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Orientador:
Prof. Dr. Luiz Fernando dias Duarte
Rio de Janeiro
1999
ii
Aprovada por:
________________________________ - Orientador
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
__________________________________
Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho
__________________________________________
Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho
Rio de Janeiro
1999
iii
À minha irmã,
Branca
v
Agradecimentos
A meu orientador, Luiz Fernando Dias Duarte, por ter me dado coragem e meios para
buscar meus próprios caminhos.
A Leila Amaral, Otávio Velho e Carlos Alberto Afonso, por tudo que me ensinaram
sobre a antropologia e a vida.
Aos colegas Anthony D’Andrea, Clara Jost Mafra, Emerson Giumbelli, Paulo Hilu da
Rocha Pinto e Sergio Góes Brissac, com quem pude compartilhar o interesse pelas
religiões.
Aos colegas de curso, Alcio Braz, Aloir Pacini, Amir Geiger, Ana Lucia Enne, Ana
Claudia Cruz e Silva, André Correia Lourenço, Claudio Costa Pinheiro, Cecília Valdez
Michael, Gustavo Blasquez, Hernan Gómez, Hortense Marcier, Hyppolite Brice
Sogbossi, João Paulo Macedo e Castro, João Felipe Gonçalves, José Gabriel Corrêa,
Kátia de Almeida, Pedro Luz, Sílvia Nogueira, Ricardo Cavalcanti, Rodrigo Grunewald e
Valéria Torres e Silva agradeço o bom convívio e a troca enriquecedora.
A Afonso Santoro, Eline Decacche Maia, Fatima Regina Nascimento, Lucia Arrais
Morales, Tania Ferreira da Silva e Wallace de Deus Barbosa, a amizade e o apoio, de
tantas e diferentes maneiras.
RESUMO
Este trabalho realiza uma etnografia do Siddha Yoga, grupo de origem hindu que se
estabeleceu no Ocidente no início da década de 1970, procurando investigar as
motivações ligadas à vinda dos mestres hindus para o Ocidente, iniciada no final do
século XIX. Entre os tópicos desenvolvidos, especial atenção é dada à dinâmica da
construção das categorias de "Oriente" e "Ocidente" em suas diversas implicações,
sobretudo no que diz respeito à formação de um discurso contracultural no Ocidente; ao
estatuto da experiência e das emoções dentro dos fenômenos religiosos de tipo místico; e
ao modo como as religiosidades de origem hindu, especialmente as iogas, são
vivenciadas por devotos ocidentais. Com este objetivo, são mapeadas as distintas
concepções de pessoa envolvidas no processo de difusão destas religiosidades, e sua
importância como matriz de concepções religiosas em circulação crescente na cena
religiosa ocidental contemporânea, como as da Nova Era.
vii
ABSTRACT
This is an ethnography of Siddha Yoga, a group of Hindu origins which settled in the
West in the beggining of the 70's. The research concentrates firstly in the trips of Hindu
masters to the West, which beginned in the end of the XIX century. A special attention is
then given to the construction of the categories "West" and "East" in their global
implications, especially those related to the development of a countercultural discourse in
the West; to the general status of experience and emotions in mystical religious
phenomena; and to the way Hindu religiosities, and particularly the yogic ones, are
experienced by Western devotees. The different conceptions of person (or personhood)
involved in the spread of these religiosities are analysed, as well as their importance as a
source of religious conceptions now wide spread in the Western religious scene, such as
the New Age ones.
viii
Sumário
Introdução................................................................................................................. p. 1
Conclusão............................................................................................................... p.179
Bibliografia.............................................................................................................. p.188
Apêndice................................................................................................................. p.198
ix
“Words are flying out like endless rain into a paper cup
They slither while they pass, they slip away across the universe
Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my open mind,
possessing and caressing me
Jai Guru Deva Om
(...)
a possibilidade de ler seus dois tipos de diário, me fez pensar, para além das discussões
sobre coerência levantadas, no quanto o trabalho deste antropólogo era tributário de seu
Diary in a Strict Sense, isto é, do árduo processo de reflexão sobre si mesmo levado a
cabo paralelamente à estadia no campo, fato reconhecido pelo próprio Malinowski.
Com isto, pude perceber que a reflexividade fazia parte da própria história da
disciplina, embora inicialmente houvesse uma “má consciência” por parte dos
antropólogos a respeito dela, expressa pela próprio procedimento de Malinowski de
escrever separadamente os dois tipos de diário, um íntimo e o outro científico, não
pretendendo publicar o primeiro. Com o tempo, assistiríamos a uma mudança de visão
dos antropólogos em relação a esta questão, verificando-se entre alguns uma postura de
explicitar o mais possível o papel desempenhado pela subjetividade na construção do
conhecimento, acompanhando o processo de tomada de consciência dentro da disciplina
sobre o fato de que conhecer o outro implica necessariamente num conhecimento de si.
Alguns antropólogos começaram a falar sobre si mesmos no corpo de seus
trabalhos, e não mais apenas nas introduções, espaço reservado normalmente a
comentários mais pessoais. Neste falar sobre si, explicitavam também suas dúvidas, as
idas e vindas do processo de conhecimento e as dificuldades do encontro de um lugar
para a subjetividade durante o trabalho de campo. O trabalho de Jeanne Favret-Saada,
Les mots, la mort et les sorts (1977) ficou sendo para mim o melhor exemplo desta
postura metodológica nova, na qual como que se juntavam em um único texto os dois
diários de Malinowski, o de campo e o stricto sensu, em um procedimento
posteriormente consagrado pelas correntes reflexivistas da disciplina.
Por outro lado, há muito tempo me parecia difícil dissociar meus processos
pessoais de vida de meus projetos acadêmicos e foi com grande alívio que descobri que
esta questão também era contemplada no Diary in a Strict Sense, fazendo parte portanto
dos objetos de reflexão da disciplina.
Na sequência destes comentários, acho que encontro bons elementos para
explicar porque escolhi como tema de dissertação um tipo de religiosidade calcada sobre
processos de auto-conhecimento e crescente expansão de níveis de reflexividade ⎯
aspectos que parecem estar na base da apropriação das tradições hindus de meditação
pelos adeptos ocidentais que são objeto deste meu estudo sobre o Siddha Yoga.
3
dupla condição, explicitando a cada passo os dilemas que vivia, ao invés de negar sua
existência. E, sobretudo, ter a paciência de não ter respostas, encarando este fato como
constitutivo do processo de conhecimento, e não como uma “falha” que pudesse me
paralisar. Ter escolhido o “consentâneo consigo mesmo”, afinal, tinha seu preço. Ele
parecia pequeno, contudo, quando comparado aos duros momentos de minha vida em que
fui obrigada a deixá-lo de lado.
Minha graduação em História, nos anos 70, num momento em que ainda não
se instaurara um diálogo mais amplo daquela disciplina com a Antropologia ⎯ algo que
a levaria mais tarde a ter uma abertura maior para abordagens que privilegiavam aspectos
subjetivos da trajetória dos agentes ⎯ levara-me a uma imensa frustração, não reparada
por minha profissionalização na área. Trabalhos extremamente áridos para recuperar a
história do setor elétrico brasileiro, em variados arquivos da cidade do Rio de Janeiro,
apresentaram-se como minha principal oportunidade profissional para permanecer na
área de pesquisa, a um preço que depois percebi ser grande demais. Embora tenha
adquirido por meio daqueles trabalhos as ferramentas essenciais para a realização de
pesquisas com fontes escritas, primárias e secundárias, a dedicação de mais de dez anos
de minha vida a uma temática que em nada me interessava, custou-me o preço de um
imenso desencanto pelo que fazia. Minha ida para a antropologia também resultou disso,
do desejo de estar mais próxima, no campo profissional, de meus próprios interesses.
Como se vê, encontro mais um argumento para explicar o que fiz e o que escolhi, e mais
uma vez, é claro, “after the fact”.
A valorização de práticas reflexivistas dos sujeitos de conhecimento em
relação a seus objetos de estudo, em oposição à má consciência em relação a isto do
tempo de Malinowski, é um fato consumado hoje, ao menos em algumas correntes das
ciências sociais, como se pode ver claramente pelas questões suscitadas neste texto,
escrito por uma socióloga americana: “Might an acceptance and refinement of our own
emotional ⎯ as well as cognitive ⎯ ways of knowing enable us, as scholars, to better
comprehend the emotional experiences of those whom we purport to explain?”
(McGuire, 1993, p.136). É a mesma autora que destaca a importância destes mecanismos,
particularmente no campo da sociologia da religião: “Exploring and, perhaps, embracing
the emotional component of ways of knowing may be particularly important for a
6
sociology of religion, since much religious belief and behaviour appears to be utterly
irrational” (Ibid., p.136). E é ela ainda quem descreve em que tipo de argumentos se
apóiam aqueles que se recusam a aceitá-los:
1
Agradeço a Anthony D’Andrea a indicação sobre a existência deste dossiê na Internet, assim como a
caracterização do site em que ele se encontra como um Procom espiritual ( “Procom” é a sigla do serviço
de defesa dos consumidores que se sentem lesados no Brasil).
11
É com esta epígrafe, retirada do 18 Brumário de Karl Marx, que Edward Said
inicia seu livro Orientalismo, buscando resumir o cerne da postura que caracterizou a
atitude do Ocidente em relação ao Oriente a partir do final do século XVIII, quando
presume que tenha surgido o orientalismo moderno. Esta disciplina, intimamente
associada ao processo de expansão imperialista sobre o Oriente, nada mais era, segundo
este autor, que “... uma visão política da realidade cuja estrutura promovia a diferença
entre o familiar (Europa, Ocidente, “nós”) e o estranho (Oriente, Leste, “eles”).” (Said
1990, p.54). A constituição deste “outro”, ainda que variando ao longo do tempo, supôs
frequentemente a criação de uma imagem que homogeneizava suas características: “....os
orientais eram em quase todos os lugares quase os mesmos”. (Id., p.48).
Na trilha do argumento principal de Said, gostaria de enfocar neste capítulo
um outro viés da produção de imagens do Oriente pelo Ocidente, que, embora também se
aproprie daquele como um “outro”, o faz com o intuito de estabelecer um diálogo com
valores hegemônicos do próprio Ocidente, e não para apoiar seus projetos de dominação.
Este viés, que poderíamos considerar contracultural, resultou em uma série de
movimentos, iniciados com o Romantismo, cujo interesse para meu trabalho está ligado
ao fato de que serão eles os responsáveis pelo estabelecimento de uma visão “positiva”
do Oriente, que responderá em grande parte pela difusão de suas religiosidades entre nós.
Tratar-se-á aqui de mapear sucintamente os principais momentos destas apropriações do
Oriente que prepararam o terreno para a “representação de si mesmos”, isto é, para a
vinda de mestres orientais para o Ocidente, iniciada no final do século XIX, com o
objetivo de divulgar eles mesmos suas próprias tradições entre nós2.
2
A ênfase dada aos aspectos da “representação de si mesmos” neste capítulo, procura, na linha da
advertência feita por Marshall Sahlins, endossando ponto de vista defendido por Terence Turner, não
deixar-se levar por um discurso sobre a alteridade que “tende a exagerar o poder que teriam as
representações ocidentais de se impor aos ‘outros’, dissolvendo suas subjetividades e objetivando-os como
meras projeções do olhar desejante do ocidente dominador” (Turner, apud Sahlins, 1997, p.123).
12
3
Um bom histórico e análise dos processos de afirmação da identidade hindu na Índia a partir do século
XIX encontra-se em Clementin-Ojha e Gaborieau (1994).
4
No caso específico dos textos sânscritos, destacam-se os trabalhos de tradução pioneiros de Sir William
Jones, considerado o “pai” do orientalismo. A partir da criação da Sociedade Asiática, em 1874, na cidade
de Calcutá, ele dedicou-se à tarefa de tornar acessíveis para os europeus, em inglês, os textos fundamentais
do hinduísmo, tendo traduzido, muitas vezes juntamente com Charles Wilkins e com a colaboração de
eruditos hindus, a Bhagavad-Gitã (1875), o Hitopadesa (1787), os Sakuntala (1789), o Gita-Govinda
(1792), e as Leis de Manu (1794), entre outros. Na França, o principal precursor dos estudos orientalistas
foi Anquetil-Duperron, que traduziu ciquenta e quatro Upanishades entre 1786 e 1802. A primeira cátedra
de sânscrito na Europa, por sua vez, foi criada no Collège de France, em 1814 (Varrene, 1990, p. 273).
5
Entre os principais reformadores do hinduísmo podemos citar Ram Mohum Roy, fundador em 1824 da
Brahmo Samaj (Sociedade de Deus), organização que condenava os aspectos politeístas contidos nos
Vedas e aceitava alguns aspectos do cristianismo; Keshub Chandra Sem, sucessor de Roy na Bhramo
Samaj, que estabeleceu como símbolo da sociedade o tridente shivaíta, a meia lua muçulmana e a cruz
cristã, simbolizando a abertura a outras religiões proposta pelo grupo; Dayananda Sarasvati, que criou em
1875 o Arya Samaj (Sociedade Arya), que pregava um retorno estrito aos Vedas e o expurgo de todos os
traços posteriores incorporados às tradições hindus; e Rabindranath Tagore, que fundou uma universidade
pan-índia em 1921, a Vishva Bharati, destinada a revelar e difundir as riquezas da cultura nacional hindu
(Varrene, op. cit., p.248-255).
14
6
Um bom exemplo deste ponto é a descoberta do indo-europeísmo no campo da filologia, no século
XVIII, em que se buscou destacar as raízes comuns do sânscrito, do grego e do latim. A partir daí, puderam
ser criados mecanismos identitários que aproximavam a Europa do Oriente “bom”, isto é, da Índia clássica
ariana, e que a distinguiam do Oriente “ruim”, semítico. Os “arianos”, neste quadro, ficavam confinados à
Europa e a uma parte específica do Oriente antigo. Sobre as evoluções da filologia enquanto ciência
comparada e seu papel dentro do Orientalismo, cf. Said (1990, p.87-107).
16
7
Schopenhauer é considerado o ponto de partida para a construção da imagem de um “Oriente místico” no
Ocidente, tendo se aproximado particularmente do hinduísmo e, dentro deste, das concepções do Vedanta.
O filósofo alemão considerava a Índia como a pátria da tolerância e da verdadeira metafísica, em contraste
com a tradição judaico-cristã, que acusava de fanatismo e de incompletude no sentido metafísico (Said, op.
cit., 275-276).
8
Uma boa introdução a este debate encontra-se em Campbell (1997). Neste artigo, o autor lança a idéia de
que o Ocidente encontra-se diante de um processo de orientalização, verificável tanto em termos da
expansão de uma teodiceia quanto de uma concepção imanentista da divindade caracteristicamente
orientais, a seu ver. No entanto, ao desenvolver o argumento, o autor deixa claro que, embora chame a
estes traços de “orientais”, eles já estariam presentes, na verdade, dentro de algumas correntes não
hegemônicas do próprio pensamento ocidental, não tendo alcançando, por isto, até então, um bom grau de
visibilidade entre nós.
Nos termos do próprio Campbell:
“ (...) não se está afirmando que alguma dessas crenças [que ele chamou de “orientais”] seja realmente
nova. Pois, como a análise de Troeltsch sugere, a crença em uma força divina impessoal tem sida há muito
tempo um ingrediente da tradição cristã ocidental - embora se deva dizer que evidência em favor da
reencarnação é mais difícil de ser encontrada. O que é novo é o movimento dessas crenças de sua posição
há muito tempo estabelecida enquanto característica de grupos cúlticos ou excêntricos para a sua posição
atual na vertente principal do credo. (...) Essa é uma mudança significativa; não é tanto a aparição de novas
crenças, mas sim a aceitação ampla de crenças que anteriormente eram confinadas a uma minoria” (1997,
p.16).
17
Sem pretender me estender aqui sobre estas questões, mas tão somente
indicar sua importância, acho que merece registro o fato de que, sem dúvida, as
apropriações românticas das tradições hindus foram marcadas por esta tentativa de
encontrar apoio para suas próprias formulações. Ao apontar problemas na interpretação
de alguns termos religiosos orientais por Nieztche e Schopenhauer, Versluis comenta que
“the ways on which they interpreted Buddhist or Hindu texts tell us considerably more
about Schopenhauer, or Nietzche, than about the texts themselves” (Ibid., p.23).
Este tipo de questão pode ser situado num debate mais amplo dentro da
antropologia, relacionando-se a uma problemática que atravessa, na verdade, todas as
situações de contato cultural. Falar do eles está sempre relacionado a um aprofundamento
do conhecimento que temos sobre nós mesmos. Se nos distinguimos do outro que
estudamos, estudá-lo também é estudar a quem estuda, o que faz com que, ao menos ao
nível epistemológico, a separação entre nós/eles se torne problematizada.9 Da mesma
forma, a apropriação de tradições culturais que não são originalmente as nossas parece
apontar inevitavelmente para algum tipo de articulação com questões já colocadas por
nós.
No caso específico da aproximação do Romantismo com as religiosidades
hindus, parece não haver dúvida de que ocorre um processo deste tipo, sobretudo no que
diz respeito à identificação de um inner core nos indivíduos, conforme descrito no
Assim, mesmo não sendo dominantes, estas direções culturais é que teriam aberto o caminho para a entrada
e a absorção das tradições orientais entre nós, com as diversas adaptações que acompanharam este
processo.
Robert Bellah, a propósito de um outro aspecto das religiões orientais, parece defender ponto de vista
semelhante:
“Embora essas crenças [na unidade de todos os seres, apregoada pelas religiões orientais] sejam
diametralmente opostas ao individualismo utilitário [marca central para ele da cultura norte-americana] ⎯
para o qual o indivíduo é a realidade ontológica última ⎯ , há elementos na tradição cristã aos quais elas
não se opõem totalmente. A teologia cristã também se referia à unidade do ser e à necessidade de amar a
todos os seres. O Novo Testamento fala da Igreja como um corpo do qual todos nós somos membros. No
entanto, o cristianismo tendeu a manter o dualismo último de criador e criação, que as religões orientais
suprimiram. Os místicos cristãos faziam às vezes afirmações (consideradas heréticas) que expressavam a
unidade última entre Deus e o homem, e, de uma forma mediatizada, a unidade de Deus e o homem através
de Cristo é uma crença ortodoxa. Não obstante, o cristianismo americano raramente enfatizou o aspecto da
tradição cristã que destacava a unidade mais do que a distinção entre o divino e o humano, de tal modo que
os ensinamentos orientais salientaram-se como amplamente divergentes” (1986, p.32).
9
Esta temática tem sido objeto de atenção especial por parte dos autores ligados à tradição reflexivista na
antropologia, estando particularmente bem explicitada em Geertz (1983).
18
conceito simmeliano de auto-cultivo. Esta noção parece ter estado na base do diálogo
com religiosidades como a do Siddha Yoga, apoiada em tradições que sustentam, da
mesma forma, a idéia de que existe um self, um centro interior, a ser alcançado. O
reconhecimento deste ponto comum, contudo, não deve induzir ao equívoco de uma
identificação mais ampla entre as duas concepções, uma vez que, em uma delas, o ser é
apontado como algo divino, dado e imutável, enquanto que na outra ele é passível de
aperfeiçoamento, é processo, movimento.
O que talvez pudéssemos afirmar, então, e apenas isso, é que a reflexão sobre
o indivíduo trazida pelo Romantismo contribuiu de forma significativa para a
possibilidade de diálogo com as religiosidades hindus em que a idéia da existência de um
self distinto do eu e a busca de meios para atingí-lo são traços característicos10. Além
disto, o contraste estabelecido entre iluminismo/universal e romantismo/particular, à
mesma época, parece ter colocado em destaque os dois pólos que fornecem a chave para
a compreensão ocidental de um conceito central em tradições hindus como a do Siddha
Yoga, o de tat tvam asi (tu és isso)11, em que o micro se identifica com o macro, o atman
com brahman.
Um outro ponto trazido pelo Romantismo que estará na base de sua
“descoberta” das tradições místicas hindus será a questão da valorização de elementos
irracionais em detrimento da via intelectual de conhecimento privilegiada dentro do
iluminismo. A Lebensphilosophie (filosofia da vida) “fica do lado do sentimento, do
instinto, contra o intelecto; do lado dos românticos e místicos contra os racionalistas; do
lado do aristocratismo e dos homens geniais contra o igualitarismo democrático e o
filisteu” (Schmidt, 1945, p.247). Ou, conforme citação feita por Campbell, o
10
A própria concepção de verdade religiosa no Romantismo, não como um dado objetivo mas como algo
que existe na subjetividade, conforme apontado por Reardon, sem dúvida conflui para as concepções que
apoiam as técnicas de acesso à divindade nas tradições místicas hindus a partir da experiência individual
(Reardon 1989, p.10, apud Luz, 1998, p.19).
11
Em seu artigo sobre as noções de pessoa e de “eu”, Mauss comenta que a Índia, a mais antiga civilização
a ter noção do indivíduo, de sua consciência, do “eu”, criou o conceito de ahamkara, ou “fabricação do
eu”, a partir da tradição revelada a seus rishis, os sábios videntes. A samkhya, escola que teria precedido o
budismo, sustentou o caráter composto das coisas e dos espíritos, considerando que o “eu” seria a coisa
ilusória; o budismo, em sua fase inicial, decretou que o “eu” era apenas um composto, divisível, a ser
aniquilado no monge. As grandes escolas do bramanismo dos Upanishads, anteriores à própria samkhya e
também baseadas em conhecimentos revelados, é que teriam reproduzido o diálogo de Vishnu mostrando a
verdade a Arjuna, no Bhagavad Gita: “tat tvam asi” ou “tu és isso” (o universo) (Mauss, 1973, p.225-226).
19
um tipo de postura pluralista inédita até aquele momento12. Pela primeira vez foram
reconhecidas como legítimas naquele país outras fontes de inspiração religiosa, fora da
tradição judaico-cristão. Todas as religiões, dentro desta visão, teriam valor idêntico,
refletindo de formas diferentes uma única e mesma realidade transcendente, algo já
colocado pelos idealistas alemães. Na síntese feita por Versluis:
12
O interesse pelo Oriente nos Estados Unidos acompanhou de perto o que se verficou na Europa, onde se
formaram diversos scholars americanos, sobretudo na Alemanha. A American Oriental Society foi fundada
em 1842. Nas décadas de 1880 e 1890, iniciaram-se os estudos de religião comparada na maioria das
universidades americanas. A perspectiva universalista dos Unitarianistas norte-americanos também
contribuiu para a divulgação do Oriente naquele país, através da publicação de livros no último quartel do
século XIX defendendo a veracidade de todas as religiões (Jackson, 1994, p.9-11).
21
effect of renewed study of (...) Oriental Pantheists, of Plato and the alexandrians, of
Plutarch’s morals, Seneca and Epictetus (...)” (Versluis, op.cit.., p.6). Considera-se assim
a descoberta dos textos orientais, iniciada nos anos 1840, sobretudo em Emerson,
coetânea a um interesse pelos textos platônicos e neo-platônicos que teriam, segundo a
avaliação de muitos estudiosos, diversos pontos de contato com os ensinamentos budistas
e do Vedanta (Id., p.7). Mais uma vez aqui, Oriente e Ocidente parecem ter se
aproximado por suas semelhanças, e não por suas diferenças.
O interesse específico de Emerson por duas das três vias para a liberação
apresentadas na Bhagavad Gita - a do trabalho (karma ioga) e a do conhecimento (jnana
ioga), em detrimento da via da devoção (bhakti ioga) - parece confluir para a questão do
intelectualismo que marca estas primeiras aproximações do pensamento ocidental com o
Oriente. A via do trabalho é associada por Emerson à moral, e a da gnosis à iluminação.
Conforme apontado por Versluis, estas duas vias encontrariam um paralelo dentro da
tradição mística cristã, sob a forma da via positiva, ou a do caminho ativo, do trabalho, e
a da via negativa, restrita à contemplação. A via negativa incluiria e transcenderia a
positiva, da mesma forma que a jnana ioga incluiria e transcenderia a karma ioga (Id.,
p.56).
Este registro é importante por colocar em destaque o fato já apontado de que
nestas apropriações do Oriente o que muitas vezes está em jogo é encontrar apoio em
outras tradições para elementos já presentes em certas correntes do pensamento ocidental,
mas que não fazem parte do mainstream dominante, como no caso das vias místicas
dentro do cristianismo, com muito pouca visibilidade, àquela época, frente às suas
correntes mais ascéticas. Neste sentido, os Transcendentalistas não inovaram, isto é,
como todos os europeus que basearam seu orientalismo apenas em textos, “[they’ve]
interpreted Asian religious texts according to their particular bent. Emerson and Thoreau
abstracted, Johnson and Frotingham universalized, and others Christianized” (Id., p.4).
A informação de que o interesse dos Transcendentalistas pelas religiões
asiáticas esteve relacionado à perspectiva de algumas heresias cristãs em relação ao
calvinismo ortodoxo, esclarece, neste caso específico, que tipo de corrente não
hegemônica do pensamento cristão foi apoiada pela apropriação de tradições orientais.
Assim:
22
Este contato com o Oriente nunca interrompido pela tradição ocultista será
revivificado na segunda metade do século XIX com a criação da SociedadeTeosófica13,
em 1875, por Helena Blavatsky e Henry Olcott, atualizando um interesse pelo Oriente
enquanto propiciador de um contato com o extraordinário e o sobrenatural fora dos
quadros da religião cristã dominante.
Segundo Needleman, tanto o ocultismo, em suas diversas variantes, quanto as
religiões orientais, apresentariam maiores recursos de linguagem para introduzir a
questão do self ⎯ isto é, de uma instância internalizada, por vezes sacralizada, do eu ⎯
para um público secularizado. A observação de Needleman nos parece importante por
indicar que a temática do self não é de modo algum estranha à tradição judaico-cristã,
dando-nos uma pista para a compreensão das razões que explicam porque é que este
elemento não foi acionado, apesar disto, a partir daquela tradição. Assim:
13
Pode-se dizer que a teosofia teve origem no Ocidente com Pitágoras, tendo sido elaborada
posteriormente por figuras como Platão e Plotino bem como pelo movimento neoplatônico de Alexandria,
reconhecendo-se suas afinidades com as tradições gnósticas e cabalísticas e com o sufismo islâmico. Na
Europa, ela reapareceu intermitentemente sob diferentes rótulos: nas doutrinas alquímicas e herméticas e
em fraternidades como a Franco-Maçonaria e o Movimento Rosacruz. No período moderno como um todo,
o termo teosofia é associado a figuras como Meister Eckart, Giordano Bruno, Emanuel Swedenborg e
Jacob Boheme. O Movimento Teosófico a que nos referimos neste capítulo é o criado no final do século
XIX por Helena Blavatsky (Sellon , Weber, 1995, p.311- 312).
24
14
Em que pesem as polêmicas em torno da autenticidade dos ensinamentos difundidos pela Sociedade
Teosófica, sua atuação foi importante não apenas pelo tipo de aproximação positiva com o Oriente que
vem sendo objeto de nossa atenção, mas também pelo papel que desempenhou no que diz respeito ao
fortalecimento de tradições orientais dentro do próprio Oriente. Neste sentido, destacamos a atuação de
Henry Olcott (1832-1907), co-fundador da Sociedade com Blavatsky (1831-1891), na recuperação da
tradição budista no Ceilão (atual Sri Lanka) por meio do estabelecimento de escolas e universidades
25
contribuindo assim para a difusão das tradições orientais que preparou o terreno para a
representação de si mesmos de que trataremos no próximo ítem.
Ainda dentro da tradição ocultista, Réné Guénon (1896-1951), já na primeira
metade do século XX, foi uma figura importante no que diz respeito à divulgação do
hinduísmo, apesar de ter sofrido, da mesma forma que Helena Blavatsky, acusações que
colocavam em dúvida a confiabilidade de seus conhecimentos15. O interesse de Guénon,
contudo, para além deste tipo de discussão sobre sua obra, nos parece residir na forma
como as religiosidades orientais foram absorvidas por ele, fornecendo-nos, mais uma vez,
um exemplo de que a busca do Oriente empreendida pelo Ocidente nos dá elementos para
desvendar sobretudo o imaginário do próprio Ocidente. Assim, após anos de contato com
as tradições taoístas, hinduístas e sufistas16, a concepção apresentada por Guénon sobre
realização espiritual, estará eivada de princípios claramente esboçados durante o
romantismo. Para ele, o principal objetivo da evolução espiritual seria “to lead one to the
attainment of one’s true destiny, namely, one’s real unification with one’s own essence:
‘become what you are’, which assumes that now we are not and that modern individuals
‘remain outside’ of their essences, which is precisely the meaning of the word existence
(from ex-sistere, ‘remain out of’)” (Borella, 1995, p.346).
Poderíamos então avançar, como marco cronológico tentativo para a
retomada de contatos entre Oriente e Ocidente ocorrido sob a égide da expansão
budistas no país a partir de 1880 (Sellon e Weber 1995:316); e as atividades na Índia de Annie Besant
(1847-1933), também seguidora da Sociedade, que fundou em 1898 uma de suas mais importantes
universidades, a Benares Hindu University, com o intuito de contribuir para a recuperação do hinduísmo
clássico, que considerava ideal em matéria de religião. O reconhecimento de Besant nos meios hindus pode
ser avaliado pelo fato de que sua militância em favor da independência da Índia levou-a a presidir o Indian
National Congress durante algum tempo. (Varrene, op. cit., p.278).
15
Os meios acadêmicos franceses sempre tiveram uma relação tensa com Guénon e sua obra,
considerando-a ela própria uma nova forma de ocultismo, sobretudo pela ausência de referências
confiáveis em relação às fontes utilizadas. Um bom exemplo disto foi a recusa, em 1921, de seu livro
Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues para obtenção de grau acadêmico na Sorbonne
(Borella, 1995, p.333-335). Apesar disto, seu reconhecimento nestes mesmos meios acabaria por ocorrer de
forma indireta, posteriormente, através da influência que seu trabalho iria exercer sobre um dos principais
estudiosos do hinduísmo na França, na segunda metade do século XX, o sociólogo Louis Dumont (ver a
este respeito Lardinois, 1995). Além do já mencionado Introduction génerale... Guénon também publicou
outros dois livros sobre o hinduísmo L’homme et son devenir selon le Vedânta e Études sur l’Hindouisme
(Feuga, Michaël, 1998, p.121).
16
A educação de Guénon em sua infância e adolescência na França incluiu estudos sobre estas três
tradições. Ao longo de sua vida, contudo, ele faria uma opção definitiva pelo sufismo, ao qual foi iniciado
em 1912, o que certamente influenciou sua decisão de tornar-se cidadão egípcio, em 1949 (Rawlinson,
1998, p. 71 e Borella, op. cit.., p. 334).
