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Hans-Thies Lehrnatih

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Teatro
pós-dramático

traduçãô·--,.
Pedro Süsslkind

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7 APRESENTAÇÃO Sérgio de Carvalho
·, '· 17 PRÓLOGO

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-� · ...-·•· 1, DRAMA

45 Drama e teatro
61 Drama e dialética

,"': ..... 2. PRÉ-HISTÓRIAS


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7S Sobre a pré-histórla..do teatro ·,pós-dra�ático
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Uma bte"'._e retrospectiva sobre as vanguardas
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hlstóric.as

/ (PANORAMA DO T!:ÂTRO PÔS·DRAMÁTICÓ


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Além da ação: cerimônia, vózes no espaço, paisagem


{
137 Signos teatrais pós-dramáticos
...... 175 Para além da Ilusão
183 - exemplos

4, PERFORMANCE
-··-- -. ""- ... . . ·.· -·· . .. ' 22f Teatro e performance
235 A presença d;_i performance
.
'

5. TEXTO
245 Texto, linguagem, fala
-:---
·453 Texto, voz, sujeito

6. ESPAÇO
265 Espaço dramático e espaço pós-dramático _,,,··
271 Estética espacial pós-d ramátlca
------------ -·-· -·--- -· - --·-- -------·-·

...7, TEMPÓ
,_
2"87 Questões temporais �o teatro
303 Estética temporal pós-dramática
317 Teatro e memória
323 Digressão sobre a unidade de t�.rnpo

8. CORPO

331 O corpo teatral Apresen;tação


'
339 Imagens corporais pós-dramáticas .
Sérgio de Carvalho

9. M!DIAS
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365 Teatro e mídias
377 Mldias no teatro pós-dramático
Teatro pós-dramático parte da hipótese de qqe a partir dos anos 1.970 ocorreu
397 Representação e representa bllldade
uma profunda ruptura no modo de pensar" é fazer teatrQ. Algo que já estava
.. � .
anunciado pelas vanguardas moderni;tas do começo do século xx. - a valor!-
EPÍLOGO .,,- •
zação da autonomia da cepii e a recusa a qualquer tipo1 de "textocentrismo" -
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1

4o7 Teatro pós-dramático e política se desenvóiveinãTs iaêiiêalmente; a·popto de assumi; senti�o modelar

429 ÍNDICE ONOMÁSTICb


·--.. .,/ .
como contraponto da arte ào processo âe totalização da indústria cultural.
Desse modo, � �dência "pós-dramática"' seria uma,. n�vidade histól'ica não
apenas por r�íões. fÕriiiaís, ffii{sta-mbém.pela..u.���? estética dôs padrões de
_
p�rcepção dominantes nu2cie�ade midiática., · - --- --.
-Ã..grând� contrib�ição teóti�a do IÍv;�-�-sid�-na t!!ntatlva de.interpretar
historicame�tê---Q. mais avançado tt.abalho teatral cont�mp·orâneo, reconhe­
cendo naquiló ql;l�à-Jtulta génte pôderia parecer um for�alismo vazi� uma
'dimensão crítica das mais potentes. Neste trabalho de '!semânt.lca das formas"
do teatro recente, Lehma-nn polemiza elJl pelo· n1enos três frentes: cotrt ·a crí­
tka jornaUstica conve.fl_çi,011al, des_preparada p:rra-ar.ialisar um teatro que não
mais se bas�.à-numa éosmovisão ficcional nem no conflito psicológico de per­
'' sonafêns identificáv�is; com a cdtiêà acad�mica pós-modernista, acostumada
a de;criçõ�J>_!!l$.agíst\<:c1s-d�ff�nô,meÚos cênicos (e refratária a qqalquer lnter­
ptetação de obras em bases históhcàs); e com a tradição mais "conteudístka"
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1

do teatro épico ou político europeu, que ainda tem dificuldades em dar cré­ presença compartilháda do ator) tenham encontrado utn meio de se contra­
dito a experimentos que não veiculem uma temática sócia! rec�nhedvel.· por ao domínio formal da cultura midiática, rompendo com os velhos hábi­
No entanto, a dimensão historicizante da abor<f'.agem estétkà de Lehmann tos narrativos ligados ao mundo dramático. Em termos dialéticos, é como se
não está evidente: Cabe"ãtdeitor o esforço de ultrapassar o jargão das teorias a pressão dessa expansão midiática tivesse gerado seu contrário, oll ao menos
pós-estruturàlistas que o autor incorpora en se·ú-clispositivo teórico, como
f
tivesse feito com que o teatro mais experimental pudesse chegar perto ·de
parte dàquela vontade de dialogar com as produções criticas francesa e �orte­ "uma reconciliação com sua própria existência ao virar para o exterior seu
ame�·icana. Assim, encontram-se nas páginas deste Ít�ro.çliversas categorias caráter de aparência, seu vazio interior': segundo os termos de Adorno. As
'
formuladas nas últimas décadas por autores que levaram aâiante a recusa a dezenas de procedimentos teatrais aqui descritos de modo enciclopédico por
descrever "sistemas de significação estáveis'_'. TaJ é ó caso de conceitos como Lehmann são tentativas de contramão, geradas por uma reflexão autocrítica
os de "teatral'idade ��-�n�Eg!à' e "presença pura'� elaborado_s já no início sobre a condição material e éxlstencial do próprio teatro.
dos anos 1970, respectivame�t�,"p.Õ17'tyõtãrd;no ensaio:1.a p�nt, la pautne" Tendo em vista o horizonte de uma ·nova situação histórica, o conceito de
["O dente, a paltna"], e por Derrida, em seus escritos sobre Artaud. "teatro pós-d�a!iÍátictl ·é lançado ao debat� na perspectiva de uma "oposição
Ao mesmo tempo que tangencia a condenação genérica do projeto mo­ à categoria epocal 'pós-moderno": como afirma Lehmann [p, 24). Para ele, o
derno de Razão, comum aos pós-estrufúràlistas; l:ehmann faz questão de se que 9,fuelhor teatro surgido nesse momento pode fazer não� rejeitar a "mo­
vincular a uma tradição crítica tipicamente modernista que tem como alvo a der�idade''. mas tentar subverter de modo radical as l1eranças formais domi­
"razão instrument�l" no que ela tem de prestadora de serviços à manutenção nantes - sóbretudo a dramática, que foi incorporada de modo tão rebaixado
da sociedade adm�i"isiràda pelo capital. Sua vontade qe rever o projeto de pelos meios de comuülcação de_ massa. Por outro lado, a correção do aparato
_
uma "semântica das formas" de Peter Szondi (cóm quem estudou) o apro­ teórico. do pós-modernismo por meio de uma historicização das formas con­
xima da visão estética de Adorno, tanto no aspecto da-�dtica à indústria cul­ duz Lehmann a um embate com Peter Szond1, o principal autor a orientar o
tural apresentada na Dialética do Esclarecimento quanto no da "poética do es- método da "semântica das formas''. Em sua Teoria do dramâ ·moderno, Szondl
vaziamento'; enunciada na Teoria estética. Mesmo quando Lehmann alude-ao---..·-----.._ .. , .... fonpula a hipótese de que o grande teatro do modernismo foi aquele que su­
situacionismo de Guy Debord, ém sua· tentativa de criar acontecimentos na perou a crise histórica do drama burguês mediante experimentações épicas.
contràmão da "sociedade do espetáculo': ou às observações de tantos teóricos Na opinião de Lehmann,-essa hipótese pode restringir o entendimento de
que dênunciam a sujeição da experiência vivida ao campo das informações certos fenômenos artísticos posteriores, para os quais já não se pode aplicar
disseminadas eletronicamente, é de Adorno que ele extrai a terrível Imagem sem mais nem menos o vocabulário do teatro épico (ainda que o recorte his­
de uma totalização do imaginário coletivo segundo uma estratégia de apassi- tórico do livro
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de Szondi, 1880-1950, seja claro a esse respeito).
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vamento pela imposição da relação de consumo, mesmo em setores, como o Ademais, Lehmann argumenta que a superação épica empreendida por
da produção cultural, que no passado tiveram alguma margem de recuo em um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena mudança qualita­
relação à hegemonia da forma-mercadoria. tiva em relação à tradição hegemôn\ca do teatro, baseada no texto composto
Diante desse avanço do controle midiático, que se torna incontornável por diálogos entre figuras. Para dar sustentação a essa tese polêmica, o autór
com a expansão da televisão e da informática durante as décadas de 1970 e 80, faz uso de um conceito expandido de "drama". Não se trata mais d9..drán{a
Lehmann considera a possibilidade teórica de que algumas tradições teatrais burguês, baseado 110 diálogo intersubjetivo e i1a fon�a de um pr�sente ab­
fündadas na radicalização dos signos específicos do teatro (em espééiál a da soluto e continuo, apresentado sem mediações externas por 1neio de figuras 9
que a gern...de acordo com uma vontade autod et erminada. Dramá t ico, para nexão entre texto e cena) aind a trnduzia para Le hmann a const atação d e uma
Lçhma;n, é todo teatro baseado nuln texto com fábula, em que a cena teatral impossibilidade de ação polftica, b em como o desejo de qu e se continuasse a
s erv e de suport e a um mundo ·_ficcional: "Tótalidade, ilusãô e repr esentação produzir arte para além da "fúria do ent endimento''. Assim, se exist em mode­
do mundo estão na base do mod elo 'drama'" [p. 26]. Com esse conc eito de los para uma nova politicidad e da c ena européia do fim do século xx, são os
drama, que reúne Eudpedes, Moliere, Ibsen e Bredit, o teatro épico não mais que reinventam o projeto não-m!mético de Artaud, contrário a todo "logo­
poderia ser considerado um salto, porque·nele os deslocamentos da dinâmica centrismo" e a qualquer "lógica da reduplicação''. Nessa perspectiva, porém,
interpessoal - por meio de coros, ap artes, narrativas etc. - não chegariam a surge mais uma vez Adorno como baliza crít�ca do projeto de combater o
subverter a vivência ficcional. pseudo-realismo do imaginário industrialmente fabricado com uma p�ética
É com o abandono d e qualquer intençãq mimética, projeto que só pode da não-ide ntificação. Desse modo, um possível acesso à dimensão política da
ser considerado à contraluz da "onipres ença das mídias na vida cotidi ana c ena pós-dramática p assa necessari ament e por uma reflexão do teatro sobr e
desd e os anos 1970'; que pod emos falar num teatro pós-dramático: c ntra) si mesmo, à maneira do projeto frankfurtiano de uma teoria que se
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oponha à "mentira da totalidade e da objetividade''.
Se o curso de uma história, c�m sua lógica interna, não mais copstitui o elemento É curioso _que ilo movimento crítico de Teatro pós-drqmático essa "frank­
central, se a composição não é mais sentida como uma qualidade organfaadora, u
f rtização" de Artaud aproxime Lehmann, com todas as negativas, da teoriã
mas como "manuf�tura" enxertada artificialme.nte, como lógica de ação mera­ de 13recht. Nos pontos em que as observaçõ��-dô Autor aludem ao projeto de
mente aparente, que serve apenas ao clichê, como Adorno abominava nos produ­ desmontar o imaginário dominante, não' raro recorre-�e--a fórmulas Inventadas
tos ·da indústria c ultural, então o teatro se encontra concretamente diante da pelo próprio Brecht (aquele mesmo_que certa vez afirmou.que "é preclso cunhar
questão das possibilidades par� além do drama, não necessariamente para ajéín fórml;las': lição que está na base desta obra). Quando ex(ÍadJi _nos Estados Uni­
da modernidade fpp. 32-33). / dos durant�- a-SegundaGueri:a, l3reclin:omparou a produção da i�dústria cul­
/

,
/ tural norte-americana a uma prostituta que, diante de um cliente impotente,
É bem possível que a polêmica d emarcação de campÔ. feifif'pelóà�tor em r el�- precis a lançaunã.Q.EI:_ �feitos cada vez mais agressivos e crus. Para Brecht, essa.
ção às suas principais font es tenha a ver. com. o exc epcional talento teórico de produção qué,visa sacudu:"uma récépçã1:nm estesiada ..é_l!!TI efeíto do próprio
Szondi - e de Brecht, cuja capacidade de "ofuscar tudo à sua volta" costuma com�rcio de entorpecentes da,cultura, do pr6sp7ro negócio d�s trâ'nqüilizant es .. ·
causar "bloqueios" em muitos analistas de t eatro. Mas essa confrontação tah1- de màs;�si�
' .... isso que uma nova arte do ator não pode s er considerada sem
por
bém diz r espei to à vontade de forn ecer bases de l eitur a para estratégias artís­ uma nova arte cÍo'espectador, na medida em qu e a beleza devê ser vista como
ticas bem diversas da épico-dialética, e que m esmo ass�m devem ser conside­ algo capaz·de "dar aos'sentldos a oportunidade de se mostrarem hábeis". É por
radas como referências para um teatro poUtizante atual. O que parece pouco isso que Brecht valorizava o teatro em relação ao cinema, visto que é uina !\rte
razoável, na medida em que implica um juízo anacrônico, é que Lehmann, em que o produto não está" acabado,. em que a cena é modificada p ela platéia.

ao relativizar a centralidade do experimentalismo épico, tenda a sub estimar "Belo é r esolver dificuldades': diz a sente��çà faniosà·ae 13rec11t.
o classiclsmo de Brecht como-índice de ap ego à tradição, criticando tambéni O. teatro pós':..dram�tic'o' - Lehmann é quem o constata - é pós-brechtiano
sua ênfase racionalista e sobr etudo seu gosto pela fábula e pela narratividade. na mediaã em que t ent� l evar adiant� u1n projeto de desapassivamento do pú­
Em 1999, ano em que Teatro pós-dramático foi public ado na Alemanha, tal blico, de ativ�ção perc�ptiva·: c�m b ase na '.'êxposição do t eatro em sua r eáli-.
. /
10 ruptura com grandes narrações, figurações e cosmovisões,� expressa na desce- dade de teatro'; numa vitalização da capacidade dinâmica do olhar de criar
experiê11.cia da coisificação, que se t6rt1ou estranha a eles" [p. 350]. Em �ermos "isso implica não só determinadas formas, mas também um modo de traba­
breéhtianos, para não pact�ar c _om a mentira do sujeito - e da efetividade de lhar específico" [p. 414). Contudo, a conseqüê1Ícia mais avançada disso não
qualquer ação individual num capitalismo �em agentes evidentes - o homem é concordar com a idéia solipsista de que o máximo que se pode fazer hofe
se vê "reduzido à sua menor dimensão''. E essa menor dimensão é seu corpo em dia é produzir i\COntecimentos, situações, exceções e instantes de desvio,
nu, agachado nõ chão, como o de um morto. numa prática resistente de interrupção das normas [p. 408].
Os muitos as_pectos polêmicos de Téiitro pós-dramático ..:.· já surgidos Se observarmos algumas incorporações recentes do termo "pós-dramá­
desde que a fórmula ganhou circulação independente - não devem ser cre­ tico" no vocabulário teatral brasileiro, poderemos constatar que os Virigos
ditados somente ao gosto polêmico de Lehmann, ma$ também a uma lei­ de superdimensionamento (já previstos por Lehmann) ocorrem sempre que
tura descontextualizada de seu trabalho,l�e fato, é um livro cuja paixão pela a descrição do procedimento.formal
---==--·--···� se desvincula ' do .seu projeto crítico. Niio
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dimensão sensível da arte por vezes resvala num certo culto nietzschiano é qualquer artista pós-dramático que se torna �apaz de encontrar por meio
à �ecessidade de "remitização" da vid"i:J Lehmann produz uma constelação _yma "aparente negação da história [a] abertura de um outro olhar sobre
poética que perde nitidez quando pretende ser uma teoria estética geral so­ a história, para além do demônio da culpa" [p. 322]. Uma questão como essa
bre o desenvplvimento cênico recente. E faz muita falta no :;eu trabalho uma (ou mesmo a da ênfase estética do "corpo performático") tem sentido muito
maior referência a contextos produtivos, tendo em vista uma inscrição )1ist6- diferente num país "sem a carga opressora da tradição de uma rica literatura
rica desse movimento. O esmero de tantos encenado�es famosos em produzir dramática" [p. 203).
uma cena autônoma, que in?ependa da palavra, mantém tristes vínculos com A radicalidade da contribuição teórica de Lehriiann'advém do fato de
a intenção de uma circulação transnacional em festivais. Dessa perspectiva,� pensar os fatores estilísticos como uma constelação rela_tiva a uma percepção
argumento de que a radicalidade abstracionista das artes plásticas dem�rôu social reificada:§�_?_se tr�Ja ap_enas de um novo tipo d� encenação delirante,
a encontrar luga� nos circuitos teatrais em razão de uma dependê I)ci'iÍ pro­ mas de um modo de utilização do's signos teatrais que, ao pôr em relevo
dutiva das artes cênicas em relação a estruturas disP._�ndiosas podé também a presença sobre a represent!lção, os proc�ssos sobre o resultado, gera um
levar à pergunta: por que, em determinado momento:o"nàó-'iigurativismo deslocamento dos.h.�_qitos perceptivos do espectador educado pela indústria
pós-dramático passou a encontrar grartde facilidade de circulação, tornando­ cultura9É pelo modo d�S�St;biÚzactor dõ'tfâm;�tO eHtre.pal�o e platéia que
_
se mesmo um produto preferencial no circuito mundial das artes cênicas? essa _PO!ê ncia se efetiva.fsslm, não é ql:la-lq1:1�r abandono da fábula ou frag­
_
Essas observações, entretanto, não diminuem a grandeza do projeto teó­ mentação narr�tiva que se revela desapassivador, assim como nem toclo uso
rico de Lehmann. Mesmo o mais polêmico de seus textos neste livro, o "Epí­ da fábula é nec�sstir!amente tranqüilizador, como atestam diversos exemplos
logo" sobre a dimensão poUtica do experimentalismo pós-dramático, muda do Uv��A sentime;;falid.ade autocomiserativa e pdvatista do mundo dra­
de sentido se pensado ·no contexto alemão do fim dos anos 1990. Não é incor­ mático pode estar onde menos se espera, mesmo nos caleidoscópios imílgé­
reto dizer que os éaminhos vivos de um teatro pós-brechtiano devem apren­ tlcos mais convulsionados:Por
. . outro lado, cabe ao artista a lucidez sobre· sua
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der com as experiências de Müller e de Wilson, ainda que não seja possível situação, e nesse sentido mesmo a alegorização barrciquizante pode - depen-
('
co �cordar com a idéia de que "A política do teatro é uma poUtica da percep­
'

<lendo do. caso - dar testemunho dos . limites da atuação da" arte. De todo
.

\
ção" (p. 424). Todo artista qu·e trnbalha contra· a despolitização com lucidez modo, é na coi1tramâo·1da mistificaç.ão _que uma estética da desconfia11ça não
sabe que o teatro não se torna político apenas por tematizar- assuntos socioeco­ escorrega para o-cinisfifo. e_�ra Le �mann, não se define qe antemão se um!l
nômicos, mas sim "pelo teor implícito de seu modo de_ re ��esentação'; e que obra pós-dramática expressà "uma despolitização, uma resignação eficaz

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apenas a curto p�azo ou u�tp._N.�b.�o


_
��::�ª d��u- �lo que possa , ser _a_
P.?IJ!l�� �9. teatro" (p. 171}. Mas é em favor dessa úlfima altern:i-�iva que este
' ·
livro trabalha.-
__.,,,. - .. _ ... � .
O gosto pelas formas sensíveis, pelas image?s q4e e�capam a conceitos, a
atenção à dimensão material das coisas, a v0ntade de reconhecer exper,iên­
das novas e vivas que aparecem onde menos se espera.,(e que Já não podem
ser lidas com as velhas categorias), bem como, sobretudo:·o·d�seJo de um tea­
tro ativador animam -este grande trabalho de Hans-1hies Lehmànn. Toda� as
.suas contradiçõ�� se relativizam diante d� consoiê.pcla de que o moçimento Prólogo
aqui descrito talvez venha a-ser .apenas um momeato da história recente da
cena tea�aJ, ou, quem sabe, o teatro p6s-��1átl�o· - · · ·- º
/ ·-.......

/
inaugure umn nova cena, na qual as-figurações dramáticas serão reencontradas
,/
depois de t�manho �istnnciamento entre.o.drama e.o teattõ.°Ãs formas narrati­ I
vas, a apropriação sóbria e mesmo trivial de histórias antigas, assim como a ne­ Premissa
cessidade_ de um retomq das estilizações mais conscientes e artificiais, poderiam
constituir uma ponte para escapar aó visgo das _ imagens naturalistas. Algo novo Com o fim da "galáxia de Q.4te11berg•; o texto escrito e ó livro estão nova­
surgirá f...J [pp. 2.40-41]. ,; mente·em questão. O modo de percepção se desloca: a percepção simultânea
e multifocal substitui a linear-sucessiva; uma percepção ao mesmo tempo
mais superficial e mais abrangente tomou o lugar da percepção centrada,
-... -- . mais profunda, cujo paradigma era a leitura do !exto literário: A leitÜra lenta,
assim como o teatro pormenorizado e vagaroso, perde seu status em face da
circulação mais lucrativa de imagens em movimento. Remetendo estetica­
mente um ao outro em um processo de repulsão e é\tração, a literattu·a e o
teatro assumem o status de práticas minoritárias.[9 teatro não mais constitui
um meio..de_f9municação de �assa. Torna-se cada vez mais ridículo negar
obstinadamente esse fato e mais urgente refletir sobre el:J Diante da pressão
exercida pclo estímulo das duas forças conjuradas, a da velocida.de e a da su­
perficiaJidade,.o discurso teatral aproxima-se delas e se emancipa da llterarie­
dade. Ao mesmo tempo, com relação à sua fllnção· na cultura em geral, tanto
o teatro quanto a literatura lidam ccim texturas que dependem e_!P--gl'�de
medida de uma liberação de energias e fantasias ativas, que na civilização do
\
consumo passivo de inrngens e informações se tornam 1nais fracas. O teatro 17
........ ..
No "texto teatral não mais dramático" do pr�s�n�J, diz Poschmann, .�!!��- Objetivos
, . , .- \ - ...
. parecem os "princípios de narração e figuração'.'.,� � ord7n�_mento de ·uma
"fábula': alcançando-s.e uma "autonomia da linguagem". 1 Werner Schwab, A intenção deste estudo não é fazer um inventário exaustivo, mas desenvql­
Elfriede Jelinek e mesm;Rainald Goetz,·-mantendo .a. �tinensão dramática ver uma lógica estética do novo teatro. O fato de que até agorà mal se tenha
com graus de intensidade diferentes, prod�z;m �extos �os quais a l;ngua­ feito essa tentativa se deve, entre outros fatores, à raridade do e_ncontro entre
gem não se ma11ifesta como discurso figurativo - na.medida em_ que ainda o teatro radical e os teóricos cujo pensamento poderia corresponder às ten­
haja figuras definíveis
'
-, mas como uma teatra}idad;·autônoma. ·com · seu dências desse teatro. Entre os estudiosos do teatro, estão em minoria aqueles
.........
"teatro como instituição oral''. Ginka Steinwachs busca configurar a reali- que consideram a teoria do teatro como algo mais essencialmente voltado
dade cênica.f_omo �a int_ensa objetivação pôético-significati_va·-,ra li�gua­ para o teatro de fato !!Xiste���, como uma reflexão da experiência teatral. Já os
gem. Para o q�; Ôcàtre-aq�i-ées_c;lru:�c!_�r o conceito cunha.do por Jelinek .filósofos, ao passo que meditam com �erta freqüência sobre o "teatro" como
de "superfícies !ingüísticas" contrapostas: ;m· vez-&- êli-ál�go. Como ,nota conceito .e idéia,. e até mesmo fazem da "cena" e do "teatro" conceitos estru-
: : .;· Posclúnann,2' essa fórmula se dirige cóntra a dimensão profunda das .figu­
.r-' --...
tui:ais par,. a discursá té'órico, raramente escrevem de modo concreto sobre
.
ras falantes que teri� o sentido de �E.1� . ilu���-� ni�� é��a(.1:7esse sentido, a personaliáades ou formas teatrais específicas. As interpretações de Jacques
.'. /
metáfora das �'stíperfícies llngüísticas" corresponde à tnuâãriça -que ocorreu Dei;fida sobre Artaud, as de Gilles Deleuze sobre·Carmelo Bene ou o clássico
r . ,/
. na pintura moderna quando, no lugar da ilusão do espaço tridimensional, ensaio de Louis Althusser sobre Bertolazzi e_ Brecht sâo importantes exceções
a superficialidade-da.ima,gem, sua realidade bidimensi_onal e a realidade das que confirmam essa regra.4 Contudo, o reconhechnento de uma perspectiva
cores passaram a ser "encenadas ·" como qualidades autônoma� Contudo, estética do teatro talvez torne necessário notar que as investigações estéticas
não parece se impor· a interpretação de que a auton_omla da linguagem tes­ sempre envolvem, em sentido mais amplo, questões ética�, morais, pollticas e
temunha uma falta de..i�tere_sse pelo ser humano.3 Não se trata antes de jurídicas - como diriam antigamente, questões ligadas à "eticldade''. A arte,
uma nova visão so�r1:..�tl:i O� se e1_:�o��!.ª. ª9l:i é uma articularão menos e ainda mais o teatro, que se insere na sociedade de divers�s modos - desde?
da intencionalidade - característica .do sujeito - do que de su.a exposfçw;-----.. __ .... ., .. caráter comunitário da produção, passando pelo financiamento público, até
· men�s� vqntad€; cm1§�ien�e �o qu� do desejo, menos do "eu" do qu;do o modo social da recepção -, encontra-se no campo das práticas reais socios­
"s� do inconsciente". Assim, em vez de sentir falta de uma imagem pre­ simbólicas. Se a habitual redução do campo estético a posições e dedaraçôes
viam:ente definida do ser humano nos textos organizados de modo pós-dra­ so�ials cai no vazio, é igualmente cego qualquer questionamento teatral que
mático, seria o caso de perguntar quais novas possibilidades de pensamento 'não reconheça na prática artística .do teatro a reflexão sobre as normas de
e representação são aqui projetadas para o sujeito humano individual. percepção-e .c_pmportamento sociais.
.
Na descrição das formas de. teatro aqui compreendidas como pós-dra­
máticas, busca-se deslocar o desenvolvimento teatral do séc�lo xx para uma
perspectiva inspirada pelo desenvolvimento, obviamente a�nda mais difícil

Gerda Pos�hmann, Der nichl mehr dramatische 1heatertext. Aktuelle Bi/hnenstiick und ihre
. _,../
dramatfsche Analyse. Tüblngen, 1997, pp, 177 -78. 4 Ver a proveitosa coletânea de textos polllico-filosóficos sobre o teatro orgaiilzada por Ti-

o
,.
3
Jbid., pp. 204 ss.
Ibld.
.-- moth y Murray: Mlmesls, Masochism & Mime, 1he Po/11/cs of T/1eatrica/ity i11 Contemporary
French Thought. Michigan, 1997. 21
de categorizar, do teatro recente. P.or outro lado, pretende-se contribuir para gação com efeito se aplica ao "teatro do presente·;s mas como uma tentativa
a c.ómpr�ensão conceituai e a verbalização da experiência eh1 face desse tea­ de determinar teoricamente os requisitos para o reconhecimento de sua·es­
tro freqüentemente "diffcií': prornovendb assim sua apreensibilídade e dis­ pecificidade. Apenas uma parte do teatro dos últimos trinta anos é levada
cussão. As novas formas teatrais 1'l'l.arcaram abertamente a obra de alguns em consideração. Não se trata de uma trama de conceitos na qual cada coisa
dos mais importantes diretores da época e encontraram um público mais ou encontra seu lug�r, seja quando sua estética demonstra contemporaneidade,
menos numeroso, normalmen�e de jovens; que se concentrava.e continua a seja quando tão-somente segue velhos modelos com grande perícia. A es­
se concentrar em torno de institutos como o Mickerytheater, o Kaaitheater, tética clássica idealista dispunha do conceito de " idéia": esboço de umtodo
o Kampnagel, o Mousonturm e o 1:AT [Theater am Turm] de Frankfurt, o conceituai que permite concretizar (aglutinar) os detalhes à medida qu� eles
Hebbeltheater, a Szene Salzburg e outros. Ademais, entusi�smaram um certo se desâobram simultaneamente na ''tealidade" e em "conceito''. Desse modo,
número de críticos e lograram "aninhar" alguns de seus princípios estéticos Hegel podia tomar cada fase histórica de uma arte por um desdobramento
no teatro estabelecido (ainda q�e na maipria das vezes de um modo triv!a­
lizado). Já no que diz respeito à esmagadora maioria do público, o que ela
- .. "·-·
--- --- --
concreto e específico da idéia da arte e cada Óbrá de arte como uma con.creti-
zação especial do espírito objetivo de uma época ou de uma "forma artística''.
espera do teatro, grosso modo, é a ilustração de textos clássicos, talvez acei­ A idéia de uma época, ou de uma situação histórica universal, fornecia ao
tando aínda, ltma encenação "moderna': desde que dotada de fábula com­ idealismo uma chave de encadeamento que permitia determinar histórica e
.
preensível, de um contexto que faça sentido, d{;.uma auterlticidade i;ulturnl, sistematicame1ltc o lugar da arte,\'Quando desaparece\.! a confiança em tais
de sentimentos teatrais tocantes. Entre essas pessoas, as formas de teatro construções - como a "do" teatro, da qual o teatro de ümã ·época constituiria
pós-dr-amáticas de Robert Wilson, Jan Fabre, Einar Schleef ou Jan Lauw�rs - um desdobramento específico -, o pluralismo dos fenômenos impôs o reco­
para mencionar apenas algumas das·personalidades teatrais mais "consagr-a­ nhecimento_ do caráter imprevisível e "súbito" da descÓberta, d� lndetenni-
das" - normalmente �ncontram pouca compreensão. No entanto, mésmo
entre aqueles que estão convencidos da autenticidade artística .e.·d; impor­
----·--- -- "T
--
nável momento da invenção. 1, - ·----... •
A variedade heterogênea corrói as certezas metodológicas que deveriam
tância de tal teatro muitas vezes falta a instrumentãlização-Go:il.celtual para possibilitar a afirm�.ã� de causalidades amplas no desenvolvimento artfatico.
formular sua percepção. Isso é evidenciado pelo predomínio de critérios Trata-se de aceitar a coe�istêncià êlêcõ?iêépções··teatr-ais..divergentes, em que
puramente negativos. O novo teatro, de acordo· com o que ouvimos e le­ nenhum _ para_digma assume "weponderância:.�oéier-se-ia ;;sim-:::: s�ria uma
mos, não é isto, não é aquilo e nem é outra coisa: predomina a ausência de conseqüência i�aginável - considerar suficiente proced. er a yma exposição
categorias e palavras p�ra a determinação positiva e a descrição daq,uilo que aditiva, que faria Jlis}iça a todos os tipos de peças do novo teatro. Mas.res­
ele é,CP!etende-se aqui levar tal teatro um pàsso além. e estimular métodos tringir-se a uma listagem pulverizante, de cunho historiográfico-empírico,
de trabalho teatrais que escapem da cóncepção convencional sobre o qué o de tudo o que se tem não poderia ser satisfatório. Significaria meramente
teatro é ou precisa s�f::7 transferir para o presente 'á fúodêstia historiográfica segundo a qual tudo já é
Este ensaio procura propiciar uma orientação no campo multifacetado eo ipso digno de consideração porque u� dia e:ilit{ü.J!.. teoria do teatro não
do novo teatro. Muita coisa está apenas esboçada e terá alcançado sua meta pode abor�ar séu próp�io 'presente co!11 a visão do arquivist�JPor isso se co­
.
se I))Otivar análises detalhadás. Uma "visão de_conjunto" do novo teatro em loca a questão de buscat uma saída para. esse dilema ou mesmo wna atitude
todas as su·as formas cênicas é impossível, e isso não s6_pelo motivo prag­
J
mático de que dificilmente se poderia abarcar sua diversidade. Esta investi-.
'
22 5 Ver Wllfried Floeck (org.); Tendenzen des Gcgenwartstheaters. Tübingen, 1978.
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a ser toq1ada diante dele. A investigação acadêmica r�solve apenas aparente­ Segredos de ofício do teatro dramático
mente as di.ficul<j.ades que resultam da atrofia dos moqelos totalizantes d;e or­
denamento histórico e estético - na maioria das vez,e� medianté uma divisão Ao longo de séculos predominou no teatro europeu um paradigma que
em especializações pedante�, que evidentemente nãq passam em si mesmas contrasta claramente com tradições teatrais extra-européias. Enquanto, por
de l�vantamentos de dados cumulativos e1npacot,ados de modo grosseiro. exemplo, o teatro kathakali indiano ou o teatro 11ô japonês são estruturados
Essas especializações não oferecem nenhum interesse ou apoio nem mesmo de maneira inteiramei:ite diferente e constituídos essencialmente por dança,
para os esforços có11celtuais nos campos adjacentes. tJxa�_ outra resposta con­ coro e música articuladas em evoluções cerimoni�is altamente estilizadas,
siste 'em encaixar a teoria do teatro na tão falada "interdis'cipJjnaridade''. Por textos narrativos e llricos, o teatro europeu se pautou pela presenti:ficação de
mais importantes que sejam os impulsos derivados dessa orientação, é. pre­ discursos e atos sobre o palco por meio da representação dramática imitativa.
ciso constatar.q�1e justamente �a esteira do proéedlmento interdisciplifl�r há Q"ara designar a t;adição corri a qual se� "teatro épico da épo� cientifica" de­
uma tendência a esca·motéãflrverdadeiro.motillQ �-e12sejo para 'o exercício ôa veria romper, Brecht escolheu a expressão "teatro dramátlco.'.)Esse conceito
teoria - a saber, a própria experi �ncia estética em seu �;átêr desprotegido pode designar;íió sentido mais abrangente (incluindo também a maior parte
e inseguro de uma tentativa - em favor de estratégias de categorJzação mais da obra q.o'próprio Brecht), o cerne da tradição teatral européia dos tempos
organizadas (e, no sentido da interdisciplinaridadt!, cada vez.mais extensas). modstnos. Há assim uma combinação ·de temé\s em parte êonscientes, em
: . Para que��ãÔ qu'rr se submeter à transformação do pensainento sobre a palte pressupostos como óbvios, que ainda são vistos como indubitavelmente
' arte em uma atividade vazia de arquivar e categorizar, resta um duplo cami­ consti:�tivos para 011 teatro0 teatro é pensado tacitamente como teé\tro do
11

! nho. Por um lado, ll'O·sentído defendido por Peter Szondi, a��llfi���ções drama.!Incluem-se entre seus fatores teóricos conscientes as categorias "ltlll-
...
11 J
; �.J}ticas artísticas que se tornaram reais de�s_e_:._ li9.as como respostas a tação e "ação: assim como a concomitância quase que automática das duas
_
; questões art_l�ticas., como reações manifestas a problemas de representaçao categorias. Pode-se destacar como tema inconsciente, associado à compreen­
q���-coÍ�cam para o teatro. Nesse sentido, o conceito de "pós-dramático" - são teatral clássica, a tentativa de formar·ou fortalecer pôr ri'1eio do teatro um
' em oposição à categoria epocal "pós-moderno" - significa uma problematA�ª------... COf!texto social, uma comunidade que una einocional e mentalmente o pú­
·-·. ··-
ção teatral concreta: Heiner Müller pode constatar que é trabalhoso Í(!i:!11Ular blico e o palco, "Catarse" é a denominação te§rica para esta função do teatro
o problema ainda na forma dramática. Por outro lado, recorre-se a uma certa que não é de modo àlgum primordial: instauração de reconhecimento afetivo
.:onfiapça (controlada) na reação pessoal - no dizer de Adorno, "idiossincrá- e de comunhão mediante os afetos apresentados pelo drama em seus lin1ites e
tica". Quando o teatro provoc3:va "comoção" por meio do entusiasmo, da in­ transmitidos aos espectadores. Esses traços não podem ser dissociados do
teligê�cia, da fascinação, da simpatia ou da incompreensão interessada (não paradigma "teatro dramático: cujo significado vai muito além da validade de
paralisante), isso era escrupulosamente balizado pelo campo designado por um simple Õrâ.enamento como gênero poético.
s

tais experiências. Somente no decorrer da própria explicação vai-se prestar O teé\tro dramático está subordinado ao primado do texto. No teatro da
contas, parcialmente, dos critérios que orientaram a escolha. época moderna a montagem consistia em declamação e ilustração do drama
escrito. Mesmo quando a música e a dança eram inseridas ou predominavam,
..: ,,
'
.. o "texto" continuava a ser determinante, no �entido de uma totalidade cÓg­
nitiva e narrativa mais apreensível. Apesar da caracterização cada vez mais
,: . ;\ intensa dos personagens dramáticos por meio de um repertório não-verbal
de gestos.. corporais, movimento e.mímica que traduziam as expressões da revolucionárias. As novas formas teatrais surgidas serviam à representação,
aLnã, nos séculos xvm e �IX a figura humana continuava a ser definida es­ agora modernizada, de universos textuais, procurando justamente salvar o
sencialmente por seu discurso. O texto, por sua vez, permanecia centrado texto e sua verdade da desfiguração gerada por" práticas teatrais que haviam
eii1 sua função como texto para a interpretação de papéis. Coro, narrador, se tornado convencionais, de modo que puseram em questão o modelo tra­
intermédio, teatro no teatro, prólogo e epílogo, apartes e milhares de fendas dicional da representação e da comunicação teatrais de maneira limitada, É
sutis no cosmos dramático, o repertório·õrechtiano da representação épica certo que os récursos de encenação de Meyerhold conferiam extrema estra­
enfim, podiam ser acrescentados e integrados "ao" drama sem perturbar a nheza às peças, mas elas eram representadas·como um todo coeso.�certo
vivência específica do teatro dramático. Não é decisivo saber se e em que fne­ que os revolucionários do teatro romperam com quase tudo o que viera.antes,
dida as formas de discurso poéticas tinham efeito na textura dramática, em mas insistiram na mimese de uma ação .no .teatrb, mesmo ao empregarem
.
que medida as dramaturgias épicas eram utilizadas: "o" drama era capaz de recursos de encenação abstratos e causadores de estranheza: (Por outro ·1ad_o,
incorporar tudo isso sem perder seu caráter dramático. ..�º �urso dà·ampliação e em seguida Ô!! onipresença das mfdiàs na vida coti­
-
Por mais que permaneça questionável em que medida e de que modo o diana desde os anos 1970, entrou em cena um modo de discurso teatral novo
público dos séculos anteriores se entregava às "ilusões" que os truques de O
e multiforme, que é d�signado aqui como teatro pós-dr�r�dtico.· slgnificad;
palco, os jogos de luzes artificiais, os acompanhamentos musicais, o figurino histórico da revolução �rtística e teatral ocorrida n� virada do século, a qual
e a cenografia ofereciam, o teatro dramático era.oconstrução de ilusão.)Efe pre­ orientou todo o caminho a seguir, não de".e ser contestado - um capítulo
tendia erguer um cosmos fictício e fazer que o "palco que significa o �undo" específico será dedicado às formas prévias, aos rudimentos e às antecipa­
aparecesse como um palco que representa o m.undó - abstraindo, mas pres­ ções do teatro pós-dramático. Apesar de todas as semell)-anças nas formas de
supondo, que a fantasia e a sensaçio dos espectadores participam da i!tfsiiC::_: . .!_evar �m_ c<;mta que
expressão, é prec:i�� . os mesmos recursos podem ter seu
Para uma tal ilu$áO não se requer a inte�����.1.11es�?-��?.:11Ji.���.da?e em
significado radicalmente modificac:Ío. contextos diferentes. No teatro pós­
da �ep��-;ent�nas o_princípio segundo o 9:��--° .��e � P. e.:�:!�.i<l.9. no teatro dramático, as linguagens formais desenvolvidas desde as vanguardas históri­
. cas se tornam um.ar§�l)al �: gestos expressivos que lhe servem para dar uma
t: pode ser referido a um "mundo'; ist� é,-� . � conjunto:·TôtãÍidade, ilusão e
representação do mundo e;tã�· n;·b;·;�-d; �-;<leio "drama'; ao passo que o resposta à comuni��ção soci;i �ocÜfiêãdã·soo ·as-condições da_ ampla difusão
teatro dramático, por meio de sua forma, afirma a totalidade como modelo da tecnoJ�gia de informação:'.,-
do real. O teatro dramático termina quando esses �lementos não mais consti­ Será corisid e!ado um efeito colateral salutar da presente investigação o··
tuem o princípio regulador, mas apenas uma variante possível da arte teatral. fato de que na deiunttação de um novo continente teatral aqui empreendida,
com outros critérios, ;àlor�s e procedimenfos, surja a necessidade de revelar
A cesura da sociedade midiática criticamente uma série de implicações "não planejadas" que ainda hoje· ca1·ac­
terizam a habitual compreeilsão do teatro. Ao lado dessa crítica às evidências
É bastante conhecida a concepção de que as formas experimentais do teatro do discurso teórico· so�,1:e o drama, bastante qu�stiÕ.iiáveis quando exami­
atual, desde os anos 1960, 'têm seus modelos na época das vanguardas his­ nadas de perto:e nece�sá�Ía a oposição enérgica de um c·o�ceito '
de teatro
" 1
tóric.as. O presente estudo tem como ponto de partida a convicção de que a ·-· · pós- dramático que c.ontradig�. 1;ssas. aparentes evidências. Desenvolvido para
ruptura das vanguardas históricas em tor�o de· 1900, sem dúvida profunda,
-
um
definir O teatro do-presé1Jte, es,se COlfeÍtO pode ter efoito retroativo e evi-.
26 conservou o essencial do."teatro dramático" apesar d .� todas as inovações denciar os aspectos "não· dramáticos" também no teatro do passado. As novas
i. , . 1
I
estéticas surgidas permitem observar �o.b uma nbva:luz as velhas formas de trais inspirados no h�ppening: Hermann Nitsch, Otto Mühl, Wooste� Group,
teatro e a concepção teórica com que eram apree.ndidàs. Certamente é preci�o Survival Research Laboratories, Sqúat Theatre,- Toe Builders Association,
ter muito cuidado ao se identificar cesuras na história de umà forma artística
: . )
Magazzini, Falso Movimento, Hollandia, Vi<: toria, Maatschappíj Discordia,
ainda mais quando se trata-de contextos recentes� Ínuito recentes. O perigo Angelus Novus, Hotel Pro Forma, Serapionstheater, Baktruppen, Remate
pode ser o de que a profundidade do corte aquqiostulado seja superdimen­ Control Production, Suver Nuver, La Fura dels Baus, nv8 Physical Theatre,
sionada: a destruição dos fundamentos do teatro dtamático - válidos por sé­ Forced Entertainment, Station House Opera, Théâtre de la Compllcité, Teatro
.
culos -, a transformação radical do âmbito cênico à'luz.. a mbígua da cultura Due, Societas Raffaell�·sanzio, 111éâtre du Radeau, Akko Thea_ter, Gob Squad.
midiática.f Mas o perigo oposto, de nôtar rio novo apenas �s·variantes daquilo Inúmeros -grupos de teatro, projetos e montagens de diversos portes que es­
que já era conheddo antes, parece ameaçar CO!Jl incompreensões e cegoeiras
0

tão ligados � uma ou mais das "li.riguagens teatrais" indicadas pelos nomes
muito mais desastr.osas - sob��tudo na esf�ra ��adêmica·r aqui mencionados. Jovens realizadores de teatro como Stefan Pucher, Helena
·---.. ....___ ,. _ - . . ··-- ... _:;
. ....___ .. Waldmann, René Pollesch e Michael Sirnon. Autores cuja obra, pelo h1enos
Nomes ein parte, é a6,l'lf ào· paradigma pós-dr3I11ático - no âmbito da língua alemã,
Heiner Müller, Ralnald Goetz, a Escola de Viena, Bazon Brocl�, Peter Handke,
A lista a seguir ofe_rece um panorama· do campo de investigação yJsado sob a Elfriedé Jelinek...
denominação "teatrq·pós-dramático''. Trata-se de manifestações extremamente
heterogêneas, eniendradas tanto por realizadores teatrais mundialmente co­ Paradigma
nhecidos como por grupos poucó conhecidos fora de um pequeno círculo.
Cada leitor contará um número maior ou menor dos que lhe são conhecidos. Na paisagem teatral das últimás décadas, a série de manifestações que proble­
Nem todas as "obras': se é possível aplicar esse conceito a diretores, grupos de matizaram com coerência estética e riqueza de invenções as formas tradicio­
teatro, encenadores e espetáculos teatrais, devem ser vistas como pós-dramáti- nais do drama e de "seu" teatro justifica que se fale de um novo paradigma do
cas. Nem todos os nomes serão discutidos em detalhes neste livro. Assim, o.que_, _ _ tea�ro pós-dramático. Desse modo, o termo "paradigma" indica aqui o con­
_---- ·-·
se faz aqui é um "namedroppint' - sob todos os aspectos inco111pleto - para o junto das fronteiras negativas entre as modalidades altamente diversificadas
'teatro pós-dramático. do teatro pós-dramático e do teatro dramático. Esses trabalhos teatrais tam­
Robert Wilson, Jan Fabre, Jan Lauwers, Heiner Góebbels, Einar Schleef, bém se tornam paradigmáticos porque, ainda que não sejam sempre aclan'la­
Axel ,Manthey, Achim Freyer, Klaus Mic �ael Gri.lber, Peter Brook, Anatoli dos, são amplamente reconhecidos como autênticos testemw1hos da época
Vassiliev, Robert Lepage, Elizabeth Lecompte, Pina Bausch, Reinhild Hoff­ e desenvolvem uma força própria no estabelecimento de critérios. Com o
mann, William Forsythe, Meredith Monk, Anne Tetesa de Keersmaeker, Meg cônceito de-paradigma não se deve fomentar a ilusão de que a arie, como
Stuart, En Knap, Jürgen Kruse, Chrlstof Nel, Leander Haussmann, Frank a ciência, se deixa comprimlr na lógica de desenvolvimento 1e paradigma e
Castorf, Uwe Mengel, Hans-Jürgei1 Syberberg, Tadeusz Kantor, Eimuntas mudança de paradigma. Ao discutir os fatores estlllsticos pós-dramáticos, se­
Nekrosius, Richard Foreman, Richard Schechner, John Jesurun, Theodoros ria fácil indicar a todo instante essa lógica que o noyo teatro compartilha com
Terzopoulos, Giorgio Barberío Corsetti, Emil Hrvatin, Silvíu Purcarete, To­ o teatro dramático convencional ainda existente. Durante a gestação. �e--ctín
maz Pandur, Jerzy Grotowskl, Eugenío Barba, Saburo Teshigawara, Tadashi novo paradigma, as estruturas e os traços estilísticos "futurof apareéem quase
SuzukL Diversos teatros de intervenção, artistas perform_ágços.. e.. estilos tea - que inevitavelmente misturados aos tradicionais. Se diante dessa mistura o 29
conheciQ)ento se contentasse com o mero inventário da diversidade de estilos pretação. O teatro pós-moderno seria um teatro sem discurso, em que predo­
e mó"dos-de representação, 1:ão c_ompreenderia os processos subterrâneos mas minariam a meditação, a gestualidade, o r(tmo, o tom. Formas niilistas e gro­
propriamente produtivos. Sem o destaque categorial dos traços estilísticos que tescas, espaço vazio e silêncio são outros elementos acrescentados. Por mais
são materializados de tempos em tempos, e apenas de modo impuro, esses que quase todos esses apontamentos correspondam a algo efetiyo no novo
processos não chegariam a se revelar. Por exemplo, a fragmentação da narra­ teatro, podem não ser pertinentes quanto aos detalhes (alguns - ambigüidade,
tiva, a heterogeneidade de estilo e os elementos hipernaturalistas, grotescos recusa da interpretação, diversidade de códigos - se aplicam igualmente às
e neoexpressiónistas, que são típicos do teatro pós-dramático, encontram-se formas teatrais anteriores), oferecer meras palavras-chave, que necessaria­
também em montagens que não obstante pertencem ao modelo do teatro dra­ mente permanecem muito genéricas (deformação), ou designar impressões
mático. No fim das contas, é a constelação dos elementos que decide se um heterogêneas (perversão, subversão). Alguns incitam ainda à discordâ1lcia:
fator estilístico deve ser lido no contexto de uma estética dramática ou pós­ evidentemente há "�Jscurso" no teatro pós-moderno. �ssim como qualquer
dramática. É evidente que hoje em dia seria impensável um Lessing que pu­ outra prática artística, e!�
�ão está excluído do desenvolvimento a partir do
desse desenvolver "a" dramaturgia de um teatro pós-dramático.f?esapare�e qual foram introduzidas na modernidade, em uma medida antes inaudita, a
assim o teatro da projeção de sentido e da síntese, e çoln isso a possibilidade análise, a "teoria'� a reflexão e a auto-reflexão da art�'.\O teatro pós-dramático
de uma interpretação sintetizadora. Se o que persiste não é senão work ln pro­ não conhece apenas o espaço "vazio': mas também o espaço saturado; ele de
gress, são possíveis re,5postas perturbadoras e perspéctivas parciais, mas não fato pode ser "niilista" e "grotesco·: mas Rei Lear também o é, Processo, hete­
urna o�ientação e muito menos preceitos. Cabe à teoria abordar aquilo que se rogeneidade e pluralis010 valem igualmente para todo teª-t�� - o dos clássicos,
çonstituiu com conceitos, não postulá-lo como norrn� o dos moder1:os e o dos "pós-modernos''. Quando Peter Sellars encenou Ajax,
�··· · · ·em 1986, e Ôs persas, em 1993, além de ter feito montagehs origJnals de ópe­
Pós-moderno e pós-dramático ras de Mozart, passou-a ser classificado i:omo "pós-moderno" simplesmente
porque transpôs o material clássico para o mundo cotidiano contemporâneo
Para o teatro do período que interessa aqui - grosso modo;-dos-1inos 1970 aos
anos 1990 - foi amplamente utilizada a denominação teatro pós-moderno. '
.. ----.
de um modo radical e irreverente.

... . .. ·- .
Isso se desdobra em diversas "classificações': tais como teatro da desconstru­ Escolha do termo
ção, teatro plurimidiático, teatrp restaurador tradicional/convencional, teatro
dos gestos e movimentos. A dificuldade de apreender um campo tão vasto O conceito e o tema de um teatro pós-dramático foram inseridos no debate
de modo "epocal'' é comprovada por numerosas inve�tigações que procura­ há vários an.os pelo próP, rio-autor e retomados por outros teó'ricos, de modo
ra'm caracterizar o "teatro pós-moderno'; desde 1970, mediante uma longa e que, t�bém por esse motivo óbvio, é aconselhável conservar essa termi­
impressionante lista de traços marcantes: ambigüidade, celebração da arte nologia.1f) presente estudo.leva em conta questões que foram examinadàs
·como ficção, celebração do teatro como processo, descontinuidade, hetero­ em nossa comparação do discurso�'_eré-dramático:�A�..tr�_gédia ática com o
geneidade, não-textuaH<lade, pluralismo, diversidade de códigos, subversão, teatro "pós-dra_mátlco" d·o,presente,6 Richard Schechner, da11do uma ênfase
__,
_multilocaliz;ação, perversão, o ator como tema e figura principal, deformação,
o texto como um ·vitlor autoritário e arcaico, � perform�nce como terceiro 6 Hans-Thles·L�hmann, 1/;eater 11ná Mytl 1os. D/e Konstlt111ion des Subjckts lm Disk
11 rs der
30 elemento entre o drama e o teatro, o caráter antimimético, a rejeição da inter- antiken Tragõdie, Stuttgart, 1991. ·, /
-,\'·
1
, 1

'
semelhante m�s que se distancia-da tentativa.f�íta ·aqui, aplicou de passa- então o teatro se encontra concretamente diante da questão das possibilida- .
gem o termo "pós-dramático" ao happening (ele fala uma .vez dê \'te�tro de des para além do drama, não necessariamente para além qa modernidade.
happenings p6s-dramático'',7 além de falar. de'. 1�1_pdo urn'tanto paradoxal e Em uma entrevista dada em meados dos anos 1970, Müller afirmou:
igualme,!te de passagém, com referência a Beckett, Genet e Io.nesco, de um
''.drama pós-dramático': no qual não é mais ó·«êiirecio" que constitui a "matriz Brecht acreditava que o teatro épico [... ] só seria possível quando acabasse a per­
. gerâdora': mas �im aquilo que ele chama de "jogo"),8 certamente conforme o versidade de se fazer 4e um luxo uma profissão -a constituição do teatro a partir
.
�osso \.!SO do conceito de estrutura "dramática" dafic�-� e da slti.iàção cênicas. da separação de palco e platéia,. Só quando se elimina isso, ou quando é essa a
Com relaçãb a textos teatrais mais recentes, falouase, �mo já mencionado, tendência, é possível fazer teatro com µm mínimo de dramaturgia, portanto quase
de "texto tei;tral n'ão m;üs dt:amático': m.;s 11inda falta uma tehtatlva de avaliar sem dramaturgia. E é disso que se trata agora: produzir um teatro sem esforço.
mais det;Ili.ãdament�. o novo teatro - n; dlve;�·idade de seus recursos - à luz Quando vou áo teatro, noto 'que para miin é cada vez mais entediante acompanl1ar
. � ..• .
da estética pós-clramática�---- ··-· ··--- - · ·-- ··- ----- em uma noite o decurso de uma úJ:tica ação. Isso realmente não me Interessa mais.
·
Seria possível acrescentar W)1a série de outros motivos em favor do con­ Quando começã
.,
füna ação na primeira cena e na segunda se segue outra comple-
ceito de "pós-dramático" - sem prejuízo do cetitismo conceitual quanto à tamen�·éÍ!ferente e depois começam uma terceira e uma quarta, isso é divertido,
construçãe de.pala'(ras com o prefixo "pós" (Hein:erlvfüller àfirmou certa vez a�rÍdável, mas não é mais a peça perfeita, 10
que conhece apenas um único poeta pós-moderno: August Stramm - que
tinha um empr��o no correio [PostJ),9 O ceticismo parece_ mais justificado no No mesmd contexto, Jyfi.iller lamentou que o método da colagem aindll não
caso do conceito d�_°j:16s-mqderno, que tt:ll'l a prete�s�� de oferecer uma cJe.­ tivesse sido sufi.denterilente utilizado no teatrofÊnquant� os grandes teatros,
finição de época e�-��·al. Muitos traços da prática teatral que são chamados sob a pressão das normas c�;;entes da indústri;-do �ntretenimento, tendem
de pós-modernos - desde a gratuidade aparente ôu real dos recursos e das ---
a não. ousar afastar-se do consumo. ---.- .. -·fácil
.
tétkas teatrais praticam resolutamente
- � .. de fábulas sem problemas, novas es-
a recusa da ação única e da perfeição
formas citadas até o uso irrestrito e o acoplamento de traços estilísticos he-
·
terogêrieos, desde ô "teatro das imagens" até a multimídia e a_performance-----..._ . -'··-·· d? �rama, se1�1 que isso signifique per se··�;-a-;;;;;d d� moder;10.' ( · ·
·
}1àO ateS!�m de modo �!���-_11m a[�31amegto .s�gJ_�ficativo ·da �99-ernid�ge,
• - ••�. • .. _,J
;

m�s apenas de tradições da forma dramática. o me;mo ��le p;ra numerosos Tradição e o talento pós-dramático
tei:.tos rotulados com a ettquetã"põS:-mõâeri10'.: cuja gama de autores vai de ·,··'
Heiner Müller a Elfriede Jelinek. Se o curso de uma história, com sua lógica O adjetivo "pós-dramático" designa_ um teatro que se vê impelido a operar
interna, não mais constitui o elemento central, se a composição não é mais para além do drama, em um tempo "após" a configuração do paradigma do
-
sentida como uma qualidade organizadora, mas como "manufatura" enxer- drama n� ;;�tro. Ele não quer dizer negáção abst-râfo, n-iero desvio do olhar
tada artificialmente, como lógica de ação meraine11te aparente, que serve ape- em relaçã�- Úradição do drama. ''.Após" o drama significa que este continua
nas ao clichê, como Adorno abominava nos produtos da indústria cultural, a existir como :estrutura - mesmo-���f;�-q�e�id�,- falid� -� d� t��tro· "1�0;�·
mal": comó expectativa de grande parte do seu público, como fundamento
·d�...1��itos
. ---· ·de seus
· ...... ...---modos
·- --·-··de...representar,
.. como
. norma quase autom, áticã�de
· ·
Richard Schechner, Pe,formance T/1eory, Nova York, 1988, p. 21. ..... ,·"'
7
8 lbid., p. 22.
32 9 Ou seja: jogo de palavras entre o prefixo post, "pós'\ e a palavra Post; "correio". [N.T.)
\
10 Heiner .Müller, Gesammelte lrrtiímmer. Frankfurt ànl Maíh, 1986, p. 21. 33
s\l.l. ?.�-ª_ma-�1rz.La [���l Milller. qualificou seu texto pós-dramático Descrição "sl_!a própria identidade" 1l poderia estar baseada numa imbricação · da perspec­
--de imagem [Bildbeschreibung] 11 como uma "paisagem para além da morte" e tiva externa com a lógica estética interna. De fato, o discu·rso crítico sobre o
como "explosão de umà lembrança numa estrutura dramática moribundà'. 12 novo teatro freqüentemente recorre a tal procedimento. É realmente difícil
Po.de-se então descrever assim o teatro pós-d"ramático: os membros ou ra­ escapar às conceituações clássicas, que o poder da tradição transformou em
mos dô organismo dramático, embora como um material morto, ainda estão normas estéticas. A nova _erática teatral muitas vezes se estabeléce aberta e
presentes e constituen'J. o espaço de uma lembrança "em irmp.ção''. Também consci�nternente mediante uma divergência polêmica com o que é tradicional,
o prefixo "pós'' no termo "pós-moderno': no qual é mais do que uma mera dando assim a impressão de que deve sua identidade às normas clássicas. Mas
senha, indica que uma cultura ou prática artística saiu do horizonte do mo­ a provocação ainda não constitui uma forma, de modo que a arte da negação
derno, a11tes obviamente válido, mas ainda tem algum tipo de relação com ele: provocadora também precisa fazer algo novo a partir de suas próprias forças,
de negação, contestação, libertação ou talvez apenas de divergência, com o e não é senão assim, sem ter como ponto de partida tão-somente a negação
reconhecimento lúdico de que algo é possível para além desse horizontefssim, - �.. ..... ·--··normas
das clássicas,
. que poderá conquistar sua pi·6pria identidade.
pode-se justamente falar de um teatro p6s-brechtiano que, erµ vez de 11ão ter ·-
nada em comun1,com Brecht, tem consciência de que é marcado pelas reivin- O novo, a vanguarda
� dicações e questões sedimentadas na obra de Brecht mas não pode mais aceitar
,; .........
as respostas dadas por Brecht. , �-,· Nesta in.vestigação eambém se falará .com freqüência de "novo teatro" para
__ .
,J Portanto, "teatro pós-dramático" supõe a presença, a readmissão e a con­ designar as fo�ma� teatrais das últimas dÚaéfas, mesm0 quando correspÕn­
.- tinuidade das velha.s estéticas, incluindo aquelas que já tinham dispensado dam apenas parcialmente ao paradigma pós-dramático. O próprio conceito
"2� ...
... a idéia dramática no plano do texto ou do teatro.J.c arte simplesmeJJté não de novo teatro é corrente há ,muito tempo. Desde os ano� �9_50 já se falava de
)

,. pode se desenvolver sem estabelecer relações com f;rmas anteri91:é;, que ·o modo quâse.crôni'co âe.. "theâtrê nóui:reau': de "new theatre''. Michel Corviu
··· �-�tá em _questão é apenas.ó nível, a consciência, o caráter exyl!�ito e· o tipo publicou seu =1Jvro Le Théatre nouveau no início dos anos 1960; já em 1966
especí�co dessa_ r�_la.ç:ão. Da mesma maneira, é preéis'O··dlsfi�guir entre a re­ Genevieve Sen:eau escreveu uma Histoire du nouveau thédtre. Menos interes­
�·-·· tomada do anterior no novo e a (falsa) aparência de validade contínua ou sante do que a c_rítk;-à vagüêzã-do ·con-ceito,é a r.eflexª9 sobre �ua obstinação:
necessidade das "normas" tradicionais. A afirmação de que o teatro pós-mo­ ele tes�emunha o sentlment_o ge despedida_de_a_lgó_qu�é-í'e11velhecidó" com
derno "precisa de normas clássicas para estabelecer" - por oposição a elas - o recurso'ã formas que apontam para um futuro, de sorte que têm.seu con­
teúdo sobretudci'na_guilo que projetaram previamente, pr�curimdo bnsc�-lo
mais no horizonte d;'peI)_sável do que naqullo que levam a cabo como "obra".
11 Ao longo de todo o volume, os tltulos de textos e montagens teatrais aparecem em português
(sempre que a tradução é cabível ou possível), scgµidos do titulo original entre colchetes (à O que.sempre conta nas coisas da arte é mais o aberto do que ó alcançado.
exceção de otiras clássicas e russas}. Ressalte-se poré':1 que cm 014itos casos não se encon­ Com razão, Adorno observa qú"é to_dàs as obras de arte significativas p�r­
trou nenhuma referência em português e o título original não se presta a uma transposíção manecem a bem dl�e-r apenas "indicações" de ·obrãs"de arte be�-sucedidas.
lnequlvoca, de modo que as traduções desses títulos são meramente aproximativas ou lite­ Grandes apresentações _ teát:'rais entusiasmam mais como uma promessa do
rais, visando apenas oferec�r ao leitor uma referência possível em nossa l!ngua. Há casos \ .,
ainda_ em que o título aparece somente em sua forma original e é cotnent�do em nota. [N.E.]
12 Ver Hans-Thiés Lehmann, "TI1eater der Blicke. Zu Helner Miillers B//dbeschreibung", in 13 Patrice Pavis, "Toe Classitál- Heritage of Modem Drama: the Case of Postrnodern 1beutre''. •
34 Ulrich P!'ofitlich (org.), Dramatik der DDR. Frankfurt am Maln, 1987, pp. 186-202.. Modem Drama (Toronto); v. 2.9, n. 1, 198!í,I p. 1. .
. .. ·.
,,\'.
1

que como recompensa. Naquilo_que.acontece, a experiência estética registra reduz os diversos movimentos vanguardistas à id� ia de um "primitivismo':
a cintilação -d.e "outta coisa': uma possibilidade que ainda está aberta, ·conser­ subordinando-os a uma idealização do primitivo e do elet'nentar e ao retorno
vando utopicame.nte a condição de algo ihdete'r�_inado__qu� se anuncia. de modelos arcaicos, sem refletir a radical modificação de sentido que tais te­
Não associamos ao conceito do novo nem o pátho�· que ele possui desde mas experimentam na prátic.a estética sob as condições da representação tea­
. o Novum organum de Bacon ãté a '·'nova arte ê!e"atuar" de Brecht, nem o tom tral.14 Vanguarda é um conceito que escapa ao pensamento dã mo�ernidade
crlúco que ressoa no termo "novos filósofos" - que com essa den�minação e necessita com urgência de uma revisão. Quer se enalteça a vanguarda, quer
são
. na. verdade denunciados como não verd.rdci,ràmente novos ou, no má- se ateste nela um completo fracasso, a visão a partir do .final do século xx tem
'
x.imo, como no'.'os por um modismo. E tampouco o as'sbc.iamos à ênfase de de captar o teatro de maneira diferente e independente da autocompreensão
Adorn9 seg"undo qual o "�()�o" é UJ1?,a i�va�i-��te de todo o moderno. O que ou má autocompreensão das artes e das correntes artísticas.
na verdàde·se-in9i_c�-� que no assim chamado teatro "e.,�perimental" (também
- ...._,,., .. _.. '
uma f6rmula que não raramente âev�; toma-ndo,a.f.o.t.!l_lª de elogio, margi-
-
Mainstream e experimento
, .

nalizar mais uma vez o que é marginal) das últimas décadas de fato surgiu _.,.- .
algo novo, ainda que suas raíz�s naturalmente retrocedam mais do que até i O teatro FÓs-dramático é essencialmente (mas não exclusivamente) ligado ao
as revoltas.eJrr_upções dos anos 1960 e 70 (certamente-é preciso evitar a falsa \:àmP,o'teatral experimental e disposto a correr riscos artísticos: �o entanto,
-
avaliação de que1os fenômenos teatrais dos anos 1990 foram provocados di­ aind� que a fronteira entre o t��tr�-
�conv"�nc1o�âF�-; ���;·"de ''vanguarda"
reta ou indiretamente pela reviravolta política em torno de 1989). Esse l'lovum seja em grande medida real, aqui também se encontrarãô fenômenos do pri­
é compreendi&; ciii: u:ma de suas perspectivas de estética teatral mediante o meiro tipo, na medida em que tenham a propriedade de esclarecer o para­
conceito de "pós-dramático''. digma pós-dramático. N.r ênfâse em formas teatrais experimentais não está
Em contextos semelhantes, fala-se também de teatro de vanguarda. Mas o implicado um juízo de qualidade: trata-se da análise de uma idéia de teatro
termo "vanguarda" deve ser visto com ceticismo, uma vez que, abstraindo-se diferenciado, não da apreciação de empreendimentos artísticos individuais,
de sua côrtotação bélica, parece difícil aceitar suas implica Tões de' uma Unha.d.e_______ . ,-- No _,y1ainstreàm também nadam peixes fantásticos; no porão da vanguarda
·
progresso bem definida,·com retaguarda, dianteira e uma marcha que parece também se empilha sucata. Ademais, há nas instituições do novo teatro um
a:7ançar em direção a essa dianteira. Já o ocasi�nalmente empregado conceito conformismo de vanguarda que pode se mostrãr tão inanimado quanto o
de "teatro teatral': abstraindo-se da tautologia pouco agradável, suscità menos mais morto dos "teatros mortos", no dizer de Peter Brook. De todo mo�o,
um campo de tensão do que ó conceito de teatro pós-di-arnático, deixando de deve ficar claro que na presente abordagem o teatro do mainstream s6 vem a
lado o problema colocado por essa definição terminológica: A questão aqui ser comentado em um ou outro caso.
posta é a de que o teatro, cuja essência ("teatral") não é garantida de antemão, O nov�abulário de formas acaba por ser adotado, mas normalmente
desenvolve-se e modifica-se historicamente e deve ser concebido de maneira con1 considerável atraso e à custa do seu efetivo lmpulso vital (a função de mu­
nova em uma situação posterior ao drama, ao passo que o conceito de "teatro seu do teatro, legítima em determinados limites, não é objeto de debate aqui).
teatral" impõe que essa práticà artística venha a encontrar tão-somente sua A discussão ac�rca de teatros de pequeno porte, M maioria das vezes conhe­
-
essência pretensamente autêntica. O conceito permanece igualmente insa- cidos apenas por um público especializado; e de Sllas concepções -��atráís
. . . �··
tisfatório quando Christopher Innes, em sua abordagem da vanguarda, não
por acaso muito mais orientada para o âmbito literário d.o q_ue·para o teatral, 14 Christopher Innes, Avant Garde T11eatre 1892-1992. Londres, 1993, p. 3, 37
fund�:rnentalmente diferencia�as não significa que nesse âmbito se faça, em Dinamarca, liderado por Kirsten Dehlholm; mencionando ainda uma série
,,todos os casos, "arte" mais importante que aquela realizada pelas celebridades de outros teatros escandinavos, a exemplo do sueco Remote Control Produc­
do mundo teatral./Sigáificã que para a descrição da mudança das formas de tion, dirigido pôr Michael Laub. 15
perc�pção que se realiza no subsolo esses pequenos te�tros são mais sintomá­ É compreensível que a maiori11 das grandes safos teatrais não sejam ade­
ticos e no fim das contas, por sua influência sobre outros realizadores teatrais, quadas para receber esse tipo de tea�ro (antes de ele ter um amplo reconhe­
têm mais repercussão do que a maioria das produções do .te.a(ro convencio­ cimento). Apesar da boa vontade, muitas das pessoas que trabalham nelas
nal, que, dizendo com exagero, segue . o lema de que o teatro de maior sucesso são por demais dependentes de convenções, expectativas de público e exi­
··ao século xx é o_teatro d<? s��:tl?.. �_r.f}.. ���i?�_ ;!!.�-�!1:.e!.�� e e.{e[to __1eve_�er gências administrativas - ou melhor, burocráticas. Além disso, o p.ensamento
_ ·
[ sempre constat_ ad�. Ao mesmo tempo, é preciso reagir à injustiça do esqueci­ dos responsáveis nessas instituiçqes costuma estar firmemente ancorado- nas
: menta que ameaça aqueles teatros que, por motivos materiais, não dispõem tradições do teatro literário falado. �m tempos de subvenções escassas, eles
: dos meios para uma publicidade dispendiosa e estão sempre na ímínê�cia de - -- ..---. ·�-....
podem conviver menos ainda com os l'iscos que um teatro há muito tempo
apresentar um tempo de vida curto. ·exp;;:fuient�i'(põrÍ:anto ��o�ido por temas genu.inamente artísticos) implica.
É sempre bom ressaltar: na arte, assln1 na ciência, O caminho da experimen­
Risco tação passa por tentativas fracassadas, erros, desvios. O teatro experime��at
rião é desafortunadamente e por vezes, mas legitimamente e com muita �re­
Trata-se aqui de teatro especialmente arriscado, porque rompe com muitas qüência um teatro despropositado.!,uas n��idades i1ão· rem. de ser plausíveis
.:�o��_e:���!: Os textos não �or:.�.s�?ndem às 7xpectativas corp. as quais as _pes­ de imediato, seus resultados podem fi��r aq�ém das expe�tativas do ponto de
soas costuma111 encarar textos
--·--· dramáticos. Muitas
. ········-·· . vezes
é dÍfícll até 'mésmo vista da realização prática, seu potencial inovador pode ke_videnciar pouco,
descobrir um sentido, um significado coerente da representação. As imagens pe!ó' menos �-p;incípio. : -
não são ilustrações de uma fáb!-]la. Há ainda um obscureçi�é�·�o das fron­ íNesse sentido, sobretudo nos anos 1980 e 90, diversas instituições euro­
teiras entre os gêneros: dança e pantomlma, teátro' füns:ieál ·e falado se asso- péias tiverâm o m�i��-de promover uma arte teatral que, por meio da . coo­
. dam, concerto e peça teatral são únifi.cados para produzir concertos cênicos peração e do engajamentÕ êorãjoso e õbstinado-de.cer.tQ§_a��istas, estabeleceu
º

e assim por diante. Resulta disso uma paisagem teatral múltipla e nova, para a base p a_ ra o progress<?_c!�-�-s_tJ�ic� te?��?-1, m.es.1:nci' que seus ·t1:abàlhps não te­
a gual as regras gerais ainda não foram encontradas. Esse teatro surge mui­ nhan{ al;�ríçado' um s;cesso retµmbant�Organizadores' ç!e festivais ligados
ta;;;��-�� .forma de projetos'ein 'que um-diretor ou grupo convida artistas

a �ssas instituíçõ'ehe dispuseram a correr riscos ao oferecer·qportunidad�s a
j

de diversos tipos (dançarinos, artistas ·gráficos, músicos, atores, arquitetos) jovens grup·os e artist�'s-ao lado dos já consagrados. Pode -se mencionar como
para realizar juntos um determinado projeto (às vezes também uma série casos representativos_ a Kampnagelfabrik em Hamburgo, a Szene Salzburg: e
de projetos). Daí a denominação "teatro de projetb''. Esse trabalho teatral é o Festival de Viena (que ;o--Ja:dó d.p progrania principal promov.e teatro de
essencialmente experimental, persistindo na busca de novas combinações vanguarda sob a designação "Big MotiÓ.n") ou o Feslival Nfundial de Teatro
ou junções de mo�os de trabalho, instituições, lugares, estruturas e pessoas. '',·

Knut Ove Arntzen descreve como o teatro .1e projeto tambén1 se estabeleceu \
15 Knut Ove Arntzen, ''A Vispnl Kind .9fDr�maturgy: Project TI1eatre in Scandinavia': in Clau­
fora dás centros conhecidos na Escandinávia, prim<:iro no Billedstófteater de Schumacher. e-nerék Fógg (org :,), SmaJI is Beautiful. Sma/1 Countries Thcatre Confcrence. .
de Copenhague, que durou de 1977 a 1986, e depois no Hotel Pró Forma da Glasgow, 1990, pp. 43-48,

.. ..\1
�-,\

em Nancy. Museus e centros de arte tambéin desempenharam e desempe­ o Mic.kerytheater e seu fundador e diretor Ritsaert ten Cate: Inaugurado em
nham um pàpel importante em prdl da prática artística que ró1npe frontei­ 1.965 numa propriedade rural reaproveitada pertó de Amsterdã e transferido
ras, a exemplo de uma fundação como a De A'.pp.el em An.1sterdã, criada em para essa cidade em 1972, o Mickérytheater apre'sentou praticamente toda a
.
1975 pôr Wies Smals,' que inúmeras vezes viabilizou projetos de artistas na .... vanguarda n. orte-americana e européia entre 1975 e 1�91, crí�ndo assim um
-fro�teira entre artes plásticas, performance e·téat;o, como Ulay [Fr_ank Uwe potencial de percepção sem o qual não se pode p�Í1sar ;i teoria e a prática do
Laysiepert], Rebeccá Horn e outros. , t�;tr� -;xi;;�i�e�tal..Ao mesm; tempo, possibilitou âlgo como a formação
·e
Diversas .Instituições na Dinamarca, Nortiega:'F4:lândia SLi'écia, mas
. ' d�-�ma tradição do �ovo teatro. Apresentaram-se no Mickery, entre outros,
também no'Leste Europeu, ousaram opor ao teatro do mài-nstream um perfil Spalding Gray, Jan Fabre e os grupos Falso Movimento, Needcompany, La
próprio - ipesar ou justament. e, em ra�ão .d.e _ atuarem à margem --e se tor­ Mama, People Show e Wooster Group. Após o final de seu-trabalho para o
nru:am l�cais·en1.q.1.1� .ti:_p_o_?ia
. mostrar um teatro origi.n�J, marginalizado Mickery, nos anos 1990, B;l_���.e-�� ten _<::aJe, que· ein ni.als de 25 anos dê ativi­
nas metrópoles. culturais. Ma;· fo( sõfüefúdo· na-Ale-mai1ha.,_ na Áustria, na dade incansável tornou-s'e uma referência para O teatro 11ão-co_f1Vencional e
Bélgica e na Holanda que teati.:os dispostos a se arriscar firmaram atordos uma figura n�rteictôta para pessoas de teatro em toda à Europa, deu vida à
de co-produções regu]ares, os quais represefltam um importante fator finan­
. escola de-tÍatro experimental Dasarts em Amsterdã, um centro no qual artis­
.
ceiro e prepidam l�va� o trabalhÔ foàtral·a·o. côilhe-cimento·de um público tàs qe�ários países se encontra ;1 � trocam idéias �ob·re projetos e sobre seus.
r· ,..
europeu mais extenso. Trata-se,
·.
entre outros, do Kaaitheater -----··
____..---- em Bruxelas, pensamentos em uma atmosfera livre.
do Shaffy Theater em An�sterdã, do Hebbel-Theater em Berlim, do TAT de
Frankfmt e, en�-.;�s ·111ais·. recentes,' do Frankfurte� Künstlerhaus Mouson-
.
turm e do Berliner Podewi�.,.Essas instituições foram e são indispensáveis.
para a nova arte teatral. Elas divulgaram numerosos artistas e grupos que só
foram reconhecidos posteriormente, bem com9 criaram a oportunidade de
que se estabelecessem em torho desse tipo de teatro um públi_c o e um.. campo ··-- ..
de discussão que, em cónexâo com academias, universidades e revistas, cul­
tiyaram o solo fértil de que a cultura teatral precisa. Incluem-se aí extraor­
di'nários diretores de teatros, a exemplo de Nele Hertling em Berlim, Hugo
de Greef em Bruxelas e Tom Stromberg em Frankfurt, aos quais a nova pai­
sagem teatral deve agradecer - não apenas por causa das produções de risco · ---
diretamente possibilitadas por eles, mas também pelo encorajamento que
esse trabalho teatral signifi_ca para artistàs Jovens que, sem a perspectiva ou
mesmo a esperança de poder trabalhar em tais institutos, talvez não tives-
sem investido seus talentos no campo do teatro (cinema e mídias constituem
as alternativas lucrativas).
Nesse contexto, cabe fazer uma rnenção especial a uma pessoa e a um tea­
tro que podem ser considerados os precursores das i.nsti;hições-mencionadas: 41
··-
.,..··
,.

