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1 verdades reveladas

Informativo da Coordenadoria estadual por memória e verdade Distribuição gratuita e dirigida


1
abril de 2016
www.socialrj.gov.br.com

Verdades Reveladas
Em março de 1964, trezentas mil pessoas se reuniram na Central do Brasil para ouvir o presidente
João Goulart anunciar as reformas de base, em um comício que entrou para a história do país
foto: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_00161_021

Convocados pelos sindicatos, os trabalhadores deram seu apoio à reforma agrária e à nacionalização das refinarias de petróleo anunciadas por Jango

N
a memória de Geraldo Cândido, 77 anos, ex-mem- tido: “A partir dali eu despertei para a luta, percebi a injustiça
bro da Comissão da Verdade do Rio, a imagem mais que foi feita e não aceitei aquela coisa da demissão”.
impressionante do dia 13 de março de 1964 foi a Após ser dispensado, começou a trabalhar como metalúrgico
chegada dos trabalhadores da Petrobras ao Comí- e logo passou a integrar a oposição sindical da categoria. Foi
cio da Central do Brasil. “Eram mais de cem ônibus, lotados de como militante deste sindicato que Geraldo Cândido viu, na-
operários de macacão e capacete, com tocha de petróleo ace- quela tarde histórica, as principais lideranças políticas da épo-
sa. Estava muito bonito”. Os petroleiros iam se juntar às mais ca se revezarem no microfone. Leonel Brizola, Miguel Arraes,
de trezentas mil pessoas, vindas de todos os locais do estado, Luís Carlos Prestes e Francisco Julião foram alguns dos que
para ver o então presidente João Goulart, o Jango, anunciar as manifestaram o apoio a Jango, mas também cobraram a apro-
tão esperadas reformas de base. vação das prometidas reformas tributária, eleitoral, financeira,
Geraldo iniciara sua militância dois anos antes, quando tinha e, a mais polêmica, a agrária.
22 anos e era um jovem trabalhador da Castrol do Brasil. Após
participar de uma greve por melhorias salariais, ele foi demi- (Continua na página 2)
2 verdades reveladas Rio de Janeiro 2016 3

Na busca pelo ‘Nunca Mais’

foto: hélcio alves seasdh


Apresentação

Em 10 de dezembro de 2015, após dois anos Comissões da Verdade deram um passo para esclarecer os crimes cometidos pela ditadura


e oito meses dedicados à investigação das

foto: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_05609_018


violações de Direitos Humanos ocorridas

Se as na ditadura militar, a Comissão da Verda-

reformas de de do Rio entregou seu Relatório Final ao


Governo do Estado e à sociedade civil. Em
base tivessem consonância com sua atuação democráti-
sido implantadas, ca e participativa, a CEV-Rio apresentou
o Brasil seria um relatório que pudesse ser amplamente

outro país” lido e difundido e transformado em um ins-


trumento de fortalecimento das lutas por
memória, verdade, justiça e reparação dos
crimes cometidos pelo Estado durante a
ditadura. Para dar continuidade aos traba-
lhos da CEV-Rio, foi criada, no âmbito da
Secretaria de Estado de Assistência Social
e Direitos Humanos, uma Coordenadoria
por Memória e Verdade. Agora, esta Coor-
denadoria lança Verdades Reveladas, jor-
Naquele momento, o debate sobre as reformas ocupava o centro das preocupações nal que será distribuído gratuitamente nas
da vida nacional. De um lado, estudantes, sindicalistas, o Partido Comunista e ou- sextas-feiras de abril, com o Diário Oficial.
tros setores apoiavam as mudanças a partir das diretrizes propostas pelo presiden- Nesta primeira edição, o Verdades Revela-
te. Do outro, empresários, setores da Igreja Católica e militares ligados à Escola das narra o Comício da Central a partir das
Superior de Guerra não viam com bons olhos as propostas de Goulart. memórias de Geraldo Cândido e trata do
Durante o comício, Jango assinou decretos de expropriação de terras para fins caso Raul Amaro Nin Ferreira, cuja tortura
da reforma agrária. A oposição enxergou na proposta um atropelo ao Congresso no Hospital Central do Exército foi com-
Nacional e o clima político ficou mais polarizado. Nos dias que se seguiram, a situ- provada pela CEV-Rio. Além disso, traz en-
ação se agravou. No Sindicato dos Metalúrgicos do Rio, ocorreu a Revolta dos Ma- trevistas com Paulo Melo e Rosa Cardoso.
rinheiros – e Geraldo esteve presente. Os suboficiais fizeram uma manifestação de Com a publicação, esperamos que o tra-
apoio ao presidente e seus superiores quiseram puni-los. Goulart não referendou balho da CEV-Rio alcance mais pessoas, a Os tanques alinhados em frente à sede do Comando do Exército dão a cara do novo retrato do Brasil, que viveria 21 anos de ditadura

