Há também o meu realizador favorito. O meu contraiu uma avultada dívida,
a natureza fantástica de uma filho chama-se Luis por causa de que depressa a conduzirá à
personagem central que, depois Buñuel.” prisão. Descobrindo-se de súbito
do estranho encontro, começa a Abbasi está a trabalhar em “Na sozinha numa casa que se vai QQ
questionar-se sobre a sua própria Fronteira” com personagens desagregando, Chela começará AS HERDEIRAS
identidade. E uma leitura política fantásticas (há uma cena a usar o carro da amante para De Marcelo Martinessi
subjacente a tudo isto sobre a indescritível de sexo entre Tiva servir de chauffeur a uma trupe Com Ana Brun, Margarita Irun, Ana
Europa de hoje, uma Europa de e Vore que sublinha o potencial de velhas múmias abastadas, que Ivanova (Paraguai/Alemanha/Uruguai/
democracias ameaçadas que se fantástico das personagens), “mas se encontram regularmente para Brasil/Noruega/França)
fecha sobre si própria, que encerra não conseguimos realmente olhar jogar às cartas. Trata-se de um ato Drama M/12
as suas fronteiras. A desafiá-la, para elas como se fossem diferentes
surgem subitamente duas criaturas de nós. E contudo sabemos que
silvestres e góticas que devoram são diferentes. É uma evidência.
insetos. E que se tornam amantes. E isto altera a perceção que temos
Em conversa via Skype com o das coisas. Quando li a novela de
Expresso desde Copenhaga, Ali Lindqvist, senti que o tom do filme
Abbasi, nascido em Teerão, em teria que passar por uma espécie
1981, falou-nos da sua história de de coro emocional que a narrativa
emigrante (“queria ver o mundo...”), em si não é capaz de explicar. E
da fuga a um país em que os artistas este coro emocional, no fundo, é o
têm uma existência torturada pelo pacto que o filme estabelece com o
crivo da censura, dos seus estudos espectador. Por exemplo, quando
de arquitetura na Alemanha “até ouvimos a palavra troll, aquilo leva-
ter ido parar à Suécia” e da sua nos logo a sorrir. Acreditar em trolls
paixão pela literatura, porque o significa acreditar no sobrenatural. Chela (Ana Brun), taxista
cinema “só entrou depois na minha E contudo não sorrimos realmente. pelas circunstâncias
vida, e por acaso. Não sou cinéfilo, Se aquelas personagem nos afetam, da vida em “As Herdeiras”,
limitei-me a descobrir nos filmes é porque há nelas algo de humano de Marcelo Martinessi
um medium eficaz para as histórias também.” b
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Génese de uma
super-heroína
H
á, nitidamente, dois estimáveis, como é o caso, diga-
patamares nos filmes se desde já, de “Captain Marvel
de super-heróis da (Capitão Marvel)” — que raio de
Marvel. O primeiro é dedicado título que a NOS lhe prantou! Os QQ QQQQ
a filmes que abordam a origem segundos são, em geral, fitas de SNU AS CINZAS BRANCAS MAIS
dos personagens, a sua história muito estrondo para as tribos de De Patrícia Sequeira PURAS
genética, isto é, de onde vêm, iniciados, cinematograficamente Com Inês Castel-Branco, Pedro Almendra, De Jia Zhang-ke
como adquiriram os superpoderes nulas, comercialmente ávidas de Maria João Pinho (Portugal) Com Zhao Tao, Liao Fan, Xu Zheng
e, eventualmente, quem são os numerário que costumam recolher Drama biográfico M/12 (China/França/Japão)
seus arqui-inimigos. O segundo às pazadas. É assim que o mais Drama/Romance M/14
patamar está reservado aos heróis recente blockbuster da Marvel que
que já estão em velocidade de esta semana estreou all over the ESTREIA A história de Snu Abecassis Olho para “As Cinzas Brancas Mais
cruzeiro, ou seja, supõe-se que world consegue uma interessante e de Francisco Sá Carneiro tornou-se Puras” e vejo, evidentemente, uma
o espectador os conhece, sabe a prestação em toda a história que um pequeno mito lusitano alicerçado história de amor extremo, sacrificial,
geografia das suas cumplicidades, mostra como se transformou em três esporões: na obstinação do de uma mulher (Qiao) que dá a um ho-
quem são os aliados, quem são os Carol Danvers numa mulher com primeiro-ministro português em impor mem (Bin) tudo o que ele não merece:
vilões, trata-se, apenas, de os pôr poderes para voar no espaço e dar ao protocolo de Estado a presença a fidelidade absoluta na saúde, a cui-
em ação. No primeiro patamar cabo de naves espaciais, a murro. pública de uma paixão extraconjugal; dada devoção na doença. A fidelidade
há, digamos, tempos dramáticos, Tem humor, tem bons atores na morte trágica que os vitimou e uniu é entendida como cumplicidade de
quanto mais não seja porque é em ação — Brie Larson, Samuel como se de um rito sacrificial se tra- vida, não como regra monogâmica; a
preciso contar uma história e L. Jackson, Jude Law, Annette tasse; no oráculo que Natália Correia devoção é praticada como objetivo
porque os protagonistas estão em Bening... —, um argumento que sobre ela lançou quando a descreveu de vontade, não como fardo a que a
fase de identificação, quando não nos vai agarrando e não apenas a Sá Carneiro: “É uma princesa nórdica conjugalidade forçasse. E, no meio
em crise de identidade. No segundo porque espinoteia a meio caminho. num esquife de gelo à espera que como no fim da linha — abandono é
já costuma só haver lugar para o As coisas só azedam nos últimos venha um príncipe encantado dar- o que a espera. Se as cinzas brancas
movimento, para o músculo, para 20 minutos, quando ela começa -lhe o beijo de fogo. E esse príncipe mais puras são as que se geram na
a velocidade. No primeiro os atores mesmo a dar cabo de naves é você. Porque ela é a mulher da sua fornalha de um vulcão, a alma de Qiao
não têm só que ser bons, têm de espaciais a murro e a gente anseia vida”. Quem resiste ao furor poético é matéria afim, curtida no fogo da
trabalhar, têm personagens, estes que o filme acabe. de uma grande história de amor? A paixão e do sofrimento. Acontece que
trazem conflitos e a maior parte / JORGE LEITÃO RAMOS História, talvez, mas o cinema, claro quando olho para “As Cinzas Brancas
desses conflitos não têm solução ao que não. E, tarde ou cedo, havia de vir Mais Puras”, não vejo só essa história;
murro e ao pontapé. No segundo, o filme que fixasse o mito em ima- digo mesmo mais: não vejo, sobretu-
os atores quase só têm que estar gens. Chegou agora, mas não chegou do, essa história, vejo a China. Porque
sob a máscara do super-herói que inteiro. Se o retrato de Snu é credível tudo o que acontece com Qiao e com
a cada um coube em sorte, fazer e conforme ao que sobre ela se teste- Bin em todos os anos deste século traz
poses ‘fixes’ e entregar-se nas mãos QQ munhou, mais discutível é o desenho a marca convulsa de um imenso país
dos técnicos de efeitos digitais CAPTAIN MARVEL (CAPITÃO da personalidade do fundador e em transformação e em movimento. É
que os hão de pôr a voar sobre as MARVEL) eterno patrono do PPD (hoje PSD) e, tão grandioso como a construção de
cidades, a levantar camiões à força De Anna Boden e Ryan Fleck sobretudo, muito gritante, é a quase uma pirâmide e é, ao mesmo tempo,
de braço ou a dar murros com Com Brie Larson, Samuel L. Jackson, ausência do clima político e social trágico, porque há mundos inteiros
impactos estelares. Os primeiros Annette Bening (EUA) que Portugal atravessava nos cinco que desaparecem, modos de vida,
podem ser filmes episodicamente Ficção científica/Aventuras M/12 anos (1976/1980) que durou a relação crenças, hierarquias, relações sociais
entre os dois. Há sinalizações (a num jogo em que a riqueza e a pobreza
conversa entre militares no Botequim, quase parecem resultado de uma roda
a breve incursão aos bastidores da da sorte onde os escrúpulos ou a falta
vitória eleitoral da Aliança Democrá- deles fossem pontos a acrescentar ao
tica, em 1979), mas são tépidos aflora- que a roda diz. A China move-se e é
mentos de anos muito conturbados, um imenso corpo com espasmos que
mesmo no que respeita ao interior do a câmara minuciosa de Jia Zhang-ke
PSD e à liderança de Sá Carneiro. A vai recolhendo nas margens da história
trepidante história de amor fazia parte de amor que parece ser mesmo o que
da trepidação da vida política, de um interessa ao filme — mas não é. E é es-
tempo em que tudo estava em funda pantosa a acuidade com que a ficção
transformação — e as vidas íntimas vai colhendo sinais, nos lugares, nas
também. Do lado romanesco que en- ações, nas transformações dos perso-
forma uma narrativa destas, há a dizer nagens, nas esperanças que vigoram,
que é morna a temperatura a que a no que está no ar. Como se fosse um
paixão acontece, nunca incendeia. pintor que retratasse um notável, mas
O único furor que paira é o de Isabel, o que interessava era o que estava em
a mulher preterida por Sá Carneiro, volta dele, Jia Zhang-ke continua a
talvez porque Maria João Pinho é uma trazer-nos novas do Império do Meio.
Carol Danvers (Brie Larson) em “Captain Marvel” atriz de nervo. / J.L.R. / J.L.R.
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Co-Produção Financiamento
QQ QQ 1 a 17 de Março
GRETA A PORTUGUESA
De Neil Jordan De Rita Azevedo Gomes Exposição Casa de Teatro de Sintra
Com Isabelle Huppert, Chloë Grace Moretz, Com Clara Riedenstein, Marcello Urgeghe, C.C. Olga Cadaval
Maika Monroe
Drama/Thriller M/14
Ingrid Caven (Portugal)
Drama M/12
Teatro Qta. da Ribafria...
ESTRELAS DA SEMANA
Jorge Vasco
Francisco
Leitão Baptista
Ferreira
Ramos Marques
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Diagnóstico:
pessimismo
terminal
Ricky Gervais escreve, realiza, produz e protagoniza “After
Life”, já disponível no Netflix. Longe do registo mais leve
que muitos lhe conhecem, conta a história de um jornalista
viúvo que vê na morte a sua única saída
TEXTO JOÃO MIGUEL SALVADOR
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O
melhor é esquecer tudo o vários os momentos em que isso é
que viu de Ricky Gervais vincado.
em “The Office” (onde além A título de exemplo, há uma
de escrever o guião interpretava o sessão de terapia que começa
comerciante de papel David Brent) e com o psicólogo a perguntar-lhe
deixar também de lado o seu papel como se encontra, com a questão
no filme “Special Correspondants” a ser respondida com palavras
ou os espetáculos de comédia de quem está à beira de cometer
ao vivo — “Humanity” é o mais uma loucura. “Um bom dia é
recente —, que sempre foram o quando não me apetece alvejar
seu palco. “After Life” é diferente desconhecidos na cara e depois
de tudo o que se viu até agora do virar a arma para mim”, diz Tony
humorista britânico. E nem com a sem sequer se mostrar perturbado
bem sucedida “Derek”, última série com as palavras que diz. A esposa
que protagonizou, é possível fazer falecida até pode ter deixado um
um paralelismo justo. guia de sobrevivência ao marido,
Tudo começou há cerca de oito mas resta saber se este quer
anos, mesmo que o que estivesse em mesmo prolongar o seu sofrimento
causa na altura fosse um guião algo terreno depois dos anos felizes que
diferente do que depois deu origem passaram juntos.
a “After Life”. Na sua versão inicial,
de 2011 e que acabou por nunca CONTROLO CRIATIVO
avançar, a ideia passava por relatar Ricky Gervais é o nome principal
a história de um ateu que vai para do projeto, mas isso não acontece
o céu depois de morrer, algo que sem uma razão. Embora tenha sido
acabou por ser abandonado pelo ao lado de Stephen Merchant que
criador da comédia dramática. conheceu os maiores sucessos da
Em vez disso, Gervais fez de Tony, sua carreira, é agora sabido que os
um homem que após a morte da dois criativos britânicos optaram
mulher decide dizer e fazer apenas por seguir caminhos diferentes (e
o que quer — sem olhar ao seu bem- que em causa está a quase obsessão
estar ou ao daqueles que o rodeiam de Gervais pelo controlo criativo
—, ao mesmo tempo que tem de integral das produções em que se
lidar com a boa vontade de quem o envolve). Desta vez conseguiu.
conhece e pretende ajudar. Esta é, Do elenco principal de “After Life”
de acordo com a Netflix, a história fazem parte Kerry Godliman (no
de “um viúvo devastado, que adota papel de Lisa, a mulher de Tony),
uma postura na vida de ‘nada a Tom Basden (o cunhado Matt),
perder’, o que faz com que ele crie Tony Way (o melhor amigo Lenny),
novas ligações inesperadas”. David Bradley (o pai) e Ashley
É que a vida de Tony não é mesmo Jensen (a enfermeira deste último).
fácil, como expressou Ricky A eles juntam-se Penelope Wilton,
Gervais. “A minha mulher está David Earl, Joe Wilkinson, Mandeep
morta. E eu mal posso esperar para Dhillon, Jo Hartley, Roisin Conaty,
me juntar a ela. O meu pai tem Tim Plester e Diane Morgan, num
demência. E a enfermeira dele grupo maioritariamente formado
odeia-me”, escreveu, lembrando por atores que já trabalharam
como a personagem que criou e com Ricky Gervais em projetos
interpreta trabalha “para um anteriores. A série original da
jornal local e gratuito”, no Netflix, produzida pela Derek
qual é obrigado a lidar “com Productions, é composta por seis
idiotas o dia todo”. episódios e foi criada, escrita e
O potencial cómico de uma realizada por Ricky Gervais. Com
história como esta seria produção de Charlie Hanson e
elevado, mas “Louie” — com produção executiva de Duncan
o também humorista Louis Hayes, já está disponível em
C.K. — mostrou que essa streaming. b
possibilidade não está em jmsalvador@expresso.impresa.pt
aberto sempre que é alguém
ligado ao humor a tomar
as rédeas da produção. O
mesmo acontecerá com
a comédia dramática (ou AFTER LIFE
drama com momentos De Ricky Gervais
de alguma comédia) que Com Ricky Gervais, Tom Basden,
agora se estreia. Fica o David Bradley, Kerry Godliman
aviso: “After Life” não é Netflix, estreia sexta em streaming
de todo uma sitcom e são (Temporada 1)
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Replacements. Ao ver o parceiro
Better Oblivion
tocar uma versão da sua canção
Community Center:
favorita daquela banda-instituição,
Phoebe Bridgers e
Conor Oberst
‘Here Comes a Regular’, partilhou
o seu entusiasmo e, semanas mais
tarde, a ideia surgiu a Oberst: e que
tal fazermos uma banda que soe aos
Replacements? “Ele está sempre a
começar bandas, só percebi que isto
era a sério quando já tínhamos umas
cinco canções escritas”, confessou
à “GQ” Phoebe Bridgers, que de
forma desarmante abre o disco
dos Better Oblivion Community
Center — gravado em segredo no
ano passado — com o primeiro
tema que os dois escreveram em
conjunto. “My telephone, it doesn’t
have a camera/ If it did I’d take a
picture of myself/ If it did I’d take a
picture of the water/ And the man
on the offramp/ Holding up the sign
that’s asking me for help”, canta
ela, com segurança e sensibilidade.