Drama e te�tro

,·-··- --··--------..___

Epicização - Peter Szondi, Roland Êartl,e� . :·


···-- .....
-·· O teatro dos modernos já negava ó modelo tradlc� nal do drama em
aspectos essenciais, A pergunta que se colocàvà então .. ei:a�_Q. que entra ·
em seu ·Í�g;r? Ã�� -;esp·Õ�tadel>eter Szoncü c;�Siste em consider.i.r
·'
/ as novas formas de texto qúe se seguira1p à "crise do drama': descritas
·-·--./ pó· r el�·com� va�-��_es de uma "epicização'; e com- isso fazer do. te�­
l:J.'.b épico UIÍHI' espécie d�- ch"'ave mesfra··pm:a�os-(foSeJ;lyplvimentos· �ais
recett�es. E�sa resposta nãe,., é n1ais.suficie.t-1�e. Dia�te da�-�-õva� tendên­
cias·d1;riiatic� desde 1880, .que o autor pensa como· dialé;tica d� fo!ma,
e. çonteúdo,
.. a drá�tlca
' Teoria do drá.ma mademo conttap_õe ao .rnodelo
.
do "dramã puro".de tipo· ideal uma tendência oposta J'nuito determinada,
Quase sem argumentação, recorrendo �p�n?s. às clássicas oposiçõ'es !fil­
tre representação épita· e ·crrii�át-ic�-�m Goethe e Schiller, Szondi afirma
· · -- · · -----
logo de início,:
. - '1 . .'
··comô
' a evoluçã9 da dratnaturgi_
_____...
� mogenra se afasta do próprio drama, o seu
1
exa11_1e n[o_pode-passtfsem um c�nceito cont�rio. É cofnQ tal que apatece o
,
termo "épico": ele'desfgna um traço estrutural comui!l da epópéia, do contó, do

.•.
·.,\J
•\

romance e de outros gêneros, ou -seja, a presença do que se tem denominado o dutividade semiológica, wna peculiar cegueira. Justamente toda a linhagem
"sujeito dàforma épica" ou o "eu épíco''. 1 1 desse novo teatro, que conduzia de Artaud e Grotowskl ao Living 'Iheatre e a
II
Robert Wilson, não era "vista" por Barthes, embora suas reflexões semióticas
sobre a imagem, o "sentido gasto': a voz etc. sejam de grande valor justamente
_/

Essa con�raposlção-resê:ringé a visão de muitas dimensões do desenvolvimento


. do teatro consideráveis desde então. Pata â vaficíadê quase sem impedimentos para a descrição desse novo teatro. Brecht tornou-se para ele um bloqueio.
da co1)cepção do épico como uma seqüência do dramático contribui tomo Seria possível dlzer: a e�tética brechtianarepresentava para Barthes, de modo
�m fator essencial a autoridade de Brecht, capà;d°e·o�car tu'do à sua volta. demâsiadamente abrangente e absoluto, o modelo de uJil teatro da distância
Há muito tempo essa autoridade tornou sua obra um crucial pólo de orien- íntima. O fato de que podia haver estratégias inteiramente diferentes para su­
tação pa.ra a consideração-d� estética t�atr�l.qiais recente - uma circunstân­ perar a ingenuidade da ilusão da realidade, da introspecção psicológica e do
cia que, Juntb com tµdp .?e_ P:odutivo
_ que trouxe consig�, trouxe também pensamento alh.eio à sociedade se ofuscava sob· essa luz tão refulgente. Após
autênticos bloqueios de percepção· eüm êõiisentimento apressado em torno Brecht surgiram o teatro do absurdo, o· teatro da Cenografia, a peça falada, a
daquilo que entendemos por teatro "moderno''. dramaturgia,.vrfiiar,-o·teatro de situação, o teatro concreto e outras formas
Também é elucidativo o caso de Roland Barthes, que entre 1953 e 1960 se que constltÚem o tema deste livro. A análise dessas formas Mo pode ser com­
dedicou -intensivamente ao teatro. Ele-mesmo 11tuotr-ent um grupo teatral es­ preend1da com o vocabulário do "épico".
,/
tudantil (como Dãrio em Os persas) e fundou, Junto com Bernard Dort, a im­
portante revist� Théâtre Populaire. Seus escritos teóricos são profundamente Alheamento de teatro e dra!lla
matcados pelo n�1;<ldu "teatro": Barthes seguidamente recorre a topo! do tea­
tro, como cena, representação, mimese etc. Seus artigos sobre Brecht - após Szondi - como uma tentativa já em Teoria_ do drama moderno e de maneira
uma montagem do Berliner Ensemble que marcou 'época na França, em 1954 - mais incisiva em estudos posteriores sobre o drama lírico - ampliou seu diag­
ainda hoje merecem ser lidos. Barthes foi tão afetado por essa experiência nóstico e complementou a interpretação unilateral da metamorfose do drama
que depols dlsso não queria mais escrever sobre nenhum outro tipo de·teatrn.-..___ co.o:io epicização. Mas ainda assim todo um complexo de preconceitçis obstrui
Após a "iluminação" por meio do teatro de Brecht, ele não via nenhum prazer o conhecimento daquele processo de mudança do qual fe�ôm_enos como a
ein qualquer outro teatro que não tivesse a mesma perfeição. Barthes havia tend�ncia à epicização e o próprio drama llricos são apenas momentos - .
crescido, nos anos 1920, com o teatro do assim chamàdo "Cartel" (Jouvet, Pi- à saber, a mudança que alheou teatro e drama um do outro e os afastou cada vez
toeff, Baty, úullin), do qual ressaltou retrospectivamente a qualidade de uma mais. O processo de decomposição do drama no campo do texto, que é deli­
"clareza apaixonada''. Para ele, já naquele período isso era mais importante do neado por Szondl, corresponde ao desenvolvimento em direção a um teatro
que a emocionalidade do teatro. A concentração na racionalidade, a distân­ que não ;;i;se baseia de modo algum no "drama'; seja ele (nas caracteriza­
cia brechtlana entre o mostrar e ô mostrado, o representado e o processo de ções da teoria do drama) aberto ou fec�ado, de tipo piramidal ou como um
representação, o significante e o significado, acarretavam, junto com sua pro- carrossel, épico ou llrico, mais centrado no caráter ou na ação. Há teatro sem
drama. A que;tão que se põe com o novo desenvolvimento do .teatro é saber
de que modo e com que conseqüências a idéia· do teatro como represe�taçãõcle
Peter Szondl, lheorle des modernen Dramas 1880-1950. 18• ed. Frankfurt am Maln, 1987,
wn cosmos .fictício foi efetivamente rompid� ou mesmo abandonada - um
p. 13. !Aqui, na tradução de Luiz Sérgio Repa em Teoria do drama moderno. São Paulo:
Cosac Nalfy, 2001, p. 27.] · :. cosmos cujo encerramento foi assegurado pelo drama e pela estética teatral n 47
ele correspondente. � certo que para seus apreciadores o teatro da moderni- contém diálogo algum), a "ausência de nexo do diálogo" no teatro do absurdo

dade·era uma instituição em que o texto dramático representava apenas uma e as dimensões míticas e rituais da visão teatral d� Artaud. A desagregação
parte, e com freqüência não a mais importante, da vivência que eles busca­ do diálogo no� textos de Heiner Miiller, a forma de um "discurso polifónico"
vam. No entanto, em todos os efeitos da montagem voltados para o diverti­ _no Kaspar de Handke ou a fala dirigida diretamente ao público ("afronta ao
mento permaneciam como elementos estruturantes os que eram indicados público") valem para Wirth como "um novo modelo de teatro épico''. Ele com­
..
.•

no texto: a ação, os personagens ou dramatis personae e a história,..contada· preende a linha Brecht-Artaud-teatro do absurdo-Foreman-Wilson como o
preponderantemente em diálogos ágeisfEsses elementos foram associados à "surgimento de um idioma quase internacional no drama do presente': como
palavra-chave "drama" e marcaram não só a teoria mas também a expectativa "discurso dramá.tico" no qual se chega a uma redefinição do ator, que é usado
em relação ao teatr� Dal as dificuldades que uma grande parte do público pelo diretor da encenação como uma "tecla na 'máquina de comuni'cação tea­
tradicional 6Xperimenta com o teatro pós-dramático, que se apresenta como tro"'. "�-ªP..3/.��!: 'm°.?el�_ridade' do tea�ro': afirm� W�rth, "é radicalmente épica.
um ponto de encontro das artes e assim desenvolve - e exige - um potenclal · · · -- Nesse_ t�atro sem diálogo tão-somente tem-se a impressão de que as figuras cê­
de percepção que se distingue do paradigma dramático (e da literatura em niéàs fãfarri. ·seria mais correto dizer que elas são faladas pelo autor do roteiro
geral). Não é de admirar que os apreciadores de outras artes (dança, música, cênico ou �ue � ��bli�� empresta � elas sua voz interior''.3
_ _ _
artes plásticas...) geralmente se interessem mais por esse teatro �o que os fre­ Esses impulsos a,,ant la lettre são importantes para a compreensão do tea­
qüentadores comprometidos com um teatro lite.r. ário· e narrativo. tro dos anos 1980 e 19.90, que prescrvarilm muitó de sua profundidade, Não
se pode porém p_ermânêcer nesse ponto, mesmo porque'Wü-th . só esboçou
Discurso dramático. e\� modo restrito sua concepção, na forma de uma tese. P.y principio, o mo­
/ delo do discurso com a dualidade de ponto de vista e poiltó·tlduga.- aqui o
É sobretudo por motivos terminológicos que não se fala aqui, com p.rrékzej todo-poderoso diretor da encenação e-�i� observador solipsista - conserva
Wirth, de "discurso dramático'� emb_ora haja uma concordância 1_nâis ampla o modelo de ordenamento clássico das perspectivas que era característico do
com suas observações esdarecedoras.1 Ele enfatiza quctineat(Ó. se transfor­ drama. Mas o polliog.Q.(_�r��teva) do novo teatro freqüentemente se liberta

....'· .
mou como que em um instrumen:to com o qual o "autor" (diretor) dirige "seu" �m
de tal ordenamento centrado-�; -lógos.-Chega:� ·a ·uma .d,�sposição d e
·
-.:_:··
discurso diretamente ao público.'.'o ponto culminante da abordagem de Wlrth espaços d .� s_e.ntido e ressonância-que, sendo aberta 11· vórios µ�os possíveis, não
-:;,;·· é a concepção de que o modelo\Ía ''alocução" se torna uma estrutura funda­ pode mãis ser' àtritufda sem mais a um só qrganizadol' ou órganon (Indivi­
mental do drama e toma o lugar do diálogo de conversaçã�ão é mais o palco dual ou coletivo). Trata-;se muito mais da presença autêntica dos atores indi­
que funciona como "espaço da fala': mas o teatro em geral. De Í!ltO, com isso se viduais, que não aparece�;- ê:o�o meros portad.ores de uma Intenção exterior
indicam uma mudança fundamental e uma estrutura nà agudeza que é própria, a eles - seja ela proveniente do texto ou do diretor da encenação. Antes,' os,
.
por exemplo, ao teatro de Robert Wilson, Richard Foreman � outros expoentes . atores desenvolvem em 1.1ma . aélimitação previamente dada uma"lógica co;­
da vanguarda teatral norte-americana. Segundo Wirth,.são decisivas para esse ._ poral própria: impulsos lat�ntes, dinâmica energétic;-d-;-·,· orpo e do sistema
desenvolvímento a epicização brechtiana (cujo modelo das "cenas de rua" não motor. Por isso é problemáti�d vê-los como . agentes de um discurso
' do dire-
i
tor teatral que permanece �xte�i�r a eles. (É diferente quando, nos textos de
1 AndrzeJ Wirth, "Vorn Dialog zum Diskurs. Versuch elner Synthcsc·der nnch-brechtschen
Tueaterkoniepte': 1heater Heute, Janeiro de 1980, pp. 16-19. 3 Jbid. 49

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Heiner Müller, são concebidos falántes que, na au�ência de designação indi­ por meiÓ da participação equivalente de elementos verbais e cinéticos (gesto) e
1
vidual específica, devem ser entendidos como "portadores de un.1 disc�rso",) não tem uma natureza meramente literária.4
Para o diretor clássico, é válido que ele faça os �tÓres fal:ire� o "seu" discurso,
tanto mais. o do autor que ele tem ein mãos, e desse
··- - modo se comunique com Mas será que os impulsos aqui mencionados vêm realmente do teatro de
.
seu _público, A crítica de Artaud ao teatro burguês tradicional se centrava Brecht? Não viriam em igual medida da contestação desse teatro? Não será o
justamente nesse ponto: o ator é apenas um agente do diretor,.. que por sua gesto, compreendido de.maneira tão geral, o cerne da atuação em todo teatro?
. ,... º
vez apenas "repete" aquilo q_ue foi previamente escrità � autor. E o autor já E será possível descolar as invenções "operativas" de Brecht, sem uma pro­
está ele próprio comprometido com uma representação, lõgo uma repetição, funda releitura de seus textos, das convenções ainda pressupostas do teatro de
do mundQ,. �ra com esse téatro da lógica da-reduplicação que '.Ârtaud queria fábula com o qual o novo teatro rompeu? Com essas perguntas, a teoria de um
acabar. De certo nrodor o teatt:9.._P.Ós-dramático é conseqüên_cia disso: ele quer teatro pós-dramático pode se·r-ligada às �sclarecedoras considerações de Wirth
&
que o palco seja origem e ponto p;rtiéiã;·não o· lugar-de lllllª cópia. sobre a herança brechtiana no novo teatro.
Dessa forma, no novo teatro só se poderia falar de um discurso dos cria­ O que Brecl:i.t �eálizou não pode mais ser entendido como contraponto
dores teatrais se se compreendesse . "dis-currere" literalmente, como correr revolucionário à tradição, A partir da perspectiva do desenvolvimento· mais
para vários lados. Parece, antes, que justali1ente a peraá' dâ instância original rece9té: fica cada vez mais claro que na teoria do teatro épico havia uma reno­
de um discurso, é� conjunção com a pluralização das instâncias de emissão vaçáo e um ape1feiçoamento da dramattdgia clássica. Na teoria de Brecht se
sobre o palco, co-11.4,1p._ a um novo modo de percepç_ão. O modelo da "alocu­ aloja uma tese extremamente tradicionalista: o enredo continuou sendo para.
çãi carece portanto de uma especificação para corresponder às novas fonnas ele o alfa e Omega do teatro._gcorre que partir ·do enredo não �e pode com­
teatrais. Do ponto de vístá terminológico, ele também conduz ao equívoco de preender" a parte decisiva do novo teatro dO"s anos 1960 até os anos 1990, nem
se prender ao conceito de drama a tal ponto que se fala, como pólo oposto, mesmo a forma textual assumida pela literatura teatral (Beckett, Handke,
em diálogo do "discurso drqmático", Trata-se de um distanciamento muito Strauss, Müller...), O teatro pós-dramático é um teatrô p6s-brechtiano. Ele está
mais abrangente do teatro em relaç_ão a toda a configuração dr�máticb�dial6- ...... _ . _.. _. situado em um espaço aberto pelas questões brechtianas sobre a presença e a
gtca em geral. Com isso, àdert1ais, o teatro pós-dramático só é "radicalmente consciência dó processo de representação no que é representado e sobre uma
é�ico" em um âmbito muito restrito. nova "arte de assistir''. Ao mesmo tempo, ele deixa para trás o estilo político, a
tendência à dogmatização e a ênfase do racional no teatro brechtiano, posicio­
Teatro após Brecht nando-se em um período posterior à validade autoritária do projeto teatral de
Brecht. Unm �arca da complexidade dessas relações é o fato de Robert Wilson
Andrzej Wirth escreve: ter sido compreendido por ninguém menos que Heiner Müller como legítimo
herdeiro de Brecht: "Nesse palco o teatro de marionetes de Kleist tem um es­
Brecht se denominou o Einstein da nova forma dramática. Essa auto-avaliação paçp de atuação, a dramaturgia épica de Brecht tem uma pista de dança".5
não é exagerada quando se entende sua teoria do teatro épico, que fez época, como
uma invenção extremamente operativa e eficaz. Essa teoria deu um impulso para
4 lbld,J p. 19. ...•
a decot'nposlção do tradicional dlálogo de palco na formé) do discurso ou do soli­ Heiner Müller, ln Heiner Mil/ler M11terlal, Tcxte und Kommentarc, ed. Frank Héirnlgk. Got-
.
50 lóquio. A teoria de Brecht indica implicitainente que a decl�tnaçãó no teat�o surge tingen, 1989, p. 50. 51
A tensão tensiona? A demanda de ação, entretenimento, distração e suspense constantemente se
vale das regras estéticas da concepção tradicional de drama, mesmo qLte de
O teatro e o drama são tãó estreitamente relacionados, torna!1do-se quase modo subjacente, e avalia com essa mesma medida um teatro que recusa expli-
idênticos na consciência (inclusive de muitos teóricos do teatro), como um . citamente tais requisitos. Sobre as aldeias - poema dramático [ Über die Di:irfer.
.. .
par que não se desgruda, por assim dizer, que toda transformação radical do Dramatisches GedichtJ, de Peter Handke, foi montado pela primeira vez em
teatro sofre a resistência obstinada da coneepção de drama como.latente noção 1982, em Salzburgo. Ao passo que a crítica desaprovou que no texto de Handke
normativa do teatro. Quando o modo de falar cotidiano identifica drama e não aparecesse nen�um conflito trágico-dionisíaco - "uma peça mais para lei­
teatro (ao sair do teatro o espectador afirma que gostou da "peça" quando na tura tranqüilizante" -, elogiou que sua encenação por Niels-Peter Rudolph em
verdade se refere à montagem, e de todo modo não há uma distinção clara Hamburgo tivesse revelado naquele texto um "drama cativante". Ora, a qu;li­
entre ambas), no fundo não está distante de grande parte da crítica e da li­ dade da montagem feita em Hamburgo (só conheço essa) consistia muito·mais
teratura especializada. Pois também uelas, pelo uso das palavras e por u�1a nos ritmos diferenciados que a grande forma preten- dida por Handke deveria
equivalência implícita ou mesmo manifesta do teatro com o drama montado, compÔrta-r. Em todo caso, a questão para o autqr certamente não era escrever
a pressuposição de uma tendência de identificação das duas instâncias - afi­ um "drama cativante''. É significativo que numa abordagem teórica desse caso o
nal de contas falsa - � consagrada e inadvertidamente convertida em uma . critério em questão s. eja çonsiderado como algo evidentemente válido e perma­
norma. Com isso excluem-se realidades decisi"ª-S,.do·teatro, e não só ao·atual. neça sem contestaç�o.6 No critério da "tensão". sobrevive a concepção clássica
A tragédia antiga, os dramas de Racine e a dramaturgia visual de Robert Wil­ da di;ama, ou mais precisamente um determinado lngredieutedela. Exposição,
son são formas do teatro. No entanto, é possível. dizer que a primeira forma, intensificação, peripécia, catástrofe: por mais antiquado que i�so soe, é o que se
tomando-se por base a compreensãb moderna do drama, é pré-dramática, espera do entretenimento do enredo no cinema e no teatro. •/
que as peças de Racine são sem dúvida teatro dramático e que as "ó��r.át' de O fato.de q�e-a estética dàsskâ - i1â<J"só do teatro - reconheci� a idéia_
Wilson devem ser chamadas de pós-dramáticas. Se o que se te.i:n{evidente­ da tensão não deve ser confundido com o ideal da tensão na época das artes
mente, já não é apenas ruptura da ilusão dramáticà· oti'"distaríciamento epi­ de entretenimento de massa, profundamente naturalistas apesar das tecnolo­
cizante, se para produzir "teatro" não há necessidade nem da ação, nem das --. do. "conteúdd';
gias simulatórias. Nes--;·ólti�10 ·cãs·õ nãose trata <le..nada.além
dramatis personae configuradas 'plasticamente, nem de uma colisão de valo­ no prill!e�o, trata-se de uma 16.g�ca 4e tensão _e .desenlace, de terisãb·e;11 um
res dramático-dialética, nem mesmo de figuras identificáveis - e tudo isso é sentido musical, irrquitet6nico, compositivo de un�a maneii:a geral (corno se
demonstrado de mpdo suficiente pelo novo teatro -, então resta tão pouca fala na pint�ra de tehsão da imagem). Já no caso do novo teatro à complexô
substância em umltonceHo de drama de tal modo dilu.ído, preso ainda a tan­ conceituai "drama/tensã6"·- levà a Julgamentos que são prejulgamentos. Pois
tas diferenciações, ·qu�-�le perde se� _;lor para o conhecimento. Ele nã� mai�---· os textos e os procedimentos de encenação são percebidos segundo ó modelo .
resolve a tarefa da concepção teórica âe aguçar a percepção; antes, obstrui o da ação dramátiça tensa, de { mo-do que ficam quase que forçosamente em se�
co;j����;nto tanto ct'o teatro quanto do texto teatral. gundo plano as �ondições ce percepção te�tral espedfü:ãs, ou seja, às qual!- •

· -Ent�e os motivos externos.pelos quais ainda é preciso, apesar de tudo, con­ : ' J

siderar o novo teatro em rela-ção e em contraposição à categoria "drama" está '1


6 Paul Stefaneck, "Lesedrama?. Oberleg_ungen zur szenlschen Trnnsformation 'bilhnenfremd�r'
a tendência da critica jornalfstica de, ao julgar o teatro, operar com um crité­ Dramaturgie'; in Erlka· Fischer�Ü;ht � (org.), pas Dram111111d seine fllszenierung. 1).lbingcn,
52 rio normativo dominado pela polaridade de valores "dra��tico"-"entediante", 1985, pp. 133-45. . .
53

'\

dades estéti�as do· teatro como teatro: o presente ç'omo �m acontecimento, a cotidiano de .palavra praticamente inexiste referência àquele modelo funda­
semiótica própria dos corpos, gestos é movimentos do intérprete, as estruturas.
I '
mental do dral'lla que Hegel designou com o co11cêito de "colisão dramática" e
...

compositlvas e forrpais da linguagem como paisagen:i sonora, as qualidades que de certo modo se encontra no centro de quase todas as teorias do drama,
plásticas qo visual para cdém da ilustração, 03�curso nJusical e rítmico com Nesse sentido, drama é o conflito entre atitudes representadas por pessoas,
seu tempo próprio etc. Contudo, em muitos trabalhos teatrais do p_resente e no qual o persoi.1agem dramático é tomado por um páthos fundamentado
de modo algum apenas nos casos extremos, esses f�ores (a forma) constituem objetivamente, isto é, tenta de modo arrebatado e arriscado validar e con­
justamente os recursos principais, e não, digamos, m�'ro� meios utilizados para quistar posições éticas. Esse modelo do antagonismo dramático quase não
ilustrar wna ação carregada de tensão. - '------ tem validade no �so cotidiano da linguagem. Também se chama-de "drama"
uma situação em que se procura um animal doméstico perdido por horas a
"Que drama!" . ----·-· -·-....__ _ ' fio, sem que haja quaisquer oposições, reações hostis etc. Sem dúvida, a sen­
··- ·-:--"-- sibilidade da linguagem associa às pàlavras "dra111a" e "dramático" sobretudo
Também a linguage1h corrente cria expectativas pelas quais a recepção se uma atmosf�rCw:nã1ntensidade da excitl).ção, do temor e da incerteza, mais
pauta . As palavras "d.rama" e "dramático" são usadas em diversas formulações. do que uma' determinada estrutura de acontecimentos. + .'
"Isso foi Ü.rii: drama!': diz-se a resp�itõ de u1nã situãçaõ-ou um contexto de
/
acontecimentos da vida cotidiana que foi extraordinárió e cheio de excitação. Teatro formalista e imitação
Ac�ntecimento-e.c.amoção são conotações da palavra: "O seqüestro dramático
teve um fim sem derramamento de sangue': diz o locutor de notícias. Ele quer Diante de quadros de Jacks?_p Pollock, Barnett Newman ou Cy Twombly,
dizer: por muito tempo o desfecho dos acontecimentos foi incerto, havendo qualquet observador compreende que não se pode falar aqui de imitação de
uma tensão "dramática" em torno do decurso posterior e do final. É isso que uma realidade preexistente. Por certo, fizeram-se formulações arriscadas - no
significa o ep.fteto "dramático" acrescentado a um acontecimento, uma ação século xvm, por exemplo - para resgatar o pi-indplô da imitação mesm<? na
ou um procedimento. Quando uma mãe, a respeito do grande sofrimento-___ . ,-__'.. .:.. música, compreendendo-a como mimese de afetos; teóricos marxistas, por
do filho que não teve permissão para ir ao cinema, relata que "foi quase um ·- sua vez, tentaram resgatar o princípio do reflexo [WiderspiegelungJ em face
drama': a palavra se distancia do incidente e paira corn ironia sobre o motivo da pintura não-objetiva. Mas afetos ou estados de espírito não são pictóricos
insignificante, mas ainda assim se encontra uma efetiva semelhança com o nem sonoros; a relação dos produtos estéticos com eles é mais complexa: uma
.
drama: sofrimento, ao menos decepção, assim como - provavelmente bas- espécie de "alusão''. [E � pintura, que pelo menos desde o início da modernl­
tante expressiva - manifestação dos sentimentos como reação à recusa. dade mal_9.!:!� saber de figura.tivismo, certamente deve ser compreendida
Duas coisas distintas sobressaem no uso cotidiano da linguagem. Em como uma estruturação própria e nova: gestos e inervações em movimento
primeiro lugar, ele se concentra no lado sério da encenação dramática, cujo que se evidenciam e se fixam; afirmação que reivindica realidade própria; ves-
modelo fica em segundo plano. Diz-se que uma coisa é "dramática" com re­ tfgio que não é menos concreto e real do que uma mancha de sangue ou uma .:.
ferência a uma situação séria. Não se fala em drama acerca de complicações parede recém-pintadii:'Nesses casos, a experiência estética requer - e possl-
---,-..,.,.....----·· ·-·-·-·. ·-·-·········uma
bllita - o prazer reflexivo do olhar, a vivência consciente de
··---···--·· ·- ;,-·
pei:eepção
cômicas na vidn real (o que possivelmente se baseia no emprego corrente
da palavra "drame" ou ''drama': desde o século xvru, com referência a wn visual p�-;;-� predÕmi1;ãnte cor;10 tal - independente do reconhecb�ento de
54 espetáculo burguês sêrio). Por outro lado, é interessant;obséivar que no uso realidades reproduzidas. 55
Ao passo que essa mt1dançà de.foco nas artes plásticas pode ser tomada comportamento humano, realidade etc, Esta sempre é pre�suposta como ori­
difícil que ginal em relação à duplicação do teatr o. Fixada no esquema de pensamento
. temp o, é evidentemente mais
conío algo . estabelecido há . muito
diante da "ação" e da presença de at ores humano s no palc o a atenção recaia "ação/imitação'; a visão se desloca da textura do drári1a escrito, assim como
so bre a realidade e a legitimidade do fator abstrato..No teatro, à relação com o daquil o que se mo stra aos sentido s com o açã o cênica, para se assegmar tã o­
comportamento humano "real" parece ser direta demais. baí que a ''ação abs­ somente do que é representado: do "conteúdo" (recebido), da significação, do
trata" deva valer aqui apenas como um "exhemo"7 - po r conseguinte, co mo sentido enfim.
um fator que no final das co ntas é insignificante para a determinação do te­ Ao passo que, p o_r boas razões, nenhuma poética do drama ainda terá re­
atro. Mas o tea tro dos anos 1980, no mais tardar, terá i mposto a noçã o, para nunciad o à co ncepçã o da açã o como objeto da mimese, a realidade d o nov·ó
diz.ê-lo com termo s de Michael Kirby, de uma "ação abstrata': de um "teatxo �e·atro tem início justa mente com a extinçã o dessa tríndade de drama, ação ·e
formalista'; no qll:� -� pr ocess o rea! d_a_a.tl!�ÇâQ .toma o lugar d?. "��P�.!.��ulo imitação, na qual normalmente o teatro é sacrificado ao drama, o drama aô
. q�e é dramatizado e, p o r .fim, o que é dramatizado - o real em sua progres­
mímétic�':·� n oção de que w�1 teat�:o com textos.lírico s, em que nã o se ilust.ra
quase nenhuma ou nenhuma ação, não mais constitui um "extrem o': mas siva-;u-btração - ao seu conceito. Enquanto nã o no s libertarmos desse modelo,
uma dimensão essehcial da nova realidade teatral. Essa dimensão resulta de uma jamais p oderemos conceber aquilo que rec o nhecemo s e sentimos na vida
intenção muitô diversa daquela de ser um sinrnlacro , por mais refinado, poe­ cómo algo intensa mente m:oldado pela arte - por um modo de ver, de sentir e
tizado ou formado axtisticamente que seja, uma duplicação de outra reali­ de pensar, p or um "modo de querer dizer" que é gerado so mente p or ela. Para
dade. Tal deslocamento das fronteiras que permeiam o campo remove o drama tanto, basta c onsidera_r que a formulação estética em geral.,-atravessando as·
o rientado para a ação do centr o esté t ico do teatço - ainda que c om isso, evi- tr�mas conceituais, inventa imagens d� percepção e diversas_ esferas de afetos
dente mente, não o remova do seu centro i11Stitucional. ou sentimento s, as quais, portanto, nã o existem fora de s�a. representação
, , .
artística em texto�sõm, quadrõ ôu êenâ. "Aquilo que um ouvinte percebe em
Mimese da aç(lo
;
uma sinfonia de Beethoven como musicalmente inerente a gestos afetivos
·-··-. . /· (assim chamados) opstinádos, re�eldes ou tri�fais - nada disso existia fora
A Poética de Aristóteles encaixa imitação e ação na co nhecida fórmula se­ desse específico e �in;i�r· "âdiadõ" ei;tético de org.an.iJ..q_ç�es so noras, A sen­
gundo a qual a tragédia seria· a imitação de ·ações humanas ("mimesis pra­ sibilidade humana imita a arte.a.s�. im .como a arte imita a ví-�la. Victor. Turner
xeos"). A palavra "drama" vem d9 termo grego "ôpav'; que significa "fazer''. chegou à_.il,).1portante distinção ;ntr� o "dra�a ��-eia!:', que 9corre n� reali­
"agir''. Quando se pensa o teatr o co mo drama e como imitação, naturàfmente a dade social, e a quilÔ-qtI� chamou de "drama estético'; so bretudo. para tornar.
ação se estabelece como autêntico objeto e ce�ne dessa imitação. De fat o , até o compree�sfvel que este ''esRelha" estruturas ocultas do primeiro. Contudo,
surgimento do cinema nenhu ma outra prática artística podia monop olizar de enfatizou-que a formulação estética dos conflito s so ciais também engendra
mo do tão plausível g_uanto o ·teatro esta dime1!sã?: a imitaçã o mimética (re­ modelos de sua percepção .e e1n- pat'te é responsável pela ritualização da vida··
presentada po r atores reais) de ações humanas. Justamente a fixação na ação s9_:�af r�� _g�e. o_ �!�1?.ª coiÚigura�_ o esteti�amente pr odüz·mundos de imagens,
parece implicar, com certa imperatividade, que a estrutura estética do teatro ��C?_l �.Y.ª2·.e..ê��:digf ·---··-·-·-····
co; ·q;·; ·�!���{a_!]�_a__orga �iz·â·çãÕêã
uas ideol ó·g- i-·· ·
1 . .; - ··
seja pensada como uma varíável dependente de uma outra realidade - vida, . percepção �o·so_cial. 8

- .... - ..:.- .

7 Martin Esslin, An A11atomy o/Drama. 3• ed. Nova York, 1979, p. 14�. 8 Victor Turner, 011 thc Edge of'the Buslr. Arizona, l985, pp. 300 ss. 57
'r\'
; \

Teatro energético tiva, no sentido do mímetismo de Roger Caillois - do que com a ro.imese no
'· sentido estrito de imitação,
Jean-François Lyotard recorre a um belo e�éníplo de (Hans] Bellm�r, no Tanto os "signos de f� go" de Artaud quanto a mimese de Adorno incluem
qual o conceito de ilustração se torna um p��blema: "Tenho terríveis dores o terror e a dpr como elementos constitutivos do teatro. Esse fator também
'de.dente. Cerro o punho, as unhas se cravam na palma da mão. puas con­ não é estranho à idéia de Lyotard acerca do teatro energétlco das intensidades
centrações de energia. Isso quer dizer que o gesto. da mão representa, ilustra (dor de dente, punho cerrado). Mas Artaud e Adorno insistem ainda em que a
a dor de dente? O signo é de quê?''.' Lyotard fala aq�e uma idéia de teatro convulsão como que se organiza em signo ou, com Adorno, em que a mimese
diferenciada, da qual se deve partir caso se queira pensar um teatro para se realiza por meio de um processo de racionalidade e de construção estéti­
além ''do _��a.roa, o qua� é chamado de ,'.'teatro energético". Nãô seria um tea­ cas. Desse modo, numa organização musical ela estabelece sua lógica como
tro do significaâb;- mas das. 'To.rças, intensidades, afetos �m sua presença''. 1º material sonoro. Uma lógica· (previamente) dadâ aos signos teatrais (a de LUna
Diante dos coros falados de Eina�-S�hiii(inàrêhãm:i0 em direção ao pú­ ação, por exemplo) não seria ilustrada por ela. Uma formulação de Adorno a
blico, por exemplo, quem não vê o "energético" mas procura por signos, por respeito des�e fe�ãparece ter peculiar a.finidade com o exemplo de Lyotard:
"representação': encerra o cênico no modelo da cópia, da ação e assim do
"drama''..Esses·coros se comportam em relação à rêalídade mais como os pu­ � -.lte é tão pouco ilustração quanto conhecimento de uina �bjetMdade; senão
nhos cerrados /m relação à dor de dente em Bellmer. Como é evidente, Lyo­ ela seria reduzida àq�ela duplicação cuja crítica Husserl levou adiante de modo
tard poderia ter_encontrado já em Artaud image.qs e conceitos segundo os tão rigoroso no campo do conheclmento discursivo. A arte tende a apreender ges­
�: : quais no teatro são possíveis gestos, figurações e encadeamentos que se re­ tualmente a realidade, a fim 9!- retroceder com ela até o momento do contato. Suas
ferem a um outro elemento de maneira diferent� dos "signos" reprodutivos, letras são marcas desse movlmento. 11
indicativos ou simbólicos, de modo que acenam ou indicam e ao mesmo
tempo oferecem a si mesmos como efeito de uma correntezà, de uma lner- j A partir da análise a seguir se chegará à conclusão de que o conceito de "teatro
vaçâo, de um furor. O teatro enérgico estaria para além da represenfàçã-0-:..-0--- .... : _ _j pós-dramático" está próximo do conceito de "teatro �nergétlco',; mas é prefe­
!
que por certo não si�ific;;i�plesmente desprovido . ·-
de representação, mas rível para que não se perca de vista a divergência com a tradição do teatro e
�1âo dominado por sua 16gi_ca. Para o teatro pós-dramático seria o caso de com o discurso sobre o teatro, assim como as diversas misturas dos "gestos"
postular uma espécie de doação de signos que Artaud mencionou no final teatrais com os procedimentos da representação.
de "O teatro e a cultu�a·: _quando ele conclama a "ser como os supliciados
que se queimam e que fazem signos em suas fogueiras''. Não é preciso aco­ ·---
lher a dominante trágica dessa noção, mas com ela se ganha a idéia, deter­
minante Pll!ª o novo teatro, dos sinais arrebatadores compostos por gestos
corporais e vocais reativos, o que tem mais a ver com o conceito de mirnese
de Adorno - que a compreende como uma equivalência pré-conceitua[, afe-

9 Jean-Frll!lçols Lyotard, A.ffirmative Asthetik. Berlitn, 1982, p. u., u Theodor W. Adorno, Âsthetisclie 1heorle (1970], ln Gesammelte Schrifte11; v. 7, Frankfurt am
58 10 Ibld., p. 21. Main, 1984, p. 425. 59
··'

Drama e dialétlc:a'

-.. - .· -- ·--..........___

Dràfu.a, história, seqtido ... ···--


Na.e.stética clássfc·a, à dialética formal do drama, com suas-implicações fitosó-
. ficas, foi um tema. �nu-ai. D.da J?�!ti!_lênE�ª de verificar aqül o que-realmente
,/
foi abandonàdo quando o drama foi aband;·ado. O dràríi� e a tragédia eram
/ considerados como a coniiguraçãq mais elevada,. ou uma das mais elevadas,.
·-·-- . ..
/ da i'i1afllfestiçãê:í'do :espf.cltQ.../2,.��ênc!a dialética do gênero '(diálogo, conflito,
solução, alto grau d�·�bstr�ção da fur��-dramátiêã;'-expôS'iÇãO.·dO .$.\IJ!:ito em
seu caráter conflitÜoso) pérmitia· que·o 'dratna- tiveS'S1r uni pãp�l destacado.no
cânone da� art�: C�o uma configuràção artística da proces'suaÚdade, ele
é identificado pura e sinlp�smente com o 1l1�vimento dialético de aliehação
·
e supressão [Aujhebungj, e issO �té muito recentement�. Assi�1, a dialética �
vinculada p·or Szondi ao gênero do �ram_a_ ç ao ti:ágicC>. Teóricos marxistas
consideravam o drama cornõ � supr�·-sumQ da dh1l�tiç�a .história. Ós his­
toriadores constantemente . reçorreram
,'
à metáfora do drama, da tragédia e çla
comédia para descrever O sertido e a \l_nidí!de interna dos proceSSQS histÓri-
COS; Essa tendência é favoreci?ª pel? fp.tor-objetivo da teatralidade na própria
história. Assim, sobretudlfa lté�;hrs:ão Fr�ncesa, coIU-suas grandes entradas
em ceila, discursos, gestos'e saÍdàS de cena constantemente foi compreendida 61
:
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como wn espetáculo com confljtos, discursos, papéis heróicos e espectado­ O ideal da visão de conjunto (Aristóteles)
res. Contudo, contemplar a história como dram.a leva q �ase-que.inevitavel­
mente à teleologia que confere a esse drama upia perspectiva de finalidade
1 A Poética de Aristóteles concebe a beleza e o orde1)amento da tragédia se­
plena de sentido - reconciliação na_ estética ide-alista e progresso histórico na gundo a analogia com a lógica. Assim, são concebidos segundo o padrão do
,, abordagem histórica marxista. "O drama prciin:ete a dialética:· 1 Alguns dos lógico os termos de que a tragédia tem de ser um "todo" com começo, meio
ititelectuais inarcados pela plenitude de sentido estético da hlstóriá chegaram e fim, ligados à exigên�ia· de que a "grandeza" (a extensão temporal) deve
à elaborar a formulação segundo a qual é mes�o..p.ertinente à história uma abranger precisamente o bastante para uma peripécia e a partir dal para a
· beleza· dra�ática objetiva.1-Autores como -Samuel B�ett ou Heiner Müller, catástrofe.conclusiva. O drama é pensado na Poética como uma estrutura
etn-�ontrápartida, evitaram a forma dramática especialtneht-e. por causa de que traz para o caráter desconcertantemente caótico e profuso do ser um
suas impli0ações . plstóric�-teológicas.· ,. --- ordenamento lógico (ou sejà, dramático). Esse ordenamento intern�, sus­
· · -- ··· -·· º "'
Foi diversas vezes observãd à·ã-estreita-implicaç-ª9.__ �e drama e dialética e tentado pelas célebres unidades, isola à estrututa de sentido que o artefato
mais geralmente de drama e pbstração. A abstração é inerente ao drama. Goethe da tragédia r�pt'ésenta-em relação à realidade exterior e ao mesmo tempo a
e Schiller tinham consciência dissó, de inodo que colocavam a questão da es­ constitui_pó interior como unidade e totalidade sem lacuni1s. O "todo" da
colha cgi:_t_a_ _c!� r:iaterial (de acórdo c0m a .fonna do .. dtama) 1}0 primeiro plano ação,,úma ficção teórica, fundamenta o l6gos de uma totalidade na qual
de suas reflexõ4rs sobre a distinção entre o drama e a epopéia. Qual matér_ia_ é a befeza é pensada essencia�ente como decurso temporal que se torna con­
apropriada para fazer aparecer a coerência de pensamento do ser interpretado trolável. Drama significa fluxo temporal controlado, que se pode abranger
sem que um disp"éndioso trabalho acessório de informações sobre assuntos com a vista. Se a peripécia pode ser mostrada como uma categoria propria­
secundários possa obscurecer a visão das estruturas abstratas do destino, da mente J6gica, também uma d;s idéias mais importante� da Póética, acercá
"colisão trágica': da dialética no conflito dramático e da reconcllfação? Ao con­ �o extraordinário efeito emocional do anagnorisis (reconhecimento-), é um
trário dó gesto do poeta épico, que para despertar a sensação de plenitude e tema ligado ao conhecimento. De U1'11 modo especial, por- certo, já que na
credibilidade da realidade fict!cia acentua justamente aquilo que é se.c.undário,
aquilo que aparece no drama corno uma pormenorização' qtiefaz perder tempo,
--- - - . ---
tr�&édia o choque de anagnorisis ("És meu irmão, Orestes!"; "Eu mesmo
sou o .filho e o assassino de Laio!") manifesta a. unidade da intelecção e
1
· o drama se baseia no exercido de abstração capaz de esboçar i.lm mundo mo­ da perda de sentido. A dplorosa luz do conhecimento ilumina o todo e ao
'delar, no qual a plenitude que se explicita não é a da realidade em geral, inas a mesmo tempo constitui um enigma insolúvel, cujas leis determina111 a rea­
.da conduta humana em situação. Muito antes da invenção brechtlana de um lização da constelação que cintila naquele instante, Âssim, o momento do
"teatro da era ciehtífica': a forina dramática tendia ao plano conceituai por meio conhecimento é igualmente a cesura, a intel'rupção do ato de conhecér. Mas
da abstração, à concentração que intensifica e sintetiza. É também nisso que se isso pern�ce implícito na Poética, pois Aristóteles trata do aspecto filo­
fundamenta a afinidade, muitas vezes apontada, entre novela e drama. sófico na tragédia. A mimese é por ele compreendida como uma espécie
de mathesis: como um aprendizado que se tori1a prazeroso pelo deleite do
reconhecimento do objeto da mimese - um pra;i;er que satisfaz apenas a
1 Hans-Thies Lehmann, "Dramatischcs Form und Revolutlon in Georg Büchners Dttntons
multidão, mas que não é exigido pelo filósofo: "O aprendizado prop,idá'Ó
Tod e Heiner Müllers Der Auftrag'; in Peter von Becker (org.), "Dantons Tod". Die Trauerar­
beit im Schonén. Frankfurt am Main, 1980, pp. 106-21, p. 107.
maior prazir não só ao filósofo, mas iguaimente aos demais hon:i;�s (que
62 2 Ernst Schumacher, apud ibid., p. 109. decerto têm pouca participação nisso), É por isso que eles se del�itam cotn a
visão de ip'1ageus, pois ao contempJá-las aprçndem algo e procuram deduzir "ilusão': do engano e do embuste. Em contrapartida, desde Aristóteles se atri­
o .que {cada uma'? bui ao lógos dramático o avanço da lógica por trás da ilusão �nganosa. Essa
A tragédia se mostra como ordenamento paralógico. Também o critério dramaturgia mostra as "leis" por tr�s das aparências: Não é à toa.que para
de "visão de conjunto" ser.\le a uma elaboraçãó intelectual não perturbada Aristóteles a tragédia é "mais filçisófica" do__q_ue_ a historiografia: ela revela
por confusões. O belo, assim argumenta à Poética, não póde ser pensado sem uma lógica que·de .outro modo permaneceria oculta, em confo;midade com
uma determinada grandeza (extensão): .... a "necessid_ade" conceituai e também com a "verossimilhança" analiticamente
.., .. coínpreensível. A medida que se perdeu a crença na possibilidade de uma
Portanto, não pode ser bela nem uma criatura muito pequena (a contemplação se t;.11 modelaridade, dgorosamente separada e separável da realidade cotidiana:
confunde quando seu objeto não está próximo de uma grandeza perceptível) nem evidenciôu-se a devida realidade ou "mundanidade" do próprio processei
uma criatura muito grande (a contemplação não se efetiva de uma só vez, de modo da representação teatral, de_sfez-se a certeza da fronteira coi1stitutiva entre·
r_ que escapam ao contemplador a unidade e a totalídade da contemplação, como se, .. - .. ___mundo e modelo. Mas com isso se desenvolveu "uma base essencíal para ô
·
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por exemplo, uma criatura tivesse o tamanho d� dez mil estádios). Por consegui'àte, teãtro dramático, a qual se tornou axiomática para a estética ocidental: a tota­
assim como se requer uma certa grandeza d9s objetos e criaturas, e essa grandeza !/daj1..gg.Jpgq$.,.
deve ser abarcável com a visão (eusynopton), também a ação deve ter uma determi­ A cumplicidade entre drama e lógica, depols entre drama e dialética, do­
nada extensão, e IT!esmo uma extensão que se gr�� facUmente na memória.' mina quase que ininterruptamente a tradição "aristotélica" européia - que se
mostra ainda muit?_yiva na "dramática não ari;totélica"·de Brecht. O belo é
·
O 9r�ma é wn modelo. O sensível precisa se adequar à lei da compreensão pensado segundo o modelo do lógico, como . uma variante dele.
/
Um ponto
e da conservação. A significativa prioridade do desenho (do lógos) sob�.e..as culrninante dessa tradição é a Es(ética de Hegel. Sob a fórm�)a .grnll. do belo
cores (os sentidos), estabelecida posteriormente na teoria da pintura, j,áê evo­ ideal como "aparênciã séns[vêl âa ideia'�elirdesdobra uma· complex� .teoria
cada aqui por comparação, na medida em que a estrutura de ord;na�1ento do da presentificação do espírito no âmbito sensível de cada respectiv� material
euredo/lógos está acima de tudo: "Pois quando algüértn1sa cores cegamente,
por mais que elas sejam belas ele já n�o consegue agradar da mesma forma
---·.
artístico, até chegr)r à ijnguagem poética. Ao mes�o tempo, pode-se demons-
'
trar com essa teoria_por que ã íãéíã' ao· tlrama· se tor.nou tio_ �2<traord1naria-
que O faz quando produz um-desenho de contornos claros". A noçao
5
- de que mente poderosa: ela jamais poderi,�_ter,exercido.un1.déito tão ab�·ai1g'i!nte se
a tragédia, em virtude de sua estrutura lógico-dram ática, segundo Aristóteles, não tivesse-si�o'concebida mais profunda e contraditoriamente do gue d�ixa
pode passar sem a encenação real, de que ela não precisa do teatro para de­ parecer a red'ução a;;-·esquema do gênero dramático. Desse modo; convém
senvolver todo o seu efeito, é meramente o toque fina� da logicização. esboçar.em alguns aspect6s-a complexa linha dessa teoria especulativa do
Já para Aristóteles, o próprio teatro, a representação visível (6psis), per­ drart1a de Hegel, com auxílio de alg�mas considerações de Christoph Menkê,
tence ao reino dos efeitos casuais, meramente sensórios - e nota bene: passa­
�eiros e efêmeros -, sendo depois cada vez mais consíclerado como lugar da Hegel 1: a exclusão do real __ __
' ,.

Como gênero essencialmen°te dialético, o d�ama é ao inesmo tempo o lu­


3 Aristóteles, Poetik, ed. e trad. Manfred Fuhrmann. StutJgart, 198l, cap. 4, PP· 11-ll,
gar privilegiado da tragiçidade, d(inodo que w11 teatrb posterior ao drama
4 lbid., cap. 7, p. 26.
5 lbld., cap. 6, p. 23. sugere a suposição de que seja um teatro 'sem tragi�idade. Essa suposição é

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alimentada pelo posicionamen!O hegeliano da tiagédia na pré-modernidade. que é efetivamente essa concepção que dá sentidô àquele teorema. "Para He­
Assii:n como a arte, de acordo com Hegel, chega\,a um fi�n quando a expres­ gel, o drama está, e já em sua manifestação· gteg11, a caminho de uma arte
sãó sensível não é mais a necessidade primordial do espírito e este se encon­ 'não mais bela'. No drama começa o fim da arte na arte." 7 Resulta daí - como
tra inteiramente em casa no reino d a, abstração conceitua!, portanto em seu que numa lóg!ca "não oficial" da exposição histórico-teleológica de Hegel
· âmbito próprio, também há um "passad:ó dflragicidade'�6 que Hegel vincula (pelo menos desde a Fenomenologia do esplrit'o) - wna "preterição" estética
por sua· vez à "poesia dramática". Na arte, o Iílais elevado e o màls belo não do drama, na.medida em que no campo da arte (dó belo) êle torna o próprio
são a mesma coisa. A Linião ideal de sensível /espiritual te'ile sua culminân- belo questionável "em su·à pretensão de reconciliação". Quando Hegel entende
. eia na escultura de deuses da Antigüidade , da qu�l'Hegel pode di�er, nâó o belo �rtís.tico como uma "reconciliação'' dos opostos em várias camadas, es­
·
.
sem páthos, mas com uma lógica dialétic� rigotosa: "Mais l:iela.não pode ser pecialmente do belo e do ético, pode-se de fato afirmar que sob o conceito de
nem s�tomar'.'. .A afir!,fi,aÇã? de Hegel de que apesar disso a escultura grega "dramático" ele faz valer no âmbito estético aqueles traços que fazem a preten­
. .. ..... '
permanece insuficiente, o que
,

inipfü� ·wn· posteíiorap.r_o_gresso da arte e do es- sãà de reconciliação fraca�sar. O drama'não é simplesmente a manifestação
pírito, fundamenta-se na falta de interiorização e vivificação subjetivas (que (qão,problemá�iGa) do.é.tic-9 belo, mas sobretudo a patente crise deste.
mais tarde serão encontradas na "forma de arte 1:omântica': de maneira talvez Portantq, á filosofia do drama indica aqui, nó ponto mais alto de sua for­
exemp.lar !19. r�trato da Virgem Maria)·. Daí-sua célebre observação de que mulaç�.P' cÍássica, uma notável "atnbigüidade" :8 trata-se tanto de afirmação da
.
na escultura �tiga haveria um sopr� de t�isteza. No entanto, a culminância bemr�uce9-ida reconciliação de beleza e eticidade, "cóntentamento sensível
do .Belo, a união integral do sensível e do espiritual, tem de ser superada pelo e serenidade da alma': quanto· de manifestação conflitt10sa de sua cisão. Ob­
.
progresso <Io-Êspli-ito após a Antigüidade em favôr da prógressiva abstração servemos com mais precisão essa ruptura na tragédia. Em contraposição à
"espiritual'\ que leva a configurações cada vez mais elevadas, ainda que não rrtais epopéia, J::Iegel compreende ,nragédia como uma " linguãgem mais elevada".
belas, até que no Espírito absoluto se chegue a ·um modo de ser tendencial­ Na forma da epopéia, a clivagem abstrata da Moira e de um aedo impessoal
mente pensado co'tno destituído de forma. fazia o herói aparecer de tal maneira que ele, "em sua força e.,peleza, sente sua
Ao passo que na escultura de deuses, portanto nas artes plásticas, o.abfil2\µ_to vida dilacerada e lamenta a morte prematura que antevê para si".9 O caráter
da beleza é alcançado de modo bem classicista, Hegel considera a Antfgona d;· fortÜíto da plenitude épica da ação ainda não reconhece uma necessidade
. . . -····---
'.Sófoc�es "a obra de arte mais satisfatória" do mundo moderno e da Antigüi- dialética. É preciso pois que surja no lugar da voz do narraçlor épico, que
\dade - mas apenas num determinado "sentido", ou seja, como representação permanece e�terior ao herói, a estrutura propriamente dramática do destino,
,ideal da cisão e da reconciliação das formas objetiva e subjetiva do esplrito e junto com ela o expressar-a-si-mesmo do homem (na encarna_ção.cêoica).
ético. Como configuração do conflito ético, a tragédia clássica ultrapassa já Menke nota então que na tragédia - sendo a argumentaçãÓ hegeliana lida
no campo da "forma de arte clássica" o belo " tão-somente" perfeito! Ela é com atenção.::-a estranheza do destino trágico "como poder sem sujeito; seríl
mais do que bela: já está a caminho do puro cónceito e da subjetividade. Desse saber, indefinido em sf: "necessidade fria" (que já figurava assim na epopéia),
_
modo, Menke sugere que a concepção de Hegel da "dissolução" da "forma de
arte clássica" seja associada ao seu teorema do fim da arte na modernidade,
7 lbid., p. 45.
8 Paul de Man, Die ldeo/ogie des Asthet/schen. Frankfurt am Maln, 1993, p: 54. ,....-�/
6 Christoph Menke, Trngõdie im Sittlichen. Gerechtigkeit 11nd Freilreit 11nch Hegel. Frankfurt 9 Gcorg W. R Hegel, Phiinomenologie des Geites, ln Werke, v. 111. Frankfurt am M�in, 1986,
66 am Main, i996, p. 42.
'.
. � .. p. 507.
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não só .indica um poder em que o belo se rompe, mas indica também que a preserva a multiplicidade e a diversidade''. 11 Da época pós-clás.sica à contem­
própria reconciliação traz.consigo a semente venenosa de seu fracasso, pois porânea o teatro passou por uma série de transformações que, em facé dos
na compreensão de Hegel a e,q,eriência do "destino" constitui a semente do postulados de unidade, totalidade, reconciliação e sentido, afirmaram o di­
drama. Mas essa é uma experiência "ética": algo é subtraído da disposição reito do disparate, da parcialidade, do absurdo, do feio. Ele incorporou cada
da vontade ética e lança uma "contingência?' mortal para o �onceito ético no vez mais, no conteúdo e na forma, Justamente aquilo que não se queria antes,
campo do dramático e, com isso, no jogo do Espírito, Bn1 fac:e dessa con­ com asc6, "suprimir'� Não obstante, a consciência da duplicidàde interna da
tingência ou "pluralidade" que se dá tanto no âmbito divino quanto entre tradição clássica evidencia que o "outro" do teatro clássico já estava contido·
os homens, cessa qualquer possibilidade de uma reconciliação final. O que na mais coerente de suas concepções filosóficas: como possibilidade latente;
caracteriza o dramático é uma ruptura que ele precisa tentar evitar pro�iso­ do rompime1lto em melo ao esforço de reconciliação tensionado ao extremo.
riamente por meio da fuga em estilizàção fora do mundo, caso queira afirmar Nesse sentido, fal�-�e aqui renovadamente . de teatro pós-dramático e defi-
a "verdade" da reconciliação, Como arte do belo, o drama "deixa de lado tudo . - "niti:vamente não de um teatro que se encontra além do drama, sem relação
o que não corresponde a esse mesmo conceito na manifestação fenomenal, e alguma. Ele pode ser concebido muito ruais como desdobramento e floresci­
é somente por meio dessa purificação que ele produz o ideal''.10 mento de um potencial de desagregação, de desmontagem, de desconstrução
t essa "catarse" da forma dramática que produz, junto com a aparência no próprio drama. Essa virtualidade estava presente na estética do teatro dra­
da reconcili�ção, o advento da destruição dessa aparência. Do ponto de vista mático, embora fosse diflcil de decifrar; ela foi pensada e_m sua filosofia, mas
. . -·--

.
estético,.o que motiva a exclusão do real - internamente necessária, ma_s que apenas como uma corrente sob a superfície resplandecente-do procedimento
põe em risco a pretensão de uma comunicação abran·gente - não é nadá além dialético "oficial''. Í

do próprio princípio do drama, aquela abstração dialética que ele possi?ilita


.. �
primordialmente como forma, mas que se distancia do campo da recó'ncilia­ Hegel 2: a atuação
Ção estética oco;rida com a penetração da matéria sensível. Nas ptofundezas.
do teatro dramático já repousa, na forma de uma -�xper!ênda irreconcilia­ Para Hegel, é pertinente-ao .dram.� ::..�§s�r,.clalmente e não (corilo em Aristó­
velmente contraditória do problema ético e de uma materialidade rejeitada, teles) como uma mer; formalidade - que-,;pers�nágên?' sêjãm encarn_ados
aquela tensão que inaugura sua crise, dissolução -e, por fim, a possibilldade de . por seres h�ma�_os reais com suás -própriàs vozes;süa êorporeidade e seu
um paradigma não dramático. Se algo escapa ao ideal clássico, é )ustamente gestual. Com isso ·se d� urna peculiar "al!to-reflexão performativa do drama"
a possibilidade de acolher o que é estranho aos sentidos e o impuro. É tanto que, como mostr� Menk��--q�onlíi para a mesma cüreçã� da ruptura latente
aguçada quanto esclarecedora a conclusão de Menke de que já com Hegel a nas belas-artes em virtude da «deficiência de seu esforço de reconciliação''. 12•
modernidade pode ser pensada como um mundo "para além da falta de etici­ Uma vez que· não é mais a voz única_ do narrador ou rapsodo que cumpre a rea­
dade bela", que "tem de excluir todas as faltas'� Para além da estética da media­ lização, mas uma imprescindível pluralidade de vozes, Q.$.)!Í�ito "in'dividuar:
ção com seu paradigma estético central, o drama, torna-se também concebível particular, ganha uma. tal auton9.tpia que se toma Impossível relativizar seu
para o teatro uma.modernidade (ou pós-modernidade) que "não exclui, mas direito sempre i�dividual em/avor de uma síntese dialética. Mais afoda: os

11 Mcnke, op. d t., PP· 54-55


68 ,
10 Idem, J.st/Jetik. in Werke , op. cit., v. xm, pp. 205-06. 12 Ibid., p. 51.

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atores, que para Hegel são como, qu� "estátuas" eP1 ·movimento e relacionadas como um todo apresenta no fundo uma imponderabilidade para a filosofia
entre si, efetuam além disso um deslocamento e�candal�so para o ldealismo do espírito: o eu subjetivo, eúl si mesmo sem importância, que atua e produz
objetivo de Hegel. Na medida em que s�o eles; como seres meramente empíri­ signos artisticamente, esse eu meramente individual se experimenta como.
cos, que proporcionam no drama a realização do ideal, do belo artístico (dos fundador e. instituidor do essencial, do teor ético, criador das dramatis per­
heróis dramáticos), chega-se com eles a uiiiã"ê:onsciência irônica da atuação''. sonae como figuras que já reúnem beleza e eticidade em si mesmas: "A pre­
Em outras palavras, surge um fenômeno impensável hegelianamente, já que sunção da essencialldaqe geral é denunciada no eu[ ... ]. Manifestado aqui em
o particular e pré-conceitua! - o mero ator indi;ídl.l�!- situa:se acima do teor seu significado de algo real, o eu atua com a máscara que ora veste para ser
ético. Em vez de impor a normà ao particular, esse teor·depende tão-somente personagem desta''. 16
do desempenho par�icul�r c_io ator: . . .... Hegel precisa en.."<ergar nessa realidade do teatro uma "dissolução geral
. .. - .. da essência configurada em sua individualidade'; 17 de �odo que deve result:ir
Em vez de serem "meras f�Í-ramênfas" ·que ·desapaiec�íl! em seus papéis, os ato- da tendência à dissolução, lógica e espi�ituaÚnente, a abstração e a consciên­
res experimentam uma inversão da dependência entre subjetividade e beleza, ou .
cia dialética do "p�ii.sàroento racional'; a filosofia grega. O "drama" necessaria­
Jilelhor,"eticidade. [ ...] A exp_eríência fundamental do ator é a produção do etica­ mente está na margeín da arte, na fronteira entre o ideal da arte, "a aparência
mente válld q pelos indivíduos.'3' sens(véÍ da idéia': e a abstração filosófica de certo modo informe. É esclare­
f ced�r que Me11ke ligue essa tensão interna, a insuficiência do drama, com a
O caráter de atuação �tiva do dralna (leia-se: do teatro) abre então uma ten­ transcendentalização romântica da poes�a, entendendo a teoria do drama de
são entre o i�itõ e ci fazer; o que vem à tona na representação teatral simples­ Hegel como metáfora de um çonceito da arte que co!ltém em si mesmo os
mente pelo fato de que os ''home�s reais" (os atores) "vestem" as personae, as temas argumentativos à partir dos quais a concepção "oficial" do ideal como
máscaras dos heróis, e as representam "em um· discurso real, não narrativo, aparência sensível da idéia se torna úm fantasma lnatingível. Assim, o .fim da
mas próprio". 1" Por esse motivo, pode-se chegar também ao "desmascaramento" arte aparece menos como uma tese histórica e bàseada na filosofia da história
dessa relação, na visão de Hegel, "invertidà' entre subjetividade e-tem:.éticQ____. __ ·-- - . ·-. _.
. (da.arte) do que <:orno um fiin desde sempre começado da idéia "clássica" da
objetivo - notadamente na parábase cômica, quando os.atores saem de seus arte, um fim desde sempre começado da arte na arte. Sob a perspectiva dó
papéis e brincam com as máscaras. Hegel vê com toda nitidez a peculiaridade desenvolvimento inovador das práticas artísticas e teatrais, que procura dar
·,da experiência do teatro, que oferece a unid�de de realidade espiritual e exe­ adeus à "forma" como totalidade, mimese, modelo, a abordageín de Hegel so­
. cuçâo material como uma " hipocrisia": "o herói que entra ert1 cena diante do bre o desenvolvimento da arte antiga dá a impressão de ser um modelo para
espectador decompõe-se em sua máscara e no ator, no personagem e no eu a dissoluçª� noção de teatro dramático.
real''. 15 Isso é perceptível de modo especialmente incômodo na parábase cômica,
quando num dado momento o "eu" atua com a máscara tnas no momento se­
guinte aparece "e1,11 sua própria nudez. e normalidade''. A representação teatral

13 Ibld., p. 178.
14 Hegel, Pliãnomenologie des Geites, op. cit., p. 511. 16 lbid., pp. 517-18.
70 15 lbid., p. 517. 17 lbid. 71
�----------------- -------------- ... ___ . -·--·

.. ..
..··

S0bre a pré-hlstórJa do teatro pós-dra

. .. . . . --------
Teatró e texto

O teatro e o dra,ma :-:e situavan1 e se situam em u,na relação de cont


�ar;�ga'da ·de tensões. Enfatizar esse fí1t� e exar.iliná-lõ emJ�do o c;
de suas implicações é a primeií-ac:éiridlçãõp·ar,a Uiüa côihptéé�;��2
º
/
/
do teatro moderpo e de suas formas mais recentes. O recortl'lecilw

--
te�txo:pós-dtam"'.l:tico-te.@_!nício com a constataçã� de que a cóp. diçãc
existência é _a emandpaçã;\Ic.(prõcà eãi:!iss0eiaçã.o_� cirama ,
··-· .. , .
Pot esse.n1�tivo, a·história do gênep) dran)â_em.ill�tií un) i11tê ress�·
.

- limitado pãr�;i têorJa·do teatro, Visto p0rétil. que n;:i Europa o ��atro,fc
nadp p_e}o drama taôtõ'dc;,_ponto d� vis�a teórico quantó db prático� ê Í
···-·-... .
estabelecer, com.ti rnQstrado;--u_pia referência dos novos desenvolvlme
�. \

\.
pàssad,ó do-teatro dramático por meio do côncéito de "pós-dràmáticc
é, un1a referência não tahtô·,\s-tnudãbçi.s \fo texto· t��tral quanto à t
� �
mação dos modos de express . .Nas for� s "iecitrais põs-drai'náticas,
o
qu<\ndo (e se ) é en"Geilado, é.�ohéebidti sobretudo corno tun cóinp on,
\ ' .....
tre ôutrôs de um contexto gestual,·mu�ic à1, 'vl�ual etc. A cisão entre à d
do te..xtô e O do teaq-� p.o.desJ.·àlafg�Íaté �má discrepâi1cia explicita.e.
uma ausência de rela.ção. ·
\,

-�
·----·------ ·---·------
Sobre a pré-histór.ia do teatro pós-dramático',

Tea4'ó e texto
..-�:
O teatro e o dr�ina.se situavaní e se situarf1 em uma relação de conti:adição
�ar;�gáda ·de tei1sões. Enfatizar eJ,se fítt� e exarillná-lo em.���2 o conjunto
. de suas implicações é a primefra-céincllçãõ·p-a.1:a uma cómpreénsã--;;-�dequada
...
.,,.
. mais recentes. O reconhecimento do
/ do teatrô moder{lo e de suas forro as
te�fró:pós-dfamáticó 1e�nício com a constataçã� de que a cõp,dição de sua
existência 4 a ema.ódpaçã�\fé1prõêà e·rdtssoelação .
-�rama e teatro.
---- .
·
Por é sse íUQtivo, a história dq gên.eJo drama em.1;Ueni um in�esse'ap!!nas
limitado pãr�� teorja-do teatro. Visto porém que na Europa o t�atr<:>·foi d�"ini­
nado. pelo drama tanto'dQ ponto de vista teóri:co quanto db prático, ê possível··.
estabeÍ;��t om:o mostr�dài·-1.vna �efe;ência dos·novos d�senvolvi�entos ao
c

pàssadp do-teatro dramático por meio do conceito de "p6s-dramátiêo" - isto


é, ui11a referência não tanto·às·mutla'n:ças âo texto· te�tral quanto à transfor-
mação dos modos de expressão. Nas for��s-ieatraii pós=tlramáticas, o texto,
·/
quando (e se) é ente.nado, é.cohtebido sobretudo como um côinponente en-
tre outros de um cont�xto g;hual,'m�sfca1, 'visi,1al etc, A cisão entre-O discurso
do texto e o do teatfo 120.desJ.·àlarg�r-;té ��; discrepância explícità-e mesmo
J
uma ausência de rela.yão. · 75

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O pro cesso histórico de afastamento do text o é d� teatr o exige uma nova de­ uto pias teatrais da primeira metade do século XX por vezes se enco ntram mo
i é identificado com
finição, sem preconceit o s, de sua relação. Ela pôde ser inicia9a péla consideração de expressão correlatos, nos quais o teatro como ação cultua
de que o teatr o veio em primeiro lugar: surgiu'_do ritual, 'apropriou a forma da 0 "dramà' e essa ação simbólica e cultua
i é contraposta ao mimos corno imitação
cop1 �o dos os cam­
dança mimética, êéi"ni.l gurou-se como um modo de co mp o rtamento e com o uma da realidade.) Já que uma identificação conceitual do drama
e tipológicas entre
prática ântes de qu a lquer escritur a : É cerfi5"qúê"o "teatro ôriginal" e o "d.rama ori­ pós do teatro ofusca todas as prodlltlvas distinções históricas
ra dramática se associ a m e disso ciam
ginal" s ão a penas objeto de tent a tivas de recônst��iiçâo, mas pode-se· determinar os diversos modos como o teatro e a literatu
Com isso, pode-se
antropologicamente que as antigas formas ritúais 'a.o. teatr o representavam pro ­ na modernidade, c abe d�limita r melhor o conceito de dr am a .
indistintamente
cessos co m forte carga afetiva (cáça, fecundidade) em)i.e.se usavam máscaras, chegar ao consenso de que hipóteses como a de Puchs misturam
co m razão perma­
fant,\Sias e· apetrechos e Se combinavam �ança, m(1sica e representaçãó de papéis. 1 as di mensões do agon e do teatro com o dran:ia - aspecto s que
Ainda que essa. pi;áti��-�!�b�� ca pré-escrita, motora e cq�·poral representasse necem diferenciados na conséiência dos criadores, leitores e teóricos d o teatro. O
- . ú.tO fundamental
uma espécie de "texto': fica evidentêãaifêl'enç.r eirt-relaçãó à forma ção do teatro mesmo vale para a observação de Heiner Müller de que o eleme
deira metamor­
literário moderno . O text o e-scrit o - a litera tura - ganhou a qui a posição domi­ de teatro e do dra'rnà�serla a metamorfose, a morte seri a a derra
ial no teatro
nante, qua se it1contestável. ha hier a rquia cultural. Assim, no teatro literário bur­ fose e o t,eafr� sempre teria à ver com a morte simbólica: "ó es�enc
a morfose é gera l;
guês podia-se atenuar a ligação, ainda presente.no teatro de espetáculo barroco, é a metamorfose. O ato de morrer. E o medo dessa última met
d o texto côm a forma de declamaç ão mais musical, co m o gesto dançado e com nelé. �e pode co nfiar, sobre ele se p�de construi r':'
he, Walter Benjamin
a decoração v2sual e arquitetônica suntuosa. Predo minava o texto como oferta de Em seu ensaio sobre as Afinídades eletivas de Goet
sentido: os out(ósrecúrsos: teatra is tinham de estar a·seu serviço, sendo controla­ escreve:
dos com desconfiança diante da instância da razão.
Houve tentativ a s de leva r em cont a a consciência mais precis a da autonomia No dramático, o mlstério é aquele momento em que ele avança do âmblto de
dos elementos nâ_o literários do teatro mediante definições de dram a c�irema­ sua própria linguagem para um outro mais elevado e que lhe.é inacessível. Desse
mente abrangentes . Assim, Georg Fuchs afirma em A revolução dó teat�é-{Die... - ... _modo, nunca se pode expressá-lo em palavras, mas somente na representação; é o
Revolution des 1heaters]: "Em sua forma mais simples, o drama é m ovimento "dramático" em sua acepção mais rig�rosa.1
· rítmico do co rpo no espaç o''. Aqui se atribui ao term o "drama" o sentido de ação
tênita e desse modo, no fundo, de "teatro''. Pa�a Fuchs, to dos os elementos que Nesse seiltido, o "dramáticd' não te m ligaç ão alguma com tudo aquilo que
podem aparecer no teatro de variedades - "dança, acrobacia, malabarismb, corda­ se entende c o m a utilização desse termo na discussão te órica so bre o tea­
bamba, prestidigitaç ão, lut a e boxe, cen as com animals fant a siados, decla ma ção tro. A fq!.m_u la ção de Benjamin sobre aquilo que ele chama de "dramático"
musicada, jogo de máscar as" - sã o igualmente formas simples do drama.2 (Nas à
diz respeito lut a c o rporal anc o rada n o culto, �o agon mudo. Trata-se de
seu so brepujamento (cristão) por melo de uma gra ça, uma redenç ão ou uma
"linguagem" p�ra além ou 110 limite da linguagem humana. Evidencia-se aqui
Oskar Eberle, Cena/ora. Leben, Glauben, Tanz und Theater der Urviilker. Olten., 1954.
_ _,
Apud Peter Jelavlch, "Populãre Theatralik, Massenkultur und Avantgarde: Betrachtungen
vista a Alexander I<:h1gé), Ham­
2

zum Theater der Jahrhundcrtwende': in Herta Schmid e Jurij Stricdter (orgs.), Dmma/1s­ Heiner Müller, Idt bin ein Landvermesse/', Gespiiiche [entre
che und theatra/ische Kommunikatiim. Beitriige zur Oeschichte und 11,eorie des Drt11nas wtd burgo, 1996, p. 95·
1 74, P· 2oo. 77
Walter Benjamin, ln Gesammelte Schriften, v. 1. Frankfurt am Maln, 9
' ... •
TI1eaters. Tliblngen, 1992, p. 257. 4
a relativ.ªJegitimidade objetiva da identificação de teatro e drama, na medida Primeira etapa: dràma puro e drama impuro
em�que a concepção do dr�mático enfatiza sua grande proximidade da panto­
mima e do emudecimento, de �lgo que é apenas emoldurado pela linguagem. O ponto de partida é o predomínio ainda intacto de wn drama cujos fatores
Justamente por isso é proveitoso considerar a acepção do "dramático" em essenciais se manifestam no Jdeal e, em parte, na prática do "drama puro".
Benjamin como algo p_ertinente ao teatro: como rito e cerimônia, "poesia" do Assim, o drama não só é modelo estético como tem implicações sociais e
palco e semiose extralingüfstica ou· no li:mite do lingüístico. Esse conceito epistemológicas essenciais: o significado objetivo do herói, do indivíduo;
do dramático se refere a uma abissal experiência de metamorfose, na qual a possibilidade de re�resentar lingüisticamente, e sobretudo na forma d?
não há nem a estilização da utópica e aterrorizante vertigem de transformação diálo&o cênico, a realidade humana; a relevância .do comportamento do ii:1-
manifestada pelo teatro, nem Õ ordenamento que deve refrear o desvario. Trata­ divíduo na sociedade. Ao lado e antes do drama puro existiam (já na Idad�
se sobretudo de uma realidade da superação - sempre ambígua - da mor te por Média, em Shakespeare, no barroco) consideráveis divergências em relação
meio de sua encenação. Como ressalta Primavesi, "o 'dramático: ao se aferrar, à ... �°.. modelo básico. Elas podem ser compreend1dns grosseiramente como
physis muda, só pode garantir a redenção do mito da culpa e da beleza quando elementos "épicos" do drama, e para os nossos propósitos seria possível
o corpo - como no teatro - permanece subtraído da compreensão''.5 conslderar a totalidade dessas formas cómo "drama impuro". A semântica
fundamental da forma do drama também pode ser evidenciada nos seguin­
O desenvolvimento do teatro no século xx tes aspectos: personificação de personageps. ot� _.figuras alegóricas por atd-.
res; representação de um co11tlito em "colisão dramátlcá":711aior abstração
Perto do final do século xrx, o teatro dramático se encontrava no fim de um na representação do mundo em comparação com o romayce e a epopéia;
longo período de florescimento corno formação discursiva elaborada, o qu� ,f�r­ articulação de conteúdos políticos, morais e religiosos -dn vidn _social por
nava possível exp�rimentar Shakespeare, Racine, Schiller, Lenz, Büchner,.H�bbel, meio da dramatiza.çã;dê sua 'êoHsão; -ui11à �ção que progride me;�10 sob
Ibsen e Strln.dberg, apesar de todas as diferenças, co1:1ó modalidades de uma uJna ampla "desdramatização"; representação �e um mundo ainda que me­
mesma forma de discurso. Nesse contexto, também os 1�odelós'e as manifes­
tações individuais extremamente divergentes se apresentam como variações de ' ---
diante uma·ação real n1ínim�.
. .. - - ·-·· - - ·· -·-
- · - . ... ..
--. .___ _
uma formação discursiva na quàl é essencial a fusã·õ· de drama e teatro. O desen­ Segunda.etapa: crise do drama e a1,Jtonomização. do-teaúo
···.... •.

volvimento dessa formulação discursiva até a formulação pós-dramática deve ser


esboçado aqui de modo muito resumido. O "impulso" para a constituiçã� do dis­ Por volta de 1880, ·�·a.signo
' de um teatro �inda não modi�cad� de modo·
curso pós-ch-amático no teatro pode ser descrito como uma seqüência de etapas revolucionário, ·chega-se à'tr-isé do drama. O que se abala e se esvanece com
de auto-reflexão, decomposição e separação dos elementos do teatro dramático. O essa crise é 4ma série de componentes até então inquestionáveis do drama: a
caminho leva do grande teatro do final do século xrx, pas�ando pela diversidade forma textual do diálogo, carregãdo·de te.nsões e decisões; o sujeito, cuja reali­
das formas teatrais modernas nas vanguardas históricas e pelas neovanguardas dade se exprime essencialmente na fala interpessoal; á àção, que se desenrola
do$ anos 1950 e 60, até o teatro pós-dramático no final do século xx. primordialmente e1n um P.r�sente absoluto. Szondi distingue as conhecidas
.
"tentativas de sÕlução" e "ten\ativas de.salv�çijo" que os autores emp�eenderam
1 ••.
sob a influência de um-ambre".ríté que se transformava rapidamente e de uma
Patrick Prlmavesi, Kommcntar Übersetzw,g 77,eater irr Walter Berrjmitinsfriihererr Scltriften. I
· imagem do homem também ·transformada: dramaturgia do eu, drama estático, 79
Frankfurt am Main, 19981 p. 291: ·,
i

,\.,1
1 .
peça de conversação, drama lírico, exis.tenciali�mo e confinamento etc. Mas seus textos são avaliados de acordo com as expectativas .do teatro dramático..
de modo.yaralelo e análogo à crise do drama cqmo forma textual-aplicada ao Caso" se pergunte simplesmente que "êxito" seus textos tiveram no teatro,
teatro já começa a haver ceticismo quanto� _c�mpatioilidade entre drama só se pode àtestar seu ·evidente fracasso coroo autora teatral. Contudo, nas
e teatro. Assim é qu.e. Pirand�llo estava conven�ido d� irreconclliabilidade de $Ua-s formas textuais Já se anuncia aquela dinâmica que encerra a tradição
teatro e dra111a.6 No primeiro diálogo de A-arte ·do·teatro [1he Art of the 1hea­ do teatro dramático.
tre], E1ward Gordon Craig"afirma que as grandes peças de Shaléespeare não A autonomização do featro não é, coroo multos gostariam de banalizar,
mais deveriaín ser montadas e que apresentá-làs-sç_ria mesmo-perigoso, pois o o resultado da auto-superestimação de diretores (pós-)modernos ávidos por
Ha111let r_epresentado mataria algo da infinita riquéza,�o personagem imagi­ notoriedade. O surgimento do teatro de diretor se encontrava potencial­
nado (com efeito, Craig tentou posteriormente encenar a peça!! declarou que mente inserido na dialética estética do próprio teatro dramático, que em seu
essa teotativa havia c9rifirmado sua tese). O teatro é reconhecido aqui como desenvolvimento como "forma de representação" descobriu cada vez mais
algo que tem talies e pt'emissas-pr.óprlas,., dl$tint���esiho hostis em relação os recursos que lhe eram inerentes a despeito do texto. Ao mesmo tempo, é
às raízes e premissas da lit�ratura dramática. De acordo cõm a conclusão de preciso reconltécef ô ·lado produtivo da desconsideração das possibilidades
Craig, o texto déve ser suprimido do teatro - justamente em razão de suas do teatro. pór parte dos autores do século xx: em boa medida, eles es�reviam
dime1�sões e qualidades poéti'cas. . e continuam a escrever de tal maneira que ainda está por ser inventado o tea­
Desenvolvepi-se novas formas de teatro que só contêm narração e re­ tro �ara seus te:i.1:os. O desafio de descobrir novas potências da arte teatral se
ferência à reaÚdade de um modo distorcido, em rudimentos: a "peça-pai­ tornou uma. dimensão essencial do exercício de escrever para o teatro. A exi­
s�gem" de Ger-ll'.ude Stei�, os textos de Antonio Artaud para seu "teatro gência de Brecht de que os autores não deveriam "sustent_ar"_o ap.arato teatral,
da crueldade", o teatro da "forma purà' de Witkiewicz. Essas modalidades mas trl)nsformá-lo, foi cumprida muito além do que Brecbt pretendia. Heiner
textuais "desconstruidas" antecipam literarlament� elementos da estética Müller pode declarar simplesmente que um texto teatral só é bom quando
pós-dramátlca do teatro. Foi só com Robert Wilson que os textos de Ger­ não é de modo algum viável para o teatro existente.
trude Stein encontraram uma estética teatral coerente (ele declarnl!_q�e_ a �o curso da revolução geral das artes na virada do século, a crise do
leitura de Stein lhe d.�u. a, convicção de que podia fazer teatro.) O teatr�-- ·· drama ocorreu paralelamente à crise da forma discursiva do próprio teatro.
de Artaud permaneceu uma visão, assim como o de Witkiewicz, que acena Com a rejeição das formas teatrais tradicionais, desenvolveu-se um novo tipo
para o teatro do absurdo. O diretor francês Antoine Vitez, como encenador de autonomia do teatro como prática artística independente. Foi somente a
de textos clássicos com recursos teatrais econômicos e funcionais, sabia o partir dessa ruptura que o teatro abandonou a orientação incon�estável na es­
que estava dizendo quando afirmou que desde o final do século XIX todas as colha de seus recursos, de acordo com as exigências do drama a ser montado.
grandes obras escritas para o teatro eram marcadas pela "total indiferença" Essa orl�taçãÕ havia imposto não só um estreitamento, mas também uma
quanto aos problemas suscitados por sua textura para a realização cênica.7 certa incontestabilidade dos critérios técnicos, uma lógica e uma normativi­
Criou-se uma cisão entre teatro e texto. Gertrude Stein foi e continua sendo dade no emprego dos recursos teatrais a serviço do drama. Nesse sentido, a
considerada impossível de representar, o que em geral se verifica quando liberdade recé�-conquistada foi acompanhada por uma perda, que em seu
aspecto produtivo pode ser descrita como a ·entrada do teatro na é.p9cri''éÍa
6 Cf. Betn3rd Dort, "Une écriture de la représentatlon� Thétltre e11 E11rope, o. 10, 1986, pp. 18-21. experimentação. Desde que o teatro tomou �onsciência de que Os potenciais .
80 7 Antoine Vitcz, in 1hii,tre en Europe, n. 13, 1987, p. 9. de expressão artística nele latentes eram passíveis de ser realizados ind�pen- 81
dentemente do texto, foi lançado no.difícil e arriscado campo da liberdade de e abstração), os elementos isolados que remetiam a si mesmos puderam ga"
expérimentação contínua, a_ssim como as outras formas de arte. nhar aceleração e �ngendrar novas formulações. Da decomposição do todo de
A medida que a "teatralização" do teatro levava à sua libertação da sub­ um gênero em seus elementos isolados surgem as novas linguagens (armais.
missão ao drama, esse desenvolvimento foi acelerado por uma outra ruptura Quando se separam os aspectos antes "colados" da linguagem e do corpo no
na história das mídias: o surgimento do cinema. O domínio exclusivo do teatro, quando a interpretação do. papel e o ato de sé dirigir a� público são
teatro até então - a representação animada de pessoas em ação - foi con­ tratados como realidades autônomas, quando o espaço sonoro e o espaço da
quistado e superado pela nova matriz de representação técnica do cinema. atuação são separados, _abrem-se novas possibilidades de representação a par
Ao mesmo tempo que a teatralidade passa a ser concebida como dimensão tir da autonomização das camadas individuais.
-:

artfatica independente do texto dramático, começa-se a reconhecer, mediante A concentração no teatral em contrapo �ição à representação literária, foto­
0 contraste com a "imagem movimento" (Deleuze) produzida tecnicamente, o
gráfica ou cinematográfica do mundo pode ser de ignada como "reteatraliza-
fator do processo vivo (à diferença dos fenômenos reproduzidos ou reproqu­ �
.·· -çã,o'�_Q_q�� assinalá os movimentos das vanguardas históricas. Os est�dos
tíveis) como diferencial específico do teatro. Essa "redescoberta" do potencial de
Erika Fischer-Lichte deram destaque central a esse conceito primeiramente
de representação próprio do teatro e apenas do teatro traz à tona a questão, aplicado por Fuchs, enfatizando, entre outras coisas, sua conexão com a
ora em diante constitutiva e incontornável, de saber o que o teatro c�ntém re­
cepção produtiva de tradições não-teatrais tanto européias quanto extra-e
de inconfundível e insubstituível em comparação,coin outras mídi.is.'De fato, uro­
péias pelas vanguardas históricas. 8 A intenção .n.ã� era apenas um retorno
esse' questionamento acompanha o teatro desde então, ·e isso não só por causa às possibilidades puran:ierite estéticas do teatral. Não s� frãtavà só de
de sua rivalidade com outras artes. Evidencia-se aí uma das duas lógicas se­ uma
ret�atralização imanente ao teatro, mas também de uma abertura do âmbito
gundo as quais se dá o surgimento de novas formas das artes performa �vâs: teatral a outras pr�ticas: a formas culturais, políticas, mágicas,-filosóficªs
: etc.;
a lógica segundo a qual a aparição de um novo meio de configuraçã?- dás for­ ·
à reunião, à festa e a� �: itu;i� Des;e.. ��do;-devem ser evitadas as reduçõ
mas e de represe;1tação do mundo leva quase que automaticam_e�te os meios es que
_ tendem a uma estetização das vanguardas, o que. poderia ser sugerid
existentes - que de súbito passa;n a ser tachados d/-antigos--1i se perguntar o pelo
conceito da "reteatralíza,�f incorporado à modernidade clássica. O
desejo
0 que têm de específico como arte e,-portanto, o que deve ser privilegiado

de modo consciente após o s"urgin1ento de técnicas mais modernas. Sob a


das vanguardas de superar a� f;��teiras
entre ii°vida··e·-a-ar-t-e. (1J.ma .tentativa
cujo valor. eyidentemente não é aquilatado pelo seu f a�a-sso) foi també
1n um
influência de novos meios, os antigos se tornam auto-reflexivos (foi o que motivo da ret;�tràliz_ação.
,:

aconteceu com a pintura após o advento da fotografia, com o teatro após o Com a. con tinuid;êl.e-�esse desenvolvimento, constituiu-se aquilo
advento do cinema e com este após o advento da técnica da televisão e do que
se designa -"coni intuito d��cr.itÍvo, laudatório ou depreciativo - como
vídeo). Mesmo quando essa mudança s6 ofusca todos os outros aspectos na "tea­
tro de diretor''. A autonomização do teatro, e com ela a crescente impo{t
primeira fase da reação, a auto-reflexão pertnanece a partir de então como âncià ,·
da díreção, é certamente irrevogável, l'or mais que haja uma legítim
um potencial duradouro e uma necessi4ade que é forçada pela coexistência e a ihdispo­
sição contra as cabeças medfo,cres do teatro, qui confinam têxtos grandi
pela concorrência das artes . · osos
, em seu horizonte artístico e _expériencial bastante limitado, deve-s
A outra regra do desenvolvimento artístico parece ser a de que a dinâmica 1
e... enfatizar
provém dã desagi·egação. Quando, nas artes plásticas, a dimensão da repre­ 1
8 Ver, por exemplo, Erika··Fische;.iichte The Slipw and lhe
82 sentação foi dissociada da experiência da cor e da forma � omo tais (fotografia : Gaze of Theatre: An European
Perspeclive. Iowa, 1997, pp. i1 ss, i15 ss.
83
\'
..._\--,I
que o alarido
'
em torno da arbitrariedade d�s d&etores corresponde, - • .
na maio- Terceira etapa: neovanguarda
1
ria dos casos, à compreensão tradicional do texto tea,tr-al, no sentido do sé-
culo XIX, eiou à._r.���_1sa de se confrontar coz'n:-exper�ên�ias teatrais incomuns. O estouro da neovanguarda tem grande importância pata a genealogia do tea- ·.
Em todo caso, a distinção do teatro de dire.!_oi:'em.relação a um teatro de ator tro pós-dramático. Na Alemanha Ocidental, a assim chamada "fase de recons­
ou de _autor diz respeito ao nosso tema - a distinção entre teatro dramático tituição" havia favorecido uma questionável limitação da cultura e do teatro a
e pós-dramático - apenas de um modo secundjrio: o teati-9 de diretor é um um "humanismo" apolítico. Por um lado, durante a prosperidade econômica
.
pressuposto para o dispositivo p6s-dramáti�o (m�smo que a direção seja feita dos anos 1950 foram construídos nada menos que cem novos teatros; por outro
coletivari1ente), mas o teatro dramático também se aprese�ta
,, lado, a cen'a era dominada pelo conservadorismo de [Gustav) Gründgens e pela
··- em- grande me-
didà cqmo tea.tro de diretor. .... ... tentativa de esquecer o passa9? político e refletir sobre a "cultura". A princípio
Quanto ·à' nova insistência ,n9.y_�l.9r próprio do teatro por volta da virada as tentativas experimentais ainda parech;m tlmid.as, enquanto nos Estados Uni­
do século, _deve-se ainda considerar ��Ütrõ êõntexto: justamente o teatro dos caminhos inte_iramente novos eram trilhados no Black Mountain College e
,/ ·-.. ..
"de entretenimento e o teatro de espetáculo do final do século XIX haviam John Cage, �1erce Cunn.ingham e Allan Kaprow entravam em cena.
fortalecido a compreensão, pqr._p�rte das pessoas de teatro mais exigentes, Noyna1 da década de _1950 começa o estoyro internacional. É dada a l�r­
de qt� exist� u� conflito entre o textÓ e o·teatrÕ-rotineiro. A restituição da gad,-fí.ão s6 para a vanguarda como também para a cultura pop, que envolverá
complexidade e da verdade para o· teatro foi uma motivação central dôs es- todos os campos da vida privada e pública. Com o rock ( Chuck Berry, Elvis·
forços fanto-de..Cra.ig quanto de Tchekhov e Stani$lávski, de Claudel e Copeau. Presley), pela primeira vez na hist6tia é pro<lLtzida uma música que se des­
Ainda que o teatro esti�esse se afastando a passos largos da representação tina expressa e exclusivamente aos jovens. Tem infci9 a marcha vitoriosa da
tradicional do drama, e ainda que alguns defe�sores da autonomia e da "re­ cultura: jôvem. Na Alema�ha, que t�nto nas artes plásticas quanto na cultura
teatralizaçãd' do teatro chegassem a exigir que o texto fosse banido, o teatro cotidiana seguia docilmente as influências norte-americanas, passou a haver
radical da época não visava simplesmente a ln.discriminada desvalorização no campo do teatro uma recepção empolgada das peças d�'Beckett, Ioneséo,
do texto, mas sua sal�af.�O: no "teatro de diretor " que desp,ontava,-õ que· ..em -- _ .. __ Sartr� e Camus c_omo reação ao teatro cultural enrijecido. A confluência da
muitos casos se buscava era justamente arrancar os textos da convenção e filosofia e do teatro do absurdo coh1 o existencialismo encontrou um eco tão
preservá-los dos ingredientes aleatórios, fúteis ou destrutivos da culináriá de forte quanto o da descoberta tardia, na Alemanha, de desenvolvimentos artJs­
efeitos teatrais. 9 Hoje em dia, quetn clama pela salvação do teatro textual dos ticos co�o o surrealismo e ô expressionismo abstrato. Teve início a recepção
crimes cometidos pelos diretores deveria se recordar desse contexto. O maior de Kafka; a música serial e a arte informal ganharam·atenção. Enquanto na
perigo que ameaça a tradição do texto escrito vem da convenção antiqt1ada, e Alemanha..O;j�ntal a estética de Brecht - e�pecialmente depois das encenações
não das formas radicais de lidar com ele. triunfais do Berliner Ensemble - parecia dar o tom (na realidade cotidiana,
porém, ela era posta sob suspeita e combatida em nome de um assim cha­
mado "realismo socialista"), desenvolveu-se no mundo todo e especialmente
na Alemanha Ocidental, por volta de 1965, um novel teatro de provocação e·de
protesto. Foram emblemáticas para a revolta ·teatral as montagens q,.e--Má;;t/
Sade, de Peter Weiss, por Ko11rad Swinarski em Berlim e por Peter Brook e1il
84 9 Cf. Jean-Ja ques Roubine, T11élltre et mlse en scene 1880-198ô. Pâris, �9-80, pp. 54 ss. L011dres [ambas em 1964].
Surgiu·hos anos 1960, culminando no movimento de 68, um novo espírito lumiere, au delà des interpretations et d'une cau;alité arbitraire" [em sua ver­
de-experimentação em to�a� a_s artes. Em 1963 foi fundado em Frankfurt o dadeira luz, para além das interpretações e de uma causalidade arbitrária].'º
Experlm!!nta. O llôvo "estilo de Bremen" deu o que fal11r: sob a direção de Mesmo o teatro da rigorosa crítica do sentido se compreendia como esboço
Kurt Hübner, surgiu um jovem teatro de revolta política e formal, marcado de um mundo, tendo ô autor como seu criador. Mesmo como �·epresentação
por Peter Zadek, Wilfried Minks e Peter Stein: Em 1969 esse teatro vai para do absurdo, permanecia teatro à imagem do mundo. E o teatro do absurdo
Berlim e durante décadas faz ali tun tearfo com repercussão internacional. assim como o novo teatro político de provocação, permanecia comprometido'
Nos Estados Unidos encontrava-se em atividade uma vanguarda criativa com aquela hierarquia dó teatro dramático que acaba poi; subordinar os re­
multifo;·me - nas àrtes plásticas, no teatro, na dança, no cinema, na fotografia cursos teatrais ao texto. Permanece Intacto o característico encadeamento do.
e na literatura - que se tornou uma comunidade artística na qual a atitude de teatro dramático de predomtnância do texto, confllto de personagens, totali�­
ultrapassar as fronteiras entre as artes constituía uma regra, de modo que o dade de uma ''ação" por mais grotesca que ela seja e .figuração do mundo.
teatro convencional dava a impressão de estar coberto de poeira. A inovadqra __ ··- ---- �_!�� se faz uma revisão do teatro do absu1�do �a descrição de Esslin,
-
"arte ambiental" (já antecipada pelas con_struções Merz de Kurt Schwitters) se é possível sentir-se por um momento projetado no teatro pós-dramático dos
aproximava da obrâ da cena teatral ao conceber a integração da presença real anos 1980: não há "nenhuma ação ou intriga qigna de nota"; as peças "nor­
do observador (Rauschenberg). Os empacotamentos de Christo inter�giam malmente não apresei1tam qüaisquer figuras que se pudesse chamar de perso­
como "obra" com o .grande fluxo de visitantes, ,A àction painting Já é uma nagens': aparentandp ser ante� "algo como mariom,tes"; com freqüência não
"cerimônia de pintura" com ressonâncias em situações teatrais, !1ª medida em têm "nem começo nem fim"; em vez de espelhos da realidadê';" ô:iais parecem
que a obra, emb Qra exista como objeto por si mesma após a ação artística "i �agen � �sp�culares de sonhos e temores'; sendo muitas vez � constituídas
enfatizada no que tem de próprio, liga-se de modo ideal à sua "cena" de sµrgi­ nao de replicas fluentes e diálogos burilados'; mas de "balbueios sem coe­
mento. Yves Klein apresentou como diretor suas "antropometrias" �9m.Ó utn rência''. J I É O teatro' de R.Ôbert WilsÕ� que se"descreve aqui? Uma vez que algo
espetáculo com �úsica diante dos espectadores. No_�appening, �. oõretudo no semelh �nte à "falta de sentido" pode com efeito sei; constatado no teatro pós­
caso do acionismo vienense, a ação ganha os traços de w'ii-ritµàl. Em 1969 Ri­ dramático, há uma ten�p,cj� -�-�?�? ªr á �lo com teatro do absurdo, que Já
_ __
chard Schechner encenou Dioniso 69 [Dionysius 69], em que os espectadores no nome comporta a--recusa de sentido. A àfrnosferã da-·qual--vive q _teatro do
eram convidados a entrar em ·contato co rporal com os atores. absurdo é fund��e!1�ada em uma visão ,de mundo -em t�rmos pol!ti'�;;: filo­
_
Nos anos 1960 o "teatro do absurdo" também está sob o foco do inte­ sóficos e lite'tários-:-a expe.riência da barbárie no século xx, o potenciá.l f ün d�
resse. Ele deixa para trás a compreensibilidade imediata do curso da ação, his�ória tornado real (B:ii::o_��1ima �, �s burocracias sem sentido, a �eslgnação
.
mas em meio à dissolução do sentido se mantém asso,mbrosamente aferrado pohttca. O retorho existenciàlista ao indivíduo e o teatro do absurdo se en­
às unidades clássicas do drama. Mas o que definitivamente ainda liga lonesco, c �nt �am Intimamente ligadoq. Com Frisch, Dürrenmatt e outros, 0 desespero·
Adamov e outros autores desse teatro qualificado como "absurdo" ou "poético" com1co se converte em um esta�ó de espírito fundamental. A fórmula "só nos
à tradição clássica é a ·predominância do discurso. P.ara Ionesco, as palavras
se tornam "écorces sonares démunies de sens" [cascas sonoras desprovidas de 10 Eugene lonesco, Note� et contr�no/es. Paris, 1962, p. 159. . Ver também
. Gu),:M.1chau d1
sentido), mas é justamente por isso que peças como A cantora careca [La "!onesco: de la dérision à l'antJ-moJ1de"
· in Jacques Jacg· uot (org). , Le ,,, " remoderne,
•n.4•1
. . _ . •...., v, 11.
Cantratic; chauve] de�em por fim declarar uma verdade elo "mundo" eip geral Paris, 1973, PP· 37-43, esp. p;-39.- · .
sob uma nova luz - anunciar a realidade, escreve Ionesço, "dans sa véritable 11 Martin Esslin, Absurdes 'Iheaf'er. Frankfurt am M:ln, 1967, p. 12•
86

..,\1
I . •
resta a comédia" expressa a perda da in�erprçtação trágica do mundo como linguagem, com o mesmo peso do texto e podendo ser sistematicâmen�!:! pen-.
totalidade, No cinema, Dr. Fan�ástico, de StanJey Kubrick, ao lad_o dos- filmes sados também sem ele. Por isso, nãó se pode falar de uma "continuidade" do
existenciallstas franceses, constitui a traduçãp visceral'dessa experiência. No teatro absurdo e do teatro épico no novo teatro; 14 deve-se antes indicar uma
entànto, os difer-entes context,o� de visão dê muné:l_ o conferem sighificados ruptura, já que tanto o:téatro do absurdo quanto o épico, por vias diferentes,
inteiramente diferentes aos procedimentos compartilhados pelo teatro do se atêm ao primado da representação de um �osmos textual fictício, ao passo
· absurdo e pelo teatro pós-dramático: descontinuidade, colagem e montagem, que o teatro pós-dram�tico não mais o faz.
dissolução da narração, privação da fala .e susP.ensão do· sentido. Se Esslin, Também o gênero do teatro documentário, desenvolvido_ nos anos 1960,
com tod� razão, associa os elementos formais do.â:bs.�rdo aos temas da visão se afasta um pouco da tradição do teatro dramático. Cenas de procedllnen·.
.... . ,,
de mundo e.destaca e�pecialmente "o sentimento de angústia metafísica em.
face do Cc!ráter absurdo da existêncla humana''.12 para o teatro pós-dramático
tos judiciais como audições e declarações de testemunhas tomam o lugar da
representação dramática dos próprios acontecimentos. Seria possível obje­
Õ
-·--
dos anos 1980·� 9 õ' qiine··apresanta.na.dis$9lução\ie certezas universais tar que cenas de tribunal e de interrogatório de testemunhas também·cons­
não é mais nenhum proJ?lema metafísico de angústi�, mas Wil dado cultural tituem um repurso--do-teatro tradicional, usado para .criar tensão dratnática..
previamente estabelecido. Isso é verçláde para muitós dramas mas não se aplica a esse caso, pois o teatro
O_ teatro do.absurdo é correspondente ao.drama.lírico, q..ue faz parte da genera­ documentário depende muito pouco do desfecho dos interrogatórios ou do
logia (nã� ·d9. tipo) do teatro pós-dramático. O título da segunda coletânea de julg,mento. O assunto de que se trata (culpa · pol1tica ou moral na pesquisa
peças de Jean Tardieu, Poemas para brincar [Poemes à jouer], de 1960, indica a atómica, guerra do Vietnã, imperialismo, responsabilidade pelos horro1es
direção. Um11·p-eça como..Çol6quío-sin.fo11ieta [ Conversation-Sinfonietta] constrói dos campos de concentração) já foi decidido há muito tempo, histórica e po­
uma compósição musical a partir de fragmentos da linguagem cotidiafla. Em liticamente, fora do teatro. Dêsse modo, a representação documentária se en­
O ABC da nossa vida [fABC de notré vie] - escrita enl 1958 e montada pela pri­ contra diante de uma dificuldade similar àquela de qualquer drama histórico,
meira vez em 1959 (com música de Antôn Webern) - encontra-se a designação que precisa teiltar o impossível: reapresentar um acontecimento já conhecido
de gênero "poema para o palco'; com solista e coro. Há ainda uma ._P-eÇ,? sem historicamente como algo incerto, que só se decide no decorrer do procedi­
personagem - Voz sem -ninguém [ Voix sans personne] - na· qual apenas resso;m. me�t� dramático. A tensão não está colocada no curso dos acontecin1entós;
vozes num espaço vazio. Em comparação com o teatro pós-dramático, o "teatro antes, é freqüentemente pensada e objetivada de n'l.odo ético-moral - não se
poético': que Esslin queria distinguir do teatro do absurdo, 13 está muito mais pró­ trata de mundo dramático narrado como mundo "comentado''. 15 Não obstante,
ximo deste. Trata-se de um teatro literário, nas tradições do teatro dramático, de autores menos coerentes como Rolf Hochhuth não escaparam da tentação
modo que um fosso o separa do teatro pós-dramático.
Façamos um resumo: o teatro do absurdo, assim como o de Brecht, per­
----
de reconverter o material documentário em moeda dramática, o que à época
provocou a crítica mordaz de Adorno.
tence à tradição teatral dramática; alguns de seus textos ultrapassam as fron­ S questionável se a tão evocada pretensão política do teatro documentário
teir;ls da lógica dramática e narrativa, mas o passo para o teatro pós-dra­ poderia ter sido exercida se ele assimilasse formalmente a norma dramática.
mático só é dado quandO' os recursos teatrais se encontram para além da
�/

14 Gerda Poschmann, Der nicht mehr dramatische Theatertext. J\ktuelle Biihnenst(id<Ú;d ihre
12. Ibid., p. 14. dramatische J\nalyse. Tübingen, 1997, p. 183.
88 13 lb!d., pp. 15-16. 15 Cf. Harald Welnrich, Tempus. Besproche11e und erzêihlte Welt. Stuttgart, 1971.
Peter Id�ri.afirmou em 1980 que O vigário (Der Stellvertreter), de Hochhuth, faladas" de Peter Handke. O teatro se reduplica, c�ta s-eu próprio discurso.
permanecia "despreocupado" demais "com sua própria forma dramática" e A referência ao real só ocorre como "enunciação" indireta: somente quando
por isso não era realmente um teatro político, ao passo que a célebre mon­ há um desvio de rota em relação aos meandros internos dos signos teatrais, à
tagem de Tasso por Peter Stein provavelmente era. 16 Ficou evidente que ao sua qualidade radicalmente auto-referente, A problematização da ''realidade"
se lidar com os clássicos no teatro era cad;i vez mais "o caráter dramático da como realidade de signos teatrais se torna uma metáfora para o esvaziamento
matéria" que se traduzia "como drama do esfacelamento de todos os recursos das figuras de linguagem, que se dopram sobre si mesmas. Quando os signos
tradicionais" (a metáfora do drama talv�z não seja muito adequada para a não mais podem ser lidos como referência a um determinado significado, o
perda dos recursos de representação tradicionais). O autêntico conflito da público fica perplexo diante da alternativa de pensar sobre o nada em face
matéria do·drama havia sido transposto para "o modo de lidar com ele'� 17 dessa ausência ou ler as próprias formas, os jogos de linguagem e os atores .
Essa constatação diz respeito à aguda oposição entre o tradicionalismo dra­ em seu modo de ser aqui e agora. De certa forma, um texto pensado como ·
mático e aos esboços de uma prática teatral distinta no Tasso de Stein. (Por "afronta ao público': na medida em que ex negativo faz de todos os critérios
certó, ó próprló Stein não conduziu essa fratura ou rompimento do teatro -• .. · · -i:10.. teatrô..dramático seu tema, ainda permanece preso a essa tradiçãó "na
mediante uma decisão consciente. O que ele logo desenvolveu, consideravel­ qualidade de metadrama ou metateatro': como diz Pfister (com característica
mente apoiado por Dieter Sturm, foi a estética do Schaubi.lhne, que deve ser indeclsão). 1 ª Contudo, ao mesmo tempo ele aponta para o futuro do teatro
chamada de neoclássica e que, com razão, foi p5.>r vezes louvada como uma após o drama,
das realizações mais brilhantes do teatro dramático na época em que ele era As mencionadas modalids:dcs do teatro ncovanguardista sacrificam deter­

posto em questão.) O que aponta para o futuro no teatro documentário não é minadas partes do modo cie representação dramático, mas'nõ "final mantêm
tanto a vontade de interferir politicamente, nem muito menos sua dram�ur­ intacta a conexão decisiva que institui a-unidade entre o texto I
de uma ação>
gla tradicional, mas sim um traço que foi alvo de crítica e rejeição. Ele /de'fato de um relato ou de 11IP PJ'9!=edim.er:ito e a_ r�presentação teatral orientada por
"dramatiza" documentos, mas ao encenar a audiência, o relato e o julgamento ele. Essa conexão é rompida no teatro pós;dràmático das últimas décadas.
também aponta uma clara tendência para formas similares.� �ràtórios, para o Intermedialidade, civilização das imagens, ceticismo quanto às grandes teo­
ritual. Essa tendência aparece de mo<!o contundente em A instrução [Die Er­ rias e metanarrativas acabam q:Hn � �!erarquia que havia assegurado não s6 a
mittlungJ; de Peter Weiss, que-não por acaso resultou de sua lida com Dante e subordinação dos recursos teatrais ao t�rto, cõiiió 'fãmbém-,·-dessa maneira
.. ... ,
a sua coer�ncia_,mútua. Já não sé"ttata'apenas·da afümàção e do rec°'anheci­
,/'

do plano de escrever uma espécie de "Inferno''. O horror dos campos de con­


centração é representado em canções que elevam a matéria da enunciação à mento da coíltrlbul·vã!J....._Própria da encenação como 'projeto a�'tlstico-tentral.
dimensão de uma efetiva recitação litúrgica: Ocorre que as relações COJ?Sli�tivas do teatro dramático se invertem, prl-. ·
Pode-se diier que nos textos excepcionais daquelés anos o modelo de co­ meiro de modo velado e depoIS ae modo evidente: não mais está em primeiro
municação dramático é questionado de modo mais claro do que na prática plano a qué�tão de saber se e como o t�atro "corresponde" adequadamente ao
da direção. Assim, pertencem à genealogia do teãtro pós-dramático as "peças texto que tudo irradia;° antes, c;âb-� aos text-0s r.esponde� se� como podem ser
um mater�al apropri�do para. a',�ealização de um projet�-t�àtral. O teatro já
não aspira à t,otalldáde de urpa composiçã9 estética feita de palavr.!3, sentido,
16 Peter Iden, "Am Endc der Neulgkciten. Am Anfang_ des Neuen?". 11,eater 1980 [anuário),
p.126,
90 17 Ibld., p. u7.
18 Manfred Pfister, DdJ·Drân,á: M��lque; '1980, p.j330,
. . 91
�--.
, \
. .... .. ...