26
17
O Parlamento Mundial das Religiões, realizado paralelamente à Exposição Universal de 1893, foi uma
iniciativa de correntes liberais protestantes dos Estados Unidos, em que se buscou a participação de porta
vozes das principais religiões mundiais para falar. O evento, ainda que repudiado pelos grupos religiosos
mais ortodoxos tanto da Europa quanto dos Estados Unidos, representou um estímulo importante para o
prosseguimento dos estudos de religião comparada nos meios universitários daqueles países e para a
continuação da publicação de traduções de textos orientais (Ellwood, 1987, p.20). Recentemente, o
Parlamento tem sido avaliado como um marco do fim do triunfalismo protestante na América, e da
afirmação da perspectiva religiosa pluralista que ganhou corpo naquele país ao longo do século XX (Cf.
Seager, 1995).
18
Uma exceção notável a esta postura textual que preveleceu nas apropriações do Oriente realizadas ao
longo do século XIX, foi Richard Francis Burton (1821-1890). Este inglês, que falava mais de vinte
línguas e fez uma das primeiras versões para o inglês das Mil e Uma Noites e do Kama Sutra, teve uma
vivência profunda e pessoal do islamismo, convertendo-se ao sufismo. Burton, primeiro ocidental a fazer
uma peregrinação à Meca, pode ser visto como um precursor das viagens iniciáticas para o Oriente, vendo
a si mesmo como um peregrino, a quem “poucas coisas importavam além do objetivo místico”,
27
possibilitada pela instalação das primeiras instituições dirigidas por mestres orientais
voltadas para o ensino de suas religiões para devotos e discípulos ocidentais19.
“Brahman is the only reality in India, matter is the only reality in the
West; self-realization is the ultimate goal in India, power and
incorporando assim em sua própria vida uma das metas centrais do Mantiq ut-tayr, principal épico sufista
(Rice, 1990, p.469).
19
No caso do zen japonês, foi a participação de Soyen Sahku no Parlamento Mundial das Religiões que
ensejou a ida para os Estados Unidos de seu aluno D. T. Suzuki, figura decisiva para a difusão do zen no
Ocidente. Em 1896, Soyen organizou uma conferência que reuniu cristãos e budistas no Japão e foi outro
de seus discípulos, Sasaki Shigemitsu, que estabeleceu, em 1930, a primeira Sociedade Budista da
América, mais tarde conhecida como o First Zen Institute of New York (Ellwood, op, cit., p.21-22).
28
20
Swami Sivananda foi o fundador da Divine Life Society, movimento criado em 1937, em Rishikesh, que
se expandiu para o Ocidente no final da década de 1950.
29
estratégias de expansão de uma religião que, contudo, formalmente, não admitia praticar
o proselitismo21.
21
A presença do proselitismo dentro das tradições hindus, em que pese esta auto-imagem de neutralidade
religiosa, esteve presente na Índia pelo menos desde o final do séc. XIX, quando a introdução da prática do
suddhi, ritual de purificação originariamente destinado aos brâmanes, passou a ser usada como meio de (re)
conversão ao hinduísmo de cristãos e muçulmanos. No que diz respeito aos estrangeiros, a questão do
proselitismo e da conversão ao hinduísmo, não se colocaria, ao menos teoricamente, por entrar em conflito
com a própria concepção do que é ser hindu, algo que remete a um sistema não apenas religioso, mas
socio-religioso, estando associado apenas a quem nasce na Índia. Assim, conforme explicação de Hulin e
Kapani:
... “ce qu’on appelle l’hindouisme (mot crée par les anglais vers 1830) ne correspond pas à un domaine
séparé de la vie sociale, comme c’est le cas pour la religion de nos jours en Occident. L’hindouisme est
essentiellement et indissolublement un système socio-religieux. Le mot retenu en sanskrit (...) est dharma
ce qui, sans contredire l’idée de religion, signifie plus précisement le fondement cosmique et social, la
norme régulatrice de la vie. Il s’agit d’une loi immanente à la nature des choses, inscrite à la fois dans la
société au fond de chacun de nous. Poser à un hindoue la question: ‘Quelle est votre réligion?’ revient donc
à lui demander: ‘Quel est votre way of life?’Plus complètement, en effet, c’est le mot composé varna-
asrama-dharma qui définit le contenu de la religion hindoue, c’est à dire, outre la morale générale
(sadharana-dharma), les devoirs particuliers qui incombent à chacun en fonction de son appartenance à
telle ou telle classe sociale, en fonction de l’étape ou stade de vie où il se trouve et, bien entendu, de son
âge et de son sexe” (1993, p.375).
Contudo, no caso dos estrangeiros em busca de iniciação religiosa através das seitas hindus, a questão se
coloca de uma outra maneira:
“Un étranger, né des parents non hindoues, ne peut évidemment entrer dans ce système socio-religieux. Il
ne le demande d’ailleurs pas. Ce qui l’interèsse, c’est l’accès aux ashram, aux guru. C’est de devenir lui-
même un renonçant, un sannyasin, un guru. Ici la voie est parfaitement tracée: celle-là même qui suivent
ceux des hindoues qui ont renoncé à la vie familiale, avec les droits et devoirs qu’elle comporte, et sont
devenus des ‘morts sociaux’, aus sens de Louis Dumont.
Cela nous permet de clarifier la question du prosélytisme. A l’intérieur du système, elle ne se pose même
pas. En revanche, dans le cadre du renoncement, certains sadhu ou leurs émules occidentaux peuvent avoir
une activité missionaire. C’est le cas de la célèbre Ramakrishna Mission, fondée par Vivekananda, de
Maharishi Mahesh Yogi et de sa ‘méditation transcedentale’, de Sivananda, Yogananda et de nombres
d’autres guru, authentiques ou non, dont on entend parler en Occident” (Id., p.387).
30
22
A Missão Ramakrishna foi criada por Swami Vivekananda (1863-1902) em 1898, dois anos após a
morte de Ramakrishna (1837-1896). Com sede estabelecida em Belur Math, mosteiro às margens do
Ganges, próximo a Calcutá, a Missão tinha como duplo objetivo a salvação individual e a doação de
comida, educação e sabedoria espiritual para o povo. Esta perspectiva humanitária, de reforma social,
introduzida por Vivekananda, contrariava a visão de muitos monges do movimento, que viam a auto-
realização como único objetivo a ser buscado pelos devotos. (Jackson, 1994, p.31-32).
23
Praticamente todos os grupos que se deslocaram posteriormente para o Ocidente mantiveram sedes na
Índia, como o próprio Siddha Yoga, o Movimento Hare Krishna, a Divine Life Society e a Self Realization
Fellowship.
24
O Movimento Ramakrishna vivenciou alguns momentos de tensão nos Estados Unidos justamente em
torno desta questão, uma vez que as lideranças do movimento na Índia recusaram-se a aceitar a indicação
31
de discípulos ocidentais para a direção das Sociedades Vedanta nos Estados Unidos. O problema
explicitou-se claramente por ocasião da substituição de Swami Paramananda, falecido em 1940, quando
duas monjas norte-americanas, Gayatri Devi e Sister Daya, foram impedidas de substituí-lo na chefia dos
centros de Boston e Los Angeles (Jackson, op. cit., p.64).
25
O advaita vedanta é a principal escola do Vedanta, fundada por Shankara no séc. IX dc. Esta escola, não-
dualista, baseou seus ensinamentos na seleção de 14 Upanishades produzidos entre os séculos VIII e VI
a.c., de onde foi retirada a célebre frase tat tvam asi (“tu és isso”). Os Upanishades são considerados os
últimos Vedas, significado do termo “Vedanta”. Os primeiros hinos védicos remontariam a cerca de 1500
a.c.
32
a realidade última de Deus, não havendo por isto qualquer problema em relação à sua
utilização. Assim, comenta:
“The whole religion of the Hindu is centered in realization. Man is to become
divine, realizing the divine, and, therefore, idol, or temple, or church, or books, are only
suports, the helps, of his spiritual childhood.” E continua: “External worship, material
worship, says the Vedas, is the lowest stage, struggling to rise the high; mental prayer is
the next stage, but the highest stage is when the Lord has been realized”. Assim,
continua, “If a man can realize his divine nature with the help of an image, would it be
right to call it a sin? Nor, even when he has passed that stage, should he call it an error?”
(Id., p.59) .
O que é visto como idolatria por parte dos críticos do hinduísmo é analisado
por Vivekananda como parte de processos simbólicos essenciais ao funcionamento do
campo religioso, e, por isto mesmo, presentes em qualquer tradição, inclusive no
cristianismo:
“Why does a Christian go to church? Why is the cross holy? Why is the
face turned toward the sky in prayer? Why are there so many images in
the Catholic church? Why are there so many images in the minds of
Protestants when they pray? My brethren, we can no more think about
anything without the material image than we can no more live without
breathing. And by the law of association the material image call the
mental idea up and vice versa. (...)
As we find that somehow or other, by the laws of our constitution, we
have got to associate our ideas of infinity with the image of a blue sky,
or a sea, some cover the idea of holiness with an image of a church, or a
mosque, or a cross. The Hindus have associated the ideas of holiness,
purity, truth, omnipresence, and all other ideas with different images
and forms” (Id., p.58-59).
Com base neste raciocínio, considera que somente o hinduísmo, entre todas
as religiões, se preocuparia em contemplar os diferentes estágios espirituais das pessoas,
propiciando-lhes uma gama variada de mediações para a compreensão do caráter divino
da natureza humana, ao mesmo tempo em que critica a rigidez das religiões que
desconsideram as particularidades individuais ao apresentarem suas doutrinas:
35
“Every other religion lays down certain fixed dogmas, and tries to force
society to adopt them. They lay down before society one coat which
must fit Jack and Job and Henry, all alike. If it does not fit John or
Henry, he must go without a coat to cover his body. The Hindus have
discovered that the absolute can only be realized or thougth of or stated
through the relative, and the images, cross or crescent, are simply so
many centers, so many pegs to hang the spiritual ideas on” (Id., p.59).
“To the Hindu, man is not travelling from error to truth, but from truth
to truth, from lower to higher truth. To him all the religions, from the
lowest fetichism to the highest absolutism, mean so many attempt to the
hindu soul to grasp and realize the infinite, each determined by the
conditions of its birth and association, and each of these mark a stage of
progress, and every soul is a young eagle soring higher and higher,
gathering more and more srength till it reaches the glorious sun” (Id., p.
59).
É Robert Bellah quem nos chama a atenção, contudo, para o fato de que esta
abertura do hinduísmo e de outras tradições orientais para os aspectos simbólicos de
outras religiões, com a perspectiva pluralista dela decorrente, foi tomada muitas vezes no
Ocidente, errôneamente, como sinônimo de uma ausência de dogmas dentro destes tipos
de religiosidade:
expressões das duas tradições: “If the Hindu fanatic burns himself on the pyre, he never
lights the fire of inquisition. And even this cannot be laid at the door of religion any more
than the burning of witches can be laid at the door of Christianity” (Ellwood, op. cit.,
p.60).
O final do discurso se encaminha para a afirmação da pluralidade religiosa
como um valor a ser respeitado. A variedade de religiões corresponderia a diferentes
tipos de homens e circunstâncias, mas a mesma verdade estaria subjacente a todas elas:
“To the Hindu, then, the whole world of religion is only a traveling, a
coming up, of different men and women, through various conditions
and circunstances, to the same goal. (...) The contradictions come from
the same truth adapting itself to the different circunstances of different
natures.
It is the same light coming through different colours. And these little
variations are necessary for that adaptation” (Id., p.60).
26
Esta postura tolerante do hinduísmo apresentada por Vivekananda contrasta bastante com aquilo que se
vê hoje na Índia. As disputas religiosas ali, hoje, parecem decorrer em grande parte da transformação do
conceito de secularismo adotado pelo estado indiano após a Independência, quando se procurou fazer
coincidir a idéia de secularismo com o próprio hinduísmo. De qualquer modo, não há dúvida de que o
38
hinduísmo possui um discurso que permite às pessoas pensarem uma identidade religiosa plural, ao
contrário do que ocorre com outras grandes religiões.
39
27
O Projeto Prasad atua na área de assistência médica e social na região do vale do Tansey, no estado de
Maharashtra, prestando atendimento gratuito a uma população estimada atualmente em cerca de 40.000
pessoas. (THE Muktananda, 1994, p.1-2).
40
Vedanta , seja para implantar outros centros de difusão do hinduísmo visando um público
ocidental, também o tinham. Em muitos casos, o sucesso da atuação destes mestres
dependeu exatamente de seu grau de domínio das tradições ocidentais28.
Uma das consequências deste trânsito entre dois mundos culturais distintos, o
fenômeno de “obtenção de poder local através de objetos e experiências adquiridos em
proezas que transcendem as fronteiras culturais”, descrito por Sahlins (Ibid., p.129),
também não foi estranho ao caso da Índia, como bem pode ser observado nesta descrição
de Swami Yogananda sobre a acolhida recebida na Índia após retornar pela primeira vez
a seu país, depois de muitos anos de ausência:
“Chegando à estação de Howrah [Calcutá], encontramos tão imensa
multidão reunida para nos saudar que, por alguns momentos, nos foi
impossível descer do trem. O jovem Marajá de Kasimbazar e meu
irmão Bishnu encabeçavam a comissão de recepção; eu não me achava
preparado para o calor e a magnitude daquela acolhida”
(ParamahansaYogananda, 1981, p.347).
28
Parece ter sido este o caso, por exemplo, dos dois monges mais bem sucedidos do Movimento
Ramakrishna nos Estados Unidos, ambos com atuação no estado da Califórnia, os swamis Paramananda e
Prabhavananda. Este último foi o responsável pela iniciação de Christopher Isherwood e Aldous Huxley,
tendo traduzido para o inglês inúmeros textos tradicionais do hinduísmo ( Jackson, op. cit., p.61-64 e 116).
29
Entre os intelectuais mais expressivos ligados ao movimento, cujos livros iriam repercutir posteriormente
sobre o movimento da contracultura, podemos citar Aldous Huxley, Christopher Isherwood, Gerald Heard
e John Yale.
30
Segundo informação contida em Jackson, a maior parte dos grupos que convidavam os monges do
Movimento Ramakrishna para fazer palestras na primeira metade do século XX, estavam fora do
mainstream das Igrejas Cristãs. Levantamento realizado sobre Swami Paramananda, membro da segunda
geração de monges do Movimento a ir para os Eua, e considerado o que melhor se adaptou ao estilo de
vida americano, indica que metade dos locais onde ele realizou palestras eram ligados ao New Thought
Movement e a outra metade a grupos unitarianistas, teosóficos e rozacruzes. Este padrão seria alterado
drasticamente após a 2a Guerra Mundial, quando as Sociedades Vedanta entraram numa fase de
estreitamento de relações com muitas igrejas cristãs (Jackson, op. cit., p. 62-63).
31
Swami Vivekanada faleceu em 1902, na Índia, aos 40 anos de idade.
41
quadro abaixo, retirado do Census of Religious Bodies realizado em 1936 (apud Jackson
op. cit., p.108):
32
O Radhasoami Satsang, fundado por Shiv Dayal (1818-1878), foi outro movimento a estabelecer-se nos
Estados Unidos no começo do século, tendo chegado ao país em 1911. Seu crescimento, contudo, só viria a
a se tornar significativo na década de sessenta (Ellwood, op. cit., p. 38-39).
42
respiração, através das quais se pretendia entrar em contato com energias sutis do
universo, manifestadas no corpo mas não percebidas por nossa consciência ordinária.
Uma vez desencadeado este processo, a evolução espiritual seria intensamente acelerada.
Entre os sinais desta aceleração estaria a aquisição de poderes miraculosos (os siddhis),
tais como telepatia, conhecimento de vidas passadas e de acontecimentos do futuro,
materializações de corpos físicos, etc., assinalando o progresso em direção ao objetivo
final da krya ioga: a realização da alma como centelha divina de Deus (Id., p.600).
Em sua autobiografia, Yogananda apresenta-se como membro de uma
linhagem de avatares que teria tido início com Babaji33, a quem atribuiu a missão que
recebeu de expandir a mensagem do krya ioga no Ocidente. Esta explicação de cunho
essencialmente espiritual sobre as razões de sua vinda para o Ocidente permite
estabelecer diferenças significativas entre as perspectivas dos dois principais pioneiros na
“representação de si mesmos” no Ocidente, Yogananda e Vivekananda. Assim, embora
certamente não excluísse aspectos espirituais para explicar sua atuação nos Estados
Unidos, Vivekananda sempre se preocupou em situá-la para além dos motivos
propriamente religiosos, enfatizando as dimensões políticas e culturais envolvidas, nas
quais se manifestava claramente uma consciência sobre a necessidade de “representar-se
a si mesmos”, algo que, em Yogananda, aparece de forma bem mais diluída.
Por outro lado, este último conseguiu dar passos muito mais efetivos que
Vivekananda em direção à incorporação de discípulos ocidentais na condução do grupo,
algo que sempre despertou tensões dentro do Movimento Ramakrishna, apesar das
indicações de que tal prática era vista com bons olhos por Vivekananda. A expansão da
organização criada por Yogananda parece ter ocorrido nos Estados Unidos em meio a
uma passagem efetiva de sua liderança para membros ocidentais34 (Id., p.599-600),
33
Babaji também é considerado o guru de dois personagens centrais para a tradição hindu: Shankara
(séc.IX), cuja seleção de Upanishades serviria de base doutrinária para diversos grupos, e Kabir (séc. XV),
um dos santos mais criativos do hinduísmo, ao qual mesclou diversos elementos do misticismo islâmico
(Berry, 1996, p.54).
34
Após a morte de Yogananda, o comando da Self-Realization Fellowship, com sede em Los Angeles, e da
Yogoda Satsanga Society, na Índia, as duas principais organizações criadas por ele, foi assumido,
sucessivamente, por dois ocidentais, James Lynn (Rajarsi Janakananda) e Faye Wright (Sri Daya Mata)
(Rawlinson, op. cit., p. 233).
43
antecipando uma das marcas da segunda etapa de expansão das religiões orientais no
Ocidente a partir da contracultura.
Ao término desta primeira fase da “representação de si mesmos”, que
podemos localizar entre o Parlamento Mundial das Religiões e a eclosão da 2a Guerra
Mundial, estarão dadas todas as condições que serão acionadas no momento seguinte
deste contato entre o Ocidente e as religiosidades orientais, iniciado em meados dos anos
quarenta com a retomada do interesse pelo Oriente entre a Beat Generation. Neste
sentido, destacamos, por um lado, os elementos trazidos pelo desenvolvimento da
tradição romântica, sobretudo aqueles ligados a um interesse pela individualidade e seus
inúmeros percursos, aí incluídos os desdobramentos apontados pela autonomização do
campo psicológico35. Por outro lado, já estarão presentes também os aportes trazidos pela
vinda de mestres orientais para o Ocidente, valorizando, ao contrário da abordagem
textual que se verificara até a sua chegada, uma vivência prática das religiosidades
oriental, que estará no centro da retomada que se fará das mesmas a partir dos anos
quarenta.
35
Embora não tenham sido objeto de atenção até agora, os avanços na autonomização do campo
psicológico, sobretudo através da obra de Freud, seriam essenciais, como veremos na parte seguinte, para o
diálogo que se estabelecerá no Ocidente com as religiosidades orientais e para a forma como estas serão
absorvidas a partir da contracultura.
44
ressonância pública. Assim, para alguns, o marco inicial da Beat Generation seria o dia
13 de outubro de 1955, quando Allen Ginsberg, a convite dos participantes da
Renascença Literária, leu pela primeira vez em público seu poema “Howl”, em uma
galeria de arte de São Francisco (Tonkinson, 1995).
Os participantes da Beat Generation tiveram como ponto em comum uma
postura profundamente crítica em relação ao establishment36, manifestada através não só
de seus escritos, como também pela adoção de modos de vida alternativos aos oferecidos
pela sociedade americana que ainda vivia, naquele momento, a euforia do pós-guerra. A
Beat Generation deu início à “revolução das mochilas” (rucksack revolution), pregando
um modo de vida errante e desapegado dos bens e valores materiais, do qual o livro de
Kerouac, The Dharma Buns, seria a melhor expressão.
As continuidades entre as propostas da Beat Generation e as propostas dos
Transcendentalistas norte-americanos, de que trataremos a seguir, foram apontadas por
diversos estudiosos, o que não chega a ser surpreendente, se levarmos em conta que
Emerson e Thoreau foram referências diretas para muitos dos autores Beat. Estas
continuidades permitem-nos esclarecer, em grande parte, o significado da apropriação
que foi feita do Oriente por esta segunda geração de literatos norte-americanos a se
interessar pelas religiosidades da Ásia. E, mais do que isto, permitem-nos aprofundar a
compreensão sobre as raízes românticas comuns a ambas.
Um primeiro ponto de contato a ser destacado é o fato de que os dois
movimentos demoraram para ter seu legado espiritual reconhecido, o que pode ser
explicado pelo fato de terem se manifestado contra as ortodoxias religiosas de seu tempo,
sendo acusados, em suas respectivas épocas, de serem anti-religiosos. Assim, durante
muito tempo, as análises sobre eles limitaram-se a seus atributos literários. Desta forma,
assim como “many critics of the Transcendentalists saw their rejection [to traditional
Christianity and Unitarianism] as incontrovertible evidence that they were uninterested in
religion in general, (...) the Beats suffered a similar reputation as anti-religious enemies
36
A visão que o establishment, por sua vez, tinha sobre eles, pode ser apreciada neste retrato dos Beats
traçado pela revista Life: “Life magazine depicted the Beat’s refusal to ‘accentuate the positive’ as an
attempt to undermine all that was sacred in postwar America ⎯ ‘Mom, Dad, Politics, Marriage, the
Savings Bank, Organized Religion, Literary Elegance, Law, the Ivy League Suit, and Higher Education, to
45
of god and country, or, at best, as dilettantes, fashionable dabblers in the exotic East”
(Prothero, 1995, p.6). Este fato parece-nos indicar o quanto, passado já mais de um
século da presença das religiosidades orientais nos Estados Unidos, a adesão a elas ainda
carecia de legitimidade dentro da sociedade americana.
Na verdade, o aspecto espiritual dos dois movimentos tem sido cada vez mais
analisado como um traço central em ambos: “Like the Transcendentalists, the Beats were
far more than literay innovators or social critics; they were also wondering seekers of
mystical visions and transcendence. They went on the road because they could not find
God in the churches and synagogues of postwar America” (Id., p.19) .
Na base da rejeição de ambos os movimentos às correntes religiosas
tradicionais da América, encontraremos uma crítica similar no que diz respeito à “frieza”
de suas práticas, verificando-se que a queixa dos Transcendentalistas contra o “cadáver-
frio” do Unitarianismo reproduziu-se posteriormente entre os Beat no protesto contra a
insensibilidade da fé católico-judaico-protestante do período Eisenhower.
Contudo, não se pode esquecer ⎯ em que pesem estas semelhanças naquilo
que seria, de certa forma, uma busca pelo carisma no campo religioso ⎯ de uma
diferença marcante entre os dois movimentos, que estabelece um verdadeiro divisor de
águas entre eles. Se, para os Transcendentalistas, a relação com o Oriente se deu em
bases essencialmente textuais, na Beat Generation este approach é transformado em uma
relação que privilegia a prática das religiosidades orientais. Assim, não foi incomum na
trajetória das lideranças da geração Beat a conversão à vida monástica dentro de alguma
das tradições religiosas orientais, como nos casos de Philip Whalen e Gary Snyder, que
chegaram a se tornar monges zen. Afora isto, as viagens ao Oriente e a permanência em
ashrams e mosteiros se tornaria uma das metas mais caras à geração da Contracultura e
uma de suas marcas principais37.
say nothing of the Automatic Dishwasher, the Cellophane-wrapped Soda Cracker, the Split-Level House
and the clean, or peace-provoking H-bomb’ ” (Prothero, 1995, p.8).
37
Antes da Contracultura, um número pouco expressivo de ocidentais havia empreendido este tipo de
viagem, de caráter iniciático, ao Oriente. Entre eles, à parte o grupo ligado à Sociedade Teosófica,
podemos mencionar alguns discípulos norte-americanos e ingleses de Vivekananda e Yogananda; a ida da
francesa Mira Richard para a Índia, aonde se tornaria líder da comunidade de Auroville, em Pondicherry,
ao lado de Sri Aurobindo, sob o nome de A Mãe; o inglês Paul Brunton, discípulo de Ramana Maharishi,
que escreveu vários livros sobre suas buscas espirituais e experiências de meditação na Índia; e o escritor
alemão Herman Hesse, que, embora sem passar por um processo de conversão semelhante ao dos demais,
46
também escreveu sobre sua viagem à Índia e inspirou vários de seus romances nas religiosidades orientais,
contribuindo de forma marcante para a difusão do interesse sobre elas no Ocidente. O francês Romain
Rolland, através de seus livros analisando as trajetórias de Ramakrishna e Vivekananda, foi outro escritor
cuja obra atuou numa direção similar a de Hesse.
47
their sense of the prophetic role of the poet, and their disdain for ‘foolish consistencies’ ”
(Prothero, op. cit., p.7).
Explicar este novo surto romântico, em pleno século XX, nos leva de certa
forma a pensar, segundo Colin Campbell, sobre as razões da adesão de uma parcela
expressiva de jovens ocidentais ao mágico, ao mistério e às religiões exóticas durante a
Contracultura, algo que parecia contrariar as previsões de alguns clássicos da sociologia,
sobretudo Weber, que imaginara uma progressão constante da sociedade moderna em
direção à racionalidade, ao materialismo e ao secularismo (1995, p.3)38. Para Campbell,
dar conta de algo tão inesperado estaria relacionado à percepção das relações entre a
Contracultura e os pressupostos românticos:
38
Aldous Huxley foi um dos autores que melhor formulou em sua obra esta transformação das expectativas
secularizantes sobre o que seria uma era pós-cristã no Ocidente. Segundo Roszak, é exatamente esta
transformação que está em jogo em dois de seus livros, O Admirável Mundo Novo e A Ilha. No primeiro,
ainda da década de trinta, deparamo-nos com a descrição de um futuro dominado por “uma cultura
inteiramente secularizada, (...) materialista, sinistra e sombria em sua obsessão por cultura tecnológica”
(1972, p.144). No segundo, já da década de cinquenta, foi como se “de súbito ele visse brotar a nova
possibilidade: o que jazia além da era cristã e da ‘terra árida’ que a sucederia talvez fosse uma nova
revivescência religiosa de caráter eclético” (Id., 144).
48
Este trecho de Bellah nos fornece uma pista importante para a compreensão
de uma outra maneira pela qual as religiosidades orientais serão apropriadas pela
Contracultura, além do já mencionado aspecto da busca por uma uma “nova
consciência”. Aqui estaríamos diante de uma visão do Oriente em que este aparece como
símbolo da contestação ao establishment e aos principais valores e instituições do
Ocidente ⎯ a igreja, a família e o estado. Esta visão, na verdade, não se desvia de outros
tipos de apropriação feitos anteriormente do Oriente como o outro do Ocidente, a um
modo contracultural, isto é, afirmando valores não hegemônicos dentro da própria cultura
Ocidental.
Desta forma, as apropriações que serão feitas do Oriente durante a
Contracultura, da mesma forma que todas as demais até então, estarão sujeitas ao mesmo
núcleo de questionamento: até que ponto traduzem realmente o Oriente de que se fala, ou
até que ponto evidenciam apenas traços do próprio Ocidente que se quer afirmar
recorrendo à imagem de um outro? É Roszak quem levanta esta discussão a propósito da
Beat Generation e de seus seguidores, propondo uma resposta que reforça a idéia do
recurso ao outro como estratégia para a elaboração das próprias questões:
“É inquestionável (...) que os beats de São Francisco, e grande parte da
geração mais jovem que os seguiu, pensaram ter encontrado no Zen alguma coisa de que
49
sessenta em relação ao da década de trinta. Neste último, ele expressou-se em uma poesia
eivada de conotações sociais, em contraposição à produção poética de Allen Ginsberg,
por exemplo, cujo protesto, segundo Roszak, “não emana de Marx [mas] flui, ao
contrário, para o radicalismo extático de Blake” (Id., p.133) .
As características desta poética místico/política da Beat Generation indicam
mais um ponto de contato entre esta e o ethos construído a partir do Romantismo. Neste
caso, a convergência se dá muito mais pela escolha do método como ela é produzida do
que propriamente por seu conteúdo. Tratar-se-á aqui da valorização de um estilo
improvisatório em que se busca uma forma de arte que não tenha o intelecto como
mediador. Esta, tal como as produções românticas descritas por Zengotita, “sacrifices all
frozen postures to irruptions of genius and immanent spirit; to it belong the radiant
moment, the noumenal touch” (1989, p.75). Por este motivo, entre outros, a
Contracultura é percebida como representando um “extraordinário abandono da arraigada
tradição de intelectualidade secular, cética, que constituiu durante trezentos anos o
principal instrumento de trabalho científico e técnico do Ocidente” (Roszak, op. cit.,
p.147), algo que, sem dúvida, já se delineara no Romantismo.
No terreno da sexualidade, assim como no do estilo de fazer política, a
Contracultura também se apropriará do Oriente de uma forma nova em relação ao que se
verificara até então. Assim, se o vedantismo dos anos vinte e trinta sempre fora
severamente contemplativo no sentido mais ascético do termo e as novelas de Herman
Hesse reproduziram esse ethos de etéreo assexualismo, nada chamaria tanto a atenção no
novo orientalismo que seu sabor fortemente sexuado apoiado sobretudo nos textos da
tradição tântrica (Cf. Roszak, ibid., p.141). Esta questão é explicada por Roszak a partir
de uma tentativa de caracterização do misticismo da Beat Generation como um
misticismo que não seria nem escapista nem ascético, mas “bastante mundano: um êxtase
do corpo e da terra que de algum modo abranja e transforme a mortalidade” (Id., p.136).
O início dos anos sessenta, considerados como o marco final da Beat
Generation, irão assistir à eclosão de um momento novo de apropriação do Oriente,
pautado não mais apenas por um viés sócio-político, de contestação ao establishment39,
39
Segundo Allen Ginsberg, a herança da Beat Generation poderia ser resumida nos seguintes pontos:
“Spiritual liberation; sexual revolution of liberation, i.e. gay liberation, catalyzing black liberation,
51
women’s liberation, gray panther liberation; liberation of the Word from censorship; demystification and/or
decriminalization of some laws against marijuana and other drugs; spread of ecological conciousness
emphasized early by Snyder and McClure; opposition to the military-industrial machine civilization; return
to appreciation of idiosyncrasy as against state regimentation; respect for land and indigenous peoples; less
rich conspicuous consumption; Eastern thought (and meditation); non-theism, no cosmic fascism, or thus,
cosmic antifascism; candor/frankness: end of secrecy and paranoia fear from CIA, KGB, nuclear secrecy,
through to sexual secrecy, on a continuum” (Ginsberg, 1982, p.50 apud Watson, 1995, p.304).