Ao cabo de quatro minutos, já falou
de refugiados, cancro e depressão
e pela frente ainda temos mais
nove canções para nos deixarmos
embeiçar pelo seu talento.
Desde os primeiros rascunhos que
a banda de dois quis evitar um
disco de duetos, pelo que o mais
A magia do acaso
comum são as harmonias vocais.
“Sempre quisemos cantar em
uníssono”, garantem, e a opção
revela-se certeira, sublinhando
os dois aspetos mais importantes
Encontro abençoado entre Phoebe Bridgers, do disco: a naturalidade com que
as suas vozes e sensibilidades se
uma das melhores songwriters da sua geração, complementam e a total ausência de
e o seu herói Conor Oberst, ‘patrão’ dos Bright Eyes protagonismo individual, por parte
de qualquer uma das ‘metades’.
TEXTO LIA PEREIRA “A Phoebe é mais perfeccionista
do que eu, o que foi bom, porque
C
ombinado não corria tão primeiro álbum, “Stranger in the me obrigou a tentar fazer melhor”,
bem. Há poucos anos, Alps”, e no ano passado formou o contou ele à “DIY Mag”, ao passo
Phoebe Bridgers, jovem supergrupo Boygenius com Lucy que ela lhe agradece por ajudá-la
cantora-compositora de Pasadena, Dacus e Julien Baker), Conor Oberst, a escrever de forma menos
na Califórnia, não sonhava que que aos 15 anos inventou os Bright autobiográfica. O resultado são dez
um dia viria a formar uma banda Eyes, já encarnou numerosas bandas canções de um indie rock como já
com um dos seus heróis, Conor e projetos, sendo um nome seguro e pouco se usa: melodioso mas sem
Oberst. Apesar de ser um veterano prolífico do songwriting mais afeto medo de rugir, com canções que vão
do indie, o norte-americano ainda ao indie folk. Na grande meca de durar (‘My City’, ‘Forest Lawn’) e
nem 40 primaveras celebrou. Mas Los Angeles, o primeiro encontro letras com gente lá dentro (‘Service
isso não impediu Phoebe Bridgers com Phoebe foi tão marcante que Road’, sobre a morte do irmão de
de se sentir deslumbrada quando resultou numa ‘visita’ ao álbum de Oberst, ou ‘Dylan Thomas’, que
conheceu um dos músicos que estreia da nova amiga: em “Stranger Phoebe descreve como tendo “uma
cresceu a admirar, e até a imitar, in the Alps”, Conor Oberst canta em melodia lá lá lá mas uma letra
nos concertos que dava com uma ‘Would You Rather’, oficializando hedionda”). Tudo cantado a uma só
amiga e nos quais incluía versões de não só a cumplicidade musical da voz, quente e empática, observadora
Bright Eyes. A diferença de 15 anos é dupla como a presença, na obra da e espirituosa. O disco até pode ter
suficiente para falarmos em encontro novata, de uma forte influência dos nascido de um acaso, mas a verdade
de gerações mas, mal começaram a Bright Eyes. é que há muito que Conor Oberst
QQQQ trabalhar juntos, a afinidade entre Do estúdio a amizade transitou para não nos soava tão fresco e inspirado,
BETTER OBLIVION vozes (cantadas e não só) tornou-se os palcos, onde Phoebe Bridgers no registo intimista que sempre foi
COMMUNITY CENTER evidente. Se Phoebe Bridgers tem abriu vários concertos do homem de o seu. Ainda há histórias bonitas na
Better Oblivion Community Center um currículo relativamente breve “Fevers and Mirrors” e percebeu que música. b
Dead Oceans/Popstock mas impoluto (em 2017 lançou o algo mais os unia: uma paixão pelos lipereira@blitz.impresa.pt
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A DESARMONIA
DAS ESFERAS
CAPELAS IMPERFEITAS
QQQQ
A INVENÇÃO DO DIA CLARO Em 2001, aquando da
Capitão Fausto publicação de “Ten New
Sony (à venda dia 15) Songs”, Leonard Cohen
Os First Breath After Coma tocam “Nu” no Teatro explicava-me o motivo por que
Académico Gil Vicente, em Coimbra, hoje, às 21h30 Esta banda tem um plano. Com um título não se considerava um poeta:
que importa o homónimo mote dos “Sem falsas modéstias, quando
Q
uando se estrearam em 2013 com “The não aceitando que ela venha a qualquer LISBOA difícil reivindicar o título de
Misadventures of Anthony Knivet”, os preço. Tomás Wallenstein, ainda na casa poeta. Ser poeta é um veredicto,
leirienses First Breath After Coma mostraram- dos vintes, partiu para ele com um guião uma decisão que é lançada por
nos, ainda em estado embrionário, o caminho bem desenhado: a busca de uma resolu- outros sobre nós e, especialmente, por outras gerações.
que se propunham percorrer. E já davam sinais de ção do dia seguinte capaz de satisfazer Por isso, nunca me atreveria a considerar-me poeta.
querer impor as suas próprias regras, de que não todos os envolvidos. Ou seja, a procura Essa é a mais sublime e exaltante descrição da vida e do
eram banda de fazer concessões. Por muito que da sedimentação de um amor que vai trabalho de um homem.” E, na suíte do hotel parisiense
temas como ‘Punch the Air’ ou ‘Skáphos’ tivessem e vem e vai, da sintonia entre anseios onde estava alojado, acrescentava: “O Serge Gainsbourg
cativado a nossa veia pós-rock, a verdade é que os contraditórios, do encaixe improvável costumava beber no bar, ali em baixo. Só o conheci
sentíamos ainda (naturalmente) muito apegados às entre visões de vida que se desencon- superficialmente. Mas recordo-me de uma entrevista em
suas referências. Seis anos volvidos, e com um álbum tram quase por capricho. A procura que lhe perguntavam como era ser poeta, e ele respondeu
de crescimento pelo meio — “Drifter”, que incluía de um lugar onde a dor e o prazer se que era apenas um quase-poeta.” Por essa altura,
bonitas colaborações com André Barros e Noiserv equilibram sem contas pendentes. Do Cohen publicara já seis volumes de poesia e 10 álbuns (a
—, o quinteto parece ter encontrado o melhor outro lado há quase sempre um ‘tu’ que distinção entre canções e poemas seria quase nenhuma:
norte para as suas canções. “Nu” é mais do que um magoa e é magoado, que está distan- “Uma canção tem de caminhar agilmente de um coração
álbum, é uma portentosa experiência sensorial, te depois de ter estado tão perto, a para o outro. Um poema concebido para uma página
dividida em oito momentos, que derruba os muros quem se pede perdão, a quem se fazem convida-nos a regressar a ele, a compreendê-lo de forma
que os circundavam e os coloca à nossa frente, sem promessas. Existe, ao longo destas 8 diferente de cada vez que a ele voltamos”), mas, pouco
máscaras, menos emaranhados em teias de sons canções estivais que o grupo empreen- antes, em “The Leonard Cohen Files”, ainda desabafara:
que só serviam para escondê-los. Mesmo nos temas deu (não totalmente) no Brasil, uma “De entre os milhares que são conhecidos ou desejam
mais explosivos, como os brilhantes singles ‘Heavy’ vontade de, grosso modo, pôr as coisas a ser conhecidos como poetas, talvez um ou dois sejam
e ‘Change’, encontramo-los, sem dissimulações, funcionar. Ou, já que pediram que fosse genuínos e os restantes são falsificações, deambulando
a reclamar uma voz que sempre lá esteve mas se sincero, há aqui um amor por resolver. pelos lugares sagrados, procurando parecer autênticos.
deixava abafar pelo ambiente circundante. Paradoxalmente, este é o disco menos Escusado será dizer que eu sou uma das falsificações
É bonito ouvir, em “Nu”, os First Breath After Coma denso dos Capitão Fausto, colocando e esta é a minha história.” Em “The Flame” — recolha
a encontrarem-se com eles próprios, a reconhecerem definitivamente de parte o necessaire de poemas e fragmentos inéditos iniciada por ele e,
as suas maiores forças e a abraçarem as fraquezas, psicadélico, relegando para terceiro pla- postumamente, pelo filho, Adam, e por Robert Faggen e
despindo-se perante o mundo enquanto soltam no a pompa orquestrada (nada contra!) Alexandra Pleshoyano — se há algo de que não pode ser
um grito primevo de libertação. Tudo isso resulta do disco anterior. Não preenche todos acusado é de falta de autenticidade: ele, que se colocava
de uma experiência vivida ao longo dos seis meses os espaços, deixa as portas abertas para no polo oposto do “first thought, best thought”, de Allen
em que os cinco elementos partilharam uma casa que uma aragem natural substitua o am- Ginsberg (“My first thoughts are dull, are prejudiced,
antiga, por eles reabilitada, que serviu também bientador, amansa guitarras que noutros are poisonous. I find last thought, best thought”), ele, o
de inspiração para levarem o conceito de álbum tempos quiseram queimar. “A Inven- “lazy bastard living in a suit“ capaz de demorar décadas
mais longe: traduziram as histórias destas canções ção do Dia Claro” é simultaneamente a concluir uma canção, expõe integralmente as suas
num lindíssimo filme de 40 minutos. Ecoando nos pop, pela simplificação de processos, e capelas imperfeitas. Esboços (“I feel ridiculous/ In my
ouvidos, entre a inevitabilidade da mortalidade, clássico, pela adoção consciente (e bem grey suit/ And my pomaded hair/ All groomed for
o peso da solidão e os labirintos do amor, ficam sucedida) do cliché da balada ‘Beatles- love/ While the vermin/ Swarm between my thighs”),
preciosidades como uma apaixonada ‘Howling for ca’ tal como nos foi apresentado depois “first thoughts” (“I think, therefore, I am/ Right up
a Chance’, o minimalismo soturno de ‘Uneasy’ da contaminação prog e vários bigodes there with/ Mary had a little lamb”), apontamentos
e o assombramento de ‘I Don’t Want Nobody’. O middle of the road (‘Amor, a Nossa (“Tom Waits singing (...) it is so beautiful and original
imaginário da banda permanece tão rico quanto Vida’ e ‘Final’, soft rock pré-yuppie and sophisticated — so much better than mine”). E um
sempre foi, mas agora chega assente numa entre o final dos anos 70 e o início dos último desejo: “I am trying to finish/ My shabby career/
sonoridade engrandecida, mais encorpada e munida 80, miraculosamente aceitável), pelo With a little truth/ In the now and here.” b
de uma frontalidade que lhe faltava. / MÁRIO RUI VIEIRA desaforo benfazejo do piscar de olho ao Ver mais sobre “A Chama”, de Leonard Cohen, na pág. 72
chorinho (mas fazendo-o em jeito da
‘nova’ pop brasileira dos oitentas, como
em ‘Lentamente’), pelos coros femininos
QQQQ algures entre Jorge Ben Jor e a Banda
NU do Casaco (‘Faço as Vontades’, ‘Sempre THE FLAME
First Breath After Coma Bem’). Tinha tudo para falhar, mas este Leonard Cohen
Omnichord amor vai perdurar. / LUÍS GUERRA Canongate Books, 2018, 288 págs., €26
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Com “Mantra”, Ellen Lindquist
(n. 1970) compôs um prodígio
O sal da vida
A
de invenção e sensibilidade
ntes de chegarmos a “Mantra” propriamente Pintoin] chamava-lhes ‘désespérés’ e ‘crève-de-
dita já o alinhamento deste CD se põe faim’, mas na região eram mais conhecidos por
a entoar Om e a unir o polegar com o ‘tuchins’. Há quem diga que o nome deriva de
indicador — é em “Drawing”, de Toshio Hosokawa, tuechien, uma expressão destinada a caracterizar
uma peça praticamente ovarista que pretende gente tão miserável que comia cães para subsistir.
ser o equivalente musical de uma amniocentese. Andavam pelo campo em bandos de 20, 60, ou 100,
Conforme explica o compositor, em notas de a roubar e a pilhar.” De facto, a peça de Sorensen é
apresentação: “Sonhei que regressava ao ventre feita de emboscadas rítmicas, de ciladas tímbricas,
da minha mãe. E vivi uma série de sentimentos ataques à má-fé à tonalidade e muito humor negro
primordiais: angústia, pressão, medo, desejo e, por — a espaços, sugere até o que poderia ter sido o
fim, a alegria de vir ao mundo” — imaginam-se apocalipse zombie musicado por Carl Stalling.
hordas de psicanalistas a roer as unhas com Então, nesta sequência, “Mantra”, de Ellen
vontade de o ouvir. Não obstante a repugnância Lindquist, não podia soar mais balsâmica: para
da coisa, claro que há uma certa segurança em gamelão e outros 13 instrumentos em inusitada
ser-se parteiro do próprio nascimento. Mas afinação, a obra é um prodígio de invenção e
Hosokawa não está disposto a correr riscos: esta sensibilidade, sem bijuterias e quinquilharias.