I
sóm, gesto etc., que se oferece à percepç�9- como construção integral; antes,
assun1e �eu caráter de frag01e.ó.t ?··t4���ciali�ade. Ele abd_�c�·:'½',cr-itério da
unidade e da síntese, há .tanto tempo iil.c9f�Stável; �:se dispõe ·à"õportuni­
dade (óu.ao p�i;:i_go� de confiar em estfmul?s !soli1os, ped,aços e microes­
truturas de textos para se tornar" um__ l?-.QYÓ. tipo dê_ prática. Desse rt1otlo, ele
,descobre uffia inovada presellça do perfbrmer à pa.rtir de uma- tn4tação do
actor e estabelece a paisagem téattal multi_for-.t4e, para além. dás for111as cen-
tralizadas do drama. · · '-<,,., ·
. 'uma breve retrospectivà sobre as vangua_rda� lilstôricas
. . ..
·;- .... ____
'-• - ....... . " .._ .....
. ··- ·-· �- •. ··---
'
.,- . --- ..

-·-- Um,/contextualização das formas de tea_tro mais recentes tem de fazer refe­
( rência às vanguardas históricás, já que foi com elàs que tevé.início o desinoro•
'--... .ilámento da dramaturgia clássica traâlcional, pautada pelo .prin_dpib' das u11i­
-.... .... dades. Evidentemente, n�o se•trata de coinplem.eütar a àbundant� literatura.
sobre éssa época, nem mesrt10 de estabelecer o iíwentárió das diversas influêh­
cias das vanguardas históricas sobre o teatro pós-<lràhiátic;_ó, n1as àpenas de
destacár algumas posições e desenvolvimentos que são de espedal illteresse à
-···------ ,. ---·· luzcl.o teatro pós-dramático.

.Drama lírico, simbolismo

Em sua análise do teatro que ele c)lama de "formalista'\ Micháel Klrby pro­
põe que se-fa'fa uma distinção enti;e um modelo "antagonista" e um modelo
"hermético" da vang�arda, Ele nota, coin razão, que é iló mínimo unilateral
a noção bastante difundida de que ô teatro de Vài1guarda teye início coli1 o
escândalo teatral em torno de Ubu Rei [Ubu Roi], de Alfred Jãrry, na Pàris de
1896. Apenàs a linha ''antagonista" (naquele tempo a palavra "tnérdi n,9.,..mi­
ció da peça ainda conseguia "épater /e bourg eois"I) tem início aqui,-étonduz,
92 passando pelo futurismo, pelo dadaísmo e pelo surrealismo, à nova estética 93
da provocação, Paralelamente, mas wn pouco antes, começou com o simbo­ reclamam, a única coisa importante, ao passo que para o poeta - bem enten­
lismo o que Kirby chama de vanguãrda "hermética": dido: também para o poeta do teatro - constituem superficiais concessões1 ao
.. ··
desejo do público, que aspira à representação daquilo que considera como a
Avant-garde theatre began - before thatjirst performance o/Ubu Rol - at least with realidade reconhedvel. O mesmo vale também, como Maeterlinck afirma ex­
the Symbolists. Symbolist aesthetics demonstrate a turning inward, away from the pressamente, para aquilo que é chamado de "estudos dos caracteres". Nessas
bourgeois world and its standards, to_ a mor_� personal, priva/e, and_ extraordinary teses, renuncia-se a toda a estrutura de tensão, drama, ação e imitação. Como
ivorld. Symbolisl performance was dane in small theatres. Jt was detached, distant, atesta a e;-._-pressão "drama estático': é abandonada a idéia clássica do tempo
and static, lnvolving líttle physical energy. The lightning was ojten dim. The actors linear e progressivo em favor d� �m "tempo-imagem" bidimensional, de um
often worked behind scrims [... ]. The àrt was selfcontained, isolated, complete in tempo-espaço.
ilse/f. We can ca/1 this lhe 'hermetic' model of avant-garde performance. 1

O teatro dos simbolistas constitui um passo ilo caminho para o teatro pós­
·-·-
--- - - Forma estática, espíritos
dramático em razão do seu caráter estático e da sua tendência à forma do Sabe-se que naquela época o teatro asiático se tornou uma fonte de inspira­
monólogo. Mallarmé propõe uma concepção centrada em Hamlet, segundo ção para o teatro praticado na Europa. Paul Claudel formula com ent?siasmo
a qual essa peça só conhece propriamente um único herói, relegando todos sua diferença em relação ao drama: "Le drame, ást que/que chose qui arrive,
os outros personagens a "comparsas". Daí sai ú.âia linha qµe leva ao modo /e nô, cest quelq'un qui arriv( (O drama é aÍgo que s0brevé1��!_o_nô é alguém .
como Klaus Michael Grüber encenou Fausto ou como Robert Wilson ence­ que sobrevém]'? Essa formulação sugere a oposição fundamentàl entre tea­
nou Hamlet: um teatro neolírico que entende as cenas como lugar de u13-1a tro dramático e pós-dramático: aparição ern lugar de desdobran'lento de ação,
"escritura'; em que todos os componentes do teatro se tornam caracterti de atuação em lugar de representação. Para.Cla_udel o nô era umâ espécie de
um "texto" poético. É significativa a observação de Maeterlinck: "A peç·à de tea- "drama monopessoal, apresentando a mesma estrutura do sonho''.• Na busca
tro deve ser antes de tudo um poerria''. Em seguida ele t:sc;gi�e.5-e que Q poeta, de um "novo cerimo.Q.ial teatral" (Mallarmé), encortrou-se entre os japo­
só por causa das insistentes pressões daquelas "circunstâncias" que tomam neses um t�atro total com"um· horizonte..metafísico. Assim como a ode no
..... .. - ···- .
nossas "convenções" pela realidade, trapaceia um. pouco e Introduz "aqui e ali" simbolismo de Mallarmé, também a missa católica podià ·servir de.m_odelo
indlcíos da vída cotidiana. Mas esses temas que para o poeta de Maeterlinck para o teatro. É·evjdente que o carátér cerimonial dô'teati:o asiático ofereceu
não passam de um meio-termo quase _sempre são para as pessoa�, conforme um incentivo para tii'fs. :-(isões. Conquanto ele não tenha quase nenhuma li-
'
gação com o !'drama" realista. europeu, há um modo de percepção ritual que
Michael Klrby, A Forma/is/ T11eatre. Pensilvânia, 1987, pp. 99-1oó. {"O teatro de vanguarda permite traçar Ltma linha qu; vai do teatro asiático até Wilson através. d�
começou - antes daquela primeira representaç�o de Ubu Rol - no mínimo com os sim­ Maeterlinck e Mallarmé.
bolistas. A estética simbolista demonstra uma virada para o interior, distanciando-se do
mundo burguês e dos seus padrões para um mundo mais pessoal, privado e extraordiná­
-- ·-·-
'
rio. A rep;escntaçiio simbo!Jsta tinha lugar em pequenos teatros. Era Indiferente, distante 2 Peter.Szondi, Das lyris�i,e Dram_a. Fr�nkfurt am Main, 1975, p, 360.
e estática, envolvendo pouca eriergià física. A Iluminação costumava ser fraca. Os atores
costumavam atuar-po_r trás _de reposteiros. A arte era reservada, isolada, completa em si
3
pp. 26-30.
\ -
Paul Claudél� apud Mor!akl Witanabe, "Quelqu'un nrrlve''. 1héâtre en Europe,' n. 13, 1987,
.
94 mesma. Podemos chamar isso de ti1odclo 'hermético' da representação de vanguarda,"! Ibid., p.30. 95
, 4
I
Na concentração. em torn_o do ritual ma11ifesta-se uma experiência que Poesia cênica
dificfünente pode ser designada sem a antiR_uada palavra !\féstino". Em
Maeterlinck o tema se torna explícito e e:en.tral. Contrapondo-se à causali­ Resta porém uma diferença essencial entre o novo teatro e a concepção tea­
dade trivial da experiência cotidiana, o t�atro de�é exprimir a entréga dos tral simbollsta: esta, por oposição ao teatro de espetáculo, predominante à
·-.
homens ao destino de acordo com uma letque permanece obscura. Seria um época, visava a predóminância do discurso poétíco no palco. No ent�nto, não
· erro refutar tâis concepções, decerto problemáticas, de um p·onto de vista era maís o texto para �s papéis que se considerava como a essência do texto
crítico-ideológico. Ainda que mais tarde, comWjlson, ó chamado "teatro das teatral - como ocorria ho teatro drafnático -, e sim o texto cômo poesia, que
imagens'' tenha engendrado uma peculiar aura d�àest!no, na medida em que pot sua vez deveria corresponder à própria "poesia" dt> teatro. 1àmbém Mae­
as figuras parecem es�ar à mercê de uma magia misteridsa,.essa representa­

-
terlinck {assim como Crâ.ig) afirmava que não era possível montar as grandes
ção 'teatral não pode se� id�ntificad� co�1-uma tese esclarecida, uma ideologia peças de Shakespeare, porqü� elas não eram de modo algum "cênicas" e sua
-
do destino. N� ·drãniàturgTà ·"estátid'-de.Maet!;!rlinck''trata-se
- da comunica- encenação seria perigosa.' Com isso, tornou-se cohcebível não só a dissoh.!,ção
ção de uma experíência de estar entregue, que nó teatro nô se dá por meio da tradicion�l fusão de texto e palco, como tambén:1 a perspectiva de uma nova
do recolhimento da vida humana no mundo dos espíritos que retornam. Não relação e�tre texto e palco, A medida que o texto teatral passou a ter Q valor
é ne;1hum acaso que ôs boiiécos, -as marionetes,..os autômatos manipulados de UJ11á grandeza poética independente e que a "poesia" do palco, liberada do
estejam situ�dos no âmago da concepção teatral tanto de Wilson quanto de text.6, passou a ser pensada como uma poesia atmosférica própria, do espaço
Maeterlinck. Em Ui:n de seus primeiros textos, "Um teatro de andr6ides" ["Un e da luz, inseriu-se no campo do possível um dispositivo teatral que instalou
théâtre d'anafoYdes"), Maeterlinck escreve: "II sémble aussi que tout Mre qul a no lugar da unidade automática a dissociação e em seguida a combinação livre
l'apparente de la vie sans avoir laºv/e.fasse appel ades pouissances extraordinai­ (libert�da) não só de texto e ·p;lco, mas de todos os signos teatrais.
res. [ ... ] ce sont des morts qul semblent nous parler, par conséquent, d'augustes Assim, do ponto de vista do teatro pós-dramático, desloca-se da periferia
voix''. 5 O teatro pós-dramático de um Tadeusz Kantôr, com seus objetos e para o foco central do interesse histórico o drama lírico e simbolista dofin de
aparatos animados, enigmáticos, assim como os espíritos e fant_;w1�stó- sie�le, que recusa os axiomas dramáticos de ação a füil de chegar a uma nov�
--....
ricos no texto pós-dramático de um Heiner Miiller se insérem i1essa tradição-·- - · ..-- poes.ia teatral. Como afirma Bayerdõrfer,
da manifestação teatral do "destino" e dos espíritos, que sãó decisivos para a
compreensão de todo o novo teatro, como mostrou Monique Borie.6 a exigência de um "théture sfatique" por Maeterllnck cohstituí a prlmeira dra­
maturgia antiaristotélica da modernidade européia, mais radical do·que n�llitas
que vieram depois, pois abandona o fator �entrai aristotélico da.definição, a ação
(pragm"ãJ:=embora Maeterlinck também ·afirme que os traços mais importantes

5 Maúrlce Maeterlinck, apud Didier Plassard, .L:Acteur en effigie:figures de /'homme artificiei


dans /e théâtre des awmtgardes historlques - Allemagne, France, Jta/ie, Lausanne, 1992, p. 38. 7 "Quelq11e c/1ose d'Hamlet esl mor/ po11r nous, /e jour 01} nous lhvons vtt mourlr sur la sct!ne.
["Parece também que toda criatura q ue tem aparência de vida sem ter vida remete a potên­ Le spectre d'un acteur Ih détrôné, et nous ne pouvons plus écarter l'usurpateur de nos r�}!os."
cins extraordinárias. ( ...) são os mortos que parecem falar conosco; por conseqüência, vozes ["Algo de Hamlet morreu para nós 1,10 dJa em que o vimos morrer em cena. O �pêctro de
augustas:' ) um ator o destronou, e não mais podemos afastar o usurpador dos nossos sonhos." ) Mauri­
6 Monique Borlc, Le Fantôtne ou /e thédtre qui l:ioute. Paris, l.9�Z: ce Maeterlinck, apud Plassard, op. cit., p. 35. 97
de s�u !'teatro estático" já se encontrassem em essência realizados na tragédia tica cênic� simbolista 110 exemplo do drama lírico A gu�rdiã, de Régnier. O
·· �rega antes de Aristóteles, especialmente em �squilo,ª poemâ era lido por atores que se encontravam no fosso da orquestra, invisí­
veis para o público, enquanto a ação se desenrolava no palco em pantomima,
Certamente pode-se apontar outras formas históricas antigas que tomaram por trás de uma cortina de tule. Por um lado, tratava-se da idéia ousada e
distância das máximas dramáticas. O monodrama, o dubdrama e o melo­ inaugural de "cindir movimento e fala" e medtante essa "dissociação de acon­
drama do século xvm, por exemplo, consistem em uma espécie de tragédia tecimento cênico e palavra" tomar distância da tradicional "concepção das
curta que se restringe a uma cena, a uma situação, e que ocasionalmente era drama tis personae como .figuras definidas, fechadas em si mesmas''. Por outro
chamada de "drama lírico" já naquela época. Na TeQria das belas-artes de lado, essa-decomposição do modelo dramático só poderia se Justificar com�

·-
(Johann Georg] Sulzer,de 1775, lê-se: "A denominação 'drnma lírico' indica pletamente se houvesse uma conseqüente renúncia à ilusão de uma realidade'
que aqui r1ão tinha 11.lgar uma ação que se desenvolvesse progressivamente reproduzida, o que só ocorreria mais tarde, na forma teatral pós-dramática.
com impactos, intrigas e empreendimentos entrecruzados, como no dr�i:_na . Szondi toca no ponto crucial quando atribui o fra·casso desse estÜo de ence-
elaborado para o espetáculo''.9 Como mostra Szondi, a situação da poética dos nãção,à "contradição �ntre o antiilusionismo da dissociação de representação
gêneros é evidentemente outra no caso do .drama llrico de Mallarmé, Mae­ muda e voz e os recursos ilusionistas com os quais se pretendià conferir uma
terlinck, Yeats ou Hofmannsthal, em que essa forma se torna o "emblema da aura de mistério à7 representação e às vozes''. 12 Ao olhar para o passado sob a
impossibilidade bistprica da tragédia em cinco,atos''.!º Para o autor, Ontem perspectiva do atual "teatro high-tech'; pode-se cogitar se a curta· existência
[Gestern], a peça de juventude de Hofmannsthal, ainda é um "drama em mi­ do drama lírico não estaria também associada àõ fato de -que. &inda não es­
niatura'; uma vez que a lei fundamental do gênero dramático do "provérbio" tavam disponíveis as condições técnicas para conferir suficiente densidade
(a Inversão da tese inicial do herói) se encaixa na norma da peripécia dnµpá­ à poesia cênica, de modo que a palavra poética e a realidad1 ��nica não se
tica.11 Com A morte de Ticiano [Der Tod des Tizían] teria início a série.. q{seus tornasse tão írremediãvêlffi�nte ·conflitantes-entre si.
.
autênticos dramas líricos, "cujo phino não é a ação, mas a situ�ção, a cena,
como ocorre em Herodlada [HérodiadeJ, de Mallarn;é, em·A giíardiã [La Gar­ Atos, ações
·-·-.
dienne], de Henri de Régnier, e nas duas peças de Maeterlinck publicadas em ·
1890, A intrusa [L'Intruse] e Os cegos [Les Aveugles)". Uma outra questão diz respeito tr.elaç�o do te��ro p;s"1;a;;�ticó 'êo1ú.aque­
Segundo Szondi, o caráter "estático do drama lírico, voltado para uma les movimen�ós de vanguarda que, proclamando o desmantelamento do con­
única direção e sem intriga': manifesta uma "reação ao drama ou a dificul­ texto, o privilégio da"fal!a de sentldo e da ação no aqui e agora (dàdaísmo),
dade do drama de sua época''. o·que levará às formas �o dl'ama moderno e a abandonaram o-teatro coín<'.obra" e proµução de sentido em nome de um
uma prática teatral diversa. É elucidativo o comentário do autor sobre a prá- impulso agressivo, de um acontecimento que incluía o público em ações (fü­
turismo) ou sacrificava o nexo causal ·narrátivo em favor de outros ritmos de
represe11tação1 em especial a lqgica do s�n.h'ô (surreaHsme-), Na.co11cepção
8 Haos-Peter Bayerdõrfcr, "Maet�rlincks Impulse für d!e Entwicklung der Theaterthcorie", in de Kirby, trata-se drlinha "a11tagonista" da vanguarda. O dadaísmo, o futu­
Dleter Kafitz (ocg.),Drama tmd 111eater der Jaltrltundertwende. Túblngen, 1991, p, 1.25. rismb e o surrealismo queriam atacar o espéctador de tal modo a afetá-lo não
9 Johann G. Sulzer, apud Szondl, op. clt,, p, 19.
10 Szondl, op. clt., p. 19,
1.2 lbid., pp. 143-44. 99
n Ibid., p. 352,
'· }
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só mentalme_nte como també111 co�Pº!ªl�ente; Foi determinante pàra a esté­ desenvolv-imento d� uma cultura cinematográfica, faz da atração, do episó­
tica teatral o deslocamento da obra para o acont�cimento. É cer.to que o àto da dico e do caleidoscópio um princípio, De início freqüentado apenas pelas
observação, as reações e as "respostas" lateate� ou .ri{�is incisivas dos especta­ camadas ni.ais baixas, o espetáculo de variedades acabou se estabelecendo
dores desde sempre haviam constituído um fator essencial da realidade tea­ como um divertimento ·também muito apreciadó pelas classes superiores. O
tral, mas nesse momento se tornam um componente ativo do acontecimento, entusiasmo da dança e o deleite com a perfeição das atrações toma{tl conta
de modo que a idéia da construção coerente de uma obra teatral acába por se· das vanguardas. Tais representações se -tornam tema de novas imagens do
tornar obsoleta: un). teatro que inclui as açõese-·el{pressões·dos espettadores corpo. O cabaré e o espetáculo de variedades vivem do princípio da parábase,
cori1ô um elemento de sua própria constituição �ã'b ppde se fechar em um quando o ator sal de seu papel e se dirige diretamente ao público. o cabaré
todo nem do ponto de yista prático nem do teórico. Assim,- o _acontecimento se baseía na possibilidade de aludir a uma realidade de vlda que é comum ao
teatrà.:l torna explícitas ta,�tó a processua'Ífc:1ãde que lhe é própria ·quanto a im­ intérprete e ao público, contendo por isso um fator de performance que está
previsibilidade �elàimplidtà'. De-modo.análogq _;t_�sti.n"ção de Derrida entre inseparavelmente ligado ao modo de vida urbano, à cultura comum da cidade,
a estrutura fechada ("cldtu_re") do livró e a processualidade aberta· do _texto, o na qual as 1t;fotmações � os gracejos são compreendidos de imediato. Tudo
lugar de uma obra teatral fechada nelà mesma, embora estendida no tempo, isso con_tribuiu para a reforma da torre de marfim da arte e qO mesmo tempo
-..... passa a_ser_ ocupado pelo ato' e"ó processo expôstas_de uma comunicação tea­ iilspiFóu o desejo de um teatro que fosse um �contecimento feito por todos os
I tral agressiva,,-enigmaticâme.nte esotérica ou comunitária.
u
...J Pode-se ver nessa transição da mensagem bem delineada para o atá p-er­
participantes na atualidade compartllhada �fo aqui e agora. Como dizia Oskar
Panizza em 1896, o espetáculo de variedades logo seri� preferido ao teatro em
LI� tormativo u.1hã"tecolocação de especulações artísticas do primeiro ro.tnah­ ra_zão de sua sensualidade, sua capacidade de entretenimento e seu descaso
u..
tismo nas quais se prociirava uma "simpoesia'.' de leitor e autor. Essa noção pelo "J:>om gosto''. 13
CJ não pode ser conciliada com a idéia · de uma ·totalidade estética da ''obra" de O princípio do desmantelamento do contexto tem a ve� com a transfor­
m teatro. Caso se queira usar â antiga imagem do símbolo - um objeto é partido
U) mação da experiência cotidiana, que parece ser impossível de transpor no
ao meio e depois unia das lascas identifica cotno "autêntico" o me.Qggei�o tea.tro da placidez. Por volta de 1900 Otto Julius Blerbaum observava: "() ho­
quando ele a encaixa- na-outra ·1asca -, o teatro só manifesta propriament� · · men; urbano atual tem [ ... ] os nervos do espetáculo de variedades; ele rara­
uma metade, e é como se ele esperasse pela presença e pelo gesto do especta- mente é ainda capaz dê acompanhar grandes contextos dramáticos, de afinar
\ dor desconhecido que apresenta a outra lasca por meio de sua intuição, sua sua sensibilldade com o tom de três horas de teatro; ele quer variedade''. 11 fica
via de compreensão, sua fantasia. claro aqui que o principio formal da sucessão de atrações está diretamente
ligado à estrutura temporal da montagem teatral. Uma percepção da cidade
Rapidez, atrações grande, ;�ez mais impaciente, ·requer uma aceleração que será reencon­
trada no teatro. O ritmo do vaudeville, com suas técnicas de transição rápida,
O teatro moderno foi influenciado de maneira determinante pelas formas sua brevidade e seu humor, passa a, ter influência sobre as formas "elevadas"
de entretenimento populares, entre as quais se destaca o prlndplo da atra­
ção. Esta tem lugar no cabaré, no espetáculo de variedades, no teatro de re­ __ .,.,,,.
u Oskar Panizza, "Der KI.ssíz.lsmus und das Eindrlngen d�s Varleté''. Die Geselfschaft, outu-'
vista, nó circo, no filme grotesco ou nos teatros de sombra que surgem em bro de 1896, pp. 1252-74.
100 Paris por volta de 1880. Especialmente a 11ova téc_n;�a de filmage1n, com o 14 Otto J, Bierbaum, apud Jelãvich, op. cit., p, 255. 101
de teatro. .A.,. música ganha maior importância como elemento de integração e Gertrude Stein fala de sua idéia de "peça-pais�gem': isso aparece como rea­
in�rmediaçãô; as canções realizam a funç�o que os Lieder tinham nas peças ção à sua experiência pessoal de que o teatro sempre à deixava terrivelmente
populares. Ganham terreno'na dramaturgia as peças de um sp ato. O desman­ "nervosa" porqlle sempre se referia a um outro temp6 (passado ou futuro) e
telamento do tempo teatral em peças cada vez mais curtas é assim influen­ exigia um esforço contínuo durante sua observação. Trata-se de um modo
ciado pelo novo ritmo de pausas breves. O teatro pós-dramático transferirá de perceber. Em vez de observar o que ocorre no palco com uma t�sãô nér­
esse desmoronamento da continuidade também para os dramas clá!is.icos. Ao vosa - traduzamos calmamente: dramática -, deve-se observar o palco como
passo que o ritmo dramático é dissolvido na dramaturgia estática e depois se contempla um parque ou uma paisagem. "A myth is not a story read Jrom_
na "estética duiativa': o teatro acelera de tal maneira o ritmo que o drama left to right, Jrom beginning to end, but a thing heldJull-in-view the whole tim �.
acaba sendo desmantelado. Em muitas encenações dos anos 1980 e 90 - basta Perhaps this is what Gertrude Stein meant by saying that the play henceforth
pebsar em Leander Haussmann - o despedaçamento das ações e do tempo is a landscape'� afirma Thoruton Wilder. 16
se manifesta em números índividuais. A conexão dialética entre as duas d�­ ----·· ----�s_!�xtos de"Stein, os. esclarecimentos ·- bastante sucintos - de sua con­
formações do tempo vem à tona tão logo se considera o desdobramento da cepção teatral estão sempre ligados a imagens de paisagens verdadeiras. Em
estética temporal do teatro pós-dramático. '.5 face da estética teatral atual, cada vez mais pautada pelo aspecto urbano, pa­
rece questionável a tese de que uma versão da antiga forma da pastoral foJ
Peça-paisagem consolidada no novo teatro. Se com freqüência..existe a tentação de descrever
o palco do novo teatro coú10 paisagem, a respo.(lsabilidáde' 'é·n�ais dos traços,
Ao lado de Craig, Brecht, Artaud e Meyerhold, �ertrude Stei11 e Stanislaw an�ecipados por Stein, de uma desfocalização e de uma equi}alência das par­
Wítkiewicz são dois antepassados do teatro de hoje. Ao passo que os tex�0s tes, da renúncia a uma época orientada teleologicamente e da.pre.do�n!nância
de Gertrude Stein apresentam uma relação com o cubismo, Witklew !�,0,ejo de uma "atmosfera';;ob�-os.procea'irnênfõs dram� ticos e narrativos. o que
da pintura para o teatro. Ess·es fatos são elucidativos. Fazem p�rte da pré­ se torna característico aqui é menos o aspecto pa�toral e mais a compreensão
história do teatro pós-dramático projetos que concebeíii'·o·teatro, o palco e do teatro· c�nio poesia.r;.�tJ/ca integral. Elinor Fuchs nota com razão que "é
o texto como uma paisagem (Stein) ou.como uma construção que deforma sobretudo o tom lírico, es;enciai�-e;·Íte'estàticó'(! retlex:ivo,.q.ue. .� a chave para
a realidade (Witkiewicz). Os ·dois projetos permaneceram a seu tempo ligar (Richar1] Foreman retrospec.tivamente a Ge1:�rude Stei�1 e Maeferlinck
como teoria pura, pelo menos para o teatro. Os textos de Steiu praticamente e horizontalmente?. [Robert) WJlson e a vários contemporâneos que criam
não foram montados e tiveram mais o efeito de provocações produtivas; encenações como pai�'iigeps': 17 Gertrude Stein não fez mais que tra�spor para
Witkiewicz formuJou uma teoria à qual suas próprias P.eças correspondiam o teatro a iógicá artística de·-seus textos, o princípio do presente contínuo e
de modo apenas parcial. Os dois projetos se encontram em pé de guerra progressivo de encadeamentos sintáticos e verbais que, como ocorre depois
com o aspecto temporal dinâ�ico da arte teatral. Seu potencial inovador só
se torna claro retrôspectivamente, depois que o fator estático apareceu cada
vez mais'como uma oportunidade do teatro na sociedade nüdiática. Quando 16 ,')llorMon Wilder, aP,UÔ Elinor F�cfi1. The Death of Chnracte1; Perspeclives ôn 1heater after Mo­
demism:Indiana, 1$96, p. 93. [' 1Um mito nãó é unia história lida da esquerda para a direita, do
f
começo ao fim, mas uma coisa que se.tem-inteirá ü°e°t\te à vJsta o tempo todo. Talvez seja isso o
15 A respeito de toda esta seção, ver: Harold B. Segel, Turn of the Cenlur:y Gabarei, Nova York,
que quis dizer Gertrude Ste!·n·q�;ndo a�rmou q�e daqui em diante a peça é uma paisagem:']
102 1987:.Claudine Amiard-Chevrel·(org.), D11 Cirque au theatre. Lausan,ne, 1983.
17 Fuchs, op. dt., p. 102. 103

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na música minimalista, pate�em marcar o pass0 de n:10do "estático': mas na ser assimil�das ao mesmo tempo que o signi.ficado.-De modo la�ente, anuncia�
verdade são sempre acentuados de· maneira novaiem vari�ções é modulações se já com esse desenvolvimento a teatralizaçâo das artes: ler e ver s·e tornam
sutis. O texto de Stein já é de certo modo a p�i�ageQ.1:_Ein u� grau até então mais encenar do que d_ e interpretar. Contudo, ·o próprio teatro só recupera
inaudi�o, emancipa·a o-ração em -r.elaç.ã_ o à frase;a palavra em relação à oração, posterior�ênte esses desenvolvimentos de outras artes, justamente c::0111 teo­
, o potencial fonético em relação ao potehdáT semântico, o som em relação ao rias como as de Stein e Witkiewicz;
sêntido. Assim como em seus textos a reprodução da realidade dá l�gar'ao jogo Witkiewicz é o pr':cui'sor do teatro do absurdo, mas tambén1 antecipa te­
das palavr�s, no "teatro Stein" não se encorttr�-àr-a,ma algum, nem mesmo ses de Artaud com uma similitude de formulação às vezes 1:spantosa. Em seu ·
uma história, _não se podem distinguir quaisquer p�fago1ústas e faltam até texto "Novas formas da pintura'; ele argumenta que o teatro da "forma pura"
papéis e personagen� identificáveis. . ...... . é compreendido como uma construção absoluta de eleme11tos formais, sem
A �stéiica·d�St.�!P. te�li�ande importância para o teatro._pós-dramático -fora apresentar nenhuma reprodução da rertlidade.19 :Dessa man!!ira, e somente. as­
da América do Norte, mais c�mô wi1 ºélerrtento· subjac.e11te. Bonnie Marranca sim, ele é capaz de representar uma metafísica, O pensamento de Witkiewicz
enfatizâ sua influência sobre a vanguarda e a performance. 18 Depois que o é pessimista.. Efo' éstá'·convenddo de que a unidade metafísica irá perder todo
Living Theatre montou Vozes de senhoras [Ladies Voices}, em 1951 (!), e que o sentigo; 'mas até então ainda são possíveis manifestações individuais desse
_
grupos comoJq��on Poets 'Illeatie, La Mafi!a · e Performance Group passaram contexto, também no teatro. A tarefa do teatro coí1siste em comunicar um sen­
a representar péças de Gertrude Stein com mais freqüência na década de 1960, tithento da "unidade" da totalidade universal em meio à diversidade. Por isso,
nos anos 1970 foram Richard Foreman e Robert Wilson que trouxeram para o são paradigmáticos para ele as tragédias antigas, os mistérios da Idade Média e
teatro um us�-dã.hnguagem inspirado em Steln. · o teatro do Extremo Orient�-� �ma vez que o teatro apresenta a desvantagem de
ser constituído por elementos heterogêneos, Witkiewicz o inclui entre as artes
Forma pura "complexas'; nas quais a forma pura nunca pode ser alcançada por inteiro, mas
apenas - à diferença da pintura - em gradações. De todo modo, o que está em
As idéias de Gertrude Stein têm pontos de contato com a "teoria -da-forma.. -.-. Pl!�ta não pode ser um teatro que trata, por exemplo, dos conflitos de homens
pura" de Stanislaw Witkiewicz. Sua idéia fundamental é à recusa da mimese -- · · · · -···· "normais", mas que obedece ao preceito de "afastar-se da vida". Em vez de mi­
· no teatro. A peça deve seguir unicamente a lei de sua composição interna. mese da realidadê, trata-se de uma construção pura estritamente exterior, que
Desde Cézanne, na pintura, e desde a poesia. francesa, na literatura, verlfica­ pressupõe uma metódica "deformação da psicologia e da ação" - uma tese que
·se uma autonomização dos significantes, cujo jogo se torna o aspecto domi­
nante da prática estética. A pintura enfatiza a exigência perceptiva de que o
caráter inexprimível da própria imagem seja materializado com tanta inten­
--
Witkiewicz partilha com o surrealismo e com ó posterior teatro do absurdo.
Em um tal teatro se combinariam uma completa arbitrariedade dos elementos
em relação à vida real e uma montagem extre!11amente precisa e perfei_ta.
sidade quanto aquilo que é ilustrado e expresso por ela. A poesia exige uma Esses pensamentos, muito distantes da realidade habitual do teatro,20 são
leitura que acompanhe o jogo a princípio sem sentido dos próprios signos provenientes sobretudo da pintura, de onde Witkiewicz tira seus exemplos.
lingüísticos. A tipogràfia e a sonoridade da linguagem, sua realidade material
como som, grafia, ritmo - a famosa "música nas letras" de Mallarmé - devem 1.9 Cf. Alain van Crugtcn, S. 1. Wltklewlcz. Aux so11rces d'u11 thédtre 11ouven11. Lausânne, 1971,
PP· 114-15.
18 Bonnie Marranco, Ecolog íes ofn,eatré. Baltimore, 1996, p. 18. 20 . Cf. ibid., p. 281. 105
Essl!- prô�_epsão para a pintura con(e.re um caráter estático tanto à sua teoria as formas do monólogo e do coro, bem como uma seqüência de cenas mais
quanto às suas peças.21 No entanto, suas idéias encontraram uma realização lírica do que dramática, já na "dramaturgia do eu" e no· "drama de estações''
posterior nas formas de teatro mais recentes, nas quais o seu distanciamento de Strindberg. Ele busc; possibilidades de representar o inconsciente, cujos
dos padrões dinâmicos do teatro drarriátiço se mostra como uma força. Em pesadelos e imagens de desejo não têm nenhuma obrigação de obedecer a
sua teoria da for!Jla pura encontra-se apenas qm· ún�co exemplo de realiza­ wna 16gica dramática. Enquanto os dramas de Lulu, de Wedekind, mostram
ção cênica imaginada. O que se descreve ali poderia ser uma encen�ção de o desejo em um processo dramático, a peça Assassino, esperança das mulheres
Robert Wilson. Três pessoas inteiramente vestidas de vermelhp entram no [Morder, Hoffnung des FrauenJ, de Kokoschka, apresenta uma montagem de
palco, inclinam-se diante de não-se-sabe-quem e declamam um poema. Um imagens isoladas sem uma narra. tiva lógica clara. As montagens 110 moldes da ·
velho respeitável aparece, trazendo um gato pela coleira. Tudo isso se passa à Kunstschau de Viena acentuam o tema do homem como criatura impulsiva ·
frente de uma cortina preta, que então se abre e deixa aparecer uma paisagem por meio de contorções extremas, corpos pintados, máscaras e um modo de ·
italiana. Depois um copo cai de uma mesinha _e todos se põem de joelho� � . . --·---�uar marcado pol! trejeítos,23 Impõe-se uma seqüência de cenas e imagens à
choram. O velho respeitável se transforma num assassino furioso e mata uma m;neira-dos sonhos, sem causalidade, caleidosc6pica. Na dramaturgia de es­
garotinha que entri'.>U no palco pela esquerda, Witkiewicz termina sua des­ tações torna-se possível formular o arcàico e o primitivo como realidade so­
crição, reconstituída aqui apenas em parte, com a seguinte observação: "En ei�!. A redenção em [Ernst} Barlach, o páthos em [ Géorg} Kaiser e o idealismo
sortant du théâtre, on doit avoir l'impression de s1J{eiller de quelques sommeil em (Ernst) Toller são formas da elevação e da abstração, são menos mimeses
bizarre, dans leque/ /es choses plus ordinaires avaient /e charme étrange, impé­ de ações reais do que_ ações simbólicas ligadas à. alnia. . ··- . _
netrable, caractéristique du rêve et qui ne peut se c�mparer à rien d'autre''.22 No entanto, uma vez rec�nhecido ao inconsciente e à fantasia um direito
I
.I
próprio como realidade, mostrar-�e-ia obsoleta a estrutura 4c:i"'d. rama que pre­
Expressionismo tendesse pôr à disposiçaõum môdó de representação adequado para o que se
,···
•• 1
passa entre os homens na realidade do consciente - de fato, a lógica superficial
Embora o expressionismo não possa ser contado e11"trêcfs--mo-vimentos de do drama, com suas s�qüências de ações exteriores, poderia ser_urn obstáculo
vanguarda raditais, també111 elaborou tefnas teatrais que vieram a ser explora­ na articulação de es_ttu�'ã°s'incõnsdentes·do desejo. .J� iss_?_ o que se observa
dos n a ruptura do teatro pós-dramático. S.ua ligaçã0 com o cabaré, suas repre­ no contexto do surgimento da dcmça d� expressão [AusdrucktàniJ;um, dos as­
sentações onírlcas e suas inovações de linguagem, como o �stilo telegráfico pectos tearrais essenciais do expres�lonismo: o� gest�ais ·de dança simbólicos
e a sintaxe fragmentada, subvertem a perspectiva unitária baseada na lógica de Mary Wígman f�z'erq_parte de uma linha que sai da dança/narração dra-.
da ação humana; o som deve transmitir mais afetos do que comunicações. O mática em direção à ênfas�·no.� gestos corporais/lingüísticos. É interessante no
expressionismo pretende ir além do drama como dramaturgia dos conflitos expressionismo a coexistêncía de duas tendências divergentes: a aspiração .a
humanos interpessoais, e a partir de temas que lhe são in1anentes privilegia uma forma rígida, que leva à-construção (as· obras podem ser compreendidas
como efeitos construídos altaÍl_lente cons�ierites); e a tentativa de trazer para
a expressão o afeto ;SUbjetivó.'Normalmente separados, esses dois pólos se en-
11 Cf. lbid., pp. 290, 357.
contram no de-scíobr'amento 1da história da ·estética teatral mais recente. ·
Stanislaw I. Wltkiewlcz, apud Ibid., p. 116. ("Ao sair do.teatro, deve-se ter a impressão de
-� -····· . . .
22
despertar d� um sono bizarro, no qual as coisas mais comuns tinham o encanto estranho,
106 im,Penetr:lvel, característico do sonho e que não pode ser compara�o a mais nada:'] 23 Cf. Edith Almhofe;, Perfornumce Ar/. �ie KunÍt zu leben. Víena/Colônia/Graz, 1986, p. 15. 107
1
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Surrealismo .. �
l sublinha um traço que t�nbém é importante pan o novo "teatro de situação"
1, (inspiração entre palco e público) e para o "teatro de ambiente". A liberdade
O dilema e o expressionismo concordam cdll:1 .º surrealismo quanto à opção de sátira e humor faz pensar no "coo/fim" de certos grupos teatrais do ilosso
de prívilegiar uma articulação .qu� s� baseia na técnica de corte e colagem/ tempo. Por fim, o surr�alismo contém os elementos da arte performática. A
. , montagem, o que requer e promove o ritmõ,-á "intéÜgência" e a capacidade as­ peça Os mistérios do amor [Les Mysl'e.res de lâmourl, de Roger Vitrac, devia
sociativa do receptor. A medida que o espectador do teatro moderno ·exercita mol:>ilizar o público J?Ol' meio de suas provocações. o· autor (representado
wna crescente capacidade de estabelecer relaçõ�s-e�tre coisas heterogêneas, a por um ator) se apresentava no palco, havia atores situados na platéia, os
cômoda difus�. o de conexões faz cada vez inenos sen,tiâo: o olho se torna mais intérpretes apareciam como pessoas e como os personagens que interpreta-
impaciente e se contenta.com expVca�ões f_'.1da vez mais restritas. Enquanto os . _
vam, sem que as fronteiras entre ficção e realidade fossem claras. Chegou-se
.·-
moviiiientos fµt�rista
-
e dadalsta experimentaram um eurto florescimento,
--. - '
o movimento surrealista teve lông:r ·duração-- p.rQ.y_a!'elmente porque uma
a uma suspensão parcial da distinyâo entre o· cosmos fictício de un1 "drama"
e a realidade da montagem. Também.havia representação e vozes no espaço
pura estética da velocidade e uma pura negação não podiam constituir cânone da platéia, _Jigtéssõ·es-francas se intensificavam até um desfecho em meio ao
algum, ao passo que a renovada exploração do sonho, da fantasia e do incons­ públicq,. . m·ontagem, certamente o ponto alto do trabalho .teatral surrealista,
i
.
ciente.prop.9!'c�onava uma riq uezit de materi-ais novos..Embora o surrealismo é ai;té' de intervenção, comunicação e agressão, teatro de sonho e manifesta-
tenha produziqo mais manifestaçõe� literárias, poéticas e cinematográficas do ção, características que reapareceram de outra forma no teatro a partir do.s.
que teatrais, era subjacente à Íógica de sua tendência social e culturalmente re­ anos 1960. No entanto, o que no surrealismo pretendia ser tunJI provocação
vulucionária(''n1üdar a v4da ") a busca de· um acoriteciliiento teatral público e voltada a uma reviravolta cultural e social considerada hnlnente acabou por
quase político. Uma passagem para o acontecimento teatr�l está ligada à forma perder·muito desse carátetSe a montagem de Marat/Sade de Pete� Brook
da exposição. A Exposição International do Surrealismo de 1938, em Paris, ba­ e outras manifestações do teatro de intervenção dos anos 1960 talvez ainda
tizada por André Breto11 como "urna obra de arte acontecimento" [une oeuvre devam ser lidas nessa perspectiva, isso não vale mais, por exemplo, para a tri­
d'art événement], não só rew1ia (sob a direção de Marcel Duchamp)-v.ádo.s.Q.b-
-- . ·----·
jetos surrealistas conhecidos (o boneco de :Sellmer, a xíca r· ã"e o pires cobertos
lqgia grega de Andrei Serb,m de 1972 (considerada por Zlnder como neo-sur­
realista).24 O teatro renuncia à tentativa de antecipar diretamente ou acelerar a
.· de pêlo de Meret Oppenheim, o ferro de passar com pregos de Man Ray), mas revolução das relações sociais - não por causa de um cinismo apolitícó, como
·-também invenções como o táxi de Dali, cuj�s ocupantes, bonecos grotescos, levianamente se considera, mas em razão de uma avaliação diferente de suas
.eram periodicamente molhados por jatôs d'água, e ufna rua surrealista n� chances de impacto.
forma de uma grande instalação que envolvia o espectador como "teatro am­ Assim como Lautréamont já havia esclarecido que a poesia é produzida
biental" [environmental theatre) (Richard Schechner). por tod�-;,-não por indivíduos, a tese súrrealista afirmava que o inconsciente
Os surrealistas não produziram um teatro muito digno de nota em sua de cada pessoa oferece a possibilidade da criação poética.'Desse modo, a ta­
própria época, mas suas idéias e textos teatrais exerceraf11 indiretamente uma refa da arte seria rómper o pl'ocesso racional e mental por uma "via negativa"
enorme influência sobre o teatro máis recente. Eles visavam a um teatro de (Grotowski) a fim de encontrar um acesso para as imagens do !nconsdente. A
lrnagens mágicas e um gesto polltico de revolta contra os "moldes" da prática iloção de que aquilo que é comunicado d.essa tnaneira tem de se:}Jgo�ídíos-
teatral. A idéia surrealista de que ocorre uma inspiração mútua quando as
108 fantasias alimentadas pelo inconsciente alcançam o ui:ç�onsdente do receptor 2.4 David G, Zlt\der, The Surrenlist Connectfon. Ann Mbor, 1976. 109
j •

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sincrátic.9..e pessoal .(cada inconsciente tem seµ disc1uso próprio e único) le­
vou-táÍnbém à tese de que a _ver9adei,a comunica9ão não se baseia no entet1-
dimento, mas se dá por meio de estímulos à própria crjatividad� do receptor,
estímulos cuja comunicabilidade está fundada na� predisposições universais
do inconsciente. Essa atitude marca os art!sta-s ·atuais em. muitos casos, e Wil­
son é o exemplo máis impressionante, Suâs cenas não· pretendem-ser inter­
pretadas õu éô.. tendidàs de füaneita t'àdoilal; antes, despertam assocíações, ...... �.
uma produtividade própria no "cainpo fnagnéticó" existente entre o palco
e os espectadores. Após assistirá Olhar de surdo [DeafMan Glance], Louis
Aragon escreveu ufn texto que se tornpu famoso ( uma "carta"·ao falecido com­
panheiro de viagem na causa do surrealismo, Ai1dré Breton), afirmando que ···-··--------
esse espetáculo era Q mais belo que ele já tinha visto e apontando-o cómo a
realização das esperàhças que os surrealistas haviam depositado no teatro.

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abarcar q.quadrc, precisa apreender e reconstruir sua dinâmica e sua pro­ de paixões, toda seqüência de pensamentos dive�sos em que um suprime o
cessüàlidade. Da mesma maneira, a teoria do texto ensina a ler a partir do outro, também é uma ação".'
fenotexto coagulado, tornádo ·"inerte'; o genotexto, o movimento dinã.mico Por oposição à diegesis, a arte épico-narrativa de contar, a mimese pas­
de seu devir. O estado é uma .figuração estética do teatro que mostra mais sou a significar desde a Antigüidade a representação que encarna e imita
uma composição do que uma história, embora haja· atores vivos represen­ a realidade. A palavra "mimeisthai" quer dizer original.mente "representar
tando, Não é por acaso que muitos.artistas do teatro pós-dram�.li.<:9 vigam - pela dança'; não "copiar", Mas Mukarovsky ressalta, baseando-se em Emil
das artes plásticas. O teatro pós-dramáti.co é um teatro de estados e de com­ Utitz, que na "função estética" há uma outra qualidade de arte, diferente da
posições cênicas dinâmicas. imitação: "a capacidade de isolar o objeto ao qual a função estética se re-
Em contrapartida, não é possível pensar um teatro dramátlco em que fere''. A possibílidade mais marcante do estético é a de produzir uma "con­
não seja representada uma ação de uma maneira ou de outra. Quando Aris­ centração máxima da atenção sobre um dado objeto''. No contexto dessa
tóteles considera o mythos, que na Poética significa o mesmo que eilre:Io,
como a "alma" da tragédia, fica ch1ro que drama significa o thesmo que um
-----
· · ·--argumentação, ektfltroduz um exemplo que se revela imediatamente con-
dizente com a nossa observação: a importância da função estétita em todo
desdobramento de ação composto e construído artisticamente. Seu crítico · tipo de cerimônia, o fator estético "isolante" que é inerente a toda festivi­
Brecht o acompanha assim 110 Pequeno órgcmon [Kleinen Organan]: "o en­ dade.2 Ora, é evidente que a prática do teatro sempre possuí uma dimensão
redo é para Aristóteles - e pensamos o r'nesmç_-:- a-alma do drama''. Mesmo do cerimonial. Essa dimensão adere ao teatro como acontecitnento social
na imobilidade dos acontecimentos factuais nas peças de u1n 'I'chekhov ô por suas raízes - geralmente evanescidas da consciência -·reli'giosas e cul­
espectador acompanha com curiosidade uma _ação "interna" que se desen­ tuais. ..O teatro pós-dramáti co libera o fator formal-ostensivo da cerimônia
'
volve sob o diálogo cotidiano aparentemente insignificante e que senwre I
de sua mer� função de intensificar a atenção e o faz valer por si me_smo
encaminha para um m(nimo de acontecimentos exteriores do enredo<'.. um como qu.alidade est�ti��. long� d� quáiquú..rêferência religi�sa ou cultuai.
duelo, uma morte, uma despedida para sempre etc. Essa categorfa central O teatro pós-dramático é a substituição da ação dramática pela cerimônia,
do drama é repelida no teatro pós--dramático de mõdos·-diver-s;s, ainda que
se possa constatar uma espécie de h.{eEarquia da radicaljdade, que vai de --.
com a qual a açãodramático�cultual estava intrinsecamente ligada em seus
........... .
primórdios.3 Assim, o.que se entende por ceriftrôniae01nci.fa.t9r do teatro
-,

um teatro "virtualmente ainda dramático" até.um teatro em que já não há pós-clramáti1:o é toda a diversidade,.dos procedimeJ?.,tÓs-de repr;;�ntà'ção
sequer rudimentos de proc �ssos fictícios. Tudo dá a impressão de que fo­ ·sem referenêia}, ·con�uzidos porém com crescente precisão; as manifes­
ram suprimidos os motivos pelos quais a ação era central no teatro ante­ tações de uma comunidàde particularmente formalizada; construções de
rior: a d�scrição narrativa e fabuladora do mundo con.1 o recurso da mimese; processos rit�ico:m�sic;i/6u, visual-arquitet6nicos; formas para-rituais
a formulação de uma colisão de intenções espiritualmente significativa; o como a cêlebração (nãb raro profundamente negra) do corpo, da pres�nça;
processo de uma ação como imagem da dialética da experiência humana; a ostentação enfática1bu monunfeíftal.
a qualidade de entretenimento de uma "tensão'', n� qual uma situação pre­ !·, ·--...�
para e desencadeia uma outra, diversa. Como Lessing já destacava, é evi­ f:•'.. : I 1

dente que não são apenas atos impetuosos e intensos que constituem uma Gottho!d .É:Lessiog, �iud Wolfg,1ng G. Müller, ''Das Ich !m Dialog mit sich selbst''. Deul­
sche Vieteljahresschr!ft (Sttutgart), !1, 561 19.82, pp. Jl4·.3'3,
ação, Ele õbserva;··a propósito da teoria do enr"êdo,. que J?Uítos juízes da arte
1 )an Mukarovsky, Kapitelmifâér A:1Ít�tik. Frankn1ft am Maln, 1970, pp. 32.-33.
114 "atribuem à palavra ação um conceito material" e que "t?do conflito interno Cf. Richard Schechner, Perforinance T11eory, Nova York, 1988. 115
3 . .
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•\

Jean Genet considerava o teatro expressamente como cerimônia, e a missa Em Robert Wilso·n o traço cerimoniai é evidente. O crítico
de prime ira
como a ·for ma mais elevada do dr a ma mode rno.4 Já os,seus temas - o duplo, hora, a fim de caracterizar s eu prim eiro contato com esse
tip? de teatro, não
o espelhq, o triunfo do sonho e da morte 's99re a t'fálidade - apontam ness a raro afirmava que havia.se se ntido ali como o estrangeir
o que aco mpanha as
direção. É significativo que Ge net t enha chegado à idéia de que o lugar próprio enigmáticas açõ es cultuais de um p
ovo desconhecido para ele. Ta mbém Einar
. ' do te�trô era o cemitériô, 5 de que o téatiõ era-em s ua essência ritual fúnebre, Schleef torna reconhecíveis as intenções artísticas de cerim
ônias quase rituais
Ele partilha com Heiner Müll er - esse autor p�s-dramátlco para o qual ele tev e não só quando explora em grande estilo a op ort unidad
e de uma cerimônia
uma importância especial - a idéia de que ·o teà'trp é um "d1álogo com os mor­ t e matizada na peça, mi�udosa e sem qualquer relaçã
o com o decorrer da
tos''. Para Genet, como constata MoniqueB orie, é oàlálogo com os mortos que ação (em Urgotz [de Goethe] p or exemplo, há um cortej
o da corte que parece
coi1fer� à obra de arte.sua ditn ensãq prçprja. A obra de arte� diz. Genet, não se. interminável), mas também mediante proce dimentos
como alime ntaçã o sim­
diri�!r ia às geraçã.es Jµty!�� c�mo freqüentemente se �rma, mas "é oferecida bólica do público. Seria tentado r investigar e m vá rios
trabalhos te atrais pós­
· à lnu!'ll erável multidão dos 1;_-;Õrtós''. Assim. é que..Gi�cometti, escreve ele, cria dramáticos também as formas menos evldentes de
procedimentos de caráter
"estátuas" cuja tarefa "é encantar os mortos". 6 Se Müller pode compreender o cerimonial. Em ·súàs-ref.lexões sobre as "peças didáticas':
J3recht anôto u certa
teatro da Antigüid ade como conjuração dos mortos - portanto como uma ce­ vez como pensav a em acro batas para a repres entação
, - em suá te rminologia -
rim·ônia, que en1 face do enre cfo r"eprêsenta· o fat01'-de termi11ante -, se o te atro distan<;iáda e epicizante:
'
nô gravita efu torno do retorno dos inortos com um mlnimo de 111ime_se, bas­
tava entâq_pensar nessa possibilidade de entender o teatr o para pôr em questão seriam pessoas vestidas com uniformes de trabalho brancos às vezes duas às vezes
a tradiçã o d; teatro dr�mático 9a modernidade· européia, que se diferencia do
três todas multo sérias assim como acrobatas são muito sérios eles e não os clowns
teatro "pré-dramático" dos antigos. O terna da missa, do cerimonial, do ritual são o.s modelos então os pro��;sos podem ser feitos simples�nente como cerimô­
se tornou cada vez mais virul ento já nos primeiros modernos. Em Mallarmé já nias a raiva e o arrependimento como modos de manejar o horrível não deve ser
se tr ata do tema de um te at ro da cerimônia, e é célebre a confissão de T. S. Eliot: personagem algum e sim eu ou um outro,8
"The only dramatic satísfaction that Ifind now is in a High Mass 1v.ell.Jl§riO..i:t!:_ �d"
(A única satisfação âramática que encontro agora é e m iúna missa s olene bem· Aqui s·e mostra o nexo entre a tendência ao cer�monlal e a recusa da concep­
celebrada),7 ô teatr o deve ser, mais uma vez segundo Genet, uma "festividade" ção clássica de um sujeito que reprimi u a corporeidade ( o m an ejo) de suas
dirigida àos mortos, Por isso, ele consid�ra suficiente uma única re presenta­ intenções ap are ntemente ape nas mentais.
ção de Os biombos (Les Paravents], p ortanto uma cerimônia festiva singular. Para uma caracterização exe mplar do teatro pós-dramátic o como "ceri­
(Aliás, a idéia de festival de Wagner era origínalmente a seguinte: instalav a-s_e mônia': "vozes no espaço" e "paisagem''. basta conside r ar Tadeusz _Kantor, Ro­
um teatro no ca mpo, deixava-se o público entrar - sem entradas -, fazi am-se as bert Wilsone!<làus Michael Grüber.
apres e ntações, desmontava-se o teatro e queimavam-se partituras.. ,)

4 Cf. Jean Jacquot (org,), Le Thét1tre moderne, v. u. Pads, 1973, p. 78.


5 Jeao Genet, "l!Étrange mot d'urbanlsmc': ln CE11vres completes, v. 4, Paris, 1968, p. 9. 8 llertold Brecht, apud Reiner Stenweg .(org.), Brechts Mode/1 der Lehrstücke. Zeugrils?e, D��­
6 Cf. Monique Borie, Le Pa11tôr ne ou /e tltdlltre qui doute. Paris, 1997, p. 272, kussion, Erfaltrungen. Frankfurt am Main, 1976, p. 105. (Assim nó original: sem maiúsculas
116 7 T. S. Eliot, "A Dialogue on Dramatic Poetry", ih Selecteâ Êssays. Londres, 1932, P· 35, e sem pontuação, N.E.) 117
Kanto.r;, ou a cerimônia morte como algo prévio, como base da experiência, abordando sempre a vida
que conduz a ela. A morte não é posta em cena dramaticamente por'Kantor,
A obra do artista polonês Tadeusz Kantor nos leva para muito ·longe do teatro mas repetida de modo cerimonial. Por isso, também não há aqui a questão
dramático: um cosmos rico de formas de arte entre teatro, happening, per­ dramática acerca da morte coino o momento em que se dá a decisão sobre
formance, pintura. esculturà, arte do objeto e do espaço, além de contínuas o sentido da existência, como por exemplo em Todo mundo Uedermann, de
reflexões em textos teóricos, escritos poéticos e manifestos. Sua obra revolve .Hofmannstahl]. Aqui, toda cerimônia é na vercjade cerimônia fúnebre, con­
lembranças da infância de ui11 modo obsessivo, e desse modo sugere uma es­ siste no aniquilamento tragicômico do sentido e na demonstração do aniqui­
trut\,tra temporal dá lembrança, da repetição e da confrontação com a perda e lamento do sentido, demonstração que essa cerimônia de algum modo volta
com a morte. É o caso de considerar sobretudo a última fase da criação teatral a anular - assim, o personagem que evidentemente t·epresenta a morte em
Wielopole, Wielopo/e ou em A classe morta espana o pó dos livros antigos e
-----
de Kantor, o "teatro da morte': que se tornou mundialmente conhecido nos
anos 1980, ainda que muitos aspectos dessa fase já se encontrassem prese�tes .. _ ....çom isso cruelmente os "degrada" e destrói, inas ao inesino tempo comunica
.....
ou sugeridos eri1 suas primeiras criações. Kantor quer "alcançar uma perfeita em sua comicidade um paradoxal desejo de viver.
autonomia do teatro, para que aquilo que se passa 110 palco se torne um acon­ A forma cerimonial quç aqui ocupa o lugar do drama é a da dança da
tecimento': livre de toda "falácia ingênua" e de toda "ilusão lrresponsável".9 Há morte. O próprio Kantor e!)fatiza: "O mistério da morte, uma dança macabra
a pusca de um "estado de não-representação'��Q.sein oeohum curso de ação medieval, tem lugar em uma sala de aula': As figuras que surgem nessa dança
contínuo, em que as cenas, freqüentemente condensadas e expressionistas, da morte são "cifras óticas" extraídas do romance O quarto compartilhado
são conectadas em uma forma quase ritual de evocação do passado. [Wspólny pokój], de Zbigniew Unilowski: "o falso religioso que desliza um
Reminiscências da história polonesa se combinam com temas religiosos genl!flexório diante de si; o jogador que espalha cartas mecanic�mente sobre
diversificados (o rabino, a perseguição aos judeus, o padre católisptCenas uma mesa de carteâdo portátif; ·o Jioi:nêm êom uma tina em que lava o;· pés
grotescamente exaltadas do ritual de despedida - e�ecução, despedida, morte, continuamente" etc. 12 No final de Os artistas devem sucumbir [Die Künstler
enterro - constituem um modelo fundament!ll e recori:er1te:1'odas as figuras sollen krepieren], -p�ça �streada em Nuremberg e� 1985, os soldados mar­
aparecem já como almas de outro mundo. Logo após a guerra Kantor enfo­ cham para um eterno tan�cfe· güêi'rãm:esclado·com a .rparçh�militar "Nós, a
cou Odísseu como a figura emblemática que-retorna do reino dos mortos primeira brigada...''. Há uma carcaça �e ciwalo (de mQ.do que se pôderia·dizer,
e que, como diz Kantor, se tornou o modelo de todos os seus personagens com Heiner Müller, que "a história cavalga para seu Óbjetivo en.1 montadas
teatrais posteriores. Em geral, esse teqtro é marcado por uma passagem pelo
terror e pelo retorno fantástico. É um teatro cujo te.ma, como afirma Moni­
' '
mortas") e em frente u:ina,,çriança vestindo um casaco militar .grande' 'demais
para ela (Kantor quando garo'toD. ·uma menina bela e lasciva - um "anjo do
que Bode, são os restos, 11 um teatro após a catástrofe (como os textos de Be­ desespero': da morte ou da melancolia - agita sobre essa imagem final uma · .
ckett e Heiner Müller), que vem da morte e expõe "uma paisagem para além bandeira negra da anarquia, e. de certa rrtarieira, coino 'notou [o crítico de
da morte'' (Müller). Com isso diferencia-se do drama, que não considera a teatro alemão Georg) He�sel, c�rrige De1ac�oi.Jc'com ó e1icanto de seu cotpo:
o anjô da liberdade e �a revolta 'dás barricadas se torna a figura da futilidade,
do Eros melancólico e do luto.'1
9 Tadeusi Kantor, 1heater des Todes. Zirndorf, 1983 , p.-81.
10 lbid., p. 80.
.-�· ,;...., .

118 u Borle, op. cit., p. 258. 1.2. Georg Hensel, i� FraniJurter Allgemelne 2.eitung, :5!06'1995. 119
'\ 1 )

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�-

I
As cenas de Kantór manifest�m a recusáç!a representação dramática dos. dura e pano de fundo para o drama humano e a figura humana. Com Kantor,
demais- processos "dramáticos'? que seu teatro tem p�r- objeto .-;'a tortura, a em contrapartida, os atores humanos entram em tún espaço de atuação das.
prisão, a guerra e a morte - em favor de •u,ma poesia de imagens do palco. coisas. Desapa"i'ece a hfé-ràrquia que constitui uma necessidade vital para o
As "seqüências de imagens co111icamente antiquadas e ao mes1110 tempo in­ drama, no qual tudo gira em torno da ação humana e as coisas existem ape­
finitamente tl'lstes" 13 com freqüência-re111etei11 a cenas que poderiam figurar nas como acessórios, como o "necessário''. É possível falar de uma temática
em um drama grotesco, mas o dramático se perde em favor de imagens em específica da coisa, na ql!al os elementos da ação, uma vez que estejam à mão,
movimento por meio do ritmo repetitivo, dà-s,�onfiguràções à maneira de são dramatizados. No téatro Hrko-cerlmonial de Kantór as coisas surgem
quadros e de uma certa des-realização dos persotiàge_ns, que com seus movi­ como reminiscência do espírito épico da lembrança e como afetividade pelos
mentós em solavanco_s se tornam paresidos com marionetes. Aliás, o tema da objetos. Se a característica do modo poético épico, à diferença dó modo dra­
produção da_i�agem também ap�·cc� e�plicitamente quando, em Wielopole, mático, é representar uma "ação como inteiramente passadà; Kantor enfatiza,
Wielopole, a· fotóg-;.ãf� 'goidà de-repente-tr-ansfor{l!� se�i
_ equipamento em uma por sua vez, que "as cenas daquela ação 'real do espetáculo" devem aparecer
metralhadora e, rindo c_om escárnio, atira no grupo de 'jovens soldados que "como se estiv�ssérn··-,mcoradas no passado_ [ ... ), como se o passado se repe­
posavam para a foto - a um só tempo, emblema tragicômico do assassinato tisse, mas �ob formas estranhamente alteradas''. 14 Por meio dessa dualidade
por mei� da fü.. -açãoda imàgen1 e denúncia sur.r:ealista da guerra. da lemb:tanç3: tematizada e do poder da realidade das coisas, chega-se a utn
I • •
O artistii· plástico Kantor, cujo trabalhô teatral teve ínído com perfor­ teatr6 que consiste em "duas vias paralelas': como Kantor ànota a .respeito da
_
mances e happenings provocativos contra autoridades governamentais, revela .companhia teatral Cricot 2: aqui "o texto purificado de sua estrutura superfi­
uma intenção qu·e é reencontrada em muitas formas de teatro pós-dramático;
. . cênica autónoma do te;:itro puro''. s
cial e fabuladora'; ali a "via da ,,.ação 1

revalorizar as coisas e os elementos materiais do que acontece no palco em São célebres os bonecos quase em tamanho real qué os atores carregam.
geral. Madeira, ferro, pano, livros, roupas e objetos-inusitados ganham uma Para Kantor, os bonecos são algo como a essência prlmordlal e esquecida do
notável qualidade tátil e uma intensidade cuja procedência não é fácil de ex­ ser humano, seu Eu-lembrança que ele continua a levar con'slgo, No entanto,
plicar. Um fator essencial aqui é a sensibilidade do artista Kanto.r..P-ª.rn a_q�ilo a significação deles vai mais longe. Em uma espécie de troca con-i os cor­
que ele designou GO1ll0 "o objeto miserável" OU "a realidade de mais balxo pos vivôs e em conexão com os objetos de cena, eles transformam o palco
nível''. As cadeiras são gastas, as paredes têfn buracos, as mesas são cobertas ein wna paisagem de morte em que a transição das pessoas (com. freqüên�ia
de poeira ou cal, os velhos utensilios se encontram enferrujados, embaçados, agindo à maneira dos bonecos) para os bonecos (como que animados por
gastos, marcados e manchados. Nesse estado eles manifestam sua vulnera­ crianças) se torna imperceptível. É qu�se o caso de dizer que o diálogo verbal
bilidade e com isso sua " vida" em uma nova intensidade. O ator, vulneravel­ do drama é substituído por um diálogo entre homem e objetos. Aparatos sur­
mente humano, se torna parte de uma estrutura cênica geral na qual as cóisas reais (um b�;çÓmecâ.nlco que parece mals.um caixão de criança, a máquina
desgastadas são suas companheiras. Esse também é um efeito que o gesto que separa as pernas da mulher como que para o parto, mecanismos para
pós-dramático tornou possível. Pois no teatro dramático, mesmo com uma execução etc.) se_ acoplam aos membros dos atores de um modo bizarro. As
intenção naturalista - quando o meio aparece em seu arbítrio sobre os se­
res humanos -, o "âmbito" teatral funciona a princípio somente como mol-
repetições de atividades triviais - mas com um efeito poético - junto aos
' --
14 Kantor, op. cll,, p. 11 5.
120 13 lbid. . -�
\ 15 lb!d., pp. 114-15. 121
Grilber, ou as vozes:no espaço
objetos ou fazendo uso deles fazem com que as ações sejam experimentadas
éó'mo uma troca quase lingüls_tica entre homem e objeto. As figuras de Kantor
Quando se fala de um teatro "para além" do drama, cóiwém notar que há
atuam sobretudo mediante pantomima ou gestos, e não por acaso parecem
diretores que encenam textos dramáticos tradicionais com uma tal mobili­
provenientes das comédias de pastelão do cinema mudo. O drama dá lugar
zação de recursos teatrais que se produz uma desdramatização. Se nos textos
a mínimos desenvolvimentos cênicos sem fala. A hierarquia entre homem e
. encenados a ação é posta totalmente em segundo plimo, resulta da lógica esté­
coisa é relativizada para a percepção.
tico-teatral que a temporalidade e a espacialidade pr6prias do processo cênico
Kantor distingue claramente seu amor pelos bonecos do de Craig. 16 Ele
tenham maior destaque. Trata-se.mais da representação de uma atmosfera
não polemiza como este contra o ator (embora caiba observar que a "super­
marionete" de Craig não deveria de modo algum expulsar o ator humano do e de um estado de coisas. Uma escritura cênica prende a atenção, de modo
palco, mas mostrar um outro modo de presença do intérprete). Para Kan­ que a ação dramática propriamente dita se torna secundária. Klaus Miéhael
tor, ao contrário, o imaginário "primeiro ator" realiza um ato de signi.fica­ . G��:r pode ser considerado um dos "autores de palco': que desenvolveram
ção "revolucionária" e quase sagrada. Em um momento qualquer ele teve um idiÕmà-·teatral próprio. Quando Georg Hensel encerrou sua longa car­
reira de crítico teatral no Frank/urter Allgemeine Zeitung, em agosto de 1989,
a ousadia de se desvincular da comunidade de culto. Ele não era nenhum
apresentou numa retrospectiva pessoal sobre seus quinze anos de atividade19
fanfarrão, ;nas um herege que com esse enfrentamento criou uma perigosa
as grandes tendências teatrais vigentes desde meados dos anos 1970 segundo as
fronteira entre ele. e o "público", o que ao mcsnio tempo lhe ·possibilitou
seguintes categorias: exegese, reinterpretação, recÔnstruçãcr· e- pós-moder­
comunicar-se com os vivos a partir do mundo dos mortos. 17 O teatro de
Kantor corresponde de modô singular, por meio de seus temas e formas, nidade. Rudolf Noelte foi considerado por ele como "o diretor exemplar da
a momentos arcaicos do teatro pr.imitlvo. Monique Borie também obsé'rva, exegese"; Claus Peymann, que junto com · Achim Freyer descó'.11�truiu sati­
ric.imente Os salteadores [Dle 1Uiuber], · de Séhiller, em 1975, foi qua.lific�do
com razão, qu� o sentimento dominante da derrota e do fracass�_.rr6,teatro
como o protagonista da reinterpretaçãp. Klaus Michael Grüber aparecç nesse
de Kantor lembra a tragédia antiga. Se Kantor fa�a de uma "cp'!Ísciência de
panorama não só coroo <:Xl)Oente do "método de direção pós-moderno'; com
nossa derrota" que deve ser compreendida religlosameiile·para ter a ver com
o teatro, era justamente esse o tema·de que a tragédia grega se alimentava.18 Empédocles: ler Holderljn [Empedo1c1es:· Holl'lerlin /esenJ,..mas. também como
Essa correspondência, que p or assim dizer estende um enorme arco do reino
0
representante _da "reconstrução" hist§rica, p_rincipalmen·te c�;;;- s�a versão
pré-moderno do teatro antigo até o teatro pós-dramático no limiar do ter­ quase integral de Ham/ �t em 1982. O último aspecto - a· prática de encenaçã�
ceiro milênio - de certo modo contornando a época do teatro dramático historiclzante - encontrá:.s,�ora do campo aqui discutido, mas parec� sugerir
eLtropeu -, também pode ser observada, embora com outras características, a observação de que, paralelaine�té à prática pós-dramática de Grüber, Peter
nos teatros de Grüber e de Wilson. Stein, atuando.no Schaubühne, compreendia o teatro, de uma maneira quase
casta, em oposição ao "espírito do tempo'; como lugar d� lembrança encenada
da história (teatral). Assim, nas _éncenações de Tchekhov fb'ram citadas em
detalhe montàgens do)egendárfo"Featro de Arte de Moscou; em O macaco
peludo {The Hairy Ape], de O'NHll, foi copiado o- arranjo cênico de umà ence-
1 -· -
16 lbid., p. 253.

19 Georg Hcnsel, ln Frankfitrtcr Allgemeine Z�'itung, 1008'1989.


17 lbld., pp. 253-54.
123
122 t8 Ibld., p. 257.