E
a punição. Para o então militante, “isso acirrou muito os ânimos, pois os golpistas fim de fortalecer a democracia e garantir a
tiveram argumentos para dizer que houve insubordinação”. não-repetição da violência de Estado. m novembro de 1971, três me- mavam as ruas, as universidades, os jor- de seu trabalho em 2006, após julgar 480
Exatamente sob este pretexto, na madrugada de 1° de abril foi deflagrado o golpe Boa leitura! ses após a morte de Raul Ama- nais, os sindicatos e os movimentos so- pedidos. Em seu relatório final, intitula-
de Estado. Os defensores do governo acreditavam que as tropas vindas de Minas ro Nin Ferreira, sua mãe, Ma- ciais. O governo já não tinha mais como do “Direito à verdade e à memória”, pu-
Gerais seriam barradas ao entrar no Rio de Janeiro, mas ocorreu o contrário. Na- estrutura do governo riana Lanari, enviou uma carta ignorar a demanda. Em agosto de 1979, blicado em 2007, a CEMDP reconheceu
quele dia, Geraldo participou de uma reunião em que os militantes foram infor- Governador a um general, questionando: “quem é o foi sancionada uma Lei de Anistia, mas os 362 casos de mortos e desaparecidos.
mados que deveriam esperar no centro de Duque de Caxias por um caminhão que Luiz Fernando Pezão responsável por sua morte? Quem o su- militares buscaram controlar a transição O ano de 2001 foi fundamental para as
distribuiria as armas para a resistência. “Estamos esperando até hoje”, diz Geral- Vice Governador pliciou afinal? Subscrevo-me como uma do regime autoritário para a democracia políticas públicas de reparação com
do, ressaltando que “quando veio a notícia de que João Goulart caiu, dava para ver Francisco Dornelles mãe brasileira, profundamente atingida, de forma “lenta, gradual e segura”. a criação, em agosto, da Comissão de
muita gente chorando. Muita gente”. Secretário de Estado de Assistência decepcionada e angustiada”. As pergun- A partir de 1984, as “Diretas Já” passa- Anistia para reparar moral e economica-
A partir daquele momento, teve início a violência do novo regime. “Logo após o Social e Direitos Humanos tas eram as mesmas de milhares de ou- ram a cobrar a volta das eleições diretas mente pessoas que tiveram suas ativida-
golpe, os militares iniciaram as prisões e torturas. Quem não teve tempo de fugir, Paulo Melo tros familiares de mortos e desaparecidos para presidente da República, levando des prejudicadas por motivação política.
foi preso. E o patrimônio dos sindicatos foi destruído. Mas o pessoal continuou lu- Subsecretária de Defesa e Promoção políticos que buscavam esclarecimento milhões de pessoas às ruas. No Rio de Em dezembro, através de uma lei esta-
tando”. Para Geraldo, a ideia de que a violência da ditadura só teve início em 1968 dos Direitos Humanos sobre as reais circunstâncias do ocorrido Janeiro, em 10 de abril de 1984, uma ma- dual, surgiu sua equivalente no âmbito
é uma “balela, uma posição totalmente equivocada, desinformada”.• Andréa Sepulveda Brito com seus parentes. nifestação levou 1 milhão de pessoas à do estado: a Comissão Especial de Repa-
Superintendente de Promoção dos Ao longo da década de 1970, a sociedade Avenida Presidente Vargas. Contudo, ração do Rio de Janeiro.
Acervo pessoal