sua delicadíssima e velada obra (membranácea Possui uma ingenuidade algo interdenominacional
talvez fosse um termo mais apropriado) foi e uma espontaneidade que Steiner definiria
escrita para oito instrumentistas, o número da como extraterritorial — de padrões concêntricos
prosperidade e da abundância no Japão. Como é e etéreos, ainda que profundamente telúrica, na
óbvio, qualidades que muito faltaram à época que geologia seria como os anéis de Liesegang! No CD,
inspirou “Minnelieder — Zweites Minnewater”, a sabe ao sal da vida. / JOÃO SANTOS
obra de Bent Sorensen que de seguida se escuta e
que foi sugerida pelas desventuras do século XIV
— aliás, percebe-se pelos primeiros compassos que
ELISE MAALO REKSEN
Revisão do reportório
A
o assistir aos dois primeiros Nacht” (na versão para orquestra brahmsianas com as harmonias O 2º concerto pôs à prova a habilidade
concertos da Gustav Mahler de cordas, de 1943), de Arnold wagnerianas para compor uma obra rítmica da Orquestra, não só com
Jugendorchester (GMJO) Schoenberg, a GMJO separava os irresistivelmente sedutora, mas a suite “O Mandarim Maravilhoso”
lembrei-me dos tempos em que dois pulmões da orquestra: os sopros perturbante (principalmente quando (1928), de Béla Bartók, como
o sumário das aulas se limitava (mais um único contrabaixo) para a sabemos que em 1908 Mathilde com a esfusiantemente colorida
a ‘revisões da matéria dada’. A obra de Mozart, e o pleno das cordas abandonaria temporariamente o lar e “Scheherazade” (1888), de Nikolai
programação não trazia novidades, para a de Schoenberg. Esta última, os filhos para se juntar ao jovem pintor Rimsky-Korsakov. Pelo meio
mas revisitavam-se dificílimas originalmente composta para sexteto Richard Gerstl, amigo do casal). A ouvimos a “Rapsódia sobre um
obras-primas do repertório. As visitas de cordas (1899), teve uma realização propósito: seria bom ouvir a outra tema de Paganini” (1934), de Sergei
bianuais da GMJO à Gulbenkian transcendente. Inspirada num “Verklärte Nacht” (1901), baseada no Rachmaninov, com a brilhante pianista
constituem sempre segmentos altos poema (1896) do simbolista Richard mesmo poema, mas composta para Anika Vavic (que em extra nos brindou
da temporada musical lisboeta. Lisboa Dehmel, “Noite Transfigurada” é a tenor, mezzo e orquestra por Oskar com a ‘Danse languide’, dos “Quatre
é, aliás, uma das quatro cidades de resposta do compositor à atração Fried, amigo de Mahler. morceaux” op. 51 (1906), de Aleksandr
residência, onde ensaiam e preparam que sentia por Mathilde, irmã do seu Scriabine). Wögerer, que sucedeu a
os variados programas, como professor (e compositor) Alexander Lorenzo Viotti (atual maestro titular da
aconteceu agora pela quinta vez (as von Zemlinsky, com quem se viria Orquestra Gulbenkian) como maestro
outras cidades sendo Viena, Bolzano a casar em 1901. O poema descreve assistente da GMJO, estreava-se em
e Pordenone). É empolgante ouvir o passeio de um casal através de QQQQQ Lisboa nas suas novas funções. Para
ao vivo uma grande orquestra — no uma floresta numa bela noite de luar a “Gran Partita”, a GMJO dispensou
número e na qualidade — de jovens (apropriadamente, o fundo do palco
MOZART, SCHOENBERG maestro, mas no resto beneficiou do
Wögerer (d), Gustav Mahler
(idade máxima 26 anos) a tocar com da Gulbenkian oferecia-nos a visão extraordinário talento do seu novo
Jugendorchester
tanto empenho e virtuosidade. São idílica dos jardins); a mulher confessa dirigente (mãos expressivas, sem
Gulbenkian, Lisboa, 25 de fevereiro
cerca de 120 músicos de mais de vinte que está grávida, mas de outro batuta, na peça de Schoenberg, mas
nacionalidades (entre os quais dez homem; o companheiro, extasiado rigorosíssimo nas espinhosas obras
portugueses), a maior parte jovens com o esplendor da Natureza, QQQQQ de Bartók e Rimsky). A GMJO prova
mulheres! abraça-a aceitando a criança que vai BARTÓK, RACHMANINOV, ser um cadinho de grandes talentos.
Num golpe de asa, ao compor o 1º nascer. Recorrendo a uma linguagem RIMSKY-KORSAKOV Mais uma razão para estarmos gratos
concerto com a “Gran Partita” (1784), altamente cromática, Schoenberg Wögerer (d), Vavic (p), GMJ à memória de Claudio Abbado que a
de Wolfgang A. Mozart, e a “Verklärte procurou conciliar as estruturas Gulbenkian, Lisboa, 28 de fevereiro fundou em 1986. / JORGE CALADO
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escrita a palavra jazz, uma para cada vol- entrando-se agora no quinto ano de
tinha à Caaba, presume-se) sem se sentir temporadas que têm contado com
na obrigação de explicar que o título é alguns dos maiores intérpretes europeus
“algo equivocado” (in “Record Collector”). QQQQ como Bostridge, Pluhár, Staier, Bertag-
Imagina-se que isto é gente que nunca SERÕES MUSICAIS noli e Immerseel. Afastado do bulício das
conversou com Mulatu Astatke, por NO PALÁCIO DA PENA visitas turísticas que saturam diariamen-
exemplo, outro ressurrecto da nossa era. Bruno Monteiro (violino), te os salões da Pena, o palácio estava en-
QQQQ Por cá, quando lhe perguntei se ‘Yekermo João Paulo Santos (piano) volto por nevoeiro e brumas, num silêncio
JAZZ, JAZZ, JAZZ Sew’, o seu tema mais popular, era uma Palácio da Pena, Sintra, dia 1 noturno e numa atmosfera de romantis-
The Scorpions & Saif Abu Bakr versão de ‘Song for my Father’, de Horace mo só interrompidos pela chegada dos
Habibi Funk Silver, o compositor etíope riu-se: “Mas Inaugurou-se a 5ª edição do ciclo aficionados que, no salão nobre, dedica-
todo o jazz não é já africano? Eu limitei- ‘Serões Musicais no Palácio da Pena’ ram aplauso entusiástico à interpretação
Não será necessário dar um mergulho nas -me a adaptá-lo às nossas cinco notas com o primeiro recital de violino e piano do pianista e do violinista. A matéria do
escrituras. Afinal, há uma classificação e a um dos nossos quatro modos. Sabe, protagonizado por Bruno Monteiro (Por- espetáculo foi a de música sobretudo
científica para fenómenos desta natureza: aquilo que lhe parece um ritmo latino, to, 1978) e João Paulo Santos (Lisboa, oitocentista com uma primeira parte em
precisamente o táxon Lázaro, que se veri- nessa música, vem na realidade do sul da 1959), intérpretes que estabeleceram que se escutou Mendelssohn (“Sona-
fica quando certas espécies já conside- Etiópia. Vá até lá que ouve mambo, cha- uma parceria sólida e muito fértil. O ciclo ta em Fá maior”, op. post.) e Brahms
radas extintas reaparecem. Agora, diz a chachá… Até bossa nova. Além das esca- prolonga-se até 30 de março com mais (“Sonata nº 2, em Lá maior”, op. 100).
Habibi Funk, à custa da reedição deste las que o Charlie Parker usou no bebop. nove espetáculos. O desígnio desta ini- Com digressões internacionais e carreira
seu LP de 1980, são os membros dos Se reparar bem, mesmo um compositor ciativa no Palácio da Pena continua a ser discográfica assinada com uma editora
sudaneses Scorpions que voltam à vida, como Debussy recorreu à escala diminuta a recriação de recitais que trazem à me- norte-americana, Monteiro continua a
reunindo-se em Cartum, ao fim de quase da música copta, muito usada por tribos mória os serões musicais do rei-consorte trilhar um percurso relevante. Saiu-lhe
40 anos sem nada saberem uns dos ou- etíopes.” Bom, estes seus vizinhos não D. Fernando II, o viúvo de D. Maria II e o muito bem a segunda parte do recital,
tros — por mais peças que lhes dedique diriam tanto. Mas é verdade que pegam impulsionador da construção do palácio. na exploração de obras mais feéricas e
o “Al-Sudani”, hoje, para ressuscitar um num elemento do jazz e da soul aqui, Em parceria estabelecida com o Centro espetaculares e extrovertidas como a
morto, nada como um artigo na “Mono- noutro do funk acolá, e os vão torcendo de Estudos Musicais Setecentistas de mazurca “Le ménétrier” de Wieniawzki
cle”! Infelizmente saiu-lhes nas cartas aos poucos e entrelaçando uns nos outros Portugal e com o Divino Sospiro, os três e uma das peças de “Zigeunerweisen”
reagruparem-se para serem novamente até deles fazerem um ninho — ao jeito palácios (Queluz, Pena e Sintra) consti- de Sarasate. Também se escutou com
incompreendidos — é que não há quem das cegonhas. Praticamente heresia, no tuíram-se como o eixo que tem recebido muito agrado a tranquilidade pastoral da
pegue neste extraordinário “Jazz, Jazz, Sudão atual! Nem que fosse apenas por animação musical de altíssima qualida- “Dança dos Espíritos Abençoados” de
Jazz” (e a capa original tem sete vezes isso já valia a pena ouvi-los. / J.S. de dividida por três ciclos diferentes, Gluck. / ANA ROCHA
2019
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Mina Andala, Maria
João Abreu e Pedro
Walter em “Fenda”
jornalista
sobre a figura pública de uma decisivamente para uma trama
jornalista corajosa, ambiciosa e que vai reconfigurar as relações
interventiva; sobre a passagem do entre as personagens: Catarina,
tempo na vida dessa jornalista, Winnie, Simão, Paulo, Diogo,
sobre a diferença entre aquilo que Lourenço — filho de Simão, e com
Autor e encenador, Rodrigo Francisco se faz e aquilo que uma pessoa é;
sobre um percurso que leva a tal
quem Catarina tem também um
caso. Em “Fenda”, não é só o aspeto
cruza em “Fenda” questões pessoais mulher bem-sucedida a refletir público da vida das personagens
sobre uma carreira que já não lhe que se cruza com o mundo privado;
e profissionais, num contexto interessa, sobre objetivos que já não é também a possibilidade de
de permanente inquietação moral pretende alcançar; a dizer que “se
pudesse deixava isto tudo, o que eu
conhecermos as coisas, os factos,
sejam eles factos políticos, sejam
TEXTO JOÃO CARNEIRO ainda tento fazer já não interessa a eles coisas da vida das pessoas, que
ninguém”. é questionada. Onde está a verdade,
Quase no início da peça, Catarina ou a autenticidade, das coisas, dos
C
atarina é uma jornalista de recebe um telefonema a dizer que factos, das histórias, das notícias?
sucesso, que trabalha na a mãe, que estava num lar para onde está a honestidade ou a má
televisão. No início da peça, idosos, morreu. Pouco depois, fé dos comportamentos? Como
ela está no quarto, com Winnie recebe a visita de Paulo, um acreditar nas pessoas? Como viver?
de Sousa, outra jornalista, com rapaz que lhe vem trazer coisas Rodrigo Francisco, autor da peça e
quem tem uma relação. Já passa da que tinham pertencido à mãe. É encenador do espetáculo, situou a
meia-noite; na manhã seguinte, assim que outra linha temática e ação num espaço único, concebido
Winnie vai entrevistar Simão Veiga, narrativa se cruza com a primeira, por Jean-Guy Lecat, definido
o dono da televisão, o patrão de com a história da profissão e com essencialmente por dois grandes
Catarina; Winnie é mais nova, a relação entre Catarina e Winnie. blocos amovíveis, que fazem e
sul-africana, fala português e os O passado da grande jornalista desfazem lugares, cuja verticalidade
pais são moçambicanos. Como dirá irrompe inesperadamente, com a quase monumental cria uma
Simão Veiga, inicialmente (mas na notícia súbita da morte, e age como espécie de tensão espacial para a
intimidade) “uma mulher, e ainda um agente que precipita reflexões, teia de conflitos em jogo. Winnie
por cima preta”… questões, acontecimentos. O é representada por Mina Andala, e
FENDA “Fenda” é sobre o percurso de passado intromete-se no presente, e Catarina por Maria João Abreu. Com
De Rodrigo Francisco Winnie, de jovem repórter a engloba Diogo, o filho de Catarina, elas contracenam Diogo Dória, João
Teatro Municipal Joaquim Benite, assessora de imprensa na fundação que nunca conheceu a avó; que Tempera, João Farraia, Pedro Walter,
Almada, de 15 de março a 7 de abril de Simão Veiga, em Moçambique; nada sabia da história de uma e nas principais personagens. b
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Uma rara visita
de Steve Paxton
S
teve Paxton é um mito vivo. Fez Theater (1962-1964), do grupo de
80 anos em janeiro passado. Hoje improvisação Grand Union (1970-
arranca, na Culturgest (Lisboa), 1976), ambos em Nova Iorque,
um ciclo dedicado ao coreógrafo, que inventou o contacto-improvisação em
inclui espetáculos, uma exposição 1972, que hoje é referência em todo
e conferências. Esta é apenas a o mundo. O CI começou como uma
terceira vez que Paxton se apresenta forma de pesquisar, juntamente com O quotidiano, na
em Portugal. Teve uma aparição outros performers, se a comunicação cidade ou no campo,
FRANS PANS
inesquecível em 1999 em que dançou era possível através do toque, numa gera material de dança
três solos (Festival Danças na Cidade, técnica que junta Aikido, meditação, para Steve Paxton
CCB, Lisboa) e, outra em 2011, com a ginástica, improvisação...
conferência/demonstração “Material Steve Paxton passou uma década, a
para a Coluna”, sobre a técnica com de 60, obcecado pelos movimentos revolução do corpo que se deu na Real) e Romain Bigé (entre a dança
o mesmo nome que criou nos anos do quotidiano, como andar, estar arte. Paxton deixou também marcas e a filosofia) são os curadores da
80, numa Culturgest a transbordar de pé, sentar, de que “Satisfying profundas na geração de criadores exposição retrospetiva sobre Steve
(organizada pelo CEM — Centro em Lover” (1967) dá conta. Esta é uma portugueses que revolucionaram Paxton, “Esboços de Técnicas
Movimento). das peças incluídas no Ciclo, aqui a dança no país nos anos 80 do Interiores” (de 9 de março a 14 de
Nome maior do Judson Dance com a participação de 42 pessoas, século passado. Um deles é João julho). O programa inclui encontros
juntamente com os solos “Flat” (1964) Fiadeiro, que o conheceu em 1988, e conversas a partir de questões
e “Goldberg Variations” (1986/2010), no festival Jacob’s Pillow (EUA), lançadas pela obra de Paxton, uma
ambas interpretadas pelo bailarino num tempo em que era preciso delas é “A dança solo existe?”, com
esloveno Jurij Konjar (hoje). procurar fora de Portugal os mestres a coreógrafa Vera Mantero (30 de
CICLO STEVE PAXTON Steve Paxton é figura incontornável dessa nova dança que alastrava pelo maio). Mas há muito a descobrir neste
Culturgest, Lisboa, de 9 de março da dança do século XX, um dos mais mundo. João Fiadeiro (coreógrafo, ciclo dedicado a Steve Paxton.
a 14 de julho influentes protagonistas de uma autor de Composição em Tempo / CLAUDIA GALHÓS
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O domínio coletiva; entre as dimensões
materiais e visuais e o discurso;
entre as narrativas dominantes (a
da fala
que não escapa a ciência) e os atos e
imagens de insurgência.