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nação feita pur [Alexander] Ta1rov. Támbé1?-1 a encenação de Pedra por Peter O drama, forma exemplar da discussão, Justapõe andamento, dialética, de­
Stein _em 1987 se encontra· 1S.e�sa linha, wna1 atitude dáss_ic� � historiográfica bate e solução. Mas Já faz tempo que ó drama mente. Seu espírito - ou melh�r,
que com os anos levou o Schaubühne a µm ' 'certo en,rljecimento, a uma perfei- seu fantasma - transmigrou do teatro para o cinema e pouco a pouco para a te­
ção de efeito inuitas vezes ''.tria': na qual o·!r abalho de direção parece celebrar levisão, onde as possibilidades de simulação do real são muito maiores e o que
a si mesmo, Por outró lado, a· decJsão..consdente que toma posição contra conta é o enredo. A indústria de entretenimento não permíte que se perceba
to�o ingrediente subjetivo suscita respeito e deve ser louvada-como uma qua­ nada de sua contradição, nada de sua clivagem e duplicidade, nada de sua es­
lidade especial de auto-reflexão teatral. . ',,. tranheza - passa•se do efeito de estranhamento (v-E.ffekt) ao efeito de televisão
O fator estático e a clássica economia de .rê'eqrsos se associam no estilo (rv-E.ffekt-).2i No âmbito do teatro "estabelecido'; há apenas uns poucos direto­
de d�sdrap.1atizaçâo de Grüber.,De utn modo n;cito. geral,. pode-se dlz�r res que ousam praticar abertamente a diferença entre o drama e o teatro - na

·---
·que �\e _retira da§ p'éças o fator de ténsão ao extremo. E;se procedimento Alemanha, além de Grüber, podem ser mencionados Elnar Sçhleef e alguns
de uma isbtonia·p&s•dramática, .em.<'J.�� s_� exitam às exacerbações e os mo- trabalhos de Hans-Jürgen Syberberg. O trabalho deles é considerádo por mui­
'
rnentós culminantes, permite que o palcó apareça ·como um quadro, cujo tos ou como an.arquisJ_a e __agressivo, como no caso de Schleef, ou como um
efeito é intensificado pela "sobrecargà" da palavra falada, que desdobra sua clássicismo ultrapassado, como no caso de Syberberg. Apesar do reconhed­
função de expressão Hrico ..espjrih,tal..(� diinensão "emotiva" da linguagem, mento qe seu gênio excepcional, Grüber não foi (nem é) nenhum favorito dos
,
se.gun"dci'J�kobson). O drama moderno er� �-;- �undo da discussão, mas crít�çós mais importantes da Alemanha. Quando seus trabalhos se mostraram
o diálogo áa tragédia antiga - àpesar da aparência de duelo verbal antagô­ complexos e se distanciaram da norma, foram tachados de esotéricos; quando
nico - não-consiste no fundo em nenhuma discussão: cada protagonista seguiran1 o �exto ao pé da letra, como nas montagens de Hamlet e 1fig�nía em
permanece inacessível em seu mundo; a fala de um adversário passa ao �
ª
Táuris, for�tn equlvocadamenfé compreendidos como convencionais, ja que a
largo do outro. O diálogo não é tanto conflito e conf ronto no espaço da despeito de sua fidelidade ao texto eram leituras extremamente audaciosas.
troca lingüística, mas aparece como um "discurso em disputa", portanto Ao .passo que a "colisão dramática" define o sistema do drama, em Grü­
como uma competição em palavras, imitação da luta mud�--�?_!.l�on. -Os ber o teatro é determinado como cena e situação. O espectador está ali para
discursos dos ant�gop.istas·não chegam a se tocar3°-Em Grüber, com·õ·re- testeJ?unhar a dor de que os atores falam. Assim, Crüber remete àquela réa­
lataram atores acerca de uma reúnião de trabalho organizada por Georges lidade essencial do palco na qual o instante da fala é tudo. Não o desenrolar
Banu em Paris,21 tudo se passa em uma atmosfera que poderia ser intitulada temporal da ação, nãc::> o drama, mas o instante em que a voz humana se eleva.
"Depois de todas as discussões?''. Não há mais �ada para debater. O que é Um corpo se expõe, sofre. O lamento que ele manifesta ganha raízes e vai ao
realizado e falado tem o caráter de um rito inelutável, concertado, execu­ encontro do espectador como uma onda sonora que o tangencia com energia
tado repetidas vezes quase que cerimonialmente. incorpórea:7YI�o e compaixão: não é preciso mais nada. Nas encenações de
Grüber o que conta é o instante precioso em que um corpo, ameaçado, chega
20 Ver Carrle Asman, "Theater und Agon / Agon und Theater: Water Benjamin und Florens
Christian Rang''. Modcrn Language Notes, v. 107, n. 3, 1992, pp. 606-24; Patrick Prlmavesl,
Kommentar Übersetzung 1heater in Walter Benjaminsfrühen Schriften. Frankfurt am Maln, 21 O autor fai um Jogo de palavras com os termos v-Bffekt, abreviação de Verfremdunl{se.ffelsJ,.
1998, pp. 254 ss. "efeito de estranhamento': e TV·Effek, "efeito de televisão� O v-E.ffekt, um dos prluclplô.s'fun­
21 Ver Georges Banu e Mark BJezlnger (orgs.), Klaus Michael Grilber. li faut que le thé,itre damentais do teatro épico de Brecht, é um recurso que consiste em interromper · uma ação
124 passe a travers /es /armes. Paris, 1993. '.. com comentários ou canções de modo a quebrar a ilusão do espectador. (Jo;f.T,) 125
a falar em Llm espaço qa cena. Ali��, é essa cçnstelação, e não a narração (que torna um co-ator autônomo como local mínhno, opressivo e superlotado. Ele
c�bia úpopéia), que o teatro antigo-também fazia surgir.23 No teatro de Grü­ pode ser a onda minúscula ironicamente posicionada para separai: o palco de
ber torna-se audível a interminável voz antigamente cantada e beckettiana­ Ifigênia do público; ou, para A última gravação de Krapp [Krapp's Last Tape]
mente murmurada, uma fala que também se encontra na luta do discurso para com Bernhard Minetti, uma estufa de plantas completamente apinhada; ou
além do debate, que expressa a experiência de uma impotência irrec11ediável, ' ainda o pequeno palco de ensaio da rua Cuvry de Berlim, mal iluminado por
sem dinâmica enganadora e andamento.-f.also. A melancolia .iiós-dramática .pequenas lâmpadas à Chagall e lotado de corpos dos viajantes, para ambien­
reconcilia �squilo e Beckett, Kleist e Labiche em um "Trauerspie/"24 entregue tar o desespero em Na estrada real, de Tchekhov.
à contemplação do espectador. Na Ifigénla em Táurls de Grüber, montada no Nos trabalhos de Grüber não há quase nenhum espaço neutro. Mediante
Schaubühne em 1998, o relato do terror do mito se tornou uma suave con­ a invençito de um espaço grande ou .pequeno demais, o eixo voz/espaço se
templação cênica do insuportável. O conflito dramático recua para trás dessa torna determinante para o teatro. Mal existem intriga, enredo, drama, ao passo
meditação, para trás do ato da expressão precisa. O tema pós-dramático é a �ui .q\!� a distância, o vazio, o hiato se tornam protagonistas ãutônomos. O verda­
um teatro da voz, e a voz é uma ressontlncia do acontecimento. dei.J.·�� se dá entre o soin e o espaço sonoro, não entre os interlocutores.
A condição para o teatro da voz é um espaço arquitetônico que por suas Cada um fala somente por si. No antigo hotel de luxo Esplanada, em Berlim,
dimensões estabeleça uma relação com o discurso humano como espaço pen­ o espectador encontrava em 1979 um ambiente feito de vozes, projeções, ce­
sado para essa voz. Em Grüber o espaço se torn�_perceptível primordialmente nas isoladas que eram ligadas por meio da leitura �e- uma ver3iio resumida
pelo excesso - a exemplo do vazio colossal do Estádio Olímpico de Berlim, da novela Rudi (1933), de Bentl�ard voo Brentano, que enfoca tuna-eriança do
construído segundo o modelo dos estádios da Antigüidade como arquitetura proletariado berlinense. Uma outra forma do trabalho cênico e espacial da me-
de dominaç�o. A construção nazista foi o espaço para a montagem de Via�em ·/
m6ria foi apresentada por Grüber em 1995 no cemitério de Weimaf,..!)l}_d_e_ ele
de inverno [ Wlnterreise], na qual o público ficava agrnpado em. uma p�quena adaptou entre os túmuiõs 7Jãe-páUdà, írmã fêl'na [Pálida madre, tierna her­
parte das arquiliancadas e tinha de relacionar fragmentos de textos do Hipé­

--··
mana], de Jorge Semprún, um texto de várias camad�, que passa por Goethe,
rion de Hõlderlin com cenas esportivas, imagens de cemitérios: barracas de Buchenwald, L-éon Blum,.perseguição poUtica sob Stálin, Brecht, [a atriz alemã)
acampamento e quiosques de comida, O local escolhido para Fausto foi a am­ .. . -.. -···
Carola Neher e limpeza,,étnica ·na Bósnia. 'Mà'isi.Jh1a - vez·, o-dk.eto.r.ab_ andonóu a
pla igreja Salpétriere; a fria e - monástica abside. de concr �to do Schaubühne esfera do dra�a encenado em favor.da,.criação de uma.�ttiação teatr�l (°pàra.a
serviu de espaço para Hamlet; a grande Deutschlandhalle de Berlim serviu qual o local irfcomum foi preparado pelo cenógrafo Eduardo Arroyo).25
para o Prometeu de Ésquilo na tradução de Handke. Mas o espaço também se ..
Wilson, ou a paisagem ·-.
13 Ver Hans-Thies Lehmann, "Antlquité et modcrnité par delà le ctráme': in Banu e Blezinger
(orgs.), op. clt., pp.101-06. Segundo Richard Schechner, a ação·de um drama pode ser facilmente tesu­
24 O termQ Trauerspiel é comumente traduildo por "drama barroco" com base em seu empre­
.mida quando se faz uma lista da1> transformações por quê pãssnm as drama­
go por Walter Benjamin em A or((!em do dram11 barroco alemifo para caracterizar um gê­
nero dramático especltico do período barroco. Sua traduçio dicionarizada seria "tragédia�
tis personae entre o in(clo e o fim'do processo dramático.26 Transformações
. _..,__. l '
mas na ver�nde se 1rata de um·gênero especifico que J_liiO se Identifica nem com a tragédia
1 .
(cm alemão, n-agõdie) clássica ou classicista nein com o d(ama mpderno, e que por outro 15 Cf. Franz Wllle, in T/1eater Heute, sêfembro de 199 � pp. 4-7,
126 lado não se restringiu ao período barrpco. (N.T.) 16 Schcchner, op. cit., p. 185. · 127
podem ser evocadas mediante procedimentos-mágicos ou com o uso de tra· tanto, isso.não abala· a convicção de que em muitos aspectos Wilson ofereceu a
. '
jes e máscaras; elas se realiiam poê'melo do recq�beci��ento.(anagnorisis) resposta mais·enérgica para a demanda por um teatro na época da mídia, bem
' • . 1 '
ou de processos corporais; podem ser �etátn�rfo�es recorrentes, segw1do como ampliou radicalmente o espaço para concepções diversificadas sobre o
a analogia com os processos naturais, e fazer parte de uma forma temporal que o teatro pode ser. A influência subjacente ou patente de sua estética se
dcl\co-símbólica, No cerne· da atua,ção.J��tral talvez não se encontre tanto Infiltrou aos poucos em toda parte, e pode-se dizer que o te _:1tro do final do
a transmissão de significados, mas sobretudo a arcaica mistura.de medo e século talvez deva mais a ele do que a qualquer outro realizador teatral.
prazer na representação, na transformação·q�mo tal. Cri3:nças gostam de se O teatro de Wilson· é um teatro das metamorfoses. Ele atrai o espectador
. '
fantasiar. O prazer da auto-ocultação pelo mascái�mento é acompanhado de para o mundõ de sonho das transições, das ambigüldades, das correspondên­
uma outra satisfação, não menos iJ).qlúetànte: sob o 'olhar \anç�do por trás da cias: uma coluna de fumaça também pode ser a imagem de um continente;
mts�ara o mundo dos outros se transforma, torna-se subitamente estranho uma árvore se torna uma coluna coríntia e depois as colunas se transformam
a o ser-visto a partir de .u1ua pe!·��c�va completamente diferente. Quem olha em chaminés de fábricas. Triângulos sofrem uma mutação e viram velas, para
0
pelas aberturas de uma máscara conv;te seu-Õlhãt naquele de um animal, de depois se conv.erterem.erq tendas ou montanhas. Tudo pode ter sua escala de
uma câmera, de uma criatw-a desconhecida de si mesma e do mundo. Em to­ grandeza 1nod.ificada, como em Alice no país das maravilhas, qbra sempre lem­
dos os registros o teatro é transformação, metamorfose, e cabe levar em conta brad�_pel� teatro de Wilson. Seu lema poderia ser: "Da ação à transformação''. A
a a-dvertência da antropologia d� te�tro de quêsob o esquema tradicional âa metámorfose combina, assim como a máqwna deieuziana, realidades heterogê­
ação se encbntra o esquema mais geral da transformação. Assim também se neas, mil platôs e correntes de energia. Na estética de Wilson, o movimento em
compree11d�me�or o fato de que o abandonQ do modelo "mimese da ação" câmera lenta dos atores produz uma experiência niuito peculiar, que põe por
não leva de modo alguin ao fim do teatro. A concentração nos processos de terra a idéia de ação. Tem-se a"impressão de que os atores não agem por vontade
metamorfose leva nà verdade a um outro mo_do de percepção, no qual o reco­ e decisão própria. Se Bilchner escreveu que os homens são bonecos conduzi­
nhecimento é continuamente superado por um jogo de espanto que não se si­ dos por fios Invisíveis de poderes desconhecidos e se Artaud falou do "autô­
tua em nenhum ordenamento da percepção: "O andar de caranguejo da visão mato em pessoa'� esse tema corresponde àquela impressão de que no teatro de
repetitiva é interrompido por um outro modo de ver, que rumoreJã' na visão·de. .. . -· .. Wilson operam forças misteriosas que parecem mover as figuras magicamente,
reconhecimento e continuamente a impele para fora das vias habituaís''.27 sem motivações, objetivos ou nexos apreenslveis. Estas permanecem solltarla­
Entre os anos 1970 e 90, poucos artistas teatrais terão modificado tanto o mente enredadas em um cosmos, em uma rede de linhas de força e de trajetos
campo de recursos do teatro e influenciado tanto as possibilidades de pensá­ "pré-delineados" (de modo muito concreto, pela ilúminação). As figuras {ou
lo de um modo novo quanto Robert Wilson. Mesmo assim, ele não foi pou­ marionetes) habitam uma fantasmagoria mágica que imita o enigmático des­
pado do destino comum: ;eus últimos trabalhos retomaram aqueles recursos tino dos hefôirtrágicos, cujo percurso é traçado pelo oráculo. Assim como no
teatrais que, quando eram novos, fizeram que se revisse o espaço teatral de silêncio de Grüber e nos círculos de Kantor, nas trilhas de luz máglcas de WU­
uma época, mas depois perderam muito de seu encanto porque passaram a son o teatro dramático ligado à autonomia humana como questão e problema
ser previsíveis e por vezes foram usados com um maneirismo artificial. No en- é decomposto -'no que concerne ao que é estetlcame_nte sintomático - em uma
energética pós-dramática, no sentido em que Lyotard fala de um teatro ·�p.ergé­
27 Bernhard Waldenfels, Sinne5Schwel/c11. Studien zur Phãnomenologie des Fremden 3. Frank- tico" em vez de representacional. Essa energética prescreve enigmáticos padrões
128 furt am Main, 1999, p. 138.
... , -- de movimento, processos e histórias luminosas, mas quase nunca uma ação. 129

Embo�a seja preciso dlferenciílr formas teatrais e pictóricas e respeitar contexto cênico coerente (como em Kantor), mas apenas figuras que agem
seus--ést�tutos, sempre diferenciados, essa peculiar metamorfose do espaço como emblemas incompreensíveis. A maneira ostensiva como aparecem faz
cénico em paisagem - Wilson êhama seus ambientes auditivos de "paisagem perguntar por seu significado, sem que se ache uma resposta para essa pera
sonora" [audío-landscape].,.. faz lembrar um procedimento inverso do século gunta. Os atores que se encontram "reunidos'' no palco com freqüência não
xrx, quando a pintura se aproximou de um acontecimento teatral. Trata-se entram no contexto de uma interação qualquer. O espaço desse teatro tam­
do panorama e das enormes imagens transparentes de Daguerre,._11.as quais, bém é descontínuo: luz e cores, signos e objetos disparatados criam um palco
por meio de uma iluminação diferenciada, cenários, arquiteturas e paisagens que não designa nenhum espaço homogêneo, O espaço de Wilson costuma
eram aparentemente postos em movimento, como o interior de uma lgreja, ser compartimentado como que "em listras" paralelas à ran1pa, de modo qu,e
que a princípio aparece vazio mas no qual em seguida se observam, com o as ações em diversas profundidades cênicas possam ser lidas pelo espectador
auxílio de uma mudança na iluminação, freqüentadores; soa uma mú�ica e ou de um modo sintético ou, por assim dizer, como "paralelogramo''. Assim,
finalmente tudo volta a ficar escuro28 - tais p_rocedimentos lembram as n_1e­ · --·e::ab�_à fa!��sía de mõntagem do observador decidir se ele deve observar os
tamorfoses dos cenários de Wilsoi1. Pode-se ver nisso uma antecipação do diversos personagens sobre o palco como pertencentes ao n�esmo contexto ou
cinema, a satisfação çlo desejo do espectador de uma maneira que na época apenas como figuras que se apresentam sincronicamente. É evidente que com
era considerada sensacional. Para o nosso
· contexto, é importante a constata­ isso a capacidade de interpretação da textura do conjunto tende a zero. Por
çã�de· que, evidentemente, a necessidade teatral não·é de modo algum fixada
meio da montagem de espaços virtuais imbri'cado.s oujuslapostos, que perma­
na ação; a paisagem artificialmente iluminada, a "ação" d9 raiar do dia e da necem independentes uns dos outros - é esse o ponto crudai'-:-de modo que
muda�ça de iluminação, também é um elemen�o constitutivo. A propósito não se ofereça sfütese alguma, surge lln'la �fera poética das con9tações,
da pintura transparente e cheia de efeito de Karl Frledrich Schlnkel, falo1,1-se Falta uma orief\tação__ çl_��máti�a através das linhas de uma · histórla,, que
de "teatro sem poesià'. 29 E a observação de que nas fascinantes Jlusé;s da na pintura corresponde ao ordenamento do-�Ísível por melo da perspectiva.
realidade das in;agens panorâmicas circulares é justamente a imobilidade O engraçado na perspectiva é que ela torna possível a totalidade justamente
do tempo que desperta o desejo de movimento e narração/� qúe depois será por excluir do mundo visíyeJ a posição do observador, o ponto de vista, de
atendido pelo cinema, também pode-ser lida no sentido de que aqui está modo que o ato constitutivo da r�p,:����tação esfi füsente·do-representado.
r

dado o �pulso para uma vivência teatral em que predominam o efeito de A isso corresponde a forma da narração·dramática �-·mesmo q_uand�- ;ià in­
espetáculo e a linguagem conduzida paralelamente. . tegra um narrad�r-épic?, Só que em Wilson entra em seu lugar uma história
Em Wilson se encontra uma contestação da hierarquia dos meios teatrais, universal qµe �parece corito.,caleidoscópio multicultural, etnológico, arqueoió-
q�e está Ugada à ausência de ação em seu teatro. Na ma\or parte das vezes não glco. Sem entraves, seus qua<l�'õs·te.atrais mlsturam tempos, culturas e espaços.
há personagens psicologicamente elaborados nem individualizados em um Em A floresta [The Forest] (1988) a história industrial do século XIX se reflete
no mito babilônico; no final dé Kaº"i'vio�ntain and Guardenia Ten-ace 31 (1972)
28 Cf. Briglt Verwlebe, "Wo dtc Kunst endlgt und die Wahrhelt begi,nnt. Licht111agle und Verwand­ surge uma vista do horizonte de Nova York em chamas e p-��-ti·ás ap"arecem o
lung im 19. Jahrhundert': ln Kunst- und Ausstellungshalle der Bundesrepubllk Deutschland,
contorno de um pagod�. um gra�de macaco branco como estátua cuío rosto
Sehsucht. Ober die Veriinderung l!isueller Wahrnehmung. Gõtllngen, 1995, p. 90. ' ' <
29 Ibld., p. 85.
30 Stephan Octtermann, "Das Panorama - Ein Massenmedlum", ln Kunst- und Ausstellungs­ 31 Em tradução llternl, "Moritâiíha°i<a' � t;rra�o Guara énla", com ama fusão das palnvrasguard
·
130 halle..., op. clt., pp. 80 ss. e gnrdenin. [N.1!. ) 131
..
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I
queima, os três sábios do Or_;�_nte, um fogo apocâllptico e um dinossauro: his- caráter artístico do teatro de Wilson com o mito, é justa esta objeção: aqui
tória e pré-história não no sentido da compre.enfâO h�stórico0diá1ética, mas
• r •
os imaginários míticos õ·cupan1 o lugar da ação como deleite "pós-moderno"
como profusão de imagens. em citai· mundos de imagem cujo tempo já passou. Por outro lado, uma ob­
São numerosas as imagens de_ �ilson que evocam direta ou indiretamente servação da história do teatro ensina que mesmo em épocas remotas mito e
mitos antigos em uma imponente abundância'de novos temas e figuras, sejam diversão não deviam se contradizer. Wilson se insere em uma longa tradição
· eles históricos, religiosós ou literários.- Para 'Wilson, todos eles pertencem ao que vai do teatro de efeitos'barroco, das "máquinas" do século xvu, das ')nás­
cosmos imaginativo e todos são, em um sentiêio_. mais amplo, míticos: Freud, câras" do perfodo do rei Jaime, do teatro de espetáculo vitoriano até o shaw e
Eiü.stein, E�lison e Stalin; a rainha Vltória e Loherigrip; Salomé, Fausto e os a representação circense dos modernos, formas que já incorporavam a seus
iqnãos· da epopéia .•
dé•.....
Gilgaínesh;
. ...
Parsifal
' t' ..
(na versão de· Tankred Dorst em repertórios, sem respeito e com muitó efeito, a profundidade de significàdô e
Haiiiburgo);_S_�o Sebastião (em Bobigny); Rei Lear (em Frankfurt am Maln). a atração dos clichês míticos.
Uma lista inco�pkta'dê'êlêinenttrs ·tnitkos, quas�Q?�i�os e pseudomJticos de Uma vezBue em Wilson há priorização do fenômeno sobre a narração, do
seu teatro dá uma idéia do prazer brincalhão que se obtém com citações pas­ efeito de imageth sõbre o atór individual e da contemplação sobre a interpre­
sageiras da provisão de imagens da humanidade, wn prazer que não se deixa tação, se� .teatro cria um tempo do olhar. Esse teatto não possui sentimento
limitar por quaisquer fronteiras impostas por uma-lógica centrípeta: a Arca de trágico·óu compaixão, mas fala da experiência do tempo, testemunha o luto.
Noé, o Livro,.-de Jonas, o Leviatã, t�xtos indianos antigos e recentes, um navio Ader{;ais, a pi11tura em luz de Wilson fortãlece a uilidade db processo natural
viking, objetos de culto africanos, a Atlântida, a baleia branca, Stonehenge, ivli­ e das situações humanas. Desse modo, o que os atores fazem, dizem ou manl­
cenns, as pirâinides, o homem com a máscara de crocodilo egípcia, c.rJaturas festnm em movimentos perd� � caráter de ações intencionais. Seus empreen­
enigmáticas como a mãe-terra, a mulher-pássaro e o pássaro branco da morte, dimentos parecem· se desenrolar como em sonhos e "perdem ó nome de
Santa Jóana, Dom Quixote, Tarzã, Capitão Nemo, o rei dos Elfos de Goethe, ação''. corno diz Hamlet. Eles se transformam em utn acontecimento. Os seres
os {11dios Hopi, Florence Nightingale, Mata Hari, Madame Curie... humanos se convertem em esculturas gestuais. A associaçã'O com a pintura
O teatro de Wilson é neomítico, mas com os mitos como imagens, que tridimensional faz que as coisas funcionem como natureza-morta e os ato­
comportam a ação apenas como fantasia virtual. Figurando em narrativas com res como retratos de corpo inteiro em movimento. Wilson deixa explícita a
profundo significado alegórico, Prometeu e Hércules, Pedra e Medé!a, a esfinge similaridade ehtre seu teatro e processos naturais. Assim, o termo "paisagem"
e o dragão sobreviveram ao longo dos séculos como provisões da imaginação ganha aqui o significado Inerente à "paisagem que aguarda o desapareci­
artística. No entanto, eles existem ao mesmo teinpo comb meras imagens mento gradual do ser humano" de que fala Heiner Müller: inserção das ações
conhecidas por aqueles 9ue não possuem nenhuma "cultura''. Qualquer um_ humanas em wn contexto da história natural. Como no mito, a vida aparece
"conhece" na qualidade de figuras do discurso cultural, sabendo ou não disso, como momentô d� côsmos. O homem não está separado da paisagem, do bi­
Hércules e os monstr.os, Medéia e seus .filhos, o revoltoso Prometeu, os lr­ cho e da pedra. Um rochedo pode desabar em câmera lenta; bichos e plantas
inãos inimigós Polinício e Etéocló. O mesmo vale para figuras míticas da são agentes dos acontecimentos tanto quanto as figuras humanas. Quando
pós-Antigüidade como Don Juan, Fausto ou ·Parsifal. Em uma época na qual o conceito da ação se dissolve de tal maneira em favor de um acontecimento
a narração organizada de modo ,;normal" dificilmente alcança a densidade de metamorfoses contínuas, o espaçó da açãÓ aparece como uma pa_lsagêm
do mítico, o teatro de Wilson busca se aproximar da lógica pré-racional do continuamente modificada por �ariações de luz, por·obJetos e for�as que
132 mundo das imagens míticas. Se há porém resistêt).C!ª em associar "a sério" o surgem e desaparecem. 13 3
Ao d�clamar no funeral de Müller um trecho do romance de Gertrude Stein não a única - que o teatro pós-dramático pode assumir, Iricluem-se a( o tea­
A feUura dos norte-americq�os [1he Making ofAmericans, 1925], Wilson men­ tro dos objetos, inteiramente sem atores humanos, o teatro com tecnologia e
cionou que após a leitura desse livro teve a certeza de que podia fazer teatro. De máquinas (como aquele do grupo Survival·Research Laboratories) e de modo
fato, é imediatamente evidente a afinidade eletiva entre o teatro de Wilson e os geral o teatro que integra a figura humana como elemento em estruturas
textos e as "peças-paisagem" de Steli1. Tanto num caso quanto no outro encon­ espaciais semelhantes às paisagens. Trata-se de configurações estéticas que
tram-'Se a progressão minimalista, o·"presénte contínuo': o aparente "marcar . utopicamente indicam uma alternativa para o ideal antropocêntrico de sub­
passo'; a falta de quaisquer identidades identificáveis; tanto num caso quanto jugação da natureza. Se os corpos humanos se submetem a uma realida'de na
no outro há um andamento peculiar que predomina sobre toda semântica, no qual estão em pé de ig4aldade co� coisas, animaJs e linhas de energia ( como
qual tudo o que pode ser fixado se converte em variação e gradação. Ao acgu­ também parece ser o caso no circo - daf a profundidade do prazer que ele en­
mentar sol:>re "uma outra versão da pastoral': Elinor Fuchs observa: volve), o teatro torna concebível uma realidade diferente daquela do homem

I experimentally suggest that a performance genre has emerged that [ ... ] relies on
_____
--....dominador da natureza.
-.....
.

the faéulty of /andscape surveyal. Its strnctures. are ammged not ôn lines of confllct
and resoiution but .on multivq/ent spatlal re/ationships, "the trees to lhe hi/1 to the
fie/d[ ... ] any piece ô/ it to any sky " as Stein said, '�ny detai/ to any other detafl".32

Mesmo que a sobreposição de nova pastoral e t�atro seja devida a uma pers­
pectiva especificanrente norte-ameritana (a experiência das grandiosas e1p·o­
derosas paisagens dos Estados Unidos), o ponto fica claro quando se �pr'istata
o seguinte acercá do teatro pós-d1·?mático do texano Robert ·�n!;�n: "He
creates within advanced culture a Jragile memory bank ofitnagery°Jrom nature.
'
--·- . .. -· ·- �. .
ln this way, and ln a variety of others, pestmodern theater artists hint at the pos­
--·-·�
sibility of a post-anthropocentric stage".33 "'teatro-pós-antropocêntrico" seria ......,. . -·--.
uma denomínação pertinente para uma forma importante - evidentemente

3:i. Ellnor Fuchs, 171e Death of Character: Perspec_lives on 1/ieafer after Modernism, Indiana,
1996, pp. 106-07. [Sugiro, com base na experiência, que se constituiu um gênero de repre­
sentação que [ ... ) se baseia na faculdade de perscrutar paisagens. Suàs estruturas não se
dispõem conforme linhas de conflito e solução, mas conform� relações espaciais polivalen­ ... __ _,.__

tes, "das árvores com a colina e �om o campo(... ), qualquer pedaço disso com qualquer céu';
como disse Stein, "qualquer det.íllhe com qualquer outro detalhe".] '
!
33 lbid., p. 197. ("Élc cria dentro da cultura avançada uni frágil banco de memória de imagens
da natureza. Dessa mâneira, e de várias outras, os artistas.do teatro-pós-moderno aponta1i1
134 para a possibilidade de um palco pós-antropocêntrico:') 135
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f Eliinináção dà síntese

Com a seguinte �isão geral _§Qbre os traços estilísticos do teatr� pós-dramá­


.:; ticô, ou, ·numa formulação mais técnica, sobre seu modó âe lidar· cóm os
signos teatrais, busca-se estabele_cer critérios de descrição e categôrias que
cóntribuam para tornat .ó teatro pós-drãmático mais reconhecível - não no
se11.tL90 de un1 mandado de busca e apreensão, Iüàs de uma orientação do
olhar. Nesse cónt�x.tõ, à concepção de signos teatr�i� deve abranger todas
as dimensões da signl.ficaçãô: não apenas a dos sighôs eiue co111põrtam uma
informaçãô apreensível, portanto a de significantes que denõtam ou uiil sig­
nificado identificável ou o coilótam cl.e modo lrtequívocó, mas. virtualmente a
de todos � os elementos do teatro. Uma cotpbr.eidade especifica, uin estilo do
. .. ' .
gestual, um· arranjo de palco tatnoém devem ser àss.lfnilados corno "signos"
já pela circunstância de que mesmo sem "slgnificàl se apresent�in com un)a
certa ênfase, copstitulndo uma manifestação ou gesticulação que exige atençâô
e que "faz sentido" em função do quadro mais genil da enceüaçãô, set11 que
possa ser deterini.hada concei�l\lmente. . ..,.·,,._,,,:;---
É certo que isso também foi tradicionalmente concebido como cáràcte·
. \� rfstica do belo. Assím, Kant afirtila que à "idéia estética" é u.t?-)á tal "represeil· 137
tação d� faculdade do juízo que dtmuito a pensar sem que qualquer pensa­ a essa posição "naturalista'; por assim dizer, está ligada a t�se de que um modo
mento determinado, ou sej�, qualquer conceito possa ser adequado a ela, que autêntico pelo qual o teatro poderia testemunhar a vida não surge pela instau­
por conseguinte nenhuma língua pode alcançar inteiramente e tornar com­ ração de uma macroestrutura artística que cultiva coerência (como é o caso do
preensível" e que abr� para o espírito "a visão de um campq a perder de vista drama). Pode-se demonstrar que nessa mudança se esconde uma inclinação
de representações afins''.' Não se trata aqui de discutir até que ponto a teoria solipsista. A consolidação e a relativa resistência das "grandes" formas podem
do uso dos signos na modernidade se distanciou dessa maneira de pensar ser explicadas pelo fato de que elas possibilitariam articular experiências cole­
na medida em que dissolveu a relação da "idéia estética" pensada por Kant tivas. A coletividade é a essência dos gêneros estéticos. No entanto, torna-se
com conceitos racionais. É suficiente que se deva conceder aos signos tea­ motivo de descrédito justarnente aquela cóletividade que se reconhece em uma
trais a possibilidade de atuar justamente por meio da eliminação da significa­ forma vivida em comum. Assim, se o novo teatro quer ir além de posições
ção. Conquanto a semiótica teatral ilumine o cerne da significação e mesmo descomprometidas e permanentement� particulares, precisa procurar outros
diante de uma grande ambigüidade garanta os restos do que é possível desjg­ .c�1:1inhos para pontos de encontro supra-individuais. E·os encontra na reali­
nar (sem o que, de fato, o livre jogo das potencialidades perde seu encanto), zação"teafrãl da liberdade: liberdade de submissão a hierarquias, liberdade de
é ainda preciso dêsenvolver formas de discurso e de descrição para aquilo obrigação de perfeição, liberdade de exigência de coerência.
que, por assim dizer, permanece como não-sentido no significante . Assim, a Marianne van Kerkhoven, dramaturga dedicada às questões do 11ovo tea­
presente tentativa de descrição está ligada a perspedi".:as de semiótica teatral tro na Bélgica, associou a nova linguagem teatral à teoria do caos,2 para a qual
e ao mesmo tempo procura ultrapassá-las i uma vez que se concentra nas fi­ a realidade é constituída mais de sistemas instáveis ao que de.cirçµitos fecha-·
gurações do auto-apagamento do significado. dos: as artes responderiam a isso com ambigüidade, plurivalência e simulta­
A síntese é explicitamente combatida, suprimida. Pelo modo da sua semiose, neidade; o teatro, com uma dramaturgia que produz estrutu�as �ntes parciais
o teatro articula t�a tese acerca �a percepção. Pode ser um tanto sw:pr��rtéÍente que totais. Realiza-se o ·saó'ifíéió da síntese par.a alcançar a densid�de dê mo­
quando se atribui tal qualidade de defesa de tese ao discurso artístico, como se mentos intensos. Se a partir das estruturas parciais se desenvolve algo como
faria a. um discurso teórico. Certamente, à parte caso;· excei:fêiofiais como a da um conjunto, isso Já p.�o ·se organiza segundo moéielos previamente dados
"peça de tese" bem-sucedida, a arte a princípio reconhece teses e teoremas ape­ de coerência dramátic;� o;·dê 'rêfétêtfcias-simbólicas .ab_ta�entes: não r�allza
nas implicitamente, e assim de inodo necessariamente ambíguo. No entanto, é síntese alguma. Essa tendência é v�li<.\a para todas as artes, O..teairo,·a·farma
por isso mesmo que uma das tarefas da hermenêutica consiste em 1er as hipó­ · artística mais radicalmente ligada ao'aco�teciment�;-t6rn;-se um paradign'ia
teses que emergem indiretamente das formas e das preferências de configura­ da estética. Ele deixa de.s�r o setor institucionalizado que era e toma-se o
ção da prática estética, levando em conta portanto sua.semântica das formas. nome para uma prática artfstiç-'.1 de desconstrução multimedial ou interme­
No teatro pós-dramático, é manifesta a exigência de substituir à percepção uni­ dial do acontecimento instantâneo. No entanto, a tecnologia e a dissociação .
formizante e concludente uma percepção aberta e fragmentada. Desse [!10do, medial do sentido têm sido as prirneir,!S a se voltar para o potencial artístico
a abundância de signos simultâneos pode se apresentar como uma duplicação da decomposição da percepção ....: _nos term�s de Gilles Deleuze, para as "H�has
da realídade, parecendo simular a confusão da experiência cotidiana real. Mas de fuga" da_s partículas 1-'molecuÍares" em relaçã°o à estr�tura geral "molar''.
\ '

lmmanuel Kant, Kritik der Urteilskraft, in Werkaufgabe, v. x. Frankfurt am Main, 1974 1 2 Marianne van Kerkho_yei), '.'Die Last der Zelten': zy.r-Zeltung, (Frankfurt om Mnin}, feverei-
1
138 pp.149-50 (§ 49). ro de 1991. 139
�-•\
',,

Imagens de sonho orgânico, inclinação para o extremo, a distorção, a incerteza e o. paradoxo.


Como características do uso maneirista de signos aponta-se também a es­
Segundo a perspectiva da recepção, trata-se cja liberdade de uma reação arbi- tética da metamorfose, realizada de modo ,exeinplar e111 Wilson. Aparece o.
trária, ou melhor; idiossincrátic" . . C?que surge' é uma "comunidade" não dos se­ princípio maneirista da equivalência: em vez da contigüidàde, como quer a
melhàntes, ou seja, dos espectadores asse.tm!lhãdos pôi- motivações partilhadas narração dramática (A depende de B e .n está ligado por sua vez a e, de modo
· (o humano em geral), mas dos diferentes, que não fundem suas perspectivas que se dá uma série o� seqüência), encontra-se uma heterogeneidade dispa­
especificas num todo, conquanto compartilhe�·e��tas afinidades em grupos ou ratada, em que cada detalhe parece poder ocupar o lugax de qualquer outro.
grupelhos. Nesse sentido, a perturbadora estratégia cfa.e!/mil'lação da síntese sig­ Assim como nos jogos de palavras dos surrealistas, essa circunstância leva de
nifica a proposição de �1ma comunidade das fantasias diversificadas, singulares. modo sempre renovadó a uma percepção intensificada do particular e à des­
Alguns pod�m enxerg�� aqui ap�na� �a 'tendência socialinente perigosa ou coberta de surpreendentes "coxrespondências'� Esse co11ceito não por acaso
artisticament� prÓbie111·áiica ii"uma-recepçãó sem_gj�:iÓ' e, como foi observado, provéin da poesia lírica, e descreve dê modo apropriado a nova percepção
. solipsista, mas nessa suspensão de normas da constituição de sentido convertida do teatro p�ra ·ãlém do drama como "poema cênico", O aparato sensorial
em norma talvez se anuncie uma esfera livre da partilha e da comunicação que é humano �ificilmente suporta a falta de referência. Priv�_do d.e seus nexos, ele
her<leir,a das utopias da modernidade . .Mallarmé oh.ser.vou que desejava jornais procµ{a referências pr6prias, torna-se "ativo''. fantasia "descontroladamente'� e
em que o�·habitantes
1
de Paris relatassem

seus sonhos (em vez dos acontecimen- o qúe lhe ocorre então são semelhanças, conexões, correspondências, mesmo
tos políticos cotidianos). De fato, os discursos cênicos se aproximam eín vários as mais remotas. O rastreamento de conexões anda jlmto com a desampa­
. aspectos de i.l.ifüi estrutura. onírica e parecem contar algo acerca do mundo oní­ rada concentração da percepção nas coisas que se oferece1n (talvez elas ainda
rico de seus criadores . .É essencial para o sonho a não-hierarquia entre ima9ens, sussui:rem seu segredo). Asskn como na episteme pré-clássica abordada por
movimentos e palavras. "Pensamentos oníricos" constroem uma textura que Foucault, a qual perscruta em toda parte um '.'muildo de similitudes", o espec­
se assemelha à colagem, à montagem e ao fragmento, não ao curso de aconte­ tador do novo teatro procura, arrebatado, entediado óu desesperado, as "cor­
cimei1tos estruturado de n1odo lógico. Ó sonho é o modelo por exç_elên.1:,� da respondências" baudetalrianas no "templo" do teatro. A sinestesia imanente
estétíca teatral não-hierárquica, uma hera?ça do surrealrsmô. Artaud, que a ;is�- ao-aêontecimento cênico, que desde Wagner - e desde o entusiasmo de Bau­
Jumbrava, fala de hieróglifos para evocar o status dos signos teatrais entre letra e delaire por Wagner - se tornou um d.os principais temas dos modernos, não
imagem, entre os modos de significação a cada vez diversificados e a contamina­ mais. consiste em um elemento implícito do teatro como obra de encenação
ção. Para caracterizar o tipô dos signos pertinentes à interpretação dos sonhos, oferecida à contemplação, mas em uma oferta explícita da atividade no teatro
Freud igualmente recorreu à comparação com os hieróglifos. Assim como·o como ptocesso de comunicação.
sonho demanda uma diversa cofnpreensãó dos signos, o novo teatro precisa de Seria tentãâor discutir aqui as possibilidades que a fenomenolog�a e a teo­
urüa senúótica "desbloqueada" e de uma interpretação ''turbulentà'. ria da percepção oferecem à compreensão do processo da ·percepção conjunta
(aisthesis) que,_se não se unifica, se comunica entre os sentidos. Se a percepção
Sihestesia sempre füncioha de maneira dialógica, na medida.em que os sentidos respon­
dem a estímulos ou �xigências do ari1biente, revela-S!? ao mesmo ten�J:>P.-uma
É quase impossível passar pQr alto que no novo teatro há traços estilísticos disposição para reunir a diversidade em un1a textura de percepção, ·para cons­
140 que são àtríbuíclos à tradição maneirista: resistê -!).c..La coi:1tra o fechamento tituí-la portanto como unidade, de modo que as formas da prática estética 141
criam a possibilidade
--· de intensificar e_ ssa atividade sintetizadora e corpórea da tro pós-dramático não é apenas um novo tipo de texto da encenação (e ainda
experiê11cia se11s_orial ao mesmo passo que se busca justamente sobrecarregá-la, menos um novo tipo de texto teatral), constituindo-se antes num modo de
tornando-a consciente como busca·. decepção, eliminação e redescoberta. tratamento dos signos teatrais que revolve desde a base essas duas camadas
do teatro por meio da qualidade estruturalmente diversificada do texto da
Texto da performance performance. Ele se torna mais presença do que representação, mais expe­
riêncía partilhada do que comunicada, mais processo do que resultado, mais
Está estabelecida a distinção entre os níveis da representação teatral em ter­ manifestação do que significação, mais energia do que informação.
mos de texto lingüístico, texto da encenação e texto da performance. O "mate­
rial" lingüístico e a textura da encenação encontram-se em relação de recipro­ Traços estilísticos do teatro pós-dramático
cidade com a situaçãó teatral entendida de modo abrangente i1;! concepção de
"texto da performance''. Ainda que o termo "texto" contenha aqui uma c�r_ta .... /:s características observadas, as categorias proposta� e os modos de trata­
im_precisão, ele expressa que em cada caso se configuram uma correlação e m.iirtod.õs signos no teatro pós-dramático são n seguir ilustrados em casos
um entrelaçamento de elementos que (ao menos potencialmente) compor­ específicos. O status dos exemplos é alegórico: ainda que eles correspondam
tam significados. Com o desenvolvimento dos estudos da performance, evi­ aparentemente sem problemas a todos ou quase todos os traços de cada um
denciou-se que a �it�ação da montagem como 'iW todo é constitutiva para o ,.
,•
dos tipos, categorias ou modos de tratamento discµtidos, em princípio des­
teatro, para o significado e o status de cada elemento particular dele. O modo taca-se com mais clarezci apeilas um traçoi que""t
. am· bém deve s�r concebido
de rela.ção da representação com o espectador, a ambientação temporal e es­ como fórma pós-dramática em outros trabalhos teatrais uos quais aparece
pacial, o lugar e a função do processo teatral no âmbito social que constitu,em de rnodo mais velado. Ficarão à margem dessa fenomenologic/ do tratamento
o texto da performance irão "sobredeterminar" os dois outros níveis. qi.rándo pós-dramático dos sígnos ·os ·ásf5ettos de lingu_agem, voz e texto� ;bordados
se decompõe metodicamente a densidade da mont�gem em níveis-de _ signos, especificaipente no Capítulo 5.
não se deve esquecer que uma textura não_ se compõé·como-um muro, de
pedras, inas éômo um tecido, de fios, .e por isso a significância de todos os Parataxe
--...
· · ·----... _ .........
elementos individuais depende no fim das contas da "iluminação geral'� em
vez de ser produzida como que por adição. ·· Um princÍpió'geral do teatro p6s·-d· ;an�átic� é a des-hierarquização �os rêcur­
Para o teatro pós-dramático, o que vale é que o texto teatral predeter­ sos teatrais. Essa estràt�a não-hierárquica contraria nitidame�te, íl tradição,
minado por escrito e/ou oralmente e o "texto" - no s�ntido mais amplo do que para evitar a confusão �-pco,duzlr a harmonia e a compreensibilidade privi­
termo - da encenação (com atores, suas contribuições "paralingüísticas': re­ legiava um modo de concatenação por hipotaxe, normatizando a sobreposição
duções e deformações do material lingüístico; com figurino, luz, espaço, tem­ e a subordinação dos eleinentos.-Com a paràtaxe do teatro pós-dramático os
poralidade própria etc.) são postos sob uma nova perspectiva por wna com­ elementos não mais se concat�nam de modó lnequívoço,-Heiner Goebbels
preensãD diversa do texto da performance. Ainda que a modificação estrutural declarou em uma entrevista: ' ' ,
da situaçjo teatral, do papel do espectador n�la e do tipo de seu processo \ �
·comunicativo não se evidencie em todas as variedades do teatro pós-dran1á­ O que me interessa é_ �!!!Je4tro que"rião ��ltÍplique os signos regular�1ente. [ ...]
tico, nem apareça em geral-cotn a ínesma clareza, cabe constatar que o tea- Ó que me lntere�sa é inve11tar um t�atro órtde todos os recursos.não só se ilustrem 143
\
-....
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1 .
reciprocamente e se dupliquem, nJas CO!l�ervem suas próprias forças e no entanto
.
do épico, No entanfo, a epicização - negação do drama em imagem - é ape­
• ••

ajam juntos, onde não se possa.mais contar co� a hierarqui:i conv_encional dos
l

nas um dos aspectos daquela êstétíca que combina a imobilização e o conge­


.. •

recursos. Quer dizei; onde uma luz possa s.e� t�? forte qúe o espectador observe lamento das posturas com a conseqüente justaposição dos sig�os. O que se
apenas a luz e esqueça o texto, onde o figurino.fale uma língua própria, onde haja passa aqui no âmbito da pintura pode ser encontrado de diversas maneiras na
uma distância entre o falante e o texto,e wna tensão entre a música e o texto. Sem­ prática teatral pós-dramática: gêneros de variados tipos são reunidos em uma
pr� experimento o teatro como algo excitante quando se fazem sentir no palco montagem (dança, teatro de narrativa, performance ... ); todos os recursos têm
distanciamentos que eu possa reconstituir �omo,�pectador. (...] Assim, procuro o mesmo peso; tepresentação, coisas e discurso apontam paralelamente para
inventàr. uma espécie de realidade cênica que tambêm.�oha algo a ver [ ...] com diversas direções de significação e suscitam uma contemplação ao mesmo
. a arquitetura ou a construção do palço e suas leis própri�s e q.u� assim encontre tempo tranqüila e rápida,
··tambf11�._uma cert� rÚistência. [ ..,) O qüé·üf .e interessa em geral é, por exemplo, A conseqüência de tudo·lsso é uma muaança de atltude por parte do es­
que um esp;çô formule-também-un1-mo.Y.i.rn�n.to, tenha tà)nbém um tempo.3 pectador. Na hermenêutica psicanaHti'ca, fala-se de "atenção tlutuante por
---� ..
igual''. Freud _�legeu· esse ç_onceito para car�cterizar a maneira como o anali�ta
De modo semelhante, pode-se constatar uin tratamento não-hierárquico dos escuta o analisado. Tudo depende aqui de não compreender, imediatamente.
. -· que visa. uma percepção.sinestétif:a_<: !'eJeita
signos ····� hierarquia
·---·uma .
estabele- Ao c�ntrário, a percepção tem de permanecer aberta para esperar, em pontos
cida, que privyegia a llnguagem, o modo de falar e ô gestual e em que·as qua- inteiramente inesperados, ligações, correspondências� explic�ções que fazem
lidades visuais, como a experiência arquitetfü1ica do espaço, quando chegam ô que se disse antes ser encarado sob uma luz muíto diversa. Assin:1,_o signifi·
a entrar em-jogo1 .figuram_como aspectos subordinados. cado permanece por princípio suspeflso. Justamente aquilo que é secundário
Uma comparação com a pintura pode esclarecer as conseqüências art1s­ e insignificante é registradó'-êom exatidão, porque em se� não-significado
ticàs da des-hierarquizaçãó. Diante dos quadros de Brueghel é coinum sentir imediato pode se mostrar significativo para o discurso da pessoa analisada.
que as posições das figuras parecem estar pecul!armente congeladas e como que De modo similar, o espectador do teatro pós-dramático não é lmpelldo a
suspensas (em razão de uma certa deselegância, falta-lhes a suges�ã��o mo­ uma imediata assimilação do instante, mas a um dilatório armazenamento
vime.nto captado câr�cter-isticamente num quadro), Essa imobilização está ·· das· húpressões sensíveis com "atenção flutuante por igual''.
intimamente ligada ao cai'áter narrativo das imagens. Elas estão conspicua-
·, mente desdramatizadas: cada detalhe p�rece apresentar o mesmo peso, de Simultaneidade
modo que nessas "imagens twnultuadas" não há lugar para a culminância e a
centralização típicas i:la representação dramática, com a separação de assunto Ao procedimento paratático se articula a simultaneidade dos signos. Em con­
principal e assunto secundário, centro e periferia. Com freqüência, a nana- · traste com."õ-õrdenamento empreendido no teatro dramático, que dá pri­
tiva aparentemente essencial é deslocada de modo acentuado para a margem mazia a determinados sinais entre os diversos emitidos a cada momento de
(A queda de fcarÔ). Essa estética de crônica fascinava especiah'nente Brecht, uma montagem, o ôrdenamento segundo a parataxe leva à experiência do
que estabeleceu uma ligação entre a pintura de Brueghel e a sua concepção simultâneo, que com freqüência sobrecartega - n�o raro com intenção siste­
mática - o aparato perceptivo. Heiner Müller·deixa dato que quer abarr.etár
3 Heiner Goebbels, entrevlstn a Hnns-Thics Lehmanil, ln Wolfgang Storch {org.), Das szenische o leitor e o espectador com tanta coisa ao mesmo ten1po 4ue s·eria iih(ossível
144 assimilar tudo. Muitas vezes há várias pessoas falando simultaneamente no 145
Auge. Berlim, 1996, pp. 76-77,
. ., - ---·
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palco, de m.odo que só se entende em parte o que dízem, ainda mais quando dá em nome da tentativa de criar acontecimentos em que reste ao especta­
'i.
usap1 lfng�as diferentes. Ninguém capaz de apreender tudo o que se passa dor uma esfera de sua própria escolha quanto a manter-se receptivo a um
simultaneamente em um espetáculo de dança de William Forsythe ou de Sa­ ou outro dos acontecimentos representados, o que se_faz acompanpar pela
buro Teshigawara. Em certas representações o acontecimento visível no palco fru�tração de perceber o caráter excludente e limitado dessa liberdade. Esse
é cercado e complementado por uma segun?a realidade impossível de igno­ procedimento se diferencia do mero caos na medida em que possibilita ao
rar, composta de ruídos, música, vozes e estruturas bar ulhentas _de todo tipo, receptor elaborar o simultâneo por meio da seleção e de sua própria estrutu­
de modo que é preciso falar da existência simultânea de um segundo "palco ração. Trata-se ao mesmo tempo de uma estética da retração do sentido, já
auditivo" (Helene Varopoulou), como no caso das montagens da Orestéia e de que a estruturação somepte é possível como .conexão de subestruturas ou mi­
Júlio César pela Societas Raffaello Sanzlo. croestruturas da encenação individualmente selecionadas, e nunca abrange o
Quando se pergun�a sobre a intenção e o efeito da simultaneidade, cons­ todo. Torna-se decisivo que o abandono da totalidad� não seja pensado como
tata-se que o parcelamento da percepção se torna uma experiência inevítável. déficit, mas como possibilidade libertadora - de expressão, fantasia e recom-
.
Se o entendimento já não encontra quase nenhum apoio em co11textos de . bina9ã0 -,que se recusa à "füria do entendimento" (Jochen Hõrisch).
ação abrangentes, até mesmo os acontecimentos percebidos no momento
perdem sua sintetização quando decorrem simultaneamente, e a concentra­ Jogo com a densidade dos signos
ção em um deles torna impossível o registro claro do outro. Ademais, é fre­
qüente que não se possa decidir se naquilo que s;�anifesta simultaneamente No t�atro p6s-dramálico torna-se regra a Jnfração da regra convencional e
há um nexo ou uma mera concomitância exterior. Sobrevém um sistemático da norma mais ou menos e�tabelecida da densidade do signo·.--Hi'í'um exagero
double-bind [duplo vínculo}: deve-se ao mesmo tempo atentar para o pp­ para mais ou para menos. Em relação ao tempo ou ao espaç-o_ ou à impor­
ticular concreto e perceber ô todo. A parataxe e a simultaneidade desfaÍem tância da fala, o obseryador perç_ebe \1111� superabundância ou· uma notável
o ideal estético élássico de uma concatenação "orgânica" dos elemeiltos no diluição dos signos. Aqui se reconhece a i;rt�rição estética de dar espaço a
artefato. A idéia de uma analogia entre obra de arte e-um.e_Q.r. pg..oigãnicó vivo uma dialética de pletora e privação, de cheio e vazio. (Seria o caso de analisar
não foi a última que motivou uma veernente resistência conservadora contra dessa óptica a· pré-h'istória-doespa,çg_y;izJ9_ !:� teatro: os espaços luminosos de
a inclinação dos modernos para a desconstrução e a montagem. O contraste Appia, Coupeau e seu "tablado nu': a preferênci� ºdê'B·recnt pelo -palc<?, vazio, o
estabelecido por Benjamin entre uma estética alegórica e uma estética simbó­ . "espaço vazto" de.feter Brook.) Evídencfa-se que po'd-e-m ser destacados por si
.
lica pensada "organicamente" também pode ser lido como teoria do teatro.� mesmos não só todos..ps campos de signos do teatrQ, mas também a simples
Nesse sentido, a totalidade orgânica apreensível dá lugar ao inevitável e co­ presença ou ausência, �r�u ln�sperado de densidade dos próprios signos.
mumente "esquecido" caráter fragmentário da perc�pção, um caráter q4e se Também nesse aspecto o teati� reage à cultura mldiática. Por motivos econô-
tornará e.xpressamente consciente no teatro pós-dramático. . micos, estéticos e especificamente_ �ipáticos, o mundo de McLuhan teve de
À função compensatóría do drama, de complementar a confusão da rea­ se tornar uma cultura da super.abundâi1cia. J3le aumentou a intensidade e o
lidade com uma ordem, se epcontra aqui invertida, de modo que se nega ao número dos estímulo� de tal 1119�0 que a pletora de in�;g��s levou cada vez
espectador o desejo de orientação. Se falta o priflcfpio da ação única, isso se mais a um desapar�cimento ?º mundo corporalmente observado. .
Enquanto ganha espaço cada vez maior aquilo que a teoria da mídia dis­
4 Cf. Prlmavesi, op. cit. tingue da percepção cór�õra'.i com,o "pe�c�pção instrumental",.a demanda l.47

..
.. ,,.\1
1

por üri:J.a densidade "adequada''. das informaçôés' também se desprende mais Discordia ou Von H·eiduck. Há pouca ação, grandes pausas, redução minima­
e mais dô critério da percepção corpóreo-se;1-1sbrial:-'Re�ta saber se o: perma­ lista, enfim, um teatro da mudez e do silêncio, ao.qual se associam textos para
nente bombardeio de imagens e signos, ali�do a umà·cisão cada vez malor teatro literário�, como A hora em que não sabíamos nada uns dos outros [.úie
entre a percepção ê o· contato corporal sensível e real, treina os órgãos a regis­ Stunde da wir nichts voneinander wussten], de Peter Handke, Palcos enormes
trar as · coisas de modo cada vez mais superndâl. Supondo-se com Freud que são deixados vazios de modo provocador, ações e gestos são restritos a trm
.. , �s-impressões se inscrevem nos diversos sistefnas do aparato pslquico como mínimo. Nessa via da elipse recorre-se acentuadamente ao vazio e a ausên­
....._
pistas e "vias'; tem então fundamento o temor 'de.que o hábito da constante cia, de modo comparátel à tendênda na literatura moderna de privilegiar a
repetição de impressões que no fim das contas nã�'têm relação entre si leve subtração e o vazio (Mallarmé, Celan, Ponge, Beckett). ô jogo com a redução
·
à abertura de vias cada ve7: mais pl�nas_,1�_0 psiquismo, de·1nodo·que todo o da densidade dos signos visa a atividade do espectador, que deve se tornar
comportame11to. emocional se torne mais "plano" e a proteçãb contra o es­ produtívo com base em uma· matéria-prima exígua. A ausência, a redução e
tímulo cada.vez m�is ·�;p�r.mêávet Assim; o mtm_1o ·saturado de imagens o vazio não se devem a wna ideologia minimalista, mas a um tema fwida­
poderia acarretar a morte das imagens, na medida em que todas as impres­ mental do t:atro·ativado_r. De modo especialmente coerente, John Cãge fez.
sões propriamente visuais �eriam registradas mais ôu menos como 111eras da subtração uma condição para novas experiências, Muito� gostam de citar
informações e as qualidades dõ que é propriamente-"icónico" nas imagens sua q,b'servação de que quando algo é entediante apôs dois minutos deve ser
seriam perceb'idas cada vez menos. É conhecida a conjetura de Lyotard sobre feit6 em quatro minutos, depois tentado com oito minutos e assim por dlante.
a póssibilidade de que sob a "condição p6s-moderna" tenderia a desaparecer Atribui-se a Picasso a recomendação: "Se você pode pintar com três.córes,
da círculaçã� �ociá1 todo saber 9-ue não possa tomar a forma da informação. pinte com duas!''.
Algo semelhante poderia se aplicar à percepção estético-sensorial. Sen'l. que a
prova possa ser apresentada aqui, seria o casó de arriscar a afirmação de que Superabundância
as imagens de televisão, já por comparação com a visão do cinema, levam a
restringir a afetividade à via da informação mental mais ou menos..absJr�ta. A transgressão
-· ' da norma, assim como sua desvalorizàção, leva a um resul-
A profundidade e a diméhsâo reduzidas da imagem televisiva pouco pen�i�-- · ·: -·· tado · que d�ve ser identificado como uma figuração menos formadora que
tem uma percepção visual intensa. Isso poderia reduzir a capacidade de apli- deformadora. A forma possui dois limites: a desolação da e�tens.ão intangível
car libidinosamente a percepção vísual, espacial, arquitetônica. e a acumulação caótica labiríntica, A forma é a posição média. A renúncia
Em face do bombardeio de signos no cotidiano, o teatro pós-dramático da percepção conveilcional da forma (unidade, auto-identidade, articulação
trabalha com uma estratégia de recusa. Ele pratica uma economia no uso simétrica, nexo formal, apreensibilidade), ou seja, a recusa da construção
dós signos que pode ser reconhecida como ascese, enfatiza um formalismo noi-malizadacla imagem, se realiza prefer"encialmente para além dos extremos.
que reduz a abundância de signos por melo de repetição e duração e revela O ordenamento das imagens, que está ligado em um duplo sentido ao "meio';
uma inclinação para o grafismo e para a escrita que parece se voltar contra a ao medíum organizador e à posição médlà, é perturbado pelo crescimento
opulência e a redundância ópticas. Silêncio, lentidão, repetição e duração em descontrolado· dos signos. Gilles Deleuze e Felix Guattarl propuseram o con­
que "nada acontece" se encontram não s6 nos primeiros trabalhos mais mini­ ceito de "rizoma" para designar realidades nas quais ramifi.caçõ_es int�pg-ívéis
malistas de Wilson como também, por exemplo, em Jan Fabre, Saburo Teshi­ e conjunções heterogêneas lmpeden'l a síntese. A dissolução do tenipo cêflíco
gawara, Michael Laub e em grupos como Théâtre élu Radeau, Maatschappij em seqüências mínimas, como tomadas cinematográficas, já diversifica lndi- 149
retamente os dados da percepção, B?is uma grande quantidade de elementos De fato, a ampla tendência à musicalização (e não apenas da linguagem) cons­
sen1.ligaçã� é considerada pela psicologia da percepção como maior do que a titui um importante capítulo do tratamento dos signos no teatro pós-dra­
mesma quantidade em um ôrdenamento·coerente. mático. Désenvôlve-se urna semiótica auditiva própriá: diretores submetem
O fenômeno de uma superabundância cênica é bastante evidente no "tea­ textos clássicos à sua sensib�idade rítmico -musical pautada pelo pop (Jürgen
tro de dança" de Johann Kresnik, Wim Vandekeybus ou La La La Human Kruse); Wilson chama suas obras de "óperas''. Sob o marco da dissolução da
Steps. Pode-se pensar também na profusão dos grotescos desfi.Jes de espíri­ co·erência dramática, chega-se à sobredeterminação musical do discurso do
tos do espetáculo de Reza Abdoh (prematuramente morto pela Aids), assim ator por suas particularidades étnicas e culturais:
como nas representações "hipernatqralistas" (do grupo belga Victoria, por
exemplo) çom palcos totalmente lotados de objetos e móveis. A partir do Desde os anos 1970, importantes diretores têm a prátJGa deliberada e sistemática :
m�delo de Frank Castorf, a abundância, a caotização e a adição de gags se de integrar às suas cofnp�nhlas atores de procedências culturals e/ou étnica·s intei-
tornam uma marca estilística. Uma variante interessante da estética pletó­ ramente diversas, porque seu ipteresse se volta-justamente para a variedade de me-
rica encontra-se nos trabalhos de Jürgen Kruse (Sete contra Tebas, Medéla, · ··-Tc;dias'êiã fala, timbres, sotaques e de modo·geral para os diversos hábitos culturais
Ricardo II, Torquato Tasso etc.), Com ele chega-se a uin teatro dos acessórios: no ato de falar. Assim, mediante as diversas peculiaridades auditivas, a locução do
o palco se transf�rma em um campo de Jogo (ou um depósito de refugos) texto se torna fonte de uma musicalidade autônoma. Os trabalhos de Peter Brook
repleto de objetos, escritos e signos com associaç_��s caoticamente espalhadas, e Arfane Mnouchkine são exemplos mundialmente conhecidos. Aquilo que alguns
cuja inquietante abu�dãncia comw1ica um sentimento de caos, insuficiência, .. ,. '
críticos franceses consideraram um problema - o fato de qüe atoresjaponeses ou
desorientação, luto e horror vacui [horror ao vazio]. africanos põem a perder a especial musicalidade da llngua francesa - interessava a
.}
Brookjustamente como descoberta de uma outra 1núslca, mais ric.�: ít\!as figuras
Musicalização sonoras de uma polifonia lntercullural das·võze-s e dos gestos da fala.6 •· ·--

Ao abordar o fenômeno da "musicaÜzação dos signôs teatcais'.�··Helene Varo­ Também se inclui aí aq1.1ela música que se insinua 1lo teatro por meio do po-
poulou afim1ou liglotismo, onipresent� n�tfàti-õ j,6s�dràmâ"tko. ··- - ··,- - _. __ _
........
que a música se tornou, tanto para os atores quanto para os diretores, uma estru­ Aquilo qlfe a ·princfpio aparece como prov.ocação ou como uma ruptura, o surgi-
. .
tura autônoma do teatro. Não se trata do papel evidente da música e do teatro mu­ menta. de entonaçõe;-ioc9mpreensíveis e estrangeiras, ganha uma qualidade pró-
1

sical, mas de uma idéia mais ampla do teatro como músl7a. Talvez seja típ!c.o que ' '
pria, para além do nível imeâlato'da semântica lingüística, como riqueza musical
uma mulher do teatro como Mereditn Monk, que é c�nhecida por seus poemas e como descoberta de combinações sonoras desconbecidas.7
sonoros e imagétic�s encenados espacíalmente, tenha declarado: "Vim da dança
, . »s.
para o teatro, mas foi o teatro que me trouxe para a ..mufi1Ca Em uma e�trevista por ocasião .ê!a edição de 1996 do festival Theater der Welt
[Teatro do Mundo], t;m Dresden', ·Paul Koek declarou: "O [grupo] Holl andia

1
.i-
6 Ibid.
5 Helene Varopoulou, Musikalisierrmg der 1hea/erzeichen. Prankf�rt � Main, 1998 (mlmeo.). 7 lbid.
� 151

·,
1
�----
. \

I
se insere em uma espécie de �radiç�o como-� de Kurt Schwitters. Também
Mesmo quando grandes diretores usam proc edimentos dramáticos - r�ssal,
analisamos a música moderna, c9mo a de Stoc �ausen''. E sobre a enc enação .
1 ·'
tando porém os aspecto_s não dramáticos, puram ente teatrais-, a inusicalização
de ôs persas pelo Hollandla:
é um dos e lementos que manifestam de modo mais contundente a alteridade
em relação ao teatro dramático. Ao abordar a montagem de Hamlet pelo diretor
Queríamos chegar o mais perto posslvel dos ritmos _ gregos. Também os coros fo.
lituano Eimuntas Nekrosius, Varopoulou afirma que "a musicalidade, que já se
ram desenvolvidos ritmicamente, portanto determinados pela sonoridad e ou pela
destacava cm suas encei:i,ações anteriores, [ ... ] alcança um ponto culminante":
melodia. [...] ChameI um ator para o meu estúàio-� pedi que fiiesse seu monólogo,
mas !=Omo no teatro bunraku do Japão: co_m ento��� frenéticas, usando dos
Durante quase toda a representação há música tocando, o ator principal é um astro do
tons mais· graves aos mais agudos.ª
rock lituano, e também no campo dos sons e ruld os é empregado um rico repert�rlo
de formas musicais: o regular'golejamento de gelo derretido, que é ·um leltmotlv em
A mí1 sica eletrônii::ã tomon posstvel.�Qip� _ l��.à vontade o parâmetro da
t�da a encenação; ritmos dos pés que bat�m e que pisam; estalos de dedo rítmicos; o
sonoridade e com lsso abrir campos lnteirament�-novos para a musicaliza-
ruído musicalâás'Í'l!ras sibUando como coro no duelo de Hamlet e Laerle. Mesmo a
ção das vozes e dos sons no teatro. Uma vez que diversas qualidades sono-
única p.aúsa perceptível n a música - que ocorre quando Ofélia enlouquece - é inter­
ras {freqüência, tom, timbre;··volume etc.) pocle.w. ser manipuladas com o
pr�táda como música de uma dança muda. Em Nekroslus a mus!callzação se mani-
recluso a ;in}etfaador es, as combi�ações eletrônicas de ruldos e tonalidade s
-festa especialmente na relação entre homens e objetos no palco. Os objetos estão su-
(sampllng) passam a ser uma dimensão sonora inteiram ente nova no tea-
jeitos o uma perve.rsão de sua função, são usados quase como instrumentos muslcals
tro. A "coniposição COflÇeitual" de Heiner Goebbels, assim chamada por ele
e lntr.rngem com os corpos hu�anos para produzir mú�icu.'º
mesmo, combina a lógica do texto com o material musical e vocálico em di-
versas variantes. Torna-se possível manipular .e estruturar intencionalmente
Do ponto de vista .ínetodológico, é importante que tais fenômenos não sejam
todo O espaço sonoro do teatro. O campo musical, assim como o curso das
considerados como expansões - talvez muito originais - dó teatro dramático;
açõe s, não é inais construido de modo linear, mas, por exemplo,_!ll�e a ante_s_, deve-s·e reconhecer também ne ssas encenações dramáticas a novidade
superposição simultânea de mundos sonoros, como em Roaratorio (1979J;··· • ·-·
de uma llnguagem teatral em mutação, não mais dramática.
de John Cage e Merc e Cunninghatn, peça coreográfica e m que Cage lê tre-
chos do Finnegans Wake de Jame s Jóyce,9 o que é significativo, Já que esse Cenografia, dramaturgia visual
texto marêa na literatura a abertura de uma nova época na maneira de lidar
com a língua: transposição das fronteiras entre as línguas nacionais, inten­ Em �eio ao tratamento paratático e des-hierarquizante dos
signos, surge
sificação e multiplicação dos significados possíveis, construção arquitetô-· no teatro póHframático a possibilidade de atribuir o papel
de dominantê
nico-musical etc. Os signos teatrais pós-dramáticos se situam na linhage m a outros elementos que não o logos dramático e a linguagem,
como mostra
dessas t exturas. o exemplo da musicaUzação. Isso diz respeito à dimensão visual
• mais ainda
do que à auditiva. No lugar de uma dramaturgia pautada p elo texto,
1

uma
s Paul Koek, entre vista, ln
Tlm11er der Welt 1996. Dresden,'199G. dramaturgia visual parec e ter alcançado pred�minio absoluto no
te_�tród;
9 o titulo da peça, um neologismo extraido do romance, é com posto a pari.Ir das palavras
lSl roar, "bramido", e oratorio, "oratório''. [N.E,] 153
10 Yaropoulou, op. clt.
final dos anos 1970 e dos anos 80, até que na década de 1990 se delineou um deveríamos "ver" n� verdade é o invisível nos diferentes aspectps do corpo
cer-to·'ret�rno ç10 textó (o qual na verdade não havia desaparecido por com­ humano em geral - 1do mesmo modo que uma flor em um quadro não mais
pleto). "Dramâturgía visual;, não significa aqui uma dramaturgia organizaçla oferece ao olhar uma determinada flor, mas "a" flor. Assim, não se trata aqui
de modo exclusivamente visual, mas uma dramaturgia que não se subordina de '1ama" mulher. Mas também não se trata de uma "niulher": o que se dá a ver
ao·texto e que pode desdobrar sua 16gica própria. O que interessa aqui sobre é um corpo "invisível''. que transcep.de não só o sexo, mas também o domínio
o "teatro das imagens" não é saber, do ponto de vista da críttca,. se ele é uma humano em geral, sob a forma de espada, taça, flor. Ao ser lida m?,is uma vez,
benção ou uma fatalidade para a arte teatral, se é ou não a derradeira sabe­ a cena que se oferece ao olhar é uma grafia, um poema que ganha forma sem
doria para um teatro na civilização das imagens; tampouco é saber, do ponto qualquer instrumento de µm escriba. A cenografia, nome de um teatro de vi­
de vista da história do teatro, se sua época já passou e se formas teatrais neo­ sualidade complexa, se põe ante o olhar observador como um texto, como um
naturalistas e narrativas voltarão a ganhar força. Trata-se daquilo que é sinto­ poema cênic9 no qual o corpo humano é uma metáfora, no qual se� fluxo de
mático para a semiose do teatro. Seqüências e correspondências, nós e pont?s .. m_ov'imento é, num sentido não apenas metafórico, éscríta e não "dança''.
.... _ ··- 1
de concentração da percepção e a constituição de sentido por ela comunicada, Resgata-se no catnpo do teatro um desenvolvimento estético pelo qual
ainda q1.1e fragmeri.t'ária, são definidas na dramaturgia visual a partir de dados outras artes· tinham passado antes. Não é por acaso que conceitos provenien­
ópticos. Surge wn teatro da cenografia. Mallarmé já fizera de tal "grafia" cênica tes das artes plásticas, da música e da literatura são apropriados para carac­
obj�to de reflexão, quando compreendeu a danç�como "escritura corporal": terizar o teatro pós-dramático. Foi somente sob a influência das mídias de
reprodução, a fotografia e o,cinema, que o teatro toinou consciência de sua
[... ].la danseuse n'est pas une femme qui danse, pour ces motifsjuxtaposés qu'elle nest especificidade. Com uma fü-eqüência notável, importantes artistas teatrais da
pas une femme, mais une métaphore résumant un des aspects élementaires de '!_otre atualidade tên'l uma experiência prévia 11a� artes plásticas. Nãj é de admirar
forme, g/aive, coupe, flew· etc., et qu'elle ne danse pas, suggérant, par le �r.o,d(ge de que apenas no. teatró datúltlmas aéêâdâs forãm- 1�lcançadas" a� em�;;ltadas que
raccourc/s ou d�lans, n.vec ·une écritu�e corporelle ce qu'il faudrait des p �ragraphes en podem ser evocadas com palavras-chave como auto-referêncía, não-figura­
prose[... ] pourexprimer, rians la rédaction: poeme dégagé de·tout appcireil du scribe. 11 ção, arte abstrata ou copjreta, autonomização dos .significantes, seriaUdade,
alea toriedade etc. Na. quiliàâdê ae 1ün,r-prática·-ar-tísUc.a_ Ç>.f!erosa na socie­
Tentemos interpretar essa fórmula. O que vemos no palco - ou o que devemos dade burguesa, o teatro precisava imwete,rivelmente P.�nsar .e�-;� rnai'iter,-l?or
propriamente ler - é aquilo que nos dissimula o reiterado erro da expre ssão meio de recei�iis·significativas, isto é, por meio de um afluxo 'de público o
"uma mulher que dançà'. Quem dança ilão tem ali o valor de uma figura hu­ mais àmplo possív el, d'e·m_()do que novidades arriscadas, mudanças cruciais
mana individualizada1 mas o de uma figuração divers�cada dos membros de e modernização surgiram coin ..__um característico atraso em relação ao estado
seu corpo, de sua figura em formas que se alteram a cada momento. O que de coisas em formas artísticas materialmente menos dispendiosas, como a
poesia e a pintura. Não obstante; ·também no âmbito do teatro as tendên­
11 Stéphane MalJarmé, ("Crayonné au théâtre"], ln CEuvres comp/Ues. Paris, 1970, p. 3o4. cias mencjonadas acabaram poi·.provocar complicações· consideráveis e qpe
mfo é
("[ ... ] a d.ançariria 11/lo é uma mulher que dança, pelos motivos justapostos de que ela duram até hoje. No eptanto, �i1dà seria difícil para um público teatral mais
uma mulher, mas uma metáfora resumindo um dos aspectos elementares de nossa forma
amplo aceitar que as novidades do chaniadb ·teatro moderno, às quaís ele aca­
ela não dança, sugerindo pelo prodígio de contrações ou
- espada, ta_ça, flor etc. -, e de que
impulsos, cor11 uma escritura corporal, o que seria preciso dos parágrafos ein prosa ( ... ]
bou de se habituar, já _ s��-�m. piu,te c�lsa do passado, que a àrte teatral sempre
154 pnra exprimir na redação: poema destituído de todo instrumento º escriba:'] volta a exigir de seus espectadores u.rna atit6de completamente renovada. 155
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Calor ef!ieza Corporeidade


1,

Para um público educado na tradição do' teátro de t�xto, é ainda mais difí­ Apesar de todos os esfor�os para encerrar o potencial de expressão do corpo
cil aceitar a "destituição" dos signos--ling��s�fc?s e a despsicologização que a em uma lógica, uma gramática, uma retórica, a aura da presença corporal
.acompanha. Seja pela participação de pessoas vivas, seja pela _fix�ção secu­ continua a ser o ponto do teatro no qual se dá o desvanecimento de todo sig­
lar em destinos humanos comoventes, o teatro nificado em favor de uipa fascinação distante do sentido, de uma "presença"
. '· possui wn·-.certo "calor': As
vangua�das clássicas, o teatrq épico e o teatro do�mentárlo certamente já espetacular, do carisma ou da ''irradiação''. Veicula-se no teatro um signifi­
haviam' acabado com isso em grahde medida. No entànto, ó formalismo do cado que 1tão encontra palavra alguma, ou que de todo modo, para dizer com
teatrQ_ pós-d;amáticO ôá um passo quítlitativamente no��- e p;ovoca ainda Lyotai-d, está sempre "à espera de" denominação. Desse mod9, opera-se um
mais p��·pie.xffürder�P.nta.q_µem espera à representaçãQ de mundos de expe­ deslocamento no modo de ver a fatura dos signós em geral quando no teatro
riência "mais humanos� no s�Jrtid� "cfe- "mãisp"Si-cológicos': ele pode mani­ pós-dramátko se ·chega a uma extremá manifestação de corporeidade, que
festar uma frieza difícil de suportar. Essa frieza tem um efeito especialmente se impõe de uní"rnõao·lmediato e freqüentemente assustador. o corpo passa
desconcertante porque no teatro não se trata de meros processos visuais, mas a ocupar o ponto central não como portador de sentido, mas em sua subs­
de corpos humanos com seu calor: com os-quais· ã'iinaginação perceptiva não t'ân�;i· flsica e gesticulação. O signo central do teatro, o corpo do ator, recusa
pode associar nada diferente de experiências humanas. Assim, há algo de pro- o pápel de significante. De modo geral, o teatro pós-dramático se apresenta
vocativo quando essas manJfestações humanas s_ão conjuradas em uma trama como o teatro de uma corpoteidade auto-sufi.ciente, que é exposta em suas
visual - por exemplo, quando uma cena de combate em As guerras civis [111e intensidades, em seus poten�l_als gestuais, cm sua "presença" aurática e em
Civil Wars], de Wilson, representa uma mortandade coletiva coreografada suas tensões internas ou transmitidas para fora. Acrescenta-se a presença do
com uma frieza (e uma beleza) angustiante. · côrpo desviante, que po!' doença, deficiência ou deformação diverge da norma
Por outro lado, a crescente autonomia da dimensão visual pode levar a um e provoca fascinação "imoral'; mal-estar ou medo. Possibilidades de e.'Cistên­
superaquedmento e a un:a enxurrada de imagens. Em sua adaptaçãcn:le-Dan.tt.,_ _ .. ___ cia rE,primidas ou excluídas se efetivam em formas altan1ente físicas do teatro
Thomaz Pandur buscou alcançar uma intensidade ''infernal" e se aproxit11ou do pós-dramático, desmen_tindo aquela percepção que se instalou no mundo à
circo mediante uma extrapolação visual. Nos anos 1980 atuou etn Viena o Sera­ custa de ignorar o·quafltô é pequeno o campo no qual a vida pode se desen­
pionstheater, que se apropriou dos impulsos de Wilson, Mnouchkine e outros rolar em uma certa "normalidade''.
para criar uma dram�turgia visual que exerceu extraordinária atração, em espe-
cial no "poema visual" Duplo & Paraíso [Double & Paradise], apresentado em.
Viena por 120 vezes até março de 1983 e depois em numerosas cidades da Europa -
-
O teatro pós-dramático freqüentemente ultrapassa os !Jmites da dor para
revogar a dissociação do corpo e da linguagem e reintroduzir no reino do
espírito - voz e linguagem - a corporeidade dolorosa e prazerosa, o que Julia
uma pletora de efeitos visuais, atrocidades e "submersão de estlmulos''. 12 Krlsteva chamou de semlótico no processo de significação. Na medida· em
que a presença _e a irradiação do corpo se tornam determinantes, ele se torna
plurívoco em significabilidade até se tornar irremediavelmente enigmático. °
A Intensidade e a turbulência do teatro podem desembocar tanto -�;n--útna

--
12. Rolf Kloepfer, "Das Theater der Sinn-Erfüllung: Double & Paradlse vom Seraplonstheuter
(Wien) ais Belsplel elner totalen lns-zenierung� ln Erlka Fl;cher-Llcbte (org,), Das Drama
forma trágica quanto em uma forma alegre e extática. Não é à toa que a per­
wul selnc J11szenierrmg. Frankfurt ani Malfl, 1983, pp. 199-218: sistente conjuntura de um teatro dançado, baseadó no ritmo, na fnúsica e n!l 15 7
corpore��ade erótica, mas marcado pela semântica do teatro falado, é uma ''.Ah!" e "Oh!" por parte dos espectadores, e não o·eco da reflexão que se dá em
modalidade signjficativa �o t�atro pós-dramático. Na dança moderna foi presença elo teatro que recusa qualquer significado.
abandonada a estrutura narrativa da dança e na dança pós-moderna também Enquanto em outros estilos teatrais organizados de modo visual a deli­
se abandonou a estru�ura psicológica, e esse desenvolvimento também chega mitação e a distância das imagens predominam sob.r;e a presença física dos
ao teatro pós-dramático - com atrasô em relação ao desenvolvimento do tea­ atores, em Einar Schleef as imagens sensuais e corporais do teatro se preci­
tro dançado. Contudo, o teatro da fala sempre foi, muito mais do ql.le.a dança, pitam rampa abaixo. A forma em cruz do palco e as passarelas em direção
o lugar da produção de sentido dramático. O teatro dançado libera vestígios ao público contribuem para que a dinâmica espacial seja orientada do fundo
da corporeidade até então encobertos. Ele intensifica, desloca, inventa Im­ do palco para o público (enquanto a forma teatral de Wilson, por exem­
pulsos de movimento e gestos corporais, restituindo assim possibilidades plo, favorece o movimento paralelo à rampa). Por meio des�a disposição que
latentes, esquecidas e retidas da linguagem corporal. Os diretores do teatro confronta o público de modo frontal e direto, a especial "frontalidadeº do
falado talvez criem também um teatro com uma pronunciada ou contín�a --�:tro de Schleef �erce um efeito físico sobre o espectador, que tem de e.'(­
coreografia dos movimentos, ainda que não haja propriamente uma dança. periinen1ãf, com freqüência de modo incomodamente direto, o suor, o es­
No entanto, o conceito de dança se ampliou.de tal modo que distinções cate­ forço, a dor, a grande exigência da voz do ator. Ele vê o coro perigosamente
góricas se tornam cada vez mais sem sentido. En'I certos trabalhos do grego agressivo vindo em sua direção com passos ritmados e também vivencia
TI1eodoros Terzopôlllos, o teatrçi de movlmento,.e o coro de movimento se "alimentações" ironicamente reconciliadoras (chá, ba_t ata cozida, pedaços de
apro�mam da da1lça a tal ponto que o olhar fica indeciso, sem saber a partir chocolate .. ,). A corporei4ac\e do procedimento ·teatral se. mp�tI� em ações
de qual parâmetro deve ajustar sua percepção. rudes e até corporalmente·perigosas dos atores; ressonâncias da disciplina
À medida que o teatro pós-dramático se afasta de uma estrutura meptal esportiva e de exercícios paramilitares carregam o curso dosirnovimentos
inteligível em dí�·eção a uma exposição de corporeidade intensiva, o cofpose com reminíscências dà história alemã, -evocand� a rígida discipiÍn� corporal
absolutiza. O resultado paradoxal é que ele engloba todos os outr9s discursos. militar, a força, o domínio e o �utodomínio, os exercícios coletivos e o aban­
Dá-se assim uma virada interessante: uma vez que Õ c'õrpo- mo expõe nada dono de si a urna coletividade.
além de si mesmo, a renúncia à significação pelo corpo e a orientação para Schleef nunca foi �;;;ãunanimidade-.-Alguns_c;rftf�?�_apress�dos não fo­
um corpo de gestos destituídos de sentido (dança; ritmo, graça, força, riqueza ram capazes de descobrir-lhe nem a qualidade artística nem"ã ·pólítka, e che-
cinética) se revelam como o mais extremo fardo do corpo, com uma signi­ -garam a assoê:iá'-lo.a tendências ne�fusci�tas: Isso �er(runente dJz mais s�bre
ficação que diz respeito a toda a existência social. Ele se torna tema único. o nível da crítica do <i.Ve._�obre esse trabalho teatral. Vale a pena porém nos
A partir de então, ao que parece, todos os têmas do â_mbito social precisam deter por um momento náse. ��ma, pois aqui se evidencia a questão funda­
passar primeiro por esse buraco de agulha, precisam tomar a forma de um mental da dimensão polí.tica e ética do uso estético dos signos. Esse uso es-.
tema corporal. O amor se expõe como presença sexual, a morte como Aids, capa ao padrão do politicamente
_ corret-o. Se se quisesse impor esse padrão, a
a beleza como perfeição corporal. A relação com o corpo se torna uma preo­ conseqüência necess*ri � seria reduzir a representação esté-tica em geral à sua
cupação fascinada com a ginástica, com a saúde ou com as possibilidades - "mensagen)': o que ef}dentemente .seria um empreendimento disparatado, O
fascinantes ou inquietantes, conforme o ponto de vista - do "tecnocorpo''. que os corpos fazen'{no teatro de Schleef quando, por exemplo, ex-ercitam
O corpo se torna· o -alfa e ômega - evidentemente, com o risco de que os sua força e resistência nus_� C;_.qelos-pe sµor: isso não demonstra, não mos-
trabalhos teatrais mais fracos nele centrados suscitem ap_enas exclamações de tra, não cô11;1unlca a-atu;lidade de uma ca,!amidade política do passado ou 159
..
·
·,i\'-

O possível futuro de um COr·pO esportivo-viril <j>U milítar sem pensamento Se for descoberta a possibilidade de que o teatro seja "simplesmente" a ela­
nem reflexão. Isso tudo se manifesta justamente porque Schleêf sabe que a boração concreta de espaço, tempo, corporeidade, cor, som e movimento, se­
recordação histórica não se dá slmplesménte pela �ohsciência, mas pela iner­ rão retomad_as possibiUtlades que foram antecipadas·na poesla concreta, mas
vação corporal. Suas imagens se recusam a uma iiinples interpretação moral também já no âmbito do texto para teatro, por autores da Escola de Viena
ou política. Elas perturbam mais pi'ofÜndarnente e exigem reflexão: como como (KonradJ Bayer, [Gerhard] Rühm e [Hans Carl] Artmann. Já se fol
1)1emória do corpo que se alia a uma inve�ida contra o aparelhb sensorial a época da poesia cone. reta em sentido estrito, mas por toda parte ainda se
do espectador. No teatro pós-dramático; o cài:�físico ·- cujo vocabulário distinguem elementos da éscritura concreta na poesia contemporânea. O que
gestual ainda podia ser formalmente lido e interpretado como um texto no em outros tempos era uma experiência marginal no teat!o tornou-se uma
séçulo xvm - é uma· realldade auJôno,ma: não "narra" m�diafite gestos esta possibilidade central da estética teatral por meio das novas· possibilidades
ou ..;qúela emoçâQ,.i:nas
. . ... se manifesta com sua presença
,_, ' como ur11 lugar en) de combinação de tecnologlã midlática, "teatro dançado'; arte do espaço e
que se inscreve a Wstória coletiva: - - -- espetáculo. No teatro como um lugar do olhar, alcança-se �ssil).1 utn ponto
culminante di rpiiíidpio..da "dramaturgia visual'; que se torna a realização
Teatro concreto "concreta'1,de estruturas formais vislveis d� cena. Com isso, ti:ansfere-se para
o teatró um modo de tratamento dos signos que questioüa as concepções t.ra­
Naquilo qué costuma ser caracterizado como "teatro abstrato': no sentido diciónais quase como nenhum outro. Se os signos, como foi mostrado, não
de teatro.sem ação ou como teatro "teatral': a preponderância das estruturas mais oferecem síntese alguma, mas as referências materiais que ainçla podem
formais v�i-tão longe que qu�se não se pod� encontrar qualquer referên­ ser assimiladas em uma atividade associativa labiríntica, isso é uma coisa.
cia. Caberia falar aqui de teatro concréto. Assim como Toeo van Doesburg e Mas se.essas referências cess� quase que totalmente, a ;ecepção está diante
Kandinski preferiam o .termo "arte concreta" à expressão corrente "arte abs­ de uma recusa ainda mais radical: a confrontação com a presei:iça "muda" e
trata" - já que em vez da referência (negativa) à objetividade ele enfatiza de densa do corpo, dos materiais e das formas. O signo remete, tão-somente a si
modo positivo a concretude Imediatamente perceptível das c0res,..linh!� .: me�mo - mais precisamente, à sua presença. A percepção se encontra rele­
superfícies pictóricas -, convém interpretar as formas ou os aspetos teatrais gada a uma percepção estl'utural.
não-figurativos do teatro pós-dramático, estruturados formalmente, como Assim é que em Fabre os elementos cênicos são inseridos de modo seme­
"teatro concreto'� Trata-se aqui de expor o.teatro por si mesmo, como uma arte lhante ao da "arte não-relacional" de um Frank Stella, segundo os princípios

·---
no espaço e no tempo, com corpos humanos e todos os recursos que ele inclui da simplicidade e _da série não-hierárquica, com simetria e paralelismo. Ato­
como obra de arte total, assim corno, na pintura, a cor, a superfície, a estr�­ res, elementos de iluminação, dançarinos etc. se oferecem a uma observação
tura tátil e a materialidade puderam se tornar objetos autônomos de uma ex­ puramente formal; o olhar não encontra nenhuma ocasião para deduzir uma
periência estética. Nesse sentido, em sua a.nálise de O poder das tolices teatraís profundidade de significação simbólica para além do que é dado, aferrando­
[De Macht der Theaterlijke Dwaasheden], de Jan Fabre, Renate Lorenz utilizou se à atividade �e ver as próprias "superfícies" com prazer ou com tédio, con­
o termo "teatro concreto" com base em Van Doesburg. 13 forme o caso. uma formalização estética descomprometida torna-se aqui o
espelho no qual ó formalismo vazio da peréepção cotidiana se recophe'ée -
ou pelo menos poderia se reconhecer. Não é o conteúdo, mas a própria for­
160 A.uffill1rugsnnalyse. Giessen, 1988 (rnimeo.).
'
13 Renate Loreni, Jan Fabrts "D/e Macht der theatralischen Tor/reitett" und dns Prob/em der
malização que constitui a provocação: a repetiçãô fatigante, o vazio, a pura
matemática dos procedimentos cênicos nos obrigam a experimentar aquela Irrupção do real
simetria.diante da qual nos angustiamos porque ela traz consigo nada menos
do que a ameaça do nada. Privada das habituais muletas da compreensão de A idéia tradicional do teátro parte de um cosmos fictício fechado, de um "uni­
seQtidos, a percepção desse teatro se frustra e é obrigada a se submeter a um verso diegético': que pode ser assim chamado ainda que tesulte dos recursos
modo de ver difícil - ao mesmo tempo formal e sensorialmente exato -, que da mimese (imitação), a qual normalmente é contraposta à díegesis (!larra-
certamente poderia permitir uma atitude mais fácil, mais "solta'� 11ão fosse . ção). Embora o teatro conheça uma série de rupturas convencionalizadas
pela frieza provocativa da geometria e pela ânsia de sentido insatisfeita. Esses (aparte, apóstrofe ao p1.í_blico), a representação cênica é compreendida como
dois elementos são conscientemente acentuados em Fabre e experimentados diégesis de uma realidade distinta e "emoldurada'; na qµal imperam leis pró­
pelo esp�ctador cpmo uma dialética de forma e agressão. prias e um nexo interno dos elementos que se destaca como realidade "en­
O que é exemplarmente levado ao extremo no teatro de Jan Fabre cenada" em relação ao ambiente em torno. Tradiciorialmente, lidava-se com
aponta para aquilo que no teatró p6s-dramático ocupa o lugar do núcl�o . --aS._interrupções do-enquadramento teatral como se fossem um àspecto "real';
···- .
dramático. Em uin quadró de significação que se torna cada vez mais per­ mas a ser desprezado do p"onto de vista artístico e conceituai. Os personagens
meável, desponta ·a perceptibilidade coricre�a, sensorialmente intensificada. de Shakespeare freqüentemente se comunicam com o público de modo vee­
Esse termo ressalta o caráter virtual e intangível da percepção teatral aqui mente; os prantos das vítimas t'rágicas de todas as épocas sempre se dirigiram
pro'duzida ou pelo 111enos visada. A mimese, .!1.Q sentido aristotélico; gera ao púj}lico presente e não apenas aos deuses. As �_áximas, importantes não
o prazer do reconhecimento e desse modo sempre chega a um resultado, só para o teatro da época de Lessing, foram assimiladas veios-espectadores
por as�im d�zer; já aqui os dados sensíveis permanecem continuamente como preceitos pedagógicos que lhes eran1 especialmente destinados. Apesar
referidos a respostas pendentes: o ·que se vê e ouve permanece com ;;u·a disso,' a tarefa artística consistia em inserir tudo isso no cosmos 'fic.tfçjo_ de um
assimilação adiada, como potência. Nesse sentido, trata-se de um .réatro modo tão discreto ·que a apóstrofe ão públicõ real, o discurs�-para-for:-da­
da perceptibilidade. O teatro pós-dramático enfatiza o inacab��o e' o intan­ peça, não fosse notada como um elemento perturba?or. Desse modo, pode-se
gível a tal pontó que realiza sua própria "fenomeno!Ôgiáda·percepção': a qual estabelecer um paralelo.d� drama teatral com a "moldura" de um_quadro, que
se caracteriza pela superação dos pri11dpios da mhnese e da ficção. Como unifica a imagem no i.l)teri�/ê a· dellmíl:a ·errnelação-ao.exter!gr.
.... .A diferença
acontecimento concreto produzido no instante, a representação modifica categorial - e com isso a virtualidage sistemática da .abertura dÕ. quãdro -
fundamentalmente a lógica da percepção e o status do sujeito dessa per­ · consiste no fat�· de qu� o teatro não se realiza do mesn�o modo que a imagem
cepção, que já não pode se apoiar num ordenamento representativo. Num enquadrada (o filme p;oj�t�do, a narração impressa), mas como prc;>éesso ln
comentário sobre a concepyão da "visão vedara" [se�1ende Sehen] de Max actu. Uma pausa especialme11'teJonga na fala pode ser um "branco" (plano do
Imdahl, Waldenfals observa: "Em sentido estrito, aqui nada se transmite ou real) ou pode ser lnte]lcional (plano da encenação). Apenas no último caso·
se reproduz, pois[ ...] não há nada que possa ser transmitido ou reproduz.ido. ela pertence sistematicamente ·ao da-do'estético do teatro (da encenação); no
A visão vedora acompanha o surgimento do visto e do vedor que está em prime.u:o trata-se apenas de um erro ocorrido n�·quela âpre's'entação específica,
jogo no acontecimento da visãb, do tornar-se visível e do fazer visível''. 14 tão insignificante qua,n'to uma falh'a de impressão no texto de um romance.
Essa é a descrição válida p�ra ô teatro dramático, no quat·o "objeto inten-
'
'

cional" da encenação_ deve.se(difer�nciado da apresentação empiricàmente


1
14 Waldenfels, op. clt., pp. 112-13. ocasional. Somente o teatro pó:ç-drari1ático explicitou o campo do real como 163
p ermanentetnertt e "co-atuante'; tomando-o·pe�
modo factual, e não . apenas Deve ser considerada mais séria a crítica segundo a qual toda estratégia.
, '
conceit:µal, tomo objeto não só da reflexão - q9ma :no romantism:o · -, mas da de irrupção' do real na representação do real nãb· só a priva de sua qualidade
própria configuração teàtral. Isso ocorreu de várias maneiras, mas de modo artística "ma js elevada': mas também seria condenável do ponto de vista·mo­
e specialmente elucidativo por meio de uma estratégia e de uma estética da ral e mentirosa do ponto de vista da lógica da percepção. Schechner põe o
indeddibilidade em relação aos recursos-básicos do teatro. Em O foder das caso-limite da autoflagelação dos artistas perforrt1áticos _110 mesmo nível dos
· tolicqs teatrais, de Fabre , após uma ação extenuante (um ex:etdcio de resis­ mal-afamados "snuff.films" [.filmes com imagens de assassinatos reais] e das
tência à Grotowski) as luz es se acendem no�·meio da representação e ôs ato­ lutas de gladiadores, já que em todos esses casos "os se res vivos se tornam
res, ex:t_enuados _e ofegantes, fazem uma pausa parà'fumar enquanto encaram agentes simbólicos coisificados. Essa coisificação é abominável. Eu a condeno
o púbHco. Fica-se sem saber se essa atividade pouco saudáyel é "realmente'.'. sem exceção''. 15 Mais adiante se voltará à questão_ da coisilicação do co,rpo
nec essária ou se é encenada. Algo sem�lhànte vale para a retirada de cacos e como material significativo ·na árte performntléa. Aqtú se chega à conclusão
outras interv�nç6es · Ii:õ-pako que-são.pragm.atic�fn e11le sensatas ou necessá­ de que no teatro pós-dramático do re�f o essencial não é a afirmação do real
rias, mas que em.razão 1a falta de r eferência à re� ·Íic!ade dós signos cênicos e.til. si (como_nós 'produtos sensacionalistas da indústria pornográfica), mas
são sentidas como se tive ssem o mesmo estatuto daquilo que é claramente sim a incerteza, por meio da lndecidibilidade, quanto a saber se o que está em
enc�n�do no palco. jogo Uealidade ou ficção. É dessa ambigüidade que emergem o efeito teatral
A experi?ncia do real e a falta de ilusões fictícias com freqüêhcia sus­ e o éfeito sobre a consciência.
citam uma de cepção quanto à redução, à manifesta "pobreza". As objeções Apesar de sua lndiscutível ligação com o teatro, o real sempre foi dele
a esse teatro se-referem, por um lado, ao tédio de uma percepção puramente excluído por razões estéticas_ou conceituais. Normalmente são apenas as
estrutural. Essas reclamações são tão velhas quanto a própria modernidade, panes que o manifestam: Para além dessa imagem atemodzante e ideal do
e seu motivo é sobretudo a má-vontade em admitir novos modos de percep­ teatro, a irrupção do real na cena geralmente é tratada sob a forma dos erros
ção. Por outro lado, criticam-sei trivialidade e a banalidade de meros jogos embaraçosos que alim�ritam as anedotas sobre o teatro (e cuja análise seria
formais. Contudo, desde que os impressionistas ofere ceraln r�)y� b_apais tet1�acl.ora desse ponto de vista). O teatro é uma prática artística que parti­
em vez de grandes temas, desde que Van Gogh pintou cadeiras humilde.�;é-- ·. · ··•·· cularmente obriga a considerar que "não há qualquer limite seguro entre o
evidente que a trivialidade, a redução ao mais simples, pode ser uma condi- campo estético e o não-estético''. 16 Em proporções variadas, a arte sempre
ção incontornável para a intensificação de novos modos de percepção. Aqui teve intromissões extra-artísticas do re al - assim como, em sentido inverso,
também a estética teatral segue a literária a passos lentos. É reconhecido há fatores estéticos no campo extra-artístico (artesanato). Aqui sobressai de
que em B e ckett os proc e dime ntos triviais são tudo m e nos triviais, como se maneira nova uma qualidad e estética peculiar: a constatação devidamente
fossem pela primeira vez trazidos à luz por uma radical redução ao mais · "surpreendente' de que a obra de arte - to�a obrà de art e, mas de !'nodo
simples; na literatura mais recente , reconhece-se que as meras colagens de especialmente drástico o teatro-, quando olhada de mais perto, apresenta-
palavras e cenas prosaicas apresentam uma qualidade estétlca própria. Em se como uma construção constituída sobretudo de materiais não-estéticos.
contrapartida, ainda é difícil o disce rnimento de que é por demais estreita a Para Mukarovsky, a obra de arte
expectativa de que o te atro ofereça uma representação edificante do homem,
de que o teatro é uma arte do corpb, do espaço e do tempo tanto quanto a 15 Schechner, op. cit., p. 17ô.
escultura e a arquitetura. 16 Mukarovsky, op. cit., p.12.
se ofe i:�c� no fim das contas como uma acumulação de valores extra-estéticos e como abstrato, à proeminência dos signos, o teatro in;plicà a priorida�e estética e
.algo que nada mais é senà� ess� própria acumulação. Os elementos materiais do ao mesmo tempo remete, de maneira mais complexa, ao processo de consti­
produto artístico e o modo com que foram usados como meios de configuração se tuição de significado. Nos termos de Erika Fischer-Liçhte,
manifestam como meros condutores das energias encarnadas pelos valores estéticos.
Caso nos·perguntemos onde ficou o valor estético, mostrar-se-á então que ele se dis­ ao usar os produtos materiais da cultura como seus próprios signos, comp signos
solveu nos valores extra-estéticos partic.ulares e na verdade nada mais ·é do ,que uma estéticos, o teatro torna consciente o caráter de signo desses produtos e com isso
designação sumária para a totalidade dinâmica de suas relações redproças. 17 mostra a cultura am �iente como prática geradora de significado em todos os seus
sistemas heterogêneos.19
Se o "real" está então tão implicado no estético que este só pode ser percebido
"como tal" por meio de um contínuo processo de abstração, não é nada trivial Assim, ô teatro convida implicitamente a atos perform�tivos que não apenas
a constatação de que o processo estético do teatro não pode ser destacado de est;it>eleçA,.1)1 novos significados, mas que os coloquem em cena - ou melhor,
sua materialidade extra-estética e real da mesma maneira que se pode separar em Jogo - sob novas maneiras.
o ídeatum estético de um texto literário da materialidade do papel e da tinta A esse potencializado caráter de signo do teatro corresponde sua não menos
de impressão. (Não que se tenha esquecido a noção da materialidaqe da escri­ perturbadora concretude "para além da interpretação': que torna possível a es­
tura - nem ó "lance de dados" de Mallarmé nem o nêcessário "espaçamento" tética da irrupção do re�. Está fundamentado na.c91)'stituição do teatro o fato
de todos os signos -, mas a dlferenciação entre a niatedalidade dos signos de que o real reproduzido literalmente pode a todo mome�tci'i.-êssurgir na apa­
teatrais e a dos signos da escritura não é o tema aqui.) Uma cadeira descrita rênci� teatral. Sem o r.eal não há o encenado. Representação e pr:ysença, reflexo
certamente também é um signo m�térial, mas não é uma cadeira mate�Hí'i. mimético e atuaçãq, �-E�.2re_�_e,1.1�ad.0_e o processo de represeritação:-,essa. dupli.­
Em contrapartida :-- essa constatação drástica deve ser suficiente aqui -;,1 6 tea­ cação, tematizada radicalmente no teat�o d�--presente, tornou-�e urn elemento
tro é simultaneamente prôcesso material de andar, Iev�!ltar, sentar, ,fãiar, tossir, essencial do paradigma pós-dramático, no qual o real passa a ter o mesi:no valor
tropeçar, cantar e "signo para" andar, levantar etc. o teatro.sé áá como uma do fictício. Contúdo; o que..q1:��t�Jza a estética do teatro pós-dramático não é
prática ao mesmo tempo totalmente sig11lficante e totalmente real. Todos os a aparição do "real" êomo tal, e sim s� �tÚÍ��ão "âr.itõ-refl�iva,-Esst c�ráter de
signos teatrais são ao mesmo tempo coisas fisicamente reais - uma árvore auto-referênçi�permite pensar o.valor, o•lugar e o·signifi�ado do eleinei�fô-ex-
de papelão, uma árvore de verdade sobre o palco; uma cadeira na casa dos . tra-estético iio ��tético4'e com lss� o deslocamento de seu concelt�1 O e1emen;o
Alving [da peça Espectros] de Ibsen, uma cadeira de verdade sobre o palco-, estético não pode ser comp,eendldo por nenhu' ma determinação de conteúdo
coisas que o espectador localiza não só no cosmos fictício do drama mas tam­ (beleza, verdade, sentimento:espeihamento antropomorfizador etc.), mas ape­
bém em sua situação real no tempo e no espaço (''ali na frente no palco"). n.as - conforme mostra ó teatro do real-como yia de fronteira, como conversão·
A abstraç�o potencializada do signo teatral - sua particularidade de sem­ contínua não de forma e conteúdo', ·mâs d� con�igüidade "real" (conexão 'com
pre ser "signo de um signo': 18 como freqüentemente se esquece - tem duas a realidade) e construção "ence,�ada''. É nesse sentido qu·�-;-diz qu·e· o teatro
conseqüências igllalmente interessantes. Em razão dessa sua tendência ao pós-dramáti�o é �atro.do real..El; busca cultiyar uma percepção qu� efetue por
própria côntã 'õ"vaivém entre a �ercepção estrutural e o real sensorial.
-· � .. ... .
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17 Thid., p. 103.
166 18 Erika Fischer-Lichte, Semiotik dés Theaters, v. 1. Tübingen, 1988, p. 197, 19 Ibid.

