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EAD

Eliade: O Sagrado, o
Profano e os Mitos

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1. OBJETIVOS
• Compreender o sagrado, o profano e os mitos.
• Reconhecer a ligação entre os temas anteriores e a reli-
gião.
• Analisar como se desenvolve a história a partir da reflexão
anterior.

2. CONTEÚDOS
• Relações entre o sagrado e o profano.
• Força dos mitos.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
76 © Sociologia da Religião

1) O conteúdo que expomos nesta unidade é a porta de


entrada para novos conhecimentos. Por isso, contamos
com sua participação e dedicação para alcançarmos
mais esse objetivo!
2) É necessário destacar que, para a discussão realizada
neste curso, levar uma vida profana não é o mesmo que
levar uma vida de perversões, na qual expressa uma ima-
gem de moralidade religiosa muito marcada e comum. O
homem profano é simplesmente aquele que decide vi-
ver separado do numinoso, que não acredita nele, o que
não quer dizer que seja o homem sem nenhuma noção
de moral!

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você pôde conhecer os pensamentos
de Weber, os quais demonstram elementos fundamentais para
compreensão do estudo das religiões.
Vamos continuar nossos estudos, falando, agora, de Mircea
Eliade, uma das maiores autoridades no estudo das religiões.
O romeno Mircea Eliade não pode ser classificado como um
sociólogo da religião. Ele se colocava como um estudioso da ciên-
cia das religiões e um historiador da religião, mas sempre em seus
trabalhos manteve uma grande proximidade com a filosofia.
Mircea Eliade (1907-1986) nasceu em Bucareste, onde reali-
zou seus estudos universitários, formando-se em Filosofia. Depois
disso, partiu para Índia, tendo ali estudado o sânscrito e as filoso-
fias do sudeste asiático, sob a orientação de Surendranath Dasgup-
ta, professor emérito da Universidade de Calcutá.
Por que selecioná-lo, então, para os nossos estudos? Sim-
plesmente pela grande influência exercida por seus escritos, que
vão nos ajudar a refletir sobre algumas temáticas fundamentais
para o estudo científico das religiões, que é, afinal, o objetivo des-
ta área da Sociologia.
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Vamos começar com um trabalho de Eliade intitulado O


Sagrado e o Profano – a essência das religiões, no qual o autor
dedica-se a refletir sobre o significado destes dois conceitos fun-
damentais para as ciências da religião.

5. RELAÇÕES ENTRE O SAGRADO E O PROFANO


A maior influência para este trabalho de Eliade encontra-se
no teólogo alemão Rudolf Otto, autor de um famoso estudo inti-
tulado O Sagrado. Eliade considerava que Otto havia conseguido
esclarecer o significado da chamada "experiência religiosa".
A chave desse entendimento encontrava-se na explicação da
ideia de “Deus vivo” para todo crente:
Não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não
era uma idéia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral.
Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na ‘cólera’ divi-
na (ELIADE, 1999, p. 15).

Como você pôde notar é simplesmente a constatação que


para o fiel a experiência religiosa vai muito além de uma expe-
riência moral, ou seja, de uma prática de fortalecimento de certas
condutas de vida.
O fiel sente o poder divino em sua vida, teme a sua cólera. É,
portanto, uma experiência que vai além da regulação de padrões
de conduta moral. Otto desenvolveu, então, o conceito de numi-
noso (que vem do latim “numen”, que significa “deus”), que con-
forme Eliade:
O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere, ra-
dical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano
ou cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimen-
to de sua profunda nulidade, o sentimento de "não ser mais do que
uma criatura", ou seja – segundo os termos com que Abraão se
dirigiu ao Senhor –, de não ser "senão cinza e pó" (Gênesis, 18:27).
(ELIADE, 1999, p. 16)

O numen é desse modo. Deus é o completamente outro, pois


é absolutamente diferente de todos os homens. Este é o caráter

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daquilo que deve ser chamado então de sagrado, que se manifesta


