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Naturalismo e ceticismo em Hume:

A saída naturalista para o ceticismo no Tratado da Natureza Humana.

Renato Silva da Fonseca

Disciplina: Ceticismo e idealismo alemão.

Introdução:

Como é de conhecimento geral, o termo “naturalismo” tem uma vasta gama de

aplicações, e “o fato de ter sido aplicado à obra de filósofos com tão pouco em comum

quanto Hume e Spinoza é suficiente para sugerir a necessidade de se distinguir entre

variedades de naturalismo1”. Dentre essas muitas vertentes do termo naturalismo, e

seguindo a distinção apontada por Strawson, podemos indicar duas grandes definições do

termo, dentro das quais existem subdivisões. A primeira “denominada naturalismo estrito

ou reducionista ou mesmo naturalismo extremo, e a outra, naturalismo católico ou

liberal2, naturalismo moderado”.

Comumente o naturalismo é vinculado a uma espécie de ceticismo, porém, iremos

considerar aqui o ceticismo muito mais como uma forma de dúvida que de recusa de

hipóteses, o cético, ao qual nos referimos é aquele que questiona, ainda que por razões

metodológicas, não aquele que nega à primeira vista, categoria na qual, tradicionalmente,

se compreende a filosofia de Hume. Em certa desconformidade com essa leitura

tradicional entenderemos Hume como um filósofo cético, porém, que utiliza do ceticismo

1
STRAWSON, P. F., Ceticismo e naturalismo: algumas variedades. São Leopoldo, RS: Editora da
Unisinos, 2008.
2
Emprego aqui as palavras “católico” e “liberal” em sentido amplo, não em seu sentido especificamente
religioso ou político; nada do que direi terá qualquer relação direta com a religião ou filosofia da religião,
nem com a política ou filosofia política. (Strawson)
para avançar no pensamento e na reflexão filosófica, mitigando ainda que não por

completo seu ceticismo pelo viés naturalista.

Os principais alvos da dúvida filosófica moderna, foram o questionamento sobre

a veracidade da existência do mundo exterior, os dogmas sobre a existência de uma

identidade pessoal e a realidade e regularidade dos eventos e suas causas. No desenrolar

deste texto pretendemos utilizar da distinção entre as possíveis interpretações do termo

“naturalismo” somente após explicar a forma como consideramos que Hume mitiga seu

ceticismo, construindo assim uma correta interpretação do naturalismo humiano.

Ceticismo na filosofia de Hume:

No livro II do Tratado da Natureza Humana, Hume apresenta as pretensões da

razão, à saber, as tentativas de determinar os fins da ação, continuando o mesmo exercício

iniciado no livro I da mesma obra, no qual, ao final do texto, limita as pretensões da razão

na tentativa de determinar, desta vez, a formação de crenças sobre as questões de fato e

da existência. Strawson defenderá em sua obra que a posição cética de Hume é mitigada

pela vida ordinária no sentido mais prático, ou seja, Hume afirma que não há argumentos

eficaz a favor da posição cética nem, na mesma medida, argumento possível contrário a

ela. Não podemos evitar a crença na existência de corpos, na existência do mundo externo

e nem mesmo podemos evitar a crença na existência de certa metafísica. O que não é

possível fazer é superar a dúvida cética por essa crença, usada na vida comum.

Hume colocará constantemente a responsabilidade por essa crença, na natureza

humana, como aponta Strawson:

Hume expressa frequentemente sua posição referindo-se à


Natureza, que não nos deixa qualquer opção nesses assuntos,
senão a de, “por uma necessidade absoluta e incontrolável”,
levar-nos a “julgar tal como a respirar e a sentir”. Quando
considera aquele ceticismo total que, argumentando com base na
falibilidade do raciocínio humano, tenderia a solapar toda crença
e opinião.

Nas palavras de Hume o problema é colocado da seguinte maneira:

Quem quer que tenha se dado ao trabalho de refutar os sofismas


desse ceticismo total, discutiu, na realidade, sem um antagonista
e se empenhou em estabelecer por meio de argumentos, uma
faculdade que a Natureza antecipadamente implantou na mente e
tornou inevitável.