Direitos Humanos se mobilizou para denunciar o que ocorria a mobilização não atingiu seu objetivo Pouco menos de trinta anos após a
Miguel Mesquita e desafiou a recusa do governo em admitir e Tancredo Neves e José Sarney foram promulgação da Constituição de 1988,
e explicar os crimes cometidos contra a eleitos de forma indireta. as perguntas de Mariana Lanari ainda
Expediente própria população. As cartas endereçadas No novo contexto, as lutas pela verdade não tinham resposta. Os fatos, razões e
Edição e Textos: Lucas Pedretti e Renata Sequeira às autoridades foram somente uma das sobre os crimes da ditadura e para man- circunstâncias das mortes e desapare-
Coordenadoria Estadual por Memória e Verdade: formas encontradas para buscar a verda- ter viva a memória dos mortos e desapa- cimentos continuavam mascarados pe-
Virna Plastino, Ana Carolina Antão, Caroline de. A elas, somaram-se campanhas inter- recidos ganharam força. Um marco nesse las versões oficiais. Para revelar aquilo
Faria, Diego Maggi, Lucas Pedretti, Marta nacionais, missas, greves de fome, ações processo foi o livro Brasil: Nunca Mais, que se foi oculto foi criada a Comissão
Pinheiro na justiça e a formação de grupos de fami- que reuniu mais de um milhão de páginas Nacional da Verdade. Em seguida, mais
Projeto Gráfico: Marcelo Santos liares, que buscavam coletar informações de processos judiciais de presos políticos. de uma centena de comissões surgiram
Endereço: Praça Cristiano Ottoni, s/n, 6º andar, e organizar dossiês sobre militantes pre- O Estado brasileiro só viria admitir sua nos estados e municípios, em sindica-
sala 645, Central do Brasil/RJ, CEP: 20221-250 sos, mortos ou desaparecidos. responsabilidade dez anos depois. Em tos e universidades. Uma delas foi a
Redação: imprensa.socialrj@gmail.com Com a retomada das manifestações pú- 1995, foi criada a Comissão Especial Comissão da Verdade do Rio, criada
Geraldo Cândido participa, em setembro de 1981, de ato do Sindicato dos Metroviários, que Acesse o nosso site: www.social.rj.gov.br blicas no final dos anos 1970, gritos por sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em maio de 2013, para fortalecer esse
foi criado ainda durante a ditadura Site da CEV-Rio: www.cev-rio.org.br uma anistia “ampla, geral e irrestrita” to- (CEMDP), que encerrou a primeira etapa conjunto de iniciativas.•
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arte divulgação
HCE: O CORREDOR DA MORTE Em Audiência Pública, CEV-Rio apresenta laudo que comprova o
assassinato de Raul Amaro dentro do Hospital do Exército
MILITÂNCIA 01/08/1971 02/08/1971 04/08/1971 11/08/1971 2013 2014 2015

Raul Amaro Nin Ferreira Raul Amaro é preso na Rua O egenheiro é transferido para Após ser interrogado, Raul é Um ofício enviado ao diretor do Após minuciosa pesquisa Laudo do médico legista No dia 2 de junho de 2014,
iniciou sua militância no Ipiranga, em Laranjeiras, e o DOI-CODI, na Tijuca. encaminhado bastante ferido HCE pelo Ministério do documental, os sobrinhos de Nelson Massini comprova a quando Raul faria 74 anos, é
segundo grau, quando partici- levado ao DOPS, por causa de Durante dois dias, Raul é ao HCE, onde é novamente Exército mostra que Raul Raul Amaro entregam à tese de que o engenheiro foi realizado um ato em sua
pou da Juventude Estudantil mapas que estavam em seu barbaramente torturado. A submetido a torturas. Seu Amaro foi interrogado por dois CEV-Rio um relatório e um torturado no HCE. A prova veio memória na PUC-Rio, com o
Católica. Como aluno da carro. Às 20h00, agentes da violência é testemunhada por registro de entrada na unidade agentes do DOPS dentro do conjunto de mais de 400 com a comparação entre o plantio de uma árvore e a
PUC-Rio, aproximou-se do polícia política fazem uma outros presos políticos e por foi uma das provas utilizadas hospital. No mesmo dia, a mãe documentos, demandando o registro de entrada no hospital colocação de uma placa.
Movimento Estudantil. Após o diligência em sua casa, em soldados lotados no 1º pela família para desmascarar de Raul recebe um telefonema aprofundamento das investiga- e o auto de autópsia, que Outras homenagens foram
AI-5, apoiou o Movimento Santa Teresa. Batalhão de Polícia do a versão oficial, de que o informando sobre a morte do ções sobre o caso. mostrava ferimentos produzi- feitas, como a fixação de placa
Revolucionário 8 de Outubro. Exército. militante morreu de enfarte. filho. dos durante o período de na Rua Santa Cristina, onde
“internação”. Raul foi visto pela última vez.