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Nesse ponto evidencia-s� que tal estética teatral suscita um desl<?camentô inaceitável. Formulando de outra maneira: se o real se impõe em relação a
de todas às questões da moral e âas normas cómpçrtamentais, ha medida uma situação encenada no palco, ísso se espelhá na platéia. Se o espectador
. ..
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se pergunta (forçado peJa prátic_a da encenação) se deve reagir àquilo que se
l 1
em que é deliberadamente suspenso ·o limite cláro entre realidade (onde, por
°
exemplo, a observaçã o de um · átb· de violêncía_ acarreta a responsabilidade passa no palco como ficção (esteticamente) ou como realidade (moralmente,
' e_ o dever de intervir) e "acontecimento a-;�� assistido''. Pois se� Ce(tO que por exemplo), essa via do teatro no limite do real justamente desestabiliza a
somente o tipo de situação determina a import:â.pcia das ações, - e se o fato de segurança irrefletida e a certeza com que o espectador vivencia seu estado
. ·,
que .o espectador deve definir por si pr6prio sua sit._uação
.. ... se torna um fator como um modo de comportamento social não-prQblemático. No teatro pós­
.
essencial �.da experiência teatral, então também cabe a ele a _responsabilidade dramátiéo, a questão de saber quando o limite variável entre "teatró' e coti­
de de�nir o modo de suá participação estrutural no teatro. Em ·co11trapartida, diano é ultrapassado no de�?.rrer de uma representação, longe de ser um fator
a definiçã·o prévia da�ituaçª2..c'?mo "teatro" (ou não) n�o pode definir a ca­ assegurado pela definição de teatro, po_de freqí.ientemente aparecer como pro­
racterística das ações. Nesse sentid;,· c�iià pesqifüa-dentifica tentôu definír blema e, assim, como objeto de configuraçãó do teatro. A distância estética
o teatro de antemão e de uma vez por todas como um acontecimento "a ser do espectadoi'°(�i11da· qu-e perturbada) é um fenômeno do teatro dramático;
assistido'; para o qual valeria aeenas o critério de se dar diante ç!o público e ela é abalada estruturalmente (de modo �ais ou menos evidente e provoca­
para ele; Com rázâo, objetou-se �.ntra' essa'tentaüvã·que classilicar o teatro tivo)' &as novas formas teatrais próximas da performance. Toda vez que se dá
de ri1odo tão rrôrmativo só é válido na medida em que se' ·considere o ato de esse apagamento dos limites, infiltra-se no teatro pós-dramático a qualidade
assistir comQ itlg()_ ''não problemático do ponto de.vista social e moral''.2º Para de uma situação oó sentido enfático do termo, mesmo nos casos ein que ela
Ó teatro pós-dramático, porém, torna-se decisivo abandonar essa segurança pareça pertencer <le modo g�ral ao teatro clássico, com sua nítida distinção
e com isso também a segurança de sua definição. Quando uma borbbletá foi de palco e platéia .
queimada em us?' a peça de protesto contra a-campanha norte-americana
nó Vietnã encenada por Peter. Brook [em 1966), isso ainda despertava furor. Acontecimento/situação
Nesse meio-tempo, o jogo com o real se tornou uma prática difun'di-dc1· do,,_ .
novo teatro - na maioria d·as vezes não mais como provocação polltica direta, Com a análise de um teatro que contradiz seu caráter de signo e tende ao gesto
·.mas como tematização teatral do teatro e, assim, do papel da ética nele. mudo, à exposição dos procedimentos, como se quisesse tornar conhecidos
Quando peixes morrem sobre o palco, quan4o sapos são (aparentemente) eventos enigmáticos ein função de um objetivo desconhecido, alcançou-se
· pisoteados em cena, quando não se sabe se um ator está sendo realmente tra­ uma nova dimensão da questão dos signos no teatro pós-drainático. Não se
tado com choques elétricos diante do público ( o que de fato ocorre en). Quem trata mai§�..9uestão de sua combinação, não mais ápenas da índecidibilidade
exprime meus pensamentos... [ Wie spreekt mijn gedachte ... ], de Fabre), é pro­ de significante (real) e significado, .mas da questão de saber a qual metamo1·­
vável qu� o público reaja corno diante de um procedimento real, moralmente fose está sujeito o uso·dos signos quando ele não mais pode ser dissociado de
sua Inserção "pragmática" no acontecimento e na situação do teátro em geral,
quando sua lei já não deriva da representação no quadro desse acontecimento
lO Slemke Bõhnisch, "Gewall auf der BUhne - Krltlk eines Paradigmas", in Jan Berg, Haos­
OU de seu caráter como realidade que se oferece, inaS da inteó.çã� de p�pclL(Utou
Otto Hügel e Hajo Kurienberger (orgs.), A11t/1entizitiit ais Darsiell,mg. Hildesheim, 1997,
pp, 122- 31, p. 12 7.
possibilitar um acontecimento. Nesse teatro pós-dramático do acontecin1ento
168
, ...•
2.l Sigla em inglês para Unlted States, Estados Unidos, mas também-o pronome us, "nós''. [N,E,] há uma efetivação de atos que se realizam no aqui e agora e que têm sua
..
1

recom��nsa no momento em que acontecem; sém precisar deL\'.ar quaisquer dica, uma interrupção do cotidiano experimentado como rotina, no sentido
vesttglos duradouros do se�tido? dó monumento cultural etc. de que "algo acontece''. Trata-se de teatralização com� interrupção e/ou des­
Não há necessidade de fundamentar pormenorizadamente que com isso o constrnção - "o procurado: a falha no desenvolvimento...''.22 Nos anos 1960 e
teatro pode ficar a um passo de se tornar uma espécie de "evento" insignificante. 70, diversos grupos de teatro norte-americanos - tais como o Living Theatre,

De todo modo, essa questão não deve nos ocupar tanto quanto a afinidade que o TPG [Toe Performance Group), o Wooster Group e o Squat Theatre - apon­
ai surge com o happenfng e a arte performática. Ambas essas práticas artísticas taram nessa direção, ainda que em muitos casos certamente ainda estivessem
se caracterizam pela perda de significado do texto, com sua devida coerência em jogo apelos políticos e intenções de revólução cultural. Nessas e em muitas
literária. Ambas elaboram a relação corporal, afetiva e espacial entre·atores e es­ outras formas teatrais próximas.do happening, a presença e as oportunidades
pectadores, sondando as possibilidades da participação e da interação; al'nbas de comw1icação tinham preponderância sobre o que era representado. Re�
acentuam a presença (o fazer no real) eil'l detrimento da representação (a mi­ cordem-se as montagens do Squat Theatre em que o públiéo era instalado em
mese do fl.cticio), o ato em detrimento da totalidade. Assim, o teatro se afirma - ... _!,!_�a loja com grandes vitrines, os atores combinavam a enunciação do texto
---
como processo e não como resultado_pronto, como atividade de produção e ação com todo tipo de atividade manual e da rua um outro público observava com
e não como produto, como força atuante (energeia) e não como obra (ergon). curiosidade, pelas vitrines, os atores e o público. É certo que nessas formas
. Subsiste aqui um tema exp!orado na modernidade. A passagem do teatro sempre houve um fator de guerra contra o públko, contra sua percepção "auto­
para a celebração, o .debate, a ação pública e a-manifestação polltica - em matizada': como diziam os formalistas russos :- toda arte que suscita uma
suma, para o acontecimento - já havia sido realizada de diversas maneiras nova percepção trava essa guerra. Mas com isso tamb'ém-se ..manifestavà
pelas vanguardas clássicas. Contudo, com a mudança do contexto histórico uma possibilidàde que distingue o novo �eatro daquelas formas políticas que
modificam-se a função e o significado de procedimentos à primeira vista dor�inara111 a cena experimental desde as vanguardas histórica.$. a_té os anos
equivalentes. Qu�ndo o teatro revolucionário russo passou a inclui;.di;cus­ 1960: comuni�ação t"éãti:afnãÕ mais em ·primeira instância.como co�jronta­

sões políticas antes da representação e números de �ança ao fin\ll{tais trans­ ção com o público, mas como produção de situaç_õe·s de auto-reflexão e auto­
gressões dos limites da "vivência teatral" eram uma conseqüência lógica da experiência dos participantes. Permanece em aberto aqui se o que se expressa
�- .... �.
politização de todos os campos da vida· naquela época. Na concepção da arte com isso é uma desp�litizaçãõ; umãrêsig'tnrção eficaz apeM1J.� curto prazo ou
de ação, o futurismo, o dadá é o surrealismo foram motivados pelo desejo uma compr�ensão ·diversa daquilo .q.u.e possa ser ª p.Q!ític.íl.110 teatro�·· �·- .
de uma inversão radical dos valores da civilização e de uma subversão de Com freqüêíicía se fala de um ''evento" que não se pode peraer. Em contra­
todas as condições de vida. No teatro pós-dramático, o significado do mesmo partida, o termo "ac�etjmento" [Ereignis], em seu sentido filosqfi_c�, não de-
traço estilístico para a arte de acontecimento d�ve ser entendido no contexto signa apropriação e auto-a�tmação, mas o fator do íncomensurável... O último
de uma outra "lógica de seu ser-produ_zido" (Adorno), diferenciada daquela Heidegger compreende o conceito de Ereignls com um jogo de palavras: ele é
dos procedimentos aparentemente semelhantes dl\ estética da vanguarda do por sua es�ência uma des-aproprlação ["Ent-eignis"]; ele de'5titui a certeza e per­
inicio do século x x. No presente, a arte de ação não_ tem màis seu centro de mite que se experimente uma mdJsponibllidade. Ao exei·i::er"seu caráter real de
forças na exigência de fn�1dar-o mundo que se expressa na provocação social, acontecimento em n;làção ao público, o teatro descobre sua possibilidade de ser
' '
mas na produção de acontecimentos, exceções, ln_stantes de desvio.
Tampouco o happening foi a princípio um ato de protesto político (sobre­
\ .......
22 Cita-se a qui um fragmento·==·"Géiucht: die L/Jc1e im Ablauj.. " - da peçi\ Descrição de. ima-
,
170 tudo em sua variante norte-americana), mas simplesmenl�, . como o notne in- gem (Bi/dbeschrelbung, 1984), de Heiner Müller. [N.B.] 171
,_ I
não apenas um acontecimento de exceção, füa·s �; situação provocadora para Assim, um teatr6 que não mais é sin1plesmente algo "a ser assist. ido'� mas
todos os ehvolvidos. Usar o conceito de "situação" ao la.do dp conceito mais usual situação social, escapa a uma descrição objetiva porque representa para cada
de "acontecimento" tem o sentido de pôr em fogo a tem.atização da situação pela um dos parti�ipantes" Jma experiência que não conflui com a experiência dos
filosofia da existência (Jaspers, Sartre, Merleau-Ponty) como uma esfera instável outros. Ocorre uma·virada do ato artístico em direção ao observador, o qual
�anto da escolha, que é ao il'lesmo tempo possível e imposta, quanto da virtual se depara com sua própria presença e ao mesmo tempo se vê forçado à travar
transfórmabilidade da situação. O teatro cria' uma circunstância lúdica na uma contenda virtual �om o criador do processo teatral: o que se espera dele?
qual não podemos simplesmente nos colocar "diànte" daquilo·que é percebido, Desse modo, chega ao teatro aquela corrente da arte moderna que con­
mas da 1ual somos de tal !'nodo participantes que, �o enfatiza Gadamer a verte a obra em um processo, tal como inaugurada por Marcel Duchamp com
respe_ito da "situação': "não podemos.ter de_la_ nenhwn saber objetivo''. 2l o "real" do:urinol. O objeto quase não mais possui substância própria, fun­
O -�onéeito-de.�tu!\ çªo .:voca ainda a iembrança d�s situacionistas e de cionando -antes como um elemento que desencadeia, catali�a e çontextuali�a
sua noção de "construção de·;1tüãções''.-Cohfom1e.afor�ulação de Guy De­ um processo no observador. O título ele uma pintura de Barnett Newman,
bord no manifesto de fundação da Ínternacionâl Situa·c1onis"ta, no lugar de Não lá: aqui JN6f there -.bere], que tematiza a presença do observador diante
mundos de aparência falsos _deveria surgir uma situação produzida a partir do quadro;·tngressa no teatro. É somente no sentido da "llus�o dramática" do
do nl'aterial .concreto da vida cotidianã, ünnmbiente desafiador e momentâ­ teatrp,(radicional que Susanne Langer tem razão em considerar que a ruptura
neo em cujo é'ontexto os próprios freqüentadores deveriam se tornar ativos, da "quarta parede" é a princíRio "artisticamente desastrosa': já que cada espec­
descobri.ndp ou desenvolvendo sua atividade críativa e desse modo akan­ tador "passa a atentar não só para a sua própria presença, como também P.ara
çando um nível rriâ1s elevado da vida emocionàP• Assim como as formas as outras pessoas, para a sala, para o palco, para as distrações em torno''. 26 Para
teatrais do acontecimento, os procedimentos dos situacionistas - ao lado das o teatro pós-dramático, é justamente a1 que se encontr� a op�rtunidade de
situações construídas, a exemplo do "urbanismo unitário" - tinham por meta, uma percepção diferente.
seguindo a línha dos surrealistas, promover a atividade própria dos especta­ O teatro se torna uma "situação social" na q11al ó expec�ador vem a perce­
dores em uma perspectiva política da revolução da vida social. -·---·-·- ._..... _ _ be! o quanto sua experiência depende não só dele próprio, mas também dos
.. . · ··-
Irving Goffman nos oferece a seguinte definição· de "situação social":"[...] the outros. Na medida em que seu próprio papel el'ltra em jogo, o modelo funda­
·. fu/1 spatial environment anywhere within which an entering person becomes' a mental do teatro pode se inverter formalmente. O diretor Uwe Mengel ensaia
' member óf the gathering that is (or does then become) present. Situations begin com seus atores uma determinada história cujo enredo é inventado a partir
· when mutual monitoring occurs and làpse when the second/ast person has left".25 de um intenso en'.yolvimento com os problemas sociais de um bairro. Em se­
guida, o que se representa daquele enredo não são os eventos em si, mas seu
23 Hans-Georg Gadamer, Wahrheit und Methode. Tüeingen, 1965, p. 285.
"desfecho;;q� é exposto através da vitrine de uma loja vazia que funciona
24 Guy Debord, in Gérard Berreby (org. ), Documents relatift à la fondatíon de /'!11ternatio11a/e como teatro. Na ficção, alguém foi assassinado e os atores se imbLtem lnter­
Situation11iste. Paris, 1985, p. 616. samente de seus papéis: alén1 do próprio morto, am.igos abalados, parentes
25 Irving Goffman. ln Jo:icl1lm Ritter e Kadfried Gründcr (orgs.). Historiscltes Worterbuch der de luto, o assa�sino e outros participantes da história estão presentes na loja
Philosophie, v. 9, Bnsiléia, 1995, coluna 936. ["(... ] o ambiente espacial por inteiro em qual­
como testemunhas. A porta da loja fica aber'ta, e o processo teatral �repre-
quer lugar dentro do qual un�a pessoa que entra se torna membro de uma assembléia que ...
,

está (ou passa a estar) em curso. As situações começam quan_? o ocorre um moilitora111eoto
mútuo e caducam quando a penúltima pessoa foi en1bora."· ] -- 26 SusnnJJe K. Langer, Fee/ing a11d Form. Nova York, 1953, p. 318. 173
sentação çonsiste no fat0 de que o.s. espectadores podem entrar no reclnto e
interrog;r ÓS atores n respeito da história, de suas opiniões e sentimentos. Lo­
gicamante, cada esP.ectador só ·recebe o teatro que "merece" por sua própria
·...
atividade, por sua disposição para a comunicação. �à e�teira das artes plásticas,
0 te�tro se volta para o _observador. Se não mais pudermos identificar como
teatro urna tal pr4ticà situada entre ·ô."teatro'; a perfórmance, as.ar.t��_plásticas,
a d�ça e a múslca1 Mo precisaremos hesi�r em seguir o irônico conselho que
Brecht dava àqu�lés que não mais queriam c�amár de te.atro sµas novas formas,
dizendo que poderiatn simplesinepte chamá-las de ''taetro" [1haeter]. Para além da Ilusão

. ·--·. ----------
Uma vez comentadas as especificidades do,trat����tó dos signos- f\ô teatro
pós-dran'lático, cheg�mos a· qma ampla decomposiçâó dê ·cerfezas estéticas
trad!�ionais, meâiante a qual a pr6prià barreira conceituai �ntr5 significante e
_
.,- significado é desmontada. Nesse ponto é aconselhável discutir-_a-G0nceimação
de ilusãQ e que�ra d; ilusão, qÚe tem _u·rn papel'esP,eÇial no debate sobre o tea­
/ tro da modernldade em geral. Revela-sé que ela é �útil para a compreensão
···-·-· . .,..,. do teatro pós:dramát1c9� ·
A transposição dos. Umit�'e-ntre artê ê reãlfdm:le,teíll're-e-o.utr.;�s_artes, ação·..
ao vivo e reprodução tecnológica torn91.)-se o elixir da :v.i�a·do-teatrô, �m Ei;.p"õe
· questão um f�m"ãque pominou por muitÓ tempo a discussão sobre ·ó teatfo co�o
uma fonna de ficcionalictà-d.�: a Jlusão. o autoquestionamento e a dúvida do tea­
tro acerca da utilidade e do sentido da ilusão já assumiam formas agud�s nos
clássicos da modernidade. O teatrà tinha a pretensão de ser uma forma de ver.'
dade entendida como verdade l!rtlsüca, ÍÍó .st;lltido dê (J.lle êsta, como realidade
"mental': não era d!! modo algum _afetada pelo caritú ilusório ctó teatro. O fato de
que a cena criasse ilusõê:s - per��ncéndo portanto ao reino do e11gan.o - era con­
slderado simp �esiiiente como sJp mo�o de y:Údé!.de;·o ludus' d:i Jlusão podià ser,
... .. � -- J.- ---
• I
A pàlavrà latina /11dus, étimo de "ilusão': significa "divertimento, recreio, passatempo''. [N,T.) 175
174 '· 1
' , .
-�
'
I\'·

I
sem problema algum, símbolo, metáfora, •
parábola-da verdade. Diante do pano O roinance tradicional ( ... ) pode ser comparado ao palco italiano do teatro bur­
•• 1
de fundo••desse caráternão-problemático

da ilusão
1
do ponto de vista.conceituai

guês. Essa técnica era uma técnica da Ilusão. O narrador levanta uma cortina: o
e estético, alcançou-se no final do século xp� �ri1a auto.liom.ização dos efeitos leitor deve participar da realização do que acontece como se estivesse presente em
ilusionistas no campo da práti�a teatral - por �m lado, no teatro de espetáculo; pessoa. A subjetividade do narrador se afirma na fo�ça de produzir essa ilusão.
por outro, na ilusão naturalista, com·o Théãtre-Libre de [André] Antoine como
ponto culminante.2 Como certa vei observou Jacques Robichez, as invenções do O novo tipo de reflexão no romance moderno é "tomada de partido contra
teatro no século x1x foram conquistas no ten:eno{i_as técnicas.ilusionistas. a mentira da representação, na verdade contra o próprio narrador, ambicio­
É no decurso da revolução artística das vanguarda,0istóric�s- que a ilusão nando corrigir sua inevitável perspectiva como um clarividente comentador
cênica passa a _ser vista em si mesma eomo problemática. Uma_ �às possíveis res­ dos acontecimentos. A violação da forma se dá em seu próprio sentido''. As­
pos'tas, ª?S pet.igos de u'ma produção' de 'aparências vulgarizada e descompro­ sim, em Thomas Mann há urna representação irônica, que "por contl;l do há­
metida era, pa:ràâoxalmente,.. o efetiv.o. ap�fel_çoamento da· ilusão: uma imitação bito ·do discurso trai o caráter de palc<' italiano da narração, a irrealidade da
"melhor'; "mais autêntica': deve conjurar o perlg� d�niêrãs aparências, da arte de ilusão''. Em Pronst, o .con1entárlo está ','de tal maneira entrelaçado com a ação
fachada enganadora, sem relação com as contradições sociais insistentes. Histo­ qu� a di�t!nção entre ambos desaparece': com o que
-· -···- .. a. realidade do teatro
ricamente, a outra resposta foi ml)is rica_em conseqüências: ,/
e sobretudo a d_o ator - seu corpo, sua irradiação - deve se impor sobre a matéria _,ó narrador lança mão de um componente fundamental na sua relação com o leitor:
ilusionista, a il&são deve ser destruída, o teatro deve ser reconhecido como teatro. a distância estética. Esta era imutável no romance tradicional. Agora varia como os
�upera-se á·concepção d� �ue a verdade poderia estar escondida como um ca­ posicionamentos de câmera no cinema: ora o leitor é deixado de fora, ora é levado
roço em um envoltório aparente. Se o teatro deve oferecer uma verdade, precisa pel_o comentário para o palêô. para os bastidores, para a ca�a das máquinas.
então se dar a reconhecer e se ex-por como ficção e em seu processo de produção
de ficções, em vez de enganar a esse respeito. Somente assim ele pode ter alguma Kafka radicaliza essa perda de distância: "Por melo de choques, ele rompe a
pretensão de seriedade. "Si on admet que tous /es acteurs d'une piece [ ... J sont, en segurança contemplativa do leitor ante o que é lido"}
somme, des déguisés, il est �e_rtain que, même dans /e drama /e plus sombre, intet-· .. ·seria difícil designar com mais precisão aquilo que no novo teatro tomou
vient un élement de comique': escreveu Paul Claudel.3 o lugar de um contexto fictício delimitado. Se é possível dizer, com razão, que
a dissolução dos limites estéticos arranca o leltor de sua· "segurança': o tea­
Distância estética, memória involuntária tro então, q�e se converte numa situação parcialmente aberta, deve destruir
ainda mais a segurança do espectador. Na prática, o espectador �stá entregue
A mudança que ocorre no teatro pode ser compreendida nos termos da trans­ ao aconteclirrento teatral de modo muito menos protegido do que o leitor
formação da forma narrativa do romance tal como apontada por Ado-mo. ctn relação às impressões da leitura. A reflexão nb ato da leiturá só pode se
tornar formalmente constitutiva no romance de modo lltnit�do, pois se o ato
desse feitor atual ou um "colóquio" do autor com .º leitor podem ser objeto
2. Cf. Jncquot, op. cit., p. 27. _./
3 Paul Claudel, apud ibid., p. 21, ("Se admitimos que todos os atores de uma peça l, .. J estão,
em suma, fantasiados, é certo que, mesmo no drama mais sombrio, Intervém um elemento 4 'lbeodor W. Adorno, "Standort des Erzlihlers lm zeitgcnõsslschen Roman': ln Noten zur
de comicidade.") Lileratur 1. Frankfurt am Maln, 1969, pp. 67-69. 17 7
'
do texto, 9 comportamento empíi;tco dwante a leitura evidentemente está diante ;i -vivência daqueles dois tempos da memória.involuntária, pode-se
fora-·do ;lcance do autor. Isso não muda nem mesmo quando em textos de clarificar um pouco mais a especificidade da expériência teatral em geral: o
Italo Calvino ou de Thomas Pynchon a leitura é inserida no texto mediante sentimento de ali e:>rperimentar um pedaço da vida é suscitado por meio da
um jogo de Idéias. Ao passo que o leitor dispõe _ de muit�s posslbiUdades materialidade do processo teatral, que propicia a cena da recepção mediante
de escolha quanto ao seu modo de se relaciónar com o texto, a recepção a associação de "lembrança" e presente.
do teatro é influenciada em altíssimo grau· por fatores comQ O.Jll.Omento, o O novo teatro extrai algumas conseqüêndas da situação do espectador
lugar, a dui·ação, o ritmo, o comportamento dos demais espectadores. Se privado da "segurança'; de seu envolvimento no procedimento real do tea­
ao leitor semp�e resta a confiável autonon1ia da apropriação mental de um tro e no momento te�tral: ele investiga quais possibilidades se abrem com
escrito, a disponibilidade do aqui e agora de sua leitui-a - mesmo no caso o abalo ou a anulação da distância estética remanescente - não só na con-·.
do romance moderno, com todo o seu "desamparo transcendental" -, o cepção estética como também no pr9cesso real do teatro. O envolvimento
teatro arranca o espectador de sua trajetória. -�.- .. - .. -.,E_5>rporal, que no teatro dramático per;naoece apenãs látente (não é à toa que
A percepção db teatro também se diferencia fundamental.mente da lei­ Sz�ndi descreve o espectador como alguém de mãos atadas), torna-se patente
tura pelo seguinte motivo: o texto pode provocar choque, excitação, confu­ quando a atenção do espectador, em vez de ser induzida para o produto da
são, mas do ponto de vlsta da recepção estética essas coisas se convertem em ilusão, é dirigida à sua posição na sala naquela hora.
formas de reflexão; Já a corporeidade espaço-�)..llporal do processo teatral
encerra o esquema inteligível do que é percebido em um momento vital afe­ Camadas de ilusão ···----....
tivo. Esse é um fato determinante para a lógica de significação do teatro. O .
.. )
sentido da cena está ligado aos dados J"!")ateriais do palco de um modo ,tão Mas como é possível que o teatro renuncie às oportunidades ao _i�usionismo,
tênue quanto o das arrebatadoras impressões sensoriais que em Pro1:�t-d�sen­ . das quais ele pareêe viver�·e ainãa · assim ·exerça fascinação? Justa�e;1t� por­
cadeiam a memória involuntária. Pr.oust apresenta a magia da m�mória invo­ que é um lugar-comum o fato de que na modernidade impôs-se a ruptura da
luntária de tal modo que uma certa impressão é vivida ·sTtnultcáneamente em ilusão, é precis.o-d�staçar quão pouco se expressa· com esse termo. A ilusão
duas diip.ensões: no passado imaginado, representado, portanto na forma de sempi-e foi um subpi:9dirto do teàtro·e da-fan�asia.do .e&p�çtador, coeficiente
puros "devaneios da imaginação': sem o fardo da · realidade at�al, e também de sua atividade conjunta. Uma ap�lise, da varieçta_�J dâ� �;�;;da.s'de--ilusão
nq presente real e corpóreo, longe das imagens meramente fantasiadas. Ao torna possível é· xpllcar por que o teatro .pode passar ·sem o ilu'slonlsmo sem
se experienclar o mesmo gosto e p mesmo rumor na realidade tão-somente com isso deix�r de s�r'teat:º·
lembrada do momento anterior e ao mesfno ·tempo n_q agora da experiência Quando se fala de ilusã(?; Qa maior parte das vezes é para enfatizar que
sensorial, adiciona-se à lembrança imaterial a "idéia da existência" por meio não se deve perturbá-la. No entanto ela sempre foi perturbada, e o palco não
do sentimento da materialidade, precisaya remediar isso. Ç)s incontáveis espectadores no teatro da Atenas da
Analogamente, pôde-se dizer que no momento de sua recepção o teatro Antigüidade mergulhavam em · µma realic,lade espiritual c'O'ns�ruída sem con­
atua como a memória involuntária proustiana, na medida em que o espec­ tar com qu_alquer ��fJ.io técn_iê:d cênico. O palco de Shakespeare tambéí? era
tador teatral continuamente-"divide" e unifica sua pí.\rticipação imaginativa despojado, ·.A'pe�ar dos retoques musicais, 'as barulhentas maquinàrias bar-
, l ··-· ,
(comp�rável à leitura) e sua participação real-�orpqral, seu testemunho sen­ rocas - assim como a conhecida d�sa"tenç�o contra a qual os grandes atores
sorial da existência das coisas. Em face da· experiência d� vida suscitada me- tinham de empreender uma dura batalhã - podiam i.rüpedir qualquer ilu- 179
·,
�\'-.'.

sionismo. Justamente na época da'grande arte-ilusiohfstica dos bastidores, o há aquela sensação que sempre se evocou ao se falar de ilusão, A oposição
teatro er_il um acontecimento· so�ial em que a V10ntagem propri�ente dita entre ilusão e quebra da ilusão não é nenhum ínstrumen.to analftico: ela se
recebia uma cota modesta do potencial d� )lt��çãd: Q:teatro moderno não insinua na realidade mais complexa dos procediinentos teatrais.
destruiu uma ill!São que até _aquele mome1�to era realizada e funcionava,
mas deslocou para um outro terren·o .i;.ssa.ilusão que Já vinha querendo dizer Mostrar e comunicar
algo diferente de engodo - mesmo no séculb XIX, tão afeiçoado à ilusão.
Jamais houve ilusi�nismo cabal. Exami_nánQ? mais de. perto aquilo que �ara melhor compreender também a "quebra da ilusão': tomemos como
pode ser' · chamado de ilusão, .pode-se distinguir'·pelo menos três aspectos. ponto de partida as idéias de Brecht pata tornar o "mostrar" consciente no
"··
A chamada ilusão consiste no espanto diante dos possíveis ef�i�os de realidade teatro. Assim, pode!nos reconhecer a segilinte escala:
(aspecto-�ª magia); na identificação �stéfÍêà' e sensorial com a intensidade sen­ 12 nível: o mostrar não s·obressai, não se mostra como mostrar (exemplo:
sorial dos.;tór.és e·<l.áS'cenas teatrais,.das formas de ri'rovimento dai1çantes .ttafü.ralismo).
e das sugestões verbais (aspecto do Er�;, -�Ía�o �uóoscuro); na projeção de g
2 nível: o m-ostrar.so1:i,ressai, exige atenção ao lado do mostrado (exemplo:
conteúdo de uma expedê�1cia de mundo própria sobre os modelos teatrais estilos de_ répresentação altamente artificl�is).
representados, associada aos·atQs. 11),entais �e "preencher e esvaziar" e à empa­ N�ses dois casos o ato da comunicação teatral não precisa ser ten1atizado,
tia com os per��nagens, uma empatia que se enc�;t�; mut�tis mutandis tanto· o que se modifica a seguir:
no ato de ass�tir quanto no ?e ler (aspecto da "concretização"). O achado 3� nível: o mostrar aparece com o mesmo valo1· ao lado do mostrado, ele é
mais marcante-desse exame é que apenas ô terceiro aspecto diz respeito pro­ n:1ostrado como mostrar e permeia o mostrado (exemp�o: o teatro épico de
priamente ao campo da ficcicinalidade. Isso explica por que a ficção pode Brecht).
recuar ou até desaparecer sem que necessariamente se perca a vivência da 4c. nlvel: apenas aqui o mostrar aparece em primeiro plano em relação ao
"passagem''. do "rapto" para o reino 1:l.a aparência, o qual com freqüência é mostrado, Este perde interesse diante da intensidade e da presença do mos­
apressadamente designado como ilusão. 1 As outras camadas, "magia" e "Eros':
·····-·· ··� trar, ou seja, o significante se adianta ao significado (exempló: as performan­
continuam a ser possí_veis_�esmo serri a concretização de-um mundo fictíc1õ:--·· · · · --·· ces"aútobiográficils de Spalding Gray). Aqui o ato da comunicação teatral se
Não obstante, muitos vêm a font�'de poder do teatro unicamente no mundo torna dominante.
·\ fictício da llusãó, de modo que temem pelo bem do teatro caso se chegue a 5D. nível: o mostrar aparece "sem objetividade'\ mostra apenas a si mesmo
' uma deterioràção do cosmos ficticio do drama. Assim, por ocasião de um como ato e "gesto'; sem um objeto discernível (exemplo: Jan Fabre). Aqui o
debate sobre a encenação de O balcão [Le Balcon, de Jean Genet] por Richard átó da comunicação teatral se torna' auto-referente. O mostrar passa à apre­
Schechner, um conhecedor dé Wilson manifesta sua preocupação exatamente sentação, rwifestaçâo, à exposição conio gesto que se basta a si mesmo.
com "a proporção em que a ilusão pode ser excluída da representação teatral" Nos dois últimos níveis aparecem· em primeiro plano. a percepção cons­
e afirma - com ? "risco de parecer fora de moda': como ele mesmo diz - "que ciénte do próprio procedimento artístico, a fascinação com o processo mate­
no teatro a realidade nos é con'lunicada de modo mais comovente justamente rial da representação, da encenação, com a organiiação espacial e temporal
por meio da ilusão': e que «eliminar a ilusão do palco" acabaria por levar «à não de um universo fictício, mas da montagem. Uma vez que nessa op,enrfaÓ
ruína do teatro", Mas mesmo o teatro mais estranho é capaz de pr9vocar es-
-
a perc :pção não pára de perquirtr um sentido associado a realidad;s, torna-
180 panto e identificação sensorial. Mesmo sem criação dlé ap��i1d.a de realidade se acessível à percepção sensorial a experiência de que ela atribui aos estí- 181
.
--·------------

mulqs s!galficações· que são determinadas subjetivame�te, em atos de uma


arbirrã;iedade �m última i�stârtcia Injustificável. O problema teórico de um
per�pecti'vismo ràdical do pe.osaíilei1to e da percepção se torna uma cer­
tezâ sensorial, nó sentido de uma experiência imediata da eliminação da
certeza. A percepção assim exigida e possibilitada tem a ver desde então
com uma peculiar duplicaçffeo. ou separai;ão: presentação e re.apni�ntação.
O corpo·- o "sentido obtµso'; para usar a distinção de Roland Barthes5 -,
significante sem significado, quer ser "rêce?ido" por si mesmo, assim como
o "sentido óbvio", a 16giça do contexto que ele ao mesn10 tempo perturba. Exemplos

·-------
Isso faz o teatro deslizar em uma esfera de oscilação entte o real e o ilusó­
r\o, que a estética clássica do dran'la havia justamente deixado em paz, ... . .. - . -

·- ....__
Uma noite entre J'an e seus amigos

. Assiip_como muitas-o�tras pessoas de teatro da atualidade, o belga Jan Lauwers ·


/ �ão se consid�ra sirv.p!�mefl!«: !:]Il)__1'���tor}_ rnas um . "artist;i."·qu-e·entre-0utras
coisas tainbé� faz teatro. Em 1980 f9i fund� efü Bnixelas o grupo Epigo­
/ nentheater zlv (zonder leiding Van [sob nenhu�a direção]). Ja·n Lauwers, um
···-- _ _,,. dos iniçlildôres; era ·origlnvm�:n.� pintór; U!l)' outro co-fundador, André Pi­
chai, era músico; dariçàrino� tã�Õ"éti1..s.e·i�riirâm-ãõgTupú:·:l/1ei:í![i1_ então
Doençà nôtur.11a. Wight�Jl/ness] em·r98l, Jáfere e ainr:ln-ndô-tgu�tra tAi�àdy
Hurt and fJOt yet iv'àr-].,�m 1982, Simone, a puritcma [Simône la pê1ritaÍne] en�
1982, a manifestação Avesti>u,?_[Vogi:l Strau.ss] ein.1983, Boulevard .iLv ein 1984 e
Incidente [JncidentJ em 1985. A)ós a fundação âa Needcoh)pany, sbb a direção
de Lauwers, d primeiro trapalho, de 1988, foi -!'{ecessár.io saber [Neiâ to Know],
que incluía fragmentos de Aritl.ln�ii ·e CTé6jYatt:a .em '!Illª ·col_a_gem de cenas sbbre
o amor e à morte, Seguiram-se ftudo bem [Ça va] e então;
• I (
p�7i espanto ge�al
da crítica, em 1990,
.,.. .•
Júfià César,1 peça em. 9..ue- Q texto tem um papel .
do.Q)inante,
inteirameiifé a_p contrário do qpe ��? rf�ta .n0s·.trabalhos ãnteriores. Em 1991
Roland Barthes, "Das entgegenkomrilende und der stumpfe Sinn'\ ln Kritlsche Essays Til. Lauwers apresentou!nv/etos;ã partir de text9s él.e Heiningway - sobretudo "As
5
Frankfurt aril Maifl, 1990, pp.'217-6!5. neves do Kiümanjarc{ - e dà biógrafi; Papá Hemingway, dti A: E. Hótchner. 183
1 ,

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Como confirma Lauwers, ante-s de Júlio éésar seu trabalho teatral se ba­ do centro para o canto do palco). Apesar da encenação calcul
ada e ensaiada,
seava principalménte em imagens. Depois dessa mont�gem·ele võltou a pro­ a (aparente) descontração dos atores, a ausêncfa de um direcio
namento rí­
curai- um texto não-dramático que ele mesmo pudesse·"construir" no palco - gido das açõ e s, a interrupção do diálogo pela inserção de peque
nas danças
em vez de encenar uma outra obra já pronta no papel de diretor, descrito por levam de modo recorrente a um isolamento do procedimento
cênico,
ele muna entrevista à Gerhard Fischer como d�sagradável, uma realização de Quando o teatro se mostra como esboço e não como pintur
·apenas "5ô% do trabalho artistico''. O entrevi.i;�ádor manifestou ·sua perplexi­ a acabada,
propicia ao espectador. a oportunidade de sentir sua presen
ça, de refletir, de
dade com a representação "lin ear" e "convenci'à·n�f de Invictos, com aquilo contribuir ele mesmo para algo incompleto. O preço disso é
o conseqüente
que lhe _pareceu um método de narrativa antiquaao:1··Co�tudo, no contexto rebaixamento da tensão, já que o espectador tanto mais se
concentrá rias
da estética pós-dramática um narraçlor.n�p pode ser compteendido simples­ ações físicas e na presença dos atores. Como quase sempre ocorre
nos traba­
ment�·em sua ·tradiclop..il função épico-literária: sua n�rração manifesta aqui lhos de Lauwers, a representação acima descrita fala da morte
. , de seu terror' .
o contato direto com o ptiblico:·Néssdeáfro·de·W11a narração p6s-épica,2 a da perda - mas fala com suavidade, como que além da morte
. O modelo:
ação ..;; que de todo modo"já é fragmentada e pontuada por outros materiais - observamo� u.ni"e�êoritro· social, mas a porta não está de todo
aberta; é como
freqüentemente é exposta em estado de relatório: contada, relatada, trans­ se olhá;s.erhos uma festa em que há pessoas vagamente conhe
cidas, mas sem
mitida como que de passagem. ·A rarefação do dramático ficá especialmente realryrénte fazermos parte dela. Poder-se-ia dizer: ô espec
tador passa uma
evidente quaiÍdo Lauwers representa a morte. Entre os momentos mais fortes noite entre (não c0m) Jan e seus amígos.
desse teátr� estão aqueles em que atores que acabaram de morrer na ficção
são carregado� -�m silêncio para fora do palco pelos outros atores: urna vida Narrações
encenada se acabou e o ator permanece ligado aos outros por a.tnizade - um
dos temas recorrentes em Lauwers. Utn traço essencial do teatro pós-dramático é o princípio da 11arração: o tea­
No conto "As neves dó Kilimanjarô" (1936), um homem doente espera _sua tro se torna o lugar de um ato de contar (ocasionalmente iss� também ocorre
morte na vastidão africana sem oferecer resistência. Sua perna ·sofreu-uma__ -·--·· .. ··- no cinema: em Meu jantar com André [My Dinner with André, dir. de Louis
gangrena e o avião qÜe ,;ein so�orrê-lo está demorando, mas o homem já não Malle, 1981] não acontece quase nada além de um relato de André Gregory
quer ser salvo. Com a mulher que quer mantê-lo vivo ele mantém um diálogo sobre seu trabalho com Jerzy Grotowski durante um jantar). Freqüentemente
perpassado pelo rancor, pelo cansaço, pelo desespero e pelo tédio. O conto é tem-se a impressão de assistir não a uma representação cênica, mas a um
carregado desse páthos existencialista da frieza, de uma atmosfera densa - a relato sobre a peça em questão. Nesse caso, o teatro oscila entre narrações
representação da Needcompany é descontraída, serena e cheia de humor,. delongadas_e..�pis6dios de diálogo espalha. dos. aqui e ali; a descrição do ato
.
como se tão-somente citasse a crueza. Foram deixados de lado todos os ele- peculiar da lembrança/narrativa pessoal dos atores e o interesse nela se tor­
mentos da ação que em Hemingway evocam o caráter dramático espanhol nain o ponto principal. Trata-se de uma forma de teatro que se diferencia ca­
(ironicamente, logo-?º início da peça um imponei1te touro espanhol é levado tegoricamente da epicização de processos ficcionais e do teatro épico, ernbora
apresente semelhanças com essas formas. Desde os·anos 1970, artistàs pe.tj9J:­
Jan Lauwcrs, enlrevis\a concedida em 05 /06'1991 cm Viena. máticos e teatrais encontraram o sentido de seu trabalho cênico ao p.tivilegiar
:i. Kirslen Herkenrath, Jan LiH11vers' Antonius und Cleopatra ,.El11e nachepische T/1eaterkozep- a presença em relação à representação, já que se tràtava da comuillcação de
tion. Giessen, 1993 (mirneo.). uma experi�ncla pessoal. Em um ptojeto teatral de estudantes de Frankfurt
sob a direção de Renate Lorenz e Jochen Becker, com o título WYSIWYG (What Um teatro de bonecos pol�tico como o Bread and Puppet contava as grandes
you·seé·;� what you get [O que você vê é o que você tem], 1989), a realidade coti­ histórias, parábolas da Bíblia e alegorias, tipificadas como comédia. O grupo
diana dos participantes - co�pr�s, trajeto até a universidade, ida ao dentista, um conhecia a figura do narrador do teatro épico, e por isso se atínha à narração
encontro com antigos etc. - era oferecida sob to.das as formas de presentificação do mundo. Enquanto o teatro épico transforma a representação dos proce­
possíveis (imagem, diário, fotografia, filme, cena/diál;go representado). Visava­ dimentos fictíclos e procura distanciar de si o espectador para fazer dele um
se assim um efeito a11timídias por meio de �ma representação midiática e de um . especialista, um jurado político, nas formas de narração pós-épicas trata-se
uso altamente consciente das mídias: o presente dos atores mantém o teatro na da valorização da prese�ça pessoal do narrador, e não de sua presença de­
proximidade do encontro pessoal, em contraposição às exibições de "realidades" monstrativa, trata-se da intensidade aut9-referencial desse contato, da proxi­
biográficas nos programas de tevê. Desse modo, era pertinente ao conceito do midade na distância, e não do distanciamento do próximo,
projeto que a sessão das narrações terminasse com uma festa no mesmo espaço
em que acabara de ocorrer a represe11tação.
A narração, que se perde no mundo das mídiás, encontra um novo lugar
- --.-
... .. ,e,q_�ma
....
cênico
...

no teatro. Não por acaso há uma redescoberta da representação de fábulas. Em Lauwers, a realidade fictícia da peça ou da narração é restabelecida na re­
Bernharcl Mlnetti protagonizou uma noite memorável ao ocupar sozinho o alidade do palco. Os atores com freqüência se comportam de modo aparente­
palco do Teatro Schiller como narrador de f�bYlíls dos Irmãos Grin1m · (com mente privado, sem afetação - eles hnbitam o palco. Mesmo quando agem
direção de Alfred Kirchner). Em uma montagem do grupo performático dina­ .
em seus papéis, não dão a ilusão dos personagens. Volta e·�ta· interrom­
marquês Von Heiduck - que en1 vários de seus �rabalhos explora o potencial pem �- representação e se voltam com um olhar frontal para oyúblico, que
· perturbador do Eros com recursos coreográficos, gestuais e cênicos -, a·d'}l1ya desse modo se encontra incluído no momento teatral. Isso en'globa t_odo o
é subitamente inten9mpida e um homem narra por cerca de meia h?.ra',"com .
processo cênico. As;im como em Jai-i Fâbre, ·üm·impulso perfcirmático é-con­
uma voz sempre tranqüila e riada dramática, a fábula O porco de meta( de Hans­ jurado em uma forma teatral que escapa à categorização narrativo/não-narra­
Christian A�dersen. Um golpe surpreendente em meio áu.naa apr;sentação tea­ tivo. Lauwers traz para_o teatro uma sensibilidade especialmente aguçada
tral que fala da sedução e da solidão dos corpos carnais com recursos "mudos': para o efêmero e para.a ;;�� êi"a-mõ"rte:·Pãrél ·e le; O· teatro'.é . .l).f11 momento
valendo-se de uma mistura de citações de múskas de filmes hollywoodlanos de comunicação irreproduzível. Ae�sa ênfase no m9mentâneo a;socia-se
e de gestos eróticos provocantes,3 O momento da narração volta ao palco e se 'uma estética 'cê�ca si�gular que ele trai para o teatro como artista plástico:
afirma contra o potencial de fascinação dos corpos e das mídias. os detalhes visuais, os gesto7, as cores e luzes, à materialidade das coisas, o
Os trabalhos da Socletas Raffaello Sanzio não só fazem da tragédia um figurino e as relações espacià'is ...cónstituem, com os corpos expostos, uma
conto de fadas assustador (Orestéia), no qual também há espaço para temas complexa·trama de alusões e ecos, construindo em meio a toda a aparência
de Alice no país das maravilhas, como instalam os espectadores de Ó pequeno de acaso e Imperfeição uma campo-sfção: ..
polegar em caminhas de criança, onde eles escutam a voz amplificada pelo No curso do desenvolviment9 .artístico de L�t11vers· pode:Se-observar uma
microfone de uma narradora posicionada no meio do espaço da montagem. evolução, ou ao menos,uma bipolarídade, entre os trabalhos mais centrados na
\ . . ·�
produção de uma situação de contato e aqueles -em ,que a realidade autónoma
1
Sobre a �or'ltagem no Künstlerhaus Mousonturm de Frankfurt am Main em Junho de 1997, do palco se impõe co\)1 mais-vigor: Â, configuração dos elementos textuais e
I .
186 ver a resenha de Gerald Siegmund no Frankfurter Allgemeine Zei l!'ngde 08/06'1997, corporais, rica em tensõ�s, estabelece füversõs jogos de espelhamento corn os


•• 1
' • •
f '

objetos: ltiz e objeto; gelo, águ: e sangue{. estill;aços , feridas e lf�gua "rachada''.
'

Entre as artes
Nesse e�paço cênico pós-dramático, corpos,.grstos; movin1�ntos, posturas e
vozes são arrancados de seu continuum esgaço-te�poral comum e conecta­ Nos concertos cênicos de Heiner Goebbels, assin1 como nos diversos traba­
dos de um modo.inusitado. (?_palco se tornã_um complexo de espaços que se lhos teatrais que ele cria como compositor, diretor, arranjador e "colagista dl?
associam entre si , composto comó uma poesia absoluta. Seria possível ler o tea­ textos': trata-se da interação de complexas configurações espaciais, luz, vídeo·
. tro de Lauwers, na chave de Rimbaud e·Mallarmé, como uma nova forma de e Outros materiais visuais com práticas verbais e musicais como canto, decla­
alquimia estética na qual os recursos cênicQS :Se.!:_ombinam:1)ara perfazer uma maçã o, uso de instrum�ntos e dança. Essa interação se dá ora em dimensões
"lingua g_él'n" poética. Os textos são ligados aos gestõs..ç__à corporeidade dos ato­ monume!).tais, como em Cidades sub-rogadas [Surrogate·CitiesJ, ora em for­
res; ao mesmo tempo, a fragmentação e a colagem de· mo11?-entQs de ação os mas reduzidas, como a da combinação de um locutor, um músico ( o próprio
mais.djyersos faze111. que·a atenção,'em\,ez de se dirigir à tensão (épica) em Goebbels) e um artista vocal-em A libertação de Prometeu [Die Befreiung des
torno do deêuiso clãs ·ações·( contadas .9.ll .(ei_ta�), recafa inteiramente sobre a PrometheusJ, com texto de Helner Müller. Nessas formas de representação
presença dos atores e os recíprocos espelhame�tÕs ê analogias. Surge assim é essencial a reflex"âo..sobre as possibilidades da interação de dlversos ar­
uma dimensão Urica, no sentido em que Mallar.tné emprega a palavra: no dis­ tistas no ânibito de uma apresentação. Aqui se poderia falar de um teatro
positivo poético, há que se intensi(ica� as p_alavr�s-�-as ressón'âncias mediante "inte.rcJJsclp!inar': mas o tema propriamente dito é n estreita Inter-relação
espeÍhamêntõs e atialogias recíprocos assim como ocorre em um diamante, àe diversas linguagens teatrais (atuação, música, instalação, poesia da luz,
que cintila porque os raios de luz são contifrnamente refratados. canto, dança ... ).
Eis um exemplo no contexto de textos e cenas de Lauwers que remetem ao O teatro de Goebbels abriga o sonho com uma teatralidade que se afuma
fin de siecle. Na terceira p;rte da Trilogia canto da s�rpente [Snakesong Trilogy] mais pr_óxima das formas da àr.te de entretenimento do que do pesado teatro
ocorre uma ação muito significativa do ponto de vista estético e temático: de formação. Esse teatro é pós-dramático não só pela ausência de drama, mas
na frente do palco, uma moça constrói com cacos de vidro finos, vagarosa e sobretudo pela afirmação da autonomia das configurações nfüsicals, espaciais
sistematicamente, uma pirâmide de aparência frágil e perigosa em seu equi- e de atuação, cu jo desdobramento no palco se dá de inaneira a ressaltar pri­
líbrio vacilanté. o p�rigo de se machucar, o erotismo aparentem.ente "deêlr•· ... --·· meiràtnente seu valor próprio, e somente depóis sua função na relação com
dente" e a aut6-rcferência do procedimento "concordam" temática e formal- os outros elementos. Goebbels relata que em Newtons Casino, uma das várias
mente com os textos "esteticistas" de Mallarmé, Huysmans e Wilde utilizados montagens em colaboração com Michael Simon, grande parte do trabalho
na peça. O espectador imagina estar diante de um "texto"' obscuro, composto teatral partiu da concepção de espaço de Simon, assim como <\ diagonal pro­
com hieróglifos enigmáticos. Seres humanos, gestos corporais, carne e vidro, jetada por Magdalena Jetelová se tornou um princípio de composição cons­
matéria e espaço constituem uma figuração puramente cênica; aos poucos, o titutivo paiããeflcenação de Ou o desembarque desastroso [Oder d/e gliicklose
espectador assume o p apel de um leitor, que interpreta os sig nificantes huma- Landung], em que as perspectivas, as linhas de fuga e os ângulos do espaço
nos, espaciais e sonoros espalhados no palco. Esses processos e configurações ecoavam no trabalho cênico. Em trabalhos como Preto e branco [Schwarz und
situados entre a poesia, o teatro e a instalação podem ser mais bem caracte- Weiss] e A repetição [Die Wiederholung) quase não .se pode mais distinguir
rizados como poema cênico. Como um p oeta, o diretor compõe campos de qual foi a principal motivação do encenador: se os impulsos temáticos.{beín�
associação entre palavras, ruídos, corpos, movimentos, luzes e objetos. como filosóficos) , as instalações cênicas (de Erich Wonder), os movi�entos
188 .- de cena ou a personalidade de determinado ator, cal'ltor ou mú.sicô. 189
Vári9s outros trabàlhos de Goebbels têm motivações semelhantes, a em un1 deoate sobre o objeto de sua abordagem do que·na representação em si.
exemplo das instalações cênicas com texto e música de Michael Simon, como Nos trabalhos do grupo [holandês] Maatschappij Discordia, por exemplo, as­
Paisagem narrativa [Narr;tive Landscape], um título que alude de duas ma­ sistimos mais a uma auto-reflexão pública dos atores do· que a uma encenação.
neiras ao caráter não-dramático do trabàlho, na medida em que enfatiza a As manifestações dessa forma teatral que se poderia chamar de ensaio cênico
abertura óptica de um campo e a narração em vez da representação, Dá-s� podem cau�ar estranhamento em razão do uso do palco para objetivos que à
aqui a interação de um cantor e de um cavalo com aparatos cênicos de vidro . primeira vista s�o alheios a ele, mas isso é atenuado em face da idéià de que
em um espaço cuja dimensão e cuja estrutura se tornaram quase indefiní­ empreendimentos desse �po podem ampliar as possibilidades do teatro.
veis em virtude de um refinado uso da luz. Na instalação de Goebbels para a No gênero do ensaio cênico pode-se pensar nas obras teatrais de Bazon
décima edição da Do.cumenta de Kassel, em 1997 - uma "cena" urbanístico­ Broclc, na montagem Memória de Shakespeare. [Shakespeare's Memory]. do
arquitetônica criada a partir de uma ponte inacabada da cidade -, imagens, Schaubühne, ou na peça Bivire Jouvet, de Giorgio Strehler. Dois trabalilcis
a.ções, gestos, textos e música perfazem uma combinação que o público (po­ --4!. �:ter Brook são ·interessantes como intermediários ·entre teatro e ensaio:
sicionado sob a ponte) experimenta com uma certa incerteza acerca de onde O ho,;;;:;,··iiue ['.Ine Man Who] e Quem vem lá? [Qt1i est /à?]. O prln1eiro, ba­
começa e onde termina o que é encenado: ambiente, instalação, concerto ao seado no livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu [The Man
ar livre e teatro em uma coisa só. Um título como Ator, cantor, danfarina Who Mistook His Wife for a Hat, de Oliver Sacks], apresenta casos patológicos
[Schat1spiele1; Siinger, Tiinzerin] (de Gisela von-Wysocki), para o qual A.\'.el de distúrbios de percepção; o segundo, máximas, n_a1_ :rações, pequenas expo­
Manthey criou wna encenação, já expressa de modo exemplar a pesquisa do sições e comentários de professores de teatro famosos. Em 'ambas às peças os
"entre" no teatro pós-dramático: trata-se da inter.ação dos participantes, e não atores desempenham em uina atmosfera desprendida e jóvial,:9hegam a um
acordo sobre determinadas cenas diante do público, exprlmem-se-e.d . isc.utem
de princípios artísticos abstratos; dei "entre" como uma reação mútua d?5'cli­
COIDO em Um CLlrSo· unive";sftário, dirlgem-se�Ôltetamente aos espectado�eS e
versos modos de_ representação, e não de sua adição; não se trata de senfações
multimidiáticas, mas de uma expedência que se dá.�o longo d�ssés efeitos e intercalam a teoria com cenas de demonstração ou falas exemplares de per­
·· ·· .... · ....... sonagens- dramáticos. Er.n�b '.e a elaboração progressiva dos pensamentos no
en1 meio a eles,
discurso Wber die allmiihliche Ve;feri{gun{dê(Gtdtmken·beim RedenJ, Chris­
Ensaio cênico tof Nel faz do teatro um espaço de-investigação cênica-.e t�órica das idéias de
Kleist. A filosofià 'foi t��balhada cenicamente em rnonfagens do 'schaubüline
São sintomáticos para a paisagem do teatro pós-dramático os trabâlhos nos como O banquete eFedrÕ:F.s�as encenações de textos de Platão, a com�osição
quais se oferece, em vez de ações ou cenas, uma reflexão pública sobre deter­ ensaística de Hans-Jürgen Syl:ier-bei:g e Edith Clevet a partir de uma colagem
minados temas. Textos "teóricos", filosóficos ou de estética teatral são tirados de citações emA noite [Die Nacht], a realização de projetos teatrais com textos de
f
de seu ambiente na sala de estudos ou na escola de teatro e representados no Freud ou Nietzsche - tudo i�so ev�de1 cia·· o estabelecimento de um gênero de en­
palco - com a absolutà consciência de que o público pode muito bem achar que saio cênico ao final çio século em _5=ujo início Edward Gordôiêi·àig Já planejava
os atores deverian) se d�dicar a tal ocupação antes da representação. Grupos (sem ter executado) a epê:ena ç. ão dé êodos os diálogos de Platão.
e diretores fazem uso dos reêursos do teatro p�ra fa�er suas reflexões em voz Pode-se situar"esse "gênerd:· na linhagetn �e O improviso d� V;,.salhes
alta o� lev�r a prosa· teórica a ser ouvida. Também em alguns trabalhos cênicos {Elmp romptu de Ver�f![lle.s,J,.deMolier�, e A compra de latão [Der Messlngkauf],
190 com textos teatrais se verifica que os atores parecem est�.'. mais mergulhados de Brecht, ila medida em que esses textos: gravitam em torno do próprio 191
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teatro. Se ressaltarmos nessa�. obras_se�. lado'.dé leveza e esboço em vez do o teatro concreto de Jan Fabre, com sua frieza e a importância de estruturas
aspecto ·obstinadamente assertivo, dev.eremosi�ntã? rnencionar ,qs trabalhos puramente geométricas impensáveis mesmo em Robert Wilson. Um outro
de Jean Jourdheuil (freqüentemente concebidos �� coÍaboraçâo com o dire­ exemplo é o teatro de John Jesurun, portÕ-riqúenho radicado em Nova York,
tor Jean-François Peyret e o cenóg�afo Gilles Aillaud). Jourd.heuil se destacou que a critica chamou de '"te�tro cinematográfico''.
por suas transposições literárias e cênic�s 'da obra de Heiner Müller para o . Na estética teatral de Tesurun o espaço cênico aparece na maioria das ve­
· francês (mas tambéri1 é importante lembrar as sessões que ele organizou com zes sem bastidores, uma vez que é estruturado de maneira refinada cbm su­
.......
o dramat1-1;rgo no teatro Odéon de Paris, nas qu�s Müller l.ia trechos de seus perfícies luminosas, entre as quais as seqüências individuais saltam para lá
textos),. Entre as encenações, tais como Hamlet"mifqt1fna [Hamletmaschine}, e para cá com grande velocidade. Pode-se falar em seqüências porque esse
Mausá, Descrição de imagem [Bildbeschreibung] e Estrada de Wolokolamsk teatro explora as relações entre teatro e cinema: diálogos de filmes são trans­
[Wolô/e0lams.ker- Chai;;;-; ej', alg��a; se�ÜÚam entre uma montagem de Mül- postos com ligeiras modificações; ó princípio do corte é radicalizado. Mal
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ler e um ensaio teatral sob-ré Müller, haja ;vista-s_e.J.!�ª_ráter ironicamente refle- se pode seguir o fio de uma ação, ainda que constantemente despontem i·u­
xivo. Assim cort10 nas outras montagens de Jourdheuil (Robespierre e Shakes­ dimentos e f;a-gtneutos d.é um enredo, Um modó de falar quase mecânico;
peare, os sonetos [Shakespeare; les sonnetsl, por exemplo), aqui não há páthos muito ac�lerado, não permite que venham à tona os conceitos dramáticos
nem identificação lnabaláve'i. O ca-ráter de dtação,e,df!monstração caracteriza de lns[ivldualldade, caráter, fábula. Constitui-se um caleidoscópio de aspec­
d�·
o teatro J�u-rdheuil como pós-brechtiano. Embora a elegância de sua ma­ tos. \Íerbais e visuais de uma história aprendida de modo muito parcial. O
neira de representar contraste com a dureza e o laconismo apodltico de Mül­ efeito de colagem e tnontagem - em termos videográficos, clnefnatográficos
ler, a estétitã teatral de.Jourdheuil combina espántosamente bem com aquela e narrativos - se afasta de toda percepção da lógica dramática. Os textos, que
escritura porque acentua seu potencial de reflexão cênicô, não-dramáti co - Jesurul? redlge como autor,'·éorrespondem a esse estilo: rápidos e morda­
_
imagens de pensamento emblemáticas nà forma teatral do ensaio cênico. zes, freqüentemente aludem a modelos de diálogos de cinema. Em Cavaleiro
sem cavalo [Rider without a horse), que gira em torno da situação absurda de
Teatro cinematográfico ······--· - .. .. . um membro de uma famflla que desafortunadamente se metamorfoseou em um
lobÔ, 'há uma longa controvérsia acerca da agressívldade dos lobos - mas na ver­
O fato de que um pronunciado formalismo constitui um dos traços estilísti­ dade se trata de um diálogo de Os pássaros, o suspense de Hitchcock, no qual
cos do teatro pós-dramático nãó precisa de nenhuma exposição detalhada. uma ornitóloga contesta com veemência o fato de que pássaros pudessem atacar
Há os trabalhos teatrais de Wilson e ForeÍnan, as formas de teatro dançado sere� humanos (justamente enquanto isso acontece). No texto de Jesurun apenas
orientadas pelo modelo do estruturalismo geométrico-maquinal da dança se substituem os pássaros pelo lobo.
pós-moderna (Cunningham) ou a tendência de jovens diretores à represen� Jl!rusunesfüdou artes plásticas e acabou chegando ao teatro graças ao de­
tação com estruturas formais reduzidas. A linguagem é apresentada de modo . sejo de fazer cinema. Para ele, fazer teatro significa fazer filme; sem realmente
quase mecânico; os gestos e a cinese são organizados segundo padrões for­ rodá�Jos. Com o recurso a ágeis transições entre os "lugares de representação"
mais para além da significação; os atores parecem expor técnicas distanciadas d�limltados pelà iluminação e pelos aparatos cênicqs em um espaço mínlmo,
(mas não alheadas) de olhar, de movimento e de imobilidade, que guiam o o ritmo dos cortes cinematográficos é transposto para o teatro. Jeru�y.. ntfir­
olhar mas frustram o apetlt� de significado. Uma acentuação do "teatro for­ balhou por vários anos na televisão, e essa experiência é ainda mais marcante
malista" - como Michael Kirby batizou esse ampl? �mpo .do nóvo teatro - é para o seu teatro do que o Iriodelo do cinema. Assim, seu modo de encenação 193
também �t configura conforme as �éries de TV: em 1982 ele começou a ence­ Hipernaturalismo
nar--epi;ódios semanais de uma inusitada série intitulada Chang em uma lua
erma [Chang/na Void Nloón), um empreendimento que perdurou por anos a O poder econômico e ideológico da indústria de imagens cinematográfica e
fio, com mais de cínqüeuta seqüências que às vezes ocupavam noltes inteiras eletrônica possibilitou que predominasse a mais insípida concepção sobre o
e envolviam mais de trinta atores. que a arte pode e deve ser: aquela de ilustração ou "simulação" perfeita. Coi1l
A tendência ao caráter cinematográfico.e midiático també� � enfatiz��� isso, o apego ao atratívo trivial que p'rovém das realidades simuladas pôde
pela multiplicação técnica dos atores por meio de imagens de v·ídeo, cÓm as adquirir uma dignidade teórica. Como apontou Adorno, a arte buscou se de­
quais eles parecem se c9municar. Como se trata de uma imagem deles mes­ fender dessa atrofia mediante manobras de demarcação como o esoterismo, ·
mos, por vezes ampliada, o que forçosaipente se tematiza nesses atos de se di­ a provocação, a recusa e a "negatividade''. úesde que se disseminaram ma-'=.
rigir às imagens é o "eu" dos atores. Ao falar com suas imagens, falam consigo ciçamente, as mídias fotográficas impuseram a ideologia uaturalista como a
mesmos com<;> uma h1stância superdimensionada, controladora. Já q· ue têm ·- ... -�s óbvia, ao _pa_S.$.O que declinou o Interesse por estilização, est�anhamento,
·
de coordenar a própria fala com o texto pn;v!amente gravado em vídeo, "há distãõcfáhíento ou intensificação - em suma, o interesse pelo peso específico
uma peculiar mecaniz ação do corpo e uma vivificação da imagem tecnológica. dasformas artísticas como configuração de pensamento. As formas artísticas
A clássica ideologia teatral da presença vivente é desmontada pela contínua e os gêneros quase não são mais percebidos como uma realidade própria, mas
interpenetração de presença mediad� e pesso:},: Em Aguçzs brancas [White apenas comei variedades de modos de cónsumo ("o livro do filme"), como va­
Wat'er]i de 1986, essa estrutura serve para delinear teatralmente as dimensões gões de carga para a úniça coisa interessante: o enredo. Em tuua.çarta a Schil­
fantasmagóricas da virtualidade. Trata-se de um jovem que afirma ter tido ler de (23 de dezembro deJ 1797, Goethe observou que as pessoas ansiavam
uma manifestação mística e cai em numerosas· contradições ao descrev! la, 0 por ver os romances que haviam lido o quanto antes represent.idos no teatro
mas insiste em sua "versão" da experiência por que passou sem se de!7ar per-
I
(hoje em d.la seriá ·nneJevisão oti'-no ·clnem�). ?J-S descriçõ�� llt���riãspron­
turbar pelas incómpatibilidades racionais de seu relato. ,, __. tamente convertidas em imagens de gravuras. Ele lamentava que se fizessem
No teatro de Jesurun não deixam de surgir situações.'.'.Q��!J)áúcas" nos diá­ tais concessões "porque o artista, que na verdade 'deveria produzir as obras
logos, mas elas não passam de fragmentos que o próprio espectador precisa de arte dentro de su�s-cõndtções-puras1 -cede ao__d���jo_ ,9-�
_ espectadores e­
articular. Os personagens mais parecem máquio;is falantes despsicologizadas, ouvintes de achar tudo completamente verídico''. Assim, concluí�-êlé/1nã0.resta
e negam assim tanto os usos do teatro quanto os do cinema, cuja estrutura · nenhuma at.ivida<le à sua imaginaçã� tu.do deve s�/�·�-�siv�'imente vetdadeft-o
,
formal é citada. Curi�samente, o recurso ao procedimento cinematográfico perfeitamente 'atual e'ckamático, e o próprio dramático deve corre�pouder
faz desse teatro sem drama tanto mais teatro. O "rizoma" constituído por incond!clonalmen,te ao
'
reafinente-verdadeiro''.�
' .
imagens midiáticas, aparelhos, configurações de lu.z e··atores não se desagrega
. . '
Há uma 1iferença fundamental entre o cinema e o teatro (bem como ali e
mesmo com o cruzamento de tantos campos. Sua coesão é mantida pelo rigor teratura) no que concerne à l)1,1stração .naturalista. O teatro compartilha co�
formal e pelo texto falado. Assim, cabe à linguagem falada, que é desvalo­ a literatura a carac�erística de_�ão ilust(ai-, rrras· designai'õ--Em compa;ação
rizada como caracterização psicól6gica individual, o papel de elemento de com a imagem cinei:ia,tográfiéa,•a imagem teatral tem un'la "dei1sidade'.' me­
ligação_ constitutivo. nor: enquanto esta deLxa transparecer lacunas evidentes, aquela é desprovida
·-
-· ·- - ·- -
194 4 Gôethe-Schiller, Brlefive;lise/, Hamburg�, 19611 J. ,.71. 195
� ' . -
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·,

de lacunas. Vale aqui a mesma,distinção.que A;doi'no constata entre cinema e 90 oferece situações que ostentam uma decadência e um absurdo grotescos.
e texto: "A mep.or densidadé da ·ilitstrabi�dade 11,ª li�eratura n�tu.r.�!ista ainda É certo que �e dá uma intensificação da realldade, mas agora se trata de uma
deixa espaço para intenções: na estrutura sem)acutlás.da duplicação da rea­ intensificaçãô·para bà1xo: onde quer que esteja tudo aquilo que é interditado
lidade por meio do aparato. té.çQi�o do cíneÍ\1a, cada intenção, mesmo que pelo boni gosto, é ali, eni. meio à escória, que se encontra a figura latellte _do
se trate da verdade, se torna uma m'entira'� Em outras palavras: "O natura­ bode expiatório, o pharmakos. O mais baLxo já não é, como no naturalismo, a
lismo radical implícito na técnica do cinema dissolveria qualquer conexão verdade, o real que deve ser exposto porque foi excluído e oprimido. O mais
de sentido na superfície e levaria à oposição maj,�_extrema ao xealismo que baixo é o novo "sagrado': a ver�ade autêntica, o que explode a norma e a
nos é familiar''.5 "--·,., regra: a dissipação em meio às drogas, à decadência e à ridicularização. As
. o teatro pós-dram�tico há um retorno dos traços estilísti�os naturalistas, ..
.N contravenções que fazem parte da banalidade cótidiana pequeno-burguesâ
aos qi:iais não.�e teria d�do nenhuma ch;nce de futuro após o te�tro épico, o asswnem o valor do "outro':·da exceção, do monstruoso e inaudito, do êxtase.
teatro do abs�rd;, ·o-teai:ri poéUco-e 0.for.mali�!�:_JSe quiséssemos seguir o Tendo em vista essa "carga" da realidade banal e trivial, seria um erro ver aqui
f

tadicàlismo de Baudrillarçl., teríamos de dar por totalmente liquidada a velha somente um .µovo naturalismo. É antes o caso de adotar o termo hipernatura­
questão acerca da imagem original e da imagem reproduzida: se há tão-so­ lis1110 à n�ari�ira do conceito de "hiper-realismo" de Baudrillard, que designa

mente o "simulacro': que pode·ser·entendido coiuo...umé\ geração artificial de uma ;émelhança das coisas com elas mesmas sem referencial, gerada pela
imagens origtnais, então o real não pode ser de modo algum diferen�iado mícl'Ía, e não a ad�quação da �magem ao real.
de um simulacro que funciona perfeitamente e o natur;llismo não está mais Na encenação hlpernaturalista pode irromper uma visão fantástic� sem
em questão�) Eúcontra,se.o. naturalismo em formas teatrais que à _primeira comentário nem interpretação, trazendo imagens de desejo triviais e utópicas
vista não oferecem nadá mais qu·e uma repr?dução mais ou menos divertida de gra�de intensidade. Em Mâe efilho [Moeder en Kind]. uma montagem do
do cotidiano. No entanto, é preciso distinguir as novas formas do ilaturalis.iilo grupo Victoria, a habitação apertada do subproletariado se transforma em
reavaliado e refletido do "pseudo-realismo da indústria cultural" (Adorno). um mundo de sonhos fabuloso e louco onde os indivíduos expressam seus
Aquilo que parecia naturalista no teatro a partir dos anos 1970Je.E!��e�1_ta anseios mais profundos em músicas pop. Em 81 minutos [81 Min-uten] Lothar
também uma forma·de·des-realização, e não de perfeição·na ilustração. Wei--· Tr;Üe encenou o cotidiano de vendedoras em uma loja de departamentos
ner Schwab escreveu peças nas quais em meio à decrepitude e à mediocri­ de tal maneira que a partir de seus relatos e pequenos conflitos de repente
dade de um cotidiano descrito em minúcias caricaturais emerge uma víolên- desponta o desejo utópico. A conversão da cotidianidade em absurdo com
eia sem sentido sob n forma de horrores que funcionam como rituais. freqüência se insere nessas formas de teatro hipernaturalistas: as experiências
No passado, o grande realismo "descobriu" o drama no cotidiano das ou acontecimentos relatados se tornàm cada vez mais inverossímeis e de uma
camadas sóciais .t'llais baixas, aparentemente desprovido de acontecimentos.· comicidadegrotesca, como nos textos de René·Pollesch inspirados no for­
O teatro, inclusive o realista e o naturalista, era definido pelo fato de que não mato televisivo. A partir de cenas cotidianas desenvolvem-se ocorrências bi­
só ilustrava o que se desviava da m�lhor sociedad�, mas também suplantava zarras (Werner Schwab). Tendências semelhantes podem ser constatadas em
a vida real pela forma do drama. O novo naturalismo do teatro dos anos 1980 peças de Wolfgang Bauer, Kroetz, Fassbinder, Tur�ini e Vinaver, entre õutros.
Nesse hipernaturalismo teatral sem dramatkidade naturalista, o que.se-dá·
Theodor W. Adorno, Mlnim11 Motalh1, in Gesammelte Schriften, v. 4. Frankfurt am Main, sôb a superfície não é evidenciado e socialmente explicàdo por um:; drama­
l980, p. l59· turgia de descobrimento, mas se manifesta em êxtases liricos e imagísticos. 197
Em ouu-os contextos, Jean-Pler,r� Sarrazac. também usou o termo "hiper­ vê nenhuma outra saída senão "enxertar" seu trabalho nos modelos exis­
naturãlismo''. Com intuito crítico, ele afirma que muitas peças de teatro culti­ tentes, em vez de fazer a.tentativa aparentemente Inglória de chegar a uma
vam um hipernaturalismo no sentido de um naturalismo "de segundo grau·: formulação diferente e divergente.
mediante o qual ô público das camadas mais baixas seria atraido pelo exótico Na medida em que os clichês midiatizados se insinuam em cada· repre­
oferecido ao consumo. 6 De fato, como critica Brecht com muita veemência, o sentação, mesmo co.111 a maior seriedade não se pode ir muito longe. Cool é
naturalismo foi um drama da compaLxão. Por mais que se tenha_g�estionado o nome da emocionalidade cuja expressão "própria" foi de tal modo perdida
o culto da compaixão como impulso de reparação (porque seriam necessá­ que todos os impulsos sentimentais só podem ser representados entre aspas e
rias mudanças sociais, não lágrimas sem conseqüências), toda representação nenhum impulso que o dr�a antes podia mostrar pode ser transmitido sem
dramática sempre comportou a exigência implícita do "com-": comiseração, o filtro de ironia da estética do cinema e da mídia.
compaixão, convivência, comoção com o destino simulado do personagem
simulado que o ator encarna. Agora, porém, no lugar de uma dramaturgia Coolfun
--· ... __ ___
... --
.
trágica ou grotesco-tragicômica (tal como Dürrenmatt e Prisch a praticavain
quando em sua concepção a comédia ainda dava conta do mundo) há um Nos anos 1980 e 90, a jovem geração do teatro procura, quase com violência,
espantoso déficit de páthos e comiseração na exposição da "vida ·inferior'? um "rea1" que provoque pela �ecusa da forma e seja a expressão adequada do
Assim, impõe-se a palavra "cool" para a c��ctedzação de todo um gê­ sentimento de vida perturbado, desesperado, atormentado. Desse modo, o
nero �e formas teatrais que tendem a um jogo com a frieza, o qual se torna teatro imita e reflete as m1d�as onipresentes com sua sugestão de instantanei­
um traço significativo do teatro pós-dramático. Ali onde se esperava indig­ dade, mas ao mesmo tempo busca tornar perceptíveis por t�ás·aa ostensiva
nação moral há desenvóltura e uma distância irônico-sarcástica; embo�a a animação a melancolia, a solidão e o desespero. Essa singulap variedade do
realidade seja ilustrada com trnços evidentemente difíceis de suporto//fião teatro pós-dramático freqüentemente. en_ç:o!!_t !a sua inspiraç�o nos modelos
há comoção dramática. Seria muito fácil moralizar essa observação e con­ de entretenimento da televisão e do cinema; refere-se indiscriminadamente
cluir que há uma insensibilidade s�cial por parte dos·reaJiiad-Õres teatrais, aos filmes de terror, aos serlados de TV, à propaganda, à música pop e ao pa­
assim como é por demais super,íicial_derivar a ausência de uma sátira so­
cial com alvo mais preciso de uma cegueira que o mundo ideológico de
' -
trimónio cultural cláss1co;-delineia.Q çst�_do .de espírito dos espectadores, so-
........ .
bretudo os mais Jovens, entre a resignação e a rebefiãõ;õ-pesal' e.o 9esejo de
intensidad� vital e felicidade. ···
sentimentos e pensamentos da pequena burguesia traz consigo para o tea­
tro.ª Compreende-se melhor o novo teatro por referência à generalizada Essas formas teatr.ai_s - que com freqüência quase niio são mais teatro -
virtualização da realidade e à penetração do esquem.a midiático em todas provavelmente respond�rh�o Sf!-!ltimento básico de falta de futuro, que nem
as formas de percepção. Diante da força expressiva e·da abrangência quase mesmo a afirmação forçada de uma "diversão" no agora pode encobrir. As
incontornável da realidade mldiatizada, a grande majoria dos artistas não artes parecem praticamen·te �ão _e_star em condições de se opor de frente aó
estado de imobilismo social - a despeito· das agitações _políticas mundiais de
1989 -, preferindo a atjtude de'si ,esquivar e desviar. Isso c�·�;tltul a base para
6 Jean-Pierre Sarrazac, .L:Avenir �11 drame. lcrltures dramatfq11es contemporai11es, Lausaone,
o cool fun como urna atitudr esteticamente virulenta. Aqui quase.,nunca se
1981, p. 178,
7 lbid., p. 179.
enco11tram ações dramáticas1 _:11�s apenas a Imitação lúdica de cenas e cons-
8 Jbld. p. 175-76. telações de romances policiais, seri�dos d!! TV ou filmes. Se ocorre uma ação, 199
é para que se mostre indiferença. O teatro· téflete a desagregação.da experiên­ As formas de:expressão da cultura club incluem "a cultura trivial da maioria
cia em seqüenciamentos mínimos e impulsivida'des;i:Ssi� comb· à preponde- sem bom gôsto, produtos de massa, grafismo socialísta e mobiliário antigo, o
rância da experiência veiculada pela mídia. ' '. , . 5up'er-Homem e a luz de velas''. 10 Juntam-se aquí ó kitsch ostentativo, a solida­
Há no coo/ fu11 uma constante inclinação para a paródia. Esta sempre se riedade com o gosto das massas, a rebelião e a sede cie divérsão. No plano da
oferece como um meio de abertura qua· ndóse trata d� liberar o teatro do seu realização cênica quase não há ação. Trata-se muito mais de enfatizar situações
status de objeto para a experiência de um processo social que já não permite passageiras e acidentais: escolhem-se a festa, o programa de televisão, o encon­
....___
nenhuma distância interpretativa. A paródia' é uma.yariante elas formas de in- tro na discoteca e a partir dessas situações se apresentam fantasias, expedêi1ciàs,
tertextualidade distinguidas por Genette.9 Na medidi'eru que h,á uma exorta­ anedotas, -piadas, Com projetores, fotos, cenas representadas, diálogos repro­
ção ao conheciment� de._o.1:1tros te?(tos_.(in1_a_��11s, sonoridades)-e.a il'propriação duzidos, vídeos e gravações sonoras, elementos de shows e nar;ação, oferece-se