Tendo Hume colocado o ceticismo numa posição menor, ou tendo pelo menos de

alguma maneira mitigado o ceticismo, nos encontramos em uma posição dúbia. Afinal,

muitas das conclusões do filósofo terão um forte viés cético. O caso mais comum é o da

questão causal, que certamente o levam a uma conclusão cética. Mas será que por conta

de tais conclusões poderíamos considerar os argumentos de Hume contraditórios?

Acredito que a resposta para essa questão esteja na própria obra de Hume.

Aparentemente temos um Hume naturalista e outro cético. Usualmente seu

naturalismo é visto mais como um refúgio ou uma forma de se salvar do ceticismo, mas

essa posição me parece menos provável que a seguinte: Hume na verdade considera o

ceticismo nas questões especulativas e o naturalismo nas questões práticas. O ceticismo

serve para polir a ciência e a investigação filosófica, colocando-as em cheque sempre que

alguma vertente dogmática parecer ganhar força. De seu lado, o naturalismo serve como

forma de investigação daquilo que compõe nossa psicologia moral e nossa sociabilidade.

O que obviamente fica sujeito ao ceticismo e mesmo essa investigação, não supera a

dúvida cética, mas nos possibilita outros caminhos.


Com isso podemos afirmar que a posição de Hume se inscreve em dois níveis, que

não se contradizem, mas que possibilitam a melhor compreensão possível dos eventos no

mundo e da reflexão filosófica. O primeiro nível é aquele do pensamento filosoficamente

crítico, reflexivo e que fica em constante movimento dado o caráter cético que deve

assumir. O segundo nível, o do pensamento empírico cotidiano, no qual as pretensões do

primeiro nível de pensamento ficam anuladas e suprimidas pela natureza, pela inevitável

crença na existência. Por meio dessa pré-disposição natural a própria dúvida cética pode

ser relegada a um mero entretenimento para o intelecto, afinal é impotente contra a

disposição orgânica da natureza humana. Isso quando consideramos os aspectos da vida

comum. Ao considerar porém, os dados da reflexão, a dúvida cética persiste como uma

forma de salvaguardar o pensamento do dogmatismo e de pretensões absurdas.

Até então a razão parece não ter nenhum papel a desempenhar, o que certamente

não é o caso, a razão funciona, tem utilidade. Embora seja a natureza que nos dita crenças

indutivas gerais, a razão serve para formular regras para julgar sobre causas e efeitos,

ainda que este julgamento não sobreviva ao ceticismo. Um outro papel muito importante

da razão é refinar e melhor elaborar os argumentos e a ordem causal que, se seguisse

somente conforme ditada pela natureza, seria contraditória e não haveria parâmetro de

comparação entre uma postulação causal e outra.

Uma vez abandonadas as pretensões dogmáticas quando confrontadas com o

ceticismo, sobram àqueles que recorrem a saída naturalista, alguns caminhos de

investigação que não mais dependem tanto da dúvida cética para serem considerados

relevantes. Estes caminhos, justamente por não terem pretensões dogmáticas ou por

aceitarem perfeitamente seu caráter revisionista, podem ser investigados sem lutar frente

a frente com o ceticismo. O projeto irreal da validação absoluta é abandonado pelo

filósofo naturalista. Ele passa a investigar as conexões entre elementos estruturais da


própria natureza humana, ou abraçará o projeto de analisar as estruturas de nosso esquema

conceitual.

Comumente, porém, o naturalista ouvirá as críticas que giram em torno do

seguinte: na descrição de alguma estrutura do nosso esquema conceitual, o naturalista tem

pretensões de descrever este aparato, mas não pode apelar para nenhuma espécie de

condição necessária, afinal seus argumentos não eliminam todas as outras possibilidades.

Hume, por exemplo, ao explicar nossas conexões de ideias por causalidade, contiguidade

e semelhança, não elimina qualquer outra possibilidade de explicação, como por exemplo,

um ser infinitamente superior e infinitamente ocioso, que prefere usar seus superpoderes

para realizar em cada mente humana as conexões de ideias, ao invés de ter criado

indivíduos que façam isso automaticamente.