40
Segundo Carozzi, Esalem constituiu uma experiência comunitária centrada em uma “combinación de
prácticas en que la autonomia individual se ve asociada a la atención al presente, la espiritualidad oriental,
el éxtasis y las experiencias pico, la ampliación de la consciencia, el desarollo de la sensibilidad, el
movimiento no dirigido, la atención a las sensaciones, y el contato corporal, la actualización de
potencialidades, la armonia com la naturaleza y la creencia en la energia universal” (1998, p.5-6).
41
Aldous Huxley e Gregory Bateson foram alguns dos mentores, juntamente com Murphy, do Esalem
Institute (Carozzi, op. cit., p.5).
52
42
Ampliando este raciocínio, Danièle Hervieu-Léger comenta que uma corrente da sociologia sobre os
Novos Movimentos Religiosos inscreveu-se nesta mesma linha de reflexão, associando os assim chamados
“surtos emocionais contemporâneos”, que os caracterizariam, a um processo mais amplo de
“dessecularização”, cuja origem seria em parte detectável na inaptidão da modernidade para realizar suas
promessas de progresso ilimitado (1997, p.40-41).
54
43
Françoise Champion não utiliza o termo Nova Era, preferindo a este o conceito de “novas religiosidades
místico-esotéricas”.
55
44
Carozzi considera que a análise da evolução das concepções sobre autonomia fornece uma chave
importante para acompanhar os movimentos culturais que se estenderam da Contracultura até a Nova Era.
Ao longo deste período, teria ocorrido uma transformação destas concepções que estariam associadas, em
um primeiro momento, a uma autonomia dos sujeitos em relação às instituições tradicionais do Ocidente;
em seguida a uma autonomia individual entendida em um nível mais psicológico, em que se busca a
autorealização dos sujeitos; e, finalmente, a transcendentalização da autonomia, que se associa à Nova Era
(op. cit.). Embora não me pareça que estes três tipos de concepção da autonomia constituam
necessariamente etapas sucessivas, uma vez que, muitas vezes, eles estarão presentes simultaneamente,
embora com graus de intensidade diferentes, a tipologia das concepções de autonomia proposta por
Carozzi é bastante útil para a compreensão das propostas dos movimentos sociais (religiosos ou não) que
se articulam a partir da experiência da Contracultura.
57
45
Em artigo sobre as concepções cristã e moderna da pessoa, Duarte e Giumbelli analisam os componentes
cristãos que irão compor a trajetória em direção à construção da interioridade no Ocidente (1995).
46
Segundo a análise proposta por Ernst Troeltsch, um modelo de religiosidade de tipo místico, organizado
nos interstícios das instituições religiosas cristãs sob a forma de rede, constituindo uma espécie de “igreja
invisível”, teria se firmado progressivamente a partir do século XVI no Ocidente, pautando-se justamente
em aspectos que seriam valorizados a partir da Contracultura através da apropriação das religiosidades
orientais. Assim, entre suas características principais, teríamos o apelo a um certo tipo de individualismo
que aciona não a vontade, como nas religiosidades de seita, mas uma experiência afetiva íntima. Este tipo
místico insistiria, portanto, sobre o valor da experiência religiosa direta, considerada não apenas como algo
que acompanha e sustenta as crenças, mas como o próprio princípio de acesso ao divino. Ele se oporia,
assim, à objetivação da experiência em atos regrados, em ritos que valem por si mesmos, em mitos ou em
dogmas obrigatórios (Champion, 1993, p.760).
58
Ocidente deveria se fazer pela via do esoterismo cristão. É Gehard Wehr quem comenta
esta questão:
“A incorporação e desenvolvimento de aspectos reflexivos associados
ao devocionalismo47 parece explicar em parte o sucesso da
incorporação destas tradições orientais no Ocidente, algo que até bem
recentemente não parecia ser possível, como demonstra a avaliação
feita pelo psicólogo C. G. Jung, um dos principais responsáveis pela
difusão de textos orientais no Ocidente no século XX, e ele mesmo
profundamente interessado nas proposições das religiões orientais. Para
Jung, os ocidentais (identificados basicamente aos europeus) deveriam
buscar o autoconhecimento através das sabedorias européias e não da
sabedoria oriental, acreditando ser impossível para aqueles assimilarem
religiosidades como a ioga, por exemplo, em razão da dicotomia
estabelecida no Ocidente entre fé e conhecimento, e entre revelação
religiosa e conhecimento obtido através do pensamento” (1995, p.390,
tradução minha).
Assim:
47
Examinarei em detalhes estes aspectos reflexivos associados ao devocionalismo, no caso da prática do
siddha ioga por adeptos ocidentais, no capítulo 3.
59
que a seu ver se daria a partir do esoterismo cristão, considerado por ele como mais
adequado aos pressupostos psicológicos ocidentais ( Wehr, op. cit., p.391-392).
Jung atribuía um papel central à experiência no campo religioso, mas nem por
isso concluía que o Ocidente deveria buscá-la no Oriente, aonde sua valorização era tão
generalizada. Sua crítica às posições teológicas dentro do cristianismo que obstaculizam
o acesso à experiência aparece claramente no seguinte trecho:
“Eu tive certeza de que nenhum dos teólogos que conheci jamais viu ‘a
luz que brilha na escuridão’ com seus próprios olhos, porque se o
tivessem feito não teriam sido capazes de ensinar uma ‘religião
teológica’, que sempre pareceu bastante inadequada para mim, desde
que não deixa outra esperança a não ser acreditar nela. (...) O grande
pecado da fé, a meu ver, foi ter frustrado a experiência” (Jung apud
Wehr, ibid., p.394).
Assim, sua postura será no sentido de valorizar, junto aos teólogos cristãos,
com quem manteve intensa correspondência, a recuperação da busca pela interioridade
pela via do cristianismo primitivo. Segundo Wehr, seu principal mérito como psicólogo,
independente da questão de como ele compreendia o conceito cristão de fé, foi indicar
para a teologia de sua época um caminho para entender o cristianismo não apenas como
uma doutrina teológica ou como norma ética, e sim como uma possibilidade única de
vivenciar pessoalmente um processo de mudança e de busca de um caminho interior.
Assim parecia-lhe que: “(...) a principal tarefa daqueles que preparam almas atualmente é
mostrar às pessoas o caminho para obter a experiência primal que Paulo, por exemplo,
encontrou mais claramente na estrada de Damasco. Em minha experiência, este caminho
só se abre no processo de desenvolvimento da alma individual” (Id., p.394).
O cristão esotérico, categoria na qual Wehr situa Jung, tornar-se-ia então o
inaugurador de uma “teologia profunda”, isto é, de uma teologia que participa desta
extensão da consciência que não se limita à base racional do trabalho exegético-teológico
e que não se esgota nas atividades políticas e sociais caritativas, mas que está aberta à
dimensão de uma espiritualidade profunda, ao Cristianismo esotérico. Para ele, somente
com uma transformação da consciência seria possível mudar as relações externas, isto é,
as relações interpessoais. A mudança, assim, começaria de dentro (Id., p.394-395).
60
48
Neste sentido, é significativa a presença de psicólogos de formação junguiana dentro do Siddha Yoga.
61
49
Segundo a análise da Nova Era desenvolvida por Leila Amaral Luz, o “espírito do consumo”, tal como
entendido por Campbell, isto é, a busca sempre renovada da satisfação de desejos que se torna um fim em
si mesma, seria um dos traços constitutivos da Nova Era, respondendo pela realização infindável de
experiências em tradições religiosas diversas que constitui uma das marcas centrais das trajetórias de seus
adeptos (1998).
62
A vinda do Siddha Yoga para o Ocidente, no início dos anos 70, assim como
a vinda de diversos outros grupos e gurus de origem indiana para o Ocidente no pós-
guerra50, estará informada por todo o fenômeno da Contracultura analisado no ítem
anterior. Esta vinda teve como pano de fundo profundas transformações na própria Índia,
que havia obtido sua independência em 1947. Registramos este fato na tentativa de
chamar atenção para a diferença que se coloca, neste sentido, entre as motivações dos
primeiros renunciantes indianos a se deslocarem para o Ocidente, no final do século XIX,
marcados pelas questões formuladas no âmbito da Renascença Hindu, em que se buscava
afirmar uma identidade hindu dentro e fora da Índia, para este segundo momento de
deslocamento para o Ocidente, já no pós-guerra, em que a Independência do país
colocava em cena um tipo inteiramente diverso de questões.
50
Podemos mencionar entre os mais importantes ⎯ afora o próprio Swami Muktananda, introdutor do
Siddha Yoga no Ocidente em 1970, cuja trajetória será examinada detalhadamente posteriormente ⎯
Swami Chidananda, que iniciou em 1959 a divulgação no Ocidente da Divine Life Society, fundada em
1936 por Swami Sivananda Saraswati; Maharishi Mahesh Yogi, que criou a Meditação Transcendental em
1956, e começou sua divulgação a partir de 1958 na Inglaterra e de 1961 nos Estados Unidos; Swami
Prabhupada, que chegou aos Estados Unidos em 1965, aonde fundou, no ano seguinte, a Society for
Krishna Consciousness (ISKCON); Balyogeshwar, que estabeleceu a Divine Light Mission nos Estados
Unidos em 1970, dez anos após a criação do grupo na Índia por seu pai, Shri Hans Ji Maharj; e Acharya
63
religião de estado, o que se viu, posteriormente, foi uma tendência à releitura deste
secularismo, transformado em sinônimo de hinduísmo, a partir do argumento de ser ele
próprio uma religião secular, já que não impedia a manifestação de outras.
Segundo a análise de Lise McKean, esta tendência já se consolidara
inteiramente na cena indiana na década de 1980, quando
Neste sentido, a evolução das relações entre religião e política na Índia terão
conseqüências diretas sobre o papel que os movimentos sectários hindus passarão a
desempenhar no cenário político indiano:
“The interrelations between Hindu religious organizations and the
political economy of India are complex and historically variable. The
ideological and material profits to be gained from supporting gurus and
Hindu religious organizations are today greater than they had been in
Rajneesh, que iniciou o Movimento Rajneesh em 1974, em Puna, e fundou a Comunidade de Rajneesh
Puram, no Oregon, nos Estados Unidos, em 1981 (Hummel, 1983; Mangalwadi, 1992; Rawlinson, op. cit.).
64
51
Este tipo de estratégia foi particularmente visível em anos recentes no Movimento Hare Krishna, no Rio
de Janeiro. A venda de livros e incensos produzidos pelo grupo em ônibus de grande circulação na cidade
65
apenas como uma religião, strictu sensu, por ser, mais do que isto, um sistema sócio-
religioso, seu conteúdo propriamente religioso, contudo, não pode ser minimizado. Esta
questão é apresentada em Kak da seguinte forma:
“The first issue that confronts the modern Hindu is that of self image.
Due to an infortunate posturing Hindus often claim that theirs is not a
religion but rather a way of life and that Hindus do not believe in
conversion. Both these premises are false and indefensible, Hinduism is
a religion based on the illuminations of the Vedic rishis, as expressed in
the Vedas, the Upanishads, the Bhagavad Gita and the Shaivic agamas.
With its emphasis on self-knowledge the Hindu tradition celebrates
diversity, but the unity underlying this diversity is apparent to each
Hindu and any objective outsider” (1990, s/n).
Em seguida, o autor critica aquilo que considera ser uma imagem criada pela
“ortodoxia da fraturada sociedade hindu do século XIX”, a de que o hinduísmo não visa a
conversão:
“The claim about not wishing to convert others betrays insincerity if not
irrationality (...). This claim is not validated by the history of Hinduism
otherwise how would it have spread from Palestine (remember the
Mitannnis in the second millenium B.C.) to East and Southeast Asia?
This false interpretation was fostered by the ortodoxy of the fractured
Hindu society of the nineteenth century and it has led to an aloofness
and self-absorption that is morally and ethically wrong besides being
against its own tradition. Hinduism has had a rich history of conversion
through persuasion, debate, and shastrartha.” E conclui: “The way of
Hinduism is different from that of Christianity and Islam, and not to
acknowledge this is not being truthfull” (Ibid., s/n).
tornou-se uma das formas principais de propaganda e obtenção de recursos do grupo, sendo sempre
precedida por um discurso em que os devotos se apresentavam como “estudantes de filosofia” em busca de
recursos para seus estudos. Embora, a rigor, isto não fosse uma mentira, certamente não deixava de ser
também uma maneira de encobrir os aspectos religiosos do grupo em benefício de uma imagem que talvez
lhes parecesse mais palatável para o público urbano em geral. Neste sentido, também parece significativo o
fato de que os devotos, nestas ocasiões, não se apresentavam trajando as tradicionais túnicas cor-de-laranja
do grupo, mas roupas absolutamente seculares, blue jeans, camisetas e bonés que ocultavam as cabeças
raspadas, marca também típica dos devotos do movimento Hare Krishna.
66
Apesar desta análise não poder ser tomada como representativa do conjunto
das visões sobre a expansão do hinduísmo dentro da sociedade indiana hoje, ela me
parece significativa, entretanto, por indicar aquilo que poderia ser tomado como um
segundo viés no que diz respeito à “representação de si mesmos” iniciada no final do
século XIX . Se, naquele momento, as necessidades de afirmação da identidade hindu
parecem ter levado a um certo tipo de “concessão” no que diz respeito à flexibilidade na
incorporação de outras tradições, sobretudo quando se tratava de uma busca de adesão
fora da Índia ⎯ algo que se verifica tanto na Missão Ramakrishna quanto na Self-
Realization Fellowship ⎯ em um segundo momento, pós-independência, estas
flexibilizações não teriam mais razão de ser. Os conflitos vivenciados por visitantes
cristãos do ashram da Divine Life Society na Índia, descritos por McKean, parecem
apontar nesta direção (Op. cit.).
Na verdade, mais do que uma sucessão no tempo, que implicaria no
desaparecimento de uma posição em detrimento da outra, o que parece estar em jogo, do
final do século XIX para cá, é uma convivência destas duas posições dentro do
hinduísmo, uma mais voltada para os ditames do nacionalismo hindu, tal como postulado
por organizações como o Vishva Hindu Parishad, e outra que enfatiza mais o
universalismo das práticas religiosas hindus (Id., p.164).
As seitas hindus que se deslocaram para o Ocidente estariam, em sua maior
parte, enquadradas neste segundo caso. Assim, se sua permeabilidade a figuras centrais
da doutrina cristã pode ser tomada como parte de uma estratégia de expansão, cujo
modelo, gestado no final do século XIX, ainda serviria de guia para grupos como o
Siddha Yoga, isto não significa, por outro lado, que se deva deixar de reconhecer o
67
conteúdo , de fato, mais permeável das concepções religiosas hindus a outros credos52, e,
a partir daí, o surgimento efetivo de uma possibilidade mais ampla de diálogo com outras
tradições religiosas.
Apesar de reconhecer as duas posições acima mencionadas dentro do
hinduísmo, uma mais nacionalista e outra mais universalista, parece-me que a análise de
McKean não contempla aspectos importantes relativos às condições e contextos de
produção das mesmas, o que a leva a adotar explicações em que a lógica do presente
parece se impor sobre o passado. Assim, ao analisar uma figura como a de Vivekananda,
ela o faz à luz dos parâmetros do nacionalismo hindu tal como colocado hoje, como se o
sentido do discurso de Vivekananda no início do século tivesse as mesmas implicações
do discurso nacionalista hindu atual. Ao fazer isto, ela parece justamente assumir a
versão que os nacionalistas hindus de hoje produziram sobre Vivekananda: a de que ele
teria sido um “pai” do movimento, e matriz de suas principais idéias. Sem perder de vista
possíveis continuidades do discurso nacionalista hindu na Índia do período da
Renascença Hindu até os dias de hoje, me parece que ignorar seus respectivos contextos
históricos apaga diferenças importantes. Neste sentido, por exemplo, creio que fica
obscurecido o sentido progressista da atuação de Vivekananda, num momento em que
estava em jogo a discussão das consequências da dominação britânica na Índia e o papel
do cristianismo missionário dentro dela, ou, para usar os termos de que me servi para
nortear as discussões deste capítulo, quando estava em jogo a passagem decisiva de “
precisarem ser representados” para a “representação de si mesmos”. Tal fato reveste o
sentido do nacionalismo hindu proposto por Vivekananda de um caráter inteiramente
distinto, obviamente, daquele que se coloca hoje.
52
De fato, poder-se-ia dizer que a própria concepção do divino nas tradições hindus enseja um tipo de
proselitismo menos agressivo do que o de outras religiões. Sobretudo no caso de suas vias místicas, em que
há o reconhecimento de que experimentar a realidade divina é mais importante do que a variedade de
formulações sobre ela.
68
de rotulá-las apriorísticamente como ligadas a uma falsa consciência dos atores, e, por
isto mesmo, pouco dignas de exame.
O cerne da crítica de McKean, no caso da Divine Life Society, poderia ser
estendido a todos os tipos de organizações sectárias hindus modernas, entre as quais o
Siddha Yoga (que, como aquela, mantém-se funcionando na Índia e no Ocidente ao
mesmo tempo). Para essa autora, a ênfase dos gurus em uma espiritualidade
transcendente se prestaria a eximir sua clientela de classe média de encarar o papel que
suas atividades econômicas e crenças socio-religiosas desempenham na criação dos
horrores sociais e econômicos que a cercam. Além disto, contribuiria também para
desviar a atenção das “transações econômicas oportunísticas” que os gurus utilizam para
atrair riqueza para si mesmos. E, finalmente, serviria para apoiar um nacionalismo hindu
chauvinista que se orgulha de ser “tolerante” enquanto trabalha ativamente para minar os
interesses das em numerosas minorias marginalizadas da nação indiana. Ainda que todos
estes fatores estejam presentes ⎯ e os dados reunidos por McKean sobre a Divine Life
Society são bastante sugestivos nesta direção ⎯ apontá-los sem levar em consideração o
que é oferecido aos devotos em termos de experiência religiosa e como eles a recebem e
reelaboram para si, só leva a obscurecer pontos essenciais implicados no fenômeno.
contato com a sociedade colonial britânica, que teria, digamos assim, como que
“contaminado” a sociedade indiana com alguns de seus valores (op. cit., p.18-19). Com
isto, não se pode dizer que apenas os gurus que vieram para o Ocidente teriam um perfil
“mercantilizado”, uma vez que este ethos já teria sido construído antes de seu
deslocamento, dentro da própria Índia e entre os próprios devotos hindus.
Apesar disto, parece não restar dúvida de que a vinda de gurus para o
Ocidente a partir da Contracultura fez com que este ethos passasse por uma significativa
acentuação, em que pese o caráter inicialmente crítico dos movimentos alternativos à
sociedade de consumo. Prova disso são as numerosas lojas dentro dos centros de
meditação do Siddha Yoga hoje, que respondem por um comércio expressivo de artigos
religiosos e pára-religiosos, bem como as queixas de ex-devotos sobre a quantidade de
“quinquilharias” que acabam comprando em momentos depois considerados como de
“descontrole”.
Um outro aspecto em se que evidenciaria esta via de mão dupla, em que os
grupos sectários que se deslocam para o Ocidente parecem absorver aspectos da cultura
em que se instalam, diz respeito à adoção de técnicas emprestadas à psicologia. Assim, se
uma das marcas principais da apropriação das religiosidades orientais no pós-Guerra, da
Contracultura à Nova Era, foi sua combinação a elementos da psicologia desenvolvida no
Ocidente, este processo teve como contrapartida a adoção de diversas técnicas da
psicologia no interior de muitos dos grupos sectários hindus53 que se estabeleceram no
Ocidente. No Siddha Yoga esta questão é particularmente visível, podendo ser observada
tanto em procedimentos utilizados durante as cerimônias do grupo, como no seu preparo
e nos cursos regularmente oferecidos54.
Outros campos em que se poderia distinguir uma “ocidentalização” dos
grupos orientais que saem da Índia, são os aspectos gerenciais e de mídia, bem como os
53
Um grupo em que este aspecto se desenvolveu de forma particularmente significativa foi o de Rajneesh.
Para maiores informações a seu respeito, ver o trabalho de Heelas e Thompson (1986).
54
Um exemplo disto é um mecanismo recorrente utilizado nas cerimônias, de agrupar os devotos em
pequenos grupos para trocarem entre si experiências de contemplação e em seguida apresentá-las ao
conjunto dos presentes. Estes exercícios, que lembram técnicas de dinâmica de grupo bastante utilizadas na
psicologia, são realizados em cima de temas propostos pelo condutor da cerimônia, como por exemplo,
pensar-se sobre uma situação em que se viveu uma experiência de amor incondicional, e em seguida
discuti-la dentro do grupo. Ao final, sempre se retira uma conclusão geral, que reforça aspectos
doutrinários.
71
de tecnologias de comunicação adotados. No caso do Siddha Yoga, tem sido cada vez
mais frequente, por exemplo, a realização de cursos intensivos satelitizados, que ocorrem
simultaneamente em todos os centros do grupo no mundo a partir da transmissão por
satélite de cerimônias realizadas em South Fallsburg. Este método permite que haja uma
interatividade entre os diferentes centros durante as transmissões, com perguntas feitas de
quaisquer dos locais conectados sendo respondidas diretamente e ao vivo pelos
condutores das cerimônias nos Estados Unidos. No campo gerencial, o Siddha Yoga é
administrado através de modernos procedimentos cujas diretrizes são estipuladas em
South Fallsburg e incluem a complexa organização e contabilidade dos centros de
meditação implantados nos diversos países em que o grupo atua, bem como a
organização de viagens dos monges e do guru pelos diversos centros. Como se percebe,
parecem já ter sido deixados para trás, há muito tempo, os ideais contraculturais que se
opunham aos valores da sociedade industrial de massas que marcaram a primeira fase de
apropriação das religiosidades orientais no pós-Guerra.
Neste sentido, constatamos uma convergência com a análise de Bellah, no
que diz respeito a uma espécie de “domesticação” dos movimentos que se seguiram à
Contracultura e ao papel das religiões orientais na adaptação de jovens ao modelo social
originalmente contestado por ela. Segundo ele, os movimentos dos anos 70,
“especialmente os explicitamente religiosos, foram, em um sentido bastante literal,
unidades de sobrevivência. Forneceram um conjunto social estável e um conjunto
coerente de símbolos para jovens desorientados pela cultura da droga ou desiludidos com
a política radical. O que Synanon reivindica ter feito pelos viciados em drogas pesadas,
os grupos religiosos ⎯ dos zen budistas aos Jesus people ⎯ fizeram pelos ex-hippies.
(....) Gregory Johnson chama atenção, em relação a esta função, explicitamente para a
Krishna Consciousness Society, que se desenvolveu em meio à desintegração de Haight-
Ashbury como uma utopia hippie. O aspecto de missão-resgate dos movimentos
posteriores alcançou resultados tangíveis. Em muitos casos, a reconciliação com os pais
foi facilitada pelo estilo de vida mais estável e pela ideologia religiosa que propunha a
aceitação e não o confronto. Desenvolveu-se uma orientação nova e mais positiva para
com os papéis ocupacionais.” (Op. cit., p.28, grifos meus).
72
O Siddha Yoga, como diversos grupos de origem oriental, nada mais tem de
“contracultural” neste sentido, direcionando-se muito mais hoje em dia para uma
perspectiva de adequação à sociedade, conforme apontado por Bellah, do que para sua
contestação. Meditar não é apresentado como algo que retire ninguém do mundo, mas,
pelo contrário, como algo que torna os indivíduos melhor inseridos dentro dele. O que, de
certa forma, parece mais próximo ao sentido do hinduísmo tal como colocado no lugar
aonde teve origem: um sistema sócio-religioso muito mais voltado para uma atitude de
amoldamento ao mundo do que de intervenção dentro dele55. Este “Oriente” com que os
adeptos ocidentais do Siddha Yoga se relacionam hoje, nada mais tem a ver com um
“Oriente” associado à idéia de transformação do mundo. Nem mesmo de sua reforma.
Esta mudança não deixa de ser significativa se levarmos em conta que Swami
Muktananda, responsável pelo deslocamento do grupo para os Estados Unidos em 1970,
foi uma presença constante no circuito alternativo da época, dando palestras nos mesmos
locais por onde passaram figuras como Baba Ram Dass, Timothy Leary e o próprio Allen
Ginsberg. Se nesta fase inicial, as primeiras adesões ao grupo estiveram marcadas pelos
ideais e valores alternativos da Contracultura, o que se verifica hoje é uma adesão de
pessoas completamente integradas ao sistema ao grupo, e que não vêem nisto nenhum
ponto de tensão. Das técnicas de comunicação ao vestuário recomendado aos
frequentadores, que sugere trajes comportados como tailleur e blazer, caso não se queira
utilizar roupas indianas, nada parece lembrar os padrões alternativos consagrados nos
anos sessenta.
Assim, da mesma forma como a Nova Era ao dar continuidade a certos ideais
produzidos durante a Contracultura parece tê-los esvaziado de seus conteúdos mais
críticos em relação ao sistema, algo semelhante parece ter ocorrido na trajetória dos
grupos orientais que se instalaram no Ocidente. No caso do Siddha Yoga, o que se busca
hoje é fornecer meios aos adeptos para atuar da melhor forma neste mundo, tal como ele
é. Neste sentido, nada exprime melhor o novo ethos do que a explicação da doutrina da
shaktipat dentro do grupo. Este processo em que, segundo as tradições tântricas, se
55
Para uma apresentação detalhada sobre esta visão weberiana das religiosidades orientais como marcadas
por um ethos de amoldamento dos indivíduos ao mundo, em contraposição a um ethos de atuação e
superação dos indivíduos em relação à sua condição de vida neste mundo, presente sobretudo na versão
puritana do cristianismo, ver Goldman (1988).
73
verifica uma transmissão instantânea da graça do guru para o discípulo, capaz de produzir
o despertar da kudalini e dar início ao caminho espiritual do devoto, é descrito hoje, nas
cerimônias do grupo, como um presente de Swami Muktananda para o Ocidente,
preocupado com a economia de tempo representada por este processo para a vida agitada
e cheia de obrigações dos adeptos ocidentais. Com a shaktipat, estariam sendo poupados
a estes adeptos anos de práticas ascéticas. Assim, nada mais se torna um obstáculo para a
adesão: sem alterar seus hábitos ou seu estilo de vida, os devotos ocidentais têm a seu
alcance a chave para a entrada no mundo espiritual.
74
Nos termos do esquema proposto por Weber, poderíamos sugerir que o que
está em jogo nas novas formas de expressão religiosa no Ocidente é a busca daquilo que
ele definiu como religiosidades de tipo místico, a seu ver uma segunda via de acesso, ao
lado das religiosidades ascéticas, para os processos de interiorização.
56
Danièle Hervieu-Léger, tentando definir as características destes novos movimentos religiosos que vem
se afirmando na cena ocidental contemporânea a partir dos anos 60, afirma que “eles rejeitam o caráter
mumificado das formas de expressão autorizadas que as instituições religiosas oferecem aos fiéis. Eles se
opõem também à abstração das formulações dogmáticas e dos quadros rituais no interior dos quais as
instituições pretendem encerrar, para melhor controlá-lo, o dinamismo imprevisível da experiência
religiosa individual e coletiva. Esta crítica explícita ou implícita da ‘frieza’ das instituições religiosas e da
pouca atenção que elas dedicam às necessidades emocionais dos fiéis questiona, mais amplamente, a
dependência frente ao primado moderno da razão na qual as Igrejas progressivamente se colocaram. Todos
os movimentos religiosos emocionais contemporâneos fazem da perda da substância emocional da vida
comunitária a conseqüência do ajuste das instituições religiosas à regra do jogo de um campo religioso
separado e especializado. Eles contestam, explícita ou implicitamente, este amoldamento passivo à
modernidade que, longe de assegurar às igrejas a audiência social procurada, produziu, segundo eles, o
recalque massivo da própria experiência religiosa” (Op. cit., p.40).
57
A este respeito parece significativo o depoimento de uma ex-devota do Siddha Yoga que, criada no
catolicismo, retornou a ele depois de anos de dedicação à ioga para tornar-se monja beneditina: “Hoje,
olhando para trás, percebo que busquei (...) na ioga verdades contidas no catolicismo de uma forma mais
integral e completa, porém desconhecida para mim” (Sodré, 1998, p.6). Este desconhecimento me parece
revelar a falta de visibilidade das correntes mais místicas do cristianismo para a maioria de seus fiéis. Tanto
o desprestígio destas, como a tentativa de não enfatizar elementos mágicos de suas doutrinas, é explicado
por alguns autores como parte do esforço das igrejas tradicionais cristãs para não entrar em conflito com o
prestígio crescente das explicações científicas associadas à racionalidade moderna. Este raciocínio,
presente no texto acima citado de Hervieu-Léger (op. cit.), também se encontra em Frigério (1998).
76
“Weber viu duas maneiras através das quais isto pode ser feito
[estabelecer uma relação mais geral e compreensiva com o divino,
típica das religiões racionalizadas]. Uma é através da construção de um
código legal-moral, formal, conscientemente sistematizado, consistindo
de comandos éticos concebidos como tendo sido dados ao homem pelo
divino, através de profetas, escrituras sagradas, indicações miraculosas,
e etc. O outro é através do contato experimental individual, direto, com
o divino, através do misticismo, insight, intuição estética, etc.,
geralmente com o apoio de vários tipos de disciplinas intelectuais e
espirituais altamente organizadas, como a ioga. O primeiro approach é,
claro, tipicamente, embora não exclusivamente, do Oriente Médio [mid-
Eastern no original, e o que estou chamando de via ocidental]; o
segundo tipicamente, embora também não exclusivamente, do Oriente
[East Asian no original, que estou chamando de via oriental]” (1973,
p.173, tradução e grifos meus).
77
O que nos interessa contribuir para desvendar neste capítulo seriam então as
razões do crescimento do interesse no Ocidente por esta via que Weber definiu como
mais tipicamente oriental, ou, para usar os termos de Campbell, para pensarmos naquilo
que poderia ser qualificado como um processo de orientalização do Ocidente (1997).