Uma casa a serviço da ditadura

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scandalosa e inaceitável. Foi Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Quando eu voltei ele estava jogado num a de dar continuidade às pesquisas para m local concebido para tra- das”, destacou Dalva, que disse ter sido
assim que familiares de Raul Três anos depois, começou a trabalhar canto da sala de interrogatório; já não confirmar a hipótese central: a de que tar e curar, mas que, na ver- importante ter acesso aos documentos.
Amaro Nin Ferreira reagiram à no Ministério da Indústria e Comércio e tinha mais condições de andar e estava Raul teria sido torturado dentro do HCE. dade, fazia parte da engre- “Negavam que houvesse tortura e agora
confirmação de que ele foi as- ganhou uma bolsa para estudar na Ho- enrolado numa manta. Chegou um ofi- Um ofício do Ministério do Exército de nagem da tortura. Durante a posso comprovar que os problemas que
sassinado, sob tortura, no Hospital Cen- landa. Seus projetos foram interrompi- cial médico que eu já tentei desesperada- 11 de agosto, dirigido ao diretor do HCE, ditadura, o HCE cumpria duas funções: tive foram decorrentes da tortura”.
tral do Exército (HCE), em 11 de agos- dos no dia 1º de agosto de 1971, quando mente puxar pela minha memória para que determinava a ida de dois agentes “a recuperar os presos políticos para que Os laudos forjados ocultavam as ver-
to de 1971. O Parecer Médico Legal que foi parado em uma blitz no bairro das me lembrar se foi o [Amílcar] Lobo ou fim de interrogarem o preso Raul Amaro pudessem ser submetidos a novos inter- dadeiras causas da morte de militantes
comprovou as circunstâncias da morte Laranjeiras. Os militares consideraram o [Ricardo] Fayad, e disse que ele tinha Nin Ferreira” e a comparação entre os fe- rogatórios e forjar laudos periciais de ví- e camuflavam a sistemática prática de
foi apresentado pelo médico legista Nel- suspeitos mapas que estavam no carro e de ser levado para o HCE, porque estava rimentos descritos no registro de entrada timas do regime. tortura contra opositores. Para tanto, os
son Massini, em audiência realizada pela Raul foi conduzido para o Departamento nas últimas, estava morrendo”. no HCE e em seu Auto da Autópsia eram Investigações realizadas pela Comissão médicos atestavam a morte de indivídu-
Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio), de Polícia Política e Social da Guanabara Menos de uma semana depois, seu corpo os elementos que embasavam a hipótese. da Verdade do Rio no acervo pessoal os no interior do hospital, quando eles já
exatamente 43 anos após o assassinato (DOPS/GB). No dia seguinte, foi levado foi entregue à família com a informação Em nota pública, a família disse que “se do general Garrastazu Médici mostra- haviam dado entrada mortos; atribuíam
do engenheiro. Massini comprovou que para o Destacamento de Operações de de que teria falecido em função de um sente chocada com a contradição entre ram que os acontecimentos no hospital falsas versões ao óbito das vítimas; e