"[...] sempre como uma realidade inteiramente diferente das rea-
lidades ‘naturais’" (Ibid., p. 16). Eliade mostra então que a lingua-
gem humana não é capaz de expressar o sentido do ganz andere,
pois "[...] a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa
a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa
mesma experiência natural" (Ibid., p. 16).
A preocupação de Eliade é tratar o sagrado como uma to-
talidade, indo, portanto, além de uma discussão sobre o racional
e o irracional. Ele nos mostra o sagrado como sendo o oposto do
profano.
Para começar seu estudo Eliade propõe o termo hierofania,
que simplesmente significa "algo de sagrado se nos revela" (Ibid.,
p. 17). Abordando a definição empregada por Eliade, Gaarder as-
sim sintetiza esses conceitos: "Sagrado indica algo que é sepa-
rado e consagrado, profano denota aquilo que está em frente
ou do lado de fora do templo." (GAARDER; HELLERN; NOTAKER,
2000, p. 18).
Veja que como a linguagem não é capaz de nos fornecer uma
ideia precisa do numen, do absolutamente sagrado e é justamente
com base na manifestação de algo completamente diferente do
profano que chegamos ao conhecimento sobre o sagrado. O sagra-
do aponta o caminho para algo maior do que nós.
Quando alguém presta veneração ou adoração a algum ob-
jeto sagrado não o está fazendo para o objeto diretamente, mas,
sim, para o seu aspecto de ser um caminho de algo maior. Vejamos
a importância dessas concepções segundo o próprio Eliade:
O leitor não tardará a dar-se conta de que o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Es-
ses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à história
das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto de
estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em última instância,
os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posi-
ções que o homem conquistou no Cosmos e, conseqüentemente,
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interessam não só ao filósofo mas também a todo investigador de-


sejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana.
(ELIADE, op. cit., p. 20).

Assim, é necessário perceber que o numinoso diz respeito


a muito mais do que representações fantasiosas da realidade, do
que uma explicação para fenômenos naturais. Até pelo fato de que
o espírito humano reage de maneira diferente aos fenômenos da
natureza:
Ora, os progressos da etnologia cultural e da história das religiões
mostraram que [...] as 'reações do homem diante da Natureza' são
condicionadas muitas vezes pela cultura – portanto, em última ins-
tância, pela história (Ibid., p. 21).

Chegamos, então, ao ponto em que o estudo do numino-


so, das manifestações do sagrado e do profano, nos ajuda a com-
preender "as dimensões possíveis da existência humana".
Vejamos agora, com atenção, as seguintes passagens:
Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço
apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamen-
te diferentes das outras. "Não te aproximes daqui, disse o senhor à
Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encon-
tras é uma terra santa." (Êxodo, 3:5) Há, portanto, um espaço sagra-
do, e por conseqüência "forte", significativo, e há outros espaços
não-sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistên-
cia, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa
não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma
oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe
realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca. [...]
Em contrapartida, para a experiência profana, o espaço é homo-
gêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as
diversas partes de sua massa. [...]
É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se en-
contra no estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do
mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida
profana não consegue abolir completamente o comportamento
religioso. [...]
[...] a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um
"ponto fixo", possibilitando, portanto, a orientação na homogenei-
dade caótica, a "fundação do mundo", o viver real. A experiência
profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e portanto a re-
latividade do espaço. Já não é possível nenhuma verdadeira orien-

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tação, porque o "ponto fixo" já não goza de um estatuto ontológico


único; aparece e desaparece segundo as necessidades diárias. A
bem dizer, já não há "Mundo", há apenas fragmentos de um uni-
verso fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de "lugares"
mais ou menos neutros onde o homem se move, forçado pelas
obrigações de toda existência integrada numa sociedade industrial.
E, contudo, nessa experiência do espaço profano ainda intervêm
valores que, de algum modo, lembram a não-homogeneidade es-
pecífica da experiência religiosa do espaço. Existem, por exemplo,
locais privilegiados, qualitativamente diferentes dos outros: a pai-
sagem natal ou os sítios dos primeiros amores, ou certos lugares
na primeira cidade estrangeira visitada na juventude. Todos esses
locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não-re-
ligioso, uma qualidade excepcional, "única": são os "lugares sagra-
dos" do seu universo privado, como se neles um ser não-religioso
tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente daquela
de que participa em sua existência cotidiana (Ibid., p. 25-28).