Contudo, vale registrar que, se em Campbell, esta orientalização é definida sobretudo em
termos de um processo de imanentização da divindade, gostaríamos de propor aqui,
acompanhando a linha de raciocínio de Weber, que a valorização da dimensão da
experiência direta com o divino seria talvez um ponto ainda mais importante a enfatizar,
se quiséssemos utilizar a expressão “orientalização do Ocidente”. Ao menos, é isto o que
pude perceber em relação ao que atraiu os participantes da contracultura e seus
seguidores para as religiões orientais: a possibilidade de experimentar a relação com o
divino, fosse este concebido como o vazio do tao ou o brahman dos hindus. Nestes casos,
pouco importava a forma, desde que estivesse assegurada uma dimensão da experiência
no sentido de uma prática e não de um approach intelectual. A rejeição do “caráter
mumificado das formas de expressão autorizadas pelas instituições religiosas” (Hervieu-
Léger, op. cit., p.40), presente já nas vozes dos Transcendentalistas norte-americanos do
século XIX (ver capítulo 1), correspondeu a uma busca da experiência direta, de
preferência sem mediação institucional.
De qualquer forma, sempre vale fazer a ressalva de que nem a imanentização
nem a experiência do contato direto com o divino pela via mística estiveram ausentes das
tradições cristãs. Contudo, sua valorização e difusão no Ocidente neste século, atingindo
um número sem precedentes de devotos58, parece ter acompanhado o crescimento do
interesse pelas religiões orientais tal como colocado a partir da contracultura, isto é,
quando se intensificou a implementação da busca pela dimensão prática, vivida, daquelas
religiões.
58
Embora não disponhamos de estatísticas precisas aqui, a própria disseminação atual do movimento Nova
Era parece constituir um indicador substantivo nesta direção.
78
Como a maior parte dos adeptos ocidentais do Siddha Yoga são provenientes
das tradições cristãs, poderíamos ser tentados, ao analisar suas trajetórias, a arriscar
interpretações que os apontassem quer como exemplos de um processo de
“orientalização” do Ocidente, quer como exemplos de “cristianização do Oriente”.
Tomando como eixo dessa discussão a temática da imanentização, colocada por
Campbell no centro da argumentação em favor da existência de um processo de
“orientalização” em curso no Ocidente (1996), parece-nos não ser muito simples
corroborá-la, justamente porque, conforme apontamos acima, processos de imanentização
estiveram presentes nas duas tradições, muitas vezes lado a lado com visões
transcendentes da divindade 59.
Assim, retomando de certa forma a argumentação desenvolvida no Capítulo
1, creio que estaríamos neste caso, mais uma vez, diante da ambigüidade presente na
busca do “outro”, em que o que parece muitas vezes estar em jogo é uma busca de algo
que já estava presente em si mesmo, sob outras linguagens. Tratar-se-ia portanto, aqui, de
corroborar algo já existente ⎯ a presença de perspectivas imanentistas no Ocidente ⎯
através do recurso à imagem do “outro”.
Considero, contudo, significativo, em favor da linha de argumentação de
Campbell, o fato de que, no depoimento desta ex-devota do Sidhha Yoga que retornou ao
catolicismo, está presente uma percepção de que a tradição cristã faz uma demarcação
mais nítida entre o sagrado e o profano do que a tradição das iogas:
59
Conforme se depreende da história das heresias cristãs, o que muitas vezes provocou sua marginalização
pelo corpo constituído das igrejas foi exatamente a tentativa de afirmação de conteúdos místicos de forte
viés imanentista.
79
apontar o interesse pioneiro de Mauss pelos fenômenos corporais e sua percepção sobre a
centralidade destes na produção de determinados fenômenos do campo religioso,
conforme se verifica neste trecho, em que ele comenta as iogas:
Leila Amaral Luz aponta para esta questão da revalorização das emoções no
campo sociológico associando-a a uma busca de olhares alternativos à maneira
60
De William James a Weber, passando pelas descrições sobre o “sentimento oceânico”, registrado por
Freud, ou sobre o “totalmente outro” de Otto, ou pelos depoimentos dos místicos de todas as tradições,
parece haver um consenso no sentido de que a experiência mística está relacionada a um tipo de impacto
sobre os sentimentos observável apenas por aqueles que a experimentam.
84
“that have become valid fields of social scientific inquiry in the post-
modern context. Sexuality, identity, the conception of the self, and
finally emotionalitty have thus become problematized because of a
process of individualization in Western culture, to the point that they
can only be socially ‘captured’, thus losing all ground for possible
social theory building” (1997, p.344).
Desta forma,
61
William Reddy faz um interessante contraponto a esta posição, chamando atenção, com base em algumas
obras do final do século XVIII de Germaine de Stäel, que a linha de argumento sustentada por Elias,
Weber, Freud e Foucault, segundo a qual a história da civilização européia esteve relacionada a um
aumento constante da repressão, do controle dos apetites e impulsos e da disciplina sobre si, também esteve
ligada, por outro lado, a um refinamento e diferenciação no campo da expressão das emoções, que teria
acompanhado a própria diferenciação no campo institucional que marcou aquela história. Para Reddy, a
complexificação da vida emocional apontada por Madame de Stäel é coetânea de um aumento da
autoconsciência dos indivíduos e apoiou sua busca por um preenchimento emocional do tipo disseminado
pela tradição sentimentalista (Op. cit., p.339).
86
E finaliza:
62
Esta mesma preocupação já fora expressa em outros momentos do trabalho de Turner, conforme se vê
neste trecho em que ele trata das questões levantadas por Lévi-Strauss a respeito da pensée sauvage.
Segundo Turner, Lévi-Strauss afirma que a pensée sauvage “tem propriedades tais como homologias,
oposições, correlações e transformações, as quais são também características do pensamento requintado” e
que “embora Lévi-Strauss dedique alguma atenção ao papel dos símbolos místicos como instigadores de
sentimento e desejo, não desenvolve esta linha de pensamento de maneira tão completa como o faz em seu
trabalho sobre os símbolos como fatores no conhecimento” (Turner, 1974, p.59-60, grifos meus). Turner
conferia, aliás, uma importância tão central à experimentação, que utilizou muitas vezes como instrumento
de reprodução de situações etnográficas a encenação a posteriori de situações que havia vivido no campo
(ver a este respeito Turner, 1982).
89
forma de juízo que não pode ser separada, de maneira imediata, do pensamento ou da
racionalidade (Op. cit., p.331). No campo antropológico, esta postura se expressaria na
crítica a um certo tipo de atitude acadêmica do Ocidente em relação às emoções, que
tendeu a abordá-las como um domínio residual, somático, ou anti-racional da vida
consciente, expressa pelo próprio Reddy (Ibid.) e apoiada por Howell (1997) e Lutz
(1997). Na verdade, o que estaria em jogo aqui seria o reconhecimento de que as
distinções ocidentais ordinárias entre emoção e razão e entre consciente e inconsciente
são muito mais expressões culturais do que constructos universais (Lutz apud Reddy, op.
cit., p.346).
A antropologia da experiência, proposta por Turner, estaria preocupada em
desvendar como os indivíduos experimentam suas culturas, isto é, como os eventos são
recebidos pela consciência, considerando-se, na perspectiva de Dilthey, que esta
experiência está ligada não apenas a ações e sentimentos, mas também a reflexões sobre
eles (Turner, op. cit., p.5).
O que parece estar sendo apontado aqui é o fato de que as emoções costumam
trazer a necessidade de encontrar seu sentido. No campo religioso, as emoções
experimentadas são geralmente revestidas de um significado que corresponde ao das
diferentes cosmologias e doutrinas acionadas por cada tradição. Neste sentido, a
perspectiva de Dilthey parece particularmente fértil para abordar um grupo religioso que,
como o Siddha Yoga, coloca na base de sua proposta religiosa a vivência de uma série de
práticas que despertam em seus adeptos emoções variadas e poderosas, que são
explicadas, como veremos em outro ponto deste trabalho, não apenas pelo recurso à
cosmologia shivaíta utilizada pelo grupo, mas também pelo acionamento de uma série de
procedimentos reflexivos que, combinados àquela, serão os responsáveis pela
domesticação das emoções experimentadas pelos adeptos.
Danièle Hervieu-Léger é outra autora que, reconhecendo a importância
daquilo que denomina de “surtos emocionais” na cena contemporânea, seja no seio das
igrejas tradicionais, seja no dos assim chamados Novos Movimentos Religiosos, aponta,
90
Henri Bergson entre “religião dinâmica” (“aberta”) e “religião estática” (“fechada”). Este
conjunto de oposições tenderia a transpor para o terreno sociológico, segundo Hervieu-
Léger, a dinâmica psicológica da experiência religiosa, reproduzindo, de certa maneira, a
visão durkheimiana postulada por Hubert, de que todas as crenças e práticas instituídas
não passam de formas “administradas” de uma experiência fundadora, anterior a qualquer
formalização filosófica ou teológica, e que desencadeia os sentimentos e a afetividade
daqueles que passam por ela. Esta experiência fundadora, vivida ao mesmo tempo no
plano individual e coletivo, constituiria a fonte de toda religiosidade autêntica, nunca
redutível às doutrinas e às liturgias, que seriam tão somente sua expressão socialmente
aceita. (Id., p.34).
Weber foi um dos autores que chamou atenção para o papel da ioga enquanto
caminho para a observação dos sentimentos ao mesmo tempo em que associado à
construção de um conceito de “eu”:
achieved through Yoga technique. This must have quite naturally led to
conceptions of the ‘I’ as an entity also standing outside all ‘spiritual’
process of consciousness, and, indeed outside the organic depository of
consciousness and its ‘narrowness’.” (1967, p.171).
Weber também define a ioga por seu ascetismo irracional e pelo caráter
emocional pessoal de seus estados sagrados. Com relação a este último ponto, ele destaca
o individualismo como característico de qualquer busca mística, pois elas se apoiam na
idéia de que apenas o indivíduo pode ajudar a si mesmo. Este tipo de individualismo seria
associado sempre à idéia do virtuoso, do renunciante, não podendo ser encarado como
algo acessível às massas. Neste sentido, não podemos deixar de fazer uma associação
entre esta temática do virtuosismo com um dos dilemas estruturais do ideal da Bildung,
que, embora pensada como uma possibilidade geral para a humanidade, enfrenta-se
sempre com as limitações concretas reais para sua difusão, constituindo-se, na prática, em
algo acessível apenas aos “happy few”.
A análise de Weber sobre as características do individualismo tal como
propiciado por esta vertente do hinduísmo permitiu a diferenciação essencial, de resto
particularmente bem explorada por Louis Dumont, entre um ascetismo extra-mundano,
em que a alma individual trabalha por seu destino fora deste mundo, e o ascetismo tal
como formulado nos termos da tradição protestante, um ascetismo intra-mundano,
marcado pela doutrina da predestinação, na qual se busca as marcas da salvação neste
mundo. Ou seja, o que está em jogo aqui é um tipo de caminho para a salvação ligado ao
indivíduo, mas não como concebido pela forma ocidental, protestante. O recurso às
técnicas da ioga seriam utilizados para produzir um tipo de afastamento do mundo que
geraria um esquecimento de si, daquilo que associa o indivíduo ao mundo.
A prática das iogas que, em si mesma, é articuladora de disciplinas físicas e
psíquicas, parece ter ensejado, em sua apropriação no Ocidente, um cruzamento original
do individualismo místico hindu com o individualismo ocidental, calcado em
procedimentos de distanciamento, reflexividade e interiorização, mas orientados por um
ideal de perfectibilidade a ser exercido neste mundo e não fora dele.
63
Poderíamos identificar no capítulo de Weber sobre o hinduísmo ortodoxo, em seu livro Religions of
India, a referência a três caminhos de salvação: o do hinduísmo ortodoxo brahmânico, em que a salvação
se verifica pela via da adaptação ao mundo; o do protestantismo, que coloca a salvação pela via da
97
conquista do mundo, pois esta conquista é vista como um sinal da predestinação; e uma terceira via, a
ióguica, em que a salvação se dá por um afastamento do mundo (1967, p.163-191)
98
64
Pode-se dizer que o “novo hinduísmo” não rompeu com o passado, mas adicionou-lhe elementos novos;
a principal novidade trazida pelos Puranas foi identificar Brahman, a realidade última descrita nos
Upanishades, como uma entidade possuidora de uma personalidade. Naqueles, Brahman era apresentado
como imanente e transcendente ao mesmo tempo, com ênfase na imanência e identidade, mais do que na
transcendência e diferença. Os escritos teológicos das escolas Vedanta continuaram a tratar Brahman como
um princípio impessoal, seguindo os ensinamentos dos Upanishades. A tradição geral do hinduísmo,
porém, a partir de então, passou a dar mais atenção ao caráter pessoal desta realidade última. As duas
posições ficaram a partir de então contidas no hinduísmo - Brahman como princípio pessoal ou impessoal
(Berry, Op. cit.).
99
65
Este aspecto nos fornece um elemento interessante para dialogar com a famosa
caracterização de William James sobre os parâmetros que definem a experiência mística: inefabilidade
(incomunicabilidade); sensação de autenticidade; qualidade noética (de ou tendo que ver com a mente ou
com o intelecto); transiência (transitoriedade); quebra do sentido ordinário do tempo; passividade (pela
idéia de que se é tomado por algo que é exterior ao sujeito, e de que a experiência é provocada por este
algo) e marca definitiva na vida de quem experimenta (1958, p.293-294). Em primeiro lugar, poderíamos
dizer que os elementos contidos na caracterização de James parecem apontar para o fato de que tratar da
experiência religiosa mística é estar disposto a discutir as fronteiras entre sentimento e razão. Neste
sentido, é bastante significativa sua caracterização do elemento noético desta experiência, mostrando que,
embora os estados místicos sejam muito semelhantes a estados de sentimento, aqueles que os
experimentam têm a impressão de estarem lidando também com estados de conhecimento, em que se tem
acesso a patamares de verdade encobertos pelo intelecto discursivo. Além disto, seus critérios de definição
da experiência mística, sobretudo no caso da inefabilidade, parecem requerer uma redefinição no que diz
respeito à forma como esta é vivida modernamente pelos herdeiros da tradição reflexiva ocidental. A
inefabilidade é algo que se desfaz diante do esforço contínuo de nomear e identificar a atuação do “guru
principal”, no caso do Siddha Yoga, isto é, aqueles momentos em que as experiências de sincronicidade
passam a ser percebidas na vida do devoto; passa-se do inefável para a busca da definição do “totalmente
outro”, ou pelo menos, para uma espécie de rastreamento de sua atuação.
100
disciplina, mas tem a ver antes com formas de controlar, modelar e canalizar a expressão
emocional, dependendo das exigências formuladas pelas diversas situações de interação.
Reddy não descarta, como se vê pela formulação de seu conceito de estilos
culturais de administração das emoções, o papel marcante desempenhado pela cultura na
imposição de determinadas maneiras de funcionamento emocional dos indivíduos, mas
chama atenção para o fato de que existe sempre um espaço de negociação entre o
culturalmente determinado e a reação individual a ele. Na verdade, este lhe parece ser um
mecanismo central para a compreensão das mudanças na vida social. As emoções
deveriam ser olhadas, assim, como “the very location of the capacity to embrace, revise
or reject cultural or discoursive strutuctures of whatever kind” (Op. cit., p.330), e, neste
sentido, “the variation of individual responses (some fitting expectations well, some
going all the way to complete deviance) provides an initial reservoir of possibilities for
change)” (Id., p.334).66
Em que pese a riqueza desta análise, bem como de todas as que buscam
compreender a dimensão intersubjetiva e/ou social das emoções, me parece importante
destacar que um ponto central deixa de ser contemplado por ela: aquele ligado ao papel
desempenhado pelas emoções na criação de um espaço da interioridade e na
compreensão de si mesmo. A observação do modo como as práticas de meditação são
vivenciadas pelos adeptos ocidentais do Siddha Yoga conduziu a examinar esta direção.
Assim, sem negar o fato de que as experiências emocionais dependem muitas vezes de
processos intersubjetivos, não há contudo razão para desconsiderar o fato de que elas são
muitas vezes um locus privilegiado para o diálogo consigo mesmo ou com a dividindade,
se quisermos tomar o campo religioso como exemplo.
Estando de acordo com a formulação de que a compreensão do locus e da
gênese das experiências emocionais varia consideravelmente em cada cultura (Brenneis,
1997, p.341), parece que, se quisermos desvendar a maneira de funcionamento da cultura
ocidental em relação a elas, teremos que nos deter nos aspectos em que a especificidade
ocidental neste terreno parece se manifestar. E é na associação das emoções com a
66
Este papel das emoções enquanto locus de articulação entre o individual e o cultural e, por isto mesmo,
como um locus de mudança, nos parece muito próximo do papel dos fenômenos místicos ⎯ não por acaso
ligados fortemente às emoções ⎯ dentro do campo religioso, em que são muitas vezes utilizados como
elementos de contestação do status quo, invocando a intervenção do espírito contra a palavra.
101
67
Este trecho de Rawlinson nos permite entender de forma mais clara de que forma a ioga se relaciona à
concepção de que existem diferentes patamares de funcionamento da consciência e de que é possível
adquirir-se um conhecimento sobre isto: “I am using the term yoga in a fairly broad sense to cover all those
traditions which hold that our experience is primarily conditioned by lack of clear awareness of the way in
which consciousness operates. That is to say, if we pay close attention to the process by which we become
aware, we will discover in the very act of paying attention that we are not normally aware at all. My
shorthand for this is: localization of experience is also transformation of it” (1981:247).
103
um alívio ligado à percepção de que somos menos atrelados a papéis do que supomos.
Cria-se com isto um sentimento de liberdade maior em relação a si mesmo, havendo uma
espécie de encorajamento a ousar, a construir outros percursos, a partir de novas imagens
de si. Meditar no Ocidente associa-se assim a uma esperança de transformação, de
renovação de si mesmos, por ensejar a possibilidade de nos vermos e aos acontecimentos
sob um novo ângulo.
Neste sentido, poderíamos pensar em uma afinidade significativa entre esta
prática religiosa e as dimensões das atividades de jogo e lazer tal como analisadas por
Gusdorf e Huizinga. Na tradição huizinguiana dos estudos sobre jogos “reconhecer o
jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é
material” (Huizinga, 1996, p.6). Olhar diferente do olhar quotidiano e sério, o olhar que
se estabelece nos jogos é um olhar que nos afasta da rotina e do peso da realidade,
abrindo-nos a possibilidade de desfrutar de um espaço de liberdade, inacessível quando
nos encontramos em nossos papéis sociais habituais, exatamente por permitir-nos
repousar destes papéis.
Nos termos de Gusdorf, o distanciamento poderia ser descrito assim:
“Le garçon de café joue à être garçon de café; l’évêque joue à être
évêque. Par là, la personne prend ses distances par rapport au
personnage qu’elle incarnait; elle accède à une secrète et exaltante
conscience de soi. Désormais, en s’offrant, elle se cache; elle se dégage
en s’engageant. Et ce jeu de soi est une expérience d’une liberté.”
(Gusdorf, 1967, p.1158).
que se assemelha ao alívio provocado pelos jogos, nos quais é possível descansar de
nossos papéis habituais normais.
Um outro ponto do fascínio exercido pelas práticas da meditação é o
maravilhamento provocado pela descoberta de capacidades do corpo desconhecidas pela
maioria das pessoas, isto é, ver luzes, ouvir sons ou ser tomado por movimentos
involuntários, que retiram os devotos da esfera do ordinário. Estas descobertas sempre
parecem, em um primeiro momento, anunciadoras de que novas maravilhas estão por vir,
e constituir-se em uma prova de que o potencial humano é maior do que o suposto
usualmente, o que leva à uma ampliação concomitante da capacidade de almejar coisas
jamais imaginadas até então.
Assim, se tivéssemos que definir que tipo de experiência parece estar
principalmente em questão para os devotos ocidentais do Siddha Yoga, poderíamos
arriscar a hipótese de que é a experiência de ampliar para patamares inesperados as
possibilidades de construção da auto-imagem adquirindo através deste processo um
sentimento de poder maior em relação ao que cada um pode ser. Os projetos reflexivos
desencadeados quando “o desenvolvimento capitalista, com sua ênfase na escolha e na
diferenciação, entra em interação sinergética com a política da liberação individual”
(Hunt, 1997, p. 343), parecem receber, assim, um aliado inesperado do Oriente.
68
Aqui vale registrar que no Siddha Yoga existe um consenso relativo ao conceito de Deus, sendo que
neste aspecto ele não se confundiria com a Nova Era.
106
uma flexibilidade em relação às identidades religiosas particulares, não pode ser mantido,
contudo, se o adepto buscar um aprofundamento dentro das práticas do grupo; como
qualquer seita religiosa de origem hindu, o Siddha Yoga tem seus cânones, Mesmo com
toda a imensa possibilidade combinatória que as tradições hindus propiciam, isto não
significa que cada seita não tenha uma forma única e específica de combiná-las, sendo
este o elemento, ao lado da figura que encarna o guru em cada seita, que confere a cada
grupo uma identidade particular.
A ausência de proselitismo, por sua vez, intimamente ligada a esta postura
universalista e teoricamente tolerante do hinduísmo, também não se sustenta com o correr
do tempo. Ainda que se reconheça o valor das demais tradições, e a citação de figuras
santas do cristianismo ou do islã seja freqüente nas cerimônias, não se pode negar o fato
de que se espera da adesão dos adeptos uma adesão também aos ritos, crenças e ao
panteão específico de deuses do hinduísmo com que cada seita irá se identificar.
Na Nova Era a experimentação parece conduzir a uma devoção pela própria
busca de um sentido que não se substancializa nunca (Luz, op. cit., p.4). Neste aspecto,
ela reproduziria um mecanismo identificado por Campbell como estando na base do
consumismo moderno, o de um certo tipo de hedonismo, no qual o ato imaginativo de
ansiar por alguma coisa é mais apreciado do que a própria realização do consumo (Id.,
p.5), sendo este o responsável pelo ciclo infindável do consumo. No Siddha Yoga a
experimentação é de um outro tipo; trata-se de experimentar as vivências decorrentes de
um tipo especifico de disciplina ióguica, que, embora propicie um amplo leque de
variações individuais, de modo algum se confunde com o eterno buscar de experiências
novas por meio de tradições variadas identificado por Luz dentro da Nova Era. Trata-se
de um caminho específico e muito bem delimitado aquele que é proposto ao adepto de
uma seita hindu. O que não quer dizer que este caminho esteja sempre sob controle, seja
do devoto, seja do guru.
Assim, os relatos sobre experiências de transtornos psíquicos sérios não são
incomuns dentro destes grupos, sobretudo quando transplantados para o Ocidente, onde a
presença de uma cultura psicologizada que estimula a busca generalizada de atividades
ligadas ao desenvolvimento de si acaba muitas vezes levando à participação de pessoas
nestes grupos com poucas condições emocionais para lidar com as experiências que são
107
vivenciadas69. Assim, uma das idéias centrais desta cultura psicologizada, a de que “tudo
vale a pena, ao menos como experiência”, se não provoca maiores danos para a maioria,
pode causar entretanto sérios prejuízos para alguns.
Além disso, um novo mal-entendido cultural parece ocorrer aí mais uma vez.
O fato de que estes grupos se apresentem como essencialmente ligados ao
desenvolvimento espiritual, faz com que, em um primeiro momento, muitas pessoas não
se dêem conta do quão fortemente as atividades que eles propõem se associam à
dimensão que o senso comum no Ocidente chamaria de psicológica. Com isto, uma série
de riscos são incorretamente avaliados. Neste caso, é como se o espiritual excluísse por si
mesmo qualquer possibilidade de dano em outras dimensões.
69
Feuga e Michaël chamam atenção para este aspecto no seguinte trecho: “si l’on ne possède pas les
qualifications requises (à commencer par un courage inébranlable) et si l’on n’est pas guidé par un maître
compétent (dans ce domaine ils n’abondent pas), mieux vaut s’abstenir totalement de ces méthodes qui,
mal appliquées, risquent de provoquer chez ‘l’apprenti de sorcier’ des dégats physiques et psychiques
irréversibles. Ce que l’on pourrait appeler la “pathologie kundalinienne”, non seulement en Inde mais
désormais dans d’autres pays où l’on ne dispose pas des mêmes garde-fous, leur donne hélas raison:
névroses, psychoses, phénomènes dépressifs ou hystériques, accidents cardiaques, voire suicides et morts
subites composent quelques aspects de ce tableau, bien différent dans sa réalité des prescriptions fleuries
du New Age” (Op. cit., p.103).
108
70
Os dados para a composição deste histórico foram retirados de Rawlinson (1998), Rodarmor (1983),
Harris (1994) e SYDA Foundation (1994).
71
Siddha quer dizer literalmente um “ser realizado”; no hinduísmo, é um mestre da kundalini ioga; no
budismo, alguém que alcançou o domínio sobre o corpo e a mente (Rawlinson, 1998, p.626).
72
Nityananda era considerado um avadhut, pessoa completamente independente, sem laços com ninguém,
nem mesmo com alguma ordem de sannyasis.
73
Neste mesmo ano foi criada a organização Siddha Yoga Dham of America (SYDA), responsável pela
gestão do grupo a partir de então.
109
74
Ram Dass (nascido Richard Alpert), ex-professor de Harvard, escreveu um dos maiores best-sellers da
Contracultura, o livro Be Here Now, relatando suas experiências com o misticismo oriental, o hinduísmo e
a ioga, propiciadas por seu encontro com Neem Karoli Baba, que conheceu em uma viagem à Índia, em
1967. Dass foi um dos principais mentores da Contracultura, ao lado de figuras como Timothy Leary, Jerry
Garcia e Allen Ginsberg, entre outros.
75
O Shivaísmo do Kashmir possui quatro escolas: a escola Spanda ou Trika, cujo surgimento é localizado
no início do século IX d.C., e que se apóia nos Shiva Sutras ⎯ 77 versos sânscritos considerados
revelações diretas do próprio deus Shiva ⎯ e na Spanda-karika (doutrina da vibração); a escola Kula ou
Kaula, originária de Assam, em torno do século V d.C., que se expandiu inicialmente no sul da Índia e se
propagou pelo Kashmir do século IX ao X d.C., tendo por objetivo a reunião de Shiva e Shakti no ser
humano; a escola Krama (“progressão”, alusão a seu método gradualista, menos direto que o da escola
Kaula), também chamada de Maharthadarshana (“doutrina do sentido absoluto”) ou Kalinaya (por causa
de sua devoção à deusa Kali), que teria se constituído no Kashmir no final do século VII d.C., e que,
embora utilizando-se de métodos inspirados na hatha ioga, coloca o acento na espontaneidade, na verdade
natural de cada indivíduo e na perfeição inata, passível de ser restaurada a partir do posicionamento em
uma corrente vibratória propícia, orientação também utilizada pelo budismo tântrico (Vajrayana); e,
finalmente, a escola Pratyabhijna (“reconhecimento”), fundada no final do século IX d.C., que prescreve
um modo espontaneísta e direto de acesso ao “sem acesso”, isto é, uma tomada de consciência intuitiva,
imediata, pelo coração, da presença de Shiva dentro de cada um e dentro do universo (Feuga e Michaël, op.
cit., p.88-94).
110
76
Estes dados foram colhidos em 1997 durante as cerimônias do grupo no Rio de Janeiro.
77
O catálogo de vendas do grupo disponível no ashram de South Fallsburg em 1997 listava 18 títulos de
Swami Muktananda e quatro de Gurumayi Chidvilasanda.
78
Entre estes destaca-se Kundalini, o Segredo da Vida, de Swami Muktananda, recomendado pelo centro
de meditação do Rio de Janeiro como leitura preparatória para aqueles que vão fazer os cursos intensivos
do grupo.
79
Este ashram é descrito por devotos brasileiros que já o visitaram como um verdadeiro oásis em meio a
uma região extremamente quente. Repleto de árvores frutíferas, o local é conhecido pela qualidade da
comida e das acomodações que oferece aos visitantes, atraindo por isto turistas em viagem pela Índia sem
qualquer preocupação espiritual. Este fato provocou um política mais rigorosa ultimamente na aceitação de
hóspedes, de forma a não sobrecarregar os que lá estão com propósitos espirituais com o trabalho
111
um pequeno terreno que lhe foi dado por Nityananda e possui hoje o certificado de
autenticidade fornecido pelo governo indiano. O ashram de South Fallsburg80 (Shree
Muktananda Ashram) foi construído em 1979 por Swami Multananda e funciona como
sede da SYDA Foundation. Ambos são considerados gurukulas, isto é, “escolas de
gurus”, possuindo estrutura para receber pessoas do mundo todo para cursos e retiros
espirituais o ano inteiro.
advaita vedanta e do budismo, por ter surgido em uma época de intensos contatos entre
escolas filosóficas e religiosas no norte da Índia. O sistema afirma que este mundo de
mudanças incessantes é empiricamente real, baseando esta realidade em uma consciência
transcendente que é simultaneamente estática e dinâmica, que está acima destas
categorias e que é ao mesmo tempo aquilo que as fundamenta, Parama Shiva.
Embora possa ser estudado de um ponto de vista meramente filosófico, como
um corpo objetivo de conhecimentos de caráter soteriológico, considera-se que a
principal forma de transmissão do Shivaísmo do Kashmir advém de suas práticas de ioga,
transmitidas no quadro das relações guru-discípulo. Todos os grandes mestres desta
tradição passaram por esta relação, obtendo seu conhecimento através da participação
ativa nas experiências desencadeadas em si mesmos por um mestre realizado. Neste
sentido, vale ressaltar as qualidades eminentemente práticas, mundanas, desta filosofia,
que propõe uma espécie de misticismo do senso comum. Assim, os conceitos mais
abstratos ensinados pelo Shivaísmo do Kashmir são baseados não apenas na perfeição
lógica e em percepções místicas, mas também no estudo do microcosmo e da experiência
ordinária. Segundo Barnard, o Shivaísmo do Kashmir ensina a identidade essencial entre
o self, Deus e o mundo. Sua ioga permite que tudo na vida se transforme em ponto de
contato com a Divindade, em trampolim para a experiência da transcendência. Andar a
cavalo, ouvir música, ou simplesmente ir dormir à noite podem se tornar a base do
encontro com a divindade, desde que estes atos sejam vistos com a compreensão correta
(1986, p.ix).
O Shivaísmo do Kashmir aceita a realidade do mundo tal como ele se
apresenta, seus aspectos contraditórios de dor e alegria, de beleza e feiúra, etc. O mundo
não é visto como uma ilusão, mas como a manifestação criativa de Parama Shiva. O
mundo é a alegre expressão da shakti ⎯ o poder ou a consciência de Parama Shiva. Se
compreendido corretamente, cada momento da vida pode ser transformado em ocasião de
entrar em contato com o artista da criação, com a fonte de alegria e êxtase que sublinha o
universo inteiro.
Considera-se que esta percepção permite aos adeptos penetrar a superfície de
camadas de significado até então desapercebidas e a alterar radicalmente sua forma de
interação com outros seres humanos. A partir desta visão transformada, eles passariam a
113
81
Os tattvas também estão presentes na filosofia do samkhya, que complementa a ioga. Os 25 tattvas mais
baixos dos 36 tattvas do sistema trika do Shivaísmo do Kashmir representam todo o universo do ponto de
vista do samkhya. Neste, Purusha e Prakriti são reconhecidas como as realidades últimas, enquanto que no
trika elas são apenas derivativos, reconhecendo-se ainda onze tattvas adicionais acima de Purusha.
