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O ROUXINOL DE KEATS1
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Texto extraído de Outras inquisições (1952), Tradução de Sérgio Molina. Cf.: BORGES, Jorge Luis. Obras
Completas. Volume II. Rio de Janeiro: Globo, 1999, p. 103-106.
poema, chamou o rouxinol de dríade; outro crítico, Garrod, com toda a seriedade, alegou esse
epíteto para sentenciar que, na sétima, a ave é imortal porque é uma dríade, uma divindade dos
bosques. Amy Lowell escreveu com mais acerto: “O leitor que tenha uma centelha de sentido
imaginativo ou poético logo intuirá que Keats não se refere ao rouxinol que cantava nesse
momento, e sim à espécie”.
Cinco pareceres de cinco críticos atuais e passados recolhi; entendo que, de todos, o
menos vão é o da norte-americana Amy Lowell, mas nego a oposição que nele se postula entre o
efêmero rouxinol dessa noite e o rouxinol genérico. A chave, a exata chave da estrofe, está,
suspeito, em um parágrafo metafísico de Schopenhauer, que nunca a leu.
A “Ode a um rouxinol” data de 1819; em 1844 apareceu o segundo volume de O
Mundo como Vontade e Representação. No capítulo 41, lê-se o seguinte: “Perguntemo-nos com
sinceridade se a andorinha deste verão é outra que não a do primeiro e se realmente o milagre de
tirar algo do nada ocorreu milhões de vezes entre as duas para ser fraudado outras tantas pela
aniquilação absoluta. Quem me ouvir assegurar que este gato aqui brincando é o mesmo que
saltitava e traquinava neste lugar há trezentos anos pensará de mim o que quiser, mas loucura
mais estranha é imaginar que é fundamentalmente outro”. Ou seja, o indivíduo é de certo modo a
espécie, e o rouxinol de Keats é também o rouxinol de Rute.
Keats, que, sem exagerada injustiça, pôde escrever: “Nada sei, nada li”, adivinhou o
espírito grego nas páginas de algum dicionário escolar; sutilíssima prova dessa adivinhação ou
recriação é ele ter intuído no obscuro rouxinol de uma noite o rouxinol platônico. Keats, talvez
incapaz de definir a palavra arquétipo, antecipou-se em um quarto de século a uma tese de
Schopenhauer.
Esclarecida assim a primeira dificuldade, falta esclarecer uma segunda, de índole muito diversa.
Como é possível que Garrod, Leavis e os outros2 não tenham chegado a essa interpretação
evidente? Leavis é professor de um dos colégios de Cambridge — a cidade que, no século XVII,
congregou e deu nome aos Cambridge Platonists —; Bridges escreveu um poema platônico
intitulado “The fourth dimension”; a mera enumeração desses fatos parece agravar o enigma. Se
não me engano, sua razão deriva de algo essencial na mente britânica.
2
A essa lista dever-se-ia acrescentar o genial poeta William Butler Yeats, que, na primeira estrofe de “Sailing to
Byzantium”, fala em “morrentes gerações” de pássaros, em unia alusão deliberada ou involuntária à “Ode”. Ver T.
R. Henn: The Lonely Tower, 1950, p. 211.
Coleridge observa que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Os últimos
sentem que as classes, as ordens e os gêneros são realidades; os primeiros, que são
generalizações; para estes, a linguagem não passa de um aproximativo jogo de símbolos; para
aqueles, é o mapa do universo. O platônico sabe que o universo é de certo modo um cosmos, uma
ordem; essa ordem, para. o aristotélico, pode ser um erro ou uma ficção de nosso conhecimento
parcial. Através das latitudes e das épocas, os dois antagonistas imortais trocam de dialeto e de
nome: um é Parmênides, Platão, Spinoza, Kant, Francis Bradley; o outro, Heráclito, Aristóteles,
Locke, Hume, William James. Nas árduas escolas da Idade Média, todos invocam Aristóteles,
mestre da humana razão (Dante, Convivio, IV, 2), mas os nominalistas são Aristóteles; os
realistas, Platão. O nominalismo inglês do século XIV ressurge no escrupuloso idealismo inglês
do século XVIII; a economia da fórmula de Occam, “entia non sunt multiplicanda praeter
necessitatem”3 permite ou prefigura o não menos taxativo “esse est percipi”4 Os homens, disse
Coleridge, nascem aristotélicos ou platônicos; da mente inglesa cabe afirmar que nasceu
aristotélica. O real, para essa mente, não são os conceitos abstratos, e sim os indivíduos; não o
rouxinol genérico, e sim os rouxinóis concretos. E natural, é talvez inevitável, que na Inglaterra a
“Ode a um rouxinol” não seja bem compreendida.
Que ninguém leia reprovação ou desdém nas palavras acima. O inglês recusa o genérico
porque sente que o individual é irredutível, inassimilável e ímpar. Um escrúpulo ético, não uma
incapacidade especulativa, impede-o de transitar por abstrações, como os alemães. Não entende a
“Ode a um rouxinol”; essa valiosa incompreensão permite-lhe ser Locke, ser Berkeley e ser
Hume, e escrever, há cerca de setenta anos, as não escutadas e proféticas advertências do
Indivíduo contra o Estado.
O rouxinol, em todas as línguas do orbe, desfruta de nomes melodiosos (nightingale,
nachtigall, usignolo), como se os homens instintivamente tivessem querido que esses não
desmerecessem o canto que os maravilhou. De tão exaltado pelos poetas, ele agora é um tanto
irreal; menos afim com a calhandra que com o anjo. Dos enigmas saxões do Livro de Exeter (“eu,
antigo cantor da tarde, trago aos nobres alegria nas vilas”) à trágica Atalanta, de Swinburne, o
infinito rouxinol tem cantado na literatura britânica; foi celebrado por Chaucer e Shakespeare,
3
“Os entes não devem ser multiplicados além do necessário.” (N. da T.)
4
“Ser é ser percebido.” (N. da T.)
por Milton e Matthew Arnold, mas é a John Keats que fatalmente ligamos sua imagem como a
Blake a do tigre.
**
Poema publicado por Borges em El oro del tigre (1972). A tradução apresentada aqui foi realizada por
Augusto de Campos que, gentilmente, autorizou sua publicação neste site. Cf. CAMPOS, Augusto.
Línguaviagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 131.