Um bom exemplo disso é o filme
“Hand-me-downs”, de 2011, que
faz referência ao hábito de transferir
a roupa de umas crianças para
Artista marroquina traz a Lisboa uma exposição as outras no ambiente familiar
de acordo com os ritmos de
onde o combate pela memória e pela crescimento. Nele, a artista conta
identidade encontra múltiplas formulações a história das mulheres da sua
família do ponto de vista da mãe
TEXTO CELSO MARTINS em cima de imagens de filmes
anónimos realizados pelos colonos
franceses no norte de áfrica como
A
exposição que a artista discurso sobre a realidade e a sua se ver e ouvir simultaneamente
marroquina Yto Barrada hierarquização depende do poder histórias e perspetivas diferentes
(1971) apresenta na sala de da fala, da possibilidade de escolher nos conduzisse a um outro plano
projetos do Centro de Arte Moderna as modulações, códigos e jogos de narrativo e a uma expansão da
reúne escultura, diapositivo, poder que ela projeta. Por isso as compreensão das coisas.
pintura sobre pano e filme numa suas obras, embora eminentemente O mesmo princípio preside ao filme
grande multiplicidade de suportes visuais, são sempre enunciações “Tree Identification for Beginners”
e direções mas uma figura paira discursivas e formas de tornar (2017) que recupera a figura da
sobre ela com a força de uma visíveis certas especificidades mãe da artista, nomeadamente,
referência enquadradora. Trata-se simbólicas ou culturais. A obra uma viagem que esta realizou aos
de Thérèse Rivière (1901-1970), que mais se aproxima da natureza EUA em tempo de contestação
etnóloga discípula de Marcel Mauss, coletora da investigação de Rivière é política. Barrada cruza a narrativa
que estudou aprofundadamente “Untitled (Unruly Objects, Thérèse materna com outras associadas
a cultura da etnia berbere dos Rivière Mission)”, de 2016, uma ao movimento Black Power e dos
Chaouias, nomeadamente na projeção de diapositivos cujas direitos civis sincopadas com
missão realizada entre 1934 e imagens estabelecem combinações imagens de jogos e molduras
1936 nas montanhas do Aurès de objetos estranhas à organização geométricas. A geometria insinua-
onde investigou as relações entre simbólica ocidental que Yto se, aliás, em vários dos trabalhos
colonizados e colonizadores dando recolheu e foram guardados no apresentados como as pinturas
voz e fazendo protagonistas atores Musée du Quai Branly em Paris. Elas em pano tingidas com diferentes
normalmente silenciados. A sua surgem no trabalho da marroquina pigmentos e materiais orgânicos ()
posterior marginalização como de uma forma quase lúdica e essa que fazem referência ao minimalista
QQQ académica tornou-se sintomática da dimensão está presente em quase Frank Stella ou na escultura-
MOI JE SUIS LA LANGUE implicação muito pouco distanciada todas as outras obras apresentadas. instalação “Jeu de Construction
ET VOUS ÊTES LES DENTS da própria etnologia no edifício Ao mesmo tempo, as peças de (Thérèse Unit Blocks”), 2018, uma
Yto Barrada colonial. Barrada tendem a estabelecer construção de módulos brancos
Fundação Calouste Gulbenkian, À semelhança de Thérèse, relações e paralelismos entre em forma de castelo que permite
Lisboa, até 6 de maio também Barrada percebe que o o círculo pessoal e a memória variações e outros encaixes.
Barrada usa estas referências que
a geometria e a história da arte
tendem a tomar como universais
sujeitando-as a um processo de
mestiçagem cultural que é paralelo
aos cruzamentos dos demais
trabalhos. Não se trata tanto de
apagar o que nelas há de ocidental,
o que seria impossível e indesejável,
mas de — através desse efeito de
‘tingimento’ cultural — deslocar a
centralidade discursiva e imagética
do Ocidente e abrir espaço para
outras vozes, outras falas. b
MUSÉE DU QUAI BRANLY
Imagens do diaporama
“Untitled (Unruly
Objects, Thérèse Rivière
Mission)”, de 2016, Yto
Barrada para descobrir
na Fundação Gulbenkian
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A TABELA PERIÓDICA
CIÊNCIA EM PORTUGAL
Aproveito a boleia das celebrações da
Tabela Periódica para escrever sobre a
ciência e cientistas em Portugal. Tirando
um ou outro ministro da Educação mais
esclarecido (por exemplo, Francisco Leite
Pinto entre 1955-61), a ciência soçobrou
sob o peso e os ataques da ditadura.
Apenas a medicina (talvez por força de
um imperativo moral) e a matemática
(onde, ao tempo, bastavam papel e lápis)
/ JORGE exibiram alguma vitalidade internacional.
CALADO Não terá sido por acaso que o único
Prémio Nobel português nas ciências foi o
de Egas Moniz em 1949 (em Fisiologia ou
Medicina). Nos anos 1960 as coisas começaram a mudar, em parte
graças ao apoio da recém-criada Fundação Calouste Gulbenkian
(que tinha a ciência como uma das suas quatro valências). Foi
já na chamada Primavera Marcelista, com José Veiga Simão
como ministro da Educação (1970-74), que aconteceu a primeira
organização departamental e seccional das universidades, o
desenvolvimento dos centros de investigação e ao apoio à ciência
por projeto. Tive a sorte (e tenho o orgulho) de ter pertencido
à primeira geração de professores que após pós-graduação
no estrangeiro (no meu caso, doutoramento na Universidade
de Oxford em 1970) regressou a Portugal para aqui iniciar
investigação de nível internacional e formar as gerações seguintes.
Creio que ao longo das décadas gerei cerca de 200 doutoramentos
de gerações sucessivas de investigadores, depois espalhados por
universidades e empresas, em Portugal e no estrangeiro. Não fui o
único. Em 2000, os 118 docentes do Departamento de Engenharia
Química do IST (mais de metade, mulheres) estavam todos
doutorados e não havia assistentes — o primeiro departamento
universitário português a atingir tal pleno. Eis a primeira
aberração: o número! Em Portugal há um excesso de docentes,
mal justificado com um excesso de aulas (desnecessárias). Uma
triste herança do PREC quando um assistente doutorado passava
imediatamente a professor auxiliar da sua universidade (um
direito adquirido). Sempre lutei contra a endogamia, encorajando
os novos doutores a concorrerem a outras universidades. E
sempre me bati — sem sucesso, devo confessar, e muitas vezes
incorrendo na ira de colegas e reitores — pela distinção entre
concursos académicos de recrutamento e de promoção, com
escolha rigorosa dos melhores. Esta forma subtil de endogamia é
o cancro que afeta todas as universidades portuguesas. E é difícil
de combater porque a autonomia universitária é uma ficção, e os
portugueses, na generalidade, servem-se a si próprios e aos seus
parentes e amigos, antes de servir as instituições onde trabalham
e o seu país. (Olhem para a política, a banca, a PT que Deus tem,
etc.) Para complicar ainda mais o problema, há o terrível equívoco
de que o doutoramento se destina a uma carreira académica ou
de investigação. O doutoramento é o treino/aprendizagem para
resolver problemas novos, a ser realizado entre os 23-30 anos. Não
é um frete para acrescentar o Doutor por extenso ao nome (como
acontece muitas vezes em Portugal). Abaixo os títulos no dia a
dia! Acho ridículo uma pessoa de 40-50 anos querer doutorar-
se. Ou já tem um bom currículo, e não vale a pena; ou não tem, e
já é tarde. Por outro lado, o que se aprende com o doutoramento
na altura certa serve para qualquer outra atividade. Serve para
pensar — e pensar cientificamente (experimentar, estar aberto à
novidade, saber refutar as próprias certezas) é útil em qualquer
profissão. b
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Cinema
Obrigatório Música Teatro & Dança
ALÍPIO PADILHA
UMA HISTÓRIA SIMPLES BRANFORD MARSALIS QUARTET A FAMÍLIA
De David Lynch CCB, Lisboa, sexta, 21h A partir de “Un Air de Famille”, de Cédric Klapisch
Cinemateca Júnior, Salão Foz, Lisboa, hoje, 15h30 Café Estrela de Vilhena, Lisboa, de 11 a 27
Marsalis apresenta o novo disco, “The Secret Between
Lynch já tinha criado traumas e pesadelos de toda a the Shadow and the Soul”. Tocam Joey Calderazzo O grupo Os Pato Bravo partiu do filme de Klapisch
ordem, ganhado uma Palma de Ouro, assinado uma (piano), Eric Revis (contrabaixo), Marsalis (saxofone) e para conceber um espetáculo que exibe, com humor e
série que foi uma data na televisão americana e Justin Faulkner (bateria) — da esq. para a dir. ironia, as relações mais ou menos tumultuosas da família
entrado em estradas perdidas quando, em 1999, de- Graça, durante um dos jantares semanais no café de
cidiu fazer “Uma História Simples”, obra sem paralelo MARC COPLAND PIANO TRIO David. Com Carmen Santos, Ana Sampaio e Maia, David
com qualquer outra nesta filmografia. É a história de Recreios da Amadora, hoje, 21h30 Pereira Bastos, Isac Graça, Joana Cotrim e Rita Morais,
um idoso que, ao saber que o irmão com quem não no cenário ‘real’ do Café Restaurante Estrela de Vilhena.
fala há longos anos está doente, decide visitá-lo. Mas No âmbito do 9º Amadora Jazz, Marc Copland (piano),
sem pressas: a viagem de centenas de quilómetros é Drew Gress (contrabaixo) e Joey Baron (bateria) ante- O TIO VÂNIA
feita num trator corta-relvas. A demora permite ao cipam o disco que irão lançar no verão, “And I Love Her”. De Tchékhov
herói fazer alguns encontros. E ir pensando na vida. Teatro da Trindade, sexta; Fábrica Braço de Prata, dia 16,
Com Richard Farnsworth, Sissy Spacek e Harry Dean CHILDREN OF THE LIGHT Biblioteca de Marvila, dia 17, Lisboa
Stanton. Casa da Música, Porto, amanhã, 21h
Esta Noite Grita-se – Festim de Leituras de Textos
FINS DE SEMANA NO CINEMA Danilo Pérez (piano), John Patitucci (baixo) e Terri de Teatro propõe mensalmente a leitura de peças
MONUMENTAL Lyne Carrington (bateria) são Children of the Light, de teatro por atores. Este mês, “O Tio Vânia” é lido
Cinema Monumental, Lisboa, hoje e amanhã um grupo nascido sob a égide de Wayne Shorter. por Elsa Galvão, Érica Rodrigues, José Wallenstein,
Nicole Damião, Nuno Nunes, Pedro Gil, Paulo Pinto e
O Monumental, ao Saldanha, vai ficar sem cinema SARAH DAVACHI Sara Carinhas.
em breve mas enquanto as salas não encerram de Salão Brazil, Coimbra, terça, 22h; ZDB, Lisboa, quarta, 22h
vez, aproveita a Medeia Filmes para programar ciclos A SACALINA
temáticos. Hoje serão exibidos “A Lagosta”, de Compositora canadiana com sintetizadores analógi- A partir de Tchékhov
Yorgos Lanthimos (14h30), “Fado Maior e Menor”, de cos a debitarem drones repletos de espiritualidade. Teatro Meridional, Lisboa, até dia 17
Raoul Ruiz (17h) e “A Estação do Diabo”, de Lav Diaz
(19h30). Amanhã passam “Roma”, de Alfonso Cuarón ROMEU E JULIETA O relato de viagem que Anton Tchékhov fez à ilha-
(15h), “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de Gulbenkian, Lisboa, amanhã, 12h e 17h; sexta, 19h; dia 17, 18h -presídio de Sacalina está na origem deste trabalho do
João Salaviza e Renée Nader Messora (18h — sessão Manga Theatre/Teatro Manga, uma estrutura criada
de antestreia com a presença dos autores) e três “Romeu e Julieta”, segundo Tchaikovsky e Prokofiev em Inglaterra, em 2016, e dinamizada por artistas
curtas metragens do mesmo realizador (21h). (amanhã) e Gounod (15 e 17), nesta caso a ópera portugueses. Haverá um álbum com a banda sonora,
na versão cénica de Vincent Huguet. Viotti dirige a dois livros de BD e uma coleção de postais ilustrados. A
Orquestra Gulbenkian. direção do projeto e a encenação são de Tiago de Faria.
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Top10
Cinema Semana de 21/2 a 27/2
ICA — O presente ranking resulta dos dados transmitidos pelos promotores dos espetáculos,
Número de Número de
espectadores espectadores
47.670
acumulados
47.670
pendente Pivô, de São Paulo, reúne três artistas no Comparatistas na Faculdade 1 3 A Star Is Born L. Gaga & B. Cooper
décimo aniversário da Kunsthalle. Yuli Yamagata de Letras da Universidade de
2 1 Duro Xutos & Pontapés
mostra tecidos esticados em chassis que remetem Lisboa, começa por definir e
para a pintura moderna; Flora Rebollo criou um de- analisar o “discurso orientalis- 3 9 The Platinum Collection Queen
senho especialmente pensado para o espaço da KL ta como sistema de represen- 4 2 Thank U, Next Ariana Grande
e Thiago Barbalho mostra desenhos e esculturas em tações”. Sem surpresa, um dos
5 4 As Canções das Nossas Vidas — 30... Tony Carreira
Ficção
ANÁTEMA Semana
de distribuição: livrarias/outros (hipermercados e supermercados). Esta monitorização é feita semanalmente, após a recolha
Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através do estudo de um grupo estável de pontos de venda e de dois canais
anterior
da informação eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda. A cobertura estimada do total do mercado é de 80%
Ana Santos
Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, 1 1 Foi sem Querer Que Te Quis Raul Minh’alma
Lisboa, até 20 de maio CONFISSÕES 2 2 O Tatuador de Auschwitz Heather Morris
DE UM TRAVESTI
Vencedora do Prémio EDP Novos Artistas de 2013, Anónimo (ilustrações 3 - A Cidade nos Confins do Céu Elif Shafak
Ana Santos apresenta um conjunto de novas escul- de João Maio Pinto) 4 - Fábulas de La Fontaine Jean de La Fontaine
turas predominantemente metálicas que incorporam Orfeu Negro, €15
aspetos e rumores da realidade material mas que se 5 - O Casamento Inventado Julia Quinn
situam sempre entre o reconhecimento e a estra- Surgido pela primeira vez As categorias consideradas para a elaboração deste top foram:
Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
nheza. Curadoria de Ana Anacleto. em 1956, este texto é um
mistério. Ninguém sabe
quem é o seu autor, nem as
Não ficção
circunstâncias em que foi
Semana
TURN UP CHARLIE escrito. Nele se descrevem anterior
Netflix
as memórias picarescas de 1 1 Sem Filtro B. Carvalho/L. Aguilar
Estreia sexta um homem casado e pai de
família, fascinado pela roupa 2 - No Armário do Vaticano Frédéric Martel
(Temporada 1)
íntima feminina (de início só as 3 2 A Arte Subtil de Saber Dizer Que... Mark Manson
Comédia apresenta Idris cuecas), acompanhado pelo
4 3 O Rapaz Que Seguiu o Pai para... Jeremy Dronfield
Elba como Charlie, um DJ impulso de a vestir. A enrique-
solteirão a quem é dada cer esta edição, cuidadíssima, 5 - Códigos Tributários VA
uma última oportunidade os magníficos e provocatórios As categorias consideradas para a elaboração deste top foram:
Ciências; História e Política; Arte; Direito, Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
para vencer. desenhos de João Maio Pinto.