A noção de sagrado e profano divide os espaços do mundo


para o homem religioso. Mas não é uma mera divisão de funções,
é uma divisão qualitativa: os espaços sagrados são muito mais for-
tes, possuem uma grande significação, diferindo dos espaços pro-
fanos, que não são estruturados.
O profano é o espaço da desordem, da ausência de um sen-
tido maior. É nesse sentido que o espaço sagrado é o único real,
pois é o único que efetivamente importa para o homem religioso.
Por isso, Moisés precisa retirar suas sandálias: não pode trazer o
pó dos espaços profanos em que andou para dentro do espaço
sagrado.
Interessante pensar em um paralelo de tal significação com
a cultura oriental e seu costume de retirar os sapatos ao entrar em
qualquer prédio ou casa. Os sapatos carregam a sujeira da rua, por
isso, devem ficar na porta de entrada.
O homem não religioso, que optou, portanto, por uma vida
profana, não enxerga o mundo do mesmo modo. Para ele, os espa-
ços do mundo são homogêneos, possuem a mesma significação.
Mesmo assim, Eliade destaca que o comportamento religioso não
é completamente abolido no homem profano, pois existe a confi-
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guração do meio social que o circunda, que ainda é marcado pela


noção do numinoso.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Lembre novamente do exemplo da cultura oriental. Tirar os sapatos é um gesto
repetido por todos, mesmo pelos que levam uma vida profana, em sentido de
respeito ao ambiente no qual vão entrar.
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É importante entender bem o significado da citação em que


o autor afirma que o sagrado fornece um "ponto fixo" para a exis-
tência.
O mundo profano é homogêneo, portanto, todo espaço pos-
sui o mesmo valor. Isso implica que todo ambiente está sujeito a
ser violado, pois são as necessidades cotidianas que vão definir a
sua utilidade.
Perceba que é importante o paralelo realizado, então, com
o mundo industrial, o mundo do capitalismo. Na sociedade indus-
trial, não existem espaços sagrados, todos os espaços servem aos
propósitos do mercado. Nesse sentido, o indivíduo, mesmo dentro
do seu lar, está sujeito a todos os apelos da sociedade de consumo,
que invade sua privacidade por meio da televisão, expondo sua
família a mensagens que propagam valores que, muitas vezes, são
opostos aos que consideram corretos.
A noção de sagrado fornece o “ponto fixo”, o padrão que
vai determinar a classificação de tudo o mais que existir fora dele.
Outro exemplo, relacionado ao primeiro sobre a televisão, pode
ser esclarecedor.

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Muitos fiéis das religiões pentecostais e neopentecostais acabam adotando, em
seus lares, uma conduta que, inclusive, regula o conteúdo que deve ser visto na
televisão, buscando fugir de todas as mensagens consideradas profanas.
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Não vamos, aqui, entrar na discussão sobre como isso pode ser
utilizado para favorecer grupos específicos dentro das mídias tele-
visivas, que conseguem garantir, então, altos índices de audiência.
Tal discussão pode ser realizada no Fórum.

A passagem final da citação nos remete, novamente, para


a questão de que não há um espaço puramente profano. Eliade
destaca que mesmo o homem profano possui uma experiência
de lugares que se destacam em sua memória dos demais que fre-
quenta. Podem ser as lembranças da cidade natal, do local em que
conhecemos o primeiro amor, ou qualquer outro espaço em que
fatos significativos para a vida individual e privada tenham ocorri-
do. Tais espaços tornam-se sagrados mesmo para a memória do
homem que decidiu levar uma vida profana.

6. A FORÇA DOS MITOS


Passamos, agora, para a última parte do nosso estudo sobre
Eliade. Vamos nos concentrar aqui em outro trabalho importante
do romeno, intitulado “Mito e Realidade”. Nessa obra, o autor vai,
novamente, começar pela definição do significado da palavra, par-
tindo da busca dos seus usos ao longo da história.
E o que o termo mito nos indica hoje? Em nossa sociedade,
fortemente influenciada pela tradição judaico-cristã, ele aparece
relacionado com tudo aquilo "que não pode existir realmente"
(ELIADE, 1998, p. 8). Tal significado deriva do sentido atribuído pe-
los gregos à palavra “mythos”.
Foram os gregos que começaram a retirar dos mitos o seu
significado religioso e metafísico, presente nas representações das
civilizações mais antigas. Em seu sentido original, o mito indicava
uma história que era verdadeira, possuindo forte significação sa-
grada e exemplar.
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Desse modo, foi com o avanço da civilização judaico-cristã


que a noção de mito passou a ser vinculada com uma representa-
ção ilusória da realidade, uma vez que somente aquilo que estava
presente nos livros bíblicos era considerado verdadeiro.
Vejamos, a seguir, algumas passagens de Eliade que nos aju-
dam a entender melhor o significado do mito:
O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que
pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas
e complementares.
[...] Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dra-
máticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrenatural") no Mundo. É
essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o
converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos
Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal,
sexuado e cultural.
[...] é importante frisar, desde já, um fato que nos parece essencial:
o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma "his-
tória verdadeira", porque somente se refere a realidades. O mito
cosmogônico é "verdadeiro" porque a existência do Mundo aí está
para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente "verdadei-
ro" porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por
diante.
[...] a principal função do mito consiste em revelar os modelos
exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas:
tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educa-
ção, a arte ou a sabedoria (Ibid., p. 11-13).