as lesões no corpo de Raul foram ocasio- Informações do Centro de Operações de enfarte. o que já é público sobre o caso de Raul eram repassados para altos escalões do omitiam, em seus laudos, dados sobre as
nadas em três momentos diferentes: an- Sem acreditar na versão oficial, Mariana Amaro e as versões oficiais de que a ins- Exército e, inclusive, para o presidente lesões corporais que indicavam a ocor-
tes de sua entrada no HCE (entre os dias Parte das lesões Lanari, mãe de Raul, começou a buscar tituição militar desconhece as torturas da República. Dentre os documentos, es- rência de tortura.
2 e 4 de agosto), durante sua internação são classificadas a verdade. Ainda durante a ditadura, en- ocorridas em pessoas mantidas presas tavam os prontuários de três presas polí- Um desses militantes foi Severino Via-
(entre os dias 6 e 8 de agosto) e, ainda no como oriundas trou na justiça para cobrar a responsabi- sob sua responsabilidade durante a dita- ticas – Vera Silvia, Dalva Bonet e Abigail na Colou, morto sob tortura nas depen-
hospital, logo antes de sua morte (entre os
dias 10 e 11 de agosto). O laudo concluía
de um processo de lização do Estado pela morte do filho. A
decisão condenatória veio em novembro
dura militar”. E manifestou “a expecta-
tiva de um pronunciamento das autori-
Paranhos – cuja existência sempre fora
negada pelas Forças Armadas.
dências da 1ª Companhia de Polícia do
Exército, na Vila Militar, em Deodoro. A
que “existe uma diferença de quantidade
sofrimento físico de 1994. dades competentes sobre o caso”, o que “Não adianta dizer que não sabia. O pre- CNV investigou o episódio e mostrou que
e tipos de lesões descritas entre o exame (tortura)”, Nelson Em 2012, O Globo publicou documen- nunca ocorreu.• sidente Médici colecionou as provas o auto de autópsia, lavrado pelo serviço
feito na admissão no HCE e as descritas Massini tos do Serviço Nacional de Informações de seu próprio crime, guardando com médico do HCE, reiterava a versão de que
no exame cadavérico que são em maior (SNI) desconhecidos pela família. Con- Fachada do Hospital Central do Exército orgulho em seu livro com letras doura- ele havia se suicidado no interior de sua
número”. Desta forma, confirmava que Defesa Intena (DOI-CODI). victos de que era possível avançar no que cela. A equipe da CNV, no entanto, identi-
FOTO: Fabrício Faria /CNV

“parte das lesões foi produzida em datas No dia 4 de agosto, Raul foi interrogado se sabia, os sobrinhos da vítima, Felipe e ficou as inconsistências do laudo e con-
relacionadas ao período de internação no sob tortura. A sessão foi testemunhada Raul Carvalho Nin Ferreira, procuraram cluiu que a causa da morte foi “por estran-
Hospital Central do Exército” e que as pelo soldado Marco Aurélio Magalhães o pesquisador Marcelo Zelic para inves- gulamento ou por outra causa porventura
mesmas “são classificadas como oriun- que, em entrevista no ano de 1986, de- tigar o caso do tio. Os familiares pesqui- omitida pela análise médico-legal”.
das de um processo de sofrimento físico talhou o que viu: “[O Raul] levou muito saram em arquivos públicos e acervos A história do HCE revela a cumplicida-
(tortura)”. chute, muita pancada. O interrogatório pessoais e publicaram o Relatório Raul de de médicos na prática de violações
Nascido no Rio de Janeiro em 1944, Raul dele começou às 14h, no meu serviço, eu Amaro Nin Ferreira. Em 5 de dezembro de direitos humanos. No Rio de Janeiro,
tinha 24 anos e era graduado em Enge- saí às 16h e ele já tinha apanhado bas- de 2013, a CEV-Rio recebeu o documen- os médicos que comprovadamente ser-
nharia de Produção em 1968, quando foi tante. Depois eu retornei de 20h às 2h e to, que reconstituía os onze dias em que viram aos propósitos do regime militar
decretado o AI-5. Embora não tenha en- ele se encontrava num estado lastimá- Raul permaneceu sob a custódia do Es- foram Rubens Pedro Macuco Janini,
trado na clandestinidade, Raul passou a vel, ainda dentro da cela, de capuz. Eu tado e apresentava demandas para as Amílcar Lobo, Ricardo Agnese Fayad e
integrar a rede de apoio ao Movimento saí do serviço às 22h e voltei de 2h às 4h. Comissões da Verdade, especialmente Olympio Pereira da Silva.•
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Memórias de um período de terror Entrevista

O
CEV-Rio realizou tomadas públicas de depoimentos de ex-presos e familiares dos mortos e desaparecidos políticos Verdades Reveladas traz entrevistas com Paulo Melo, Secretário de Assistência Social e Direitos Humanos do Esta-
do, e Rosa Cardoso, ex-presidente da Comissão da Verdade do Rio. Como presidente da ALERJ, Paulo Melo aprovou

Foto: Fabio Cascardo


a Lei que criava a CEV-Rio. Agora, em sua gestão à frente da SEASDH, a Coordenadoria por Memória e Verdade passa
a funcionar, dando continuidade aos trabalhos da Comissão. Já Rosa Cardoso advogou em defesa de presos políticos
durante a ditadura e se tornou uma figura destacada na luta por Memória, Verdade e Justiça, sendo uma das coordenadoras da


Comissão Nacional da Verdade antes de assumir a presidência da CEV-Rio.