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
/ JOSÉ
TOLENTINO
MENDONÇA
C
É POSSÍVEL FAZER ALGUMA COISA
CADA UM PODE FAZER abrindo em nós um espaço ao que é maior do que nós. Precisamos
romper com o circuitado movimento que nos faz rodopiar à
ALGUMA COISA PARA volta de nós mesmos ou então dispersos em pura exterioridade,
QUE O JARDIM COMUM consumidos pelo puro imediatismo. A oração abre-nos a um para
NÃO SE TORNE UM DESERTO lá, introduz-nos noutro ritmo, faz-nos respirar de outra forma,
ajuda-nos a levantar os olhos que trazemos fixos sobre os sapatos e
omeçou agora a quaresma. Para os erguê-los até às estrelas.
cristãos é uma oportunidade que é preciso Por último, a esmola serve para nos recordar que os bens são
agarrar com decisão. Mas, mesmo para meios ao serviço de uma vida eticamente qualificada e não uma
os não cristãos, pode não ser indiferente finalidade da nossa existência. Justamente, o Papa recorda que
o significado deste itinerário ascético que precisamos de praticar a partilha dos bens “para sair da insensatez
antecede e prepara a Páscoa. Claro que de viver a acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de
é ainda necessário sacudir os vestígios assegurarmos um futuro que não nos pertence”.
dos lugares comuns que reduziram a O tema proposto por Francisco para a quaresma de 2019 recupera
quaresma ao simbólico interdito da carne, um passo da ‘Carta de São Paulo aos romanos’: “A criação
na ementa das sextas-feiras, e criaram encontra-se em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos
todo um anedotário em que a abstenção do bife era substituída, filhos de Deus” (Rm 8, 19). E o diagnóstico de que parte é, em si
pelas boas almas piedosas, por um repasto de marisco, pois o mesmo, um chamamento a uma ecologia integral, quando nos
importante era cumprir formalmente a regra. A quaresma, porém, lembra que “tantas vezes adotamos comportamentos destruidores
é bem mais interessante do que essa triste caricatura. E é-o, porque do próximo e das outras criaturas — mas também de nós próprios
nos recorda, contra os fatalismos paralisantes e contra a nossa —, considerando, de forma mais ou menos consciente, que
própria acomodação, que é sempre possível fazer alguma coisa. podemos usá-los como bem nos apraz”. De facto, cada um pode
Esta: colocar-se cada um em revisão crítica, metendo em causa os fazer alguma coisa para que o jardim comum não se torne um
próprios estilos de vida. O programa quaresmal é, assim, pessoal e deserto. b
prático. Trata-se de agir sobre si mesmo e contribuir desse modo
para o emergir de uma consciência comunitária mais atenta.
As ‘ferramentas’ que a tradição cristã propõe são de natureza
ascética e servem em outras religiões e até em contexto laico para O PROGRAMA QUARESMAL
alcançar o mesmo objetivo: uma necessária conversão de vida a
partir do esforço de cada um. Essas ‘ferramentas’ são: o jejum, a É PESSOAL E PRÁTICO.
oração e a esmola. Há que aprender ou reaprender a utilizá-las em
chave existencial.
TRATA-SE DE AGIR
O jejum, por exemplo, começa por ser uma privação alimentar SOBRE SI MESMO E
voluntária, mas que nos põe a refletir, e de forma não só mental,
sobre aquilo de que nos nutrimos nós e como o fazemos. Na CONTRIBUIR DESSE
mensagem quaresmal para este ano, o Papa Francisco explica que
o jejum permite-nos “passar da tentação de ‘devorar’ tudo para
MODO PARA O EMERGIR
satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor”.
O jejum pode tornar-se assim um élan para modificar e reorientar
DE UMA CONSCIÊNCIA
o nosso modo de habitar o mundo. E é uma questão de comida, COMUNITÁRIA MAIS ATENTA
claro. Porém, não se esgota aí. O jejum introduz uma ponderação
crítica sobre tudo o que nos serve de alimento: palavras, imagens,
hábitos, consumos, prazeres.
A oração, por sua vez, é um antídoto contra a autossuficiência e
contra o endeusamento das nossas possibilidades ou necessidades,
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vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”
Milagres com
vinho azedo
O vinagre é hoje nosso companheiro de mesa
mas já foi usado como curativo e mesmo, se misturado
com água, para matar a sede em climas muito quentes. Pode ser
de vinho — o verdadeiro vinagre — ou pode ser elaborado a partir
de frutos que, após serem fermentados, produzam álcool. São
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Associamos o vinagre a um produto
que tem como base o vinho, mas
atualmente a lei prevê que se possam
fazer, por exemplo, vinagres de fruta
— o mais conhecido será o de maçã (cidra)
— mas também os há de arroz
O
que seria da nossa “cabidela estrague o cozinhado. Os usos foram, dos vinhos saudáveis melhor) e es- intrometer nos processos de fabrico
de galo do campo”, dos es- ao longo da história, muito diversifi- perava que dali saísse um bom vina- do vinho. Por isso a atenção é total e
cabeches ou do nosso mo- cados, desde desinfetante até tónico gre. E quando estava feito tirava parte hoje em dia a proteção é a palavra de
lho de vinagrete de que tanto gos- revigorante mas ainda nos anos 60, do vinagre da barrica juntando nova ordem: proteção do mosto, proteção
tamos para servir com petiscos va- e quando não existiam amaciadores dose de vinho mais novo. Assim se ia do vinho feito, proteção das barricas.
riados, sem um vinagre que lhe dê o para o cabelo, era vulgar usar uma reproduzindo o modelo e obtinha-se A melhor maneira de fazer esta prote-
toque ácido e amargo? Este produto cafeteira de água bem quente à qual o que hoje se chama “vinagre natural ção é assegurando a ausência de oxi-
é, de há séculos, usado na culinária. se adicionava vinagre (sem medida de vinho”, algo que os consumidores génio (sem ele as bactérias não tra-
E com razão, uma vez que é um com- rigorosa) e no final da lavagem pas- conhecem mal mas que está a renas- balham) e a utilização de sulfuroso.
plemento de saladas, um conservan- sava-se aquela água no cabelo para cer entre nós. Desde sempre associámos vinagre
te (como no caso dos pickles) e um o amaciar. Resultados? Magníficos, Diziam os antigos que o cami- a um produto que tem como base o
ingrediente que, como nos lembra ao que nos dizem hoje as meninas nho natural de um vinho, se não for vinho, mas atualmente a lei prevê que
o chefe Vítor Sobral, “abre o aroma de outrora… acompanhado, é transformar-se em se possam fazer, por exemplo, vina-
e torna o cozinhado mais vivo”. A A produção do vinagre sempre foi vinagre. Acrescentavam também gres de fruta — o mais conhecido será
alta acidez (medida em ácido acéti- um complemento da produção de vi- que, uma vez vinagre, nunca voltaria o de maçã (cidra) — mas também os
co) sugere, no entanto, que tem de nho. Por essa razão o produtor deixa- a ser vinho. As bactérias acéticas es- há de arroz. No mercado nacional há
ser usado com parcimónia e ‘mão’ va o vinho que tinha azedado lá bem tão presentes nas adegas e não des- variados tipos de vinagre, alguns que
cuidadosa, a fim de evitar que se ao fundo da adega (quanto mais longe curam qualquer oportunidade de se fomos experimentar.
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Para ser vinagre e poder ser ven- O método não sugere nem gran- pode facilmente atingir 10° ou mesmo
dido como tal ao público, temos de des requisitos nem é propriamente mais. Não tem qualquer problema,
estar perante um produto com mí- uma ciência oculta: usam-se vinhos apenas irá usar menos quantidade
nimo de 6° de ácido acético e 1,5° de sãos, colocam-se em barricas. Es- porque é mais concentrado.
álcool por desdobrar. Isto pode ser tes cascos, novos ou usados, podem
feito industrialmente ou de forma ter tamanhos diferentes e terem sido
Erros que se deverão evitar:
natural. O problema é que, se formos previamente usados quer para vinhos
pela via ‘natural’, vamos perceber
que as bactérias acéticas são muito
quer para aguardentes vínicas. Não se
devem usar barricas que tenham ser-
VINAGRE 1. Guarda de restos em embalagens
de plástico não alimentar. Bidões
lentas no trabalho e, em média e por
ano, só desdobram um grau de ál-
vido a aguardente bagaceira porque
o vinagre irá sempre manter aquele
CASEIRO? de plástico e jerricãs sem aquela
característica irão originar um vinagre
cool em ácido acético. Vamos então, aroma forte do bagaço. Adiciona-se com cheiros muito defeituosos,
por exemplo, falar de um vinho-base então ao vinho a “mãe”, que mais Para se fazer vinagre em casa não nomeadamente o cheiro a plástico e
com 13,5° de álcool que vai demorar não é que um concentrado de bacté- basta deixar um garrafão com restos cola de contacto, resultado da ação
12 anos a desdobrar os 12° que se que- rias, e deixa-se a barrica com espaço de vinhos e esperar. O processo não das bactérias acéticas sobre o plástico.
rem transformados para que no final para que exista oxigénio, algo indis- é complicado mas será conveniente Se já tem restos de vinhos azedos
fique com 1,5° de álcool por desdo- pensável para a sobrevivência e tra- cumprir alguns passos para que o em embalagens deste tipo só há um
brar. Se estivermos a falar de vinagre balho das bactérias acéticas. Depois resultado seja bom. Ficamos aqui com conselho: deitar tudo fora e começar
de vinhos generosos, tudo se compli- é esperar mas, durante esses anos algumas regras a cumprir e erros a de novo;
ca, em virtude do alto teor de álcool de espera, é conveniente ir fazendo evitar.
que esses vinhos têm. análises para se aquilatar do avan- 2. Uso de vinhos (nomeadamente
ço do processo, ou seja, ir perceben- brancos e tintos) muito novos. A
Como fazer?
VINAGRE NATURAL, do se a transformação do álcool em presença de sulfuroso no vinho irá
UM TRABALHO DE PACIÊNCIA acético está a progredir. Se não es- 1. Vá guardando restos de vinhos em inibir o trabalho das bactérias acéticas.
A palavra “natural” associada a um tiver e se as análises mostrarem que embalagens de plástico alimentar (têm Como com o tempo o sulfuroso se
vinagre de vinho significa que o pro- nada aconteceu e o teor acético está um símbolo gravado), tipo garrafões de combina com o vinho é preferível usar
cesso de acetificação se operou natu- na mesma, é provável que sejam ne- água ou outros com símbolo idêntico; vinhos já com algum tempo de garrafa.
ralmente, sem adição de ácido acé- cessários ajustes na “mãe” (poderá Um ano de vida pode ser uma indicação
tico. A palavra “paciência” é aqui precisar de levar mais) ou na reno- 2. Pode juntar todo o tipo de vinhos média mas não é regra absoluta. Se
usada porque este vinagre demora vação do oxigénio da barrica. Estas mas, se incluir muitos vinhos generosos, tiver vinhos novos que quer usar
muito tempo a ser produzido. A tra- análises não se fazem em casa mas a acetificação natural levará muito mais para vinagre, deixe-os num garrafão
balhar nesta modalidade, e com vi- há laboratórios que as fazem (o pró- tempo porque mais álcool significa apenas meio cheio uma vez que com
nagres no mercado, destacam-se os prio Rui Moura Alves dirige um des- maior lentidão no processo; a oxidação o sulfuroso irá, ao fim de
de Moura Alves, Quinta das Bágeiras tes laboratórios na Bairrada). Mas poucos meses, combinar-se com o
e Quinta da Pedreira. São todos feitos não há que ter pressa uma vez que 3. Para o trabalho das bactérias é vinho.
na região bairradina e orientados por só após uns quatro anos de estágio é indispensável a presença de oxigénio.
Rui Moura Alves que há já várias dé- que é caso para se fazerem análises. Assim, numa embalagem de 10 litros 3. Vinhos com defeitos — rolha, mofo,
cadas iniciou este processo, manten- Falamos aqui em barrica mas todo deverá ser deixado por preencher um bafio — nunca darão um bom vinagre.
do ativa uma vinagreira onde muitos o processo se pode desenrolar num espaço equivalente a cerca de 2 litros. Restos deste tipo de vinhos (ou a
milhares de litros se vão, lenta (mas garrafão de vidro, preferencialmen- O melhor vasilhame é sempre a barrica garrafa toda) deverão ser inutilizados;
mesmo…) muito lentamente, trans- te de 10 litros. O mais indicado é que (de 50 l, por exemplo), que pode ser
formando em vinagre. Estes vinagres se vão juntando restos de vinho em nova ou usada. Se for usada veja bem 4. Vinhos muito bons (e caros) não
bairradinos também se apresentam garrafões como os de água mineral se não tem cheiros de mofo. Pode originarão necessariamente um vinagre
em pequenas embalagens de spray, e, quando tivermos a quantidade ne- ser barrica que tenha sido usada para extraordinário. Por isso não há que
muito úteis para temperar saladas, cessária, juntamos tudo de uma vez aguardente vínica, não de bagaceira; hesitar em juntar vinhos de todo o tipo;
por exemplo. no tal recipiente de 10 litros que va-
Idealmente uma vinagreira é um mos, como se disse atrás, encher até 4. A “mãe” é um concentrado de 5. O vinagre não tem de ser tinto. Pode
local arejado, protegido da incidência ao equivalente a oito litros, deixan- bactérias acéticas que se obtém na ser branco, pode ser feito, por exemplo,
direta do sol mas sujeito às variações do o espaço para o oxigénio. Este é o fase final da produção de vinagre. Meio só de espumantes, pode ser de vinhos
de temperatura e humidade ao lon- método mais aconselhável porque se litro de “mãe” chega para uma barrica generosos;
go do ano. Por baixo de um telheiro iniciamos o processo com pouco vi- de 50 litros. Na falta do concentrado,
e com chão em terra batida e já não nho, sempre que juntarmos mais vi- o processo é possível mas bem mais 6. Um vinagre natural de vinho requer
precisamos de mais. nho estamos a atrasar a acetificação. lento; tempo e paciência. É escusado pensar
Quando, pela análise, se considerar que se consegue rapidamente o que
que já desdobrou em acético tudo o 5. Quando o vinagre estiver pronto demora anos a fazer;
que se devia, o vinagre deve apre- tem de se adicionar sulfuroso (60
Nunca esquecer sentar um bom aroma (muito dife- miligramas por cada litro). É desta 7. Não se pode ‘abandonar’ o vinagre.
que o vinagre se rente do chamado “vinho azedo”) e
então, antes de ser engarrafado, tem
forma que se interrompe o processo
de acetificação. Sem sulfuroso as
Periodicamente têm se ser feitas
análises para se ver a evolução do
consome em doses de se adicionar o sulfuroso — 60 mi- bactérias continuarão a atuar mesmo desdobramento do álcool em acético e
ligramas por litro — para interromper
muito pequenas. Não o processo de acetificação e matar as
num frasco e acabarão por desdobrar
o resto do álcool. Como o produto final
determinar o momento em que se para
o processo. / J.P.M.
faz por isso sentido bactérias que ainda estejam ativas. deve sempre ficar com 1,5° de álcool
Antes da adição de sulfuroso deve re- por desdobrar, é indispensável aquela
falar no preço tirar-se algum vinagre que pode as- adição;
exagerado que sim servir de “mãe” para uma nova
produção. Sem sulfuroso, mesmo en- 6. Por lei o vinagre tem de ter 6° de
possa apresentar garrafado, o processo continuaria e ácido acético mas, na forma natural
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transformar-se-ia em água. Este é o chamam os italianos batteria. Quan-
método mais lento, mais tradicional do pronto este aceto apresenta uma
e que produz melhores resultados e, viscosidade que lembra um xarope e
segundo Moura Alves, “são os últimos usa-se às gotas. Gastronomicamente
graus de álcool a serem desdobrados é um sucesso se num naco de quei-
que conferem os aromas mais subtis jo parmesão se colocarem duas go-
e complexos ao vinagre”. tas deste aceto balsamico tradiziona-
Podemos ainda referir outros dois le. Uma ligação e tanto! O verdadeiro
métodos: um deles consiste em bai- tradizionale (DOP), não representará
xar o teor alcoólico do vinho-base atualmente mais de 0,01% de tudo o
adicionando água e fazendo com que que se comercializa com o nome de
o tempo de acetificação se diminua Aceto Balsamico de Modena.
substancialmente. É um dos métodos Em França resultaram muito co- DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA POR JOSÉ GAMEIRO
usados quando se lida com vinhos nhecidos os vinagres de maçã (cidra)
generosos; o outro é o método mais e os de vinho branco aromatizado
vulgar (industrial) e que corresponde
a praticamente todos os vinagres dis-
poníveis no mercado. Este é apenas
com estragão. Ambos são largamente
utilizados na culinária gaulesa.