Por mais implausível que soe a ideia, não há nada na argumentação naturalista que

a invalide, assim como não há nada em todo o pensamento científico que o faça. Mas

novamente, esse é o domínio da argumentação cética, e o naturalista certamente estaria

confortável em admitir que de fato estas questões não possam ser respondidas através de

seu modesto trabalho de observação e descrição de fenômenos. Hume é totalmente

consciente destes problemas, tanto que apresenta a inutilidade da probabilística para o

pensamento filosófico. Afinal, não importa quantas vezes o mesmo evento se repetiu:

nada garante que ele se repetirá no futuro.

Mesmo considerando que a crítica ao naturalismo possa ser legítima, devemos

notar ao mesmo tempo, que ainda assim, a perspectiva naturalista explica as principais

características estruturais e os elementos daquilo que chamamos de “esquema

conceitual”. Estes elementos não devem ser considerados como rigidamente dedutivos.

Mas como uma estrutura interpretativa coerente e que se apoia na regularidade de certos
dados, são partes que se sustentam mutualmente e depende umas das outras, podendo ser

inteligíveis e revisáveis.

Essa visão sobre o naturalismo e o ceticismo, como vimos, não é estabelecida sem

uma dose de críticas, mas é importante ressaltar, como aponta Straud, que o desafio do

cético ao ser enfrentando, sempre recua mais um nível, não importando a forma de

argumentar, ou o princípio argumentativo. Kant indica algo similar no prefácio à segunda

edição da Crítica da Razão Pura:

Permanece um escândalo para a filosofia e para a razão humana


em geral que a existência de coisas fora de nós... deva ser aceita
meramente com base na fé e que, se alguém julgar aconselhável
duvidar de sua existência, sejamos incapazes de responder às
suas dúvidas com alguma prova satisfatória.

O naturalismo se mostra mais eficaz na medida em que aceita a dúvida cética. A

questão continua presente, tem sua utilidade reflexiva, mas não se apresenta mais como

um problema. na medida em que o naturalismo assume outros compromissos, como

descrever fenômenos sem com isso se tornar dogmático ou se abalar pelo ceticismo, visto

que está consciente de seu caráter provisório e revisional.

Os problemas céticos apresentados até então, aqueles que sempre persistem

quando o naturalista ou qualquer outro filósofo é inquirido, são aqueles tradicionalmente

abordados ao longo da tradição filosófica, como: a existência dos corpos, a possibilidade

da construção de conhecimentos verdadeiros e justificados e a indução. Estes problemas

deixam de ser enfrentados na atividade filosófica do naturalista, e tornam-se em certa

medida comezinhos. Tal ocorrência não se dá por considera-los vãos, sem sentido ou

mesmo impraticáveis, mas porque o compromisso investigativo tem seu locus alterado.

Afinal, agora temos compromissos que não podem ser evitados, são demandas naturais e
originárias de nossa constituição orgânica, ainda que essa mesma constituição não passe

de uma ilusão originada por um gênio maligno, ou posta no cérebro na cuba.

Muitos foram os filósofos que se esforçaram, as vezes desesperadamente, para

fugir do ceticismo. Algumas dessas tentativas chegam a soar divertidamente infrutíferas,

como no caso de Moore, que afirma: “eis aqui duas mãos”. O que obviamente não passa

de um truísmo, é verificável empiricamente, mas absolutamente impotente quando

perguntado se realmente existem coisas físicas, pois a experiência de Moore não revela

nada além dele próprio. A inocência de seu argumento está na irrelevância da

subjetividade para se validar a existência das coisas, do mundo e das relações causais.

Moore, segundo Stroud, sequer compreendeu verdadeiramente o desafio cético, pois,

recorre ao último aliado que deveria: o dogmatismo, a afirmação em primeira pessoa da

existência de algo, sem que com isso se garanta nem a real existência corpórea de Moore

nem a do mundo externo ou de qualquer outra coisa.