O direito à Memória e à Verdade também é um Direito Humano e só conhecendo esse


passado podemos evitar sua repetição”, Paulo Melo

foto: hélcio alves seasdh


Verdades Reveladas: Secretário, o senhor pedaço da história. E lembro que não apenas
era Presidente da Assembleia Legislativa na Cidade do Rio, mas tivemos episódios
quando houve a discussão sobre a Lei que em outras regiões do Estado, como Niterói,
criava a Comissão da Verdade do Rio. Como Volta Redonda e Macaé.
foi esse processo? V.R: Ao longo da atuação da CEV-Rio, a
Paulo Melo: Dei todo apoio e criei os SEASDH garantiu o apoio administrativo
O primeiro Testemunho da Verdade realizado pela CEV-Rio lotou o plenário da ALERJ para ouvir os depoimentos de Dulce Pandolfi (foto) e Lucia Murat mecanismos legais necessários à instalação. ao órgão. Agora, com o fim dos trabalhos,
Lembro que naquele momento, era intensa foi criada, no âmbito da secretaria, uma
A Comissão da Verdade do Rio teve como uma de suas principais reconstruíam uma memória coletiva. O primeiro Testemunho a mobilização pela aprovação da Lei. A Coordenadoria por Memória e Verdade.
atividades o Testemunho da Verdade, uma tomada pública de da Verdade aconteceu em 28 de maio de 2013, na Assembleia comissão nacional já funcionava. Aprovamos Como ela pode dar continuidade aos
depoimentos de atingidos pela ditadura. Esses encontros eram Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, com os testemunhos da com ampla maioria, por 49 votos a 2, e o trabalhos da Comissão?
uma forma de reparação, pois, a partir de experiências pessoais, historiadora Dulce Pandolfi e da cineasta Lucia Murat. Rio foi o primeiro no Brasil a criar uma P.M: Primeiro é como sinalizamos: ao criar
Comissão Estadual da Verdade. a coordenadoria mostramos que os casos
Dulce: fizeram um pouco de tudo Lúcia: a brutalidade confunde minha memória

“ “
V.R: Na sua opinião, qual a importância da serão permanentemente acompanhados Paulo Melo presidia a ALERJ na aprovação da
Durante os três meses em que fiquei no DOI-CODI fui Quando cheguei no DOI-CODI não sabia onde estava; só Comissão da Verdade do Rio? e exibidos às pessoas que não viveram lei que criou a CEV-Rio. Hoje é Secretário de
submetida a diversos tipos de tortura: umas mais sim- fui descobrir mais tarde que era o Quartel do Exército. Ra- P.M: Era clara a necessidade do Estado do ou desconhecem o que aconteceu na Assistência Social e Direitos Humanos
ples, como socos e pontapés; outras mais grotescas, pidamente me levaram para a sala de tortura. Fiquei nua, Rio em ter uma comissão para investigar Ditadura. Avisamos que não vamos tolerar
como ter um jacaré andando sobre o meu corpo nu. Re- mas não me lembro de como a roupa foi tirada. A brutali- um período negro, com tortura, morte e a repetência e tudo será apurado para que por Memória e Verdade. Ainda há muito
cebi muito choque elétrico e fiquei muito tempo pendurada no dade do que se passa, a partir daí, confunde um pouco a minha pessoas desaparecidas. E isso não foi um gerações futuras conheçam o passado trabalho a ser feito. É preciso acompanhar
chamado pau-de-arara. Um dos requintes era nos pendurar no memória (...). De um momento para o outro, eu estava nua, apa- favor às famílias, mas uma obrigação do sem páginas arrancadas. Farei todos as recomendações feitas pela CEV-Rio
pau-de-arara, jogar água gelada e ficar dando choque elétrico nhando no chão. Logo em seguida, me levantaram no pau-de- Estado, dever de apurar os crimes cometidos os esforços para criar os mecanismos e promover políticas públicas na área,
nas diversas partes do corpo molhado. Parecia que o contato da -arara e começaram com os choques. Amarraram a ponta de um durante a Ditadura, de ajudar a elucidar esse necessários à instalação da Coordenadoria especialmente na educação.