Muito famosos no mundo são os
‘Fade out’
um exemplo: junta-se água (90 litros) vinagres de Jerez, disponíveis em Não pense que me passou pela cabeça
ao vinho (10 litros) e adiciona-se áci- muitos mercados. Envelhecidos pelo
do acético na quantidade necessária sistema de solera merecem especial morrer, continuo a gostar muito de viver
para que no final fique com 6° de áci- referência os feitos a partir de vinho
do acético. Poucos dias depois temos
vinagre. Alguns produtores optam
por, seguidamente, dar a este vina-
gre um estágio em barrica (no caso do
vinagre Oliveira Ramos esse estágio
Pedro Ximenez, a variedade mais
doce que existe em Jerez, chegando a
atingir os 800 gramas de açúcar por
litro. Estes vinagres (atenção àque-
le que o Corte Inglés tem, de marca
N ão é realizador de filmes, nem sonoplasta, mas começou a conversa
com uma expressão do cinema e do som: “Estou em fade out...”
Só pode ser da minha idade, tenho a sensação de que cada vez
mais pessoas aparecem a falar-me de qualquer coisa que não posso
interpretar como depressões, mas que à primeira vista parecem ser quadros
prolonga-se por vários anos), preten- própria) são muito aromáticos e lem- aparentados.
dendo-se que, desta forma, a madeira bram um velho generoso avinagra- Por vezes, parecem estar desencantadas com a vida, com as pessoas em
possa conferir alguma complexidade. do, tendo por isso pontos de contacto geral, não com as próximas, e que começam um percurso de interioridade,
Este é um bom produto que nasceu de com um Porto velho. que não tem a ver com espiritualidade. É um fechar sobre o círculo mais
um Colheita Tardia da região do Tejo Mais recentes no mercado nacio- próximo, um prazer nos pequenos momentos sozinho ou acompanhado, mas
que azedou e que, apesar de indus- nal são os vinagres de arroz. São um sem grandes desígnios futuros.
trial, ficou com boas características. produto diferente dos vinagres de vi- Este homem, próximo dos 70, tinha e ainda tem uma vida profissional ativa,
Nos vinagres industriais nunca deixa nho, feitos a partir de saké, finos de embora reduzida, mas explicou-me em detalhe porque lhe tinha ocorrido a
de se sentir o acético de forma agres- aroma e não muito agressivos. São expressão fade out.
siva e muito pouco ‘natural’. usados na elaboração do arroz para o “Ao longo da minha vida fiz o que quase toda a gente faz. Tive sorte, nunca
sushi e noutros preparados da culiná- senti que tivesse de fazer grande esforço para conseguir o que quis, quer
BALSÂMICOS ria japonesa. na minha vida pessoal quer na profissional. Claro que existiram fases de
E DE OUTRAS ORIGENS Surgiram há poucos meses entre sofrimento, sobretudo com emoções fortes que vivi. Mais com os filhos, sabe,
O vinagre balsâmico de Modena, ori- nós os primeiros vinagres de Vinho eu acho que é a relação mais desigual que temos na vida. Fazemos tudo por
ginário da região italiana de Emilia- do Porto e de Vinho da Madeira. A eles, às vezes somos muito mal tratados, mas esquecemos e voltamos a fazer
-Romagna, é um produto luxuoso, atual legislação obriga a que o vinho- tudo. Enfim, agora está tudo sereno, não é isso que me traz cá.
uma verdadeira iguaria. Feito a partir -base tenha sido previamente certi- Há uns tempos, talvez um ano, comecei a dar por mim a recusar, quase
de mosto de uva que foi inicialmente ficado e, no caso do Instituto dos Vi- sempre, participar em encontros profissionais, como se já não tivesse nada
fervido para se concentrar, é depois nhos do Douro e Porto (IVDP), todo o de novo para dizer, um certo cansaço de me ouvir a mim próprio falar dos
longamente estagiado. As variedades processo é acompanhado, passando assuntos que sempre falei e em que era, penso que ainda sou, reconhecido
de uva autorizadas são a Trebbiano e inclusivamente por prova final an- como uma das pessoas mais conhecedoras. Mas não tenho a certeza se
Lambrusco. O melhor é vendido em tes de ser embalado. Bento Amaral, o comecei a fazer por esta razão, ou se quis começar a desaparecer... Não
embalagens de 100 ml, pode atingir que preside à Câmara de Provadores pense que me passou pela cabeça morrer, ou que o desejo, continuo a gostar
preços que rondam os €200 por gar- do IVDP, disse ao Expresso que há já muito de viver, mas é uma espécie de cansaço social.
rafa, sobretudo os que têm indicação várias empresas interessadas neste Não tome isto como arrogância, mas quando vejo televisão, oiço as notícias,
de idade. Tendo isto em mente perce- negócio mas, por enquanto, apenas sigo alguns debates sobre temas que me interessavam, sinto um enfado
be-se facilmente que o que se encon- uma delas produziu, tendo entre- sobre o que se está a passar à nossa volta. Se calhar é da idade e aquela
tra no mercado a meia dúzia de euros gue a comercialização à marca Gal- sensação que temos que está tudo cada vez pior. Irrita-me sentir isto, será
não é mais do de um vinagre indus- lo. Pode dizer-se que haverá ainda que é isto a velhice? Pensarmos que as coisas vão piorando e que vamos
trial carregado de caramelo para fi- ajustes legislativos e harmonizações deixar o mundo mais difícil para os nossos filhos?
car escuro. É usável mas não se deve é com a legislação europeia para que se Mas continuo a ter muito prazer numa boa boa conversa com amigos, à
pensar que ‘aquilo’ é um bom repre- venha a ter no mercado produtos de volta de uma mesa, num jantar com a família, num passeio com a minha
sentante do autêntico balsâmico de elevada qualidade. Após a prova dos mulher. Aliás, foi ela, preocupada, que me pediu para vir falar consigo. Vê-
Modena. O verdadeiro demora cerca dois tipos (Porto e Madeira) a conclu- me mais metido comigo, pergunta-me se estou a pensar na morte.
de 12 anos a ser feito, envelhece em são é óbvia: há ainda muito caminho Claro que penso, todos pensamos, não é, mas não me ocupa muito tempo.
barricas de várias madeiras, cada vez a percorrer até se chegar a um vina- Acha que podemos conversar duas ou três vezes e depois venho cá com a
mais pequenas, acabando em peque- gre digno de nota. Tanto num caso minha mulher, para a deixar mais descansada?”
nas unidades de 10 litros. Tradicio- como noutro a referência — olfati- “Claro que podemos, mas, diga-me, que idade tem a sua mulher?”
nalmente o número de barricas va- va e gustativa — ao vinho-base que “Tem 34...”
ria entre 5 e 10, da maior para a mais esteve na origem do vinagre é quase Não ia ser fácil. b
pequena. Ao conjunto destas barricas impercetível. b josemanuelgameiro@sapo.pt
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R ECE I TA
POR JOSÉ AVILLEZ
GRUPO JOSÉ AVILLEZ
Ingredientes:
C
om cerca de duas ho- 400 g de peito de frango em bifes; envolva a cebola, o alho e a
ras de antecedência, 400 g de alface-romana; 4 un. de coração salsa picados, com o azeite
numa taça larga, dei- de alface; 100 g de tomate-chucha baby; virgem extra, o vinagre, o sal
xe os peitos de frango a ma- 40 g de rúcula; 30 g de miolo de pinhão torrado; marinho e a pimenta-preta
rinar no sumo de limão, com 30 g de sultanas moída no momento. Reserve
o tomilho, o azeite, o sal e PARA A MARINADA DO FRANGO: no frio.
a pimenta-preta moída no 1 ramo de tomilho; sumo de ½ limão; Prepare os legumes, co-
momento. azeite virgem q. b.; sal marinho q. b.; pimenta-preta meçando por separar as fo-
Terminado o tempo de moída no momento q. b. lhas de alfaces, ripando-as
marinada, grelhe os peitos de PARA O MOLHO VILÃO: depois para uma saladeira de
frango num grelhador, ten- 30 g de cebola picada; 10 g de salsa picada; servir. Junte a rúcula, o to-
do atenção para que a carne 1 colher de café de alho picado; 100 ml de azeite mate-chucha baby em meta-
não seque. Deixe arrefecer e virgem extra; 20 ml de vinagre de vinho tinto; sal des, as sultanas, o pinhão, e o
reserve. marinho q. b.; pimenta-preta moída no momento q. b. frango cortado em tiras.
De seguida, prepare o mo- Regue a salada de frango
lho vilão. Numa taça larga, com o molho vilão, envolva, e
com a ajuda de uma colher, sirva de imediato. b
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VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS
GETTY IMAGES
Os bons, os espertos e os vilões
Conversa à volta dos preços
S
eguindo aquela sugestão do filme “Go- caros mas os preços destes ícones ficaram uns continuarão a vender caro e outros não.
odbye Lenine” em que alguém esteve estratosféricos, levando atrás outras mar- Depois há que falar de quantidades. É mui-
muito tempo desligado do mundo e cas que ganharam direito a três dígitos no to diferente vender 10, 15 ou 20 mil garrafas
depois volta à vida, vamos pensar num per- preço, como o Legado, vinhos de vinhas do muito caras ou, no lado oposto, fazer uma
sonagem que esteve 15 anos longe de Por- Crasto, Vale Meão, Quinta da Boavista, só ou duas barricas de vinho, engarrafar 700
tugal e sem notícias aqui da terra. Aprecia- para citar alguns. O caso dos vinhos bran- garrafas e depois pedir €80 por cada uma.
dor de vinhos enquanto cá estava, regressa cos ainda deixa o nosso homem mais espan- Com a quantidade de produtores que temos
após muito tempo fora e, pelo que vê, fica tado: a quantidade de brancos acima dos em Portugal a comercializarem um milhão
boquiaberto: os vinhos estão muito mais €35/40 é muito significativa, coisa que não (ou mais) de garrafas, percebe-se que, para
caros e muito mais baratos do que no seu acontecia antes. Ouviu falar agora de outros não perder a onda, queiram vender algumas
tempo. Uma coisa de extremos. Agora en- produtores, sem palmarés para isso, que se a €80. Não se vendem? Ora bem, o produtor
contra vinhos a €1,50 ou €2, alguns até de querem chegar à frente com vinhos a €400 e os amigos tratam disso! Vendeu tudo aos
regiões que lhe eram queridas, como o Dou- e produtores da região de Lisboa que, ape- chineses? Muito bem mas não foi por via
ro e o Alentejo, isto para não falar de Setú- sar de desconhecidos, apontam preços para dessa transação que adquiriu o prestígio. Ao
bal e do Tejo, onde já era possível, no seu próximo dos €100. Ora bem, algo aqui tem consumidor resta uma redobrada atenção
tempo, comprar barato. Depois encontra de ser explicado ao nosso visitante. Pode para que não lhe sirvam gato por lebre. Um
designativos de qualidade a torto e a direi- ser uma infelicidade para os consumido- vinho não é bom por ser muito caro mas se
to, aqui são Premium, ali são Reserva, mais res mas a verdade é que o prestígio do país for muito caro tem de ser muito, mas mesmo
além Primeira Escolha e Private Collection, só se consegue com vinhos caros e não com muito bom. À força de querer ser moderno
nomes que tinha na ideia estarem associa- vinhos a pataco. Ficam inatingíveis mas o produtor português está a embarcar num
dos a vinhos mais caros e de outro gabarito. isso também acontece com outros produ- navio que pode não ter lastro para navegar
Mais à frente na procura aparecem vinhos tos. Os grandes vinhos têm de ser caros mas em águas tormentosas. O negócio dos vinhos
bem caros. Quando daqui abalou, já sabia têm de fazer um percurso até lá chegarem, de luxo esconde muito mais tempestades
que o Barca Velha ou o Pêra-Manca eram não pode ser de um dia para o outro. Assim, que calmarias. E não é para todos. b
OS PREÇOS FORAM FORNECIDOS PELOS PRODUTORES
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SO B R E M ESA
POR FORTUNATO DA CÂMARA
O ‘estranho’
te velha e coentros” (€18), com o caldo uma rede de seis espaços
base intenso, próximo de uma bisque, (Prazeres, Anjos, Alcântara,
a sobrepor-se ao bivalve, cujo miolo fi- Xabregas, Ribeira Velha e
caso de Angélica
cou elástico por excesso de cozedura, e São Bento) cujo propósito
com o bago carolino a abrir demasia- filantrópico (não caritativo)
era “fornecer alimentação
do. O prato da refeição foi a “Paletilha
de qualidade e em abun-
de borrego de leite — Arroz de forno e
dância às classes operárias
Não se fica In Diferente a uma jovem brasileira grelos salteados” (€28), vistosa e ten-
ra, a soltar-se da ossatura para satisfa-
e mais carenciadas, por
preços acessíveis”, segun-
que faz cozinha portuguesa na Foz do Porto zer dois comensais, com um belo arroz do uma tese do investiga-
seco dourado, feito com nicos de sal- dor Ricardo Cordeiro.
picão, e a ter no vegetal um feliz gol- A presidir à sociedade es-
O
título remete para um filme do Paraná, para fazer por cá a sua car- pe de vinagre que fazia uma adequada tava Luísa Maria Holstein,
de Manoel de Oliveira em reira em hotéis e restaurantes de pres- oposição gustativa. 3ª duquesa de Cadaval,
que uma bela rapariga mor- tígio, no Algarve e em Lisboa até che- O serviço é jovem, atento e amá- e uma mulher à frente do
re abruptamente após o casamento. A gar ao Porto. Com o couvert chegou vel, com formação e informado. Nos tempo. Fez carreira como
pedido da família, um fotógrafo cap- um pouco de azeite Casa da Santinha, vinhos há variedade e diferenciação escultora, tardiamente
reconhecida pelo masculi-
ta a derradeira imagem da noiva fatal, da Sertã, aplaudindo-se a originalida- do banal a preços abordáveis, e uma
no meio artístico da época.