A primeira ponte feita do mito é justamente com a cultura,


em que deriva sua relação com a realidade.
O mito é real, pois a cultura, em suas diferentes manifesta-
ções, é completamente real. Portanto, antes de prosseguirmos, é
preciso ter claro que: dizer que uma coisa é real não implica em
dizer que todos os deuses de fato existem, por exemplo.
Entretanto, a realidade é definida por aquilo em que os ho-
mens acreditam e fazem acontecer em seu cotidiano. É real aquilo
que os homens, em sociedade e por meio da sua cultura, tornam
real. Por isso, a passagem seguinte fala da relação do mito com o
sagrado, moldando o mundo do modo como o conhecemos.

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É importante entender o sagrado da forma como já o apresen-


tamos nesta unidade, afinal continuamos lidando com o mesmo
autor.

As provas apresentadas para comprovar a realidade dos mi-


tos podem não ser as provas aceitas pela ciência laboratorial e ex-
perimental moderna, mas são as legitimadas por uma explicação
que faz sentido dentro de uma lógica cultural. E a cultura de um
povo é a sua realidade.
Veja que a última passagem do texto anterior nos indica um
aspecto que também precisa ser claramente compreendido. Ao fa-
lar que a função principal do mito é nos revelar aqueles modelos
exemplares da conduta humana de certa sociedade, tal afirmação
é feita para os pesquisadores de hoje. Ou seja, o estudo dos mitos
é importante hoje por nos ajudar a compreender os modelos cul-
turais de comportamento humano para as diferentes sociedades.
Para as sociedades em que o mito exerce seu papel, ele continua
sendo a revelação de uma história verdadeira e sagrada:
Acrescentemos que, nas sociedades em que o mito ainda está vivo,
os indígenas distinguem cuidadosamente os mitos – "histórias ver-
dadeiras" – das fábulas ou contos, que chamam de "histórias fal-
sas".
[...] Em suma, nas histórias "verdadeiras", defrontamo-nos com o
sagrado e o sobrenatural; as "falsas", ao contrário, têm um conteú-
do profano [...]
Enquanto as "histórias falsas" podem ser contadas em qualquer
parte e a qualquer momento, os mitos não devem ser recitados
senão durante um lapso de tempo sagrado [...] Esse costume se
conservou mesmo nos povos que ultrapassaram o estádio arcaico
da cultura (Ibid., p. 13-15).

Devem ter ficado claras, na citação anterior, as relações en-


tre os conceitos que compõem o título desta unidade: o sagrado, o
profano e os mitos. A "realidade" do mito vem da sua relação com
o sagrado: o mito revela a história "verdadeira" do sagrado.
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Todas as demais histórias são "falsas", justamente por tra-


tarem de tudo aquilo que é o profano. Lembre-se de que, para o
homem religioso, o mundo profano não corresponde à verdadeira
realidade, mas sim a um conjunto de ilusões e distrações.
Os mitos, sendo histórias sagradas, não podem ser contatos
em qualquer momento e nem por qualquer pessoa, pois não po-
demos, simplesmente, nos aproximar do sagrado. Lembre-se da
mensagem enviada para Moisés, para que retirasse suas sandá-
lias... Só podemos nos aproximar do sagrado quando abandona-
mos a contaminação do profano. Isso ocorre pois o sagrado é con-
siderado tão poderoso que o ser profano correria um sério risco
somente por se aproximar dele sem os devidos cuidados. Os riscos
envolvidos são diversos, sendo o mais extremo deles a morte.
Surge daí, então, a necessidade de termos um "um lapso de
tempo sagrado”, durante o qual os mitos podem ser contados. Não
é esse, justamente, o significado dos cultos e celebrações religio-
sas na nossa sociedade? O cristão de hoje, antes de iniciar a leitura
da Bíblia, também não faz um breve momento de reflexão? Ao rea-
lizar o sinal da cruz ele não está indicando que vai entrar em outro
estágio da sua existência, marcado pela presença do sagrado?
Espero que tenha ficado claro porque Eliade rejeita a defini-
ção judaico-cristão para o mito, ao associá-lo com tudo que é falso
e ilusório (Ibid., p. 08). Vejamos mais algumas passagens do autor
para finalizar a nossa reflexão:
A Etnologia não conhece um único povo que não se tenha modi-
ficado no curso dos tempos, que não tenha tido uma "história".
À primeira vista, o homem das sociedades arcaicas parece repetir
indefinidamente o mesmo gesto arquetípico. Na realidade, ele con-
quista infatigavelmente o mundo, organiza-o, transforma a paisa-
gem natural em meio cultural. Graças ao modelo exemplar revela-
do pelo mito cosmogônico, o homem se torna, por sua vez, criador.
Embora pareçam destinados a paralisar a iniciativa humana, por se
apresentarem como modelos intangíveis, os mitos na realidade in-
citam o homem a criar, e abrem continuamente novas perspectivas
para o seu espírito inventivo.