--
parócÜca ·é confirmada pelo riso, o públíco é teatralizadÓ'-·assim como ô coo/
fun, o cabaré e a comédia� -�-- ... -. .
tudo o que é possível entnfa l1'ivialidade agressiva e a inteligência marginai.
O grupo teatral inglês'Gob Squad àpresenta-se não só em teatros, mas

-
vivem aês.fü forma-deint�ç�o. �demais, a paródia
.

deixa em aberto o grau da.distância em relação àquilo que é dtado. Natural­ também em _esérítâ'rios, galerias e estacl?namentos, A estética jovem e u,r­
mente, a referência ao mund� da vida já está inscrita no mais simples ato da bana re.fl_e,té aqui a proximidade e a distância entre as pessoas de um moob
I recepção -.só xeconheço aquilo que ehconti;o · como-esquema análogo em meu mult�s"vezes assombroso. Em Pe1'to o bastante para beijar [ Glose Enough to

:3 horizonte de e1periências. Et'l1 todo çaso, o que conta do ponto de vista da.esté­ Kiss'f, os ato,res são "enclausurados" em um espaço oblongo delimita90 por

-o
I.L tica teàtral é se esse fato é "atualizado'; se nà intenção estética e na percepção um vidro transparente só de um lado, no qual se expõetn. cômica e deses- ·
Ll.. do espectad�_;:·;·i:·eferência-ao próprio horizonte é' expÚ�ita ou apenas latente. peradamente para o público lá fora. Trata-se, por assim dizer, de um teatro
O espectador acompanha um percurso de alusões, citações e contracitações, � e "radical.mente épico''. Só que não há nenhum autor: apenas "pessoas medianas''
ro diversões internas, de temas do cinema e da músic� pop, uma colcha de ret�­ e quase indístintas que por meio de um "papel" num espaço cênico fictício
U) lhos de episódios rápidos, .inuitas vezes n'lfrümos, com um tom ironicamente propagatn temas, gestos e percepções veiculados e alimentados pelas mídias,
distanciado, sarcástico, "cínico", sem ilusões, "coo/". É preferível o trocadilho A iipplacável diversão teilde a uma sarcástica exibição de obscenidades, vio­
mais infame à insuportável e mentírosa "seriedade" da retórica pública e oficial. ... lência cotidiana, solidão e desejos sexuais, ao lado de citações e usos irônicos
Encontra-se nessa vertente teatral um reflorescimento da "cultura club" na da cultura banal.
', forma do "teatro de sala de estar'' e de outr?s arranjos teatrais que estabele­ Os diretores René Pollesch e Stefan Pucher e ó grupo Showcase Beat le
. cem um contato direto com o público: Mot são exemplos alemães da t�ntativa obstinada de pesquisar as conexões
entre tecnologia midiática e atores, articulando sonhos mediante associações
Em conjuntos habitacionais, pátios interflOs e parques industriais abandonados à maneir;da "lírica" pop, sem contexto dramático. O teatro é valorizado ou
se en.contram lugares que são zonas de transição - na verdade salas de estar, mas desvalorizado em projetos teatrais que estabelecem formas de contato entre o
ao mesmo tempo galerias, bares e locais de happening. Esses clubs e pontos de público e os atores,_ como nas apresentações do grupo Shé She Pop em que se
encontro são instalações efêmeras que esc�pam ao malnstream, idllios marginais. negocia entre eles !) que deverá ser representado, ou como em Bem de pet'to
Elas duram tanto quanto durar o divertimento r)elas. [Hautnah], de Felix Ruckert, em que a situaçãÓ teatral se dá na forma �etrlÍÍa
, ,

.\ 10 Stefan Strehler, "Poprnimen ln der Bühnenburg': Spex, n. 111 1998 1 pp. 80-82, 201
200 9 Gérard Gen.ette, Palimpsestes, Paris, 1982. . �
ação interativa de pares de dança: càda espectador "escolhe" um ator-dança­ citem ide- ntificação). O texto dramático, fragmentário.e.representad9 de uma
rinóe vivencia "bem de per�o" a representação dançada. maneira familiar ao mundo de experiências da juventude, é rigorosamente
As apresentações do grupo norueguês Baktruppen criam uma atmosfera usado como material para apresentar as próprias preocupações - numa mon­
de participação tão intensiva e cordial que o teatro se toma quase "invisí­ tagem de Henrique IV de Shakespeare, por �emplo, o conflito elltre o rei e
vel". A atuação descontraída gera uma ambientação pessoal que situa a co­ o príncipe como conflito de gerações entre pais e filhos. O objetivo não é a
municação teatral entre o público e ·o privado. Momentos de diletantismo qualidade da apropriação de um texto clássico, mas um teatro não ameaçador
aparentemente Improvisados (mais saltos do que dança), contato olho a olho como acontecimento de convivência.
com o espectador, Interrupções da representação, proximidade com o espec­ Pode-se reconhece� -�qui laboratórios dos quais provém uma extraordi-.
tador mediante falta de profissionalismo simulada, ausência quase completa oária vitalidade na forma de teatro sem drama (mesmo quando ele é usado)
de uma estrutura que englobe as ações - todos esses fatores suscitam um e sem a carga opressora da tradição de uma rica literatura dramática (como
sentimento de comunidade. A literatura funciona como uma fonte de palavré\S­ ---�ª Alemanha). Pode-se talvez perguntar por. que se deveria discutir esses fe­
chave: Germânia - morte em Berlim [Germania. Tod in Berlin], de Heiner nômenos quando não resta dúvida de que muitos deles .não podem satisfazer
Müller, em 1989; Quando despertamos entre os mortos [Ndr vi d�de vaagner], elevadas exigências artísticas de profundidade e de forma. A resposta é: deve­
de Ibsen, em 1990; Peer, você mente, sim [Pee1; du lügst. /a], peça baseada em se discuti-los porque em sua busca de modos de expressão e comportamento_
Peer Gynl, �m 1991, Fr�qüentemcntc incorpora-se-um risco ou uma transfor­ não-convencionais eles são superiores à maior parte das produções rotineiras
mação corporal: os atores usam lentes de contato azuladas (na montagem so� a despeito da sua deficiêncja.de recursos artísti�os: Além de-um manifesto
bre o mentiroso Peer Gynt), ou inalam hélio, o que altera as vozes de maneira prazer no exercício da representação teatral, essas montagens e..xprimem vivi­
grotesca, ou fazem explodir soqre o próprio corpo pequenas bombas como-·á·s damente a tri�teza, a solicl.ari!!dade ou a r�iva em face do estaÍo de coisas e o
que são usadas n9 cinema para simular o impacto de balas. /' ·d;
desejo de um outrb tipô"dê-cõm1úiicação.·Com .tudo O que tê� �rteruim,
Na Holanda e na Bélgiça constituiu-se wna cu'lt�ra teatral �l'li torno de com freqüência são um teatro melhor do que o teatro " bom" do ponto de
grupos que se apresentam tanto em grandes casas de �speráêÚlo como em vista artístico e técnicq. �essa via teatral situada· entre o pop e a seriedade,
centros culturais e são tão valorizados· quanto o teatro tradicional. trata-se mais do que da rotina. abaliz-a-dã óâ iepres�ntação dos.clás.si_çgs_, que se podem
sobretudo de jovens atores e espectadores que se juntam a grupos como Dito' esperar novas maneiras de lidar C.Oll} o teatx:o - e com a literatura. ··
Dito, 't Barre Land, bood Pard ou Theater Antigene. As montagens são carac­ Se observarmos o teatro tradicional que pode ser �amparado com a "cena"
terizadas por uma peculiar mistura de atmosfera de teatro escolar, ambiente em questão, o Volksbühne _de Berlim, constataremos que o teatro plenamente
de festa e teatro popular. Os atores vagueiam placidamente pelo palco, diver­ dotado de competência artística também tem a potencialidade, que não deve
tem-se, lançam olhares para o público, sussurram entre si, parecem combinar ser subestimada, de impor-se energicamente aos padrões teatrais. Mediante
algo. Em seguida pode ficar claro que estão ali distribuindo os papéis pouco uma provocação aberta, o teatro ·pass:í a ser aqui afumado não em seu alto
a pouco. Brincadeiras internas e externas à peça e um modo de representar nível cultural ou "dramático'1, n:ias como momento vh,:o de-um debate público.
q_ue não pretende esconder a falta de profissionalismo convergem para cenas O trabalho do Volks_pühne é _cercádo por urna atmosfera de debate político e
que podem ser Interrompidas várias vezes. O uso de acessórios, a postura, O constituição de grupos em torno de idéias compéJ:rtilhadas. No progra.i11a da sua
modo de falar, tudo é igualmente descontraído, distanciado e épico (os atores encenação de O açoflui dour�do [ qolden juds1 der Stahl, de Karl Grünberg)
1
202 "expõem" seus personagens; só raramente fazem cenas estilizadas ou que sus- no Volksbühne, Frank; Castorf afirmou que uma das particularidades dos artis- 203

.... _ ........___ .. ---------


I
tas da ex-Alemanha Oriental em relação aos artistas pós-modernos da Europa como urri ato ou mesmo como uma decisão elo espectador; a lúz que incide e
ocidental era o fato de se verem, ."ainda que iro.t).icamente fracionaâos'; como muda com o passar das horas é apreendida conscientemente, preenchendo o
"políticos mal-sucedidos" que oferecem uma,contribui�ão à ideologia. (Nesse espaço com um concreto tempo-luz. Teatro aberto:·um teatro ao qual faltam
contexto deve-se mencionar o fen9meno ChristofSchllngensief, que coín suas papéis, recursos cênicos e ações e do qual quase não se pode dizer onde efeti­
ações situadas em algum ponto entre o -shmv po·p, o disparate dadá-surrealista, vamente tem lugar - e que não obstante revela uma estranha intensidade.
à política e o teatro midiático logrou dar uma considerável visibilidade para Esse arranjo teatra! pautado pela improvisação e desprovido de elementos
questçies políticas.) Por via de uma trivialidade'i:efir,1ada, as ehcenações de Cas­ dramáticos impõe um desalio para os atores. Privados da proteção do palco,
torf remetem o teatro à boataria e à banalidade, artiê1:ilando assim uma rebe­ eles se vêem expostos por todos os lad�s - inélusive pelas costas - aos olha­
liãQ espirituosa (e por vezes ridícula), qu; no entanto se esvazia cada vez mais res, à desconcentração, talvei mesmo à perturbação e à agressão por parte
à medida-qtte se distancia êÍas "oríge�s" ;a ãntiga Alemanha Oriental. A farsa de freqüentadores impacientes ou irritados. Contudo, foi impressionante a
Pensão Scholl�r (PerÍsio·11 Sdio/ler,de Wi!helm Jac9.P..y: Carl Laufs} é ligada à paciência com que o público japonês procurou compreender aquele acon­
peça A batalha [Die Sch/asçht], de Heiner Mi.iller; em O aço flui dourado foram tecimento qu{só ·po- -dia-lhes parecer extremamente estranho: pessoas v�sti­
inserid;s passagens de Estrada de Wolokolamsk, também de Müller. das de preto que não "representavam': não faziam uso de bastidores e não
tinham "papel" algum, mas enunciavam o texto de Hamlet-máquina com a
Teatro do esp_aço partilhado disciplinada liberdade da improvisação. Entremeado por passagens em ale-
mão, portanto incompreensíveis para aquele público, o texto era enunciado
No âmbito dó teatro pós.dramático, observa-se uma especial radicalização do individualmente ou em cor_o_por pessoas voltadas para si. roe.smas e. que no
princípio não-mimético nos trabalhos do grupo Angelus Novus e - após sua entanto o exprimiam colno um chamado geral Ou dirigido a urn espectador
dissolução - do diretor Josef Szeiler. Caracterizados por improvisação de falas em particular - enfim, texto partilhado no espaço.
e intensa presença corporal dos atores, esses trabalhos desenvolvem uma am- Esse teatro dafala pós-dramático se pauta por uma antiquada concentra­
pla interação com o público, criando situações em que não há diferen..ç.a �JJt�e çã9 no texto que é própria à atemporalidade do teatro, e também por uma re­
palco e platéia. No decorrer das representações, compreendidas como um; dução desconcertante. Os temas minimalistas da voz, dos corpos, do espaço e
continuação pública do trabalho de ensaio (em principio os ensaios tambéin da duração temporal re1netem à magia da ilusão e a partir desse ponto morto
. são abertos), o público pode ir e vir como achar conveniente. O Hnportante é propiciam o surgimento de uma teatralidade inusitada, ·o amor secreto _do
o espaço partilhado: ele é experimentado e utilizado da mesma maneira pelos teatro se aplica aqui à arquitetura.� teatro de Josef Szeiler parece ter a minu­
atores e pelos freqüentadores. Por meio da perceptível concentração se deli­ ciosa preocupação de resgatar os espaços de sua mudez e de sua desvaloriza­
neia um espaço ritual sem rito. Ele permanece aberto, e ninguém é excluído: ção por �das vozes, dos corpos, dos gestos e da coreografia, de fazê-los
passantes podem observar; freqüentadores, jornalistas e interessados vão e ressóar e conferir-lhes uma visibllidade empática, mediante um olhar diri­
vêm. Na realização da montagem Hamlet/Hamlet-máquina em Tóquio, em gido com o corpo todo, com a própria movimentação e o posicionamento no
1992, os ensaios e as representações se deram num estúdio de cinema cujo �spaço, e não apenas com o aparelho visual dos Olhos. A ação só aparece aq_ul
grande portão de entrada permanecia lnteiran:1ente aberto para a rua, permi­ como �onteúdo dos textos enunciados- te�tos épicos como a J/(ada ! peç�de
tindo constante fluxo de ei1trada e saída. Com isso, intensincam-se as sensa- Beckett e Müller, de Brecht e Ésquilo. O que se realiza corporalmente é ufü
204 ções de estar dentro e forâ da sala: os movimentos d� �!.).trar e sair são sentidos repertório de incidentes gestuais, Nenhum mundo cênico procura comentar 205 ·
o que o �exto diz, muito menos ilustrá-lo. Para suprimir a separação entre configurar mas que pode igualmente atrapalhar e mesmo destruir por meio
espafo de atuação e espaço do público, deixam-se de lado os brinquedos an­ de seu comportamento. A vulnerabilidade do processo se torna sua razão de
tes vistos como necessários ·e 1u'esmo constitutivos do teatro, a começar pela ser e põe em questão as normas do comportamento cotidiano.. A responsa­
ação - representação de papéis e drama-, em favor de atos improvisados que bilidade constitutiva dos espectadores continua a ser uma dimensão virtual
visam uma experiência específica da presença, o ideal de co-preseil.ça equiva­ do �eatro de Fabre. Como espectadores, precisamos prestar contas da nossa
lente de atores e espectadores. participação no processo que se desenrola. Em contrapartida, esse teatro dá
Nessa forma de teatro, o caráter de "situação'; qo sentido anteriormente praticamente a todo espectador a possibilidade de perturbá-lo sensivelmente
descrito, se efetiva mediante os seguintes fatores. Em primeiro lugar, o espec­ ou mesmo torná-lo impossível mediante atos insensíveis ou agressivos.
tador deve necessarial'.nen.te se tornar uma parte co-atuante do teatro para A distância estética alcançou um inusitado grau mínimo nas primeiras ·_
os demais presentes no espaço teatral. Cada indivíduo se torna o espectador montagens do grupo catalãó La Fura deis Baus. Enquanto em Madri prevale-
único para o qual os atores e o resto do público constituem "seu" teatro. EJJ1 .. -.. c.e.rn.Q_�aJ_i:..o subvehcíonado e o teatro privado, assiste-se na Catalunha, mesmo
segundo lugar, intensifica-se a consciência da própria presença, com os ruídos sob a dltadura [franquista], a wna intensa atividade de trupes independentes
que uma pessoa deixa escapar, a constelação em que ela se encontra em rela­ que se tornaram internacionalmente conhecidas, como Els Joglars, Els Come­
ção aos demais presentes etc, Em terçeiro lugar, a proximidade corpora!_ dos diants e o pr.óprio Fura. Este último certamente constitui um caso extremo,
atores faz que cada pessoa entre em contato imediato "(olhares, trocas de olha­ mas é nos extremos que se pode ler a dialética velada até dos formns de teatro
res, talvez toques furtivos) e nesse contato experimente uma esfera peculiar­ moderadas: Não é só voltrntáriamente que os espectadores são nêluídos nesse
f

mente "subdefini.da" - nem inteiramente pública, nem inteiramente privada, teMro: corno um rebanho, as pessoas col're� de um lado para ºlutro quando
A imediata sensação de uma comunicação "problemática': provocada p,ela grandes carroças são em�rradas rapidamente através de uma-multidão reu­
relação corpórea e espacial, SUScita Ul11a refle..'<ãO sobre as formas de _sompor- nida numa tenda. Ora-� públi;o·é am�nt�ad.Ô em um espaço estreito, �rn é
tamento e a comu.nicação interpessoal. Por fim, nessas ações está prévisto um deixado sem orientação. Cria-se no teatro uma atmosfera claustrofóbica, que
espaço para a participação pessoal, não só "automáticl..mas tâinbéin inten­ pôde lembrar situações Qc;ggidas em urna violenta manifestação de rua. As
cional: os espectadores podem se decidir a seguir um ator em sua marcha em vezes uma pessoa é empurrad; ;�;d""e��e.iiie-parã-·âarespa-ço-éLJJ11_:la ação, ou
câmera lenta; certos textos propiciam leitura em voz alta e fala em conjunto pressionada por vários lados pelos ;atores e pela--ma?s� dos outr�;- �specta-
etc. O texto, os corpos e o espaço produzem uma constelação musical, arqui­ . dores. O públi;�-ê as�olado por músicas e tambores ensurdec�dore�; luze; e
tetônica e dramatúrgica que resulta da combinação de fatores predefinidos e ruídos intensos, efeito;pírqtécnicos; chega-se a temer pela integridade física
imprevistos, Cada indivíduo sente sua presença, ruídos,_ posição no espaço, o dos atores, expostos a circu�slânéias aparentemente brutais. B certo que com
som dos passos e das palavras, sendo incitado a observar atentamente o todo o tempo a sensação de ameaça desaparece: p�rcebemos que f)1eshrn as ações'
da situação: o silêncio, o ritmo, o movimento.
Uma vez compreendido dessa maneira, como "situação': o teatro dá
que mais pareciam oferecer risco·sâô . · --
cÕnt-rol;:iias ·com
- .
precisão.
Com essa situação teatral �b�ndona-se por completo a Iaéia tradicional
um passo ao mesmo tempo para a dissolução e a intensificação do teatral. de espaço teatral. O .c6rpo dçi ·e;pectador se torna parte integrante da ence­
Ésse passo, associadó às te?tãtivas de entremear os papéis dos espectadores nação. Não há dúvida de que\se trata _ , d� tc�ti:o, e não de uma manifestação
e atore; Já nos anãs" 1960 e 70, radicaliza de um modo sereno a ºresponsa­ ou do início de uma.arrnaça. É·ate possível reconhecer alguma temática nos
• ' I
206 bilidade do espectador pelo processo teatral, que ele pqde contribuir para enigmáticos procedimentos dé uma encenação do Fura: poder, dominação e 207
subordinação, autoridade, terror e 'violênéia. Uma · apresentação como MTM é ; Por fim, é inegável que certos inovadores do teatro constantemente re­
estrutura�a com precisão: prólÓg?l_qu�tro ence�açõ'ê§ sobre.Qpoder, epílogo. correm à estrutura do ·monólogo para encenar '!solos" com determinados b1 -
Ao final de cada cena há um cHmax qu� se pá c�rn os l\s'Slm chamados "cata- térpretes. Basta pensar em A agulha e o ópio (I:Algui/le et loplum], de Robert
' 1

clismas-nexos"j catástrofes que criam um espáço vazio para a cena seguinte. Lepage, ou em Quatro horas em Chatila [Quatre heures à Chatila}, de Jean
O tema é trabalhado de uma �1aneira .1n(tica ·ou poética, quase nunca de ma­
s Genet, em que a forma se toma meio para um discurso diretamente pol!tico.
,
neira explicitamente política. Isso era muito diferente no Living Theatre, em Em 1992 Jan Lauwers encenou a auto-apresentação de seu ator Tom Jansen
que Interação com o público era direta e exiden.�mente política. Ali as pes­ sob o título DAN<;J/da�o [SCHADE/schade]. Com uma sobriedade não-teatral,
soas se e!'lvolv1am em discussões que - assim comÓ'n� tumultos encenados Jansen conta ao público episódios de sua infância, fala sobre suas descobertas
pelos [µturistas - até podiam levar às vias de fato. Se Esslin Lá via nisso uma sexuais, sobre a família, sobre a morte de seu irmão, tudo isso em pé s.obre
problemgica "manipul�ção' da realidade" e·um "caso-limite" 11 - tratando-se um púlpito (o texto foi escrito pelo próprio Jailsen). Um exemplo extremo é
ou não de t�atrô ·.:., desde então.o .teatro. �_p)9�ou cada vez mais ·o limite entre a performance radkal de Ron Vawter em Roy Cohn!Jack Smith, uma apresenta­
· --- - ção deslgnad}_como "solq teatral" em que o brilhante ator do Wooster Group -
representação e situação.
já marcado pela Aids, que o mataria pouco tempo depois ,.. representa em
Solos _de teatro, monólogos seqü�nda o mal-afamado reacionário norte-americano Ro� Cohn e um ho­
mossexual conhecido no meio etn São Francisco. Também se destaca a pre­
Vários diretorês converteram dramas clássicos ou textos narrativos em mo- dileção do Wooster Group pelos textos de Eugene O'Neill (O imperador fones
11-ólogos. tai1i--c0.n10 Klaus Michael Grüber (Fausto, com Bernh·ard Minetti, [The Emperor fones] e O macaco peludo), que lemlem por si mesmos à forma
em 1982; O relato da criada Zerline [Die Brziihlung der Magd Zerline]. de monodramática. Seria alnda Ô caso de mencionar as versões de Müller dirigi­
Hermano Broch, com Jeanne Moreau e Hanns Zischlcr como ouvinte mudo das por Heiner Goebbels, como A libertação de Prômeteu e Ou o desembarque
na penumbra [em 1983]) e Robert Wilson (J:Iamlet, um monólogo [Hamlet­ desastl'oso [Oder die glück/ose Landung], e numerosos tralYalhos de gente de
A Monologue], em 1994; Orlando, de Virginla Woolf, com Jutta ��mpe em tea!ro mais jovem por toda a Europa. Contudo, para arrematar a noção basta
Berlim [em 1989} e ls�belle Huppert em Paris [em 1993}). Diversas teatrati- ·· · · · - .. apontar que mesmo o diálogo, aü onde ele ainda vigora, é privado justamente
zações de Senhorita Bise [Friiulein Bise, de Arthur Schnitiler] e do monólogo daquilo que com seu auxílio era produzido e consideradô como a arte do
·,de Molly Bloom [em Ulisses, de James Joyce], por exemplo, atestam o desejo autor de teatro: a tensão elétrica voltada para a réplica e para a progressão.
de transpor textos da tradição literária para uma forma teatral monologada. A linguagem teatral que converte o campo te.«:tual do drama numa estru­
· Pode ser também que atores entrem em cena sozinhos para representar ou tura de monólogo com caráter de performance se manifesta de modo revela­
declamar todos os papéis de uma peça ou um texto - o que não é monólogo dor em Hâinlêti um monólogo, montagem de Robert Wilson que consiste em
em sentido estrito, mas um teatro concebido segundo ô tipo do monólogo. uma longa interpretação monodramática do drama de Hamlet. A preponde­
São exemplos disso Edith Clever em Pentesiléia ou A marquesa de O... [de rância do monólogo em Hamlet foi diversas vezes constatada e geralmente as­
Klelst}, com direção de Syberberg, e Marisa Fabbri em As bacantes, de Eurípi­ sociada ao caráter reflexivo do personagem-título. Mallarmé via Hamlet como
des, sob a direção de Luca Ronconl. póssibilidade exemplar de um teatro poético inonologado; Hamlet-nyiqú(;(a,
de Müller, disseca o drama em monólogo. Wilson Interpreta Hamlet� alguns
208 u Martin Esslin, An Anatomy off.>rahra. 3• ed, Nova York, 1979� �-_93· dos principais personagens da peça com um texto reestruturado por Wolfgang
Wiens, c_omeçando com uma das últ-lmas falas-do protagonista (que bem pode nific a observar as coisas à distância, como um pássaro que olha para o uni­
ter�siélo escolhida como iní�io p_or caracterizar o teatro de Wilson): "Had I but verso do galho de sua árvore - diante dele se estende o infinito, cuja estrutura
time. (as this fel/ sergeant, death, is strict in hls arrest). O, I could tell you - But temporal e espacial ele pode no entanto reconhecer''.13
let it be... ", 12 Organizado à maneira de um Jlashback, o �on6logo se constitui De um modo esclarecedor e ao mesmo tempo enganoso, Jan Kott com­
como reflexão e lembrança de Hamlet à beira da morte. Um esquadrinha­ para o grande monólogo nos dramas de Shakespe�re com o close-up citl.e­
mento. lírico-épico de sua própria história tôma o lugar do decurso dramático, matográfico.14 No entanto, a função à primeira vista análoga - o isolamento
A reestruturação do texto deixa claro que na verdade não se trata da história do protagonista - pode assumir um significado quase que totalmente oposto..
dr amática dos feitos e não-feitos de Ha mlet. Trata-se muito mais · de um pro­ O monólogo teatral de fato oferece uma visão do íntimo dos protago�1istns,;
cesso de questionamento e reflexão disfa rçado em uma narração monologada assim como o close-up o faz à sua ma�eira, Mas o que acontece na percep- '.
(não é o caso de discutir aqui se é possível ler o drama de Hamlet exatamente ção cinematográfica do rosto em destaque é ·sob1'etuc_lo a desmontagem da
dessa perspectiva e se, por conseqüência, a adaptação pós-dramática corres­ - ---v.ivê. ncia �o espaço. Como aponta Deleuze, o olhar do espectador de cinema
ponde exatamente à seu objeto.) No processo textual, frases ditas por Hamlet apreende um ''espaço qualquer''. O çlose rompe a suposição de realidade do
(bem como por outros personagens) em diferentes etapas do drama são com­ contínuo espacial. Enquanto o espaço qualquer do close nos conduz para fora
binadas e se elucidam mutuamente sob uma nova luz. Tudo isso é conectado da realidade e nos afunda no fantasma, o monólogo de personagens sobre
pela voz de Wllso.ri/Hamlet e pela fnúsica de Haas·Peter Kuhn. o palco reforça a certeza de nossa percepção do açoutecimento dramático
A a�uação de Wllson é tão abertamente distanciada e desprendida, a ento- como lima realidade no êsp·aço do agora! atestada pela i�pÚcaçao direta do
. nação das diversas vozes (às vezes femininas) tão "demonstrada'; que a mon­ público . É essa transgressão dafrontei ra do universp dramático jmaginário na
tagem poderia muito bem se chamar "Robert Wilson - uma interpret�ç-ão situação real do tea_tro _g_u.:.!�Yª a um interesse específico pela forma·textual do
de Hamlet diaMe_ do espelho''. Ele se exprime em registrps vocais q_u7_ vão do monólogo e pela teatralidade esp��ífi�a llg�dà cro monólogo.' Assim, não foi
esganiçado ao aveludado, do falsete. ao murmurado; uma impos,táção decla­ por acaso que se coqstituiu um all'lplo campo teatral pós-dramático em torno
matória que beira a paródia, citando o estilo dos ator;� dttgera-ç&es a nteriores, dt:ssa essência do monólo.gp�.
se í!lterna com ritmos de fala na tur ais:A cada instante a citação do texto de Pode-se distinguir- no teatr� ��-;bcÕ de- êomuniéãção intrncênico e um
Hamlet permanece consciente como ú1aterial pãta a pessoa do intérprete - eixo ortogona_ l (!Ue diz respeito à comunicação entre-o pako e o·Ioc:1 da pla­
que ademais declarou que essa representação er� p�ra ele uma questão bas­ téia, diferenciadÔ'(reatou estruturalmen'te) do palco. Levando em cqnta qu�
tante pessoal, e que por isso mesmo encarou de frente o risco de ser ''velho a pal avra grega "théatron.,' ,q�signa originalmente o espaço dos espect;idore's e
l
demais" para o papel. Aliás, nos anos 1990 o 'formalismo" do teatro de Wil­ não o teatro todo, 'chamemo?·o--segundo eL'<o de "eixo-théatron''. Os diversos
son realmente abrandou-se em favor de uma expressão de sentimentos mais tipos de monólogo, a apóstrofe ao público e a performance solo .têm em co-'
pessoal, ganhando mais psicologia e poesia e assim deixa11do espaço para que mum o recuo do eixo intracênifo.em prol do eixo-théatron. A locução do ator
a pessoa de Robert Wilson pudesse se revelar e se expor. Mas o que significa passa a ser acentuada como a\ocução ao público e seu discurso como dis-
. ,'
formalismo quando se fala dele como Wilson? Ele afirma: "Formalismo sig-
·,
13 Robert Wilsqn, apud Holm Kclle'r'.. Robert Wilson. Régie im 11,eater. Frnnkfurt am Main,
' •, -
11 "Se me restasse tempo (esse belegulm, a morle, é rigoroso ao fazer uma prisão). Oh, eu 1997, pp. 105-06. , I
210 poderia lhe contar - mas não importa .. :' (Hamlet, ato v, cena 11). fN:T.l 14 Jan Kott, Shakes peare Heute. Berlim, 1989, p. 192, 211

.,,.
curso da pessoa real, de modo .que a expréssividade de seu discurso se revela sintoma e indício do deslocamento pós-dramático· do conceito de teatro. Ali
mais como dimensão "emotiva" da locução do ator dç>. q�e como expressão da onde se evid�_ncia, d!,! .q.1odo conceitua! e não apénas ácidental, a presença dos
emoção 1º personagem representado por ele-: Çom isso·atualiza-se uma cisão âtuantes, se� contato �0111 os espectadores do aco�tecimento cênico, é o caso
latente do teatro: o discurso teatral desde sempre foi intracênico, dirigido de de se falar de monologia como modelo fundamental de teatro. Esse modelo
ator para ator, e extracênico, dirigido ao t/iéátron. Dessa conhecida duplici­ se encontra fora do terreno do drama, definido por Northrop Frye como "mi­
dade de todo teatro, o teatro pós-dramático extraiu a conseqüência de que em mese do diálogo''.
"- .
princípio deve ser possível levar a primeira: dimensão à beira do desapareci- A maior parte dos estudos sobre o monólogo se apóia na polaridade· diá­
mento e .ativar a segunda para lograr ufna nova qu�liâade de teatro. logo/monólogo, subjacente à análise do drama, e se concentra no texto, de
Çom' isso, torna-se P!.()_b)epiática � nqç_ão da semiótica do teàtro de que o modo que deixa de perceber a sutilezâ teatral das monologias. Distinções
. ..
drama: na qu.i,\iç!_ade de texto teatral, sempre se baseia na conjunção de dois
-.� - '
sistemas de comunicação. Êvidenêi'a 0 se ·antes a cO.l.lf;.�_eção de que pode haver
como "monólogo acional vúsus não-ac;ional'; 17 ou a tese de que a convenção
do mon6logo "estllíza" como "formà'normal" o "caso _pat0lógico especial"
teatro como "sistema de comunicação exterior·: sem nenhuma ou quase ne- quando se f�la--éri1voz alta, provêm do esquema da representação mais ou me­
. nhwna "configuração de um _sistema de comunicação fictício interno''. 15 Com nos reali$ta' d� uma ação dramática e induzem a análise do teatro ao erro, por
freqüênci.a,_ tal teatro é apressadamente consideraào-como algo "ainda subor­ mai�que possam ser proveitosas na análise do drama. Ademais, o monólogo
diüado tipologicamente ao drama, no máximo como metadrama ou metatea­ patece ter a peculiaridade de. atrair interpretações improdutivas para a teoria
tro': 16 o que só é possível supor mediante o equívoco de compreender o drama do teatro. Tal o caso, por exemplo, da tese corrente de que o monólogo exprl­
encenado c;m.Õ "drama''. No.teatro pós-dramáticó a situação teatral não é me­ mir�a solidão, cUstanclamcnto interpessoal, incapacidade; de comunicação ou
ramente acrescida à realidade autônoma da ficção dran'lática, mas se torna ela mesmp "comunicação perturbada".'ª Do ponto de vista da estética teatral, o
mesma uma matriz em cujas linhas de energia se inscrevem Os elementos das que se pode afirmar, ao contrário, é que somente no sistema dialógico é pos­
ficções cênicas. O teatro é enfatizado como situação, não como ficção. sível fazer transparecer a precariedade da fala na qualidade de cómunicação
Uma das possibilidades de fazer recuar o aspecto denotativo da-linguage1:i: en!r,e os homens, ao passo que um monólogo, como discurso que tem o pú­
em proveito de sua realidade teátral consiste em reforça·r Õ proceditnento de ··· · · · · -·· blico como destinatário, intensifica o fato da comunicação - nomeadamente,
. apóstrofe em relação ao eixo-théatron. Isso pode assumir a forma do lamento, daquela·que se desdobra hic et nunc no teatro. Em contrapartida, no caso de
; da oração, da confissão -. ou melhor, "auto-acusação" - ou do "insulto ao um teatro que se retrai "absolutamente" por trás da quarta parede (Szondi)
. público''. Mas não só o discurso e a voz, como também os corpos, os ges- e ali dá lugar à mais desenvolta comunicação d.ial6gica, poder-se-ia dizer que
tos, a individualidade idiossincrática de um ator ou perfórmer são "isolados" ele tolhe a comunicação no teatro. Sob a perspectiva do teatro, destaca-se uma
(Mukarovsky), ou seja, expostos no quadro cênico uma vez mais mediante valoração do-monólogo diferente daquela conferida pelo texto dramático. Evi­
um enquadramento especial. Já que nessa tendência do teatro pós-dramático dentemente, não sê deve inferir dessa análise que os monólogos não poderiam
não se trata simplesmente da aplicação do monólogo como forma textual, de modo algu� representar a ausência de comunicabilidade. Basta pensar no
é preferível usar um neologismo: trata-se d_e "monologias': que podem ser sinistro monólogo do velho à beira do leito de moFte de sua mulher em Gust,
. .,..,,,.-....

15 Manfred Pfister, Das Drllmll, Munique, 1988, p. 330. 17 Ibid., p. 190.


212 16 Ibid. 18 Ibid., p. 181. 213
-· . ··-· . . . . ·---···--·--·-·--·-······--·------ ------�---··--····--·· -· . ... . .. ·- .. , ··········--··· ---- ····-··--· -··

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de Herbert Achternbul!ch: na linh.!l de seu i;nonólogo Elia, Achternbusch coro",19 Uma linha coral atravessa a dramaturgiaºclássica. desde O acampamento
mostrá aqui, por meio da solidão do monologuista, como as pessoas comuns de Wallenstein [Wallensteins Lager, de Schiller] até A morte de Da!fton [Dan­
podem se tornar "bíblicamente ·assustadoras" (Benjamin Henrichs). tons 1bd, de Büchner]. Num contraste com o "diálogo· vinculado': que co11-
serva um caráter "antitético" mesmo com a presença de vários falantes, Bauer
Teatro de coro mostra que em uma cena como o quarto ato da Morte de Danton o que se dá
é mais uma polifonia do que um diálogo: os oradores individuais éomo que
A par da "comunicação perturbada'; a teoria do monólogo concebeu uma contrlbuem com estrofes par.i um coro de lamentação coletivo.20 Toda vez que o
outra fundamentação para a monologização do diálogo no drama: a forma drama mobiliza um certô núiner� de personagens para descrever um universo, ·
dialógica é frustrada não só por um intransponível abismo do conflito, mas há uma te.adêncía ao coro na medida em que as vozes individuais se somam :
também por um amplo consenso dos falantes. Desse modo, o. que ocorre não é para constituir um toro geral, mesmo que formalmente não haja nenhuma
tanto que os personagen� falem sem escutar uns aos outros, mas que todo�!ª· ... locução coral. Htuma afinidade entre a monologização e o coro. Na época
leJíl na mesma direção, por assim dizer. Em face de uma tal linguagem - não d�s nualãs"; o centro do teatro é ocupado justamente por essas duas formas de
conflituosa, mas aditiva -, tem-se a impressão de um coro. Szondi observou locução que rompem com o fechamento dialógico do universo dramàtico,
isso em Maeterlinck, por exeIT\plo. É um traço sintomático do teatro pós-dra­ Assim como a monologia, o coro (já em sua quaUdade de massa) pode
mático o fato de que a estrutura díalógica seja_q.issolvida em favor dê uma ..,, funcionar cenicamente como espelho e parceiro do público. Um coro encara
estrutura de monólogo e coro. A primeira vista pode" parecer inusitado sus­ um coro: o eixo-théatron é espelhado, Um coro ofel-ece ainda.a p.9ssibilidade
tentar .uma dimensão de coro no teatro moderno, que parece ter abandonado de Jnanifestar um côrpo coletivo que estabelece relações com fantasmas so­
o coro há tanto te111po e de modo tão ostensivo. Contudo, o desaparecim�_p.to ciais· e anseios de unificação. Evidentemente, não se requer ·.fuuito- esforço
do coro talvez se)a uma realidade apenas superficial, que mascara U'.1,1sl·femá- ·para fazer o públiêo·ãssôciãYõ ·coro com massa� humanas r�áis, coi�·o ·povo.
tica mais profunda, . O coro contraria a concepção do indivíduo inteiramente desllgado da coleti­
Em todo caso, é inegável que no teatro pós-drarbárico-.dár-se um retorno vidade e ao mesinq tempo modifica o status da linguagem: quando os textos .
do coro. Em 1995, Gerardjan Rijnders .e Anatoli Vassiliev tomaram as Lamen­ são pronunciados em ��oóu pô"t' dramalis-perso.11ci.1u1ue ergue;n suas vozes
tações de Jeremias como tema em trabalhos simultâneos. Coros falados e em não como indivíduo�, mas como �omponentes de um -;;-;,�·;icoletivo, a rea­
movimento e evocações cantadas, plangentes, freqüentemente substituíram o lidade própria ·d'a palavra, seu tom � seu ritmo são ·perce-bidos de um modo
drama e o diálogo. De Serban a Grüber, diversas montagens de tragédias anti­ novo. A voz coral sigm�a manifestação do som não-apenas-i�dividual de
gas enfatizaram a dimensão do coro, É incisivo o paral�o de coro e monólogo uma pluralidade de vozes �-lrn.p1esmo tempo reuniã; dos corpos individuais
no grupo Hollandia, que po� um lado encenou tragédias antigas no espírito do em uma· massa, como "força''. Talvez seja menos evidente que a combinação.
coro (Os persas, As troianas) e por outro reuniu dois solos b'aseados em textos das vozes no coro também leve-a um disfanciamento e a um literal extra-
de Duras e Pasolini sob o título Duas vozes [Twee.S_temmen}. Encontram-se . ..... ,_

aqui manifestamente reunidos dois temas paralelos do teatro: a redução ao la­ '
19 Hans C . .Angermeyef, Zuschauer im Drama. Brecht, Dürrenmatt, Handke, Frankfurt am
mento em forma de coro e monólogo e a retomada de textos da Antigüidade. ., # ...
l
-

.....
Main, 1971, p. ll9, .,

O interesse paralelo pelo coro e pelo monólogo tem u� bom motivo. Já foi
' • •
1 .
20 ç;erhard Bauer, Z11r Poetik des-Di-tJ[pgs. �eÍsÍung 1md Formen der Geschpracl1sfiihrnng in der
214 há muito observada a "tendência do monólogo de passar a uma locução em neueren deutschen Litemtur. Darmstadt, '!977, PI{ 71-72, 215
',
,y,.,

····· .
vio da voz. O coro ergue uma-voz eiri·cujas ondas 1
Sfmoras
·' .
a voz individual
-·- ..... como coros: Os soldados [Die Soldaten, de Lenz], Os tecelões [Die Weber, de
• •. • •
não some complçtamente, filas tambéni hão,mais partici_p a em sua· qualidade Hauptmannl, Os bandoleiros [Die Riiuben� de S_chiller) etc.21 "As peças ale­
própria; ela ressoa como elemente sonoro dé ú'ma voz:coro estranhamente mãs': afirma Schleef, "variam o tema da ceia, a necessidade da droga, [ ...]
autónoma, que nem é individúàl nem é apena�ab_stratamente coletiva. Se a
0
sua apropriação por um coro e a individualização de um membro deste pela
' v9z individual, embora ainda possa sel·o�· �id�. não pode mais ser destacada traição:•23 Nessa perspectiva, ele lê na produção dramática a concomitância
do espaço de ressonância de toda a voz-coro., ô coro fala �em cada falante de uma evidente supressão e de uma secreta persístência da dimensão coral;
,... '

particular.. O som que emana d? corpo individuarfl�ua como uma entidade Fausto e Parsifal seriam as obranintomáticas nas qúais a "droga" atua corllo
autônoma sobre o coro: voz espectrí11 que pertence a liíl'la_ espécie de corpo catalisador (o sangue na cela em Parsifal; poções mágicas, drogas mortais e
inte'rmediário. O resultado ·é·um interessante paralelo do coro· com a máscara. drogas estimulantes etn Fau��?)-
Quem �b-serva um-faÍan.te.e)&p�lmenta inte�samente a q:,ncatenação do som Na encenação em co�o de Puntila dç_Brecht por Schieef, apenas o "Senhor"
com àquele rosto individual. Por��iiró lãdõ, ·quàntl0-Óuvimos alguém falar permanece como figura Individual. Assim como Kantór entrou em cena
por trás de uma máscara (ou quando falamos por trás de uma mascara) a voz ,,,.. ......
como direto_r, Schleef'tica:'no palco como diretor e como Puntila. Em contra-
parece ser estranhamente separ_ada do eu, pertencente apenas ao personagem
(à máscãra} e não mais à pessoa qu� fala.
,,
partida, o "herói positivo" de Brecht, Mattl, torna-se massa de coro. O eixo
de n;presentação dramático entre o pai Puntila e a filha Eva (Jutta Hoffmann)
Einàr Schlé�f vinculou a história db dràma moderno em geral ao destino é p;�servado tão-somente como reminiscência de um dos temas prediletos
do coro. O dram� clássico teria desalojado o cor� antigo, particularmente o de todos os dratnas burgueses: a relação delicada ê ambígua entre pai e filha.
�oro feminino. Para Schfeef, a exclusão da mulher e do coro feminino está As encenações de Schleef en;t.forma de coro suscitaram muitas discussões e
estreitamente relacionada à "rejeição da consciêncta trágica''. e esta só pode grandes controvérsias. No espectro pós-dramático, seu te�tro é o que recorre
ser reconquistada mediante a "reintrodução da �ulher no confl.ito central'; já de modo mais explícito ao coro. A relação entre coro falado, coro em movi­
que o teatro burguês só conhece a associaçãó e o_ coro masculinos.li De fato, mento e espaço, a engenhosidade dos ritmos, inquietante; configuram um
dá o que pensar o fato de que nos textos de I-Ieiner Mil!-��! haja unra-efetiv.<1. ___ ... -·· ·- --·· idioma teatral singular, que requer uina abordagem detalhada, a começar por
proe1:ninência da mulliei:,-assim como do coro feminino (Electra/Ofélia/coro; seu a�pecto auditivo. Contudo, ela ultrapassaria os limites desta v.isão geral,
, o anjo do desespero e da traição como mulher; Dascba, Medéia etc.): elas que aponta os aspectos mais importantes da estética coral, sem se deter em
' equilibram o eu cênico masculino, que mal seria constituído sem sua relação sua� configurações particulares.
' ambivalente com a mulher. Segundo Schleef, o drama moderno rompeu com · Em outra perspectiva, também p9dem ser mencionadas como sintomáti­
o coro antigo porque queria obnubilar a relação entre o coletivo e o indi- . cas de um.a..p.!!_sença não-dramática dos �tores em coro as "sessões" de Chrls­
vfduo: o nascimento do indivíduo burguês corta o cordão umbilical com a toph Marthaler, como Murx, o Europeu! [Murx den Europiierl] ou Hora zero,
realidade coletiva para poder erigir o sujeito burgu�s em toda a sua grandeza. ou a arte de servir [Stunde Nu// oder die Kunst des Servierens]. Além da ausên­
Uma nova forma de teatro só pode se ligar aos restos e às figuras descartadas cia do drama, çl.estaca-se aquí o princípio da "atração': que funciona como
em que ainda está preservado o modelo fundamental do eixo coro/indiví­ no teatro de variedades ou no circo. O interesse
. é mantido por meio de cón-
_./

duo. Assim, rnuitos dram.as alemães clássicos poderiam ser lidos basicamente //
/'

. 216 21
\
Einar Schleef, Droge, Paus/, Parzlval. Frankfurt am Maln, 199í,'p. ·10.
--� 22 lbid., pp. 10-11.
23 Ibid., p. 7• 217
estruturas deb ate, decoração e filosofia se juntam na prática te afràl. Assim, pod e surgir
tínuas s_urpresas e mudanças no ordenamento. Ma rthaler encena
uma idéia cênic a a p artir da co mbinaçã o de uma posição teórica , de utn dado
po-ét1co-muslcals. Poemas .e canções escandem as cenas. O que predom
ina

nseqüên cia, m s um ret rn sem­ técnico, da expressã o corporal de um ator e de uma in1agem poética, a partir
aqui não é u ma dinâmic a de seqüência e co
a o o

pre renovado do tema, à ma neira de um m o saico. Já é enl'Si contradramáticô de um a discussão entre ilumin ador, diretor, ator e autor. Isso é a sua "rizo­
as entre pequen o-burgueses: máti ca" estruturada de maneira heterogênea. Em cada um de seus elementos,
o enfoque n o cotid iano das rela ções amoros
ostilidades,
ciúmes mesquinhos, desejos sexuais insatísfeitos, as habituai& h ela aponta para além d o teatro, para a "viqa real''. Uma vez que o teati;o é ao
e, de um mesmo tempo ato artlstiéo e parte da vida çotidia na de uma comunidade, um
reconciliações lamuriosas. Trata-se de um cosmos da mediocridad
sem coli­ de seus temas básicos pode ser sua relação com o cotidiano.
estado que deve se tornar reconhecível por meio de fatos menores,
tamente Desd e os: anos 1970 o te atro procura espaços onde possa, como arte, se
sões dr amáticas. Para tanto, recorre-se à forma do coro social, que cer
e se unifica em canto coral, mas aproximar das atividad es da vida e do t ra ba lho e s� d�ixar inspirar por elas.
se compõ e de vozes i ndividuais e nem sempr
mesmo na a lternância das vozes conser va seu caráter geral de coro. · · · �9-�_�s _�980 e 90 o bserva-se uma tendência não tanto a integrar o coti­
· · .
discur­ dia no à arte teatral, mas a ocupa r espaços públicos com teatro até o li m ite
São raros aqui os te>..1:0s dramát icos; há sobret udo cantos, récitas e
a harmonia .
sos. As numerosas c anções corais sinalizam o anseio coletivo pel d a possibilid ade de re conhecimento como ocupação estétic a, e mesmo além
pequ�nos e desse limite. Assim, "peças didáticas" de Brecht são lidas em postos de assis­
As cenas, em contrapartida, c ons'istem em meras perversidades,
grándes des�ntendíroentos, apreensões e fanfarroniéf'..s. Nos cantos pop tência social para provocar debates. Assim, em MQhster é encenada como
ulares

su beleza p esar ação teatr al uma ação·que norma lmente per manece no ân1bit6aa assistên­
as tensões são harmonizadas, e o canto cor al tor na audível a a

d as r�ptu ras. A ssi m , por meio do coro a cena


se torna um esclareci mento cia soc ial: a dlstrlbuição gratuit a de alimentos para centenas d9 necessit ados.
music al e uma crítica ideológica convincen te. A pre sença quase contínu�'de Assim, o teatro é e�volvi�o em todos os processos possíveis·de ·socializ.ação,
. ,.
astf! com p edagogia e pedagogi�·ter ap-�tici, é fêito.éõn1'i11c ap acitados �u cegos. Tudo
todos os atores no p alco contribui muito para esse efeito. Em contr
dramá­ isso se dá sem que fique sempre claro se a arte se lt}splra no· que lhe é alheio
o característico �istema d e entrada em cena e saída de cena do teatro
a ntes, na ou se ela se inscreve na ..PJ_á.,!ica heterogênea de outros campos- sociais. De
tico, quando se opta por uma presença "c �ral" de tÕdós·us pafticip
no p alco, fato, no decorrer dessas açõ� -�;-<le-;ções..sêmelhànt�S' podem SUigi'r sérias
qual os atores que não estão atuando no momento permanecem
todos aparecem como coro social. Seria possível acomp anhar o
desenvol­ discussões entre os particip antes sobre a· sua "pertinênci;"·te atral. � ....__ .
s s encen açõ es Por sua próp.rià tên�ncia, o teatro pós-dramático é "teatro a �ontq ·�e desa­
vimento dessa estratégia de encenação no novo teatro de de a

d e Tchekhov por Otomar Krejca até Marthaler


, pa&Sa ndo pela montagem de parecer'� 1• Ele a tualiz a o'c:11�áter de celebração que lhe é imanente como gê­
nero, o caráter de uma reuniã<i·e de um acontecimento emine ntemente social
Os veranístas por Peter Stein.
e mesmo político, mas também atuali za sua condição como ação inteiratnente · .·
real e elabora esse caráter com 'teéürsõs'teatrais. Encenada em uma dinâmica
Teatro do heterogêneo
temporal, a estrutura "teatro" se �presenta sobr;tudo como '«'iiiê:idente''.
per cebido e
Em ca da época, o teatro também é definido pela maneira como é
. O teatro
tematizado o fator do heterõg§neo, sistematicamente imanente a ele
abrange in nuce to da a escala dos trabalhos,
ati�idades e possibilld ii d cs de e x­

.
I
fest , dança e
:u8 pressão hum�nos, um mundo e m mi niatura. Técnica de_�om e � 1.4 Herbert Blau, Take up lhe Bodles; theaterat tlte Va11ishlng Point. Chicago, 1982. (N.E,)
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Teatró e performahce
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campo li1termeéliário
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'-- .... O tratameMo diferencíado dos signos teatrais acaba por tornar fluidas
as fronteiras que separam,0 teatro das prátitãs artísticas que aspiram a
uma experiência real, cbtnó a "arte perfôrn1átit!l". iecõi:refiêl.O à no�ãó de
"àrte conceit1,1al'' (tal como.floresceu no início dôli a110��970, sobretudo),
é possível entender o teatro pós-dramático côino uma tentativa de �on­
. ,�- .. ····- ------......_,_ .. .....--- - .__,.. ceitualizar à arte nó sentidõ de ptõpor não unia representação, mà_s wna
experiência do teàl (tetnpo, espaço, co�po) que visa ser imedi_a.ta: teatro
conceituai. A. imediatidade de toda urtl� experiêncía compártilhadá por
artlstas e ptiblico se eücontra nô centro da "ãtte perfôrmátlca''. Assim, é
evidente que deve surgir um campo de fronteira eiltre perforrti.a.ilc� e
teatrõ à.med.i,da que o teatro se �P.roxima cada vez de un1 acôntedtíl.e�1tb
e dos gestos de auto-representaçãó do artista performáticó - ainda.mais
quando nos anos 19�0 se verifica u.tn� tendência ifwersa, de téatralizaç-ãô
da arte performática: Roselee Goldberg atribui esse deseíwolvimeilto a
àrtistas como Jesurun, Fabre, LeCompte,, Wilsoi1 é Lee Breuer. C�>g:a­
se a uma. nova associação de ópera, perfon'nànce e teatrô. Ai-ém des-

. -
\
ses artistas, Goldberg menciona ós grupos itálianos Falso Movímet1to e 223
La Gaia �cienza, o grupo catalão _La Fura <l:els Baus e Arlane Mnouchkine, [symbolized matrix], Kirby se ref'ere a um ator que_ mança com� Édipo. Mas
eg,tre Óutros. 1 ele não representa o ato de mancar: é obrigado a isso por uma· tala em sua
A performance se aproxima do teatro ao explorar estruturas audiovisuais calça. Portanto, ele não imita o ato de mancar, mas apenas realiza uma ação.
elaboradas, ao expandir o uso das tecnologias midiátlcas e ao alargar seus Se o contexto é acrescido de signos que vêm de fora, sem que o ator os pro­
processos no espaço e no tempo. Já o teatro experimental se "encurta" sob a duza, pode-se falar de "atuação admiti.da" (received acting] (numa cena de bar,
Influência de ritmos de percepção mais acelerados: não mais se _oríentando . alguns homens jogam cartas em um canto; não fazem nada além disso, mas
pelo desdôbratnento psicológico das ações e dos persónagens, ele pode se são percebidos como atores, parecem atuar). Quando se acrescenta uma par­
contentar com apresentações de uma hora ou menos. Do ponto de vista das · wna vontade de comunicar, alcança-se a etapa da
ticipação emocional clara,
artes plásticas, a arte performática se afirma como expansão da representação "atuação simples" (simple actingJ. Os performers do Living theatre passam no
da realidade em imagem ou objeto por meio da dimensão temporal. Duração, meio do público e declaram, engajados: "Não posso viajar sem passaporte";
instantaneidade, simultaneidade e irrepetibilidade se tornam experiênc}as . _ '.}�ão posso tirar a ro.upa" etc. As declarações procedem, não são ficções, mas
temporais em uma arte que não mais se limita a apresentar o resultado final h��iveuniaatuação simples. Apenas quando se acrescenta a.ficção pode-se
de sua criação secreta, mas passa a valorizar o processo-tempq da consti­ falar de "atuação complexa" [complex actíng], de atuação no sentído pleno
tuição de imagens como um procedimento "teatral''. A tarefa do espectador do uso habitual do termo. Este se aplica ao ato1; ao passo que o pe,former se
deixa de ser a reconstrução menta_!, a recriaçã.9_,e a paciente reprodução da move principalmente entre a "atuação simples" e a "não-atuação''.
imagem fixada; ele deve agora mobilizar sua própria capacidade de reação e Para a performance, a�sim çotno para o teatro p·6s-dramático,_o que está
vlvênda a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida. em primeiro plano não é a encarnação de um personagem, mas a vividez, a
Muitas vezes, ô ator do teatro pós-dramático não é mais alguém que r�_pre­ présença provocanté do homem. Aliás, vâleria a pena examitíar mais espe­
senta um papel, mas um pe1former que oferece à contemplação sua presença cificamente cqmo a·s nôvãsfõtmas teatrais· alteraram o perfil ·t�q�erido-dos
no palco. Nesse ·sentido, Michael Kirby faz uma distinção entre '.!at�ação" e atores em relação ao teatro dramático. No decorrer desta invéstigação men­
"não-atuação" [acting, not-acting] ao abordar a passagem-de-1.l�a "atuação cionam-se alguns a_spectos dessa questão - como â técnica da presença e a
com matriz integral" a ui11a "atuação s.em matriz" rjull matrixed acting, non­ dualidade íncorporaç�o/�úriicaçã·o· -'-,m · as eles..nãq .PQ��1� se·r aql..!i abor­
matrfxed actingJ.l Para além das diferenciações.técnicas, sua análise é pre­ dados de modo abrangente.
ciosa porque deixa ver com clareza o terreno situado "por baixo" da represen­
tação clássica. A "não-atuação" se refere a uma presença na qual o ator não Posicionamento perfórmativo " ·,
faz nada para reforçar a informação transmitida por s�a atividade (por exem­ .
·,
·,
plo, os auxiliares de cena no teatro japonês). Não-estando vinculado à ma­ A performançe foi corretamente qualificada como "estética integrativa do vi-.
triz de um contexto de representação, ele se encontra aqui numa situação vente''.3 No centro do procedimento, performático (que não compreende ape­
de "atuação sem matriz". Na etapa segulnte, denomin�da "matriz simbolizada" nas formas artísticas) encontra-s·�_ uma "produção·de presetu;a'.' (Gumbrecht),
a intensidade de uma �omunicaçã'0 "face a face" que não pode sei: substituída
'
RoseJee Goldberg, Performan.,e Arl: from Fut11rlsm ló the Presenl. Nova York, 1988, ' 1 ' -
pp. 194-9 5, 3 Karlhelnz Barck, "Materialltãt,Materlallsmus, Performance': ln Hnns U. Gutnbrechl e Karl
224 2. Michael K!rby, A Formal/si 1heatre. _Pensilvânia, 1987, pp. 3-4. L. Pfeiffer (orgs.), Mnt�rialitiit.der Komm1�ikatiol Frankfurt am Main, J988, pp. m-38. 225
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"
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por processos de comunicação transmiti<ios P?r interface, por mais avançados do pensamento da· performance. Com isso certamente foi dado um passo
que eles sejam. "E assim como· na ·arte 'perfoniiática se chega à re_!lúncia dos bem maior para a perda dos critérios artísticos que se impunham à obra com
critérios' de valor, também no nóvo teatro a própria prática facilidade e permaneciam aplicáveis. Se o que apresenta valor não é a obra
,, �. da montagem rei-
vindica uma "validade" estética da performance que antes não exístia: o direito "objetivamente" apreciável, mas um procedimento com o público, tal valor de-
de posicionamento performativo sem fundamentação em algo a ser repre­ pende da experiência dos próprios participantes, portanto de um dado alta­
de
sentado. A validade do teatro não deriva um "modelo" Hterár�o, ainda que mente efêmero e subjetivo em comparação com a obra fixada de modo dura­
·possa de fato corresponder a ele. Isso tem leva.4_o a uma considerável confusão douro. Torna-se impossível até mesmo definlr a performance - por exemplo,
no campo da teoria literária. Wolfgang Mati.at, por�xemplo, refere-se ao caso o limite a partir do qual haveria meramente um comportamento exibicionista
en1 que o procedimento da própria representação te�tràl to?1a a frente do pro­ e extravagante. O último recurso não pode ser outro senão a compreensão do
cesso dramático repres.entado ·e diz-se pEeocupado com o "têatro-teatral" por-· próprio artista: a perfürmance é aquilo anunciado por aqueles que a apresen­
que nele predomin�:�.;·p��.spectiva teatral''. Ele menciona como exemplo tão­ tam. O posicionamento perforn1ativo não se pauta por critirios prévios, mas
somente o teatro do absur� ��lado "dã'fars·à e-da-commedia dell'arte - isso por seu êxito n9..co.1J?unicação.
em 19'lh. -, e já a! assevera o perigo de que uma "extrema ênfase da representa­ É então inquestionávei que o público, ria condição de parc�lro participante
ção teatral" faça o teatro parecer "particularmente vazio": "Os procedimentos no teago e não mals de mera testemunha exterior, decide sobre o êxito na co­
apresentados se tornam significantes sêm slgnificaâõs, símbolos sem sentido, mu11ié;ção. Com isso surge uma inevitável pro�fmidade com os critérios da
já que não podem ser preenchidos com um teor emocional".' Resta saber por comunicação de massa. É o reverso da libertação do teatr� para q posicionamento
que uma m91:1�gem não poderia conter t1enhum_ teor emocional em sua pró­ performativo que lhe abre ao mesmo tempo um amplo espaço para novos esti­
pria realidade. De todo modo, tais julgamentos equivocados chamam ainda los de encenação. A mont?gem, sisteJ'naticamente inserida entre �m pré-texto
1Í1ais a atenção para a necessidade de se analisar com precisão o deslocamento e uma recepção, desloca o peso de sua balança para esse último pólo. O teatro
do lugar e das estruturas da comunicação teatral.no teatro pós-dramático. precisa deixar de ser obra oferecida como produto coisificado,(mesmo que essa
A introdução de uma fratura entre o representado e o processo de repre­ obra reifi.cada seja composta de modo processual) para assumir-se como ato e
sentação nas formas teatrais an�illusionistas e épicas cert�ente t:raz-11ovas-.. momento de uma comunicação que não só reconheça o caráter momentâneo da
propostas de percepção, mas a posição do obser vador permanece essencial- "situação" teatro - portanto sua efemeridade tradicionalmente considerada como
. mente inalterada: ainda que o público seja provocado, sacudido, mobilizado deficiência em comparação com a obra durâvel -, mas também o afirme como
·. socialmente, politizado, encontra-se "diante" do palco. Aos olhos dos mo- fator indispensável da prática de uma intensidade comunicativa.
. dernos, a medida do "real" não havia sido suficiente no antigo teatro da ilu-
são, e com isso chegou-se às estratégias de quebra da ilusão. Contudo, esse Autotransformação
argumento da falta de realidade podia retorna-r estruturalmente e ser também
dirigido contra o teatro moderno. De fato, este é percebido de modo mais A discussão do entrecruzamento de teatro e arte performátlca.no âmbito do
consciente, !nas nem por isso se privilegia a realidade da própria situação do teatro pós-dramático deve levar em conta o seguin�e deslocamento de pers­
teatro, o processo entre palco e público. Justamente isso veio a ser o cerne pectiva: se no teatro os artistas apresentam uma realidade que eles trqnsfót�
mam artisticamente por meio de materiais o'u gestos, na arte perform"ática a
226 4 Wolfgang Matzal, Dramenstruktur 1111d Zusd1a11errolle. Mun!q�e, 1982, p. 54. ação do artista está menos voltada ao propósito de transformar uma realidade 227
que se ensontra fora dele e transmitj-la com base em uma elaporação estética, aqui em questão, Ela não só traz à tona momentos ao vivo inauditos, como
asp�rando antes a uma "autotransformação''.5 O artista performático (com também modificou perenemente o modo de pensar a arte. O que se_ pretende
muita freqüência uma artista) organiza e realiza ações que afetam o próprio apontar aqui é a opção de ponto de partida quanto à refação da vida real com
corpo. Na medida em que seu corpo não é usado somente como sujeito do a arte: o distanciamento estético, mesmo radicalmente reduzido, ainda é ou
manuseio, mas também como objeto, com:o material significante, anula-se não o princípio da ação estética?
o distanciamento estético tanto para.o próprio artista quanto para o público. De fato, a questão da autotransformação virtualmente radical na perfor­
Artistas como Chris Burden, que se dehçou atingir por um tiro, Glna Pane, mance e no teatro tem como pano de fundo a questão da opção ética. Roselee
que lacerou sua língua com tuna lâmina de barbear, e Iole de Freitas põem Goldberg cita uma frase de Lenin (!), "A ética é a estética do futuro'? que ins­
em questão o status da diferenciação estética e sobretudo a posição em que pirou o título de wna performance de Laurle Anderson de 1976: Ethlcs or the
o espectador é situado. Também no teatro é possível chegar.ao momento da Aesthetics of the Few(ture).8 Também no teatro o corpo pode se expor a riscos,
autotransformação, mas ele cessa no limiar da sua absolutl2ação. O ator c�r­ .. -.. -···--.Jt.s.� arte teatral;·onde sempre são fluidos· os li..InÍt�s- entre o mostrado e o
tamente quer realizar momentos únicos, mas quer também repeti-los. Pode mostrar, o corpo é sempre usado como material. Tal é igualmente o caso no balé
ser que ele rejeite a idéia de ser o outro de �m personagem e represente a si clássico, que requer uma disciplina torturante - o que pode ser discutido como
mesmo; talvez atue como um ator épíco, que "mostra'� ou aihda como um per­ prática radical (e também quesrio�ável) nos trabalhos de Schleef, Fabre e outms.
forn:Jer q1.1.e usa sua presença como material estéJ!ço primordial. Mas ele quer A diferenciação entre performance e teatro (sabemos: não há uma fronteira in­
rep�tir o processo no dia seguinte. A manipulação irrevogável do próprio teiramente nítida) se encontraria ali onde não só -há uma ·sifüação na qual o
corpo pode chegar a acontecer, mas não é a met�. corpo é "aproveitado" como material no processo de !,igní.ficação, �1as onde essa
.,
O próprio performer pode se oferecer como vítima de um sacrifíci9r·b situação é expressamente provocada com o objetivo da autotransformaÇ?!?.! Em
público pode ser culpabilizado por sua experiência participativa e p.assar a princípio, o performer do teatro .não-·quer fi."ã"iisformar a si mesmo, mas trans­
ter ele mesmo o·papel de v(tima;6 a performance pode se tran�fonnar em formar uma situação e talvez o público, Em outras palavras: inesmo no trabalho
automanipulação que chega ao extremo do suportável..-'-'·de todo modo, há teatral o mais oi:ientado.p.!!ra a presença, a transformação e o efeito da catarse
sempre uma analogia com rituais arcaicos, que uma vez realizados fora do permanecem virtuais;41ó/un""i'drios éjutüros; Jão"idea-J da·.-arte-perfo�-p)_ática é um
seu contexto mítico-mágico não podem deixar de ser problemáticos. Com processo real, que impõe emoções e acq.ntece aqui e agorq.. · . ··-·- ·---.
efeito, a concepção da autotransfonnação convida a considerar como o pontD Seria ir lõng� oemals discutir as linhas que separam a transform<1ção e à
..,_____ .
de vista radical da performance o suicídio em público: um ato que não seria autotransformação nas m:Aftiplas utilizações do ritual, A performance como
mais perturbado por nenhum compromisso com qualguer "teatralidade" ou ritual - a exempJo--daquela prat-icàda pelos acionistas de Viena ((Hern�a:nn]
representação e que constituiria uma experiência radicalmente real - atual e Nitsch, (Otto) Mühl) - pretende modificar o espectador. A ética da catarse (a
irrepetível. Essa consideração não pretende ser nem satírica nem polêmica, agressividade reprimida pela civllizâçâo é r_ei�trodu�ida 110 espaço da cons­
A autenticidade pessoal e artística da concepção de performance não é posta ciência e do experimentável) erjge particlpaçã�; contrariâncto- o "esplêndido
ísolamento" do espectâdor ao_ "despertar reações emocionais incontroláveis
1 •

6
Edith Alf!l!iofer, Pe1fonnanceArt. Viena/Colônia/Graz, 1986, p. 44-
Cf. Rachel Rosentha·I, apud Erika Fischer-Llchte, The Show and lhe Gaze of 1/rentrc: an Goldberg, op. cit., p. 17l- ·· -···"- L -··· - '
7 I
'
228 European Pcrspective. Iowa, J.997, pp. 256-57. 8 O título faz um jogo de palavras lntràduzivel com lhefew, "a minoria': efuwre, "futuro''. [N.E,j 229

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'·1\'

(medo, asco, terror). Não obstante,


• a identidade1 çlôs.,·atores é preservada e o Seria um equívoco restringir o alcance do impulso ritualístico ao teatro dos
procedimento continua a sei' teatro t.anto quanto_ af imagens p�c�ódcas de anos 1960 e ;10, pols o que foi desenvolvido naquele período se estabeleceu
Arnulf Rainer continuam a ser artes plástiGa,s .. Visto que não se trata aqui de diversas formas no teatro dos anos 1980 e 90. Tanto no "teatro do real"
de uma abordagem antropológica, contentariiJ-nos com destacar de modo quanto nos estilos de encenação orientados de modo agressivo em relação·
. , geral o aspecto ritual ou quase rit�al nas formas teatrais e na performance. ao público, tanto na performance quanto em inúmeras práticas parateatrais
Mesmo admitindo-se que é questionável transplantar modos de· comporta­ e�contra-se atividade no campo intermediário entre o teatro e C> ritual. A an­
mento provenientes de represent�ções mágicase,in.fticas para .uma situação tropologia teatral de Schechher.sustenta que a autêntica polaridade de base
· �xtremamente moderna, é evidente que o recurso -�Õ'S-.�tementos arcaicos, a não se dá.entre ritual e teatro (arte performática), mas entre os parâmetros da.
refle;<ão sobre os limites _dos coh1portamentos codificados pel� civilização e "eficácia" (no ritual) e do "divertimento" (na "arte"). 11 Resta saber até que ponto
. a ad�ptação 9e fonuas de·coinportam'ent�-êérimoniais se tomaram objetiva­ essa diferenciação, que é central do ponto de vista da antropologia cultural,
mente prodtttiv�s-dci"pcint6 de vista-artisfü::o .e, �o mesmo'tempo, sustentaram contribui para a análise do novo teatrd. A dlficuldade reside no fato de que a
a resistência cohtra a tentativa de comprimir a a;t;râdicâl nos moldes das atitude estética-em- ge.ratefetivamente consiste em um "entrelaçamento" dos
regras estéticas tradicionais. Com razão, Johannes Schrõder se insurge contra dois temas, 'tal como sugere a imagem dos gêmeos de Sch�chner. Assim, o
"a recusa generalizante que se ·esquiva do desafio po�tQ pçl;is �ções em razão de teatrp.'pode aspirar a uma variação da "eficácia" que pouco tem a ver com os
uma aversão aq-rellgioso pretensamente esclarecida''.9 A dimensão ritual das pro·fedimentos rituais - de sociedades africanas, digamos - e que no entanto
práticas teatrais e performáticas do presente indaga sobre as possibilidades do _ofe.rece bem mais do que divertimento.
homem à margêm de sua <;l.9mesticação civilizatória. É evidente que o artista -
e ainda mais o artista performáticd, especialmente marginalizado - não pode Agressividade e responsabillaade
efetivamente agir como um xamã, portanto como um outsider socialmente
reconhecido e admirado que transgride limites em favor dos outros. Na socie­ É notável como a performance centrada no_ corpo e na pessoa costuma ser
dade contemporânea, cada artista realiza o ritual por sua própria COQ��· ----
---
"assunto de mulher". Na medida em que a crítica feminista havia posto em
Schechner escreve: . evidência a imagem _da mulher e mesmo a identidade de "gênero" como uma
construção que projeta b olhar masculino, era de se esperar que nas perfor­
Para onde quer que voltemos nosso olhar, e a qualquer distância que o recuemos manc�s o corpo feminino fosse em grande medida abordado como superfície
no tempo, o teatro sempre se apresenta como un'l entrelaçamento de ritual e d1ver­ socialmente codificada em que se projetam ideais, desejos e humilhações.
são. Por un\ momento nos parece que a origem é o ritual, e no instante seguinte a São wn exemplo dlsso os "kltchen shows" da pintora Bobby Baker, que regu­
diversão - acrobatas gêmeos saltando um sobre o outro, sem que nenhum perma­ larmentecõrwidava duas dúzias de espectadores para à sua �rande cozinha e
neça maís tempo por címá. º 1
ali, na maior proximidade, apresentava um exagerado monólogo surrealista
sobre a esci-avidão da mulher na cozinha.
Os artistas'performáticos dos anos 1960 e 70 b�scavàm â trai1sgressão das
9 Johannes L. Schrõder, Jdentitiit. Oberschreitung, Venvandlung. Hapenings, Aktíonen und
Performances von bilde11den Künstler. Münster, 1990, pp. 210-11. normas sociais opressoras pela via dà experiência da dor e do perigo CO!J)0tal.
io Richard Schechner, 111eater-A11thropologle. Spiel une/ Ritual lm Kulturvergleich. Rcinbeck,
./
230 1990, p. 102, ll lbid., pp. 68-69. 231
Quando Marina Abramovic prop�!lha a seus espectadores um jogo cuja re­ josa. Ela é de cabo a cabo condicíonada por nor�a� culturais, ideais de beleza
grª.corisÍ�-tia em que eles podiam fazer de tudo com ela, a percepção tinha e modelos _ de representação. Em Orlan, a autodeterminação na estilização
de se converter numa experiência de responsabilidade. De fato, no decorrer corpôr.il orientada para a arte, na mutilação em nome da "beleza'; torna-s�
da performance vinha à tona uma flagrante agressividade por parte de fre­ uma abissal e assustadora materialização da nulidade do Eu, da transforma­
qüentadores que se deixavam prov9car pela ausência de limites, de modo ção não só de "si" como da imagem humana. O lugar da responsabilidade sé
que a sessão era interrompida quando alguém punha um rey.2.Jver qme­ torna incerto em uma medida quase insuportável - sem contar que Orlan
gado na mão da artista apontado para sua cabeça. Aqui1 o perigo e a dor evitou tornar suas performances aproveitáveis por teses de critica ideológica
são o resultado de unia passividade intencional; tudo é imprevisível porque (crítica feminista da cirurgia plástica etc.).
tudo depende do comportamento dos frec'._tüentadores, No caso de Chris
Burden, que se expôs a um tiro em seu braço esquerdo, t"ambém estava em
jogo uma imprevisibilidade, uma limitação do controle pessoal sobre a sit�a­
ção criada. O papel de vítima é evidente nos dois casos, mas é o resultado
.._ . ., _____
de uma vontade subjetiva individual, que por sua vez já não aparece como
vitima de estruturas sociais.
Um novo grau de Inquietude é encontrado eg1_.0rlan, cujas cirurgías plás­
tica� encenadas em público corrigem, embelezam, deformam e modificam
seu corpo, sobretudo � rosto, segundo os padrões de beleza da cultura oci­
dental (a fronte da Mona Lisa, o nariz de Nefertiti etc.). O rosto é tradi7io­ .j
. ... .
nalmente considerado como a inconfundível expressão da individuaUdade,
ao passo que aqui ele é constantemente alterado ao longo dos an�st cte modó
que não é exposto como identidade original, mas com-o··resu!tado de uma
.. --- .. . .. -· ·-·· - ··-·
escolha, de uma decisão individual voh.;ntária. Assim, a vontade sLtbjetiva pa­ ·-· -- ··�
rece até intensificada em relação aos "sacrifícios" dos artistas performáticos ...................
antes mencionados. Contudo, evidencia-se aqui um outro problema. Na me­
dida em que o sujeito abusa voluntariamente de seu corpo, revela-se a apo­
teose do indivíduo self-willed [autodeterminàdo], quenão se contenta com
nenhuma realidade predestinada, cómo a da sua apa7ência. Or!an demonstra
sua liberdade tendencialmente absoluta de escolher a "si'; o que seria uma
premonição da "sociedade multiopcional", na qual ilada mais será dado pela
natureza, de modo que o indivíduo terá de arcar com o peso de sua própria •.,
II

escolha e de sua responsabili-dade. Ao mesmo tempo, porém, as performan­


ces de Orlan evidenciam com uma clareza estarrecedora 9-ue no fundo já se ... ....
.. . . ..
2Jl abdicou da "vontade" justamente ali onde ela parect; mais poderosa e cora-
233
\.
··- ···-

·-· - .. .
I,
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· --.
:-· ,_ .. _

A �resença da performance
- - --- ..
·-·--- .... -- ....
,::·.:.._...__
,/·- .....
/
/
/ .
Hans Ulrich Gumbrecht mostrou em que medida ó fascínio exercido pelo
------ esporte se deve ao "gesto elemeiltar" de uma "p-todução de presença" que pa­
rece ter muito das "formas,.,gêheros e rituais" do teatro''. 1 Trata-sé de "trazer
às coisas ao alcance, de modo que pôssani seí tõcadás". Essa fori'üula�ãQ se
assemelha à tese de Benjamin de que o desejo irresistívêl das filassils de traze�

---
ás coisas pará perto estaria na base dà "desaurátizaçâd' da? àrtes, Ei11 prol da
--·-· "•-... ···- ..... _.... - · hennenêutica da pr9dução de presença Gumb�eê:ht evõca nada menos que
a eucaristia, na qual o pão e o vinho não são slgüifi.cantes pará o corpo e o
sangue de Cristo, mas presença real .ao ato da cômunhâo: sangue e corpo de
Cristo não como algo designado, mas coh1ó substâfl.ciar modelo de ui11a '"pre­
sença'1 que remete a si mesma e uné.á coniunidtide congregadã na cerimônia
ritual, Ne.s.s..�entido, ele �·ompara o ac�rttec�mêntô esportivo cõri1 ô teatro
medieval: tant� nurf1 quanto nó oÚtro ilào se detnanda UJ11à atitude herme­
nêutica; o ato! não age como no teatro "moderirn" (segundo Gumbrecbt),
como se nãô n;otasse ô públicó, mas h1terage côfi'l ele,

.
·,- Hans U, Gun1brecht, _'�inerican Football - im Stndion und im Fernsehen': ln Gia�ói Vatti­
mo e Wolfgang Welsch (orgs.), Medie11-Welten Wirkllchkellen, Munique, l998, p, 208, 235
Paz tpdo o sentido a tese de que no esporte nos encontramos diante de não seja essa a intenção. Por isso, já não se sabe ão certó se essa presença nos
um/ténôm
. eno sintomático. da .tendência de evolução cultural de uma per- é dada ou se somos nós, os espectadores, que primeiramente a produzimos.
formance que não funciona segundo os registros da representação e da in- A presença do ator não é contraparte passível de objetivação, um "ob-jetó",
terpretação herme11êutica. De fato, parece "que a çi:escente importâncía das u� presente, mas "corp-presença': 110 sentido de uma implicação inevitável.4
atividades esportivas [... ] faz parte de uma mudança maior dentro da cultura A experiência estética do teatro - e a presença do ator é o caso paradigmá­
conteroporânea'',2 na qual ganha significado o fenôm�no cultur-aL da "produ­ tico, Já que abrange todas as confusões e ambigüidades associadas ao limite
ção de presença': que não deve ser compreendida como in1mese ou represen­ do estético - é reflexão apenas num sentido secundário, Esse sentido só tem
tação. Resta saber se no esporte a dimensão "realista" de vitória e derrota, d.e lugar ex post, de modo que não seria motivado sem a prévia íntrospecção ·
ganho (financeiro) e perda, não rechaçaria a epifania da presença, de modo de um dado que não se presta à reflexão, comportando assim um caráte/
que no final das contas o esporte se diferenciaria inteiramente dos rituais tea­ de choque. Toda experiência estética p.ossui esta bipolaridade: confrontação
trais, mas essa é uma questão que não cabe discutir aqui. Seja como for, e�sa .com u.?.'1ª_Presença,"súbita" e segundo o princípio aqÚém (ou além) da refle­
combinação de execução ingênua ou blasfematória de uma cerimônia mágica, xão que se rompe e se duplica; elaboração reflexiva dessa experiência a partir
de performance interativa e de produção de presença é esclarecedora para o da lembrança posterior.
teatro pós-dramático. Ela explica sua insistência na presença, suas tend�ncias A "estética do terror" de Bohrer ajuda a circunscrever com mais precisão
cerimoniais e rituais e sua propensão a pôr-se em-.pé d� igualdade cori1 rituais a presença que se dá na perf�rmance e nas formas· teatrais e que deixa para
disseminados interculturalmente. Gumbrecht não ignora que tal presença Ja- trás o paradigma do tea�ro·dramático. "O tempo estético': ãfrrma ele, "não é
111ais pode se dar plenamente "ali'; que ela sempre conserva o caráter de algo o tempo Wstóríco traduzido por uma m�táfora. O 'acontecin:ie�to' inerente
ansiado, alusivo, e que de todo modo desaparece quando se torna uma :xpe­ ao tempo estético não se refere aos acontecimentos do tem1po. .real".5 Para
7
riência reflexiva: Ele retoma a idéia de Schiller de uma referência 9ãó ingê­ Bohrer, aquilo que· �ntendêmos ·por ternpôralidade espe�.ífica da ;erfor­
nua, mas apenas "sentimental': para pensá-la como :nasciment�,dá presença" mance - à d!fercnça do tempo representado - é u_m aspecto do choque e do
(Jean-Luc Nancy), como advento, uma presença simplésmentê"°imaginável.3 terror. Inversamente, .a�daremos a questão do terror como um fator da
No entanto, para o teatro é essencial não apenas a consíderação do modo estética teatral. Para-Janto, -�ai� â- p-éi:ia c-êii'fsiderar ·brevemen.tc::. a concepção
de Bt>hrer S?bre o terror. -. -
de ser virtual da presença, màs também sua sob:r�determinada qualidade de .;
co-presença, de desafio mútuo. Se há um paradoxo do ·ator, há antes de tudo ' ·na Medusa
Apoiando-se' ' de Caravaggio, Bohrer.afirma q�e o terro/es-
um paradoxo de sua presença, Recebemos os gestos e sons que ele nos dá tético se diferencia dci"te1/0t verídico por uma estilização que c9.nfere ao
não simplesmente como algo que vem dele próprio, da plenitude de sua rea­ aterrorizante úrrra forma o?namental, suscitando assim uma identificação
lidade, mas como elemento de uma situação compk'<a, que por sua vez não apenas "imaginária''. A segunda qualidade por ele apontada é ainda m�is im·-
pode ser resumida como totalidade. O que deparamos certamente é uma
presença, mas ela é diferente da presença de uma imagem, de um som? de
Aqui o autor Cai um,Jogo de pat'�vtas com termos formad�s com os antepositivos gege11-
uma arquitetura. Ela é uma co-presença objetiva referida a nós - mesmo que 4
( confra-). � 111iL,.(com- ). Ele opçie as palavras "Gegen-stand" (objeto ), "Ob-jekt<' e "Gegen ­
wart" (presente) - grafadas con, hffe� .P.�_r a:enfatizar su� formação - a "Mit-Priisenz': um
2 Ibid., p. 2.IL neologisrilo traduzido a qul· põi.-''com-pmcn ça''. Jiu.J
3 (bid., p. 214. Karl H. Bohrer, Das abso/ute Priisens. F�nkfurt am .Main, 1994, p. 7. 23 7
1
,,
portante: "O rosto dessa medµsa.não é algo qu'� ���se terror por si mesmo; do "espanto que é �ecessário para o reconhecimento" (Brecht)) da noção de
.
antes, ela própria parece ver algo .de aterrorizante (digall}OS, ·se'tf·prõprio des­ terror como "primeira manifestação do novo" fMüller), da "art1eaça de que
tino mltico)". 6 A nada aconteça" (Lyot,ard).
. manifestação estética se sÍtl.1\1. pa�,i"l1lêin da represe_ntação
do terror empírico, real. Não apreseµta nada de propriamente aterrorizante. Tanto nas formas tea'trais desdralnatizadas, que veiculam uma espécie de
- contemplaç�o vazia, quanto nas formas radicais da performance-dor, emo­
Como realidade estética, a "manifestãçâó'' p1:esente não convida ao esclare­
cimento, à sondagem ou à interpretação ("trágica': por exeJi1p'io) do ater- clonalmen�e aterroriz.�ntes e desagradáveis, mostra- se que não basta uma
'· interpretação psicológica da experiência da presença no terror - o que tam­
rorizante, mas à experiência "mimética" dó' aterrorizante.' o· observador do
. pouco interessa a Bohrer, com toda razão-, a qual sempre en�ontraria um
quadro vivencia o terror que está "posto" ali. Bohrer·-deriva desse modelo
as· q_ualiclades eia intensi_dqde e do enJg1t1,t1, as quais apropiiadantente consi­ espanto engendrado por um objeto ou uma circunstância representável. A
_
dera con'iõ os .fatore�_ _c:9nstitutivos da "experiência estética': circunscrita por di.tnensão da estética teatral é a estrntura de um choque cuja excitação não
sua vez pelas formulações.eqüivalêntes de uma 1'manife�t;ç_ão súbítá' e de uma se prende a um objeto - de utn espan·to t1ão cóm a história, não acerca de
"epifania auto-referente".7 Segundo ele, a epifania do terror é uma "estrutura um fato, ma� �éerca -do próprio espanto. Não se estaria longe aqui da expe­
estética[ ... ] que se repete em _ diversas fases da literatura e da história da arte riência p_sicológica do sobressalto, quando se experiencia algo que não se
na Europa':.ª s�tido que a Atenas dó século·v a.C;·o-Renascíínento _tardio e. sabe ,o 'que seja ou que não se tem e esse não-saber ou não-ter aparece "subi­
o período em forno de 190b constituiriam um solo especialmente favorável tan:ente" como um vazio na vivência, quando há um sinal que alguém não
f

pará o fenômeno do terror, em si mesmo não histórico, mas fundado em ele- pode explicar e que lhe diz respeito. O presente como tal não é uma experiên­
Ib.entos iner;��n'1ente· estéticos. cia interrompida e interrompível: é experiência da perda. Na perda se dá a·
Aplicando a reflexão de 13ohrer ao teatro, poder-se-ia variá-la da seguinte experiência na borda do tempo.
forma. A cabeça da medusa talvez não veja tanto seu pr6prio destino; o es­ Contrariamente à desco.nfiança do esteticismo,. uma estética do sobres­
panto não se deve a nenhuma realidade terrível que se pudesse denotar. Em salto no teatro seria um outro nome para uma estética da ·responsabllldade.
conformidade com a lógica do quadro, o objeto do terror precisa-pei:man,!:: A -:epresentação diz respeito essencialmente ao meu envolvimento, que
cer fora do mundo representado (representável). Ele é desprovido de forma. compreende a responsabilidade pela síntese mental dos eventos em éurso,
O olhar pintado da cabeça decepada não olha nada; antes, "exprime" na ló­ o permanente estado de atenção para com aquilo que não é objeto do en­
gica da imagem pintada justamente o olha: da medusa morta - portanto, tendimento, a sensação de uma participação naquilo que ocorre em torno
· um "não-ver ''. Isso significa que o espanto é a morte-do olhar, seu vazio, sua de mim e a percepção da situação problemática do pr6prio ato de observar.
cessação. Desse modo, introduz-se em nosso contexto um tema fundamental O teatro pós-dramático é teatro da presença. Tendo em mente o conceito de
do pensamento recente' sobre a arte e o teatro, que oscila entre uma categoria "presença absÕluta" de_ Bohrer, refotmula'r n presença como presença do tea-
psicológica e uma categoria estético-estrutural: a idéia do "choque" (Bert­ tro signi.fica sobretudo pensá-la como processo, como verbo. Ela não pode
jamin), da "subitaneidade'' (Bohrer), do "ser tomado de assalto" (Adorno), ser objeto nem, substância; não pode ser objeto do conhecimento no sentido
de uma síntese.realizada pela imaginação e pelo entendimento. Contentamo­
J1os coro entender essa presença como algo que acontece, apropriaf!.çlo.:nós
lbid., pp. 40-,p. assim de um<'! categoria teórico-cognitiva :_ e mesmo ética - para ·;aracteri­
--
6
lbid.
7
zar o campo estético. 239
238 8 Ibid., p. 62..
.l
A (Q,tniÚla do "presente absolüfo" de ·Bohrer é incomensurável para as torno das estilizações mais conscientes e artificiais, poderiam coilstituir uma
co�pções que vêen1 na experiêilcia estética wh mediador, um medium, ponte para escapar ao visgo das imagens naturalistas._.Algo novo sur'girá, e
uma metáfora, ui11 sobstituto de uina outra realidàde. A arte.não é media- para f�l�r com Brecht:
dora do real, do huinano, do divino ou do absoluto. A arte não é "presença
real" no sentido empreg!ldô por Georg Stein�r; antes, ela se torna o "outro" Essa corja superficial em busca de novidades
estritamente vazio de conteúdo na prese;ça da obra de arte, ''crfütla nesse Que úão gasta at� o frm a sola do sapato
instante não comô um �entecóstes estético, mas como uma epifania sui ge­ Não termina de ler seus livros
nerls'? cujas variedades irão se desdobram sistematicamente, tornando-se Torna a esquecer seus pensamen·tos
visíveis apenas mediante decompósição e análise etn suas respectivas confi­ Eis a nãtural
gurâções concretas, Esse presente não é um ponto do agorá coisificado em - Esperança d,o mundo
uma linha do tempo; ele ultrap assa esse ponto num incessante desva11ece1·;e . - ···! ·--· -· --�caso_.não sefà· · ·- ·
aô mesn10 tetnpó � cesur� entre o·passado e Ó porvir. O presente é netessa­ · Tudo o que é novo
·riamente erosão e escapada da presença. Ele ·designa um acontecimento que É melhor do que o velho, 11
esvazi:i o agora e nesse 111esmó vazíó faz brilhar a rec?rdaçãó e a ante�ipação.
O p_� eseilte llão é flada que -se possa api:eendertop.c �itualniente, Jilas unl
_ ...__ ___
ultermihável processo de autofracioha-thento dó agora em estilhaços sempre