114
82
O auto-conhecimento é entendido aqui como o reconhecimento da própria divindade.
83
O mantra utilizado pelo Syddha Yoga é o Om Namah Shivaya, que poderia ser traduzido como “Eu
reverencio o deus (Shiva) que há em mim”.
115
tendência inata a sentir-se pequena, fraca e apartada tanto do Senhor quanto das outras
pessoas. Uma de suas técnicas principais é a investigação do mantra, ao invés de sua
repetição mecânica. Nesta prática, a pessoa repete o mantra tendo consciência de que a
divindade a que ele se refere e seu próprio ser são idênticos, que todos são formas de uma
mesma Consciência.
A pessoa também pode meditar sobre a verdadeira natureza da mente,
tornando-se consciente de que seus pensamentos nada mais são que diferentes formas de
Consciência. Com esta percepção, pode-se então simplesmente observar os pensamentos
à medida em que eles passam, buscando traçar sutilmente o caminho até sua fonte,
captando aquele instante de calma entre eles, o unmesha, o reservatório da potência
divina. Pode-se chegar ao unmehsa por diferentes caminhos, mas eles sempre estarão
comprometidos com o mundo do estar entre, como nos momentos entre o sono e a
vigília, no espaço entre as respirações ou entre distintos momentos de percepção.
Na verdade, o Shakta upaya não seria tanto uma série de técnicas, mas uma
reorientação da vida como um todo, um modo particular de entender e relacionar-se
consigo mesmo e com o mundo. Ele seria um tipo de reprogramação mental auto-dirigida
em que a pessoa contrabalança os conceitos limitados e negativos que tem sobre si
mesmo e sobre o mundo a partir de novos padrões de compreensão. No Shakta upaya há
uma reflexão consciente sobre os ensinamentos do Shivaísmo do Kashmir, através da
qual eles são colocados em prática por meio de uma contemplação criativa. Por exemplo,
uma pessoa poderia dizer a si mesma “Eu sou Shiva, eu sou o Senhor, eu permeio tudo,
este universo nada mais é do que o reflexo de minha própria glória”, e, eventualmente,
uma vez que estas afirmações representam verdades ontológicas, poderiam provocar uma
ressonância particular dentro do devoto. O que teria sido até então apenas uma
formulação mental abstrata atingiria níveis mais profundos, mais experienciais, e o
discípulo começaria a misturar-se com o estado interior particular da Consciência.
Este estado não-mental, mais profundo, da prática, é a chave para o terceiro
upaya, o Shambava upaya, o caminho da identificação com shambava, ou Shiva. Tendo
saturado o seu próprio ser com a repetição de pensamentos sobre o divino, a pessoa agora
apenas se deixa levar e descansar na consciência do self essencial, com um simples
esforço da vontade. O Shambava upaya, em seu grau mais alto de maturação culmina no
116
84
Estas informações sobre o Shivaísmo do Kashmir foram retiradas de Barnard (1986).
117
85
Por exemplo, até os brahmins ⎯ condutores rituais considerados pela sociedade indiana como os mais
puros dos hindus ⎯ estariam sujeitos a expansões e contrações do self, como quando, no momento ritual,
identificam-se a Shiva, ou quando, no pólo oposto, são poluídos pelo consumo da comida oferecida por
castas mais baixas .
86
Segundo Bharati, nenhum dos mestres da tradição hindu se preocupou com o self empírico, tal como
ocorre no Ocidente através dos trabalhos de psicólogos, antropólogos, sociólogos e mesmo nas referências
dos poetas. Todas as tradições hindus que falam do self empírico o fazem para recusar seu status
ontológico (seja no advaita vedanta, seja no budismo) ou para assimilá-lo a algum tipo de construção
metafísica, que seria o Self, com S maiúsculo. Quando quaisquer das tradições hindus se refere àquilo que
poderia ser o indivíduo (o self empírico), não o faz para analisá-lo, mas para denegri-lo. Assim, o termo
hindu que mais se aproximaria do termo indivíduo ⎯ jiva ⎯ (geralmente traduzido no Ocidente, de forma
infeliz, segundo Bharati, como alma) é um termo que se associa a qualidades tais como ambição, cobiça,
avareza, obsessão, e a toda uma imensa lista de atributos “indesejáveis”; jiva não “possui” estas qualidades,
ele “é” estas qualidades. O self como base de importantes realizações humanas tais como trabalhos
eruditos, habilidades artísticas, invenções tecnológicas, etc., é totalmente ignorado nos textos filosóficos
indianos.
118
sagrado, nada tem a ver com os objetivos das práticas religiosas hindus voltadas para o
encontro do atman (e não para o aprimoramento do self empírico). É Alex Comfort (apud
Bharati, op. cit., p.223-224) quem chama atenção para o fato de que a concepção hindu
do self, do self verdadeiro, distinto do self empírico, está associada àquilo que no
Ocidente ficou restrito a certo tipo de experiência marginal, ligada aos estados alterados
de consciência que produzem o sentimento oceânico, de unidade entre o sujeito e a
realidade que o circunda ⎯ aos estados místicos, em resumo. Neste sentido, as
experiências de unidade, longe de serem relegadas ao terreno das heresias ou da
insanidade, como frequentemente se verificou no Ocidente, são colocadas no centro dos
objetivos do virtuosos religioso, e, mais do que isso, tornaram-se normativas na
formulação do self divino como a linha principal de pensamento e ação hindus87.
Bharati assinala que a concepção de adaptação racional de um ser auto-
orientado, associada no Ocidente a questões de poder, desvio, justiça, egoísmo,
altruísmo, estratificação, eficiência, estratégias, táticas e moralidade, traduz-se, no
hinduísmo, pela idéia de que a única decisão racional a ser tomada é buscar intuir o self
(divino) como o único ser existente e rejeitar todo o resto, incluindo poder, desvio,
justiça, táticas, etc. A marca de autenticidade do sábio, nas palavras de Shamkara, o
sintetizador do advaita vedanta88, seria nityanita-vastu-vivekah, isto é, o discernimento
87
Um bom exemplo destas concepções está presente em um caso relatado por Bharati sobre a surpresa de
um missionário jesuíta na Índia com as reações do povo a suas pregações sobre a pobreza e a falta de
acontecimentos positivos em suas vidas. Ao final dos encontros, as pessoas sempre comentavam “Não se
importe com estas coisas, Deus é eterno”, deixando o missionário intrigado sobre qual a relação entre a
pobreza do povo e o fato de Deus ser eterno. Segundo Bharati, o jesuíta não percebia que estava
subentendido nesta linguagem o axioma monístico assumido pela maioria dos hindus modernos, conferindo
à frase o sentido de que “Deus é eterno e todos somos Deus, então, todas estas contingências arbitrárias da
vida material não são atribulações, de fato, nossas”. Em outro exemplo, Bharati comenta por que é que as
ideologias políticas dos hindus não são tomadas de forma alguma como incoerentes com suas opções
religiosas, como no caso do Ocidente, em que se vê uma incompatibilidade, por exemplo, entre ser cristão
e ser comunista. Ser comunista, fascista ou liberal-democrata, tudo isto é visto como contingente, como
sobreposições do self empírico ao verdadeiro self que não é de modo algum afetado por elas (Op. cit.,
p.198-199).
88
Shamkara é considerado como tendo desempenhado em relação ao hinduísmo o mesmo papel que São
Tomás de Aquino em relação ao cristianismo. Para o hindu urbano moderno, o termo “self” se identifica
quase sempre a uma versão simplificada do conceito de “self”, tal como colocado no advaita vedanta,
sintetizado por Shamkara . Nesta filosofia, parte-se do princípio que existe apenas um ser na existência, o
absoluto (brahman), que não tem forma. A multiplicidade de outros seres, almas, deuses, demônios, bestas,
estrelas, planetas, etc, seriam superimposições errôneas sobre brahman. A tarefa do sábio seria romper esta
ilusão de multiplicidade e perceber a identidade destas diversas manifestações com o absoluto. Considera-
se esta doutrina como a mais prestigiada entre as diversas doutrinas do hinduísmo, hoje, sobretudo como
120
entre o eterno (o self mais alto, divino) e o não-eterno (o não-self, o self comum). Se há
campo de ação para adaptações empíricas auto-orientadas nesta visão de mundo, elas
pertencem a uma categoria inferior, embora sempre presente, de reflexões sobre o self
empírico e suas ações. Assim, tudo que se relaciona a ele, ao contrário do que se verifica
no Ocidente, é de pouca importância no sistema filosófico-religioso hindu. O self
empírico, a entidade que denota o indivíduo agindo no mundo, e que está subentendida
quando um hindu utiliza termos que traduziríamos por “eu”, por “mente” ou por
“coração”, é introjetado como inferior ao “self” da tradição religiosa. O fato de que tenha
sido este self inferior que conquistou a Índia é, neste sentido, extremamente
desconfortável para os hindus, e algo que os obrigou a, de algum modo, emular com ele.
O Ocidente é visto como o mestre deste self empírico e como o mestre em obter sucesso
na vida mundana. Como uma sequela deste domínio sobre o self empírico e de sua
supervalorização da realidade empírica, o ocidental é visto como pobre em espírito, não
tendo conseguido, ou desejado, realizar-se, por não ser capaz de perceber o significado de
sua verdadeira natureza, o self não-empírico. Para os hindus, o verdadeiro self pode e
deveria ser realizado, enquanto o self empírico deveria ser negado, sendo para este
processo que deveriam se voltar todos os esforços humanos. A realização do self divino é
o que confere o carisma mais importante para a sociedade hindu, o do sadhu, o do
homem sagrado.
resultado de sua difusão no Ocidente no início do século por Vivekananda, em uma versão considerada
bastante resumida, que teria depois grande influência e aceitação dentro da própria Índia (sobre
Vivekananda, ver Capítulo 1) (Bharati, op. cit., p.186-188).
121
89
Embora este episódio tenha se passado depois de ter deixado o Siddha Yoga não creio que isto invalide o
valor do testemunho e exemplifique um a forma típica de raciocinar dos adeptos do grupo.
125
simultaneamente, daí o termo sincronicidade empregado por Jung para se referir a elas.
As sincronicidades passam a ser vistas pelos praticantes do Siddha Yoga como sinais da
atuação divina.
A continuação do depoimento de Sodré esclarece a natureza destes processos
reflexivos sobre coincidências e de que forma eles são associados ao plano do sagrado:
“A impressão que tenho é que Deus nos instrui tanto dentro como fora
de nossos corações, assinalando nosso caminho com pistas a seguir.
Costumo seguir justamente esses sinais que aparecem tanto dentro
como fora, usando os segundos como uma confirmação ou não da voz
interior do próprio coração. Quando se trata apenas dos meus próprios
sentimentos e vontades individuais, em oposição às propostas de Deus,
logo aparece uma divergência entre os sinais internos e externos,
enquanto que a confluência dos sinais indica que estou caminhando na
direção que me conduz para Deus. O diálogo com Deus faz, portanto,
parte integrante dos acontecimentos da minha vida, sendo sua escuta
uma fonte de grande aprendizagem e divertimento” (Id., p.16) .
pretendente, que deveria estar ainda magoado ou ressentido pelo fato. Este episódio
definiu a atitude que tomou: ela cancelou o jantar e não deu continuidade à relação,
comentando que o recado recebido havia sido claro demais, aquele homem não poderia
lhe trazer nenhum bem, já que não alimentava, provavelmente, nenhuma intenção de
iniciar uma relação duradoura, como a que ela desejava ter naquele momento de sua vida.
Aquele era o tipo de situação que lhe parecia comprovar a atuação do guru em sua vida.:
“Foi Gurumayi que me mandou aquela visão”. Mas, sobretudo, a simultaneidade no
tempo entre os dois episódios - fazer a combinação pelo telefone e ver o gavião ferido em
seguida ⎯ lhe pareciam uma manifestação típica da atuação de seu guru principal (o
princípio divino presente em cada um), isto é, daquele que parece fazer de forma
milagrosa a conexão entre acontecimentos internos e externos. Neste caso, a divergência
entre os sinais internos ⎯ o desejo de um relacionamento ⎯ e externos ⎯ a imagem de
um gavião, símbolo por excelência de um temperamento masculino pouco disposto a
relacionamentos estáveis ⎯ lhe pareceu mais do que suficiente para orientar-lhe a ação.
Com o correr do tempo, considerou correta a avaliação que fez, pois o pretendente, em
pouco tempo, apareceu publicamente com outras moças.
Neste tipo de exemplo, o valor moral dos atos guarda uma relação com a
percepção sobre a sincronicidade de determinados acontecimentos, algo que difere
bastante daquilo que se define como valor moral dentro da tradição cristã, associado à
intenção dos atos, conforme se vê neste trecho em que Durkheim analisa as
características do individualismo ocidental:
Contudo, este ponto no Siddha Yoga é de certa forma paradoxal, uma vez que
se o self é concebido como a própria divindade que habita em todos, e que pode ser
ouvida para orientar nossas ações, ele também é apresentado como aquilo que não se
confunde com a consciência ordinária, e que apenas testemunha nossos pensamentos e
ações, sendo esta uma das contribuições mais originais das tradições orientais, como
comenta Eliade: “It’s impossible to disregard one of India’s greatest discoveries: that of
consciouness as witness, of consciousness freed from it’s psychophysiological structures
and their temporal conditioning, the consciousness of the ‘liberated’ man, of him, that is,
who has suceeded in emancipating himself from temporality and therefore knows the
true. Inexpressible freedom” (Eliade, 1990, p.xx).
Um outro ponto de contraste entre as tradições cristãs e hindus é o fato de que
a construção da interioridade da pessoa cristã é associada à questão do pecado, algo
inteiramente estranho às concepções hindus, em que a interioridade é vista como locus
privilegiado do sagrado. A idéia do guru principal, ou do guru interior, é exatamente a de
que Deus habita dentro de nós, a imanentização se faz a partir daí. Segundo Duarte e
Giumbelli, a associação da interiorização ao pecado implica em um caráter paradoxal na
constituição da pessoa cristã: “um ‘território’ dotado de uma interioridade delimitada
exatamente pelo que tem de mais condenável, a rebeldia contra Deus, e constituída na
medida mesmo da sua exteriorização, da confissão a outrem. Um modo pelo qual isso se
expressa é no reconhecimento do indivíduo como ser ‘desejante’ a partir de sua própria
arrogância. Nesse sentido, a principal novidade do cristianismo está em ter elevado o
desejo interior a critério, a mesmo tempo reconhecível, primordial e universal, capaz de
definir a verdade de cada indivíduo em sua singularidade ⎯ o ‘abismo’ de sua própria
consciência ⎯ e em sua totalidade ⎯ seu corpo e sua alma” (Op. cit., p.99).
ao guru. Estas situações parecem fornecer uma lição para os devotos sobre
aspectos particulares de suas vidas em “mini-situações” que propiciam a
emergência de problemas semelhantes aos enfrentados em suas vidas diárias.
Uma moça encarregada da lavagem de louça no ashram de South Fallsburg
relatou que, ao lavar uma pilha de bandejas, defrontou-se com uma particularmente suja,
com muita gordura grudada, o que a fez ter a idéia de deixá-la de molho, para ser mais
fácil e mais rápido lavá-la depois. Ao fazer isto, veio-lhe à cabeça a lembrança de uma
situação muito problemática em sua vida, que “sentiu” imediatamente que também
deveria ser deixada de molho, por mais que ela tivesse a tentação de resolvê-la
imediatamente. Exatamente como fizera com aquela bandeja mais suja e mais difícil,
apercebeu-se de que se conseguisse deixar a situação de lado, de molho, conseguiria
resolvê-la de forma mais fácil e mais rápida depois. Ao ter este insight, foi tomada pela
sensação de que estava recebendo uma lição durante o seva sobre como lidar com seus
problemas e com sua ansiedade de resolvê-los.
Outro exemplo ocorrido durante um seva foi relatado por uma devota
designada para trabalhar no setor de costura durante sua estadia de dois meses no ashram
de South Fallsburg. O setor de costura encarrega-se da produção de todo o vestuário
ritual utilizado dentro do grupo, desde as roupas dos monges até as peças de pano que
recobrem estátuas e altares. Ser indicada para trabalhar neste setor causou grande
surpresa a L., uma vez que, por ser fumante, não se achava suficientemente “limpa” para
manusear os tecidos. Devido a este fato, foi aumentando gradualmente dentro de si a
sensação de que não merecia estar ali, de que houvera algum erro em sua designação para
aquela tarefa tão honrosa. A acolhida calorosa com que era brindada diariamente pela
coordenadora dos trabalhos, ao invés de anular esta sensação, deixava-a com um
sentimento ainda maior de desconforto. A culminância da impressão de desmerecimento
ocorreu no dia em que viu Gurumayi pessoalmente pela primeira vez, e esta dirigiu-lhe a
palavra diretamente, em meio às dezenas de pessoas que a cercavam, durante uma visita
ao restaurante principal do ashram. Sem dominar o inglês, precisou que uma
companheira traduzisse a fala, e mais uma vez foi surpreendida pelo fato de que, ao invés
de ter recebido uma crítica, fora perguntada gentilmente sobre seus progressos espirituais
durante a estadia no ashram. Neste momento, realizou que seu grande trabalho ali estava
130
fato de estar sozinho e ao fato de não saber para onde estava indo. Ao mesmo tempo, o
que fora capaz de tranquilizá-lo foi o reconhecimento de coisas familiares para ele,
primeiro a televisão, depois a paisagem da rodoviária de Monticello. Na mesma hora,
este raciocínio levou-me a pensar sobre minha própria situação e nos medos que eu
mesma estava tendo naquele momento: exatamente o de estar viajando sozinha, sem
nenhuma referência afetiva, e o de estar indo para um lugar desconhecido. Tive a
sensação então de que fora posta diante da situação de desespero do rapaz para ter a
oportunidade de fazer uma reflexão sobre mim mesma, e com isto, melhorar meu estado
de tensão durante a viagem.
G., uma de minhas companheiras de quarto no ashram, relatou uma
experiência que considerou destinada a fazê-la enfrentar melhor a dificuldade de lidar
com situações de rejeição amorosa, sobretudo depois do fracasso de seu casamento.
Durante um dos cursos oferecidos em South Fallsburg, sentou-se ao lado de um rapaz
com o qual criou uma empatia tão forte que na aula de encerramento uma das instrutoras
perguntou-lhes há quanto tempo estavam casados. Embora não tivesse ocorrido nenhuma
comunicação explícita entre ambos em relação a uma aproximação maior fora do curso,
G. criou a expectativa de que algo ocorreria entre eles durante a continuidade da estadia
no ashram. Os dias foram passando, entretanto, sem que nada evoluísse naquela direção,
mantendo-se apenas um clima cordial entre ambos em encontros casuais em outras
atividades. No último dia que passaria em South Fallsburg, estava programado um saptá
(dança em homenagem a Shiva) a ser realizado ao ar livre, em torno de duas grandes
fogueiras. Ao chegar, G. cruzou com F., a pessoa que lhe interessara durante o curso, e de
um modo que lhe pareceu espontâneo, resolveram treinar juntos os passos do saptá antes
de se juntarem aos dançarinos. No momento exato em que iam iniciar o treino, dois
acontecimentos aconteceram simultaneamente: duas pessoas diferentes chamaram-nos,
cada uma de uma direção. G. tinha sido chamada por sua melhor amiga no ashram, e F.
por alguém que G. percebeu instantaneamente gozar de imensa intimidade com ele,
sendo provavelmente sua namorada ou alguém que estava prestes a sê-lo. A
simultaneidade impressionante dos chamados proporcionou-lhe o insight de que estava
recebendo uma lição naquele momento à qual pode atribuir um sentido mais tarde: a de
que um aspecto central no amor é o desprendimento, e que o amor se manifesta de
132
diversas maneiras, não devendo ser canalizado para uma única pessoa; o amor é algo que
estaria dentro de nós, que não dependeria do outro. G. tomou o fato de ter sido acolhida
pelo abraço amoroso da amiga no exato momento em que se dava conta de que o amigo
desejo desejava outra pessoa, como uma lição recebida de seu guru sobre o
desprendimento e sobre o fato de que o amor é algo inesgotável, que se manifesta em
nossas vidas o tempo todo, por diversos canais, cabendo às pessoas descobrir como
deixá-lo fluir. Naquele caso, estando aberta para apreciar a atitude amorosa da amiga e
não se lamentar por não poder dar continuidade à atração que sentira pelo colega de
curso. O episódio pareceu-lhe uma lição sobre a maneira como poderia lidar com o
desamparo que sentia pelo abandono que sofrera do marido.
Vale registrar que para muitos devotos estes raciocínios homológicos que
chamei de psicologizados fazem parte de um processo contínuo de aprimoramento da
personalidade, desencadeado a partir da participação no Siddha Yoga. Assim, quando um
“nó” específico da personalidade do devoto é resolvido, passar-se-ia automaticamente a
trabalhar um outro. Esta idéia reproduz de forma surpreendente o ideal de
perfectibilidade romântica, do cultivo de si, do Bildung, tanto em um patamar mundano
quanto em um patamar espiritual, pois, ao lado da noção de que se está aprimorando
aspectos da própria personalidade, também existe a idéia de que se está, ao mesmo
tempo, evoluindo espiritualmente.
3.4.3) O terceiro tipo de processo homológico que pude identificar, foi o que
denominei de espiritualizado, por estar relacionado às diversas percepções da ligação
entre o guru e o discípulo, ou, dizendo de outro modo, à construção da perspectiva
imanentista entre os devotos, em que se produz a experiência da unidade entre todas as
coisas. Os exemplos que se seguem procuram ilustrar este terceiro tipo.
Uma senhora italiana, pela primeira vez no ashram de South Fallsburg,
relatou em um dos cursos sua experiência ao ser designada para cortar cebolas durante
um seva no setor de corte de legumes e verduras. Enquanto realizava esta tarefa,
recitando mentalmente o mantra (japa), deu-se conta de que era o elo de ligação entre as
cebolas e as pessoas que iriam comê-las; em seguida, foi tomada por uma sucessão de
imagens em que identificou diversos outros “elos” na vida: viu a chuva como aquilo que
liga o céu à terra; o tradutor como aquele que liga uma língua à outra; o cordão umbilical
como aquilo que liga a mãe ao filho, e assim sucessivamente até que entendeu que
Gurumayi era o elo entre ela e Deus, imagem que coincidiu com o corte da última cebola.
J., designado para o setor de fabricação de pães no ashram de Ganeshpuri,
relatou sua decepção no dia em que todos os que ali trabalhavam foram chamados para
um encontro ao ar livre com Gurumayi que, em homenagem ao Dia dos Namorados,
resolvera distribuir pequenas jóias em forma de coração para as pessoas que faziam seva
na cozinha. Ao perceber que a distribuição acabara e que não ganhara nada, voltou para a
cozinha num estado lamentável, em que se misturavam o sentimento de haver sido
desprezado e a inveja em relação aos que haviam ganho alguma das jóias. Sua tarefa
134
neste dia consistia em colocar a massa de pão dentro de formas no formato de corações,
que seriam distribuídos mais tarde aos visitantes do ashram. Em meio a seu estado de
espírito acabrunhado, deparou-se com uma foto de Gurumayi pregada na parede em
frente, num momento em que casualmente levantou o olhar do que estava fazendo.
Exatamente aí, segundo sua descrição, foi sendo tomado por uma sensação de felicidade
indescritível, localizada sobre seu coração, uma sensação tão forte que o fez começar a
chorar sem conseguir refrear as lágrimas até que terminou de formatar o último pão.
Pareceu-lhe então que o que recebia era incomparavelmente mais valioso do que
qualquer das jóias distribuídas, e que os corações em forma de jóia não podiam ser
comparados ao alívio dos sentimentos desagradáveis que sentia em seu próprio coração.
O episódio fê-lo compreender de que maneira o guru se relaciona com o discípulo,
demonstrando seu amor por caminhos inesperados.
Um outro exemplo de como é identificada a atuação do guru na vida do
devoto, foi relatado por um rapaz encarregado de lavar o chão do restaurante do ashram
de South Fallsburg. Ao término da tarefa, segundos antes da porta do restaurante ser
aberta para a entrada de dezenas de pessoas que aguardavam do lado de fora para
almoçar, um companheiro deixou um balde cair no chão e C. “sentiu” naquele momento
que deveria olhar na direção em que o balde apontava. Ao fazê-lo, deparou-se com a cena
de um outro companheiro escorregando no chão alguns metros adiante e derramando um
imenso tonel de água suja, suficiente para estragar todo o trabalho realizado e impedir a
entrada das pessoas no restaurante. Num gesto realizado praticamente sem pensar, correu
até o local e jogou sobre a água os panos de chão que carregava, de tal forma que no
instante preciso em que teminou a secagem, a porta do restaurante abriu-se e as pessoas
entraram. M. considerou que o episódio, qualificado como “singelo”, fê-lo sentir-se parte
do “plano de Deus”, cumprindo com seu papel naquele lugar e naquele momento ⎯
garantir um ambiente limpo para as pessoas que iam almoçar. Este caso foi contado para
dar um exemplo de como se pode diferenciar a voz do “ser interior”, ou do self, da voz do
ego, do mental. Segundo ele, a voz do ego muitas vezes nos provoca um retraimento,
uma contração, ao passo que a voz do self seria aquela que nos provoca uma sensação
agradável, por nos colocar em harmonia com o plano de Deus. Ouvir o self é ouvir o
guru, é ouvir Deus.
135
90
O “Sujeito da Razão”, ao lado do “Sujeito Moral” e do “Sujeito Político”, constituiria uma das novidades
apontadas pelos autores que tentaram definir o indivíduo concebido na Modernidade. Um estudo detalhado
sobre o processo de estruturação do indivíduo moderno, à luz destas categorias, encontra-se em Duarte,
1983a.
91
Como veremos adiante, o “livre-exame, e a livre iniciativa” que tanto fascínio exercem sobre os adeptos
ocidentais do Syddha Yoga, encontrará barreiras claras, colocadas pela própria natureza da relação guru-
discípulo.
136
por suas formulações. Assim, por exemplo, o paradoxo apresentado pela perspectiva
universalista da psicanálise, à qual se contrapõe uma prática clínica que exacerba os
processos de individualização, ou, utilizando os termos de Figueira, a presença de uma
teoria que desfaz o indivíduo e de uma técnica que o reencontra (apud Russo ibid, p.26)
encontraria um paralelo na ioga através de uma cosmologia que desfaz o indivíduo
(atmam é brahman) e de uma prática (a meditação) calcada na observação de suas
idiossincrasias, ainda que seja para alcançar, ao final, uma confirmação da cosmologia.
Do mesmo modo, o fato de que a “psicanálise só se transmite através da
experiência singular da análise” (Russo, id., p.27), permite que o paralelismo prossiga,
fazendo lembrar, nesse sentido, a ênfase na experiência que está na base das iogas.
Assim, “qui prétendrait ‘étudier’ le yoga à la façon d’une science objective, le
‘comprendre’ sans le vivre, aboutirait-il rapidement à une impasse: selon l’expression
indienne, on ne peut connaître un fruit à moins de le manger” (Feuga e Michaël, 1998,
p.119).
Esta reflexividade que se transforma em guia para as ações, que se presta a
trabalhar aspectos da personalidade dos devotos, ou que instaura uma perspectiva
imanentista da divindade, criará, pela apropriação contínua que se faz das vivências
pessoais dos devotos, dentro ou fora dos espaços rituais, algo que poderia ser visto,
parafraseando Mauss, como um fato espiritual total. Nada escapa à ressignificação, todos
os acontecimentos são transformados em manifestações do sagrado; tudo é o “jogo da
consciência divina”92.
O depoimento que se segue de um ex-devoto do Siddha Yoga, que de certa
forma pode ser visto como paradigmático dos devotos ocidentais, no sentido da
associação estreita que estabelece entre espiritualidade e desenvolvimento de si, é
bastante esclarecedor em relação ao que está em jogo em todos os processos homológicos
analisados, mostrando como o espiritual é relacionado ao treinamento de um certo tipo de
percepção ⎯ neste caso, aquela que identifica sincronicidades ⎯ considerando que ter
“olho” para elas é o que nos dá “energia, ânimo, alma, entusiasmo”:
92
“Felicidade do Jogo da Consciência Divina” é o significado do nome atual da mestre espiritual do Siddha
Yoga, Swami Chidvilasananda.
138
“(...) presumivelmente pela primeira vez, [ele] tivera uma vivência que
me ocorrera em diversas ocasiões na vida, achava-se no estado
espiritual que eu aprendera a reconhecer em mim e nos outros, o de
alerteza, de intuição e conhecimento, de graça espiritual. Nesse estado
a pessoa sabe tudo, a vida nos encara como uma revelação, as intuições
das etapas anteriores, as teorias, os ensinamentos e artigos de fé, tudo
foi levado como espuma, as tábuas da lei e as autoridades se
desfizeram. É estado maravilhoso, que a maioria das pessoas, nem
mesmo os que fazem procura espiritual, vivencia. Também caíra a meu
fado, eu também fora tocado pela ventania milagrosa, também eu, sem
baixar as pálpebras, me atrevera a encarar a verdade nos olhos. A esse
altamente favorecido rapaz, como percebi após duas perguntas
exploratórias, o milagre surgira sob a forma de Lao-Tse, para ele a
graça trazia o nome de Tao, e se ainda houvesse algo como uma lei ou
moralidade para ele, era a ordem: ‘Fica aberto a todas as coisas, não
desprezes nada, não condenes nada, deixa todos os rios da vida fluírem
por teu coração’. Pois todo aquele que alcançar, ainda mais pela
primeira vez, tal estado de espírito, [acreditará que ele] tem o caráter de
finalidade absoluta e se acha intimamente relacionado a uma convenção
religiosa. Todas as perguntas parecem respondidas, todos os problemas
solúveis, toda a dúvida banida para sempre. Essa finalidade, todavia,
esse vitorioso ‘para sempre’ é ilusão. As dúvidas, os problemas, a
batalha continuarão, a vida inquestionavelmente tornou-se muito mais
rica, porém nem um pouco menos difícil. Era nesse ponto que o
discípulo de Lao-Tse parecia encontrar-se: ainda no ar e inteiramente
transformado e renovado por sua vivência de liberdade e graça, era
evidente que já se via perseguido pelas sombras e estava a ponto de
140
As tradições da ioga têm como uma de suas marcas o fato de que seus
mestres costumam ser reconhecidos exatamente pela capacidade de estarem
continuamente mergulhados neste estado de graça, que passa a se constituir em objetivo
da busca de muitos devotos: alcançarem esta mesma continuidade, atingirem o samadhi.