Na obra de Hume, um dos momentos céticos mais claro aparece na quarta parte

do primeiro livro do Tratado, onde o filósofo faz uso de um argumento em que pretende

mostrar que “tudo é incerto, e que nosso julgamento em coisa alguma possui nenhuma

medida de verdade e falsidade” (HUME, 2006, p. 123 [I 4, 1.7]), o que pode ser

interpretado de duas maneiras distintas. A primeira delas é a mais comum na tradição e

se refere ao que já foi dito, à saber, a filiação de Hume ao ceticismo, sendo considerado

um dos grandes nomes do ceticismo moderno, o que de certa maneira é justo, afinal, de

fato não há nada que garanta a validade ou a verdade no sentido mais rígido daquilo que

julgamos.

Esta interpretação também baseada na primeira parte do tratado, onde Hume

afirma que “todo conhecimento degenera em probabilidade” (HUME, 2006, p. 121 [I 4,

1.1]), aparentemente se contrapõe à sua visão naturalista, mas já que apontamos a


diferença de funções e de aplicação dessas perspectivas – a cética e a naturalista – resta

agora apontar a necessidade de tal procedimento na filosofia. Assim, a questão real do

pensamento de Hume passa a ser interpretada não mais como uma fuga do ceticismo para

o naturalismo, numa tentativa de refutar esse tipo de argumento cético, mas sim explicar

como podemos continuar sustentando crenças e utilizando das mesmas apesar da

argumentação destrutiva do cético.

Como já foi indicado, estamos tratando de uma demanda natural, de uma

necessidade própria da condição orgânica da qual somos resultados, a filosofia humiana

está totalmente em ajuste com as explicações naturalistas e com a questão cética. A ponto

de Hume poder alegar que enfatizar o argumento cético é uma maneira de confirmar sua

ideia sobre as crenças naturais, pois o fato das crenças não poderem ser eliminadas por

reflexões e pensamentos introspectivos, como todos relativos a dúvida cética, só mostra

que a demanda natural dada pela natureza não exclui a razão mas se impõe como uma

necessidade comum para a sobrevivência humana.

A necessidade filosófica das aplicações dos pressupostos naturalistas se fazer

notórias quando consideramos que a crença não pode ser um simples ato de pensamento,

pois, seria destruída por completo pela dúvida cética. Hume reconhece que o argumento

cético pode ser aplicado ao seu próprio discurso da crença (cf. HUME, 2006, p. 123 [I 4,

1.8]), mas isso não abala a necessidade prática e os usos efetivos da perspectiva

naturalista.

Conclusão

Em suma o que podemos concluir da postura humiana é que a crença imposta

pelas diversas tendências da natureza não é algo que se assume irrefletidamente, o


exercício cético é essencial e funciona perfeitamente como um mecanismo de

aprofundamento nas questões mais importantes. O que Hume nos fornece é um ponto de

equilíbrio, entre a demanda natural que nos impele a crer e sobre a qual podemos

desenvolver uma ciência de caráter e conteúdo provisório e revisionista, ao lado da dúvida

cética que é necessária e talvez insuperável.

O uso que Hume faz do naturalismo é por um lado instrumental e por outro social,

pois ele serve de ferramenta filosófica e serve para melhorar características de

sociabilidade tão importantes para o iluminismo em desenvolvimento no século XVIII.

Ao mesmo tempo o uso do ceticismo tem dupla função, a primeira refrear toda e qualquer

tendência dogmática e a outra garantir um horizonte reflexivo e continuamente aberto do

pensamento e da reflexão filosófica.

A filosofia de Hume certamente oferece um outro caminho para a perspectiva

racionalista cartesiana e ainda oferece possibilidade de desenvolver o pensamento sobre

as origens e do conhecimento humano e como ele opera. Uma saída prática que atende a

dupla necessidade do filósofo que se vê obrigado a lidar com o questionamento cético e

as imposições da natureza.

Bibliografia:

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Trad. de Deborah Danowski. 2.ed. rev. e
ampl.. São Paulo: Editora UNESP – Imprensa Oficial do Estado, 2009.
___________. An Enquiry concerning Human Understanding. ed. Tom L. Beauchamp.
Oxford: Oxford University Press, 1999.
MOORE, G. E. Escritos Filosóficos. Trad. Paulo Mariconda. São Paulo: Nova Cultural,
1989.
STROUD, B. Hume. Londres: Routledge, 1995.
STRAWSON, P. F. Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2008.

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