· --
· novos· de "aindii agora" e "agora mesmo''. Ele tem mais . a ver com â morte d? .;
• . ···-- ..___
1 •
/
que Cbm a t�o evõtàda "v�da" do teatro, como diz Heiner Müller: "... à i;spe-
.. ..
cificidade do teatro não é exatamente a presença do espectador v,�v-/. más

---
a presença do fnoxibnf1dô em potencial".'º Nesse seJ1ti40 de u-má'presençà
..... /
oscilante e evanescente, experimenta-da ao mesm? tempo como ausência e
comô algo que já passou, o preseilte E.taça um risco sobre a representação '
-- ....... __ -... .. ·-- ....... __
·-·-----.. .. ·-·-. -... .
-....
..
dta1nática no teatro pós-dramático, ....... ;;
Talvez o teatro pós-dramático :venha a ser tão-somente um momento em
que o reconheciillentô daquilo que está par;i além da representação pode
ocorrer em todos os níveis. Talvez ele i11augure uma hova cena, na qual as
figurações dramáticas serão reencontradas depois dé tamanho distancia­
mento entre o drama e o teatro. As formas narrativas, a �propriação sóbria
·-....� '
e mesmo trivial de hist6.rlas antigas, assim como a ·necessidade de um re-
• f

. 9 lbid., p. 181. .-· ..1� - .. - • '


10 Heiner Mijller, Ich bi11 eit1 Landvermesser.
•. Gesprãche [entrevista a Álcxander Kluge], Ham- J

240 burgo, 1996, p. 95, \, .11 Bertolêl Brecht, in Werkç, V, 14. Bcrllm/Welmar/frnnkfurt am Main, ·1993, p. 47,
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:t..... Texto, linguagem, fala


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( Lfuguagem e palco
_
..... ... ...
.. - .. É certo que à primeira vist<l;2,,teatro pós-dramático parece dar menos valor ao
papeL do texto d9 qué o teatro de fábula clássico. Mas não ê St;inislávsk.i - que
.ti.ão será c!ássificadô cofno algu�m hostil ·à literátura - quem cónstatá expli­
citamente que ó texto como tal nãô tem v.alor para o teatrq? Que as palavras

--------.-e . ..'.-•• •--· só. ganham sentidó pelô "subtexto" da dramaturgia e dbs papéis? É tam9é�
evidertte e válida para o teatro antign ·a difereüça (e a concorrência) funda- .
inental entre â p·erspectiva do tex�9, que no caso de qualquer grande dráma
já é perfeito como óbra de ilng1.1ageiü1 e à perspectiva inteiramente diferente
do teatro, para a qual o texto apr�senta um màterJal. ó novo teatro apro­
fu".'da a�o reconhecimento, nem t� o_Mvo assim, de que entte o t�xto e
à cena nunca predomifla uma rela'ção hannôüicà, mas ul11 pe'rmanelite con­
flito. Beri1ard Dort afirfüa que a união de texto e cena n�nca. se· realiza plé­
ilamente, hav�ndb Ú!npre uma relação de subordinaçãô e de compróinisso. 1
Essa obrigatoriedade pôde se tornar um prindpiô ' de ehtehação inteilckmal
...-<:
e consciente, já que constitui l:lll cóJiflito_ estrutural latente efn tc._ç.ia-práticà

. __\ _.... Bernard Dort, La Représentalion émandpée. Arles, 1988, p. 173 . 2 45


teatral: ,Assim, não é determinante à oposição verbal/a-verbal, tal como fre­ O que caracteriza o novo teatro, �ssim como as tentativas radicais da "lin­
qüentemente ressoada úa cQntr?posição muito em voga mas irrefletida entre guagem poética" dos modernos, pode ser entendido como tentativa de restitui­
"teatro vanguardista" e "teatro de .texto''. A dança muda pode ser aborrecida e ção da chora: de um espaço e de um discurso sem télos, hierarquia, causalidade,
didática; a palavra significante pode ser uma dança de gestos lingüísticos. sentido fixável e unidade. Assim como na dança, no ritmo dos gestos ou na dis­
No teatro pós-dramático, a respiração, o ritmo e o agora .da presença carnal posição das cores, tainbém fla voz, no timbre e na vocalização se arti<;ula wna
do corpo tômatn a frente do /ógos. Chega-sê 'a uina abertura e a urna-dispersão negatividade no sentido de uma rejeição do imperativo lógico-lingüístico de
do lógos de tal maneira q_ue não mais necessariamente se comunica um signifi­ identidade, a qual {constitutiva do díscurso poético dos modernos.3 No teatro
cado de A (palco) para n (espectador), mas dá-se por meio da linguagem uma radical não se afirma nem se rejeita esta ou aquela posição; antes, o pi·óp1:io po-
transmissão e uma ligação "mágicas': especificamente teatrais. Artaud foi quem sidonar-se permanece em aberto. Desse modo, a palavra se constitui em toda a
primeiro concebeu essa noção. No entanto, já para ele não se tratava da simples sua amplitude e volume como sonoridade e como u_m "dirigir-se a': como sig-
alternativa "a favor ou contra o teatro", mas de uma mudança da hierarquia: ····•·· · · ··· nifiç;ado ��pelo ("Zú:sprache''. nos termos d_e Heidegger). Em um tal processo
abertura do texto, de sua lógica e de sua arquitetura opressiva, a fim de recon­ de significação, passando por todas as modulações do lógos, o que se dá não
quistar para o teatro sua "dimensão de acontecimento" (Derrida). No "Segundo é sua destruição, mas sua desconstrução poética - aqui, teatral. Ness� sentido,
manifesto do teatro da crueldade" está escrito: ", .. les mots seron pris daiJs UIT pode-se dizer que o teatro se torna "chora-grafia": desconstrução do discurso
sensJncantatoire, vn1iment magique - pour leurforme, leu.rs émanations sensibles, centrado no sentido e tnvençãg de um espaço que se subtrai à lei do tl!los e da
e{ non p/us seulement pour leur sens". 2 Kristeva observou a esse respeito que no unidade. Por isso, o status do texto no novo teatro deve ser 'àêsêrito cÓm os
Timeu Platão desenvolveu a nçição de um "espaço'! que deveria tornar possív�_l conc!!itos de desconstrução e polilogia. Assim como todos os elementos do tea-
pensar "intuitivamente" um paradoxo insolúvel do ponto de vista lógico: t;J'Ôe tro, a linguagem pa�sa P.ºf.��a dl::���mantiz11ção. O que se vis_a não é diálogo,
pensar o ente ao nJesmo tempo como devir. Desse modo, haveria origin,a-lmente mas multiplicidade de vozes, "polílogo''.4 P;�tinto, a desagregação do sentido
um "espaço" receptivo, acolhedor (com conotação ma!_emal), lnapre·;nsível do não é por su� vez destituída de sentido. Ela parodia, P.Or exemplo, a violência
ponto de vista lógico, em cujo seio se diferenciaria o lógo/côm:f�as oposiçõe� da colagem de lirigt1agens..4ª .�!dia, que. se mostra como a versão moderna da
de significante e significado, ouvir e ver,- espaço e tempo etc, Esse "espaço" se linguagem "encrática':�da ling�a·g���-dq podei-'e dãide-Ologia .-- ·- --
. .. .. .
chama "chora''. A chora é algo como a antecâmara e ao mesmo tempo a infra­
estrutura oculta do lógos da linguagem. Ela permanece em contraposição ao Poética da pertu�b'açij�
lógos. Corrio ritmo e prazer com o som, ela está.presente em todas as linguas na
qualidade de sua "poesia''. Kristeva qualifica essa dimensão da chora em todos Uma história do novo teat��-e· n�esmo do teatro moderno deveria. ser es­
os processos qe significação como semiótica (por distinção com a simbólica). crita cômô a ·história da pert�rbação recíproca de texto .e cena. Por melo da
_
presença da linguagem, a passagéni do. visual é interrompida. Como diretor,
Heiner Müller trabalha deliber�damente com a presença ciÕ.te."<to (só aparen-
2 Antonln Artaud, "Zweites Manifé�t des n1eaters der Grausamkeit': in Le Thétltre ct son do11-
. ''
ble. Paris, 1964 (1933 ), p. 189. ["..� as palavras serão consideradas num sentido encantat6rio, ·,
verdadeiramente m4gko - p or suas formas, suas emana ções sensíveis, e não somente por 3 Ver Julia Kristeva, Die Revolution ��r ppetische1i Spraihe. Frankfurt nm Main, 1978.
'
seus sentidos" (na tradu ção de Teixe jra Coelho em O teatro e se11 ·du plo. São Paulo: Max 4 Cf. idem, Polylogue. Paris, l977�· - i ·

Limonad, 1984, p. 157).] , Roland Barthes, Díe Lust.am Text. 'Frankf�rt am Main, 1974 1 p. 6:i.. 247
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temente incOrP,óreo) como Uffi: cpntraponto a céna te �tral. Nos ensaios para a às vezes mo1�stros com vária$ cabeças e braços, [ ... ] às vezes apenas um
{ ...]
sua encenação de Harnlet-móquina [Hamletrnasi;hine]; �obert Wilson decla­
(
componente'de uma complicada maquinaria corpotal; às vezes a 'sombr
a' pro-
rou que� texto de Müller deve "perturbar" sú��)magens, Pina Bausch abala a jetada de um personagem adquire uma surreal vida próprla''.6 O espaço
irreal
percepção da dança por meio de a�1to-apresentações verbais dos dançarinos evocado no texto de Kafka . encont
ra correspondências em caixas reversLveis,
, ou da denominação dos procedimentos·quetêrri lugar no palco naquele mo­ paredes giratórias e escadas íngremes, na alter_nância de jogo de sombra
s e pre­
niento. A admissão de modos de falar aparentemente "inapropdados': não­ sença corporal; espaços internos e externos se interpenetram como no
texto de
.. profissionais e mesmo anôtnalos tornou-se regrà·,e;m grnpôs independentes Kafka. Ainda que apen�s fragmentos do texto apareçam na encenação, essa
'
ou mesmo nó caso de diretores como Zadek e Schleef-.A coerência estética tica recria precisamente, segundo a concepção de vários críticos, uma
�sté­
atmos­
da impressão de quadro. é s�crifi�ada_ en1Javor de um choque de-percepção fera "kafkJana''. Aqui o teatro não interpreta .figuras e tramas de um texto;
antes,
lingüístico. As te�1ativas articula sua linguagem comtrrealidade estranha e perturbadora em
-. . ...... ·de
· · -·
deixar a· es�;it� e a leitura à vontade no teatro
' un1 palco
certamente são resultado da ousêã ·de ·e:-..-posiçãó. aJ!!ô?oma das vozes, mas que se deixa inspirar por sua slngularidàde,
também operam no sentido dessa poética teatral da perturbação. El Lissitzky --
_.,,... . .......
experimentou exatamente a equiparação de espaço da escrita e espaço teatral. Linguagem �orno objeto de exposição
Nessa-perspe_ctiv�, també111 ;pàtecen\ sóo uma. nov.aluz as tese$ de Brecht ,/
.
sobre a "literaljzação" do teatro, desenvolvidas já nos anos 1920: embora com O plincíplo da exposição apreende o material lingüístico em conjunto
com os
outras intenções, elas igualmente visam a presença do texto escrito como in­ corpos, o gestual e as vozes, contrapondo-se à função representativa da
lin­
terrupção do�·imagens cênitas auto-suficientes. . - guagem no teatro, Em vez de representaçiío de conteúdos lingi.ilstlcos orien­
Um exemplo interess�nte da adaptação teatral de textos literários é dado tada pelo texto, prevalece u;;i� "disposição" de sons, palavras, frases
e resso­
pelas encenações de Giórgio Barberio Corsetti - um dos destaques do teatro de nâncias conduzida pela composição cênica e por uma dramaturgià visual
que
vanguarda italiano - a partir de Kafka. Também sua tese é de que o teatro precisa pouco se pautam pelo "sentido''. A ruptura entre o ser e o significado
tem um
do texto como corpo estranho, como "mundo exterior ao palco': Just. rurunte t �fei:o de choque: com toda a insistência de uma significação s�gerida,
algo é
porque o teatro amplia ·cada·vez mais seus limites com o récúrso a truques ópt ·- · · -· exposto, mas em seguida não se permite reconhecer o significado esperad
o.
· cos e à combinação de vídeo, projeções e presença ao vivo, não pode se perder A idéia de uma exposição de linguagem paréce paradoxal. Contudo, pelo
·,na contínua autotematização da ópsis [visão], de forma que precisa se referir ao menos des�e os textos teatrais de Gertrude Stein tem-se o exemplo de como
· texto como qualidade de resistência. Corsetti não busca de modo algum sim­ a linguagem perde o direcionamento teleológico e a temporalidade imanen
­
plesmente ilustrar o texto de uma maneira "moderna"; antes, desenvolve uma tes e pode ser equiparada a um objeto em exposição por ineio de técnica
s de
linguagem gestual paralela ao texto. A partir de improvisações desdobram-se variação repctlliva, de desagregaçãd' de conexões semânticas imediatament
e
gestos pessoais que procuram um eco; os atores respondem a determinadas evidentes, de arranjos formais segundo princípios sintáticos ou musica
is (si­
partes do texto conforme seus padrões de reação individuais. Nessa prática, militude sonora, aliteração, analogias rítmicas),
êorsetti remete expressamente às tradições de Meyerhold e Grotowski e do A autonomização da linguagem e da fala pode assumir diversas conngu­
Living Theatre. Os atores não corporificam personagens definidos. Um crítico rações. Muitas vezes chega a uma dissolução de toda coerência estilfat.icã�
. _,,,,,.
assim descreve a versão de Corsetti para "Descrição de uma luta" ["Beschrei­
bung_ eines Kampfes"]: "Às vezes os três atores são um. sõ..e mesmo personagem, 6 Dietmar Polaczek, ln Fra11kf11rter A//gemeine Zeftting, 03/02/1992. 249
lógica. Com freqüência, o desgaste e a depreciação da linguagem em seu uso Música múltilfngüe
cotfcfi�no são contrapostos. a u�1a estética "abstrata" da materialidade da pa­
lavra. De modo similar aos objetos do dia-a-dia em Ducbamp, isso pode ser Ao lado da colagem e ela montagem, o princípio do poliglotismo se mostra
considerado como ''objeto encoJ1tradó''. Nas montagens de Wilsoh, colagens onipresente no teatro pós-dramático. Textos teatrais multilíngües desman­
de diálogos fragmeiltados e clichês descont�xtualizados �e juntam a fluxos telam a unidade das línguas nacionais, coroo nos trabalhos de Heiner Goeb­
verbais puramente formalistas ("I was sitting on my patio thís .guy_JJppeared _bels. Ein Cães romanos [Romische Hunde] há uma colagem de spirituals, de
I thought l was hallucinatingl I was walking in an alley/ you are beginning to textos de Hei11er Müller em alemão, de William Faulkner �m inglês e de uma
look a little strange to mel J'm going to meet him outside/ have you been living passagem do Horácio de Co.rneille em alexandrinos declamados em francês
here longl no just a few days/ would you fiice to come inl sure... '').7 Ou então os (pela atriz Cathérine Jauminaux). Embora os versos sejam mais cantados do
elementos da Jii)guage1n são isolados e a construção lingfüstica é desmontada, que recitados, a fala constantemente passa de uma maravilhosa perfeição a
como nas "peças faladas" de Peter Handke. µ� balbucio e um .tuído fragmentários. Em Ou o desem·barque desastroso, o
Em textos acústicos - peças radiofônicas de Beckett, Cage, Henry Chopin texto, ralãâõ"em francês ou alemão, nas versões com os atores André Wilms e
e Mayrõcker, entre outros-,· o que está em Jogo é a variedade das formas sob Ernst Stõtzner [ Ou le débarquement désastreux e Oder die glück/ose Landung],
as quais as vozes, a sonoridade e o ritmo aparecetn na mídia do rádio._A téc­ resp�ctivame.úte, é combinado, entre outras coisas, com música africana. O
niç.a radiofônica isola o som dos corpós visíveis..e lhe confere urna qualidade teatro afirma um poliglotismo em diversos níveis, que deixain ludicamente
autônpma, bem como uma surpreendente presença sensorial: "Justamente ·e
manifestas não s6 as lacunas, as descontinuidades os·contrastes-nã_o resolvi­
q distanciamento d.as voze� .em relação aos corpos [ ... ] pode aproximar os dos, como também a falta de jeito e a perda de controle.
ouvintes dos corpos, o corpo dos ouvintes''.ª Uma outra variante da exposição _ Ê certo que_ o uso de várias línguas em �ma mesma montagl{T!J1:�qüente­
de estruturas lingüísticas é o estranhamento que Ernst Jandl alcanÇ�};l é� sua mente tem a ver éorri as·conclTçõe:S õa ptódu�ãõ:-mqitos dos trabalhos t��trais
"ópera falada" A partir do estranho [Aus der Fremd:.l ao transp�dts declara- renomados só podem ser financiados por meio de co-produções internacio­
ções das dramatis personae para o discurso indireto, pr'oi:luzíndo assim uma nais, de modo que q1:1�s!ões inteiramente pragmáticas levam à adoção das
peculiar forma mista de narrativa, discurso dramático e autodistanciamento. línguas dos países partlcip�es. Todav1.r, o-poliglotismQ_.t,imbém �em causas
·
Se a partir da frase ''Peço:lhe 'que me passe o jornal" o que se diz no palco é eminentemen!e artísticas. Nesse seo.ti.90, (o sqciólo.gQ..Q.�lgª] R;di Laàmans
t<Ele pede a ela que lhe passe o jornal': isso a principio tem apenas um efeito observou que no êas� do trabalho teatral de Jan Lau�ers não '·é suficiente
engraçado. No entanto, como nos habituamos rapidamente, o que fica cof110 constatar seu m{tltilingüfsil).-?- Essa circunstância não explicaria por qúe seus
percepção duradoura é a realidade da linguagem separada dofalante.9 intérpretes ora·precisam us-ai'aprópria Hngua, ora também uma língua es­
trangeira, de modo q�e o tema "dificuldade da comunicação lingüística" ·não
7 Robert Wilson, ln Performin t Arts Jo11rnal, n. 11/12, 1979 , p. 210. ["cu estava sentado no n;eu se põe apenas para o espectador. Lauwers �stabelece um espaço comum·dos
quintal esse cara apareceu eu pensei que estava delirando/ eu estava andando num beco/ problemas de linguagem, no q�al tanto os atores quantb..trs· espectadores
você está começ ando a me parecer um pouco estranho/ vou encontrá-lo lá fora/ você está experimentam as barr,eiras da êohipreensão lingüística. Se é procedente a
morando a qui há muito.tempo/ não só há alguns dias/ você gostaría de entrar/ claro..:')
máxima de q-ú�-ó.S"poetas são p�ssoas qu� tê1:�· �liculdades com a ling'uagem,
·S Petra M, Me yer, Ged_iichnisku/tur des Hiirens. Medie11lransformation von Beck � tt über Ca ge
então fio teatro pós-dramático trata-sê·aé u1na experiência poética dós blo-
1

bis Mayriicker. Düsseldorf/Bonn, 1997 , pp. 120-21.


9 Cf. Helga Fintcr, ln Theater He11te, Janeiro de 1982, p. 49. queios lingüísticos.· 1
251
'·r\'··
, 1

f
Ato de fala como acontecimento
'
- �-· .
No teatro, o pr6prio ató físico da locução 09- leitura do'texto pode se tornar
consciénte como uin procedin?,ento nada óbvl�. Nesse princípio d� co1?preen­
der o ato êle fala como ação destaca�se -um rompimento importante para o
teatro.pós-dramático: ele se subtrai à percepção usual de que a· pal_avra per­
tence ao falante, Longe de ser organicamente l'ne_rente a seu corpo, ela perma­
nece con.10 um corpo estranho, Nas lacunas da li;gu�gen'l insinuam-se seus
' �
antagonistas e duplos: gagueiras, omissões, sotaques, pronú.v, cias.defeituosas Texto, voz, sujeito
es�andetn ô �onflitõ entiec6rpo e palavrii:-Ao passo que grup�s de vanguarda
renunciam à pertêiçaocio·discuFSQ,..trab.alh,_qs teatrais feitos intencionalmente
com leigos não só pern:litem como propõem dl�çõ�s não-profissionàis, valo­ .•., ..........
rizando a realldade concreta das sonoridades e dos dialetos - a heterogenei­
dade -�as com)?etências lingllisticas dos ato_res é ���itida. Com isso se dá vi­ ,/
talidade a úm Jnipulso antiprofissional das vanguardas que já motivara Brecht Na medida em que se transmite uma experiência d.e cisão por meio da estra-
a buscar caminhos para incluir leigos e diletantes na atividade teatral. A opo­ nheza de um texto lído ou falado em relação ao corpo, vem à tona a qualidade
sição à perfeiçâo-artesaI?,?l deriva tafübém da intenção implícita ou explícita­ medial da pessoa que lê ou fala. Henry Sayre notou nas leituras-performances
mente política, e não apenas estético-teatral, de resistir à constante ameaça de de Kat�y Aéker como ela se convertia como que num médium dos ideologe­
enrijecimento do teatro mediante um perfeccionismo profissional estéríl. mas e mitos sociais que ressoavam através de seu corpó. 1 Poder-se-ia levar
adiante essa idéia com a sugestão de que nesse caso, assim-como em certas
performances feministas, os performers fazem de si tnesmos "vitimas sacrifi­
ciais": eles articulam e literalmente padecem textos que lhes são hostis, e com
isso manifestam para o espectador a discrepância cultural que separa seus
desejos subjetivos das redes repressivas de pe11samento e linguagem da sua
sociedade. Um outro exemplo de percepção diferenciada em face da separa­
ção de physís e significado se encontra no teatro da Societas Raffaello Sanzio:
nó caso dê"imr-âtor que foi operado na laringe e dispõe apeilas de uma voz
mecânica, que soa maquinal e metálica, o que é dito e a voz se distanciam
de maneira inquietante. O ato de fala se converte t'lO que há de menos óbvio,
conotando ao 111esmo tempo a terrível ameaça_de fa}har. Na leitura perfonná-

_ _,,,,.,../
Henry Sayte, apud Nlls Talbert, Szenisches Schreibe11. 1heatralititl in den 'tex/en von Kathy
252 Acker. Giesseil, 1992, pp. 46-47 (mimeo.), ·253
tica da ntada realizada pelo grupo �gelus Novus, a mera duração do evento de referência da "peça-paisagem''. Texto, voz e ruído se misturam na idéia de
(2;boras) implicava que após um certo tempo o universo sonoro da locução uma paisagem sonora - evidentemente em um sentido diferente daqµele do
parecia desligar-se das pessoas q\.le estavam lendo: as palavras como que flutua­ realismo cênico clássico. É célebre a versão naturalista de paisagens acústicas
vam por si mesmas no espaço, assim como o som de certas taças usàdas por IJas encenações de Tchekhov por Stanislávski, que intensificou com elabora­
monges tibetanos quando se roçam suas bordas. das sonoridades de fundo (ruídos de grilos, sapos, pássaros etc.) a realidade
Lacan sustentou que a voz está eq.tre os objetos fetichísticos do desejo, de­ do espaço ficcional delimitado por um palco "auditivo" - e com isso obteve
nominados por ele como "objetos para". O teatro apresenta a voz como ob­ uma crítica sarcástica do autor. 2
jeto de uma percepção erótica - o que se torna ainda n1ais tenso quando essa Em contrapartida, a "p�isagem sonora" pós-dramática de Wilson não cons­ ·I
percepção contrasta de modo tão patente com o terror do conteúdo de uma titui realidade alguma, mas produz um espaço de asso.dações na consciência
descrição de combate, como no caso da leitura da !Uada. A relação entre es­ do espectador. A "cena auditiva" em torno da imagem teatral abre referências
critura e texto lido em cena no novo teatro seria um tema de estudo à parte. ''.!��ertextuais" ern todas as direções ou complementa o material cênico com te­
Mallarmé queria fazer do texto um objeto que desdobrasse seu próprio "espa­ mas sonõi:õs musicais ou ruídos "concretos''. Nesse contexto, é esclarecedora a
çamento': e com isso uma corporeidade. "Um lance de dados" deixa as páginas declaração feita por Wilson de que seu ideal de teatro é uma junção de cinema
aparecerem como um palco das palavras. No início da década de 1980 verifi­ mudo e peça radiofônica. Trata-se aqui da abertura do quadro: para cada sen­
cou-se uma ampla tendência a separar radical�7nte o texto e a situação do tido - a visão imaginada na peça radiofônica e a audição imaginada no ci­
ator, fazendo de cada qual uma experiência teatral autônoma. Na Bélgica, por nema mudo - abre-se um espaço sem limites. Quando se vê (cinema mudo), o
exemplo, Jan Decorte encenou textos de Heiner Müller, mas também o Tasso espaço auditivo não tem limites; quando se ouve (peça radiofônica), o espaço
'
de Goethe, como leituras cênicas. Desde então, à recorrência de textos n}?iS visual não tem limites. No cinema iµudo fantasiam-se vozes dás1 _ql,!�is se vê
completos só fez aumentar. Luk Perceval, um dos revolucionários do ;e·atro apenas a realização físicà: 6ocas, róstôs, expressões dos ouvintes etç. Na peça
desse período, realizou no final dos anos 1990 uma encenação de v�rias horas radiofônica imaginam-se rostos, formas e corpos para vozes íncorpóreas. O
das histórias de Shakespeare. Contudo, também nesse-ca�� _§.e ·évitava uma que está em questão é o fato de que o espaço cênico ê o espaço sonoro circun­
relação "naturalistà' entre texto e enc�nação pôr meio de traduções que cau­ dante, ligado a ele, criat_n.�-terceiro espaço;que engloba a..c.en�. e o théatron.
savam estranhamento. O texto.aparece mais recitaçlo, sendo apresentado mais O espaço da imaginação, que toma p .l.l,lgai; çio_ espaçq ç!a ifnagem.-·deve"iiupri-
, ' .
como material lingüístico alheio e estranho do que como texto para papéis. mir a contraposição de platéia e cena em favor de um espaço de associações
que abranja ambas a pa�t1r,1a dramaturgia visual e da paisagem sonora:.
Paisagem textual, paisagem sonora ·,.
· · Teatro das vozes
Se procuramos um conceito que apreenda as novas formas de representação
do texto, ele precisa englobar a noção de "espaçamento" no sentido em que a .De maneira engenhosa, Friedrlch'Kittler associou as categõi'làs·da teoria laca­
concebe Derrlda: a materialidade, o decurso temporal, a extensão espacial, niana com os "sistemas. de registro" 'técnicos da modernidade: a categoria do
a perda da teleologia e da identidade própria. Optamos pelo conceito de pai­ simbólico (em função do encadeamento descontínuo de significantes'indivi-
sagem textual, porque ele designa a conexão da ling�agem teatral pós-dramá­ ' .
254 tica com as novas dramaturgias do visual e ao mesmo tempo mantém o ponto 2 Ver Jean-Jacques Roubi�e, :;,idtre et mise �n scêne :880-1980, Paris, 1980, pp. 166 e 168. 255
�-
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duais) com à escrita impressa; a do' imaginário-(e111 função do reconhecimento O teatro pós-dramático opera uma peculiarização mas sobretudo uma dis­
da forma) com o cinemá; a â� real (em funçã9 de �eu statiis .pré-semântico) seminação das vozes, o_ que de modo algum se limita . aos efeitos sonoros ele­
com a fonografia,3 o real - portanto a co.i;p,oreidade,ría medida em que ela trônicos ou outros recursos técnicos. Encontram 0se a.modulação e a gradação
não é codificada pela desejo. (�.struturado pelcúmaginário) ou pelo significado da voz solo, como nos 1i1on6logos de Ju'tta Lampe, Edith Clever ou Jeanne
(organizado simbolicamente) .-.é. posto em jogo pela presença do corpo, uma Moreau; a concentração coral e a dessacralização da pal_avra; a exposição da
·vez que a presença física sempre mina todo ordenamento (verbal ou não-ver­ pltysis das vozes no grito, no getnido, nas vociferações animalescas, na sua es­
bal) e toda significação. A realidade cotporal �r,ª
_um déficit de sentido: o que pacia_lização arquitetôn.ica. Sirnultaneidade'. poliglotismo, coro e "árias-gritos"
quer que apareça no palco em termos de significado'é-��!11pre redimensionado (Wilson) .contribuem para que o texto se torne um libreto semantlcameí1te
e� sua consistência pela corporeidade; o sentido é arrancadQno turbilhão pré- irrelevante e um espaço s�noro sem limites precisos - basta pensar em Schleef,
conceitual .da "certeza sensível" que 'a p�rffr de cada disposição estável (tese) Fab·re e Lauwers em grupos·teatrnls como Maatschappij Úíscordía, Hollan­
de um texto des.taê:ã o· lãdo·performatiy,a, seu. c�!!!:!' de posicionamento des­ dia, La Fura dels Baus e Théâtre du Ràâeau. Desfazem-se as fronteiras entre
cuidado de toda verdade, .sua profunda inconsistênciã. a linguagem c01iür-expre.ssão da presença_ viva e a linguagem como n�aterial
Nesse deslocamento do sentido para d sensório, inerente ao processo tea­ lingülsticç, preestabelecido. A realidade das vozes se torna ela .1)1esma um tema.
tral, _é o fenômeno das vozes·vivas que n1anife�t;i._ mais diretamente a pre­ A vo; .ê arranjada e ritmada segundo padrões formal-musicais ou arquitetô­
sença e o··po�sível predomúlio do sensório no próprio sentido, bem como nicos, manipulada por meio de repetição; distorção eletrônlca e sobreposição
o cerne da situação teatral: a co-presença de atores vivos. Em razão de uma até o ponto da incompreensibilidade, exposta como ruido, grito etc., ex�urida
ilusão constitutiva da çultun européia, a voz é sentida cortlo uma irradia­ pela mistura, separada dos personagens até tornar-se incorpórea.
ção direta da alma e do espírít� da "pessoa': e o falante teatral é a pessoa
presente por excelência, metMora do "outrb" (no sentido de Emmanuel Levi­ Sujeito/disseminação
nas). Ele faz apelo a uma "resposta/responsabilidade" do espectador, e não a
uma hermenêutica. O especta·dor se encontra exposto à presença__"d�_!l��tuída A presença de um corpo humano no palco estrutura o espaçó visual da cena
de sentido" daquele falante como uma questão cUrigida· a ele, àque.le olhàr.. teatr.àl. Anatogamente, a voz humana ocupa o ponto mais alto de uma hierar­
que se volta para ele como entidade corpórea. Ele não pode mais reduzir quia do universo dos ruídos no teatro ( também no cinema _os outros ruídos_
aquela voz a uma materialização de um lógos passado, ausente, à mera voz são diminuídos ou eliminados artificialmente para destacar a voz portadora
dos personagens incorporados, como no caso das incorporações de papéis de significado como objeto de fetiche). O lugar privilegiado da voz humana
dramáticos. Ao passo que a estética teatral dramática oferece a duràção ideal sempre foi assegurado no teatro. Contribuía para isso o cordão sanitário de
da aparência - o drama conserva, faz perdurar o sentido do discurso -, o · silêncio equletude em torno do altar sagrado do palcô: anteparos acústicos,
novo teatro assume o esmorecimento ao conceber o processo teátral não luzes vermelhas com a advertência "Silênclo durante a peça'; o comporta­
mais cçimo "obra", mas como "acontecimento" - multidimensional, espaço­ mento comedido do público (que só se estabeleceu regularmente a partir dq
temporal, audiovisual. século xvm). Tradicionalmente, a sonoridade voc�l como aura em torno _de
um corpo, cuja verdade é sua palavra, prométia 1�ada menos qµe a ��_termi­
3 Friedrich Kittler, Gramophon, FUm, Typewriter. Berlim, 1986, pp. 27-28. Ver Jacques Lacau, nação da identidade subjetiva do hoinem.'Por isso, o jogo tecnológico que
Die vier Gl'Undbegriffe der Psychoanalyse. Weinheim/Bcrli'?•: IJ87, p.i 204. desagrega a u.t1idade corporal e vocal do ator não é nenhuin. jogo infantil: 257
a voz deti1rpada eletronicamente _acaba com. o privilégio da identidade, Se e outras vozes, alcançar uma pluralidade sem um centro fixável, um destro­
tracliéio�almente a voz era definida como o instr�mento mais importante da namento do eu - o sujeito como objeto, como vítima sacrificial do impulso
atuação, agora se trata converter o corpo inteiro em voz. que o atravessa, não em sua identidade mais pessoal.4 Quando a voz deixa
O escândalo do corpo falante é a dissolução dos limites do corpo. O vo­ audível suas articulações sonoras transversalmente à expressão de sentido in-
lume do corpo exalante se expande p_ara além dos limites de sua circunscri­ dividualizada, revela-se aquela artimanha em que ela, pa�·a falar com Barthes,
ção sonora. O que tem início com o inspirar e expirar - o fato �-qt1� o corpo ''.investiga como a linguagem trabalha e se identifica com esse trabalho[ ... ]: a
se torna vibração e instrumento sonoro - prossegue com a voz. O som cria dicção da linguagem''.5
em torno do corpo t11J1a esfera liminar, uma paisagem fonética: ainda corpo,
já espaço do campo cênico,. recoberto e novamente abandonado pelas on­ locus agendi, locus parlandi, semiótica auditiva
das de som e energia. A experiência explicita do elemento auditivo tem lugar
quando se desagrega o conjunto coeso do procedimento teatro, quando s�tn A relação entre corpo e voz também se tornou um campo de atuação da esté­
e voz são organizados em separado e de maneira reconhecível em uma lógica ti�;- teâtral"efetrônica, compreendendo, entre outros, os seguintes elementos:
própria, quando ô espaço-corpo, o espaço cê.nico e o espaço do espectador dublagem, que une uma voz oculta à imagem do corpo; playback, no qual o
são cindidos, redistribuídos e reunidos de uma nova maneira pelo som e pela corpo se encaixa mimeticamente numa voz oculta, da qual logo "se apropria";
voz, pela palavra e pelo ruído. Entre o corpo e �$eometria da cena, o espaço produção de um espaço sonoro, no qual o locus agend( e o locus parlcmdi são
so�óro da voz é o inconsciente do teatro falado. separados; paisagem so,;_or.a, em que vozes sem corpo, muitas_ve�es em off,
O teatro do drama e da mise-en-scene do significado do texto não permite imiscuem-se e interferem em outras vozes (ao vivo), que habitam os corpos,
. ' '
que a semiótica auditiva se afirme como elem�nto autônomo: reduzid�,,ao e em vozes pré-gravadas dos próprios atores. Em Robert WPs'on, especial-
transporte do sentido, a palavra é despojada de sua possibilidade de_c;iréuns­ mente, há um cisão dó" /õcüs agend/�·do ·/ocusparlçi ndi, com o qu� ·é;ba1àaa a
crever um horizo11te sonoro que só pode ser construído no teatr0.' O teatro percepção de uma persona unitária. A tecnologia de reprodução vocal torna
pós-dramático redescobre a voz po·r meio dos dispõsitivos .eletrónicos e cor­ possível que a voz do_ ator vistó no palco pareça vir ae qualquer parte do tea­
porais. Ao fazer da presença da voz a. base de uma semiótica aµditiva, ele a tro. Assim, a voz é sit�adãcõmo elemento--no .esp.í\Ç2.1��1a determinação
�epara do significado, compreende a criação de signos como gesticulação da que não é mais determ_inada por um sujeito autônomo,-·se�hêii de-sua.. xoz,
voz, escuta o eco nas abóbadas dps suntuosos templos literários. Trata-se aqui mas onde o espàço sonoro e uma est;�tu�� auditiva-clí��m �ntes de tuçlo q se-.
de uma audioanálise do incpnsciente teatral: por trás das palavras; o grito do guinte: não sou\u quetti!Qi_ mas algo, e por meio/na qualidade d� u� ''agen­
_
corpo; por trás dos sujeitos, os significantes vocais e.o:: que eles se apóiam, A ciamento" maquinal complexo.(peleuze),
desumanização aí implicada liber� novas linhas de fuga e correntes de ener­ O teatro "cinem�tográfico" de John Jesurun apresenta uma variante da
gia. Resgata-se assim aquilo que Ariaud pode ter pretendldo em 1947 na le­ nova maneira de lidar com a voz e o som. A possibilidade de que a sono­
gendária transmissão radiofônica de "Para acabar com o Julgamento de Deus" ridade de.fina imagem, espaço e _cena pol' linhas de força--é..inscrita J'IO es­
["Pour en finir avec le jugement de Dieu"], como uma espécie de modelo paço cênico organizado.optica1:nente. A propagação e o direcionamento das
em miniatura do "te�tro da-crueldade": medi�nte a distorção com timbres e '
freqüênciâs mais altos, depois novamente em àltu�as "h�manas'; mediante a • l -
Ver Helga Flnter, Der S!fbje.k/lva-Ra'um: Ti!bÍngen, 1,99 0, pp. 127-28,
4
díversificação das vozes corporais individuais e sua co':1:binação com ruídos 5 Rolaí1d Barthes, Das Rauhe der Stimme. Berlim, 19�9 1 pp.19-20. 259

sonoridades constroem um agenciamento com as estruturas visuais como erotismo, o interesse, experimentand�-se portanto como olhar-vídeo. Assim,
componeiltes de wna máquina que articula corpos, \!ll�gens-e sons. A obra a audição co.nstr6i e insere um outro espaço no espaço 6ptico: campos de
de Jesurun pode ser descrità no contexto ci'o�p.aradigm:a sobre o qual Helga referência, linhas que ultrap�ssam as barreiras. Enquanto as imagens dividem
Finter afirma: a presença, na medida que permeiam o agora do que acontece no palco com
tempos/imagens inteiramente diferentes da tela de vídeo, a linguagem volta a
A luta frontal contra a linguagem cede a um jog_o astuto com as linguagens, cujos enca_ixar momentanea�énte no jogo de perguntas e respostas os fragmentos .
elementos são reorganizados como segmentos'. N;·é'poca da eletrônica e das mídias, da imagem despedaçada na presença de uma imaginação.
soltan\-se dos murmúrios sombrios das glossolalias de :'-.A:ttaud vozes grotescas e
A voz que emana dos amplificadores carece do timbre corpóreo que. ca­
·trãgicômlcas que eman;i_r:n da experiência �à pluralidade das falas e da-relatividade racteriza a voz humana natural. Ao mesmo tempo, porém, a voz do espaço
d�;··díscúrsos,.tajs como veiculados na cidade de Nova York, por e.xemplo.6
- -,� ... -·. - . --·-' - ..... . - . �
. ---.
·, eletrônico se torna lugar dõ impensado trans-subJetivo, põe a lmaginaç.ão
no rastro. A imagem é retocada/reescrita pelas palavràs. A partir dos frag­
No teatro desse porto-riquenho radicado etn Nova York o palco se toma mentos do sentido; à:-reeepção fantasia constructos imaginários. Para além
um ambiente de estruturas l�minosas e texturas auditivas. Desde o primeiro do sentimento peidido, justamente no maquinismo formula-se de súbito, no
momento põe-se em funcionamento uma máquina·textual de vozes, palavras pon,tó'de ruptma, a nostalgia da colnunicação, ó sofrimento pela impossibili­
e associações que opera em andamento acelerado, com réplicas e transições d,i.'cÍe (dificuldade, espera�ça) de derrubar o murô, a muralha das linguagens
bruscas, praticamente sem pausa. Fragmentos dê um enredo se tornam per­ intraduzíveis. Um momento mais "humano" desponta: o sujeito integral é
ceptíveis �-�;;;··�ampo indeter�inaâo no qual se descortinam diálogos sin­ momentaneamente encont��?-º quando o olhar local1z9u a voz e a devolveu
gulares, discussões, declaràções de amor. Política e vida privada se misturam. ao corpo, fator do hoiném. Em seguida volta.a prevalecer o mecanismo de
O tema de Jesurun, a comunicação - as estranhezas da linguagem-, exprime­ sonoridades, reações, partículas elétricas, trilhas de imagens e de sons.
se mais pela forma do que pelo conteúdo. Desde que se tornou possível separar a voz do falar1te' via gramofone ou
Tàmbém no teatro de Jesurun as vozes freqüentemente são--captad,!� ___ . ···-· telefone, e _mais ainda com a tecnologia eletrônica, emergiu uma realidade
por microfones ocultõs e·ressoam alhures. As frases voam para lá e para ca, de vozes "sem lugar" - que também podem ser chamadas de vozes "em sus­
·. abrindo vias e criam campos que interferem nos dados visuais. A rapidez ma­ penso': conforme a expressão que Derrida empregou em Cartão postal [La
. quinai das falas e das transições faz as palavras funciônarem. como setas Ou Carte posta/e] para a carta que não alcançou o destinatário. Elas já não po­
· bolas arren)essadas entre pessoas e imagens num ritn'l.o tão frenético quanto o dem ser subordinadas sem mais às figuras, e por meio da arquitetura musiéal
das comédias de pastelão. Geram-se então linhas de força através da cena ·ob- distanci�� ainda mais dos personagens falantes. Benjan�in falou de ver
servada pelo espectador. Qu�m fala? Quem replica? O ólhar procura. Quem é sem ouvir, e no ensaio sobre "A obra de arte í1a época de sua reprodutibl­
que está falando agora? Divisam-se os lábios que se movimentam, associa-se lidílde técnica" analisou a decomposição e a separação das percepções sen­
a voz com à imagem, junta-se o que está partido, perde-se de novo a conexão. ·soriais. Reciprocamente, o ouvir seín ver se torna uma experiência normal. 7
Uma vez que o olhar vagueia de um lado para o outro entre corpos e imagens O que ocorre quando a sonoridade corporal da 'VOZ aparece cada vez mais
de vídeo, reflete-se a si mestno para experimentar onde residem ó fasdtüo, ó desprendida de qualquer corp?reid�de? E�tre outras coisas, isto,:.,t0divoz

260 6 Finter (in Theater Hcute), op. cil., p. 49. . -.


'
7 Ver Jacques .Derrida, Spectres de Marx. Paris, 1993. 261
destaca_da·prcvéin do Hades, remete ao oéasó da morte. Diz respeito a isso a
pasf;gem de Proust em que Marcel.fala sobre a pérspectiva de ouvlr a voz de
sua avó ao telefoilá:

Ê ele [o . ser querido), é a sua voz que nos fala, que àli está: Mas como essa voz se
acha longe! Quantas vezes não pudé escut;r senão com angústla,-'cõnio se ante
essa impossibllidade de ver, antes de long·as !ioras de viagem, ,iquela cuja voz es­
tava tão perto de n1eu ouvido, eu fi1elhor sentisse o que há de decepcioilante na
aparência da mais doce aproximação, e a que distância podemos estar das p�ssoas
amadas .(lo momento em que parece que bastaria estenderm�s a mão para retê­
las! Presença real a dessa voz tão próxima na separação efetiva! Mas antecipi ção
i

também de uma separação eterna! Muita v.ez, escµtàndo assim, sem vet, aquela
que me falava de tão longe, me pareceu que ,iquela voz claqiava da.s profundezas
de onde não se sobe, e conheci a ailsiedade que me -�avia de angustia;, um dia,
. quandouma voz voltasse assim (sozinha e não1'ifaJs presá a urn corpo que eu ...... ... "·· ···---...
nunca mais veria) a murmurar em meu ouvido palavras que eµ desejaria beijar de
passagem sobre lábios para sempre e� pó, 8 :/
/
-- ... ···--··· . . --··· .... ···--...___
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11
. -- .
8 Màrcel Proust, A11f der Suclre nach der verlorenen Zeit, Die 11'.'elt der c;, uermantes, Frankfurt ____ •• 1....

am Main, 1967, p. 175, [Aqui, na tradução de Mario Quintana: Em busca do tempo perdido.
262 O cnmi11ho de Gaerma1ltes. 10• ed. São Paulo: Gl!)bo, 1994, p. 120.J ·
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Espaço dramátlcó e espaço pós-dramático
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( Es-paço dramático, centrípeto e centrífugo
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De modo geral, pode-se dizer que o teatro dramático precisa privilegiar um
.:i espaço ''.mediano''. ó espaçô·i�enso e o espaçó nrnito íntimo tendem a se tor0
fiar perigosos para o drama, tanto ílum caso. quahtb no outro à estrutura do
espelhaménto deixa de existir óu.fica em perigo, na fliedi�à em que o quadro
. .,.- ... - ---·-----. .
.. c;ê_nico funciona como um espdho que pel:nite i
ao mundo hoinogêfleô do
ob��rvaçlor reconhecer-se nô tnuhdô fechado do dran\a. Para que haja essa
equivalência e esse espelhái'íle11to - ãinda que eles sejan:1 llus.óriOS ou ideológl­
côs -, são necessários o isolamento, a lndependê�cia e a id�ntidade própria de
ambos os mundos. O processo de identificação depende desse isolamentó para
que haja certeza das linhas divisórias entre a eniissãó e ã recepção dos slgflós.
Um � em que a percepçãú.é doininadà flão pela transtníssão de sig�·
nós e sinais, mas por aquilo que Jerzy Grotowski chamou de "proxinildade
dos organismos vívõs': 1 contraria a llístânda e à abstrà�ão que são essenciais
para o drama . Quando o afastamento entre atores e espettadotés é reduzJdo
de tal maneira que à proximidade física e fisiológica (respira�ão, �,�tósse,

Cf. Jean-Jac qt1es Ronbine. Thétttre e/ mise en scene 1880-1.§80. Ilàrls, 1980, p, 1ó7.
movimentá muscular, espasmos, olhar) se s<:ibrepõe à significação mental, Espaço metonímico
surgé· um espaço de intensa pi11â_mica centrípeta em que o_teatro se torna w11
momento das energias co-vivenciadas, e não n1als dos sígnos transmitidos, Em todas as formas espaciais para além do palco de ficção dramático, o es­
Nesse sentido, nas encenações de Grotowsld o teatro se converte num pro­ pe.êtãdor se torna em alguma medida ativo, converte-se voluntariamente em
cesso quase ritual, uma vez que a participação emocional de quem assiste se co-ator. Na peça K.I., de Crime e castigo, encenada por Kama Ginkas, a atriz
torna constitutiva para o que acontece. O observador acompanha· os atores Oksana Mysina interpreta Katerina Ivanovna, personagem do romance de
com uma tal proximidade que acaba por entrar no círculo encantado da con­ Dostoiévski, nun1·espaço dotado apenas de uns poucos acessórios: ela aborda
vivência orgânicã - o que permanece claratnente distinto 4a participação real, diretamente os espectadores, que são levados pela mão, recebem pedidos de,
que não existe em Grotowski. ajuda e vêem-se assim inseridos na histeria que a atriz forja ludicamente. Tal
Já o espaço de grandes proporções representa uma ameaça para o teatro apàgarnento das fro.nteirãs entre a vivência real e a fictícia tem amplas con-
dramático por seu efeito centrifugo, Pode ser simplesmente o caso de um es- . - -- ·-·-·· ·------seqüêgcias para a compreensão do espaço teatral. ]á que ele deixa de ser um
, paço cujas amplas dimensões suplantan1 e subQrdinam a percepção de todos espaço metafórico-simbólico e se torna um espaço meton{mico, Ao passo que
os outros elementos, como o Estado Olímpico de Berlim em Viagem de inverno a figura de retórica da metáfora destaca uma semelhança (entre navegação e
[Winterr�ise], de Klaus Michael Grüber, ou ainda o d� um espaço que se.sub­ vida em "viagem da viela: com partida/nascimento, caminho, talvez tempes�
trai ao domínio da contemplação mediante encen'llções simultâneas em locais tades/erros e chegada/morte), a da metonímia e .stabelece uma relação e uma
diferentes, como na célebre montagem de Orlando Furioso por Luca Ronconi, equivalência entre duas grandezas ao tomar uma parte.pélõto-do (uma "ca­
que foj apresentada pela primeira vez em 1969 e se tornou um dos primeiros beça esperta) ou ao usar um contexto externo ("Washington d�,smente que.. :').
grandes eventos mundialmente conhecidos daquilo que logo se passou a c;ná­ No sentido dessa relação metonímica ou de contigüidade, pÓdemos chamar
mar de "teatro tot�l''. Aqui, os espectadores tinham de decidir como q.uáiam de metonímico o ·e;p;ç�-�ê�-i�o-êu)a 'cietêrminação principal não é se;vir de
montar a "sua" representação em face das v4rias opç_ões em curqo(além de suporte simbólico para um outro mundo fictício! mas ser ocupado e enfati­
servirem como elemento de "decoração'� quando de rep�;te p�savam a ser. zado como parte e-contb1�1ação do espaço real do teatro.
as árvores de uma floresta que os atores àtravessavam. Assim como em outras �s·
. b teatro dramático, n�-- ;iu;i tábüã·s M··palco significam o mundo,
manifestações do teatro total, pode-se considerar que a despeito da recusa de poderia ser. c?ll'lparado com á perspectiva: tanto no_.sentido técni�Ôquanto
uma configuração cênica llusíonística é celebrado um verdadeiro triunfo da no menta( o,espaço_é aqui janela e símbolo, análogo à realidade "por trás''.
"ilusão" teatral.2 Tal o caso do excepcional espetáculo 1789, do Théâtre du Solei!, Por meio da abstraçã� e-e!� ênfase, ele oferece um equivalente metafórico do
em que a impressão de uma animada feira anual, com grandes massas huma­ mundo que é, por assim dizer, padronizado, à maneira das pinturas renas­
nas, estandes multicoloridos, alaridos e surpresas, combina-se com as cenas centistas concebidas como "janela aberta". Na qualidade de Janela perspét­
representadas. Os estrados cênicos interligados por pranchas e as massas de tica, o teatro dramático é símo·ç,fo: sÚas. tábuas sempre significam o mundo.
espectadores aglomerando-se e dispersando-se por entre eles conferem ao tea­ Quer o drama seja representado em diversos comparÜineiitos de um palco
tro uma atmosfera semelhante· à do circo, mas ao mesmo tempo o tornam o simultâneo, como na·decora_çã� múltipla (décor multiple) renascêntista ou no
equivalente �spac.ial-cênico das ruas e praças da Paris revolucionária. típico espà�?'iinitário (palaiJ à volon!.é) cla;si�istá, quer ele tenha lugar diante
1

do pano de fundo da cepa-barrrSca,� a bem. do acontecimento universal, ou np


266 2 Ibid., p. 114, caJ11po de força de uin meio ·naturàlista que parece determinar de antemã9 267
1,

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�-, 1

.
as ações dos homens, isso tem wna importânciá:;e�undária diante do fato de Por que os q uadros são emoldurados? [ ...) A moldura [ ...] os desprende da natu.­
que o espaço dramático é se�pre símbolo isbladô de um �mndo c01no totali­
. reza· e la é uma janela que dá para u m espaçó inreiramerite difere nte, uma janela
dade, por mais que ele seja mostrado de marieir. a fragm�ntária. para O espíri to, onde a flor pintada não é. mais uma flor que murcha, mas uma
Já no teatro pós-dramático o ·espaço_ se torna uma pa!te do mundo, decerto interpretação de todas as flores. A moldura a coloca fora do tempo. [ ...] O que
. · enfatizada, mas pensada como algo que per'riíàiiece no continuum do real: um uma moldura nos diz? Ela diz: "Olhe para cá; aqui você encontra algo digno de
re .corte delimitado no tempo e n.o espaço, mas ao mésmo tempo conthmação ser visto, algo que e�_tá fora do acaso e da transitoriedade; aqui você encontra o
.. e por isso fragmento da realldade da vida. Nd t�tro. �clássico, o trajeto percor- senti do que dura - não as flores que murcl1am, mas a imagem das flores, ou como
rido por uma atriz no palco significa, como metáfora ·ou.símbolo, um trajeto Já foi dito: 0 se ntido-imagem''.>
fictício - talvez o da área çl9 Cáucaso,atr�vessada por Grucha [em O cfrculo
de giz �àutllsia170,.d,e _B>-�!=_ht_ ]. No espaço que funciona me!oninlicamente, um Essas frases também caradê'rizam o que a môldura rende em prol do teatro
caminho percorrido pelo at�/represeiitã sobretudo-um� referência ao espaço dramático. Em contrapartida, é evid.ente que o teatro pós-dramático difi­
da situação teatral; como parte pelo tbdo, refere-se ao espaço real do palco e, cilmente pod{t�r-üso para molduras, qµe acabam por levar a�· "sentido­
a fortiori, do teatro e do espaço circundante como um todo. ima gem", Em vez d.isso, ele irá privilegiar estratégias própria� de moldúragem
div�rÚ.fic ada, mediante as quais o particular é arrancado do campo unitário
Drama e outrafmolduras qú� a moldura cohstitul ao circunscrevê-lo, Em vez de ser intensificado como
sentido pela totalidade emoldurada, o particular é justamente cortado de sua
O drama foi ·;:1e;de sempre menos emoldurado do que ele mesmo uma mol­ ligaç ão com O todo e assim__�essaltado cm sua constituição sensorial: as mol­
dura. Assim como na pintura o fundo é indispensável para a figura, de modo duragens diversificadas operam de tal modo que o particular é reconduzido a
que ela possà ser destacada, a trama dramática constitui a moldura e o fundo si como ser -assi.Il1 e ser-aqui, como perceptibilldade intensificada,
imprescindíveis a partir dos quais os gestos da linguagem e do corpo ganham
seu sentido. Desse modo, coexistem no teatro a moldura espacial do proscêniq, __
a moldura espiritual da ·encenação e a moldura do processo dramático. Acres­
centa-se a isso a disposição formal, que igualmente funciona como moldura:
�om o primeiro verso, a primeira frase, a primeira entrada em cena, o público

--
se "afina" com uma determinada expectativa lingüística, com uma forma esti­
lística fundamental, cóm uma estétlcà, Assin'l., os acontedmentós são também
emoldurados pela forma."Tudo o que é emoldurado se constitui como contexto
interno e é isolado dà realidade exte'rna como algo especial, significativo, ele­
vado, espiritualizado. Essa é a faculdade da moldura , que é usada por toda esté­
tica teatral, quando ela traz à tona elementos simples e sem significado. A mol­
dura intensifica e concentra a propensão perceptiva de tal maneira que também
o que é cotidiãno se torna interessante. Em seu diário Max Frisch anotou:
\
268 Ma.'< Friscb, Tagebiicher 1946-49. Frankfurt am Main, 1970, p. 65.
Estética espacial pós-dramática

...... .. ·---------

�- A "virada" em torno de 1989


-·-�· ·- -··- - ....

A ef!?_ancipação da sêtniótit:a visual do teatro - em conexão e eiv concorrência


_com a retórica ,eo��-à - permaneceu 1imitadll na neovangumi_�.-dos.aQ<?� 1960.
°
... ··· A interpretàçâo teatral podia s;i. ,i"iêit�rii" râaicãl;-mas continuavà a valer o pri­
/ mado do te.'"<to e da transmissãó d.e sentido, No teat�o dramático tradiêional, o
___ _ .,..
: _,,
àspe_ctô visual desâe.séinpJ! serviu a essa transmissão - lndependente1:nente· de
seus *ativos ópticos áarqui;tôtiit�s:Pãn/ôllvte·desdobr:at-nentrt4e uin "teatro
de imagens".- como bem sãq chamados ·os teatros.de.�ober-t Wils;i;�-àe's�us
.. seguidores .::, e,�-nece� ário um maior irilp_ulso de distan!'.=ian'l.en}õ do;·testemü­
nho.polít��o em sentido res�tito e dà literatura âiamátka em sentido m�is amplo.
No início dos afios 1980, �v�rsas encenações importantes - de Klaus Michael
.Grüber,.Ariane Mnouchkine, Peter Stein - realizaram de maneiras diferentes·
grandes tableaux. Irrompe�1 um:r iiõVa ·iufai�. �a config�ação ·cênica, um inte­
resse pelo espaço teatral formal�ente cstili.zad�.-q�é logo ·seretletiu no renome
de artistas radicais co�i.b Jan I:{b{e: Com os projetos orientados para o contato
·,. com o público ria época "ati�is�a" dos ���.ii�.9_e.70,lsso havi� acabado. Assim,
buscàva.se agora sobretud0-'<1·•sll'bn1éisão do.espectador em uina cbntemplação
' I
nos détc}lhes, nas estrutµras forinais e nos sigtiilicaútes. As cbnseqüêflcias disso 271
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podiam ser uma precisão classicista e espaços cênicos que geravam um longo nial não visa o reconhecimento de um quadro famoso, mas a presença teatral
efeito retardador. Muitas vezes, o forte ·efeito da imagem � do.. espaço se asso­ viva dos gestos humanos e das formas em movimento.
ciava a uma maior duração da montagem. Issó levOlt à típiê:a vivência do espaço Ao quadro cabe a mo!dura, e no. teatro·de WÜson, de fato, tudo começa e
no teatro pós-dramático, ha qual a impressão visual como que se sobrecarrega acaba com molduragens, um pouco como na arte barroca. Wilson cria mol­
,, com as palavras e os gestos no decorrer da ênêenação. O espaço pós-dramático duras de luz, espaço e som - como na montagem a céu aberto de Perséfone
já não "servé' ao drama e tampouco a uma atuaU�ação politizante, mas antes de no antigo est 'ádlo de Delfos e na encenação de T.s.E.2 em Weimar, nas quais a
. tudo a uma experiência essencialmente imagético:esp�cial. área da representação se dividia ·em campos ou faixas de luz. Em Wilson, os
O panorama apresentado a seguir compree. nde p°àlcos cõm uma separa­ diversificados recursos teatrais de molduragem fazem que cada detalhe seja
ção cl�ra em relação ao espaço.da pla,téia, e�paços interativos ou integrados objeto da função estética do isolamento e ganhe um valor de exposição próprio.
.
e ainda. espaços �'het�fogêneos" com passagém para situ11ções cotidianas. Es­ Além das lluminações especiáfo que delimitam os corpos no palco com campos
ses espaços ora estão ü;t�i�a;�ente.. úeiviçõêl.a·semântjc� textual, ora se tor­ de luz geométricos, tem efeito de molduragem a precisão escultural dos gestos,
nam uma "composição paralela" (Achim Freyer) à música ou ao texto. Não executados pelos atoi:e� cem intensa concentração e de modo como que ceri­
se trata aqui de apreciar a obr_a de determinados cenógrafos importaíltes do monial. Um andar, o erguer de uma mão, um giro de corpo são elevados a uma
teatro contempor.âneo: de Erich \1Vonder a·A:nna Vi'ebrock, de Axel Manthey nova,-vlsíbilidade em meio à justaposição não-hierárquica dos fenômenos.
a Achim Freyei, é preciso examinar. os espaços cênicos atuais e suas respec­
tivas dialéticas arústicas em sua imensa diversidade à luz do paradigma pós- Jogo com espaço e superfície
..... - ...
dramático - e do dramático, já que no âmbito do teatro dramático também se
encontram importantes achados espadais . No teatro dramático tratà-se sempre de criar uma moldura adequada para a
experiência do dramático, u m espaço ao mesmo tempo real e espiritual, wn
Molduragem pano de fundo, uma ií11agem de pensamento alegórica, enfiin, a própria cons­
telação cênica como imagem. Com a autonomização da experiência pictórica
A primeira vista, o espaço cênico que se organiza como quadro (tableau) na modernidade, estava dado o pressuposto de que a cena se aproximasse
se isola programaticamente do théatron. O isa.lamento de sua organização conceitualmente da lógica pictórica e, em conseqüência, se apropriasse até
interna está em primeiro plano. O teatro de Robert Wilson é exemplar do certo ponto do modo de recepção peculiar ao quadro. Foi generalizado o
"efeito quadro''. Não é sem razão que freqüentemente se tem comparado esse lamento de que com essa virada para o aspecto visual a percepção orientada
teatro com a tradição do tableau vivant. Sabe-se que no século xvm as damas de módo �!'��tice-literário seria expulsa do camarote real, ignorando-se os
e os senhores da sociedade tinham o hábito de se divertir imitando pinturas, ganhos assim propiciados. Nesse processo, o foco ná imagem como imagem,
imobilizando-se com as P?ses e as vestimentas correspondentes (normal­ �percepção dinâmica da "6psis" [visão] (Aristóteles) e á "visão vedora" (Max
mente com acompanhamento musical). 1 O que é correto na comparação é Imdhal) são "contrabandeados" para o âmbito teatral.
que no teatro da lentidão a percepção inevitavelmente se orienta para o foco Axel Manthey pensa o palco como uma ideal '·'superfície pictórid' para
com que se percebe um quadro. O que é falso é que o retardamento cerimo- exercer o teatro como pintura cênica. Seus tr�ços e emblemas criam)mág;�s

Ver Klrsten G. Holmstrõm, Monodrama, AWtudes, Tab/eaux vlvnnts. Üppsala, 1967. ,. Titulo composto a partir das iniciais de T. S. Ellot. (N,ll,) 273
autônoma-s, quase formando caracteres, nas ·quais se destaca a relação das são claras e o espaço é "mais literário''. Apesar da fragmentação, trata-se de
figií.as cênicas com a sup�rfici.e. Quando surgem elementos fundamentais e�pr;iços tematicamente definidos. É certo que nas várias peças de Shakespeare
r

como esfera e cubo ou símbolos como mão e seta, as garatujas e a deliberada encenadas por Lauwers a continuidade do enredo é'desconstrulda, mas seus
infantilidade da caligrafia sempre lembram algo pintado. A linguagem ima­ temas, co1no a morte, a amizade, o poder e a solidão, organizam a lógica da
gética de Manthey- que se insere n a tradição intelectual do construtivismo e montagem cênica e são assim conservados. Apesar da fragmentação, da abre­
da Bauhaus - é visualmente impressionante, opulenta, como se·viu nas suas · viação, dos cortes, os enredos são contados em seus traços fundamentais.
criações cênicas para montagens de Jürgen Gosch realizadas na primeira me­ Díferentemente d'o que ocorre no teatro aferrado ao épico, os acontecimentos
tade dos anos 1980 - por exemplo, a gigantesca escadaria preenchendo todo nos diversos locais do palco não sã·o conectados por uma moldura de continui­
o 1,'>alco em O misantropo e o curioso palácio com forma de tenda em Édipo. dade narrativa . Os núcleos da representação (uma mesa, wn palanque, alguns
O tratamento pictórico do palco em Manthey foi acentuado em montagens lugares para sentar, um fundo abstrato, talvez a sugestã_o _d� um arranjo çênico a
como O an�l dos.nibehtngos, de Ruth Berghaus (1985-87). ·partir de_�petrechos), visíveis desde o início, entram em jogo por meio de mudan­
Em montagens do Wooster Group, de Jan Lauwers e de Jürgen Kruse ças de foco dramatúrgicas, assuininqo assin'l o aspecto de um registro cinemato­
é freqüente ô procedimento de posicionar os atores bem à frente do palco, gráfico. Em face de um campo de representação seccionado por "cortes" em partes
perto da "quarta parede''. obtendo-se assim uma composição espacial que tem heterogêneas 1 o espectador tem a sensação de ser levado de um lado para o outro
o efeito de uma superfície pictórica. Por fim, o espaç� também se torna tema como se a'companhasse as seqüências paralelas de um .fitine. O procedimento da
teatral em virtude do fato de que muitos diretores provêm dos campos da montagem cênica induz a uma percepção que evôca o corte cinet��tográfico.
pintura, da escultura e do design ( u111;1 conjunção que já havia sido altamente Cl!!:>e destacar aqui ur11 princípio de organização que tambény é caracterís­
produtiva para o teatro no inicio do século xx). ,.... tico da pintura: na ll'l:edi�a_C:_� qu� <:s.�to.res constantemente se comportam no
/ palco como espectadores em relação ao des�mpenho dos outros atores, surge
Montagem cênica uma peculiar focalização da ação assim observada.. Esse procedimento fun­
·-···-.,/
ciona de modo anàlogo -àqueJe. �� P.i�!�ra clássica que indica o percurso da
Uma outra forma do espaço pós-dramático se encontra nos trabalhos de Jan visão do observador m-ediante o "direcior1���-nto-éfó õl1fa(""das·figur<\§,.repre­
Lauwers. Aqui, corpos, gestos,· atitudes, vozes e movimentos são arrancados �entadas, sugeri}!�º assim uma determinada "leitura''- seqüe11ci�l e um; hie­ ·

-, ·,,
de seu continuo espaço-temporal e recompostos como elementos de uma rarquia da cena aprÍisentada. Algo semelhante ocorre uo teatro de Lauwers: .
montagem. Suprimem-se as habituais hierarq1;1ias do espaço dramático (rosto, .
.
.
gestos significativos, confronto dos a;1tagonistas etc.),.de modo que não há A observação das cenas - o assistir - é elemento constitulivo da representaçãp: os
mais um espaço disposto pelo eu-sujeito. O palco ·não é organizado como olhares dos !ntérprêtes estruturam as na_rrações cênicas. Um fragmento do que
campb homogêneo, consistindo antes em "campos" alternantes e sincrônicos se passa no palco (um ator, um·a _co�;telação de 6.gUFas, uma. área, µh1 càmpó de
demarcados pela luz e pelos objetos. O espaço da representação é redefinido . visão) é "recortado": toma-se urpa unidade de montagem. u;-;i;slocamento do
• 1 ,

no decorrer da encenação, O caleidoscópio de estruturas espaciais, objetos olhar ressalta o foco.',


de cena ê espaços luminoso/corresponde a u.rn,Jrabalho textual de montar e 1
··---···:.-
desmontar. Em côhtraste com as açqes paralelas em Wilson, freqüentemente \
Klrsten Herkenrath, Jail Lãuw �rs Antôlllu� und Cleopatra. Eine nach-epische 11,eatrekon-
274 experimentadas cômo elementos desconectados, aqui as ,�onexões objetivas zeptlon. Giessen, 1993, pp. 65-66 (mimeo.). 275

. •, \I
·-,
,y-. \

Se os atores parecem mpm�ntaneamente "hir" da representaç ão e agir Espaços temporais


•. . 1 . ... - ... •
como espectadores junto aos outros espectadores,fii::moldura d-esse teatro . .
permanece sistematicamente incerta, com� 'quadr� dinamizado. Com is�o, Fãzem parte do teatro p6s �dramático a produção e a utilização de ambientes se-
dá-se ao espectador a opção' de' se·deixar conduzir pelo "direcionamento do gundo o padrão das artes plásticas. Em 1979, Klaus Michael Grüber realizou nas
olhar" ou de se desviar e ôbservar um'd�t;lhe -�xterno ao foco: �o final das dependências do antigo hotel de luxo Esplanade, em Berlim, unia açãô teatral (ou
contas, é o espectador que (co-)realiza os corte�_e decide se e como vai foca­ uma instalação) na qual 9s espectadores, entre as paredes do edifício caindo aos
ser entendida aq ui pedaços, entre projeções e pequenas cenas, ouviam uma versão resumida da no­
lizar o olhar. Contudo, a liberdade
. . .'
do especta<lor,deve
mais cor\10 um passo do teatro em direção à liberdade'da !eítura do que em vela Rudi, de Bernhard von Brentano, de 1933: um espaço rememorativo} Em um
ten'nos de uma similaridade com a construção cinematógnÜita. No cinema, trabalb.o teatral em Berlim, Heiner Goebbels posicionou o públicÓ de tal maneira
se
comoµ' disse;·é o .olhar e;!() espectador que no fundo.junta os fragmentos, que à noite, ao pê do Muro de.Berlim iluminado' fantasmagoricamente, ele via
sintetizando-os com sua con;�iên�i� ·e-êip.eriih"éntando .a sensação de "fa­ uma barcaça vir lentamente em sua dlreçãÔ com uma figura a principio quase irre­
zer" o próprio filme. Mas ·o "ólhar da câmera'; corn o qual o expectador do conhecível (e l!rt:(éàcfiol'ro),-enquanto David Bennet declamava o texto Maelstrom
cinema se identifica, é não só.fantasia de poder como também olhar cativado pólo Sul [Máelstrom SüdpolJ, de Heiner MUiler (a partir de Poe). Na instalação
e imp'õfente, pois a atividade i�;ginada se"énconffã diàute da circunstância feita p,oí: Michael Simon em 1996 para Descrição de Imagem (Bildbeschreibung], de
de que a densidade dos signos cinematográficos (imagem fotográfica, movi· Müll�r, numa pedreira em Weimar, o público era conduzido por uma seqüência
mento, músiç<!.,Jinguagem, som, reprodução do_ mundo real) praticamente de cenas, imagens, cartazes com textos e situações distribuídas pelo terreno.
não confere liberdade p;ü'a a reflexão, para a "mudança de sentido'; para a Em muitos desses trabalh _?� revela-se a intenção de propiciar uma deter­
experimentação e a crítica. A montagem cênica no teatro pós-dramático, em minada. experiência tempOi'al por meio de concepções espaciais especificas, da
contrapartida, oferece essa líberdade e justamente por isso não implica que o escol_ha de localidades historicamente significativas ou da construção de ins­
olho do espectador se tome o olhó da câmera cinematográfica. talações. Isso vale, por exemplo, para um dos mais impressíõnantes trabalhos
Diversas outras formas de espaço teatral múltiplo sã? P,Ossibilinrda-s-pelas_.__ . ___ ! .. _ . de Elke Lang, que em 1989 montou no TAT [Theater atn Turm] de Frankfurt
mídias: os eventos podem ser transmitidos de outros espaços que estão em A outra hora [Die andere Uhr], um ambiente sonoro e musical com textos de
, relação com o palco. No caso extremo, os espectadores não vêem nenhum Rolf Brinkmann, Wolf Wondratséhek, Djuna Barnes e outros. O espaço teatral
ator diretamente, mas apenas recebem imagens de vídeo a partir de outros consistia numa série labiríntica de ângulos, passagens, locais entrevistas e es­
espaçbs. Nesse sentido caberia analisar os espaços de John Jesurun, bem como pacialidades em que os espectadores se deparavam côm diversos ínaterials de
montagens experimentais com barreiras de visão e transmissões de imagem recordaçã<:Qotos, ruídos, crianças brincando, música e ob jetos de todo tipo).
ou som. É importante notar que em todas essas formas teatrais não se trata E�sa dramatuiia espacial faz que o tema da reflexão opere teatralmente no
de uma conformação aos hábitos da percepção midlática, ao fantasma da ili­ processo temporal como tempo próprio dos espectadores em seu movimento.
mitada dis ponibilidade de transmissões eletrônicas de, espaços temporais e No caso de Pina Bausch, o espaço é ó parceiro autónomo dos dançarinos e pa­
tempos espaciais. Ao contrário, o espaço teatral pós-dramático estimula cone­ rece marcar o tempo da dança ao comentar as ações corporais. Em Café Müller, ó
xões perceptivas imprevisíveis. Ele pretende ser mais lido e fantasiado do que ambiente formado pelas cadeiras reviradas atest� os movimentos lntenso�e-ápai- .
.·•
registrado e ar quivado como informação; ele visa constituir uma nova "arte de
·,
assistir': a visão como construção livre e ativa, como ar-ticulãção rizomática. 4 Cf. Georg Herisel, Theater der sibziger Jahre. Munique, 1983, pp. 318-:1.9. 277
xooado� que acabaram de ocorrer.. Dança e espaço estabelecem uma dinâmica Espaços de conflito
c01ft�tualízante. Etn Cravos (Nelken], o campo .de milhares de cravos é repisado
no decorrer do espetáculo, �ind·a que no inícío os dançarinos evitem cuidadosa­ No teatro de Einar Schlee,f, o espaço da representação se propaga de ma­
mente amassar as flores. Desse modo, o espaço funciona cronometricamente e ao neira.àgresslva para o espaço da platéia, avança corporalmente pelas rampas.
mesmo tempo se torna um lugar dos vestígios: os acontecimentos permanecem Quando se menciona seu nome, muitos podem pensar primeiramente no ele­
presentes em seus vestígios depois de decotildos; o tempo se adensa. Uma outra mento auditivo: a linguagem entrecortada, a violência rítmica das vozes em
possibilidade de dar vida ao espaço em Bausch é o procedimento de espacializar coro. Ou então nos corpos dos atores: a pressão e a sobrecarga física da ação
as ações corporais .fúediante o recursà a microfones e amplificadores, de modo cênica, o trabalho corporal impetuoso, às vezes arriscado. No entanto, seu tea­
que a batida do coração ou a respiração dos dançarinos ressoam pelo espaço, que tro também é aquele da dramaturgi� visual, um teatro impensável sem a aguda
parece ele mesmo tornar-se corpo. Esse tempo-corpo espacialízado, carregado_ de sensibilidade do pintor Schleef para estruturas imag�tic�s. Formas do palco
physis, busca a transmissão nervosa imediata para o espectador, não sua informa­ em cruz e passarelas· em meio ao público contribuem para que a dinâmica
ção. Ele não observa, mas se experimenta no interior de um espaço-tempo. esp�cial opere do fundo do palco em direção ao público. Muitas de suas ence­
Os trabalhos de Christoph Marthaler e Anna Viebrock dos anos 1990 se nações são marcadas pôr espaços de imagem e ação que incorporam o local e a
destacam por sua obstinação estilística com espaços de recordação. Um dos perspectiva do espectador, tornando impossível uma distância contemplativa.
aspectos disso é a recorrência de espaços assu·stadon;s que evocam traumas Por vezes o arranjo cênico impede que se possà ouvir, y_er e entender o "todo" -
de in(ãnda: a sensação de confinamento, o medo e a disciplina do quarto de como no caso das longas e estreitas passarelas em Urgotz [de.G°Õetliê], em que
dormir e da sala de aula. A lembrança da infância se torna meio de expressão o público só podia acompanhar claramente o que era representado sobre e
histórico-político. Um outro aspecto é a freqüente iq_serção da realidad_;·dos sob as passarelas nas P!'��!I.l.!�a�es. de cada lugar. Em Antes da alvorada [Yor
autores ôu comeositores nó palco. Na montagem da ópera de Verdi !,ufsa Mil­ Sonnenaufgang, de Hau,ptmann] ha;i� u�a ��;;pa· que saía do palco, passava
ler, em Frankfurt, a cena era dominada pelo mobiliário do própr!p·'êompositor pelo meio da platéia e ia até o fundo do teatro, onde at(_)res posicionados atrás
e pela vista lateral-de um bar italiano- a taberna dos·pais·ae Vérdi tal como ela dos espectadores se faziam-o.uyir cç!]l_��r-�� rítmicos agressivos e batidas de
pareceria hoje em dia. Assim, o espaço teatral não se fecha em sua realidade caneca de cerveja em mesas de madeira. Essa;traiisíçõés cênicas-do palco ao
como uma entidade surgida do nada; ao contrárfo; abre-se para a sua pré-hístó­ l?Úb!ico ocorrem .c_onstantemente no· teatro de Schleef;Na sua encenação· de
ria- portanto para a vida de Verdi, para a realidade histórica do surgimento da Senhorita!uli;, em 1974,t "partida" da protagonista assim se dava, conforme a
obra-, para a época da produção do próprio trabalho de-encenação (o teatro . .
descrição de Wolfgang Storch._
concreto, real, permanece visível, não desaparece em uma figuração ilusória), ,_

para o diálogo dos produtores coi;n a obra e para suas próprias circunstâncias Decidida ao·suiddio, Julie deixa o palco, apóia o pé sobre o encosto de uma ca­
de vida. Os espaços temporais do teatro pós-dramático abrem um tempo de deira da primeira ·lileira da platéia, ·p�de �ôs espectadores que por favor a ajudem
várias can1adas, que não é apenas o tempo do que é representado ou da repre­ e então cantinha aparada por el�s sobre as fileiras, por entre �;beças e ombros,
sentação, mas o tempo dos artistas que fazem o teatro, a sua· bipgrafia. Assim, o para fora da vida - par�' fora da vid� nessa socl�da�_e ...s
espaço temporal homogêneõ do teatro dramático se estilhaça em aspectos he­ 1
! ......
terogêneos. A quêstão que se põe ao olhar do espectador.é a de altérnar entre
s Wolfgang Storch, ln Volker'PTülíé; c/Hans-J�nchim }l.uckhãberle (orgs.), Das Bild der Bühne.
eles para ver, lembrar e refletir- não a de sintetizá-los coi:1 violência. Berlim, 1988, p. 99. 279
Espaço-exceção não peneti�:3enhum .� arulho das carruagens e das gdtarlas de rua (...]. Edifícios
1; instalações que expressem como utn todo a sublimidade do compenetrar-se e

No processo de q_uestionamento reflexivo 'á.a 'situação teatral, o espaço pós­ deixar de lado''.6
dramático pode ser algo como um lu gar-!:'ceção. O dado espacial se torna
_
)lffia tematização da comunicação efetuada (não só) no procedimento teatral. Teatro específico ao local
O teatro toma distância do cotidiano e se afin� cofoo situação de exceção. No
trabalho do grupo teatral vienense Angelus'No�s;�sse m�do de tratamento Fora do espaço teatral usual há possibilidades que são chamadas de "teatro
do espaço converteu-se em ato polHico sem que fos�e·ne�essária uma decla­ espec16co ao_ local'� mais uma vez com uma expressão proveniente da� artes
ração política, pois exigia simplesmente-um outro tempo, utopicÕ, uma outra plásticas (site specific)'. O teatro procura uma arquitetura o u então uma lo­
forma de comunidade..��s.� trabalho já foi abordado Lno Capítulo 3J. Aqui calidade não tanto porque o ,rlocal" couespond'a particularmente bem a um
cabe âpenas ressaltar a demanda-·di 'cõnfiguração·de teatro como um espaço determinado texto, mas sobretudo porque se visa que o próprio local seja
da comunidade, tal como repetidamente formulada desde a Antigüidade - na trazido à fala.por mêio do teatro. Distinguem-se pelo menos duas variantes
pólis ateniense, na Idade Média, na idéia de festival concebida por Wagner. A dessa práticá teatral. Por um lado, o local especifico pode ser utilizado em sua
/ .
concfição para a retomada dessa �spiração foi oferê"éida pelo próprio desenvol­ prÓpfiá configuração: os atores simplesmente atuam em melo às máquinas
vimento dó te'átro: a ênfase na integração e na comunicação, a redescoberta da e eq�pamentos do galpão de uma fá�rica ou da oficina de manutenção de
relação entce. !jtual e teatro e as modalidades teatrais públicas sugeriram que uma estrada de ferro e o público simplesmente é posicionado ali - pode-se
se despertasse o ritual comunitário no teatro para uma nova vida. dispor cadeiras ou arq_ulbanc�das, sem que esse cnr&ter _básico dn espaciali­
Assim, é possível que não se deva somente a razões pragmáticas o fato dade projetada como cena seja alterado. A segunda variante é a montagem
de que grupos teatrais privilegiam igrejas ou edifícios semelhantes a igrejas - de uma cena com a disposição de decorações e objetos no local. Nesse caso,
ben'l como galpões de fábricas,·que podem lembrar a espacialidade impõ- introduz-se uma cena dentro da cena e cria-se uma relaçãõ"'entre ambas que
nente das catedrais e que desvinculados de sua função "munda:rra!!..na·ptQ-__ . --·· pode sugerir, de modo mais ou menos claro, contradições, espelhamentos e
dução material ganhân1 Úlila nova aura com o teatro que heles tem lugar. No correspondências. Quando a peça Stallerhof, de Franz Kroetz, era represen­
livro de Theodor Lessing sobre Nietzsche está escrito: tada pelo grupo HÕllandia em uma igreja do can1po com o público Instalado
numa arquibancada feita de tábuas e feno, realçavam-se os temas campesinos
e religiosos da peça. Quando a peça foi posteriormente apresentada em uma
-----
Não é mais possível aos filósofos modernos percorrer os espaços contemplativos
do passado: as Igrejas e os mosteiros. A moderna vita contemplativa incontesta-. fábrica abandonada, ficou em primeiro plano o tetna da desigualdade nas
velmente se dissociou da vita religiosa. As igrejas e os mosteiros são a petrificação relações capitalistas.
de um outro espírito, que se impõe poderosamente àqueles que neles caminham. "Teatro especifico ao local" significa que o próprio "local" se mostra sob
Assim, o que está faltando é o espaço contemplativo do futuro, cujas caracter!sti­ urna nova luz: quando um galpão de fábrica, uma central elétrica ou um ferro­
cns Nietzsche define: "Será necessário um dia, e provavelmente em breve, o discer­
nimento daquilo que sobretudo está faltando em nossas grandes cidades: lugares
. visto por um novo olhar, "es-
velho se torna espaço de encenação, passa a ser
_... /....
....-
espaçosos para a reflexão, tranqllilos e amplos, lugares com longos e altivos sa· 6 Theodor us.slng, NietzscJ,e (s/1, 1.925). (Cita-se aqui um excerto do aforismo 280 de A gala
280 guões tanto para o mau tempo quanto para Cf tempo-por demàis ensolarado, onde ciência (1882). N.E.)
tético''. .O··espaço se torna co-pat·tlcipante, sem que lhe seja atribuída uma "acontecimentos" musicais, como wn cantor que de repente se tornava visível
srgnÍficação definitiva. M�s em tal situação também os espectadores se tor­ em uma campina. Os viajantes percorriam ou atravessavam diversas instala­
nam co-participantes. Assim, ·o que é posto em cena pelo teatro específico ções ú1dustriais e outros locais de trabalho que normalmehte não en\m áber­
ao local é um segmento da comunidade de atores e espectadores. Todos eles tos aÓpúblico; no fim da tarde havia uma refeição em que todos se reuniam
são "convidados" do lugar; todos são estrangeiros 110 universo de uma fábrica, em torno de uma mesa incrivelmente longa à margem de um canal. Talvez
de uma central elétrica, de uma oficina de montagem. Atores e-espectadores se possa questionar se é ainda possível falar de teatro em face desse empreen­
vivenciam a mesma experiência não-cotidiana de um espaço d escomunal, de dimento que seus realizadores denominaram simplesmente como "Uma
uma umidade desconfortável, talvez de uma decadência na qual se identifi­ viagem em três dias", No entanto, cabe sustentar que um teatro cujo centro
cam os vestígios da produtividade e da história. Nessa situação espacial volta há muito tempo çleixou de ser a encenação de um mundo dramático fictício
a se manifestar a concepção do teatro co1110 tempo compartilhado, como ex­ também inclui o espaço heterogêneo, a esfera do cotidiano, o vasto campo
periê_ncia comum, .. - · ·· -que-se. abre__e!,)tre o teatro emoldurado e a realidade cotidiana "sem moldura"
quando segmentos desta são cenicamente ressaltados ou redefinidos.
Espaços heterogêrieos