cuja beleza o assalta não conseguindo de de ser da Região Centro, quando o boa oferta a copo. A doçaria trouxe
Dedicou a vida e parte da
ficar-lhe indiferente… Noutro regis- mais usual é a escolha recair em Trás- uma agradável “Pavlova In+D — ma- sua grande fortuna a man-
to, In Diferente é também o nome de -os-Montes ou no Alentejo. Uma sele- racujá, coco e lima” (€7), onde a cú- ter as cozinhas, onde havia
um novo restaurante aberto no iní- ção plenamente justificada graças ao pula do merengue com raspas cítricas sempre sopa de feijão,
cio do outono, na zona da Foz, junto elegante sabor frutado e fresco, da ex- no topo, escondia um creme de mara- pratos com carne de vaca
à cativante Praça de Liège. No nº 23 tração feita a partir de azeitona galega. cujá, e ao lado um gelado de coco. Im- — cortes de 1ª e de 2ª qua-
da rua arbórea e tranquila Dr. Sousa Nas entradas, o “Creme de cherne pecável o “Romeu & Julieta — crumble lidade (mãos e dobrada)
Rosa surgiu em outubro uma sala lu- — Brandada de camarão e coentros” de frutos vermelhos, espuma de quei- — e de carneiro, com grão
minosa e requintada, em tons claros. (€9,50) era uma excelente ideia, mas jo e goiabada” (€6,50) com a delica- ou batata, bacalhau e atum
Bom espaço entre mesas, atoalhadas, a emulsão do caldo do pescado num deza do queijo em espuma junto a um curados, e fruta à sobre-
bem equipadas e servidas por cadeiras creme de abóbora tornou o conjunto impactante gelado de pistáchio com mesa. A refeição completa
confortáveis — uma quase ‘estranhe- doce, apagando o protagonista, que amêndoas amargas e o desfile frutado custava 90 réis quando o
salário mínimo eram 340
za’ a comparar com os despojados que justificava vir também em lascas, para da compota de goiaba sobre a crocân-
réis/dia). Era amada pelo
andam por aí em voga. ser melhor percecionado. Ao centro cia do crumble.
povo, que a tratava apenas
Um menu de base portuguesa que do creme, uma porção de puré firme Aludindo ao título, a chefe Angélica por “duquesa”, dando o
apresenta sugestões inusitadas para de batata e camarão (em quenelle) sur- teve algum destaque na abertura do seu exemplo às elites ‘janotas’
estas paragens. Na cozinha oficia a jo- giu pouco expressiva no sabor. Muito In Diferente, mas após o ‘casamento’ da época, evitando que
vem chefe Angélica Salvador que há bom o “Tartar de novilho — Beterraba comunicacional o interesse foodie pa- operários e famílias caís-
treze anos partiu do estado brasileiro em picles e wasabi” (€11), com a car- rece ter ‘morrido’ abruptamente. Com sem na indigência.
ne de grande qualidade picada à faca uma cozinha plena de sabor, ainda que
em microcubos, temperada com equi- a pedir ajuste de contrastes em alguns
líbrio e um toque acídulo, com ‘pon- pratos, não deixa de ser redentor ver
IN DIFERENTE tinhos’ de gema de ovo curada e uma uma jovem brasileira a trabalhar bem
Rua Dr. Sousa Rosa, 23 – Porto suave maionese de wasabi que ia bus- os nossos sabores. Se Angélica fosse
Telefone: 220 924 377 ou 911 033 315 car contraste às finas e rubras rodelas rapaz seria mais notada(o)? Parece es-
Encerra domingo ao jantar e à segunda-feira do vegetal na sua delicadeza agridoce. tranho, mas o facto é que a história de
Boa matéria “Foie Gras — Rabanada Oliveira é sobre fantasmas… b
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Castas e Pratos
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Tábua D’aço
Piscinas Municipais, Tabuaço.
onde dormir
Peso da Régua. Tel. 254 323 290 Tel. 912 507 829 Quinta dos Murças
O andar de cima apresenta-se Da cozinha surgem propostas Covelinhas, Peso da Régua.
como uma sala de jantar moderna de autor, contemporâneas, que Tel. 934 550 006
e confortável, onde se servem se cruzam com receitas mais
propostas de autor, que começam regionais, sempre feitas por mão
logo ali na beira do Douro, mas acertada, e às vezes com influên-
que atravessam o mundo. Preço cias de outras paragens. Organiza
médio: €30. jornadas gastronómicas dedicadas
à cozinha internacional. Preço
Cozinha da Clara médio: €20.
Quinta de la Rosa, 215, Pinhão. Na última década, a Quinta das
Tel. 254 732 254 DOC Murças reestruturou a vinha,
Este restaurante é uma sentida Cais da Folgosa, EN 222, Folgosa construiu uma nova adega e
homenagem à avó da proprietária, do Douro. Tel. 254 858 123 recuperou a casa da quinta. Cin-
Wine House Garrafeira Gato Preto a quem a quinta foi oferecida por co charmosos quartos (desde
Avenida João Franco, 308, Peso da Régua Tel. 913 663 235 ocasião do batismo. Prove o lom- €120; casa toda desde €600)
Numa cidade que há séculos vive em torno do vinho da região, belo de porco com milhos trans- recebem até dez pessoas. O
não podia faltar uma casa onde se mostre o melhor que aqui se montanos e ervilhas de quebrar ou mobiliário é elegante e as cores
produz. Situada ao lado do Museu do Douro, serve de montra aos o frango corado com cogumelos leves. Há fotos antigas mostran-
seus produtos, através de parcerias com os produtores locais. Um salteados. Preço médio: €30. do “preexistências” e o hóspede
espaço onde tanto pode beber um bom copo de vinho como pe- agradece o conforto da sala de
tiscar e ainda levar para casa o que mais gostou. Agora também Vale de Abraão estar ou da varanda “debruça-
com um restaurante que leva à mesa os produtores regionais, e Six Senses Douro Valley, da” sobre o rio. Nos intervalos
que serve essencialmente grelhados, como a vitela Maronesa Quinta do Vale de Abraão, Além das opções à carta, Rui da contemplação, passeia-se
DOP, feitos por mão acertada. Aposta também no bacalhau e no Lamego. Tel. 254 660 600 Paula propõe dois menus de nos jardins e toma-se banho na
polvo, ingredientes cheios de tradição. Preço médio: €20. O restaurante divide-se em três, degustação, Douro e Signature, piscina, mas é a participação
com o denominador comum dos ambos com harmonização de nas rotinas da quinta que torna
ingredientes biológicos e receitas vinho. Prove o leitão crocante com a experiência genuína – desde
simples que enaltecem os sabo- batata galette e legumes baby a utilização da cozinha à cultura
Douro Conceitus Winery
Restaurant
res. O chefe consultor, Ljubomir
Stanisic, assim o exigiu. O menu
ou o polvo grelhado com puré de
batata fumada e couve. Preço
do vinho.
Tasca da Quinta Quinta Nova de Nossa muda com frequência, ao contrá- médio: €50.
Rua Marquês de Pombal, 42, Senhora do Carmo, Ferrão. rio dos vinhos. Preço médio: €30. a não perder
Peso da Régua. Tel. 918 754 102 Tel. 254 730 430 Rabelo
As paredes em pedra com objetos The Wine House Vintage House Hotel, Pinhão. Peso da Régua:
típicos, xailes e rendas servem de Restaurante Tel. 254 730 230 Cidade do Vinho 2019
toalha de mesa. A ementa revela Quinta da Pacheca, Cambres. Depois das Surpresas do chefe,
novas abordagens aos petiscos: Tel. 254 331 229 inesperado é também o peixe
escabeche de codorniz, feijoada O serviço é clássico, mas de uma cozido à portuguesa, onde a
de cogumelos ou polvo, rojões e competência extrema. Aposta proteína principal é o peixe-galo.
costeletinhas em vinha-d’alhos. em ingredientes tradicionais que Desconstrói-se um prato da cozi-
Preço médio: €20. o chefe Carlos Pires transforma nha tradicional, mas preservando
A nova localização da sala com inspiração. Acompanhe com o sabor da carne numa terrina e no
SUS Douro de refeições , no andar térreo vinhos da Quinta. Preço médio: caldo. Preço médio: €30. Há séculos que esta cidade vive
Rua José Vasques Osório, da casa, abre as portas ao almoço €30. em torno do vinho, mais precisa-
loja C1, Peso da Régua. para a esplanada e para a incrível Cêpa Torta mente desde que o marquês de
Tel. 254 336 052 vista a partir do restaurante. Vindouro Rua Dr. José Bulas Cruz, Alijó. Pombal, instituindo a primeira
O espumante e o leitão assumem Agora é o chefe André Carvalho Travessa da Rua dos Fornos, 19, Tel. 259 950 177 região vitivinícola demarcada
aqui protagonismo, se bem que quem lidera a cozinha e há uma Lamego. Tel. 254 401 698 O retrato deste espaço em Alijó do mundo, em 1756, a tornou
com um pormenor. O porco é nova filosofia de serviço, fixa, Enaltece nas paredes a região completa-se com a simpatia de ponto de passagem para quem
de raça bísara, servido ao fim de dividida em dois menus, um com que se atravessa até se chegar ao um serviço competente e um vem e vai ao Douro. Era daqui
semana, bem como a bebida com três momentos, outro com cinco, restaurante, bem como na cozi- ambiente elegante e sóbrio. Es- que partiam os barcos rabelos
bolhinhas, que em 200 referências criados de acordo com a nha, preparando os mais regionais colha o cabrito assado, os milhos à que se aventuravam pelo rio
da carta ocupa metade. Há ainda sazonalidade e flexíveis ao ponto produtos com apresentações transmontana, o polvo à lagareiro para transportar os barris de
bacalhau com broa de Avintes, de seguirem o ciclo das culturas atrevidas e modernas. Também a ou o bacalhau com broa e fará vinho até às caves de Vila Nova
batata, presunto crocante e gre- e a generosidade das estações. carta de vinhos enaltece a região. sempre uma viagem aos sabores de Gaia, onde este envelhecia.
los. Preço médio: €30. Preço médio: €30. Preço médio: €30. do Douro. Preço médio: €30. Uma ligação umbilical espelha-
da ainda hoje pelas margens do
rio que banham a cidade, eleita
BOA CAMA BOA MESA NA SIC NOTÍCIAS: para 2019 Cidade do Vinho.
ARTE E VINHOS NAS TERRAS DA VIDIGUEIRA Está prevista uma feira de vinhos
COM ESTREIA ESTE SÁBADO NA SIC NOTÍCIAS, E REPETIÇÕES AO LONGO DA SEMANA de dimensão nacional e um
TAMBÉM NA SIC MULHER E SIC INTERNACIONAL, O PROGRAMA CONVIDA A UMA congresso que vai cruzar o tema
VIAGEM PARA CONHECER A VIDIGUEIRA, QUE ASSUMIU A CONDIÇÃO DE CAPITAL DA vinho com os diversos escritores
ARTE CONTEMPORÂNEA, GRAÇAS AO PROJETO DA QUINTA DO QUETZAL. NA HERDADE da região, muitos dos quais se
DO SOBROSO RECUPERE ENERGIAS, DEPOIS DE UMA TARDE DE VINHOS E PETISCOS. inspiraram no Douro, nas suas
paisagens em socalcos e no rio.
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D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES
A
i naugu ração da XXI I
Triennale di Milano, na
passada semana, contou
Formafantasma
com a presença do Presidente da
Proposta de um dos mais
experimentais e eco-oriented República italiano, Sergio Matta-
estúdios de design da rella, e com alguns milhares de
actualidade resulta de uma convidados de todo o mundo. Ver
análise do ciclo de desperdícios o extraordinário e enorme edi-
HY-FY BRICKS
de materiais electrónicos e da fício racionalista milanês inun-
David Benjamin
sua obsolescência programada, dado por um público variado — Estrutura construída
criando equipamento de políticos, criadores, media, deci- com materiais à base de milho
escritório através desse ‘lixo’ sores, investigadores, estudantes e de cogumelos, desenhada
— que reconhece o papel do de- pretende acima de tudo provar para ser reciclada como
sign e da arquitectura no mundo e mostrar ao mundo o potencial composto orgânico depois
foi um momento impressionante. do design e da arquitectura en- de terminado o seu uso
A Triennale di Milano tem estado quanto ferramentas de salvação
a mudar e esta edição, com o co- de um planeta e de uma espé-
missariado de Paola Antonelli, e o cie em risco de extinção. Nas suas
apoio do seu novo presidente, Ste- palavras “‘Broken Nature’ facilita
fano Boeri, reforçou isso mesmo. uma percepção sobre o mundo,
Paola Antonelli é uma curadora que ultrapassa o tempo de várias
com uma carreira de grande rele- gerações, oferecendo aos visitan-
CURRENT POWER
vo e que desde há bastantes anos tes uma ideia clara sobre que pas-
Sigil Colective
ocupa o cargo de curadora-sénior sos devem ser dados no sentido
Current Power, na Síria, é um
projecto que por um lado do departamento de arquitectura e de desenvolvermos uma atitude
design do MoMA, em Nova Iorque. restauradora”. NATIONS OF PLANTS
investiga a eletricidade como Stefano Mancuso
uma ferramenta na construção Com um interesse especial sobre Inaugurada a exposição temá-
Uma exposição comissariada pelo
de um país e da cidadania, aqui os novos caminhos do design e so- tica e as instalações de 22 países
especialista em neurobiologia das
através de um moinho de vento bre os cruzamentos desta discipli- participantes, muitas respostas plantas, baseada na ideia de que
que dá energia para um hospital na com a tecnologia, ciência e arte, e desafios são mostrados, alguns uma das formas de evitarmos um
escolheu um tema de substantiva ainda especulativos e longínquos, futuro catastrófico para a
importância para o actual perío- outros mais exequíveis e passíveis humanidade é termos uma
do em que vivemos, ao qual deu o de acontecerem rapidamente. relação radicalmente nova
nome de “Broken Nature”. Acima de tudo o que nos fica em relação às plantas
Esta edição centra-se na ex- é a ideia da significativa trans-
ploração de várias das conexões versalidade do design, da arqui-
existentes entre seres humanos tectura, da arte, da sua interação
e o ambiente natural e que foram com a ciência e da possibilidade
imensamente comprometidas ao que trazem estas disciplinas, as-
longo de séculos, especialmente sim combinadas, de responder
KREBS CYCLE
nas últimas décadas, por uma sé- a questões que nos interessam a
OF CREATIVITY
Neri Oxman rie de decisões erradas e de enor- todos, relacionadas com a nossa PAOLA ANTONELLI
Neri Oxman mostra neste ciclo me consequência negativa para sobrevivência. A curadora, no MoMA, em Nova
que o design, a arte, a todos, deixando-nos com uma A não perder. b Iorque, numa das apresentações
engenharia e a ciência são espécie de “natureza quebrada”. da XXII Triennale, que terá um
campos de estudo em Com o subtítulo “Design Takes on Guta Moura Guedes escreve programa que se desenvolve
constante troca mútua Human Survival”, Paola Antonelli de acordo com a antiga ortografia até 22 de Setembro
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M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO
Brilho de estrela
Descobrindo cada vez mais a luz do dia,
o brilho chega mais subtil e invade
sem receio peças também de dia a dia
O
brilho associa-se à elegância subtil e metalizado, escolhendo co-
e conquista mais espaço nas res mais neutras e sólidas para evitar
coleções para a próxima es- efeitos demasiado estridentes.