água com o ferro potencializava enormemente a descarga elétri- dos fios no dedo do meu pé, enquanto a outra ficava passeando
ca. Eu, literalmente, via estrelas. Embora essa tenha sido a tor- nos seios, na vagina, na boca. Quando começaram a jogar água, As comissões estaduais, municipais e setoriais da verdade promoveram uma grande
tura mais frequente, havia uma alternância de técnicas. Uma eu estava desesperada e achei, num primeiro momento, que era discussão pública da nossa história e da política no país”, Rosa Cardoso
delas, por exemplo, era a que eles chamavam de afogamento. para aliviar a dor; quase agradeci. Logo em seguida, os choques
Amarrada numa cadeira, de olhos vedados, eles tentavam me recomeçavam muito mais fortes (...). De tempos em tempos me Verdades Reveladas: Qual a sua avaliação tortura, execuções, desaparecimentos repolitização da sociedade que, a meu juízo,
sufocar com um pano ou algodão umedecido com algo com baixavam do pau-de-arara. Lembro que o médico entrou e me sobre o trabalho da Comissão Nacional forçados, ocultação de cadáveres. Produziu um teve uma repercussão importante entre os
um cheiro muito forte, que parecia ser amônia (...). O profes- examinou. Aparentemente, fui considerada capaz de resistir, da Verdade e os impactos que as circunstanciado trabalho sobre vítimas fatais jovens, os estudantes e os militares. Com
sor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu pois a tortura continuou (...). Num segundo momento então, a investigações empreendidas pelo órgão da ditadura, onde registrou dados sobre sua relação à CEV-Rio, acho que ela fez de forma
corpo. Era uma espécie de aula prática com algumas dicas te- tortura era progressiva, feita de idas e vindas, de ameaças e da tiveram no país? vida, militância, algozes e provas sobre o que exemplar o debate público e a interação com
óricas. Enquanto eu levava choques elétricos pendurada no tal nossa certeza, permanentemente alimentada por eles, de que Rosa Cardoso: A CNV conseguiu resultados descrevia. Nomeou autores das brutalidades diferentes atores sociais.
do pau-de-arara, ouvia o professor dizer: ‘essa é a técnica mais tudo poderia recomeçar a qualquer momento (...). Foi nesse relevantes e terminou fazendo uma descrição ocorridas, indicou responsabilidades e V.R: A CEV-Rio concluiu que o legado
eficaz’. Acho que o professor tinha razão. Quando eu comecei quadro, na volta, que o próprio Nagib fez o que ele chamava de consistente das atrocidades da ditadura, reivindicou a “judicialização” para estes casos, deixado pela ditadura continua presente.
a passar muito mal, a aula foi interrompida e fui levada para a tortura sexual científica. Eu ficava nua, com um capuz na cabe- relativamente a detenções ilegais e arbitrárias, passo que ainda não se cumpriu em nossa Como as recomendações das comissões
cela. Alguns minutos depois, vários oficiais entraram na cela e ça, uma corda enrolada no pescoço passando pelas costas até as Justiça de Transição. podem mudar esse cenário?
FOTO: Bruno Marins

pediram para o médico medir mãos, que estavam amarradas V.R: Qual a importância do trabalho das R.C: Comissões da Verdade fazem discussões
Crédito: Gabriel Telles/ALERJ