De modo geral, contudo, o que se verifica com a maioria das pessoas é uma entrada
apenas provisória nestes estados extraordinários, e a necessidade de sua renovação.
No caso do Siddha Yoga, embora as descrições de vivências religiosas fortes
predominem quando são feitos os partilhamentos de experiências individuais dentro do
grupo, encontramos relatos também sobre o ponto levantado por Hesse, isto é, sobre
momentos em que os devotos têm a impressão de que perderam a capacidade de se
conectar ao sagrado. Geralmente estes relatos são seguidos de informações sobre como a
pessoa conseguiu ultrapassar estes períodos e voltar a ter experiências, explicitando-se
desta forma, claramente, aquilo que estou chamando de necessidade de renovação do
carisma. Não basta ter uma ou outra experiência, é preciso encontrar um modo de
reproduzi-las.93
Esta questão, percebida de forma mais ou menos consciente pelos devotos, é
freqüentemente referida em depoimentos que enfatizam a necessidade da participação nas
cerimônias do grupo como o melhor meio para a renovação da experiência, embora a
meditação seja uma prática que pode perfeitamente ser realizada em casa,
individualmente. Assim, M. relata o fato de que, após ter tido as primeiras experiências
religiosas no Siddha Yoga durante o canto de um mantra numa festa realizada pelo grupo,
passou a freqüentar suas cerimônias regulares e daí em diante não deixou mais de fazê-lo
por sentir que nestes momentos “renovava a pilha” de sua própria energia com a energia
desencadeada dentro do grupo. S., por sua vez, usou a expressão “viciada em shakti
93
A decepção tão bem descrita por Hesse, ligada ao fato de que o contato com o totalmente outro, embora
parecendo mágico e reencantador do mundo, não torna a vida mais fácil parece se enquadrar em um outro
tipo de momento da trajetória dos devotos, que pode levá-los até mesmo a romper com o grupo, por
instituir um ceticismo não quanto à realidade do totalmente outro, mas quanto ao resultado advindo do
contato com ele. A questão que se coloca é: “Para quê?” Nestes momentos, a experiência com o totalmente
outro parece deslizar do campo religioso para o campo da estética, limitando-se ao registro da fruição
prazeirosa que representa.
141
Entre todas, eu era a única que estava ali pela primeira vez, embora tivesse
iniciado meu contato com o grupo muitos anos antes do que a maioria delas. Sem saber
exatamente como lidar com minha condição de antropóloga no ashram, e tendo recebido
a recomendação, ao chegar, de não importunar os devotos com entrevistas, sentia-me
indecisa sobre revelar ou não a natureza de meu trabalho. Resolvi alimentar o clima
cordial que se estabelecera entre nós, gerado em grande parte por uma postura
comunicativa de minha parte, contando abertamente minhas próprias experiências com a
meditação, fazendo perguntas e, finalmente, comentando com cada uma, nos casos em
que julguei oportuno, o fato de estar fazendo um trabalho de antropologia com o grupo.
Minha comunicabilidade com as companheiras de quarto foi possibilitada
pelo fato de que minha fluência razoável em três línguas, afora o português, permitiu-me
fazer uma espécie de “costura” entre elas, transformando-me em tradutora para aquelas
que até então ainda não haviam podido conversar com as outras pela barreira da língua. O
ashram de South Fallsburg dispõe de um sistema extremamente eficaz de tradução
simultânea para os visitantes, que facilita enormemente a estadia de pessoas que não
falam inglês. Assim, por um sistema em que basta comunicar-se a necessidade de
tradução, obtém-se headphones para acompanhar na própria língua natal os cursos e as
palestras oferecidas. Este sistema, contudo, não abrange as conversas informais entre
companheiras de quarto, obviamente.
Nossas reuniões noturnas transformaram-se em fontes de intensa
aprendizagem para mim sobre como se dão os processos informais de socialização dentro
do grupo e de grande visibilidade sobre os mecanismos acionados para a construção
daquilo que se considera como a experiência religiosa dentro dele.
A questão de aprender a correlacionar fatos que ocorrem em terrenos
distintos da vida das pessoas foi uma das que mais pude trabalhar nestes momentos. Por
exemplo, dei-me conta ali de que a intensa utilização de programas de conversação em
tempo real na Internet, que consumira horas e horas de minha vida nos seis meses que
antecederam minha viagem aos Estados Unidos, podia ser considerada como um preparo
para a experiência cosmopolita que eu iria ter no ashram, uma vez que treinara
intensivamente na Internet a conversa simultânea em línguas diferentes, com diversas
pessoas. Essa prática servira também para eliminar completamente minhas inibições
143
quanto a falar ou escrever cometendo erros, pois convenci-me que o conteúdo do que é
dito é bem mais importante do que a forma para a maioria das pessoas, e compensa
largamente quaisquer possíveis críticas que se possa sofrer neste sentido. Assim, com
grande naturalidade, peguei-me traduzindo as experiências espirituais de minhas
companheiras de quarto e contando as minhas próprias para elas, num processo que nos
enchia de alegria e entusiasmo, apesar das dificuldades e mal entendidos que vez por
outra se produziam.
Como já disse, a espiritualidade do Siddha Yoga, tal como apropriada pelos
devotos ocidentais, incorpora aspectos reflexivos que incluem este aprendizado sobre
correlacionar fatos. Se não tivesse aprendido a construir estas correlações, a partir de uma
visão de que “nada acontece por acaso”, jamais faria esta associação entre minha
experiência na Internet e minha experiência no ashram, considerando a primeira como
uma espécie de preparação para a segunda. E, no entanto, teria passado, da mesma forma,
pelas duas. Esta percepção sobre a existência de conexões entre o que se vive, como que
desvendando significados ocultos a um primeiro olhar, pode ser considerada um dos
processos reflexivos principais desencadeados dentro do grupo, e um dos mecanismos
que contribuem de forma marcante para a inserção de elementos da esfera do profano na
esfera do sagrado.
Esta passagem se dá porque construir correlações entre acontecimentos
aparentemente sem ligação torna-se parte de um processo em que o segundo passo é
atribuir estas conexões à atuação do guru, isto é, à esfera do divino. Assim, por exemplo,
ter praticado línguas informalmente na Internet antes de ir para o ashram seria visto
como um elemento que comprovava a atuação do guru em minha vida, ajudando-me a
realizar da melhor maneira uma tarefa que eu teria inevitavelmente que cumprir. Este
olhar que procura sentidos, e que consegue enxergá-los, como que “traduzindo” a cada
passo da trajetória dos agentes uma espécie de plano divino individual para cada um, é
extremamente reconfortante e muitas vezes divertido para os devotos.
Por outro lado, não é apenas a descoberta de significados ocultos para os
acontecimentos que parece estar na base da sensação de reconforto produzida, mas
também o fato de que os sentidos descobertos parecem contribuir para uma atualização,
hoje, entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga, da famosa “teologia do otimismo”,
144
segundo a qual, conforme a formulação de Leibinz, tudo que nos acontece, por pior que
pareça, é o melhor que poderia nos acontecer (Campbell, 1989, p.106-107, 113-114).
Embora de modo algum o Siddha Yoga se apoie numa tradição que negue a
existência do mal, sendo, pelo contrário, por sua filiação shivaíta, extremamente familiar
à manifestação de aspectos difíceis94, considerados destrutivos e mesmo aterrorizantes da
divindade, é possível identificar em grande parte dos adeptos ocidentais a presença desta
teologia do otimismo, que parece estar na base também de um certo ethos do grupo que
valoriza a expressão da espirituosidade e de sentimentos positivos, como a alegria, a
cordialidade, a fraternidade e a solidariedade entre as pessoas.
Exemplo deste fato é encontrado no relato de uma devota sobre o roubo de
seu carro: “Imagine que, dentro dele, estava meu tapete de meditação, carregado do meu
karma, que, assim, foi levado pelo ladrão. Apesar do prejuízo, ri muito com o roubo, com
o fato do ladrão não poder imaginar o que é que estava levando involuntariamente,
certamente muito mais pesado do que ele gostaria. Bem, e para mim, além de me livrar
de todo aquele karma, estava mesmo precisando de um carro novo.”
94
A manifestação de aspectos difíceis é algo que pega de surpresa os devotos habituados a experiências de
meditação agradáveis. Durante um dos cursos que fiz, em South Fallsburg, uma adolescente indiana, que
ao longo de todas as aulas relatava vivências extremamente profundas, em que via espíritos, sobrevoava
lugares e ouvia vozes de pessoas desconhecidas, viveu no penúltimo dia do curso um tipo de experiência
durante a meditação que a fez soltar o grito de terror mais terrível que já presenciei em minha vida,
incluindo os que ouvi no cinema. O fato da sala estar na penumbra e todos os participantes em profundo
silêncio contribuiu para tornar o momento ainda mais dramático. Fiquei sem saber como reagir e
profundamente ansiosa em relação à atitude que os instrutores teriam naquele caso e que tipo de auxílio
poderia ser prestado à menina. O clima profundamente agradável e cordial do curso pareceu-me
irremediavelmente comprometido naquele momento. Apesar da obscuridade da sala, pude ver que os
instrutores se levantaram e dirigiram-se até a jovem. Não pude ouvir se disseram-lhe alguma coisa. Ao
término da sessão de meditação, a instrutora principal do dia comentou que aquele tipo de experiência fazia
parte dos processos de limpeza realizados pela shakti, e que deveríamos ter consciência de que aquela
energia, sendo inteligente, sabia o que fazia com cada pessoa. Saí do curso aquele dia com um verdadeiro
peso no coração, profundamente impressionada com a situação da menina. Fiquei na dúvida se teria
coragem de ir ao curso no dia seguinte, de tal forma a ocorrência me perturbara. À noite, no restaurante
principal do ashram, pude ver que a jovem jantava, com expressão serena, junto à sua família. Comentando
o episódio com minhas companheiras de quarto, elas não se mostraram surpresas, relatando já ter
presenciado coisas semelhantes (como ver pessoas que reproduzem gritos de certos animais, algo descrito
como particularmente aterrorizante). Insistindo sobre minha dificuldade de permanecer no curso, fui
aconselhada a encarar o fato como uma oportunidade para trabalhar os meus próprios medos. Ao contrário
de minha expectativa, o episódio não se repetiu no último dia. A propósito deste tipo de experiência, vale
registrar o comentário de Rudi que, em seu livro Spiritual Cannibalism, considera que o papel do guru é o
de absorver o karma dos devotos, isto é, seus aspectos negativos, daí o título do livro. Os ashrams, desta
perspectiva, seriam então lugares com uma energia extremamente pesada, pelo fato de que as pessoas
estariam trabalhando ali, por intermédio do guru, seus aspectos mais difíceis (Rawlinson, 1998, p.498).
145
que eu não via há cerca de 15 anos. Minha tensão como que desapareceu com este
encontro, e fiz uma viagem encantadora, relaxada, pois sabia que poderia contar com sua
ajuda para qualquer dificuldade que pudesse ter ao desembarcar. Quando chegamos ao
aeroporto de Nova York, mais uma surpresa: eu ia fazer uma conexão para Montreal,
pois pretendia passar uns dias naquela cidade visitando amigos antes de ir para o ashram
e minha amiga seguiria para Cleveland, aonde morava. Em mais uma incrível
coincidência, nossos vôos estavam marcados com apenas dez minutos de diferença para o
mesmo portão de embarque, num dos maiores aeroportos do mundo, com dezenas de
terminais.
Se parece demais ao leitor uma descrição tão minuciosa destes fatos, recordo
meu compromisso, na apresentação deste trabalho, de não me furtar a explicitar minha
dupla condição, de antropóloga e de pessoa sensível à proposta do Siddha Yoga.
Descrever minhas próprias experiências tem como objetivo esclarecer um pouco mais
sobre os mecanismos de construção deste tipo de religiosidade entre os devotos
ocidentais. Quero mostrar o quanto muito do que passa a ser visto como uma
manifestação do sagrado entre os adeptos depende de todo um processo de reconstituição
de fatos de suas vidas sob perspectivas que se aprende a instaurar. E uma das maneiras de
aprender é esta, informal, através de conversas, prescrevendo fatos, mais do que
descrevendo-os95, pois estes já são apresentados revestidos de sentidos previamente
determinados ⎯ basicamente, o de que o sagrado está presente o tempo todo entre nós.
Assim, continuo a descrição do que, mais tarde, pude reconstruir da história
de minha viagem à luz do comentário sobre a companhia do guru nestes momentos,
concretizada sob a forma de ajudas e facilidades recebidas.
A viagem da cidade de Nova York até o ashram de South Fallsburg exige
que se faça uma baldeação em Monticello. Ao me dirigir à bilheteria da rodoviária desta
cidade para perguntar sobre a conexão para South Fallsburg, encontrei com duas moças,
uma americana e outra mexicana, que estavam indo para o ashram e que fizeram todo o
percurso comigo, desde esta baldeação até a escolha de um táxi para ir de South
Fallsburg até a entrada do Shree Muktananda Ashram.
95
Esta distinção entre descrição e prescrição formulada por Bourdieu parece ser muito útil para elucidar
alguns dos processos de construção da experiência religiosa no Siddha Yoga.
147
O fecho de ouro de minha viagem de ida, sozinha, mas, como diria minha
companheira de quarto, na companhia do guru, ocorreria logo a seguir. Por total
inexperiência sobre o tipo de viagem que faria, eu comprara em Nova York uma imensa
mala de rodinhas, de forma a poder concentrar minha bagagem em um único volume e
com isto evitar extravios, possíveis em tantas conexões que eu faria pelo caminho. As
rodinhas, infelizmente, não compensavam o fato de que a mala se tornara pesadíssima, e
de que era extremamente penoso para mim transportá-la em locais não planos, com
escadas, etc. Ao chegar ao Shree Muktananda Ashram, descobri que meu alojamento
requeria que eu tomasse o ônibus de circulação interna existente no ashram para ir até lá.
Olhando para a minha mala, amaldiçoei meu excesso de previdência, mas meu desespero
não durou mais do que alguns minutos, porque ao perguntar para a primeira pessoa com
quem cruzei aonde era o ponto de ônibus, ela me informou que ia para o mesmo lugar
que eu. E mais, depois de me ajudar a descer e a subir do ônibus, ao ver que eu ficara
alojada no segundo andar de uma casinha sem elevador, esta mesma pessoa, sempre
sorridente e solícita, tranqüilamente pegou a mala junto comigo levando-me até a porta
do quarto.
Ao voltar para Nova York, peguei um ônibus na conexão em Monticello, em
que havia apenas um lugar vazio96. Sentei-me e abri um livro para ler no caminho. Quase
chegando ao fim da viagem, a pessoa sentada ao meu lado, um americano pouco mais
velho que eu, vestido como um executivo, mas com longos cabelos que o colocavam um
pouco fora dos padrões yuppies deste tipo de profissional97, perguntou-me se eu estava
vindo do ashram do Siddha Yoga, talvez pelo tipo de livro que eu estava lendo. Ao
responder que sim, ele comentou que também estivera lá, e ao saber que eu voltaria
naquele mesmo dia ao Brasil, perguntou o que é que eu pretendia fazer na cidade durante
as dez horas de espera até a saída de meu vôo. Comentei que de fato não havia parado
para pensar nisso, mas que gostaria de visitar ainda o bairro chinês. Ele disse então que
96
Os ônibus interestaduais em Nova York não têm lugar marcado. As pessoas vão entrando e entrando à
medida que chegam.
97
Soube depois que ele tinha 52 anos e era um criador de programas de televisão para crianças, que vivia
entre São Francisco e Nova York, aproveitando os fins de semana que estava em Nova York para ficar no
ashram de South Fallsburg. Sua participação no grupo era relativamente recente, de cerca de um ano de
mais ou menos. S. poderia ser considerado um remanescente típico da geração herdeira da Contracultura
148
poderia ir comigo de metrô até um hotel no Soho, aonde eu poderia guardar minha
bagagem, e em seguida me acompanharia a pé até o Chinatown, pois tinha um
compromisso bem próximo dali. Ao ver minha imensa mala de rodinhas, pensei que fosse
desistir da proposta, mas, ao invés disso, sugeriu que trocássemos o metrô por um taxi, e
chegamos ao Soho sem qualquer dificuldade. Eu guardei minha bagagem e ele
recomendou-me aos empregados do hotel ⎯ um belo edifício art-deco segundo ele
freqüentado por pessoas do meio artístico de passagem por Nova York ⎯ explicando que
eu voltaria mais tarde e seguiria direto para o aeroporto. Depois de providenciar-me um
mapa, aonde assinalou o percurso que faríamos a pé, assegurando-se de que eu saberia
voltar sozinha ao hotel, seguimos para o Chinatown, conversando sobre o Siddha Yoga e
sobre música, pois ele, de uma geração próxima à minha, tinha um gosto musical
parecido, conhecendo além do mais uma quantidade razoável de músicas brasileiras.
Quando chegou o momento de nos separarmos, demo-nos um abraço longo e apertado,
inesquecível para os dois: apesar de sabermos que nunca mais nos veríamos, tínhamos a
mesma sensação inexplicável de uma identidade profunda e de um encontro magicamente
programado. Ao darmos dois passos, voltamos atrás e tivemos que dar um segundo
abraço, em que tudo aquilo apenas pareceu mais forte. Saí então andando pelo
Chinatown, por Tribecca, pelo Soho, olhando vitrines e pessoas, os grandes e belos
arranha-céus da cidade. As lojas de cartão postal, onde encontrei uma coleção inteira
sobre a Beat Generation. Um grande armazém de roupas chamado Anthropology, em que
entrei apenas pela coincidência do nome. Andava sem pressa e sem aflição. Ninguém me
esperava para nada. Não achava mais que iria perder o avião. Um dia de profunda alegria
e leveza ⎯ terminava a viagem, eu voltava ao Brasil... na companhia do guru.
dos anos sessenta. Explicou sua participação no Siddha Yoga pelos benefícios anti-estresse que a
meditação lhe proporcionava.
149
religiosidade à qual não se tem acesso facilmente, constitui, sem dúvida, um certo tipo de
capital cultural a ser manipulado por seus possuidores.
A possibilidade de promover uma reconciliação entre os terrenos religioso e
científico parece ter atraído, desde os primeiros contatos, um número expressivo de
devotos ocidentais que viam nos postulados filosóficos das religiões orientais pontos de
apoio insuspeitados para posturas científicas modernas, algo que, conforme apontado por
Needleman, esteve presente desde o final do século XIX:
98
Título de uma coluna publicada na década de cinqüenta na revista americana Vedanta and the West.
151
E acrescenta:
99
O movimento carismático cristão parece situar-se exatamente neste perspectiva de valorização da
experiência mística, trazendo-a para o primeiro plano da prática religiosa dos crentes.
100
Neste sentido, vale registar que a aceitação da filosofia do Vedanta (no caso da Missão Ramakrishna
nos EUA) contribuiu, surpreendentemente, para uma maior aceitação do cristianismo entre pessoas de
origem cristã que haviam se decepcionado em algum momento de suas vidas com esta fé, conforme se vê
neste comentário de Jackson: “Curiously enough, acceptance of Vedanta seems to have frequently
contributed toward reconciliation with Christianity ⎯ or at least to a more sympathetic view of Christian
ideals. A surprising number of ‘What Vedanta Means to Me’ contributors confessed that, after years of
rejection and alienation, contact with Hinduism had renewed their respect for Christianity. Playwright John
van Druten remarked that, following his embrace of Vedanta, he could ‘turn back’ to Christianity, now
finding ‘much more’ than he had previously suspected. Ruth Folling discovered that accepting Vedanta did
153
E ainda:
not mean ‘turning away’ from Christianity but rather an ‘exciting discovery of its virtues’. She confessed
that ‘reading the teachings of the Bible in the context of Vedanta’ had made the biblical account more
meaningful. Suffering from a general ‘semantic block’ against words associated with his Christian
upbringing (God, savior, comforter, soul, heaven, redemption, love, salvation, etc. etc.’) Christopher
Isherwood also arrived at a new understanding as a result of his study of Vedanta. He noted that Sanskrit
had supplied a ‘brand new’ vocabulary that allowed him to approach mysticism sympathetically and to
recognize that his earlier hostility to Christianity was irrational. Since he was an author, it seems fitting that
the very words used in speaking of God proved crucial in Isherwood’s return to religious belief” (Op. cit.,
p.101).
154
Finalmente:
Em Sodré parece haver uma busca inicial do carisma no Siddha Yoga, através
de seus mestres espirituais, e, depois, uma busca do carisma em si mesma, tornando-se
ela própria monja para ser exemplo da atuação do Espírito Santo.
A visão de Sodré sobre o papel desempenhado hoje pelas comunidades
monásticas apontaria, assim, para a valorização do carisma, identificada por Weber como
um dos pontos centrais da mensagem de Jesus, que considerava como um “pecado contra
o espírito” a postura dos que desprezavam o carisma e seus portadores, algo típico dos
escribas e intelectuais de sua época, em oposição à postura dos pobres de espírito que o
reconheceriam como legítimo (Weber, 1994, p.417)101.
Na perspectiva de Weber, a dominação carismática constitui um fenômeno
social transitório, que ele designa pelo conceito de “comunidade emocional”, quer ela se
transforme em instituição, quer desapareça pura e simplesmente como realidade social
em razão do fracasso daquele que pretende a dominação carismática. À oposição
extraordinário/quotidiano corresponderia esta outra oposição, comunidade
emocional/instituição (Ouedraogo, op. cit., p.143-144).
101
Vale registrar aqui que a busca do carisma por meio das vias místicas e contemplativas da Igreja
católica presente em Sodré não deve ser confundida com outras formas desta mesma busca atualmente
oferecidas pela Igreja. Assim, por exemplo, há que se discernir entre as vivências propostas pelos
carismáticos católicos, ligadas a uma experiência de efervescência coletiva, de exteriorização ruidosa de
sentimentos, desta outra via, contemplativa e solitária, bem mais próxima do tipo de vivência proposto
pelas práticas de meditação indianas.
155
O Siddha Yoga sem dúvida alguma apresenta-se como uma via intensamente
ligada a vivências psicológicas para seus adeptos, sendo visto, da mesma forma que para
os adeptos do Vedanta, como portador de uma função terapêutica, sendo bastante
significativo a este respeito o grande número de psicólogos entre seus membros assim
como a presença de cursos dentro do grupo especialmente dirigidos a eles102.
Ainda em relação a este ponto, é Bharati quem chama atenção para a
importância da atuação de profissionais ligados à área psicológica e à área das religiões
comparadas no Ocidente, na construção da ponte com as tradições religiosas hindus,
incorporando, de alguma forma, maneiras indianas de pensar em seus trabalhos. Este
autor localiza neste caso, no que diz respeito aos psicólogos, toda a corrente junguiana, o
grupo de Ascona, na Suíça, diversos terapeutas da costa oeste dos Estados Unidos,
representantes da anti-psiquiatria, como R.D. Laing, e alguns “renegados” da psicologia
acadêmica, como Timothy Leary e Baba Ram Dass. No caso dos historiadores das
religiões, menciona Mircea Eliade, Charles Long e Kitagawa (Bharati, op. cit., p.204-
205).
Entre as razões da adesão de devotos ocidentais a religiosidades orientais
podemos citar ainda a busca de uma perspectiva religiosa ecumênica, em que todas as
religiões são consideradas válidas. Se ao longo do século XIX esta perspectiva era,
digamos, totalmente contracultural no ocidente cristão, conforme mostramos no capítulo
1, hoje ela é amplamente difundida, podendo mesmo ser considerada como um elemento
central do discurso e da prática dos participantes da Nova Era..
No que diz respeito ao hinduísmo, particularmente, já analisamos em outros
momentos deste trabalho a presença de um viés fortemente universalista dentro dos
grupos que saíram da Índia, em contraste com uma perspectiva mais nacionalista, de
grande visibilidade e influência na Índia atualmente. O Siddha Yoga, sem nenhuma
dúvida, adota esta perspectiva mais universalista, perceptível não apenas na citação
recorrente de outras tradições, sobretudo cristã e islâmica, nas cerimônias do grupo,
como também no tipo de literatura vendido em seus ashrams, que percorre não somente
102
Um outro dado indicativo da presença significativa deste viés psicológico no Siddha Yoga é a própria
história do grupo no Brasil, originada das iniciativas de um médico homeopata e de duas psicólogas, sendo
uma delas de formação junguiana.
157
aquelas tradições como boa parte da literatura considerada como da Nova Era. Além
disso, inúmeras vezes é mencionada a abertura do grupo à participação de pessoas de
outras fés religiosas, descrevendo-se a prática da meditação como uma forma de obter
uma vivência mais rica e completa das fés originais dos adeptos, que não são instados a
abandoná-las. Isto não quer dizer, contudo, conforme já apontamos em outros momentos,
que este universalismo não tenha limites bastante nítidos, reconhecíveis à medida em que
se aprofunda a inserção no grupo.
A busca de religiosidades orientais pelos devotos ocidentais parece estar
ligada também à maior aceitação de elementos mágicos por camadas intelectualizadas ou
“racionalizadas” do Ocidente, como se verifica não apenas no caso das lideranças da
Contracultura, como no tipo médio dos adeptos do Siddha Yoga, em sua maior parte de
nível universitário. Neste sentido, a associação, clássica na antropologia, entre o
“mágico” e o “primitivo” fica bastante problematizada.
Sem ter realizado uma pesquisa quantitativa sobre os adeptos ocidentais do
Siddha Yoga, vale registrar que, no caso do centro de meditação do Rio de Janeiro,
poderíamos situá-los, grosso modo, dentro de um perfil de classe média média a classe
média alta, com educação de nível superior, havendo uma quantidade expressiva de
pessoas ligadas ao meio artístico, à área de medicinas alternativas e a práticas
consideradas esotéricas, de um lado, e profissionais liberais em geral, socialites e
empresários de diversos setores, por outro. No que diz respeito às motivações de
participação destes adeptos, poderíamos definir alguns tipos básicos.
Em primeiro lugar, podemos destacar um número significativo de pessoas
que nunca haviam experimentado sensações consideradas “espirituais” dentro de suas
próprias tradições religiosas, e que o fizeram pela primeira vez no Siddha Yoga, a maior
parte das quais oriunda do catolicismo. Poderíamos dizer que na base da adesão deste
tipo estaria um movimento que corresponderia, então, à busca de carisma.
Identificamos também pessoas com experiências anteriores de vivência do
sagrado em outras tradições, como é o caso daquelas que já tiveram a experiência da
comunicação com espíritos, provenientes sobretudo dos cultos afro-brasileiros, que
encontram no Sidha Yoga uma possibilidade de dar continuidade a estas vivências sob
outros enquadramentos. É notória ainda a participação de adeptos da New Age que
158
encaram o Siddha Yoga como uma entre outras possibilidades de aquisição de um certo
tipo de “capital espiritual”. Ainda com relação a adesões relacionadas a vivências
religiosas anteriores, registra-se a presença de pessoas que tiveram participação em
outros grupos com perfil semelhante ao do Siddha Yoga, como ex-praticantes da
Meditação Transcendental, do movimento Rajneesh, adeptos de Sai Baba ou praticantes
da hatha ioga em grupos diversos, que justificam à adesão ao Siddha Yoga como
relacionada a um grau mais profundo ou satisfatório de um tipo de experiência já
vivenciada anteriormente.
Conforme já apontado, é grande a presença de pessoas com uma cultura
psicologizada, que valorizam os mecanismos reflexivos associados às práticas de
meditação do Siddha Yoga, provenientes geralmente de grupos de classe média que
tiveram acesso à psicanálise e a outros tipos de terapias psicológicas. Entre os membros
do meio artístico, parece haver uma valorização do desenvolvimento e acuramento da
sensibilidade e das emoções propiciados pela prática de meditação e pela possibilidade de
trabalhá-las nos quadros do próprio grupo, que realiza suas cerimônias muitas vezes de
forma performática, abrindo espaço para a encenação de pequenas histórias, para o canto
de músicas e para depoimentos pessoais com grande conteúdo expressivo.
Registra-se ainda a presença de simpatizantes de um tipo de cultura
alternativa que vêem nas religiões orientais uma possibilidade de contestação da tradição
cristã dominante e que valorizam o tipo de proposta de vida comunitária presente nos
grupos sectários hindus, bem como a possibilidade de ter acesso a experiências de
alteração de estados de consciência, mantendo atualizado um tipo de motivação que
esteve presente de forma muito marcante entre os participantes da Contracultura que se
aproximaram das religiosidades orientais.
sushumna, ao longo da coluna, até atingir o sahasara chakra, no alto da cabeça, quando
então a iluminação seria alcançada103.
103
Os chakras, que poderiam ser pensados como vórtices de energia situados ao longo da coluna vertebral,
são em número de sete, segundo a tradição yóguica,compreendendo, além do muladhara e do sahasrara, já
citados, o svadhistana, na altura do osso púbico, o manipura, próximo ao umbigo, o anahata, no centro do
peito, o vishuddha, situado na garganta e o ajna, entre as sobrancelhas (BIZERRIL, 1995a , p.3 e YOGA,
1964, p.892)
160
em cada um. Contudo, estas vivências poderiam ser descritas dentro de algumas rubricas
principais.
“Do not do anything. Do not use methods or techniques. Just sit and
meditate. How does the guru’s grace reach one? Well, gurudev’s shakti
catches them [the devotees] like a strong infection. [He] either touches
them on the face or eyes, or gives a mantra or raises his glasses and
scrutinizes them, making them feel uncomfortable, or just tell them,
‘Go inside and meditate’, and it happens. They begin to float,
transported into another world of divine ligths of different colours; they
see the Blue Pearl of dazzling blue light or begin to see a mental movie
or different scenes of past and future events, or hear celestial melodies,
have vision of divine beings. Sometimes the body starts to do strong
movements automatically” (Mangalwadi, 1992, p.127).
Uma vez recebida a shaktipat, o discípulo teria toda uma sadhana, isto é, uma
prática espiritual, a cumprir. As quatro principais práticas dentro do Siddha Yoga seriam
a meditação, o japa, o seva, e o canto. A meditação é realizada em uma postura na qual,
mantendo-se a coluna ereta, fecha-se os olhos e pronuncia-se mentalmente o mantra
recebido do guru acompanhando os movimentos de inspiração e expiração; o japa é a
repetição mental deste mesmo mantra em qualquer situação fora da postura de meditação;
o seva é o oferecimento de trabalho desinteressado ao guru; e o canto é o canto de
162
mantras e de hinos sagrados, destacando-se entre estes a Guru Gita, com 183 estrofes,
cantada diariamente pelos devotos, e o canto do Om Namah Shivaya, principal mantra de
meditação do grupo.
atuação do guru principal, fornecendo a prova de que se está conectado com esta força
divina que existiria dentro de cada um, fazendo com que os acontecimentos interiores
pareçam milagrosamente identificados com o que se passa exteriormente. Para o
praticante, a ocorrência destas coincidências é o sinal inequívoco de que se está trilhando
o caminho certo, sob as bênçãos do guru.
seus movimentos, segundo este raciocínio, devem ser bem acolhidos, “tanto como o
faríamos com uma visita querida que chega em nossa casa” segundo um dos professores
dos cursos oferecidos no ashram de South Fallburg. Ainda segundo ele, embora os
pensamentos não devem ser rejeitados, é necessário manter uma margem de negociação
com eles, intercalando-os com pensamentos puros, isto é, com máximas da tradição
religiosa hindu, ou com a prática do japa.