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O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi
feito, e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto
ao resultado de seu empreendimento. [...] A existência de um mo-
delo exemplar não entrava o processo criador.
[...] Direta ou indiretamente, o mito “eleva” o homem (Ibid., p. 124-
128).

Portanto, não existe um único exemplo de civilização huma-


na sem uma história, sem a transmissão de valores de uma gera-
ção para a outra, seja pela tradição oral seja pelo desenvolvimento
da escrita.
Os mitos criam modelos ideais de conduta. Eles não dizem
ao homem aquilo que ele jamais vai conseguir atingir. Pelo con-
trário! Revelam, ao homem, que ele pode superar seus limites,
desde que se prepare para tanto. Os mitos cosmogônicos, aqueles
que dizem respeito à criação do mundo, não existem para que o
homem se acomode em sua realidade, mas servem para indicar
que ele também pode ser criador ao buscar se aproximar de um
modelo de conduta.
Se alguém deseja acreditar que os modelos exemplares aca-
bam com as possibilidades de criação, então, também, deveria
acreditar que todas as possibilidades da arte deixaram de existir
depois dos gregos.
Os modelos exemplares não existem para entravar o ho-
mem, mas, sim, para estimular sua imaginação e incentivar a sua
ação. Por isso, há a afirmação de que "o mito eleva o homem",
pois esses modelos fazem que ele acredite que pode ser e fazer
mais do que aqueles que vieram antes dele. E, nesse sentido, não
temos nada mais real.

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, na sequência, as questões propostas para verificar
seu desempenho no estudo desta unidade:
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1) Eliade utiliza o conceito de numinoso, de Rudolf Otto, para começar sua re-
flexão sobre as religiões. Explique qual é o significado desse conceito e por
que ele é importante para as reflexões de Eliade.

2) Defina e exemplifique os conceitos de sagrado e profano, de acordo com a


proposta de Eliade.

3) Mantendo em mente, ainda, as reflexões de Eliade, explique o que são os


mitos, qual a função que eles desempenham e qual a sua relação com os
conceitos de sagrado e profano.

8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde estudar e compreender o sagra-
do, o profano e os mitos, bem como suas realidades e ilusões.
Foi possível, também, refletir sobre a importância da histori-
cidade no desenvolvimento do mito.
Para apreender melhor o que acabamos de expor, procure
refletir sobre o que foi apresentado nesta unidade, rever suas dú-
vidas, atuar sobre esses materiais, pesquisar e participar nas dis-
cussões abertas no Fórum.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIADE, M. Mito e realidade. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
______. O sagrado e o profano – a essência das religiões. São Paulo: Marins Fontes, 1992.
______; COULIANO, I. P. Dicionário das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GAARDER, J.; HELLERN, V.; NOTAKER, H. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
MARIANO, R. Neopentecostais – sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo:
Loyola, 1999.
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução. In: TEMAS II. [S.l.]: Grijalbo,
1977. p. 1-14.
______. O Capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
OTTO, R. O sagrado. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1974.
______. O sagrado. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
______. “Bye bye, Brasil”: o declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. Estudos
Avançados, v.18, n. 52, p. 17-28, dez. 2004.
______. O desencantamento do mundo – todos os passos de um conceito em Max
Weber. São Paulo: Editora 34, 2003.

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