minha pressão (...). A respos- atrás da cintura. Enquanto o comissões estaduais, municipais e setoriais no âmbito da sociedade, sistematizações,
ta do médico Amilcar Lobo, torturador ficava mexendo nos da verdade? Qual destaque no trabalho da relatórios, mas com um tempo determinado
diante dos torturadores e dian- meus seios, na minha vagina, CEV-Rio? de duração. Quando uma comissão se
te de todas nós, foi: ‘ela ainda penetrando com o dedo na va- R.C: Essas comissões criaram uma extingue só um “órgão de seguimento”
aguenta’. E, de fato, a aula gina, eu ficava impossibilitada microfísica da verdade em nosso país. dos trabalhos realizados ou os próprios
continuou. A segunda parte da de me defender, pois se eu mo- Além de colocarem em debate questões de movimentos sociais podem dar um
aula foi num pátio, o mesmo vimentasse meus braços para áreas e atores muito diversos – militares, encaminhamento às suas Recomendações.
onde os soldados diariamente me proteger, eu me enforcava homossexuais, favelados, querelas No caso da CEV-Rio foi criada uma
faziam juramento à bandeira e e, instintivamente, eu voltava municipais, autoritarismo e perseguição no Coordenadoria de Memória e Verdade
cantavam o hino nacional. Ali atrás. Ou seja, eles inventaram âmbito das universidades, locais de tortura visando dar seguimento e fazer avançar os
fiquei um bom tempo amarra- um método tão perverso, em e extermínio desconhecidos etc - elas trabalhos da comissão. De outra parte, a
da num poste, com o tal do ca- que aparentemente nós não ajudaram, ao lado da CNV, a promover uma própria Assembleia Legislativa do Estado
puz preto na cabeça. Fizeram Em seus testemunhos, Dulce Pandolfi (esquerda) e Lucia Murat reagíamos, como se fôssemos A advogada de presos políticos assumiu a grande discussão pública da nossa história transformou algumas destas recomendações
um pouco de tudo.” (direita) narraram os horrores da ditadura cúmplices da nossa dor”.• presidência da CEV-Rio em junho de 2015 e da política no país. Promoveram uma em Projetos de Lei.•
8 verdades reveladas

O futebol nos arquivos da repressão


Documentos revelam que torcedores, jogadores e dirigentes se mobilizaram contra o regime

arquivo nacional/fundo sni


m 1979, a sociedade brasileira se mobilizava por
anistia ampla, geral e irrestrita. Da Igreja Católica
à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Asso-
ciação Brasileira de Imprensa (ABI) ao Movimento
Estudantil, todos exigiam a libertação dos presos políticos e a
volta dos exilados. Dentre esses grupos, um deles chama aten-
ção por raramente ser lembrado: os torcedores de futebol.
Documento localizado pela Comissão da Verdade do Rio (CEV-
-Rio) no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro mostra
um telegrama enviado pelo Serviço Nacional de Informações
(SNI) à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro in-
formando que “componentes da torcida organizada Flanistia”
preparavam um protesto para o jogo entre Brasil e Uruguai
que ocorreria em 31 de maio, no Maracanã.
O telegrama não ficou sem resposta. A polícia política foi des-
tacada para ir ao jogo e monitorar os torcedores. Na Ordem
de Serviço daquele dia, um delegado determina que agentes
impeçam a manifestação de “elementos” ligados à torcida.
No documento, o delegado exige que “qualquer faixa alusiva
à Anistia devem (sic) ser arrancadas, assim como cartazes ou
panfletos”.
Além das torcidas, os jogadores e dirigentes também foram
controlados pelos órgãos de repressão do regime. Em um rela-
tório do SNI, o meio-campo Afonsinho é descrito como um po-
tencial “subversivo” devido ao seu “elevado nível intelectual” e
à sua capacidade de liderança. Assim, os agentes recomendam
um “continuado acompanhamento de suas atividades”. Em Serviço Nacional de Informações monitorou de perto movimentos
outro relatório, quem aparece é o ex-presidente do Flamengo, pela Anistia. Neste relatório, discorre sobre reunião realizada para
Márcio Braga. Ele estaria se reunindo com outras figuras pro- organizar o “Jogo pela Anistia”.
eminentes, como João Saldanha, para organizar um jogo pela
Anistia, que nunca ocorreu. Não foi só a torcida do Flamengo que se manifestou contra a ditadura:
Dos documentos da ditadura emergem duas certezas: que o em fevereiro de 1979, um jogo entre Santos e Corinthians entrou para
regime não deixou de controlar nenhum aspecto da vida do a História por causa da faixa que foi levantada pela anistia ampla,
país e que a ideia do futebol como o ópio do povo, durante a geral e irrestrita. A Folha de São Paulo estampou a foto sem manchete,
ditadura, não era verdadeira.• em razão da censura.
FOLHA DE SÃO Paulo

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