O japa, que teria a capacidade de acalmar a mente, é a repetição mental
mecânica do mantra, recomendada em qualquer situação quotidiana que não requeira
uma atenção especial em outras coisas ⎯ por exemplo, ao andar de ônibus, ao esperar
alguém, ao fazer um trabalho manual mecânico, etc. ⎯ sendo apresentada como um
excelente meio de fortificar a mente, de limpá-la de pensamentos inúteis e de abrir
espaço para as revelações do self. A prática de japa durante o seva também é
recomendada.
104
O Centro do Rio de Janeiro oferece também alguns cursos, inclusive intensivos, principal meio de
iniciação de devotos, e realiza diversas outras atividades fora dos satsangs, contando, por exemplo, com
um setor editorial bastante estruturado. Ao longo de 1997, as cerimônias do grupo aos sábados eram
realizadas no Edifício n.1 da Av. Rio Banco, um dos centros empresarias mais modernos e sofisticados da
cidade.
166
105
Um episódio significativo a este respeito ocorreu comigo quando relatei a um colega antropólogo a
rotina vivida pelos hóspedes do ashram de South Fallsburg, que consiste em levantar-se às 3:30 da manhã,
participar de uma série de cantos, meditar, tomar café da manhã, dirigir-se a um seva ou a algum curso,
almoçar, novamente dirigir-se a um seva ou a um curso, jantar e participar de outros cantos e meditações,
completando um conjunto de atividades que termina por volta das 22:00 horas. Ao comentar com ele os
preços extremamente baratos da hospedagem e da comida no ashram, ele me olhou divertido e comentou:
“Bem, no Albergue da Juventude você encontraria tudo isto pelo mesmo preço sem ser obrigado a
trabalhar de graça”. Este comentário pode ser colocado como o exemplo típico da maneira como um certo
tipo de público “secularizado” no Ocidente encara os grupos hindus estruturados em torno da relação guru-
discípulo. A visão preponderante é a de que os devotos são vítimas de um olhar ingênuo que os impede de
perceber a exploração de que são vítimas.
167
106
Esta perspectiva globalizante é além do mais extremamente reforçada dentro do grupo, que promove
hoje em dia uma série de atividades realizadas simultaneamente em todos os seus centros no mundo,
interconectadas por satélite, além de possuir uma concepção de funcionamento em rede, nos moldes dos
grupos de luz, da década de sessenta, em que se objetiva a realização de trabalhos espirituais em benefício
do planeta.
169
hinduísmo e, assim, “a true Indian worships gods who are Hindu and who were born on
Indian soil” (Ibid, p.195)
No Siddha Yoga, o próprio aprofundamento das práticas conduz o devoto a
perceber os limites desta posição universalista, pois ainda que o discurso contemple a
existência de espaços para todos os credos e as práticas rituais incorporem símbolos de
outras tradições, como a presença de um presépio ao lado do retrato do guru à época do
Natal, bem como o relato de mitos e parábolas de outras tradições, particularmente as do
sufismo107, durante as cerimônias, com o tempo, torna-se claro para o participante que,
por mais ecumênicos que o discurso e a prática pareçam, há um caminho propriamente
“hindu”, com certas características e peculiaridades que se impõe trilhar para que sejam
alcançados os objetivos propostos pelo grupo. Aliás, os próprios objetivos ⎯ alcançar a
iluminação ⎯ remetem a uma tradição religiosa específica, e não a todas as outras a que
eventualmente se faz menção, embora, conforme visto em outros momentos deste
trabalho, os devotos ocidentais não se sintam necessariamente comprometidos com este
ideal. Isto não impede, contudo, no caso da Divine Life Society, que seus mestres
apresentem-na como baseada na “quintessence of the teachings of all religions and of all
saints and prophets of the world” e como possibilitando a seus seguidores “to take easily
to the Divine Life even while living in the world and following the teachings of some
particular cult or religion” (McKean, op. cit., p.174), numa postura idêntica, neste
aspecto, a do Siddha Yoga, que também pretende ser uma forma de espiritualidade que
não retira seus praticantes do mundo nem os obriga à renúncia de fés anteriores.
Este discurso de certas correntes do hinduísmo, que permite às pessoas se
pensarem enquanto identidades religiosas plurais, se encaixa de forma magnífica com
algo que é praticado, de fato, no Brasil, onde a religiosidade das pessoas é muito plural,
não havendo “problema” em identificar-se como católico e praticar, eventualmente, a
umbanda, por exemplo, ou mudar de religião com certa facilidade. Este discurso hindu
interage bem também com a religiosidade da Nova Era que considera, como ele, todas as
107
No caso das lendas sufis, freqüentemente relatadas nas cerimônias, vale lembrar que o Siddha Yoga é
tributário de uma tradição, o Shivaísmo do Kashmir, originária de uma região que sofreu forte influência
muçulmana. O santo Kabir (1440-1518), frequentemente citado, além de ter sido o primeiro a expressar a
experiência de amor da bhakti em língua hindi, foi um dos que mais incorporou traços importantes do
misticismo islâmico em suas pregações (Berry, op. cit., p.54-55).
170
outros”, isto é, aonde estejam presentes intrigas, disputas de poder, manipulações, etc.,
que alguns devotos “descobrem” não pertencerem estritamente à esfera profana, como
supunham.
Outro problema criticado relaciona-se à construção de “marcas de distinção”
dentro das organizações sectárias, que acabam levando ao surgimento de “egos inflados”
em relação às conquistas espirituais obtidas, exatamente em grupos que se propõem a
trabalhar a superação do ego. Na mesma linha, menciona-se também a decepção com o
fato de que organizações que pregam a libertação dos indivíduos de suas mentes, acabe
por submetê-los aos ditames e regras de um grupo. A perda da própria personalidade em
benefício da seita é assinalada, assim, como um ponto negativo. O estímulo à
experimentação e à expressão de si, tomados como um aspecto central da proposta do
grupo, terminam por ser anulados pela rigidez de comportamentos impostos por sua
estrutura sectária. O depoimento de Gambini, neste sentido, exprime com clareza o
paradoxo que parece se colocar para a pessoa ocidental moderna que inicia uma
participação nestes grupos: “Se você não se entrega, não vive a experiência; se se
entrega, é obrigado a abrir mão do lado crítico” (Id.). A experiência de seita indiana para
o ocidental esbarraria assim nos limites que impõe à reflexividade, embora a estimule
intensamente, em diversos sentidos.
174
Conclusão
do próprio Ocidente. Como seria de esperar, contudo, não fui capaz de perceber eu
mesma os efeitos colaterais que provoquei. Tomara que outros queiram ter o trabalho de
apontá-los ⎯ afinal, creio que não há outra forma do conhecimento se fazer. Neste
sentido, não há como fugir às partial truths (Clifford, 1986).
Acho que se, por um lado, olhamos nosso objeto de estudo a partir de
algumas lentes prévias ⎯ aquelas que adquirimos ao longo de nossa formação na
disciplina ⎯ o objeto, por outro lado, como que nos impõe, por sua vez, determinadas
lentes. Foi assim com a ioga, que, sem que eu pudesse saber previamente, obrigou-me a
olhar para o encontro Oriente/Ocidente, para as dicotomias emoção/razão, para o
cruzamento da religião com a psicologia e para o que está em jogo tanto na separação
destes campos como em sua unificação, atualmente, por certos agentes e grupos
religiosos. Também pude descobrir que meu objeto não era “um”, mas sim o ponto de
partida para a investigação de vários objetos, tanto estes, a que acabo de me referir, como
diversos outros a que não pude me dedicar por falta de tempo ou de fôlego. Assim, se
iniciamos o estudo de um objeto cheios de idéias sobre como olhar para o quê, somos
obrigados a perceber, durante o curso da investigação, que olhar para determinada coisa,
em si mesmo, nos impõe ver uma série de outras, independentemente de nossos
propósitos iniciais. Este lado imprevisível da pesquisa foi para mim seu grande fascínio,
mesmo com a angústia advinda da vertigem de perceber aquilo que supuséramos ser
nosso objeto se partindo em tantos outros, insuspeitados.
Não sei se deixei transparecer ⎯ e se não o fiz, faço-o agora ⎯ minha
profunda empatia com as experiências religiosas em geral e com o grupo que estudei
neste trabalho. Não sei se consegui transmitir a riqueza de ambos. Tratar das religiões,
estas construções essenciais dos homens ⎯ e particularmente do Siddha Yoga ⎯ foi
motivo de profundo encantamento e motivação para mim. Neste último caso, por um
motivo simples: foi este grupo que me fez canalizar, tal como os emotives de Reddy, um
tipo de sentimento até então muito difuso, embora presente, em mim. Aos que têm sede
de encontrar uma fonte para reencantar o mundo, há ali, sem dúvida, muita água para ser
sorvida.
176
experimentar a si mesmo parece ter sido um legado central daquele contato, iniciado em
um momento ⎯ o final do século XIX ⎯ em que a experiência com as coisas já se
firmara como procedimento básico no campo científico. As religiosidades orientais irão
acompanhar o mesmo movimento no campo científico em relação às pessoas,
concretizado com o surgimento e afirmação dos saberes psicológicos. As religiosidades
que se afirmam no Ocidente como resultado do contato com o Oriente, particularmente a
Nova Era, se colocarão como ponto privilegiado para a experimentação de si, e não mais
como campo determinador de condutas e regras. Poder-se-ia dizer, assim, que as
religiosidades orientais irão confluir, no Ocidente, para todo o vasto campo da
experimentação e da observação de si que se abrirá com a Psicologia.
Algo importante a assinalar, e como que o corolário do que acabamos de
dizer, relaciona-se à constituição de um campo psicológico-espiritual no Ocidente, do
qual a maior expressão é a Nova Era. Neste sentido, parece ter se constituído, a certa
altura, uma consciência maior dos agentes sobre o fato de que muitos dos fenômenos
atribuídos ao campo “espiritual”, como os místicos, guardavam uma relação estreita com
o psicológico. A grande novidade contemporânea a este respeito estaria nesta
apropriação, pelo senso comum, de uma noção até então restrita aos meios científicos (a
de que os fenômenos religiosos guardavam uma relação com os fenômenos psicológico),
algo que viria a ter grande influência sobre os praticantes das religiões. Neste sentido, é
como se eles tivessem acedido a uma auto-consciência mais profunda, inexistente até
então, sobre os fenômenos psicológicos que estão em jogo em muitas das experiências
ditas “espirituais”. Explorá-las passa a ser então uma meta para muitos, com objetivos,
neste sentido, muito mais seculares do que realmente “espirituais”. A falta de lealdades
estabelecidas em relação a grupos religiosos específicos teria a ver com este aumento da
consciência sobre os fatores psicológicos envolvidos em certos tipos de experiência
espiritual, e na idéia de que explorá-los não implica em adesão definitiva, já que qualquer
tipo de experiência é igualmente válida. Neste sentido, o argumento universalista no
campo religioso, tal como proposto por algumas correntes do hinduísmo, passa a ser
absorvido com um sentido secularizado ⎯ qualquer religião é válida porque qualquer
religião permite uma experiência pessoal que leva ao conhecimento de si.
178
Ainda com relação a esta temática, mas vista sob um outro ângulo,
poderíamos propor ainda a idéia de que parece haver hoje em dia uma necessidade de
juntar domínios modernamente separados, neste caso, associando-se o psicológico ao
espiritual. Neste sentido, é como se, em um primeiro momento, a separação
epistemológica de diversos campos de conhecimento tivesse sido apropriada pelo
linguajar quotidiano das pessoas. Contudo, em um segundo momento, é como se fosse
adquirida uma consciência sobre o fato de que tais domínios, na prática, não funcionam
separadamente. Neste caso específico, consciência de que o psicológico e o espiritual
formam um domínio único. A ioga apresentar-se-ia, assim, como um terreno dos mais
férteis para investigar-se uma das maneiras pelas quais pode ser restaurada uma das
fragmentações criadas pelo saber moderno, aquela que separa os campos psicológico e
religioso.
Um outro viés fomentado pela presença das iogas no Ocidente e também
ligado à psicologia, diz respeito à difusão dos assim chamados “estados alterados de
consciência”, que já despertavam o interesse das elites européias letradas desde o
Romantismo. A Contracultura, mais de um século depois, teria sido responsável por uma
maior popularização e aceitação no Ocidente destes “estados alterados” ⎯ seja os
obtidos pelo uso de drogas, seja pela prática de disciplinas religiosas ⎯ como parte
integrante do quotidiano, algo que na Índia jamais chegou a ser problema. No caso do
Brasil, não apenas a prática de religiões como o Siddha Yoga, mas também a recente
ampliação do consumo urbano de substâncias psico-ativas utilizadas em um contexto
religioso (particularmente no caso da ayahuasca, consumida pelo Santo Daime e pela
União do Vegetal, grupos religiosos que ganham cada vez mais espaço na cena urbana
brasileira) parece apontar na mesma direção. É interessante destacar também como a via
religiosa vem, neste sentido, se afirmando como um locus privilegiado para o
desenvolvimento de uma postura mais tolerante socialmente em relação a estes estados
“fora do ordinário”, conforme indicado na análise de MacRae (1998) sobre o uso da
ayahuasca, em que se mostra que a argumentação utilizada para a não-criminalização de
seu uso foi toda construída sobre o fato de ele inserir-se em um contexto ritual.
A inclusão dos grupos de origem hindu que se deslocaram para o Ocidente
dentro do fenômeno da Nova Era é um ponto que julgo importante problematizar. Se
179
muitos destes grupos promovem uma junção de técnicas espirituais hindus com técnicas
da psicologia ocidental ⎯ como o faz o próprio Siddha Yoga ⎯ isto não me parece ser
suficiente, contudo, para caracterizá-los como "Nova Era”, até porque, segundo os
estudiosos deste fenômeno, este se define muito mais por uma postura dos sujeitos do que
por um corpo específico de doutrinas. A Nova Era não seria, neste sentido, uma religião,
mas muito mais uma atitude em relação às religiões ⎯ aquela que valoriza recorrer a
todas elas, construindo suas próprias hibridações de acordo com o gosto e as
necessidades particulares de cada um. As religiões de armar109, segundo alguns, em que
cada um, dentro do estoque de religiosidades disponíveis, arma, como em um jogo, o
conjunto que mais lhe convém, sempre provisório e sujeito a rearranjos, como a
expressão bem o indica.
Os devotos dos grupos de origem hindu no Ocidente não têm a marca da
errância religiosa que caracteriza os adeptos da Nova Era. Bem ao contrário, a dedicação
ao guru e a fidelidade ao grupo são elementos centrais da participação nestes grupos. Um
devoto do Siddha Yoga, que frequenta seus satsangs, que faz seva, que contribui com
dinheiro para manutenção do grupo, não pode ser considerado um new ager. Sua
participação no grupo não é eventual, nem é “experimental”. O que não significa dizer
que muitos new agers não possam, eventualmente, frequentar estes grupos, algo que, de
fato, ocorre, conforme pude verificar em meu trabalho de campo. Definí-los (aos grupos)
como parte do fenômeno da Nova Era ⎯ por mais que o background da Nova Era seja
proveniente do hinduísmo ⎯ pode servir de pretexto, mais uma vez, para calar a voz do
“outro”, não reconhecendo sua especificidade. Tratar-se-ia aqui de sobrepor ao “outro”
uma identidade construída no Ocidente, ainda que ela se utilize intensamente de outras
religiosidades para se afirmar, inclusive, como já dissemos, do próprio hinduísmo.
A intuição de Vivekananda sobre o papel dos símbolos na mediação dos
sentimentos religiosos e no diálogo com o sagrado parece esclarecedora a respeito desta
discussão. Vivekananda tinha uma percepção aguda sobre o fato de que a religião é um
sistema simbólico que permite aos homens representar idéais altamente abstratas, como a
de sagrado, a de verdade e a de pureza, por meio de imagens e formas. Daí ⎯ é este o
109
Esta expressão foi usada como título da mesa redonda que debateu a Nova Era nas VIII Jornadas sobre
180
tribo, que sabem explicar o sentido das cosmologias, e não apenas praticar os rituais sem
compreender seu significado mais profundo ⎯ como no caso do famoso informante de
Victor Turner sobre os n’dembu. O nativo distanciado, que produz um conhecimento
crítico sobre o que vive, é diferente do nativo erudito, digamos assim, que tem um
conhecimento mais profundo sobre as cosmologias; erudição não seria sinônimo de
distanciamento.
Definindo o processo de conhecimento colocado em jogo pelas iogas,
Rawlinson faz o seguinte comentário:
“The common-sense asumption is that I receive the same input as
anyone else and that it is my reactions to that input which are the cause
of the distortion [of the situation I observe]. In other words, there is a
common, neutral underlay of perceptions (a person’s face, the colour of
his hair, his tone of voice, etc) which is evaluated differently by
different people.
Its [from yoga] basic presuposition is as follows: it is incorrect to think
that there is a fixed or boundary at which input is received and then
classified or evaluated according to certain principles. Rather, the very
process of being aware of “x” defines the nature of “x” (Rawlinson
1981, p.253).
O que nos faz pensar, por sua vez, nos termos da relação de conhecimento tal
como colocada em Marx (1972), na qual sujeito e objeto de conhecimento transformam-
se mutuamente ao entrarem em contato. Com isto, retornamos a uma das temáticas
centrais deste trabalho: aquela de que o “outro”, sempre construído, seja como objeto de
estudo, seja como aquele que permite, por negação ou espelhamento, que construamos
nossa própria identidade, terá sempre, quer se queira, quer não, muito de “nós”.
183
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193
APÊNDICE
Capítulo 1:
p.15- Segundo Simmel “depois que o indivíduo se libertou (...) das cadeias da guilda, do status
hereditário e da igreja, a busca pela independência continuou até o ponto em que os indivíduos
tornados independentes neste sentido também queriam se distinguir um do outro. O que
importava mais agora não era que os indivíduos fossem livres, mas que se fosse um indivíduo
particular e insubstituível” (Simmel, 1971a, p.222)
p.16- (...) algo que não é meramente “o desenvolvimento de um ser além do estágio morfológico
(…), mas desenvolvimento em direção a um centro interior original e o preenchimento deste ser
de acordo com suas próprias leis, com suas disposições mais profundas” (Simmel, 1971c, p.
229).
p.17- Se não parecer por demais vão, eu gostaria de expressar a opinião de que cada um dos aforismas
desconexos e individuais que compõem os Upanishades poderiam ser deduzidos do pensamento que vou
lhes apresentar, embora o inverso – que meu pensamento possa ser encontrado nos Upanishades - não seja
de forma alguma o caso. (Versluis, 1993, p. 22).
p.18- “as maneiras pelas quais eles interpretaram os textos hindus e budistas dizem-nos consideravelmente
mais sobre Schopenhauer, ou Nietzche, do que sobre os próprios textos” (Versluis, 1993, p. 23).
p.20- os poetas alemães reconheceram algo que se tornaria cada vez mais claro posteriormente: o fato de
que as tradições orientais representavam uma alternativa potencial ao racionalismo e seus
constrangimentos, aos antolhos empíricos do Iluminismo” (Versluis, 1993, p.19).
p.21- “o Orientalismo positivo faz parte, na verdade, de uma luta mais ampla na América pelo pluralismo
cultural e religioso em uma nação auto-identificada, na maior parte das vezes, apenas com a tradição
judaico-cristã. Neste movimento em direção ao pluralismo cultural e religioso, o Transcendentalismo
desempenhou um papel significativo, possível somente quando o mundo ocidental, e especialmente a
América, começaram a ter notícia de outras tradições, além das judaico-cristãs. O Transcendentalismo
representa, portanto, a passagem de uma completa rejeição das religiões asiáticas à sua aceitação dentro de
uma perspectiva pluralista na América. Os esforços dos Transcendentalistas, condicionados como o foram
pelo espírito de seu tempo, abriram caminho para a publicação de escritores asiáticos e para o enraizamento
das tradições asiáticas naquele país” (Versluis, 1993, p.166).
p.21- “uma séria tentativa de conjugar os ensinamentos filosóficos e religiosos presentes no hinduísmo e no
budismo com o pensamento ocidental” (Versluis, 1993, p.36).
p.22-“Em parte ele foi uma reação à ortodoxia puritana; em parte, um efeito do estudo renovado dos (…)
panteístas orientais, de Platão e dos alexandrinos, da moral de Plutarco, Sêneca e Epitetus” (Versluis, 1993,
p.6).
p.22- “[eles] interpretaram os textos religiosos asiáticos de acordo com suas inclinações particulares.
Emerson e Thoreau tornaram-nos abstratos, Johnson e Frotinghan universalizaram-nos, outros
cristianizaram-nos “(Versluis, 1993, p.4).
p.23- “o interesse dos Transcendentalistas pelas religiões asiáticas derivou essencialmente daquilo que os
Unitarianistas apontaram nelas como sendo uma perspectiva herética sociniana, ariana, arminiana ou
pelágia, de acordo com a ortodoxia calvinista. As heresias socinianas e arianas ⎯ que sustentavam que
Cristo não era completamente divino ⎯ abriram caminho para os Transcendentalistas afirmarem que Cristo
194
não era o único caminho para a salvação, e que o hinduísmo, o budismo e outras religiões mundiais
também eram divinamente reveladas. As heresias arminianas e pelágias ⎯ que negavam a predestinação e
consideravam que as pessoas podiam melhorar a si mesmas e lutar por sua salvação ⎯ permitiram aos
Transcendentalistas tornarem-se interessados no hinduísmo, no budismo e em outras religiões mundiais
que também afirmavam ser possível trabalhar pela própria salvação” (Versluis, 1993, p.6).
p.23- “a conversão a uma religiäo literária que funde todas as escrituras religiosas mundiais”(Versluis,
1993, p.76), Thoreau, antecipando o acento na experiência que se verificaria depois, “tentou viver de
acordo com o que tinha lido e reconhecido como a verdade perene” (Versluis, 1993, p.79), conforme pode
ser verificado através das práticas que descreve em Walden.
p.24- “A obscura correspondência entre Novalis e os Upanishades só pode ser esclarecida se deixamos de
querer explicá-la pela influência do Oriente redescoberto no final do século XVIII e recorremos a esta
influência indireta que nunca deixou de se exercer do Leste em direção ao Oeste através do neoplatonismo,
dos místicos e dos iluminados da Renascença, nas eras das grandes negações religiosas. Ora, jamais, desde
a Renascença, o ocultismo floresceu tanto quanto naquele final do século XVIII. Aflorando no martinismo,
no swedenborguismo, no hernhutismo de Zizendorf, no rosacrucianismo e em uma multiplicidade de lojas
mais ou menos iluminadas, engrossado pelos adeptos do magnetismo animal, do hipnotismo, do
sonambulismo, da telapatia e de outros fenômenos ‘milagrosos’ tidos por espirituais, sustentado por todos
os movimentos milenaristas que anunciavam uma nova revelação, uma nova idade do ouro, o ocultismo
espraiou-se sobre o Pré-romantismo, atingiu todas as camadas sociais e depositou sobre a elite (…) uma
reserva de fermentos místicos que o Romantismo levaria tempo para esgotar” (apud Versluis, 1993, p.21).
p.25- “As tradições religiosas do Ocidente foram de pouco auxílio para apoiar esta busca de auto-
conhecimento iniciada com o desenvolvimento da psicologia científica. Embora a espiritualidade das
religiões ocidentais contivesse um profundo conhecimento sobre o self, estas tradições, em seu conjunto,
foram inaptas para comunicar este conhecimento em uma linguagem e sob condições que pudessem ser
aceitas pelo buscador secularizado contemporâneo” (Needleman, 1995, p.xxiv).
p.25- Neste sentido, o que muitas espiritualidades esotéricas parecem ter propiciado foi “um acesso ao
auto-conhecimento separado de uma aceitação a priori de sistemas religiosos de crença e de aspectos
moralistas” (Needleman,1995, p.xxiv).
p.27- Para ele, o principal objetivo da evolução espiritual seria “conduzir o fiel a alcançar seu verdadeiro
destino, isto é, a unidade com sua própria essência: ’torne-se o que você é’, o que supõe que ainda não o
somos e que os indivíduos modernos permanecem fora de suas essências, o que é precisamente o sentido
da palavra existência (de ex-sistere, ’permanecer fora’)” (Borella, 1995, p.346).
p.28-29- “É preciso sair e trocar nossa espiritualidade por qualquer coisa que eles tenham a nos oferecer;
vamos trocar as maravilhas do reino do Espírito pelas maravilhas do reino da matéria” (Swami Sivananda
apud McKean, 1996, p.282).
p.29- “Brahman é a única realidade na Índia, a matéria é a única realidade no Ocidente; a auto-realização é
o objetivo final na Índia, o poder e a dominação são os objetivos finais no Ocidente; os indianos perseguem
a felicidade através da auto-contenção, os ocidentais perseguem o prazer através da auto-indulgência; a
renúncia traz alegria aos indianos, as posses trazem alegria aos ocidentais; a não-violência é o ideal
indiano, matar e conquistar é o ideal ocidental” (Swami Sivananda, apud McKean , 1996, p.167).
195
p.32- “Não discutais sobre as doutrinas e religiões. Há apenas uma. Todos os rios correm para o oceano…
A grande corrente de água traça ao largo do percurso, segundo as raças, as idades e as almas, um leito
diferente; a água é sempre a mesma” (apud Varrene, 1993, p.261).
p.33- “Ele referiu-se algumas vezes a sua mensagem como um “Vedanta Prático”, uma descrição
apropriada no sentido de que ele advogava tanto a iluminação individual quanto a reforma social. Um
número crescente de indianos tornara-se favorável à reforma social e muitos proclamavam-se vedantistas,
mas poucos indianos no século XIX defendiam ao mesmo tempo a reforma social e o vedantismo. (…) Sua
educação e os anos passados no Ocidente ajudaram-no, no mínimo, a clarificar e a moldar suas idéias
concernentes à reforma social” (Jackson, 1994, p.31).
p.33- “Dos vôos espirituais mais altos da filosofia (…), do ateísmo jainista às mais baixas idéias de
idolatria e variadas mitologias, tudo encontra um lugar na religião hindu” (Ellwood,1987, p.51).
p.34- (...) que constitui o cerne de sua identidade e aquilo que torna a todos “participantes da felicidade
imortal, seres perfeitos e sagrados”. Assim, comenta: “Vós, divindades sobre a terra, pecadores? Pecado é
considerar os homens como tal (…) Vós sois almas imortais, espíritos livres, abençoados e eternos. Vós
não sois matéria, nem corpos. A matéria é vossa serva, e não vós os servos da matéria ” (Ellwood, 1987,
p.55).
p.34- “Manifestação e não criação é a palavra da ciência de hoje, e o hindu se alegra com o fato de que
aquilo que ele acalentou em seu peito ao longo dos tempos estará sendo ensinado em linguagem mais
contundente e sob luzes mais amplas através das últimas conclusões da ciência” (Ellwood, 1987, p.58).
p.34- “este é o próprio cerne, a concepção vital do hinduísmo. O hindu não quer viver de palavras e teorias;
se há existências além da existência ordinária dos sentidos, ele quer estar face à face com elas” (Ellwood,
1987, p.56).
p.34- Vivekananda propõe à certa altura uma definição geral sobre o que seria a religião dos hindus,
apresentando-a como “uma luta constante para tornar-se perfeito, para tornar-se divino, para alcançar Deus
e ver Deus, e, neste encontro com Deus, nesta visão de Deus, tornar-se perfeito, como o Pai no céu é
perfeito. Nisto consiste a religião dos hindus” (Ellwood, 1987, p.56).
p.35- “Toda a religião dos hindus é centrada na realização. O homem deve tornar-se divino, realizar o
divino, e, assim, ídolos, templos, igrejas ou livros são apenas apoios, auxílios em sua infância espiritual.” E
continua: “Adoração exterior, adoração material, dizem os Vedas, são o estágio mais baixo, em luta para
alcançar o mais alto; oração mental é o estágio seguinte, mas o estágio mais alto é quando o Senhor foi
realizado”. Assim, continua, “Se um homem pode compreender sua natureza divina com a ajuda de uma
imagem, seria certo chamar a isto pecado? E, mesmo quando tivesse ultrapassado aquele estágio, deveria
ele ser considerado um erro?” (Ellwood, 1987, p.59) .
p. 35-36- “Por quê um cristão vai à igreja? Por quê a cruz é sagrada? Por quê a face se volta para o céu em
oração? Por quê há tantas imagens na Igreja católica? Por quê há tantas imagens na mente dos protestantes
quando eles rezam? Meus irmãos, não podemos pensar em nada sem uma imagem material assim como não
podemos viver sem respirar. E pela lei de associação a imagem material chama a idéia mental e vice versa
(...)
Como percebemos que, de uma maneira ou de outra, pelas leis de nossa constituição, temos que associar
nossas idéias de infinito com a imagem de um céu azul, ou com o mar, alguns evocam a idéia do sagrado
com a imagem de uma igreja, ou de uma mesquita, ou de uma cruz. Os hindus associaram as idéias de
sagrado, pureza, verdade, omnipresença e todas as outras idéias com diferentes imagens e formas”
(Ellwood, 1987, p.58-59).
196
p.36- “Todas as outras religiões estipulam certos dogmas fixos e tentam forcar a sociedade a adotá-los.