tação. Descobrindo cada vez mais a As marcas Yves Saint Laurent e
luz do dia, o brilho chega mais subtil Givenchy são reconhecidas pela sua
e invade sem receio peças também de mestria em criar linhas plenas de
dia a dia, trazendo além de sofistica- perfeição e elegância, e por isso só
ção, também alguma sensualidade poderiam dominar esta tendência.
para as peças mais casuais. O veludo, o lurex, as aplicações me-
BLAZER VESTIDO
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HÁ H O M E M
POR LUÍS PEDRO NUNES
GETTY IMAGES
Agarraditos à Netflix
Ver séries por atacado está a destruir os ciclos de sono. E a engordar
U
m gelado para comer à noite, mesmo antes de efeitos nefastos. A não ser que entre nos NA — net- Há uma camada da sociedade que vive exausta
dormir. Que sentido faz isto? Não se trata de flixeiros anónimos. Que não existe. Ainda. devido ao “efeito Netflix” e não a outras maldades
um gelado com baixas calorias para deglu- Quem não é grande consumidor da Netflix acha da sociedade. E são já 140 milhões de consumido-
tir ‘sem culpa’, mas uma marca, a NightFood, que apenas os ‘bingeiros’ uns grandes chatos que pas- res deste serviço, a que se junta mais uma multidão
ajuda a uma boa noite de sono. Alambazar-se com sam o tempo a falar séries. E se descobrem alguém de outros serviços idênticos. Li que uns milhões
o sabor Coockies’n Dreams tem efeitos relaxantes. que já viu a mesma série do que eles, relembram de subscritores viram a temporada 2 de “Stranger
Ao analisar o produto, constata-se que não há nele mutuamente episódios. Há um momento em que Things” toda na noite que saiu. Estamos a falar de
nada que provoque sonolência, tipo valeriana, ape- um se deve superiorizar: qual dos dois foi primei- 9 episódios. A desculpa é que não queriam que al-
nas foram retiradas substâncias que provocam ex- ro a ver e, acima de tudo, em quanto tempo viu. Se guém lhes estragasse o prazer com spoilers.
citação ou distúrbios digestivos que perturbem o tiver papado a temporada de uma só vez, é sinal No centro de Lisboa pode mandar-se vir comi-
sono. Menos lactose, açúcar e cafeína e mais umas de respeito para os demais. Para quem estuda es- da a casa quase durante 24 horas por dia. A partir
boas gramas de efeito placebo. Trata-se de um “ge- tas coisas é antes um sintoma de que poderá estar das 2 da manhã é só junk food, é certo. Para mim é
lado funcional” criado para responder a uma ne- a dormir mal/pouco e ter um mau desempenho na uma maldição. Por algum motivo o meu cérebro,
cessidade. E que necessidade é essa? Que há uma escola/trabalho, dado que estará a comprometer o por vezes, lá para as 3h16 da madrugada acha que
faixa etária do mundo ocidental que está viciado na seu sono. É que estas maratonas acontecem muitas a minha miséria existencial merece ser compensa-
Netflix e, pelo que contam estudos científicos fei- vezes durante a semana. da com um BigMac. Não há gelados NightFood. Es-
tos nos EUA, se encontra em privação de sono. E o A Netflix é hoje grande procrastinadora do tes serviços de Glovo ou UberEats não foram pen-
gelado para ter sono pode ter ares de piada mas te- sono. Teve o descaramento de o anunciar num sados para mim, mas para os que estão em casa a
mos aqui um problema. Cá também. O mundo não tweet, em 2017: “O sono é o nosso maior inimi- rever pela 3ª vez a temporada não sei quantas da
é o meu umbigo, mas conheço caso de pessoas que go.” Quem antes se sentava a ver TV ou mesmo “Guerra dos Tronos”. Sou apenas um tipo que está
ficam a noite acordadas para ver a Netflix, mesmo um filme alugado tinha um limite, que era o fecho a beneficiar dos serviços para agarraditos da Net-
tendo de trabalhar cedo no dia seguinte. de emissão ou dos filmes alugados (ou, neste caso, flix. Infelizmente.
O termo inglês binge, ligado ao “consumo com- tinha de dispor-se a pagar por mais filmes). Ago- A junk food é a comida da Netflix por excelên-
pulsivo”, estava relacionado até há pouco tempo a ra não há limite. Quem vê não ‘sofre’ de insónias. cia, dado que ela própria ajuda a estimular o cé-
álcool ou distúrbios alimentares. Hoje é um termo Vai adiando/lutando com o sono. E as séries dão a rebro com dopamina. Isso eu sei antes das 4 da
resgatado para a televisão. Ou melhor, para a Ne- excitação e adrenalina suficientes para o manter manhã, quando recebo o hambúrguer. O cérebro
tflix. O binge-watching é ‘a’ maneira adequada de acordado. Não vou estar a dizer percentagens nor- não discrimina drogas. É o mesmo que acontece
ver séries. Não se vê um episódio. Despacham-se te-americanas que cá podem não ter significado, quando um tipo num prédio algures decide por
meia dúzia seguidos ou — se se for um herói/heroí- mas muita gente, quando começa a ver a Netflix essa hora ver “só mais um episódio, que se lixe” e
na — uma temporada inteira numa única noite. Mas fá-lo convencido de que vai ver um ou dois episó- tem uma sensação morninha de prazer. No dia se-
a Netflix já começou a ser relacionado com proble- dios e vê uns 4 ou 5. É raro quem começa, durante guinte estou agoniado com o Mac. Já ele parece um
mas sérios de distúrbios de sono e outras maleitas a semana, a ver a Netflix pensar que vai fazer uma zombie, porque dormiu quatro horas e nos cruzá-
a eles normalmente associadas, como questões li- maratona. Não consegue é parar. Começa interi- mos perigosamente no trânsito ele numa trotineta
gadas ao peso, higiene mental falta de lucidez e de ormente a negociar o sono: “OK, hoje durmo só e quase há um acidente. Há insultos. Eu amaldiçoo
concentração e até mesmo depressão. Dirão alguns quatro horas, mas depois, no fim de semana, com- as trotinetas. Ele a mim. E a Netflix — a verdadei-
que isto é conversa de quem não é grande aman- penso.” Mas acaba por ter consequências no dia se- ra culpada desta mudança de hábitos — passa in-
te de serviços de streaming de TV. Certo. Não será guinte. E que começam logo quando o despertador cólume. b
um adicto da Netflix que irá escrever sobre os seus toca de manhã. lpnunesxxx@gmail.com
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PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ
7 4 6
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
2 8
7 3 2 8 1
7 5 9 1 6
2
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9 8 6 3 1 3
4 8 9 1
4
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3 1 2 5
Sudoku Difícil 6
1 2 8 5
7
9 2
4 7 8
7 1 6
9
3 1
9 4 3 10
7 2
6 5 11
9 8 3 4
Horizontais Verticais Soluções nº2263
1. Debatem em hemiciclo 2. Olho 1. Não admite outra versão 2. É quase HORIZONTAIS
Soluções da mosca. Moisés liderou um 3. Leva eco. Acabados de batizar 3. Quem 1. Predicados 2. touros;
Fácil Difícil à morte. É suposto ser doce 4. Ajuda não quer ser lobo que não lha vista. idem 3. oira; assola
4. ogor; prós 5. ossos;
7 8 4 2 1 3 5 9 6 6 7 4 2 3 1 5 8 9
a lembrar 5. As pontas do arame. Principado num rochedo 4. Teólogo
tu 6. me; nicotina
2 6 5 4 8 9 1 7 3 3 9 1 7 5 8 6 4 2
Tomou chá com um chapeleiro muçulmano. Filtram 5. Lotaria da Santa
7. emparedar 8. upa; Ibo;
1 3 9 5 7 6 8 2 4 2 5 8 6 4 9 3 1 7
4 7 1 3 6 8 9 5 2 8 3 7 5 6 4 9 2 1 maluco. Prefixo que duplica 6. Sobe Casa. Permite todas as esperanças
ria 9. russo; tig 10. seta;
9 5 8 7 2 4 6 3 1 4 1 5 9 7 2 8 3 6 na discussão. Nove nos Açores 6. Já foi agência noticiosa. Grande
lentos 11. Alcântara
3 2 6 1 9 5 7 4 8 9 2 6 1 8 3 4 7 5 7. Foi de qualquer maneira. O de Lisboa quantidade 7. O Jardim que Bosch
8 4 2 9 5 1 3 6 7 7 6 3 8 1 5 2 9 4
reformou a União Europeia 8. Os heróis pintou 8. Boi inglês. A música da Irlanda VERTICAIS
de Enid Blyton. Molusco que muda 9. Está em contacto com o chão. Não 1. Ptolomeu; SS 2 roi;
6 9 7 8 3 2 4 1 5 1 4 2 3 9 6 7 5 8
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10 PERGUNTAS A...
JOÃO
LOURENÇO
“A CORAGEM
NUNCA SERÁ
FICÇÃO”
1. A VIDA CONJUGAL DEVIA DISPENSAR
TANTAS PERGUNTAS?
As perguntas devem ser feitas antes... da vida conjugal.
Porque depois virão outras perguntas, ainda mais difíceis.
Mas tudo isso faz parte do “jogo da vida”. E vale sempre a
pena jogá-lo, com mais ou menos perguntas!
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FRACO CONSOLO
/ PEDRO
MEXIA
Bruno Ganz em
“As Asas do Desejo”
B
ALGUÉM QUE SE VAI EMBORA
VI “AS ASAS DO DESEJO” NO chegar ao céu. Wenders explicou que não lhe interessava mostrar os anjos,
mas mostrar aquilo que os anjos vêem, ou seja, mostrar o ponto de vista dos
CINEMA HÁ QUASE TRINTA ANOS, anjos, soberano e desamparado.
COM O MEU PAI, E LEMBRO-ME Aqueles dois anjos, Damiel e Cassiel, gostavam talvez de redimir as
DE QUE UMAS QUANTAS PESSOAS insuficiências da realidade física, mas como podem fazer isso se não lhe
têm acesso sequer? Quando Damiel pega numa pedra, ou num lápis,
SAÍRAM A MEIO, “VIERAM PARA toca apenas a sua sombra, o seu fantasma. E o mesmo acontece quando
O DESEJO E SÓ ENCONTRARAM ele e Cassiel tocam nas pessoas, que no entanto os sentem, às vezes, os
pressentem. Os homens e as mulheres, que só têm o “agora”, querem
ASAS”, BRINCÁMOS
o “para sempre”, mas Damiel, o anjo, não quer o “para sempre”, está
cansado de “para sempre”, quer o “agora”, quer o tempo sequencial, a
runo Ganz, que agora nos morreu, foi em experiência, os sentidos, as sensações, quer tocar o ombro de uma mulher
tempos um anjo, que é menos do que ser e ser mesmo o ombro dela que ele toca, quer deixar de ser anjo por amor
um homem. Ganz não se esgota em “As aos homens e a uma mulher, Marion, trapezista que faz de anjo num circo
Asas do Desejo”, muito longe disso, mas em decadência.
eu descobri-o em “As Asas do Desejo”, que Não estou convencido de que “As Asas do Desejo” seja um filme cristão, mas
alguns cinéfilos consideram o último Wenders bom e outros o primeiro o meu pai achava que era, e talvez tivesse razão. Pelos anjos, mas também,
Wenders discutível. A mim tocou-me, é aliás um filme que tem muito que quem sabe?, por causa do poema de Peter Handke “a criança, quando
ver com esse gesto de tocar em alguém. Vi-o no cinema há quase trinta era criança”, que lembra a ‘Carta aos Coríntios’, “quando eu era criança,
anos, com o meu pai, e lembro-me de que umas quantas pessoas saíram a pensava como as crianças, mas agora que sou homem deixei as coisas
meio, “vieram para o desejo e só encontraram asas”, brincámos, comentário infantis”. E por causa dos ecos cristãos de um não-cristão, Rilke, que na
divertido mas injusto, diga-se, porque não falta desejo em “As Asas do Oitava Elegia fala de crianças sacudidas pelo “aberto” e de homens que no
Desejo”, como o desejo de estar vivo mesmo quando não se está vivo. futuro se hão-de despedir dos vivos e dos mortos: “Quem nos virou assim
Wim Wenders contou de onde lhe veio a ideia dos anjos: dos poemas de do avesso, que/ o que quer que façamos temos ar/ de alguém que se vai
Rilke, de um desenho de Klee, de um texto de Walter Benjamin, de uma embora? Como esse/ se volta na colina mais distante/ para ver todo o vale
canção dos Cure e do monumental “anjo da vitória” erguido em Berlim. inda uma vez —,/ assim vivemos sempre num adeus”.
Depois dos anos americanos regressava a casa, e quis fazer uma elegia
de Berlim, não um documentário mas um poema sobre uma cidade [Em memória do meu pai, João Bigotte Chorão, 1933-2019] b
intemporal, passada, presente e futura. E quem vive assim a não ser os pedromexia@gmail.com
anjos? Ou serão os anjos, perguntou Wenders, mais inacreditáveis do que Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
os monstros do cinema, talvez por não serem monstruosos? Damiel e
Cassiel (Bruno Ganz e Otto Sander) aparecem-nos como anjos da História,
contemporâneos de todos os tempos, contemporâneos da II Guerra Mundial
também, que terminou no ano em que Wenders nasceu e que ele aqui
documenta. E ao mesmo tempo os anjos vivem num eterno presente,
testemunhas mudas, mensageiros que não entregam mensagem nenhuma,
falsos anjos da guarda, figuras que observam, ouvem, registam, como um
cineasta em repérages.
“As Asas do Desejo” é um filme da Alemanha. E ganhou um estatuto de
obra “de antecipação” porque apareceu três anos antes da reunificação,
ainda numa Berlim dividida que tinha em comum apenas o céu; mas o
que me impressiona mais é o seu fascínio com a história humana, com os
contadores de histórias, como um velho que se chama Homero, com as
múltiplas histórias que os anjos ouvem e vêem, as conversas, esperanças,
confissões, os fracassos, os colapsos. Um caos aparente a que os anjos dão
um sentido porque conseguem atravessar os objectos sólidos, as paredes, as
casas, as cidades, congregando todas as vozes, fazendo-as, de algum modo,
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