Estipulam para toda a sociedade um mesmo casaco que deve ajustar-se tanto a Jack, quanto a Job quanto a
Henry. Se ele não se ajustar a John ou a Henry, eles ficarão sem casaco para abrigar seu corpo. Os hindus
descobriram que o absoluto só pode ser realizado ou pensado ou descrito através do relativo e as imagens,
da cruz ou do crescente, são simplesmente centros variados, pregadores para pendurar as idéias
espirituais.” (Ellwood, 1987, p.59).
p.36-37- “Para o hindu, o homem não está viajando do erro para a verdade, mas da verdade para a verdade,
da verdade mais baixa para a verdade mais alta. Para ele todas as religiões, do mais baixo fetichismo ao
mais alto absolutismo, significam várias tentativas para a alma hindu captar e realizar o infinito, cada uma
determinada por suas condições de nascimento e associação, e cada uma marcando estágios diferentes de
progresso. Cada alma é uma jovem águia voando mais e mais alto, ganhando mais força até alcançar o
glorioso sol” (Ellwood, 1987, p.59).
p.38- “Se o fanático hindu imola-se na pira, ele jamais acende o fogo da inquisição. E isto não pode ser
colocado à porta da religião, da mesma forma a queima de bruxas não pode ser colocada à porta do
cristianismo” (Ellwood, 1987, p.60).
p.38- “Para o hindu, então, todo o mundo da religião é apenas uma viagem, uma elevação, de diferentes
homens e mulheres, através de várias condições e circunstâncias, para o mesmo objetivo. (…) As
contradições provêm da mesma verdade adaptando-se a diferentes circunstâncias e naturezas.
É a mesma luz projetando-se através de diferentes cores. E estas pequenas variações são necessárias para
aquela adaptação.” (Ellwood, 1987, p.60).
p.38- “Ao longo de toda a ordem da filosofia sânscrita, desafio qualquer um a encontrar expressões de que
apenas os hindus se salvam e os outros não. Vyas afirma ‘Encontramos homens perfeitos mesmo além do
limite de nossa casta e credo’” (Ellwood, 1987, p.60).
p.39- E prossegue, definindo o que seria o ideal de religião do ponto de vista do hinduísmo: “Haverá uma
religião sem lugar para perseguições ou intolerância em sua política, em que se reconheça a divindade em
cada homem e mulher, e cujo escopo total, cuja força, estará centrada em ajudar a humanidade a realizar
sua natureza divina” (Ellwood 1987:61). Segundo ele, a principal mensagem a ser transmitida pelo
Parlamento Mundial das Religiões seria a de que Deus está igualmente presente em todas elas: “Foi
reservado à América proclamar aos quatro cantos do mundo que o Senhor está em todas as religiões.”
(Ellwood, 1987, p.61).
p.46- “muitos críticos dos Transcendentalistas viam sua rejeição [ao cristianismo tradicional e ao
unitarianismo] como uma evidência inquestionável de que eles não se interessavam pela religião em geral
(…). Os Beats ganharam uma reputação similar de inimigos anti-religiosos de deus e do país, ou, na
melhor das hipóteses, de diletantes, de apreciadores fúteis do modismo do Oriente exótico” (Prothero,
1995, p.6).
p.46- “Como os Transcendentalistas, os Beats foram bem mais do que inovadores literários ou críticos
sociais; eles também foram ávidos buscadores de visões místicas e de transcendência. Eles foram para a
estrada porque não conseguiram encontrar Deus nas igrejas e sinagogas da América do pós-guerra.”
(Prothero, 1995, p.19).
p.47- Esta “nova consciência” ancorava-se em uma visão de mundo através da qual “eles viam os seres
humanos como mergulhados em uma vasta rede de conexões com outros seres humanos, com os animais e
com a própria vida” (Prothero, 1995, p.19). Tais aspectos permitiriam, mais uma vez, aproximá-los dos
fundadores do Transcendentalismo: “como Emerson, os Beats almejavam entrar em contato com o sagrado
em momentos de intuição indescritíveis e então transmitir em palavras ao menos algo do que haviam
experimentado. Como Thoreau, insistiam sobre a santidade da vida quotidiana, a santidade do não-
conformismo, e a assombrosa sacralidade da natureza” (Prothero, 1995, p.19).
197
p.48- Nos termos de Prothero, esta se traduziu como “seus anseios românticos por vidas apartadas dos
ritmos artificiais da vida, sua certeza sobre a correspondência entre o natural e o sobrenatural, sua
percepção sobre o papel profético dos poetas, e seu desprezo por ‘consistências vãs’” (Prothero, 1995, p.7).
p.49- “Convenci-me (…) de que revoluções culturais similares [à da Contracultura] ocorreram antes, e de
que a visão de mundo adotada pelos contraculturalistas só poderia ser adequadamente descrita pelo
adjetivo ‘romântica’. Não fui o único a sustentar esta opinião. A comparação com o movimento Romântico
foi feita eventualmente tanto pelos advogados quanto pelos críticos desta derradeira explosão da ‘febre
romântica’” (Prothero, 1995, p.3).
p.51- Esta, tal como as produções românticas descritas por Zengotita, “sacrifica todas as posturas
enrigecidas às irrupcões do gênio e ao espírito imanente; a ela pertencem o momento radiante, o toque
numinoso” (Zengotita, 1989, p. 75).
p.53- “boêmia e orientalista” de Esalem, fundada na na década de 1950 por Michael Murphy, um graduado
de Stanford interessado em religiões orientais (Carozzi, 1998, p.4).
p.54- (...) a participação em “uma multiplicidade de disciplinas, grupos e oficinas de treinamento que
incluem grupos de encontro, treinamento da consciência gestáltica, análise transacional, sócio-percepção,
terapia primal, bioenergética, massagens, psicossíntese, psicologia humanística, est, treinamento Arica,
meditação trascendental, biofeedback, controle mental e ioga” (Carozzi, 1998, p.6).
p.55 - “os usuários, mestres e prestadores das disciplinas do Movimento do Potencial Humano com centros
herdeiros da teosofia, como Findhorn (…) e com canalizadores e praticantes de diversas teorias esotéricas e
da parapsicologia neste país [Inglaterra], Estados Unidos e Austrália” (Carozzi, 1998, p.7-8).
p.55-56- (...) tais como “a de que o ser humano possui uma chispa divina em seu interior, a de que todas as
tradições místicas e religiosas conduzem a uma mesma verdade única, ainda que expressa de diferentes
maneiras de acordo com as distintas épocas e culturas em que se originam, e a de que a crescente
consciência da chispa divina interior do homem conduzirá a uma Nova Era para a humanidade” (Carozzi,
1998, p.8)
p.57- “a centralidade de todos os usos que a nova religiosidade místico-esotérica faz da psicologia”
(Champion, 1993, p.758)
p.58- “A ampliação da consciência já não pretende apenas a superação dos condicionamentos sociais em
busca da auto-realização e o desenvolvimento de potencialidades individuais, mas a descoberta de uma
chispa divina no interior do homem que o une energeticamente a um todo divino que o inclui e supera. A
consciência individual ampliada se torna consciência planetária e cósmica, outorgando à autonomia um
novo significado. Ser socialmente autônomo agora é ser divino e estar ligado a uma totalidade divina. A
incorporação também supõe a adição de um propósito milenarista à ampliação da consciência: a
instauração de uma nova era para a humanidade” (Carozzi, 1998, p.11-12, grifos meus).
p.65- “o termo secularismo, tal como usado na imprensa indiana e na prática política, não mais se refere a
um sistema político que tenta distanciar-se dos negócios religiosos. Com o aumento da preeminência da
198
ideologia nacionalista hindu, o secularismo passou a ser amplamente interpretado como a obrigação do
estado de apoiar todas as religiões, com o apoio principal direcionando-se para o hinduísmo, religião de
uma significativa maioria de indianos. Tal mudança de sentido relaciona-se ao sucesso do ativismo e às
incansáveis campanhas de propaganda do movimento nacionalista hindu. Essas campanhas deturpam a
interpretação do secularismo de Nehru e acusam o Congresso de ser ‘pseudo-secular’. (…) Os
nacionalistas hindus argumentam que o estado indiano discrimina a maioria hindu ao mostrar-se indulgente
com os grupos não hindus. Apresentado-se a si mesmos como defensores da democracia, eles sustentam
que a discriminação do estado contra os hindus ameaça a democracia. Eles associam a democracia com a
estabilidade da sociedade indiana, uma estabilidade fundada na espiritualidade ensinada pelos sábios
hindus. Segundo os nacionalistas hindus, como o hinduísmo emana de valores espirituais, ele possui uma
forma única de ser tolerante com outras religiões e é a única base possível de um secularismo
autenticamente indiano. Tal secularismo nativo, que advoga o apoio do estado a todas as religiões, é
apresentado como superior ao pseudo-secularismo nehruviano, importado do Ocidente, que advoga a
estrita separação entre estado e religião. Em decorrência destas proposições relativas ao secularismo, à
espiritualidade e ao hinduísmo, os nacionalistas hindus concluem que o estado hindu é necessariamente o
melhor guardião de uma democracia secular indiana nativa” (McKean, 1996, p.5-6).
p.65-66- “A interrelação entre as organizações religiosas hindus e a economia política da Índia são
complexas e historicamente variáveis. Os benefícios ideológicos e materiais a serem ganhos através do
apoio aos gurus e às organizações religiosas são maiores hoje do que o foram nas quatro primeiras décadas
após a Independência. Inicialmente, através da interpretação que deram ao secularismo, as classes
governantes indianas visaram legitimar seu poder em termos não-religiosos e com um mínimo de confiança
no patrocínio das instituições religiosas. A antipatia de Nehru em relação às instituições e aos líderes
religiosos fez parte por muitos anos da plataforma oficial do Partido do Congresso. Entretanto, não sendo
nem ignorantes nem indiferentes à utilização política dos ideólogos religiosos com seguidores leais, houve
e há agora cada vez mais políticos, burocratas e grupos profissionais e de negócios ansiosos para cultivar
relações de trabalho com organizações lideradas por swamis e gurus” (McKean, 1996, p.5).
p.67- “A primeira questão que se coloca para o hindu moderno é a de sua auto-imagem. Devido a uma
postura infeliz, os hindus geralmente afirmam que a sua não é uma religião, mas antes um modo de vida e
que os hindus não acreditam em conversão. Ambas estas premissas são falsas e indefensáveis. O hinduísmo
é uma religião baseada nas iluminações dos rishis védicos, tal como expressas nos Vedas, nos
Upanishades, na Bhagavad Gita e nos agamas shivaítas. Com sua ênfase no auto-conhecimento, a tradição
hindu celebra a diversidade, mas a unidade subjacente a esta diversidade é visível para qualquer hindu ou
forasteiro objetivo” (Kak, 1990, s/n).
p.67- “A afirmação de que não desejam converter outros trai falta de sinceridade, senão irracionalidade (...)
Esta colocação não é confirmada pela história do hinduísmo. De outro modo, como teria ele se espraiado
da Palestina (lembrar dos mitanis do segundo milênio a.C.) ao Oriente e ao Sudeste da Ásia? Esta falsa
interpretação foi respaldada pela ortodoxia da fraturada sociedade hindu do século XIX e levou a um
distanciamento e a uma auto-absorção moral e eticamente erradas, além de ir contra sua própria tradição. O
hinduísmo teve uma rica história de conversão através da persuasão, do debate e da shastrartha. O caminho
do hinduísmo é diferente do caminho do cristianismo e do islã; não reconhecer isto é não ser confiável ”
(Kak,1990, s/n).
p. 67- “Também é comum hoje em dia para certos gurus hindus levar a inclusividade para além do domínio
da razão e reivindicar que Jesus é um avatar. Como é possível reivindicar isto sem um conhecimento
pessoal ou sem levar em conta a história é algo que ultrapassa a razão. Se a idéia é levar cristãos a se
tornarem hindus por equívoco, isto deveria ser amplamente condenado. É apenas uma reprodução da
maneira como muitos missionários cristãos se disfarçam de sannyasis nos ashrams da Índia.” (Kak
1996:s/n).
Notas:
199
Nota 20, p.30- A presença do proselitismo dentro das tradições hindus, em que pese esta auto-imagem de
neutralidade religiosa, esteve presente na Índia pelo menos desde o final do séc. XIX, quando a introdução
da prática do suddhi, ritual de purificação originariamente destinado aos brâmanes, passou a ser usada
como meio de (re) conversão ao hinduísmo de cristãos e muçulmanos. No que diz respeito aos
estrangeiros, a questão do proselitismo e da conversão ao hinduísmo, não se colocaria, ao menos
teoricamente, por entrar em conflito com a própria concepção do que é ser hindu, algo que remete a um
sistema não apenas religioso, mas socio-religioso, estando associado apenas a quem nasce na Índia. Assim,
conforme explicação de Hulan e Kapani:
“o que chamamos de hinduísmo (termo criado pelos ingleses por volta de 1830) não corresponde a um
domínio separado da vida social, como é o caso da religião hoje no Ocidente. O hinduísmo é
essencialmente e indissoluvelmente um sistema socio-religioso. O termo mantido do sânscrito (…) é
dharma o qual, sem contradizer a idéia de religião, significa mais precisamente o fundamento cósmico e
social, a norma reguladora da vida. Trata-se de uma lei inerente à natureza das coisas, inscrita ao mesmo
tempo na sociedade, no fundo de cada um de nós. Colocar para um hindu a questão: “Qual é a sua
religião?” significa portanto perguntar-lhe: ‘Qual é o seu way of life ?’ Mais exatamente, na verdade, é o
termo composto varna-asrama-dharma que define o conteúdo da religião hindu, quer dizer, além da moral
geral (sadharana-dharma), os deveres particulares que cabem a cada um em função de seu pertencimento a
esta ou aquela classe social, em função da etapa ou estágio de vida em que se encontra e, bem entendido,
de sua idade e seu sexo” (Hulan e Kapani, 1993, p.375).
Contudo, no caso dos estrangeiros em busca de iniciação religiosa através das seitas hindus, a questão se
coloca de uma outra maneira:
“Um estrangeiro, nascido de pais hindus, não pode evidentemente entrar neste sistema sócio-religioso. Ele
não pede isto, aliás. O que lhe interessa é o acesso aos ashrams, aos gurus. É ele próprio tornar-se um
renunciante, um sannyasin, um guru. Aqui, o caminho está perfeitamente traçado: é o mesmo que seguem
os hindus que renunciaram à vida familiar, com os direitos e deveres que ela implica, e tornaram-se
‘mortos sociais’, no sentido de Louis Dumont.
Isto nos permite esclarecer a questão do proselitismo. No interior do sistema, ela nem chega a se colocar.
Por outro lado, no quadro da renúncia, certos sadhus ou seus correspondentes ocidentais podem ter uma
atividade missionária. É o caso da célebre Missão Ramakrishna, fundada por Vivekananda, de Maharishi
Mahesh Yogi e de sua ‘meditacão transcendental’, de Sivananda, Yogananda e de vários outros gurus,
autênticos ou não, de que se ouve falar no Ocidente” (Hulan, Kapani, 1993, p.387).
Nota 35, p. 45- A visão que o establishment, por sua vez, tinha sobre eles, pode ser apreciada neste retrato
dos Beats traçado pela revista Life: “A revista Life descreveu a recusa dos Beats em ’acentuar o positivo’
como uma tentativa de minar tudo o que havia de sagrado na América do Pós-Guerra – ’a mãe, o pai, a
política, o casamento, a poupança, a religião organizada, a elegância literária, a lei, (…), a educação
universitária, para não falar das lavadoras de louça automáticas (…) e da bomba atômica garantidora da
paz” (Prothero, 1995, p.8).
Nota 38, p.52- Segundo Allen Ginsberg, a herança da Beat Generation poderia ser resumida nos seguintes
pontos: “Liberação espiritual; revolução sexual de liberação, isto é, liberação gay, catalizando a liberação
negra, a liberação da mulher, a liberação dos pantera negras; liberação da Palavra da censura;
desmistificação e/ou descriminalização de algumas leis contra a marijuana e outras drogas; expansão da
consciência ecológica tal como enfatizada por Snider e McClure; oposição à máquina civilizatória militar-
industrial; retorno à valorização da idiossincrasia contra a arregimentação de estado; respeito às terras e aos
povos indígenas; consumo menos conspícuo; pensamento oriental (e meditação); não teísmo, (…)
antifacismo cósmico; sinceridade/franqueza; fim do segredo e do medo paranóico da CIA, da KGB, dos
segredos nucleares, por meio do segredo sexual, como em um continuum” (Ginsberg, 1982, p.50 apud
Watson, 1995, p.304).
Nota 39, p.53- Segundo Carozzi, Esalem constituiu uma experiência comunitária centrada em uma
“combinação de práticas em que a autonomia individual se vê associada à atenção ao presente, à
200
Capítulo 2:
p. 83- “Dificilmente se poderia esperar que os sociólogos americanos levassem o misticismo a sério. Tais
coisas já não existiam mais na esclarecida sociedade industrial moderna. (…) Se os estados de êxtase
induzidos por drogas da Contracultura podem ter tido algum interesse como forma de desvio social, os
pesquisadores sociais americanos simplesmente descartaram como impensável a possibilidade de que as
experiências extáticas tivessem lugar na sociedade “careta” [“square” society no original]. Qual o
interesse, portanto, de estudar algo que não existia?” (Greelay e McReady, 1974, p.304)
p. 84- “O reflexo condicionado de muitos cientistas sociais quando alguém toca no assunto dos êxtases
místicos ou os confronta com alguém que teve tal experiência é cair em interpretacões psicanalíticas. O
extático é um tipo de pessoa perturbada que está desenvolvendo um problema de personalidade adquirido
na infância. Isto resume a questão na maioria das vezes. Eles ‘sabem’ que o episódio extático é, de fato,
algum tipo de interlúdio psicótico. Com esta premissa básica, é fácil provar que um dado interlúdio foi
realmente psicótico já que todas as experiências místicas o são. Por quê então investigar tal fenômeno de
comportamento como algo mais do que psicótico?” (Greelay e McReady, 1974, p.304).
p. 84-85- Segundo Reddy, “as emoções não podem ser vistas – como o têm sido no Ocidente – como um
resíduo, como um domínio somático, anti-racional da vida consciente, cuja turbulência é uma ameaça
constante à explicitação de intenções claras” (Reddy, 1997, p.331).
p.85- “Outra característica da sociologia norte-americana da religião (…) foi seu enfoque quase exlusivo,
até bem recentemente, sobre a religião oficial e suas expressões organizacionais. Até a década de 1960, a
maioria dos estudos colocavam a ’religião’ como identificada às formas denominacionais cristãs. (…) Uma
das principais mudanças da sociologia dos Estados Unidos nas duas últimas décadas foi uma grande e
potencialmente criativa diversidade” (McGuire, 1993, p.128).
p.85-86- “Quando a sociologia da religião atentou para a mente dos crentes ela enfatizou suas funções
cognitivas, relegando o estudo das emoções aos psicólogos. Como resultado, nossa disciplina têm graves
dificuldades para compreender e interpretar a auto-experiência dos indivíduos, a experiência intersubjetiva
e a experiência religiosa fundamental” (McGuire, 1993, p.134).
p.86-87- “que se tornaram campos válidos da pesquisa social científica no contexto pós-moderno.
Sexualidade, identidade, concepção da pessoa e, finalmente, emotividade, tornaram-se assim
problematizadas por causa do processo de individualização da cultura Ocidental, a um ponto em que elas
só podem ser ‘capturadas’ socialmente, perdendo desta forma todo o fundamento para uma possível
construção da teoria social ” (Longman, 1997, p.344).
p.89-90- “Nossa disciplina precisa reconceituar a mente, o corpo e a sociedade, não como meramente
conectados, mas como interpenetrando-se profundamente, misturados como um fenômeno quase unitário
(ver McGuire, 1990). Vamos assumir que o corpo humano é um produto tanto biológico como cultural,
físico e simbólico, sempre enquadrado por um determinado contexto social e ambiental no qual a mente-
corpo é tanto um agente ativo quanto algo influenciado por cada momento social e por sua história cultural.
201
Scheper-Hughes e Lock referiram-se a esta conceituação unificada como o ‘corpo consciente’ [mindful
body no original] (…)
(...) Uma compreensão sobre o ‘corpo consciente’ é um importante ponto de partida para a sociologia da
religião, porque precisamos de um enfoque teórico sobre como a experiência espiritual é possível. Como
esta experiência espiritual pode ser partilhada? Como um grupo religioso é capaz de gerar emoções
compartilhadas? Como os corpos humanos concretos fazem parte da expressão e da experiência religiosa?
Como a subjetividade de cada um se liga à sua atividade e autoridade (…)? Como a religião fala ao próprio
ser da pessoa (e não apenas a seu sistema cognitivo)?” (McGuire, 1993, p. 135).
p. 91- “nossa sociedade têm desconfiado dos meios de conhecimento racional não lineares, das formas de
apreensão não cognitivas da realidade. Ao invés de olhar emoção e razão como mutuamente excludentes,
deveríamos vê-las como aspectos mutuamente constitutivos da mente ” (McGuire, 1993, p.136).
p.101- e assim apoiar as teorias cognitivas mais recentes que apontaram para a necessidade de ficarmos
mais “atentos à interdependência entre pensamento e sentimento assim como à natureza socialmente
localizada da cognição” (Garro, 1997, p.341).
p.102- As emoções deveriam ser olhadas, assim, como “o próprio locus da capacidade de absorver, rever
ou rejeitar estruturas discursivas e culturais de todos os tipos” (Reddy, 1997, p.330), e, neste sentido, “a
variação das repostas individuais (algumas adequando-se bem às expectativas, outras desviando-se
completamente delas) provê um reservatório de possibilidades de mudança” (Reddy, 1997, p.334).
p.106- “O garçom de bar representa o papel de garçom de bar; o bispo representa o papel de bispo. Através
deste expediente, a pessoa toma distância em relação ao personagem que encarna; ela acede, assim, a uma
secreta e exaltante consciência de si. Daí para a frente, ao exibir-se, ela se esconde; ao envolver-se,
distancia-se. Esta representação de si é uma experiência de liberdade” (Gusdorf, 1967, p. 1158).
Notas:
Nota 12, p.104-105- Este trecho de Rawlinson nos permite entender de forma mais clara de que forma a
ioga se relaciona à concepção de que existem diferentes patamares de funcionamento da consciência e de
que é possível adquirir-se um conhecimento sobre isto: “Estou usando o termo ioga em um sentido amplo,
que cobre todas aquelas tradições que sustentam que nossa experiência é primariamente condicionada pela
falta de uma compreensão clara sobre a maneira pela qual a consciência opera. Isto significa que, se
prestarmos atenção ao processo pelo qual nos tornamos conscientes, vamos descobrir, no próprio ato de
prestar atenção, que não somos de todo normalmente conscientes. Minha tradução para isto é: localização
da experiência é também sua transformação” (1981, p.247).
202
Nota 14, p.109-110- Feuga e Michaël chamam atenção para este aspecto no seguinte trecho: “se não se
possui as qualificações requeridas (a começar por uma coragem inquebrantável) e se não se é guiado por
um mestre competente (e eles não abundam neste campo), mais vale abster-se destes métodos que, se mal
aplicados, podem provocar no ’aprendiz de feiticeiro’ danos físicos e psíquicos irreversíveis. O que
poderíamos denominar de ’patologia kundaliniana’, não apenas na Índia mas também nos países onde não
se dispõe de mestres neste campo, nos dá razões de sobra para falar desta forma: neuroses, psicoses,
fenômenos depressivos e histéricos, acidentes cardíacos, suicídios e mortes súbitas compõem alguns dos
aspectos deste quadro, bem diferente em sua realidade das prescrições floridas da Nova Era” (1998:103).
Capítulo 3:
p.119-120- “Pessoas ⎯ atores isolados, não são pensados no sul da Ásia como sendo ‘individuais’, isto é,
unidades limitadas, indivisíveis, tal como ocorre nas teorias psicológicas e sociais do Ocidente, assim como
no senso comum. Ao invés disso, parece que as pessoas são pensadas geralmente no Sul da Ásia como
‘dividuais’ ou divisíveis. Para existir, as pessoas dividuais absorvem influências materiais heterogêneas.
Elas também precisam descartar de si estas mesmas partículas de suas substâncias codificadas ⎯ essências,
resíduos ou outras influências ativas ⎯ que passarão então a poder reproduzir nos outros algo da natureza
das pessoas nas quais haviam se originado” (Marriot, 1976, p.111 apud Bharati, 1985, p. 220).
p.131- “É impossível desconsiderar uma das maiores descobertas da Índia: a da consciência como
testemunha, a da consciência livre de suas estruturas psicológicas e de seus condicionamentos temporais, a
consciência do homem ‘liberado’ de si, isto é, que conseguiu emancipar a si mesmo da temporalidade e
assim conhecer a verdade. Inexprimível liberdade.” (Eliade, 1990, p.xx).
p.141- Assim, “quem pretendesse ‘estudar’ a ioga como uma ciência objetiva, ‘compreendê-la’ sem vivê-
la, chegaria rapidamente a um impasse: segundo a expressão indiana, só se pode conhecer um fruto ao
comê-lo” (Feuga e Michaël, 1998, p.119).
p.154- “(…) quando as religiões orientais começaram a atrair os ocidentais no final do século XIX e início
do século XX, isto se deu em parte porque nem o hinduísmo nem o budismo, tal como eram conhecidos no
Ocidente, exigiam a rejeição da ciência e dos padrões de rigor filosófico e intelectual, nem enfatizavam a
divisão entre o domínio do espírito e o domínio do profano. A idéia de que ‘Tudo é Brahman’ ou o Todo
do vazio budista habilitavam as pessoas do Ocidente a incluir aspectos da vida humana que o cristianismo
havia separado ou condenado de um modo ou de outro. Em resumo, as religiões orientais aportavam uma
espiritualidade sem moralismo. Elas propunham não uma rejeição da ciência ou do intelecto mas
explicações metafísicas alternativas que conjugavam-se em princípio com a ciência, sem dispensar a
necessidade de pensar, avaliar e compreender por si mesmos o mundo em que se vivia” (Needleman, 1995,
p. xxvi-xxvii).
p. 155- “Significativamente, a maioria dos artigos da série ‘What Vedanta Means to me’ enfatizavam
apelos racionais John Yale foi talvez quem melhor expressou esta atitude: ’O que venho dizendo é que o
Vedanta interessou-me por ser racionalmente atraente. Ele permite às pessoas serem cosmopolitas,
permissivas, amplas… Seus princípios adequam-se à razão e às descobertas da ciência moderna” (Jackson,
1994, p.101-102).
203
p.159- “Na verdade, vários fatores não intelectuais, particularmente a personalidade do swami, também
parecem ter desempenhado um papel significativo na atração exercida pelo hinduísmo” (Jackson, 1994,
p.102). Assim, por exemplo, Christopher Isherwood confessa que “no que me diz respeito, a relação guru-
discípulo está no centro de tudo que a religião significa para mim” e, segundo Jackson, “entrevistas com
inúmeros devotos confirmam a validade do depoimento de Isherwood. A devoção a um determinado swami
é o fato central na vida de muitos seguidores” (Jackson, 1994, p.102).
p.160- “Presenciei mudanças de personalidade mais drásticas e positivas através da prática da meditação
ióguica do que através da psicanálise”. Jackson observa que este depoimento possui um grau bastante
acentuado de autoridade, uma vez que esta pessoa havia se submetido a tratamento psiquiátrico durante
longo tempo. Segundo ele, “tais testemunhos não são relativos apenas ao Vedanta, logicamente; eles
sugerem que a aceitação do hinduísmo leva alguns seguidores a um permanente sentido de segurança
pessoal e felicidade” (Jackson,, 1994, p. 101).
p.165- “Não faça nada. Não use métodos ou técnicas. Apenas sente-se e medite. Como a ser atingido pela
graça do guru? Bem, a graça do guru atinge os devotos como uma forte infecção. Ou ele os toca em suas
faces e olhos, ou lhes dá um mantra, ou alcança seus óculos e os perscruta, fazendo-os sentirem-se
incomodados, ou apenas diz-lhes ‘Vá para dentro e medite’, e isto se dá. Eles começam a flutuar,
transportados para um outro mundo, de luzes divinas de diferentes cores; eles vêem a Pérola Azul, com sua
deslumbrante luz azul, ou começam a ver um filme mental ou diferentes cenas de acontecimentos passados
e futuros, ou a ouvir melodias celestiais, ou a ter a visões de seres divinos. Algumas vezes o corpo começa
a fazer fortes movimentos automaticamente” (Mangalwadi, 1992, p.127).
p.176- “Um professor, de forma alguma, é uma substituição de Deus. Descobri que a pessoa com quem
estudei [Swami Muktananda] era tão obcecada com a idéia de ser Deus, ou mesmo mais do que Deus, que
eu não poderia respeitar nem sustentar nossa relação. Todo aquele que recorre à tensão para ensinar é um
ser humano inseguro. Um professor deveria dar amor e libertar as pessoas da tensão para que elas
pudessem se abrir para Deus” (Rawlinson, 1998, p.498).
p.176- “Como podemos determinar se as experiências místicas de Muktananda e seus discípulos são
divinas ou puramente psicológicas ou demoníacas?” E prossegue: “Seriam suas experiências realmente
demoníacas, inspiradas pelos espíritos do mal que ele via durante suas experiências? Ou elas eram apenas
experiências mentais anormais, que afloravam pelo excesso de meditação, austeridades, contenções e
desejos ilusórios?” (Mangalwadi, 1992, p.128).
Notas:
Nota 31, p.157- Neste sentido, vale registrar que a aceitação da filosofia do Vedanta (no caso da Missão
Ramakrishna nos EUA) contribuiu, surpreendentemente, para uma maior aceitação do cristianismo entre
pessoas de origem cristã que haviam se decepcionado em algum momento de suas vidas com esta fé,
conforme se vê neste comentário de Jackson: “Curiosamente, a aceitação do Vedanta parece ter contribuído
frequentemente para uma reconciliação com o Cristianismo ⎯ ou, pelo menos, para uma visão mais
simpática aos ideais cristãos. Um número surpreendente de contribuintes do ‘What Vedanta Means to Me’
confessaram que, após anos de rejeição e alienação, o contato com o hinduísmo havia renovado seu
respeito pelo cristianismo. O dramaturgo John van Druten notou que, após sua adoção do Vedanta, ele
pode ‘retornar’ ao cristianismo, descobrindo então ‘muito mais’ do que havia suspeitado até então. Ruth
Folling percebeu que aceitar o Vedanta não significava ‘dar as costas’ ao cristianismo mas realizar uma
‘excitante descoberta de suas virtudes’. Ela confessou que ‘ler os ensinamentos da Bíblia no contexto do
Vedanta’ tornou-os mais significativos. Sofrendo de um ‘bloqueio semântico’ contra as palavras associadas
à sua educacão cristã (‘Deus, salvador, alma, céu, redenção, amor, salvação, etc. etc.’), Christopher
Isherwood também alcançou uma nova compreensão como resultado de seu estudo do Vedanta. Ele
comentou que o sânscrito forneceu-lhe um vocabulário ‘novo em folha’ que permitiu-lhe uma aproximação
simpática ao misticismo e o reconhecimento de que sua hostilidade em relação ao cristianismo era
irracional. Tratando-se de um escritor, parece significativo que exatamente as palavras utilizadas para falar
de Deus tenham desempenhado um papel crucial em seu retorno à crença religiosa” (Jackson, 1994, p.101).
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