Assim como nas artes plásticas e sobretudo na.arte performática, surgira111 e


cohst1mtemente surgem projetos teatrais rt1otivados por uma ativação de es­ ...._ - ....
paços públicos. Essas iniciativas podem assumir formas bastante distintas. As
.;
ações do grupo Station House Operá, lic!erado por Julian Maynard Smith;'fão
voltadas par� a �ornada de consciência de processos arquitetônicospi<í'cone­ ---......
xão com o cotidíano. Com seus grandes módulos brancos de tij9lo e vidro, o
_, .......... ·-· . ··�--- .. ·­ ··-···· ...... .__ -
0
grupo apresenta processos de construção, reforma ; demõliçao associados a ......
um edifício realmente existente. Assim, ergue-se um espaço teatral arquitetô­ . .... --...
nico no qual a história da construção urbàna é"r'epresentada em andamento ·�
acelerado, No âmbito do festival Teatro do Mundo em Dresden [1996), por
exemplo, cenas, música e o processo do "tr�balha" como performance fize­
ram as ruínas da igreja Frauenkirche aparecer sob uma _nova luz.
Um outro exemplo de intervenção teatral oo espaço público é dado pelo
projeto realizado por Christof Nel, Wolfgang Storch e Ebérhard Kloke em .. ,-- .
1992 na cidade [alemã] de Bochum e arredores. Tratava-se de uma série de ·-·-- .
1 '
extravagantes "vtagens" de ôrubus, trem e barco através da heterogênea paisa­
gem industrial da região, cuJo estilo de vida se transmutava em cena. As fron­
teiras entre encenação e cotidiano nem sempre eram precisas nessa :viagem de
282 atenção. Ocorriam ações àrtísticas em vários locais do l�inerário, sobretudo

1,

·-_\.�
�--
;, .. -----. ··-:
'
.. --·-

II

·...... . .... Questões temporais nó teafro

-� -- - ...... -·- ......... __


,'
/

r- Catn'�das de tempo
.... _ -···
Pàra o teatro, a questão é sempre ô tempo vivido, a vivfocia te.inporal que ato­
.,, res· e espectadores partilham êque evidentementé não é :mensurável côtil exáti­
dão, mas apenas experimentável.A análise e a reftexão ácercâ do tempo -te-atral
dizem-respeito a essa experiência, que Bergson distinguiu do-ten1po objetivávél
------ ---..: -· --- . --·- .
_ e )!lensurável cóin.ô "duração" (durée). Quando 1íão se' pode realmente- 1neil­
s�;�;·convém ao menos elàborar distinções conceituais. Õ objetivo da aflálise
dô tempo no teatrô' pÓs-dratnáticO nãô pode Ser Ô âe estabeleéer ÕS pontos Ob­
jetiváveis da descrição, mas o de diferenciar os níveis da experiência tem.poràl
nesse teatrb de modo a contribuir para a compreensão da te1npotalidaâe dàs
artes.LA incapacidade de recc5nhecer a diferençà entre teatro e dran'là. àfeta
tarifo ·a cÕrnpreensãó coiilo a percepção da cframaturgiá do tempo que fai
parte do "texto da performance" e do "texto da encenação''. Tám.bém se reflete
nessa dificuldade a fronteira lnstitucional entre teoria teatral e teoíla literária,
1
Caso se queira entender a dramaturgia temporal <;lo teatro, não se pode sfe

. -�
Ver, por exemplo, Theresta Birkenhaucr e Annette Storr (orgs,), Ze/1/ichkeiten. Z11r .Rea//at
\
der Kiinste. Berlim, 1998.
modo algum partir das considerª'ções sobre o tempo no drama. Um espe­ sorry now],2 por exemplo, o autor Fassbinder indica que as partes individuais
cifico amálgama de tempos é constituti�o para todo teatro em que o tempo podem ser representadas em diversas seqüências. Em cada caso está.implicada
simulado e representado segundo padrões textuais é apenas um fator entre a escolha de uma dramaturgia, por mais que seja uma dramaturgia aleatória.
outros. Pode-se delinear a seguinte distinção de camadas temporais.
Tempo da ação jictfcia
Tempo textual
Essa dimensão temporal (incluindo suas possíveis rupturas temporais inter­
Essa é uma camada temporal conspícua em todo texto literário ou teatral es­ nas: cruzamento e duplicação de tramas, períodos intermitentes etc.) deve
crito, e por isso é muitas vezes negligenciada. Contudo, a brevidade de uma ser pensada independentemente do tempo de sua representação no texto
novela ou de um drama, assim como a extensão de um romance ou de uma dramático e também independentemente do tempo efetivo da montagem tea-
epopéia, molda pragmaticamente a percepção do espectador ou do le�tor. ..tcaL_�.p_��-�e tempo· que se estendem longamente no mundo Imaginário da
A par do critério e�terior da extensão do texto, o modo de estruturação das ficç.ão podem durar pouco na representaçã? cênica. A relação entre o tempo
frases - seu ritmo, sua extensão ou brevidade, sua complexidade sintática, as da. ação dramática
--· .. fictícia e o tempo do drama tem ""--' um caráter análogo à dis-
pausas por meio de sinais de pontuação - cria wn andamento textual parti­
cular, um ritmo de retardamento ou aceleraç�Q, Diversos ritmos podem se
tinção corrente de tempo narrado .
e tempo
. narrativo.; -
... A duração, o ritmo, a
seqüênda temporal e as camada � temporais da narração e do narrado têm de
soorepor num texto. Do ponto de vista do conteúdo, épocas e tempos podem ser analiticamente diferenciadas, sendo que os dois níveis pode'nís.e-combinar
ser fragmentados.(�ma possibilidade adicional, sobretudo na mo.dernidade, de várias maneiras. O mesmo se verifica no caso do teatro. Já ºlatro tradi­
é a auto-referenclalidade, que põe em Jogo o próprio ato de escrever (o}1 ·de cional dispõe de numerosos recursos para fazer transcorrer grandes laps?�. de
ler).�- p-�d-�· ��t��-
llg;da a uma deliberada desorientação lúdica relac;ronada tempo, como figurino- (perucas b·raoê:as ·em "A" l'onga ceia de Natal [The Long
à abordagem dó tempo ela escrita ou do tempo da apresentaçã? ;�at;al.'.} Christmas Dinner, de Thornton Wilderl), mudanças de iluminação, sobrepo­
....__ _ .,,, sição com música ou:pa�s �ns épico-líricas. O que é determinante para o
Tempo do drama tempo esteticamente realizado· é a cÓnngÜxâçâõ complexa-da. rep.[�S-� ntação, e
não o tempo "real" da ficção. O início q,e Hamlet (Ato r,.�e·na 1) dura dâ 111eia­
Trata-se aqui daquilo que Aristóteles chamou de "mythos": a configuração das noite até o aman'tiecer - um período de várias,.-horas que é representado
'-- . em
ações e dos procedimentos apresentados no contexto de uma dramaturgia. A du­ vinte miputos sem problemas.de credlbiUdlldeJO que aparece no teatro. em ter-
ração e a seqüência das cenas não são idên_tlcas às dos ª':onteclmentos na ficção, mos ele llusão de uma outra diilãmli:a temporiíé bem mais independente do
mas concebidas em seu próprio lapso temporal, crucialmente Importante no tea­ realismo e da lógica da sucessão do que se pode pens�Uma rica literatura de
tro centrado no texto. A organização temporal do texto dramático consiste na análise do drama trata da questão de como a temporalidade da ação fictícia
seqüência de cenas e procedimentos nele escolhida, freqüentemente complicada é transmitida no texto teatral; o tempo da ação foi igualménfo' um dos tópi­
por antecipações, reminiscências, seqüência,s paralelas e saltos temporais que cos dos debates poetológicos el? torno da regra das três unidades no teatro.
. '
via de regra servem à compressão do tempo. Essa organização pode ser designada 1

como ''tempo do drama'; mesmo quando nela predomin�m formas de repre­ 2 Q tlluio de peça (l969).faz-refer(ric)a'à ���tagem qara/$0 agora/ (parad/sc noivJ, 1968), do
288 sentação narrativas ou "colagens''. fün prepara(so sínto mu�to agora [preparadise Llvlng Theater, (1-1.11.) • • •
�-• 1

O que nos diz respeito, porém,é.apenas à quélti�· dos recursos que podem ser Também é recorrente na dramática o tema afim do "cedo demais" ou "tarde
usados p'ara criar a ilusão de lapsos temporais. 1, demais': do instante que é precipitado ou perdido: kaírós, o momento propf·
Não obstante, uma recorrente estrutura 't�mpoi:al do drama merece menção cio, sem igual e sem retorno; tyche, a imprevisível, fortuita e fatídica conjun­
especial: o tempo fugaz. Básta pensar na temática .filosóficã e social da "persegui­ ção de circunstâncias num certo ponto do tempo. Todos es�es aspectos de
ção" no Woyzeck de Büchrter; na pressão, 'temporal da "intriga" em várias peças; uma experiência temporal na qual tudo depende de não se deixar passar o
·na exploração ·do tema do tempo que expira ou do ultimato no ci11ema· (suspense momento podem ser expressos de maneira ideal na intriga drámática clássica.
'- .
segundo o mote ''em cinco minutos a bombà v;iexplodir"); 'no esquema do "res­ ·Ao abandonar o modelo da intriga, o teatro também perdeu interesse pelo
gate no �timo mim.tto" no western. Não há nada ma�b.vio do que a geração de .. tempo fugaz, que foi então incorporàdo por mídias como o cinema.' ',
• 1
• •••J
tens� o por 111.eio de !,lJ11iJJ'.l..ra.1naturgia.flo �-ç�rtamento do te.inpo, Sempre há falta
de te�põ:··M�smo. 9É�!1�º um drama ten1 co1110 tema a, inércia do tédio (como tempo da e."!cenação
o Lorenzaccio de Musset �- oDàntõn 'de Btichner), é.px9p�io ao teatro dramático
fazer do encurtamento do -tempo ou da expiração de um prazo estabelecido um Aqui não se tratâ primotdialmente de dissociar a encenação,.que se pretende
princípio de orga1üzaçâo. ó tempo fugaz é a expressão mais profunda da estética como reajJdáde estética ideal, da apresentação, sempre concre�a e sempre dife­
temporal dramática, que tende ''à cohcentração·d·desmaterizalização do tempo'? rente;,fclaro que esta última, como "atmosfera" especial de uma noite, oferece
Por trás d6 tempo fugaz semp!e estão os limites da vida. Um belo exemplo umá' realidade particular em fw1ção dos erros ou dos desempenhos especial­
da traduçã<?_ teatral desse tema se encontra na peça de .Srecht As medidas toma­ mente bem-sucedidos dos atores, e com isso também um rit.n:io temporal único.
das [Die Ma;snãhme], quando "os quatro agitadores" relatam ao "coro do con· Em virtude de diferenças no andamento das falas, pausas e retomadas, a "mesma"
trole" que, ameaçados e perseguidos, decidiram exterminar o Jovem camarada encenação pode ter durações.iurpreendentemente difere;ttes em duas noites.
e jogá-lo numa jazida de calcário: Mesmo na suposição idealizada de uma identidade entre o que se pretende (en­
cenação) e o que ocorre na prática {apresentação), o "acidental" permanece um
O CORO DO CONTROLE . . _______________ ------· 1-·. elef!lento constitutivo da materialidade artística do teatro - à diferença do que
Não achastes nenhuma saída para manter ocorre com o substrato ideal de uni texto. Ao passo que o texto permite aô leitor
o jovem lutador na luta? a opção de ler devagar ou depressa, de reler passagens e fazer pausas, o tempo
OS QUATRO AGITADORES espec.1.6.co da apresentação teatral, com sua cadência e sua dramaturgia próprias
Pela brevidade do tempo não achamos nenhuma salda (andamento do discurso e da ação, duração, pausas etc.), é determinado pela
Cinco minutos à frente dos perseguidores "obra" (nesse sentido, um fenômeno intexessaote é oferecido pela leitura em voz
Cogitamos sobre uma alta, que nãperspectiva aqui adotada deve ser vista como um teatro minimalista),
Possibilidade melhor. Os espectadores estão submetidos a esse tempo tanto quanto os atores - que se­
Agora cogitai vós tainbém sobre guem o ritmo dps outros atores. Não se trata do tempo de um sujeito que lê, mas
Uma possibilidade melhor.� · do tempo viven�iado em comum por vários sujeitôs,.no 9.ual se entrelaçam lnse- .
paravelmente uma realidade corporal e sensorial e uma realldade rnenta!:.,., .,....­
3 Patrice Pavis, D/cllonnnire du tltélltre, Paris, 1987, p. 388.
Em A idade de ouró [.L::4.ge dor, 1975). um fílarco na história f��tral do _
4 Bertold Brecht, lfl Werke, v. 3. Berlim/Weimar/Frankfurt am Main; 1993, pp. 96-97. pós-guerra, o 'lnéâtre du Soleil contava a vida de um trabalhador imigrante 291

!
argeliri? /!ffi estações (cenas de fa,mllia, c onflitos no trllbalho etc.), no estilo uma configuração que vive no presente. Entre o lapso hi��óric o (mítkb, fan­
da.-commedia dell'arte. A vasta sala teatral da Cartoucherie de Vincennes foi tasiado) da ficção e o agora da mo nt11gem teatral intervêm como terceira ca­
dividida em quatro grandes depressões reco bertas com um tapete c or de ocre mada a época e o tempo de vida d o autor (exemplo: um. romântic o escreve
cálido, sobre cµjas "encostas" o público se sentava para c ontemplar o "vale" uma peça sobre a Idade Média que é montada em 1999). Es.sa decomposição,
onde se dava a respectiva representação; de uma cena para outra os espec­ no entanto, permanece teórica para a recepção teatral, p ois o que nela se dá é
tadores eram conduzidos a uma nova depressão, a cada vez ªg�an�9.-s.e um amálgama que funde as camadas de tempo heterogêneas da experiência
em um novo ordenamento. A intensidade da representaçã o, que a despeito teatral em um e apenas um temp o. Mesm o estruturas refinadas com o o "tea­
e em virtude das técnicas epicizailtes envolvia o público na densidade do tro no teatro'; o anacronismo e a colagem de tempos têm uma importância
tempo ficcional, também se devia a inumeráveis achados impressi onantes, muito menór para o teatr o do que para o texto. ó process o da representação
como na cena em que o trabalhador encontra a morte ao cair de um an­ viva põe em jogo seu temp o r�al de tal maneira que todas as camadas tempo-
daime em meio a uma forte tempestade. O m odo como o ator, simplesmente ·--·-· _ _r_ais teoricamente di. s.tintas são objeto de uma s obredeterminação.
plantado no chão, tornava "visível" a posiçã o do corpo a uma grande altura -..... __ 4_

sobre o abismo, com um esticar de pernas e. um olhar amedrontado para as Tempo do texto da performance
profundezas, o modo como dem onstrava a tempestade, c ontorcendo-se com
um_ritmo que parecia ser ditado pela violenta y�ntanía, o modo enfim com o Com Schechner, designam os como "texto da performa!lce" a t otalidade da si­
repre�entava a queda, com uma longa corrida pela sala com os braços esten­ tuação real da apresentaçã o teatral, enfatizando nela o impulso .dC!.E:.5e11ça que
didos, tudo iss o fez dessa cena um dos mome�t os n'lais mágic os do teatr o. motiva a arte performática. O texto da performance comporta uma estr utura
E no final da peça Oc orria um outro fll omento notável: quando as cortJnas temporal própria ao teatr o e ao público: pausas, interrupções, representações
eram puxadas de lado, uma luminosidade que simulava à perfeição wlúz do in'termediárias, refeições e01--conjunt o ·articulam o �eatro a um prÕcessõ social.
dia ade,ntrava o recint o, e a perda da 110ção do tempo fazia q_ue muitos espec­ Nesse sentido, o tempo de inatividade d o ator entre suas entradas em cena se
tad ores instintivamente olhassem seus relógios, como"se-de-fa:tÓ pudesse ter diferencia da própria encenação - portanto, soa participaçã o nQ..textd da perfor­ i
amanhecido sem que eles tivessem notado o passar de tantas horas. Por wn mance se diferencia de �u; pàrfü:ipação no texto.d.\'!. �.n.c!!naçã o. À medida que a \./.
ruptura com a percepçã� a�tomatizada se tornou um crlté�lo estético· esse.Qdal
precioso momento de perturbação, podia-se considerar possível que o temp o .. f
da encenação houvesse se imposto sobre o realismo do relógio interno.5 _ �� ���=�!1���d�·�-d·;sl��-��;�t;d�- t��p;··cotidia�Ó· cÕtiverteu-se e 1� Ulpa
·pos-
Ação fictícia e encenação comportam ainda uma dimensã o transversal às sibilidade de co'nfiguraçfoe�encial n o teatr o. Fazem parte disso "exteri or.idades"
camadas temporais aqui mencionadas: a do 'tempo his_t6rico. Trata-se de uma que na verdade nã o são exteribq/�· como longos percursos nté o teàtr o, sessões
temp oralidade significativa para t o do teatro dramátic o que trabalha c om após a in�ia-noite e representações que se estendem de um dia para o outro
textos antigos e vive da atualização de personagens e histórias. O programa (c omo a encenaçã o do Mahabharata.porPeter Br ook numa pedreira per.to de
teatral no jornal é um desfile de fantasmas: Antígona, Lear, Hamlet, Pentesi­ Avignon, que começava à tarde e ia até a manhã do dia seguinl�1 Convém 'por­
léia, Tiô Vânia, Galileu ... Mundos de idéias e de palavras há muito extintos tant o apreender o "ten�po real" do•processo teatral em sua t otalidade, conside­
são c omo que invocados numa sessão espírita; o material do passado suporta rando os eventos pré- e pós-representação e as circunst âncias adjaceiltes..,- o fato
de que sua recepção, em )ll11:_Jei\tíido -muito prátic o, "cons ome" tempo, "tempo
5 Sobre essa montagem, ver Simone Seym, Das Thédtre du Solei/, Stuttgart, 1992, pp. 91-100. teatral" que é temp o dê vid� � não coincide c�hl o tempo da encenação. 293

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O outro tempo
., \�/. uns três minutos!). Aqui, a pausa e a imobilidade prolongada eram 'fatores de
uma estética teatral que colidia veetnentemente cbm a expectativa do público.
O tempo é essencial para a compreensão da_'práfica e da· recepção do teatro, e O motivo para a indi;posiçâo contra a costumeira pausa teatral não é un1;
ainda mais no caso daquelas não mais su��r_dipadas à representação de um preocupação com a preservação da ilusão - como se poderia pensar -, mas
transcurso temporal dramático. Evidentementej tampouco no �eatro é pos­ com· a persistência de um tempo de experiência autônomo, delimitado. Na
sível estancar o implacável fluxo do tempo ou-i�verter a t0P.ologia do tempo maior parte das vezes, de é introduz.ido no teatro já por t'nelo de um espaço e
� . '
real. :No entanto, há uma série. de procedi�ent�"s- que levam à tematização
explícita, à intensificação e à consdentização da noção do te,mpo, assim corno
um tempo da transição: da rua pàra ofoyer, entrada, tempo do enfoquê no con­
ju.rtto dos ·espectadores, suas conversas, ainda com seus pensa1nentos em parte
à sua dis�orção e à sua -i:lesorientaçã� Ent�e esses procedim�nto·;, os que se voltados Pll!ª os assuntos d.Q. cotidiano, apag� das luzes, silêncio. ?egundo
situam no nível- do que.é C!:P.I�.sentado são os mais simples: quando há cenas Pavis, "trata-se de uma espécie de tempQ iniciáticó que precede o tempo do tea­
que se passam no presente e ou�;s··.:. âpãi-er1ten1ênte· eom ôs mesmos perso­ tro { ... ], um li�ar.!__uma preparação - a preparação psicológica para o outro
-,_ �
nagens - há mais de cem artas (Arcádia, de Tom Stoppard), quando se passam tempo, o limiàr do esp.êtáculo".6 A ruptura cóm o tetnpo do cotidiano por melo
longos períodos de tempo (Con_�o do inverno, de Shakespeare) ou quando da enti:ad; no interior do edifício teatral cría unia "diferençâ� a atenção para
_
remissões invertem a habitual experiência tempoi-ãT . linear '(1horton Wilder). um.·b�tro tempo, para á realidade rítmica do texto da performance, da expe­
Cenas sem uni índice temporal concreto podem gerar wna temporalidade riência teatral como um todo, e não apenas o tempo do espetáculo cênico, do
flutuante, umlllncerteza quanto à sucessão narratjva. No nível da manifesta­ mundo da .ficção. Essa dlferenclação é essencial para o teatro pós-dramático
ção teatral chega-se a fenômenos de temporalidade mais difíceis de apreender. porque ele articula para � recepção uma relação concreta e complexa entre o
Repetições obsessivas, aparente inação, inversão de càusa e efeito, extremos tempo teatral e o tempo da .ficção, e não sua fusão.
de prolongamento ou de aceleração, saltos temporais e surpresas chocantes
podem distorcer a percepção normal do curso do tempo. Tais recursos se Tempo do drama, duelo
tornam constitutivos no teatro pós-dramático, já que ele _çlesloca a têinática- - .... -··
. temporal do nível dos sig�li.ficados ( os processos denotados pelos recursos O cerne do drama era o sujeito humano em um conflito, uma "colisão dra­
. cênicos) para o nível dos significantes ( os próprios processos cênicos). mática" (Hegel) que constitui o Eu essencialmente a partir de uma relação
Evidencia-se no novo teatro uma indisposição de vários diretores contra o intersubjetiva com o antagonista. O sujeito do teatro dramático, pode-se dizer,
usual recurso da pausa. Ela deixa de ser utilizada como algo óbvio, e quando existe apenas no �spaço desse conflito. Assim, ele é pura intersubjetividade a
ocorre é freqüentemente estetizada, inserida como um tema teatral particu­ se constitui--·F.ot meio do conflito c9mo $U}eito da rivalidade. O tempo da in­
larizado. Quando Einar Schleef encenou Salomé de Oscar Wilde, em 1997, a tersubjetividade precisa ser então homogêneo, um único e mesmo tempo que
cortina metálica subia e os dezoito atores ficavâm Imóveis no palco por dez mi­ unifica os inimigos em conflito: é necessário um tempo no qual o agonista e
nutos, dispostos em um quadro espacial sob uma luz azul-acinzentada. Nada o antagonista possam se deparar. Aq_ul-não são suficientes nem a perspectiva
mais acontecia, e então a cortit1a metálica voltava a descer: pausa. As luzes da temporal do sujeitô isolado (lirismo, monólogo) nem o tefnpo de t�5-�m­
sala eram acesas, e o p(1blico debatia acaloradamente no foyer. Quase não é texto universal no qual se dá sua colisão-(épica, estética da crô.Qicáf Uma
preciso mencionar que essa âbertura levava a uma notável auto-encenação dos
294 espectadores: alvoroço, risos, gritôs e contràgritos, protestos (e já à partir de 6 Pavis, op. cit., p. 387. 2 95
dessa irredutível "alteridade" do tempo da dialética so.cial e do tempo da ex­

·---
vez suprimida a intersubjetividade descrita -· podemos chamá-la de duelo -,
perde-se a forma temporal do vínculo intersubjetivo. E vice-versa: se o tempo periência subjetiva, Louis Althusser elaborou o modelo básico de todo teatro ·
_____ ..
homogêneo e comw11 se de.corripõe e se desfaz, os duelistas não mais se reen­ "n1aterialista" e crítico, cuja tãrefa seria abalar a "ideologia" no sentido de uma
contram, perdem-se em partículas, atuam sobre plataformas desconectadas percepção e um reconhecimento subjetivos da realidade. Com isso, porém,
entre si. Para que um conflito entre sujeitos cóm uma consciência que luta propíciou-se ao espectador não tanto uma série de noções sobre :i realidade
pelo "reconhecimento" da outra consciênê1a seja representávek é necessária ·social, mas sobretudo a experiência de uma cisão específica e radical entre a
uma plataforma comum sobre a qual o e1wolvimento possa ocorrer e se des­ perspectiva temporal da vivência subjetiva e o tempo social. Tal teatro não
.... -·· .. .
fazer. Um sujeito só pode constituir-se num lapso temporal vivido em comum gera .um "saber'; mas uma
� _____ .. ...., ..... . . analítica
. do não-saber e do erro, uma
,

tomada de >·
com seu antagonista; somente assim ele pode interagir com um outro em pé c�nsciência das cegueiras da percepção centrada no sujeito.
de igualdade, rivalizando sobre um assunto em comum, guerreando em um Em Kant, a função do "sentido interno" era garantir a unidade da consciên-
campo de batalha, amando em um espaço encantado pelo mesmo desejo. EJTI ·· ·- · ·. ·--�.i� de si por meio da forma de um "ordenamento--teinporal". A "forma do
contrapartida, quando nem todas as figuras têm o mesmo grau de realidade, sentCélo interno" oferece à_alternância das noções - que de outra maneira pul­
ma � algumas se manifestam como projeções de outras, habitando portanto verizaria a consciência - o persistente continuum do tempo, que Kant concebe
wn outro espaço temporal (como é o caso na dramática do Eu, por exemplo), em analogia com a linha. Ao conferir às experiências descontínuas uma dire­
o tempo dramático �omeça a desmoronar. �·" ção, uma orientação, esse continuum linear acaba por sustentar a unidade do
sujeito. Pelo menos desde Nietzsche e desde que o discurso.do J1}consciente
Crise _do tempo se tornou descritível, a identidade como "imemorial" e permanente familiari­
,�,· dade.. do sujeito consigo mesmo se ep.contr� sob a suspeita de seiuma quimera.
A "crise do drama". em torno da virada do século foi fundamentalmenté Na modernidade, o sujeíto- -é com ele o·espelbamento inteis�bj�tivo·pelo
. �ma
crise do tempo. Contribuíram para isso tantó a experiência do ciióÚco entre- qual ele podia constantemente se aprõfundar - perde a capacidade de integrar
laçamento de diversas velocidades e ritmos nas gra;des..cldáéfes quanto as a representação a uma -�nidade: Ou então, inversamente, a desagregação do
transformações na visão do universo operadas pelas ciências naturais (relati­ tempo COJnO continUl,l!n S;révela éàtrro·indfdo da..diss.�!u.�O, OU ao menos da
vidade, teoria quântica, espaço-tempo) e o novo conhecimento da complexa subversão, do sujeito seguro de seu temP.º· Justamente a·tot�lidàde tlos.even-
estrutura t�poral do inconsciente. Bergson 'di�tingue o temp� vi�enciado . tos, ainda que em.múltipla confli���-sid;de:- havl; g;�-antldo o sujeito como
comõ'1d;;açãd'CÍotemp�-ôbJ�-tivô. A clivagem cada vez mais nítida entre o dramatis persona de uma-fábula. Sem um sujeito organizador do teatro e do
tempo dos processos sociais (sociedade de massa, economia) ·e o tempo da drama, subtràl-se uma condiçã.q_essencial da representação em geral:'à certeza
experiência subjetiva acentua a "dissociação de ter:npo dô mundo e tempo · _acerca de "quem" representa. A distância interna da representação dá ·lugar­
da vida" que Blumenberg constata na modernidade e que, segundo ele, terá ao questionador ap.ontar-para-si de sujeito, que nesse modo de ser somente
sido produto da experiência individual de um incomensurável alargamento fixável como gesto manifesta u�a constituiçãci-nieramente-momentânea,
- ins­
da perspectiva do passado e do futuro: "de uma visão da história com uma tável . Assim, o fator dêltlco se 'tO'rna central: em vez da representação de um
tal vastidão que a vida indiviaual parecia não significar mais nada''.7 A partir processo temporal, o processo 'da apresentação em .sua pr6pría temporalidade.
Ü#dução da lmp�rt_ã-�j:fo_&a p�r�p·ectiv� te;nporal subjetiva, descontinui-
7 Hans Blumenberg, Lebenszeit 1i11d Weltzeíl. Frankfurt am Maln, _ 19��· p. 2:2.3. dade, relatividade, desagregação do tempd e uma temporalidade própria do 297
inconsciente e do sonhô, entremeando ilogicarh.entê passado, presente e fu­ daquilo que está associado à unidade de tempo no teatro dramático se aplica
turo, impÚcaram - e propiciaram·.:..- novos padrões de represe ·1Úaçã�. que de aqui. O que há não é exatamente uma unidade, mas uma desagregação da vi­
início produziram novas formas do texto cÍrámátic�No século XX, porém, vência do tempo. O fio da continuidade interna é rompido. A "voz A" recorda
.. a 16gic!) do desenvolvimento dramático-te�!:�1 }eva a uma nova estética tea­ a frustrada tentativa de retornar a um lugar freqüentado na infância: o cami-
.
......-
,
.. ' t,:al, a princípio ainda nos moldes do ··teatro textual. A crise do, continuum nho não existe mais, o ônibus que levava até lá deixou de circular. A ''voz B"
��. temporal é uma das condições essenciais para.._os novos prôcediinentos tea­ relata uma cena de amor malsucedida, ou melhor, não ocorrida. O narradór
trais1 que romperão até mesmo_cotn o ordênam�ritó,�mpo��l da articulação senta-se paralelamente ao lado de uma garcta em uma pedra, sem que eles
llngüístic·a. Inicialmente represen.tq-se uma descontinuida�e da experiência se toquem ou mesmo se vejam: "never turned to each other just blurs 011 the
que' ªQ.�l� toda instit';1lç'ão de sentido, e,ilwn segundo passo ·esse processo fringes of thefie/d no touching or anything of thàt nature always space betw�en
também apreende-o próp.riQ. modo de representação. N.9 curso desse desen­ ifonly an inch ... ".8 A "voz c';recorda o hábito de correr para um museu antes
.
volvimento ô teatro se dist�ncia c�;··vez iriais dt1representação de umà tem­ da chuva, às vezes para uma biblioteca·ou um correio. Hli uma harração frag­
poralidade homogênea. Assim, os tempos são objeto de duplicação, desfigu­ mentária, mas'�ãoh"á" espaço/tempo para ação dramática no agora do palco.
ração, montagem; o tempo real das cenas cotidianas e o tempo heterogêneo o temro·nio avança: entrincheira-se em si mesmo, curva-se.e dobra-se como
das imagens oníric�;�ão entremead;�--��c. isihtõmático que uma cenógrafa tenwó lembrado. A busca de um tetnpo perdido é o tema comum das três
imp�rtante càfu·o A��ª víeb;o�k·ci��;transparecer uma predileção por reló­ ce�a� recordadas em Aquele.tempo. A "voz A" busca o tempo de um passado
gios que per.de111 µúmeros ou ponteiros, que dispositivos de anúncio da hora individual, pessoal, um l'empo da infd.ncia - "when was that" ["quando foi
�erta contrariem· o ritmo das imagens em Robert Wílson, que se coloquem .aquilo") é·a pergU11ta recorrl:tJte. A "voz e" refere-se à b1,1sca da continuidade
metrônomos no palco a bel-prazer (nãq apenas no teatro de dança), de modo de um suprapessoal tempo da cultura, do contexto social, da tradição - daí ôs
que se tenha sempre em mente o compasso do transcorrer do tempo real. velhos retrato� no rnuseu, a biblioteca, o sistema social da escrita, o correio.
A "voz B" perde o tempo da natureza, do encontro sexual. Em toda parte a
Beckett, Müller e o tempo -... .... . ··--· busca fracassa.
A estética da redução _do teatro classicista, especialmente o de Racine -
Pode-se verificar a magnitude da desagregação do tempo na literatura teatr.al perfodos de temp·o mínimos, lugar únice:i, concentração em um co11flito quase
medíante um breve come:°tário sobre dois textos datados da segu11da metade que purameilte espiritual, com a tendência de supressão de qualquer ele­
· dos anos 1970: Aquele tempo [1hat time], de Samuel Beckett, e A missão [Der fnentô real que preencha o espaço e. o tempo-, retorna modificada na radical
Auftrag), de Helner Müller, respectivamente de 1976 e 1979. Esses textos são dramatnrgi!I do ponto zero de Beckett. (Aliás, em 1931, enquanto lecionava
aqui comentados porque expressam com rara clareza uma problemática ar­ literatura francesa 110 Trinity College de Dublin, Beckett leu as tragédias de
tística que diz respeito não só à dimensão literária, mas também ao teatro em Racine e também escreveu sua primeira peça: uma paródia do Cid de Cor­
geral. Eles lançam luz sobre a recém-abordada crise do tempo e ao mesmo neille com:o título The Kid. Coti1 exceção de uns poucos estudos, ainda não
tempo servem como uma espécie de prólogo para a descrição da estética tem­
poral do teatro pós-dramáticó apresentada mais adiante. _/".
8 Samuel. Beckett, 1hat time, ln Stücke 1md Bruchstücke, Frankfurt am Maio, 1978/pp. 50-52.
Assim como ocorre em outras peças de Beckett, em Aquele tempo há uma ["jamais se voltaram um para o outro apenas manchas nas orlas do campo nenhuln toque
unidade de lugar e de tempo, mas ela é - evidente.rn�nte-_..parodiada. Nada ou qualque,r coisa dessa ordem sempte espaço entre nem que apenas uma polegada:') 299
foi apreci�da a iI11portância da tragédia clássica para Beckett.) Seus perso­ consciência, que Debuisson recordara logo antes: "Ele esqueceu a tempestade
nagens .levam uma existência espiritual quase que incorpórea - paródia da sobre a Bastilha, a marcha faminta dos oitenta mil, o fim dos girondinos etc:'. 11
abstração e da espiritualização clássicas. Tanto no t�to de Müller quanto no de Beckett opera-se uma desagregação
Em Aquele tempo há apenas uma cabeça (um dos últimos papéis de Julian da unidaêie temporal e da continuidade. Já em razão da combinação de for­
Beck). Essa cabeça isolada [o "ouvinte"] espreita. A estrutura básica da lingua­ mas textuais heterogêneas - carta, cena, relato em prosa, representação de
gem e da Identidade subjetiva -falar/ouvir, ouvir-se falar - é desagr.egada no .um papel - o fluxo do tempo é constantemente interrompido. A consciência
espaço e na disposição do palco: a voz do. "ouvinte" vem de três alto-falantes se encontra diante de um� multiplicidade temporal que lhe torna impossível
que se interrompem e se alternam no relato das diferentes cenas de sua me­ fixar-se num ponto que permitiria uma perspectiva para a recapitulação de
mória. Uma imagem aparentemente apocalíptica na biblioteca sela o desastre. sua realidade de vida. Visão, sonho, lembrança, esperança e o agora "real" não

___
O final do texto diz: "not a.sound only the o/d breath and the leaves turning and podem ser separados.

- .. -
then suddenly this dust who/e place full of dust �hen you opened your eyes froi:n
.. ····---.. -
jloor to ceiling nothing only [ ... ] come and gone in no time gone in no time".9
Tempo algurn, apenas partículas. A decomposição e a pulverização da dimen­
são temporal manifestam a desagregação e a morte do indivíduo. O pó do
.- ..._
tempo cultural que estava acumulado em milhõ�s.de pãginas de livros'e �gora
::r:
u
...J
tolhe� vista - apel)as isso resta do tempo como forma da experiência.
LL. De n�odo peculiar, essa decomposição do te�po lembra as últimas frases
LL de A missão, de Heiner Müller. O personagem Debuisson, que abandonJI'ª
;
-... -- ··---... . ---.
o revolução social, experin1enta sua falta de lugar e de tempo em uma i!,Jlágem
muito semelhante! /.

--.-
CD
r.J) ···--./
Debuísson se ateve à última lerr.brança que ainda não o abandonara: uma tempes­ ....
. - -- --· . ·-- - ... . .... _, ···-
tade de areia diante de Las Palmas; grilos vieram com a areia para o navio e acom­
. ... :...
panharam a viagem pelo Atlântico. Debulsson se curvou contra a tempestade de
areia, tirou a areia dos oll10s, tapou os ouvidos contra o canto dos grilos. 10

Em Beckett, o pó do chão até o teto; em Müller, a disforme tempestade de


areia que soterra aquelas outras tempestades de realidades irreconciliáveis na ···-·· ... -·

II

9 lbid., p. 70. ["nenhum som só a yelha respiração e� folhas virando e então de repente esse
pó o[ugar todo cheio de pó quando você abriu os olhos.do chão í!O teto nada além de pó e
nenhum som apenas {... J veio e se foi em tempo algum foi-se eril tempo algum:;] . -·- .... J.---·: -··
300 10 Heiner Müllcr, Der Auftrag. Quartett, Frankfurt am Maln, 1988, p. 42. u Ibld. 301

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Estética temporal pós-dramática


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No-final dos anos 1950 começou-se a óbservar que desenvolvlmentos análogos
i10s campos da pintura não-figurativa, da músicà serial e da literatura dramá­
... _ -··· tica levavam a uma recusa das totalidades constrÚfdas trãdiciôflalmente, co.ns­
tatando-�e
. assim a perda di'frtoldurá temporal. Nos an6s 1960, Stockhausefl
previu a respeito dos concertos que se poderia chegar i11ais tarde e sair mais
cedo, enquanto Wilson fez furor com o padrão i'pausas à vontade": dois.exem­

---------··- _plós de uma tendência essencial das ilovas drafüá_turgias do te111po. Élàs abó­
l�tn .á' uflidade de teihpo com início e fim como moldurafechada da .ficç�o tea­
tral a fim de conquistar a dimensão do tempo partiihado pôr Mores e público
cófüo processuálidáde 'abertá, que estruttiralmente nãõ possui nerü lnícló, nem·
ineio, nem fim (erà justamente lsso o qµe Aristóteles havia exigido como regra
fundamental do draiila para que se produzisse uili hblõn, um tódo). A novà
concepçãoaotempo partilhado considera ó tempo estruturado esteticamente
e ó tempo realmente vivill.o com.ó llfi1 mesmo bolo que os freqüentadores e os
,
atores compartilham, por assim dizer. A noção do tempo como uma experiên-
eia compartilhilda por todos se encontra no centro .das novas dramaturgias do
tempo: da diversidade das distorções temporais à assimilação do rittnO_J?PP;ila
resistência do teatro leflto à. apióxlmação à arte perfo.rmátiea efn súá radical
afirmação do temp-ô real cotnô situação vivenciaél� em comurn. 303
No in_ício de Uma caria para a .rainha Vitória [A Letter for Queen Víc­ nas a experiência do tempo - a cada vez absolt1tamente único, irreproduz!vel -
toríal. de Wilson, vêem-se duas figuras cujos gestos rotatórios funcionam dessa determinada reunião de concerto, com seus ruídos intencionados e
como os ponteiros de relógio. Êsses marcadores de tempo humanos - figu­ não-intencionados.
ras-horas [PígUhren) - trazem para diante dos olhos o real transcorrer do
tempo no teatro. Ao passo que Jean Genet ainda protestava categodcamente O tempo como tempo
contra o recurso a uma chama no palco, com o argum�nto de que ela trans­
grediria os limites (seria a mesma chama que uma chama na platéia e por Em seu livro sobre cinema, Deleuze distinguiu "imagem-movimento" e "ima­
isso uma falácia: escamotearia o fosso entre espectadores e palco), a fumaça gem-tempo''. Esta última, com a qual ele se refere ao novo cinema, caracteriza­
no palcô está entre os signos obsessivamente usados pelo novo teatro para se pelo fato de que nela o tempo não se dá como "imagem-movimento" repre­
indicar o tempo real vivenciado em comum no teatro. Na comunidade tem­ sentada, mas cbtno temporalídade exposta da própria imagem-filme, que em
poral pós-dramática de palco e théatron, o fosso que separa a ficção de s�a cli;versas variantes constitui cristais de tempo. É poss{vél (mutatis mutandis)
recepção é soterrado. O teatro freqüentemente estabelece seu tempo me­ traçar �n1 paralelo entre a polaridade de teatro dramático e pós-dramático
diante a renúncia à qualquer coisa maior que uma ficção a mais rudimentar, e a polaridade de imagem-movimento e imagem-tempo no cinema. Assim
de modo formalmente idêntico ao da reunião dos espectadóres. Pode �con­ como no cinema clássico, no f:eatro dramático o tempo é uma "condição" da
tecer que nem seja posta em jogo uma duração- "p'rópria': permanecendo representação que não é interessante em si mesma. -Ele só vem à tona indi­
todos os procedimentos orientados para o contato com o público ou para o retamente, como objeto e tema da representação d�an1ática,·com0 conteúdo
fato de sua presença. trans'.11itido por ela, da mesma maneira ço1�0 se comporta o ,tempo no ci-
A exigência de que o espectador se desloque de seu tempo cotidiano piira ;
nema clássico, no qual, segundo Deleuze,
um terreno delin�itado do "tempo de sonho" estava na base do teatr � _dr{má­ -· ·--
tico. No teatro épico, o "soterramento do fosso da orquestra" (Bet1jámin) sig­ a imagem-movimento está fundamentalmente liga_da a uma representação in ·
nificava uma comunidade no nível da reflexão. Brecht desé'javá·; espectador direta do tempo e não_!}_� dá uma apresentação direta dele, ou seja, uma ima­
pensante e se possível - como é sabido� fumante. Mas o ato de fuoJar deveria gem-tempo. No cinema m'oder�o: �m-co11t1-=aria-rtidtr, a·imagem-:.t.e.!ll.Pº 11ão é nem
ser signo de sua serenidade distanciada, não exatamente a manifestação de empírica ?em mefafísica, mas "trans_ç:endental " no sentido· kantiano: o tempo, se
um lapso de tempo (como o fogo que Genet critica). O espectador brechtiano libertá de seu·en·cad�amento e se apresenta em estado p�rró, 1
não mergulha em seu estar-aqui emocionalment� fundido com os processos ··,
·-
cêpicos (isso seria tomar parte no aco_ntectm"ento dra1:nático), mas fuma re­ Em um sentido semelhante àcr da imagem-tempo do cinema moderno, o tea-
laxado, distanciado, em "seu" tempo. É certo que a estética pós-dramática do tro pós-dramático também pode ser entend(do como cristal de tempo, pro­
tempo real igualmente não busca a ilusão, mas agora isso implica que o pro­ porcionando à sua manei_ra uma· imagem direta do tempo "em estado puto':
cesso cênico não pode ser dissociado do tempo do público (uma vez i:nais se Nesse �entido, uma experiênci� ·do tempo que ;e desvia <lol'iãbitual provoca
evidencia o contraste et1tre as atitudes épica e pós-dramática). Pode-se con­ sua percep,ção expressa; de modo que; tempo é alçado da inexpressiva con­
siderar como seu primeiro emblema a composi�. ão para piano de John Cage dição de coadjuvante ao statós de temática', Configura-se assim unl novo·
; "f - ·::::· .. . -·-· .
intitulada "4'33': pára cuj11 execução ele prescreveu que e.içatamente por essa ..... _..,_....-·-· ..
.;...

duração não aconteceria nada como "obra" no sentido d� tradição, mas ape- ' I
__ Gllles Dcleuze, Das Zeit-]!ild. �ino·2. Frankfurt am Maio, 19.97, p. 347-
,
t
. ..
I
fenômeno estético-teatral: ao s� \,lti!i�ar a especifü::idacÍe do teatro como modo desenvolvido por Robert Wilson pode-se falar pela primeira vez de·uina autên­
de represehtação para se fazer do tempo como tal.- o·te'mfO como·t�fnpo- ob­ tica· estética da duração. Surpreendido, abalado; sensorialmente seduzido ou
jeto da experiência teatral, o tempo do própr'i� procedimento teatral se torna mesmo hipnotizado, o espectador experiencia a lenta passagem do tempo.
objeto da elaboração e da re.flex-ão.ar�ísticas. Esse tempo é uti!izado de modo Toda percepção é reconhecidamente percepção diferenciada, de.modo que
_
. consciente; sua percepção, intensificad-11 é ..õrgai1izada esteticamente. Apre- se sente nitidamente a diferença do ritmo perceptlvó em _relação ao anda -
sença e a atuação dos atores, a presença e o papel ·do público, a duração e a fnento habitual da viqa e do teatro. O tempo cristaliza e tra11sforma o que é
1

. ambientação reais do tempo da montagem, o p�oJato da reunião como um percebido;:o objeto visual sobre o palco parece acumular tempo nele mesmo.
i · espaço-tempo comum - todos esses pressupostos do�tto que permaneciam A partir do curso do tempo surge u1il "presente contínuo", pára �sar os termos
.... 1 implíc�tos· como tais vêm à tona com� algô. �tilizado aqui e· agora-por todos de Gertrude Stein, modelo de Wilson. O teatro se assemelha a µma escultura
: os presentes; e.nâ.Q _c_Olh_?,_ � tempo representg,do no con� exto de um cosmos cinética, torna-se escultura Jo tempo. �sso vale' a princípio para os corpos · hu­
narrativo fictício. ···· · ··-·-· ·· ·--._
_ manos, que em razão de seu movimento em câmani lenta se convertem etn
--,.
Na medida em que o te1npo se converte assim em objeto de uma experiên.. esculturas cinífficâs;·mas- também para o quadro teatral eru geral, que em vir­
eia "direta': assumem especial proeminência as técnicas teatrais de distorção tude de.�eíi ritmo "não natural" dá a Impressão de uma cadência peculiar - a
do tempo, aJgumas das quais s·ão examinadas a seguir..... meio taminho entre a de uma máquina e a dQ teatro de marionetes.
(
..,..Chega-se então à constat;ição de que aqul a duração não.ilustra a duração.
Duração Não se pode dizer que a vagareza no palco se refere à lentidão de um universo
-·-· ·-
fiçtfcio que estaria ligado ª.9. _nosso mundo de experiências, nem que ela re­
A fragmentação da experiência d� tempo em função da cotidianidade, das mete por ironia ou antífrase à brutalidade ou à violência da vida '1real''.3 O tea- •r·Ir·
mídias e da organização da vida, com suas conseqüências desastrosas para tro se refere sobretudo ao seu próprio processo. Se uma montagem de Wilson
a faculdade da experiência, foi descrita por Kluge e Negt. 2 Para que o teatro dura seis horas, a experiência teatral determinante não é"ii duração objetiva
possa se afirmar como um âmbito essencial da resistência contra o d�sP-�4aÇ,�.: qu_e a princípio se encóntra em primeiro plano, "a hora'; mas a experiência
mentô e o parcelamento sociais do tempo, a primeira condição é que haja um imanente da ex�ensão do tempo. Por outro lado, é evidente que a experiência
· teatro "que tome tempo''. Nesse sentido, o tratamento consciente da duração do tempo não é totalmente independente da duração real da encenação. Por
'é um dos mais importantes fatores da distorçã6 do tempo na experiência do isso, seria um problema interessante para a análise das montagens o modo
1

· teatro pós-dramático, no qual a dilatação temporal é up1 traço predominante. coino devem ser descritas essas formas de teatro em que o tempo teatral autó­
Verificam-se elementos de uma estética da duração em numerosos traba­ nomo se articula com a duração e a lentidão da representa�ão (procuradas
lhos teatrais da atualidade, destacando-se especialmente nos casos de Jan Fa­ conscientem�te) de maneira. tão estreitá que pará a percepção mal se distjn­
bre, Einar Schleef, Klaus Michael Grüber e ChrístofMarthaler, mas também guem a "duração teatral" e a "duração na.rrativâ'. O que significa o "desenqua­
em muitas montagens nas quãis a imobilidade, pausas extensas e a duração dramento" do teatro em relação ao cotidiano mediante uma dilatação tempo­
absoluta da encenação são valorizadas cbmo tais. Com o "teatro da lentidão" ral que não se · ajusta a 11enhum ritmo diário .".normal" 11Os épicos teatrais de
/
várias horas de Peter Brook, Ariane Mn.oucttldne ou Robert Lepage_tQuê'tipo
2 Alexander Kluge e Oskar Negt, Ôffent/ichkeit und Erjahrimg. :Z11r Orgnnfsatiomnnalysc von
306 bürgerllc/1er und proletnr{scher ô.Oimtllchkcll. S/1, 1972. . �- •· - 3 Cf. Pavis, op. c:lt., p. 388.
de relação.há aí entre representação .(tempo do drama, tempo da encenação) tude escrita com luz, apresenta uma subjacente a.finidade com a fotografia -
e presença do tempo (dura�ão da encenação, te.xtô da performance)? Como associada à melancolia igualmente por Benjamin e Barthes. O que Barthes
se comporta a vivência física e psicológica da duração em relação ao ritmo destaca como "punctum" na fotografia não é senão sua referência à transi­
da encenação? toriedade. Na medida em que a fotografia mostra urn homem do passado e
-f\ assim declara que ele "irá morrer': "ela situa para mim a morte no futuro''.5
Tempo e fotografia : É o tempo armazenado que confere à fotografia a sua melancolia. O teatro de
Wilson também gera a i�1pressão do tempo aúnazenado nos corpos que se
Em seu ensaio sobre a fotografia [A câmara clara]. Barthes fala de wn nexo movem em câmera lenta: A lentidão deixa ver o curso temporal dos gestos,
entre teatro e fotografia que diz respeito imediatamente à dimensão temporal. intensificando assim a sensação de cada momento vivido.
Ele vê esse nexo por intermédio da "re_lação original entre o teatro e o culto
dos mortos'; na qual

os primeiros atores se destacavam da comunidade ao interpretar os papéis dos Ao lado da estética da duração, desenvolveu-se uma autêntica estética· da repe­
mortos: caracterizar-se era designar-se como um corpo ao mesmo temp� vivo tição. Nenhum outro procedimento será tão "típico" do teatro pós-dramático
e.morto - busto embranquecido no teatro tot&mlço,,ho'n!em com o rosto pintado quanto o da repetição. Empregado de forma extrema em trabalhos teatrais
no teatro cbiriês, m�quiagem à base de pasta de arroz no kathakali indiano, más­ de Tadeusz Kantor e de Helner Goebbels e em balés de WUliain-Forsythe, o
cara do nô japonês. Ora, é essa mesma relação qµe encontro na fotografia: por recurso da repetição interminável encontra uma variante bem-9umorada em
mais que se faça um esforço para concebê-la com vida (e esse furor de "fazer v!yer" Christoph Marthaler, que o introduz mt1slcalmente e no esti!Ó da. mecânica
só poqe ser a d�negação mítica de um mal-estar de morte), a fotografi�_. éléomo sem sentido do cinema ��dÔ :::·con1°0 ria inesqii:ecível cena do dormitórj� em
0

um teatro primitivo, como wn quadro vivo, a figuraçã?, da face imó-.;ere dissimu- A hora zero, ou a arte de servir [Die Stunde Nu// oder die Kunst des ServierensJ.
lada sob a qual vemos os mortos.� ·· · - No caso de Jan Fabre ou.� �inar Schleef, sua função principal é a perturba­
ção e a agressividade,,.. que 'i�ciuf à ãgressãõ tõntra-o·-público,. .Na repetição
A imobilidade cerimonial e ritual do teatro de Wilson revela um nexo entre agressiva é rec_ usada a demanda do c!ivet.timento superficial mediante Õ'con­
teatro e fotografia. É sabido que Wilson por vezes usa fotos como matéria­ 4e
swno passivo "éstí�1�los: em vez de variedade que 'mata o tempo, esforço
prima para seus trabalhos, e ocorre ainda que ao recorrer a imagens filmadas da visão para tornar o temp.? perceptível. Por trás da ira se reconhece a busca
ele aproxima o cinema da fotografia mediante sua repetição, como em As de contato real, ainda que se gundo o mote "O soco é contato". Em 1976 Pina
guerras civis [The Civil Wars), em que fotos da Guerrà Civil Norte-Americana Bausch protagonizou Ltm escândalo em Wuppertal com a estréia de Barba
eraú.1 o ponto de partida e os filmes pro jetados repetiam obsessivamente as Azul [Blaubart) - sensacional inatiguráção �e seu estilo de teatro-dança, no
mesmas seqüências. O caráter melancólico do teatro de Wilson, que a partir <lual o movimento, o espaço e _á intensidade d; expressãli""estática predomi­
do pouco de ação e movimento continuamente quer .se reconverter em quie- nam sobre o desenv9lyimento drámático, a narração e a beleza-, e a repetição
estava entre os}irocedímentod que despertaral}l os mais exasperados protes-
- ....
.·! -
4 ,Roland Barthes, D/e Hei/e kammer. Bemerkungen zur Photographie. Frankfu;t am Main,
308 1989, pp. 40-41. 5 rbid., p. 106. 309
't\'··

tos. Aqui, a provocante multi,plicação dos mesmos gestos de resignação, medo faz do palco o lugar de uma reflexão sobre o ato de ver dos espectadores. O
e abando�o pode ser pensada, afetiva e conceifua}.m�nte, como sítnbolo da que se salienta no processo da repetição é sua impaciência ou equani�nidade,
busca sempre em vão de estabelecer contatÓ é da situação de um tempo não­ seu estado de atenção ou sua relutância em aprofundar o tempo, sua disposi­
histórico, dcJico. Heiner .Mülléi: escreveu cerfa vez sobre a qualidade desse ção ou recusa a fazer jus à diferença, ao detalhe, ao fenômeno do tempo.
t�mpo no teatro de Pina Bausch: ''A históri�;parece como perturbação, como
mosquitos no verão". Mesmo a repetição mais mecânica, cotidiana, habitual e inteiramente estereoti­
. -......,
Assim como na duração, na repetição há uma érl�talização do tempo, uma pa da encontra seu lug;ir na obra de arte e com Isso é sempre posta em relação coin
compressão e uma üegação mai� ou menos sutis do de�õrrer do tempo. É certo outras repetições, certamente sob a condição de que dela se extraia uma diferença
que·o.rttmo, a melodia, á estrutura visual,-a retórica e a prosódia desde sempre eq1 relação a essas outras repetições. Pois não há outro problema estético a não ser
empreg;·;;;m a-repe�ição =- DJ.Q. há nenhum ritmo music.al, 11enhuma compo­ o da Inserção da arte na vidà·totidiana. Quap.to mais nossa vlda cotidiana aparece
sição de imagens, nenhuma retód�� étíêai; nenhuma pqesia, em suma, ne­ estan da.rd iia da, estereotipada, submetida a uma reprodução acelerada de objetos
nhuma forma estética sem·uma repetição utili.zada intencionalmente. Mas na de consump.-má!s·deve í! arte ligar-se a ela e dela arrancar essa pequena diferel}ça
nova linguagem teatral a repetição adquire um significado diferente, mesmo { ...]. Toda arte tem suas próprias técnicas de repetições intcrllga�as, cuja potência
oposto: se antes ela servia para a estruturação, parãã'construção de uma forma,. crjtíca e revolucionária po de alcançar o ponto mais alto para nos levar das repe­
I
aqui ela serve justamente para a desestruturação e desconstrução da fábula, do ·fÍções vazias do hábito para as repetições profundas da ínemórla e então para as
significado ·e.da.totalidade formal. Se os procedi_mentos são repetidos de tal derradeiras repetições d a morte (...J.6
modo que não mais são vivenciados como parte de uma arqu.itetw·a cênica e
como estrutura da composição, suscita-se no receptor a impressão de que eles Imagem-tempo
seriam redundantes e sem sentido. Eles são apreendidos como um decurso in­
findável, impossível de sintetizar, descontrolado e incontrolável. Vivenciamos No teatro dramático, a imagem desempenhava essencialmente o papel de
utn monótono fluxo de signos que se esvaziaram de seu caráter comunicativg ... un! mero pano de fundo. Ainda que este, em determinados momentos e por
e já não podem ser ap�eendidos como parte de uma totalidade poética, cênicà, causa do efeito da representação, fosse configurado de um modo extrema­
musical: versão pós-dramática negativa do sublime. mente encantador e impressionante, tornando-se assim prazeroso e valori­
Contudo, não há verdadeiramente nenhuma repetição no teatro. Já o mo­ zado como:tal, o aspecto visual recuava perante ô conflito representado, as
m�ntó em q'ue se dá a repetição é diferente daquele em que ocorre o fato ori­ peripécias dramáticas, o choque emocional, as surpreendentes viradas da
ginal. Aquilo que já se viu antes sempre é visto de um outro modo. O mesmo,. trama, O teatro pós-dramático engendra um espaço imagético que combina
repetido, está Inevitavelmente modificado: na repetição, o mesmo é o velho a teatr�lidadelornada autônoma com uma importante conquista da arte mo­
e o lembrado; ele é esvaziado (já conhecido) ou sobrecarregado (a repetição derna: a iotensíficação da perceptibllidade do espaço e da superfície pictóri­
confere sentido). A mudança de contexto, mesmo que mínima, dissolve a cos como tais. O pressuposto para que o teatro se apropriasse da dimensão da
identidade. Desse tnodo, a repetição pode gerar uma atenção permeada pela lógica imagfstica estava dado com a autonomizaç�o da experiência pictó�ica
lembrahça do passado, uma atenção às men'?res diferenças. Não se trata do sig­ na modernidade. As artes plásticas já haviam ousado fazer·de sua realidaae
. /
nificado dô acontecimento repetido, mas do significado da percepção repetida,
310 ou não se trata do fato repetido, mas da própria repehlção. A estética dó tempo 6 Gilles Deleuz.e, Differenz und Wlederholung. Munique, 199.2, pp. 346-47. · 311
material 0..fator dominar)te de sua constituição, e com isso o receptor fol tarn­ movimento temporal, que sua visão "suplementa" (no caso de representações
bém·"ín�umbido" de conceber mediante o olhar a temporalidade da imagem, reais de objetos ou figuras em movimento), repete ou mesmo cria (no caso de
e não simplesmente a temp.oraÜdade daquilo que é representado - de outro uma imagem não- objetiva ou abstrata). No caso do teatrô as relações se esta­
modo, ele não chega ao prazer da experiência de ver que, por assin'l dizer, o belecem de um outro modo, pois movimento corporâl, linguagem, som - a
espera na imagem. :· teatralidade, em suma - Já são em si mesmos tempo e decurso do tempo (sem
O efeito teatral de imobilidade produzido pelas estéticas da duração e da excluir o teatro extremamente estático). Na medida em que o teatro passa a
repetição tem a notável conseqüência de introduzir na percepção do teatro o combinar os fatores visuais e rítmicos com uma dramaturgia cênica, assume
foco na imagem-tempo, a específica disposição perceptiva para a contempla­ a qualidade de um objeto cinético, que já não pode ser apreendido com os
ção das imagens. Ao ativar na recepção teatral essa disposição que antes só modos de ver habituais no teatro narrativo. Sob o signo da dramaturgia visual,
estava em jogo nas artes plásticas, o teatro passa a fazer parte da problemática a percepção teatral ilão mais é direcionada para que o aparelho sensorial seja
da temporalidade dos fatores visuais. Gottfried Boehm escreveu sobre a p�r­ -
'!al'\!ej.í!_g.Q'.'._p.9� imagen_s em movimento, mas ativada, tá! como a capacidade
cepç�o pictórica: dinâmica do olhar di�nte de um quadro, no sentido de produzir pr?ces�os,
combinações e ritmos com base nos dados do palco, mas "sob direção própria''.
Se pela visão (ou pela interpretação) dissociamos do nível píctórico uma çena _ ou Na medida em que a semiótica visual parece querer conter o tempo teatral e
um ambiente como "camada" ou "teor material", .se. -. nos concentramos aas coi�as, transformar a ação que tr anscorre temporalmente em imagens de pensamento,
e'm seu teor, em seu sentido, então suprimimos, ao meno's em parte, as condições o olhar do espectador é solicitado a dinamizar no ver a imobíltda:de prolon­
de ;epresentação. Mas [ ...) se aceitamos com a série dos objetos mais reconheci­ gada que . se oferece à. sua vivência da imagem. A conseqüência é uma oscilação
veis também o nível dos contextos pictóricos planlmétricos, então nos aproxim , a­ I
do foco da percepção entre olhar-observação "temporalizante" e "acamp�_-!)-_ha-
mos do fenômeno real, da imagem como campo simultâneo e como continÚum. mento" cênico, entre a atividade de ver.e a convivência (mais passiva),
[ ...) O tempo representado e o tempo çla representação já não são sepa,. racÍ�s.7 O teatro pós-dramático exerce assim um deslo�amento da perceps:ão
-
"···-../
teatral - pai:a muitos pró.v.Q.ç_a!�va, incompreensível, entediante -.do deixar­
Desse modo, se na teoria da arte à temporalidade veio a ser reconhecida como se levar no flu:x:o da naúação par;-�mã cô·-reãliiâ�ão-c0nstrutiyª· de todo O
uma estrutura essencial da configuração das imagens, torna-;� releva11te abor­ complexo audipvisual do teatro. Cheg�-se-a uma exper.i_ência do esp�çÕ'etl�
dar esse tema também na teoria do teatro, Únagem cuja du��çâo e ,cuja seqüência temporal são bem menos'fi.xas,,'a um··
'
Com Boehm, sustentamos que a imagem, como "forma de relação'; sugere
uma "imagem-tempo" que é peculiar apenas a ela. El� apela ao sentido do
..
compromet/!1'1ento temporàl,e_ntre a seqüência da ação/narração e a·duração
. ' .
tendencialmente nãõ-direcionàâa da. contemplação do espaço e da imagem.
tempo do observador que apreenda, sinta e leve adiante o movimento nela Tal teatro ,de urna contemplação desacelerada, mais próxima da percepção
imobilizado e latente, que propriamente o "produza". A imagem representa um pictórica, se afasta ainda mais de seu írmão mais popular, o cinema, na·me­
fator que a princípio parece "atemporal': mas o observador, por meio de seu dida em que não partilha sua in�linação para a fabulação, sub·stituindo a U­
sentido do tempo, por meio ela fantasia e da empatia; descobre na imagem o nha de te111po de uma t.cân1a pela.experiência de um tempo teatral global que
se pauta pelo:·�itmõ·. É somente kor via da _irr.i_ei-s�o nesse ritmo cênico que se
7 Gottfrled Boehm, "Bild und Zeit': ln Harinelore Pallik (org. ), Das P.h�11omen Zeft ln Kr.mst chega à percepção de narrações·1'cóiifétid(sticas"
. residuais - freqüentemente
I
312 und Wlssenschaft. Welnhelm, 1987, pp. 10 � l3, fragmentadas -, possíveis histórias, te1:nas, associações, 313

\'

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-
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Paul Valéry fez a bela observação de que nos museus deveria haver uma gravações de atores em vídeo são trazidas para o palco, de modo que eles par­
cadeira diante de cada quadro. Na verdade, os hmseus tendem igualmente à ticipam da representação in absentia, o que há não é �penas um eco difuso do
apressada transformação da experiência vÍsual em mera informação que já ambiente de vida cotidianamente pautado pelas mídias. Por certo, também se
ocorre na reprodução em geral. Esse pro�lema sugere a questão de saber se reflete a realidade do tempo estilhaçado, mas sobretudo o fato de que espaços
!nisturas de exposição e teatro não passarão a ter uma maior importância no temporais heterogêneos podem ser "conectad{)s" sem esforço por meio das
futuro. A peculiaridade dà experiência teatral.(que em geral a visão se aplica mídias eletrônicas. Nes.sa conexão se perde a identidade temporal das reali­
a imagens 'muito grandes - o teatro é sempre um �adro enorme; o espaço dades individuais, que com a suposição de uma sincroniddade onipresente
teatral geralmente tem grandes dimensões. Por outro·lado, com a dilatação se tornam um componente de um tempo-espaço heterotópico, determinado
terilp_(?ral da representação exorta-se a �1ma contemplaçã� pàciénte, modifi­ eletronicamente. Aquilo que permaneceria trivial, como merà demonstração
cada a càêia vez por nuva$ c9.nstelações. Assim, ao mesm.,o passo que a estética da comunicação midiática, manifesta .t10 âmbito do teatro o conflito latente
da duração se desprende da pres;; dos'processo·s·dr-amáticos, concretiza uma entre momento de vida e superfícies de tempo virtuais e eletrónicas.
qualidade de experiência -visual que se interpõe entre o tempo teatral e a imo­ Nos traba)ho-s· fêatrals.nitidamente marcados pela influência das mídias
bilidade da imagem. O teatro também é uma galeria do futuro - assim como verüica-se o despedaçamento da ação cênica em estilhaços mínimos e hetero­
não se pode excluir que em certas n1odalidades (cõiiio o Já discutido teatro da· gêne,?s{à maneira do videoclipe - a exemplo das montagens do diretor alemão
leitura) ele pó'ssa se revelar como um refúgio da leitura atenta e lenta, como Learider Haussmann. Em muitos desses trabalhos, apresentado.s sobretudo
inesperada reaJi�açâo da visão de Mallarmé do l�vro absoluto. dos anos 1990, o que se visa é apenas a diversão e o sucesso (em conformidade
com o ideal da indústria de ��lreteni1m:nlo), mas também se verificam pro­
cessamentos convincentes da estética midiática. John Jesurun trabalha com o
Estéticas da velocidade
princípio do seriado televisivo; em Jürgen Kruse a inserção de música pop e
Em contraste com o teatro da lentidão, da imobilização e da repetição, outras de citações da mídia gera interessantes interpretações de obras dramáticas; o
formas teatrais pós-dramáticas buscam incorporar a velocidade do"tempo-�·-- ... _ grupo dinamarquês Von Heiduck incorpora il�são cinematográfica; as repre­
mldia e mesmo superã-Ía� Éncontram-se aqui alusões à estética do videoclípe, sentações de jovens realizadores de teatro como René Pollesch, Tim Staffel e
dt�ções da mídia, mistura de presença ao vivo e gravações e a seglnentação Stefan Pucher se apóiam na velocidade da estética pop e das mídias.
do tempo teatral à maneira das séries televisivas. Esse estilo é particularmente A simultaneidade na própria ação cênica, que aqui se toma dominante,
configurado em trabalhos de jovens realizadores teatrais dos anos 1990, que é uma das principais características da configuração temporal pós-dramá­
não se deixaín desencorajar pela proxii11idade com espetáculos multimídia e tica. Ela p ��:12 veloddade. A concomitância de atos de fala e de imagens de
com o show business, mas tomam o padrão mldiátlco como material, que utili- vídeo gera a lnterferêncla de diversos ritmos temporais, estabelecendo uma
zam de modo mais ou menos satírico e na maior parte das vezes em andamento concorrência entre tempo corporal e tempo tecnológico. A incerteza quanto
acelerado. A mistura de ação ao vivo e de material pré-gravado promove a dis- à procedência de uma imagem ou um som - se é gerado no instante, transmi­
solução da homogeneidade do tempo, e com isso dissolve aquela ideologia que tido diretamente ou pré-gravado - evidencia que o-tempó está fora dos eixos,
sempre "saltando" entre lapsos temporais het�rônomos. A falta de ugu:elÚp�
se deleita com o presente vivo no teatro, supostamente irredutível.
Quandó atores, unem seus corpos com as vozes de outros, quando sua homogêneo priva a experiência da possibilidade de assegurar-se da continui­
1
fala se dirige a parceiros ausentes (visíveis apenas num monitor) ou quando dade e da identidade de seu objeto pela repetição. 315
314
, .....
' �.
'· .

íeatro e memória

....--. --·---- ···-··-·---

Meinória hi$tÓrka
--·--
Segund� Maurice �albwachs, a memória coletivâ - da qual fa� parte a me­
mória cultural· - certameu.tu�. çôf!l'p,õe. _a P..��tir de uma som·ã..de-memórias
,,. /' individuais, mas é diferente da soma de lemb;nças individuais e é mais do
t.,
que ela. Na verc!ade, a existênda de uma mem6ria coletiva é um pressuposto
···--. ,/
lndispen�á:vel pà"ra:° Honsfü�iç.ã.o. Q? memória inçlivldual. Somente a inemó­
ria coletiva dá forma, ·t�gar, prófundid;d�-��;rt.iqõ-àTr�1!m01=açq_e2 indi- .
yiduai.S. Atgo_--CQQJ.-9 ó .provimento ·afuti':Ü ·de- -- experiênd�s· coletJvas é �;f:ãq'
necessário para.-que ·a· história pessoal� � lembran.ça . e' à experiência :de um.
passado - poss� ganhár >---.. . .
form��.
.
.
. O teat�o é um e�paço de m�niór�ã e revela uma manifesta relação com ô
téina da histo.ricidade, ainda filais agor.a, nun'l tempo midiático, em que a
''liber:dade" passa a aparecer idea�ent�-��mo.a..mais con� desobrig�·ção
do indivíduo, 0 teatro tem a Vér"C'Om , , a memória, da qual é justamente in-
·,
dissociável.a idéi�.de_ é!lgum ti�o de compr�rpisso, Cada mon:ento p.::esente
que reconhece inôstrar ein si ytestí�!9t.de s1,1-as- orígfns se encontra -. tanto
eil1 seus traços bóns . comõ"fú'ins
. . ·.:_ cbmo e}o de uma corrente, sem a qual
\

n_ão teria existido. Apes-ar desse i1exô de dependência e comprôi11isso que . 317
' / .
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'�
j
1
necessariamente liga a consciên.cia .e também o ite�tro à história,.o teatro não i
.l
seu aspecto e seus gestos despertam inesperadamente no observador a "lem­
é história; àssim como não é represe11tação direfamente P,Olítica (que hoje em brança" do (próprio) corpo. Isso está inserido estruturalmente na f orma do
dia outras mídias lhe subtraem). Heiner MiiUer gostàva de observar que o teatro, já que ele tem como objeto, apesar de toda desmaterialização e "espi­
. acontecimento mais importante da fpoca elisabetana, a dérrota da Armada dtuallzação'; a aparentemente iniludível presença natural do corpo humano -
em 1588, não aparece em nenhum drama daquela época. do carpi;> teatral, que se diferencia radicalmente de todos bs corpos simulados,
· Em nosso contexto, "memória" não significa qualquer tipo de ·dep·ósito de fotografados e reprod1.1zidos. Por meio da recordação de um sofrimento, de
·,
informações e "lembrança" não é um procedimento no quàl este ou aquele possibilidades desperdiçadas, de promessas não cumpridas que repousam
dado acumulado no depósito-memórià seja convocacfo.ao bel-prazer. Com o nos corpos e em seus afetos, o Eu olha por cima do .rriuro fronteiriço de sua
termo "p.assado" não se ���ignam os �ssi!Jl. �hamados fatos da história. Quem identidade e se abre, mesmo que inconscientetnente, para a sua história ge­
proc�à iro teatrp. -----,····-··-··
os "conteúdos" culturais de tempos idos,
.....
segundo o hábito nérica, para a conexão com Õs outros,_para a dimensão da responsabilidade,
dos antepassados, não ilumina o pôfoncia1 de memó.d!! do teatro, mas apenas que está ligada à sua historicidade. Parece proveitoso, 11esse contexto, recoi'­
sua função de museu. Mas o museu não é o espaço da memória do qual se dar o conceito·rnarx1sta de "consciência genérica" [Gattungsbewusstsein ).3 Só
trata aqui. O museu é um 1n:eio - um meio de depósito. Em contrapartida, o discernimento de que o indivíduo é ao mesmo tempo uma criatura gené­
uma representação teatral não é nenhum meio parn-alguma outra coisa - por rica S·cpt era a auto-suficiência sempre llmitada de um individualismo atro­
exemplo, parlVuma consciência hi�tórica aguçada quando, após a represen­ fia:ríte, espasmódico, e a absolutização de um determinado presentefetichista
tação, a pessoa se encontra novamente na rua. A memória acontece de outra (visto eurocentricamente).
faz
maneira - a·saf:i'er, "quando a abe:tura da vis�o se no tempo entre olhar e O teatro pode significar l,�IJ1brança de algo em suspen�o, passado e futuro, ·
olhar" (Müller), quando algo não vistb se torna quase visível entre imagem memória e antecipação, ruptura com a presença sobrecarregada de informa­
e imagem, quando algo não ouvido se torna qúase audível entre som e som, ção, consumo e "consciência''. O te. atro se torna significativo como espaço de
quando algo não sentido se torna quase perceptível entre as sensações. memória quando surpreende o espectador e rompe a próteção do encanto,

Lembrança dos corpos


--·-----..... --- qu� é também uma proteção diante do enfrentamento com com esse "outro
tempo" que não pode ser pensado sem o terror do desconhecido. Certa vez,
Walter Benjamin definiu o inferno como "o eterno retorno do novo'; mas essa
, Aquém e além do saber e do "entendimento'; o teatro realiza um trabalho de defü1ição pode muito bem qualificar o paraíso do homem pós-histórico, em
· memória voltado para ós corpos, para os afetos, e só então para a consciên­ cujo presente eternó florescem entretenimento, i11formação e consumo no
cia.1 O reconhecimento de Proust de que as lembranças mais valiosas talvez ciclo das ���_s: . É todavia �esse "outro" tempo que tém lugar a. experiência,
se situem no cotovelo, não'na memória mental, tornou-se corrente. O corpo quando elementos da história individual se encontram com os da histórià
é um local da memória, "um depósíto para pensamentos e sentimentos à coletiva e surge um tempo-agora da lembrança, que é ao 1ilesmo tempo me­
disposição'? e pode ser vivenciado como tal na realídade do teatro quando mória involuntariamente cintilante e antecipação. Nesses momentos dà não­

Ver Gerald Siegmund, 1heater und Gediichtnis. Semiotische und psychoanalytische Unterrn­
compreensão, do choque, da percepção iudiz(vel, experimenta-se a exposição
..,.-/
.,..­
clwngen ziir Funktion des Dram11s. Tllblngen, 1996. 3 Ver Karlheifiz Barck, "Materiolitãt, Materialismus, performance'; in Hans U. Gumbrecht e
. 318 :i. Pierre Bourdicu, Sozialcr Sitm. Kritik der theoretischn Vernun,ÍLFrankfurt am Maln, 1987. Karl L. Pfeilfer (or gs.), Materialltiit der Kommunlkatfon. Frankfurt am Maln, 1988, p. ll3, 319
a um outto tempo, que não é simplesmente 'presente e que em sua multidi­ na Trilogia dos dragões [La.trilogie des dragons], igualmente uma discussão em
mén;1onalidade talvez nem seja tempo num sentido claramente reconhecível. torno da memória poiftica. Mencione-se ainda a instalação de Robert Wilson
De todo modo, a memória aqui é algo que segue a contrapelo da história, [na Bienal de Veneza de 1993] intitulada Memória/Perda [Memory/Loss].
uma espécie de negação de seu curso_ temporal. urr{a "rememoração" desse
tipo, na concepção de Benjamin, jamais seria conformista, mas "contrame­ Tempo-culpa
móriá: na acepção de Fo_ucault.
Certamente s_ eria possível detectar a repetição dos mitos mesmo nas for­ Não é nenhum acaso o fato de que o teatro funciona como espaço de memó­
mas de teatro radicais da atualidade. Afinal, em todas as culturas o teatro en­ ria não só genericamente, mas sempre teve a ver com o passado e com as his­
trelaçou a afirmação da eternidade dó mito com sua desmontagem. A cons­ tórias dele provenientes de culpa e culpabilidade, histórias trágicas, cômicas,
ciência da tradição e as imagens aparentemente antiiluministas do mito são grotescas, tristes ou amargas: a culpa é a dimensão.dramática por excelência.
uma dimensão do teatro que pode ser conciliada com a contramemória. As­ . -Há--muitn..q,Y.e permãi-iecia em aberto uma avaliação que exige muito do pre­
sim, ressurgir-aro a narração supostamente épica e os grandes espaços míticos sente e do futuro. Um modo de agir deixava vestígios ·no futuro. Não é só na
do passado em Robert Wilson (A floresta [1he Forest]), Peter Brook (Maha­ tragédia que a culpa é a lembrança �e que a Eu não se baseia em si mesmo.
bharata), Ariane Mnouchkine (Os atridas) e Robert Lepage (Os s�te afluentes No teatro pós-dramático, o próprio despedaçamento dessa experiência está
do rio Ota [Lcs Scpt branches de la riviere Ota}),,entr� :'árias outros. no centro, porque o teatro confia cada vez menos.ao çãnone dramático tra­
dicional a capacidade de ccimuni. car aquela dimensão tempor�ldáÕbrigação.
Desobrigação A comunica�ão enttà em cena aqui como sua auto-ínterrupçãç, resístindo
.,··
,; contra fórmulas de e.nten.c\im�qto s9tial _equ_ilibradas e bem fui1ciônais. Tam­
� certo que a vanguarda teatral do século xx se insurgiu contra o fa!·do'opres­ bém por isso o teatro, em vez de reavaliar as hi�tói-ias da culpa na forma dra­
siva do passado mediante afirmações radicais do agQra, revalorizándo o pre­ mática preservada, vive o próprio momento teatral, .Com isso, muitas vezes
sente e os impulsos futuristas. Contra os poderes estabe·Í�dâos da tradição, o parece que se perde a histótia no dupl()_sentido da palavra: não se revela ou é
teatro moderno perseguiu algo que poderia ser designado corno um amplo mostrada como algo qtte se perdeu ou que·�; p�réiê]vfas'à �sca·de.fonna 110
programa de desobrigação. No· entanto, a partir .do. s anos 1980, com a totali­ t;atro recente ou �ais novo, que evita a· referência aos·"gra;1des" temas da·l;is­
zação da sociedade midiática e a conversão de experiência em informação, tória, da polítí�a e dâ mq�al, não é n.ada além de busca - freqüent�i\1�nte sem
a reflexão teórica e artística se volta com renovada intensidade para a reme­ consciência de si própria �'·d�- fon�1as de repre;entação teatral para' a obri­
rnoração. No início dos anos 1990 podia-se constatar. no âmbito do teatro gação e a responsabilidade, quê"estão incluídas na dímensão da lembrança.
diversi}s tentativas de explorar o tema da memória e da identidade hist6ric�. Desse modo, as novas formas tec1trais destaca� de diversas formas à presença
A reviravolta política mundial hayia recolocado o tema na ordem do dia. Em do espectador; elas visam a reativ�ção da par-ticipação �os e�ectadores, for­
1990, Christoph Nele Michael Simon apresentara�n em Frankfurt a montagem mas pararrituais, estéticas agressivas de recusa, a abertura do p.rocedimento
teatral em direção à festá; o teat o ��mo s_ituaç,ão ou a compreensão regional,
A memória se misturp na velocidade do esquecimento (Das Gediichtnis misst 1
sich an der Geschwindigkeit des Ve,gessens}, na qual materiais narra�vos polí­ étnica, política. 1 ·•••·
ticos e privados se confundiam com intervenções cêrucas. Na segunda metade Essa tendência não exclui que· o tempo
, ifeatral negue utopitamente à
320 dos anos 1980, o 11'éâtre Répere, sób a direção de Ro�ert_Lepage, trabalhou violência do t�mpo que julga os fatos. Ele ta rbém pode fazer da libertação 321
\
..... --·-·
\
� . -----·. -
do tempo-culpa um tema: Na_s.anptaçõeS"C:).é F�tei: .B;andke sobre A hora em
que não s'abíainos nada, uns 'dqs outros (Dié"Stun.d e à� w(r nicht-s:v.i:ineinander
,:-··

·
wussien] eftcontra-se a utopia de umà obse(v:a9ão atenta: que contemplà tudo,
mesmo o mínimo aetalhe, e se-torn� f.elicidade porque pode ser sentida como
"substituta'; como símbolo para-uma ·poss1vél õüt.ra vida. Càsõ se $lgain as
4

éonslderações de Handke, ó teatro não deve mostra_r tanto ô que cle sel'npre
mostrou; Ç> tempo de uma história· da ·culpa;· i�-s.9bretudo·a1g0 que poderia
ser cl'lamadó de um espaço dã'inocencia. Seria urn.�at-(ô ut6picó, no qual o
espectador veria "o lade;>_p_es_�oal dp n�u1,19_�_ desperto [, ..] seili·os trilhos de sua Digressão sobre a unidade de tempo
hist6rià''.5·Ess�-ªP-ª.r�t�tn_� gação da história pode ser Hd� como a tentativa da
_
abertura, de um outro olhà;s·Õbrêã-li"istória;-pàr-á.:alip} 10 âe1nônio da culpa.
.....
Handke: "Nada aconteceu, É tflinbém não precisa acontecer nàda, libertado
,/'••,

dà expectativa eu estava, e distante de qualquer ruído''.


6

. . -· -· ·····--- -- ,/

('
En14ár10s aspectos, _à regra da. unidade de·terti.po foi essencial para a tradiçãó
aristotélica do teatro dram"éitico. Talvei ela tenha sldó desde o utítiô relacionada
-
... _ ... à unldade de u.n1 dia de prócesso e de um deôate - cer-tà vez Adorno chat11ou a
,:::..::. '

tragédia: a�tiga d:e "d�.9ate sem sentençâ''. Mes1nô quaúdo não era buscadà umà
unidade de tempo exterior (como 1!0 teatro elisabefáno, pór exempló), o teatro
se encontrava sob o slgnô de um ideal de completudê orgfüica, que n·ecessa­
....
.
________ ··-· ----- ri.a�ente tinha conseqüências p�ra a representa<yão do teítlpô. Em contraste,.
deve-�·e destacar á'quelas dramaturgias que no séculó XX modificaram á COill·
preensão disso que"é chamado de teatró. O cônceito brechtiàno· dá "dtan.)átita
não-aristotélicà': cunhado nos anos 1930, se parava ô tea,tró épico não tanto d�s

--
regras clássicas do teatro dramático, mas sobretudo da finalitlade· da "catarse''
dó espectador pela sei1sibilidade:

Designamos uma dramática como "aristotélica" quando j!SSQ sensibilidade


- é deti-
1
vada dei�, nã� Jmportando se com a utlllzação das regras liltroduzid.as para lss.o
por Arlstótele� ou sem sua utilização. O peculiar ato,psiqulco da se1isibilldade·é
realizado d;e modo inteirainente diverso no curso
. dos sécuJ�s.
1
. .../
,,,...---

Peter Haudke, DieStunde d� wir nichts voneinander wussten. Berlin'\, 1993, p. 2.


3 '

4
5 Ibid., p. 66.
Bertold Brecht, in Werke, op. cit, v. 22, p. 171.
322 6 lbid., p. 28.
A crítica, de Brecht não se aplicava.tanto à tragédia antiga quanto às metas de de modo que escapam ao contemplador a unidade e a tot�lidade da contemplação,
efeito do naturalismo e do e:'Pressionismo. Ao mesmo tempo, tratava-se de legi­ cômo se, por exemplo, uma criatura tivesse o tamanho de dez mil esttidios).3
timar, com um discurso vibrante, a nova forma teatral épica em contraponto
a um antípoda, cuja e,statura evidentemente tinha de ser grande o suficiente: Qual é o sentido dessa comparação um tanto grotesca? Trata-se de evitar a
teatro épico versus teatro dramático, dramática não-aristotélica versus dra­ confusão e da questão do "a um só tempo" (hama): a forma - btli:za, harmo-
mática aristotélica, Brecht versus Aristóteles. . nia orgânica - tem de ser perceptível e apreensível de um só golpe, sem retar­
Faz parte do projeto do teatro épico a dramaturgia de saltos temporais, damento de tempo. Nó que diz respeito à ação, isso significa que sua lógica
que remete a uma realidade e a modos de proceder como descontinuidade: coerente e sua totalidade (holon} não devem escapar ao espectador. Desse
modo, diz o argumento, tainbém a ação precisa ser condensada de modo que
O espectador moderno não deseja ser tutelado nem violado (a saber, por "todos fique "bem observável" (eusynopton) e ao mesmo tempo "bem memorizável"
• l - •

os estados afetivos possíveis"), mas quer simplesmente obter material humal)O ·(eumnç_m�i1�uton), Sein essa clara e abrangente visão da unidade lógica, pada
para ordená-lo por si mesmo. Por isso, ele também adora ver o homem em situa­ de belo pode surgir. No sentido desse ideal de "visão de conjunto''. a exten­
ções que não são assim tão daras; por isso, não precisa nem das fundamentações são correta da ação dramática é definida de tal modo que o tempo deva bas­
lógicas nem das motivações psicológicas do velho teatro.[ ...] As relações e�tre os tar exatamente para possibilitar uma reviravolta, uma peripécia - em outras
.
homens de nossa época são obscuras. Portanto,-o--tea.tr � precisa encontrar uma palavras, tempo para a lógica de uma reviravolta. O drama confere lógica e
forma para representar essa obscuridade da maneira mais clássica possível, ou estrutura à abundância e ào desordenamento do ser (por issoele·--está acima
seja, com serenidade épica.2 da historiografia, que tão-somente relata acontecímentos caóticos) .. É essen-
I
., dalmente a unldad� d�. ��P.� - que- deve conter a unidade dessa -lóg.ic.a � ser
Enquanto Brecht privilegia o salto tanto no nível lógico quanto _µei'tem­ apresentada sem confusão, digres;ão o� ruptÚà'i.·
poral, em Aristóteles a unidade de tempo é crucialmente impo_r-t�nte para Um aspecto da concepção de unidade de tempo.que fica apenas implícito
assegurar a unidade de ação como uma totalidade ·co�rente, Não deve em Aristóteles é este: na--me.ç!jqa em que o tempo e a ação alcançam coerência
haver saltos ou digressões qtie possam obscurecer a clareza, confundir interna, cootinuidade·sem falha��-��� tótaITdaâe-âãvisã·o·de conj_unto, uma
a compreensão. Antes, deve· irp. perar uma lógica ininterruptamente re­ tal unidade estabelece um limite incisivo-entre o dra,n_1a -�-o mundo -�têrior.
conhecível. É essencial nesse contexto a exposição da Poética segundo Ela assegura"a estrutur-:: �echada da tragédia. Lacunas e saltos n�. con.tinuum
_
a qual a ação dramática precisa ter uma cert� grandeza - no sentido da temporal interno teriam ae- �er pof!tos de írrupção para o tempo real externo.
extensão temporal. Aristót,eles recorre a um� peculiai:. comparação da ação A coerência Interna e a estruttira fechada em relação à realidade exte·rn� são
com um animal: aspectos complementares desse tempo teatral uniforme. O prazer estético ·
não deve se dar sem ordenanien·to·:.. há que se evitar, por exemplo: o êxtase
Portanto, não pode ser belii nem uma criatura muito pequena (a contemplação ritual coletivo ou wn procedlm;nto "mimético" exubera�ttque comporta o
se confunde quando seu objeto não está próximo de uma grandeza perceptível)
. . ,,
risco de uma mistura-afetiva. ,P ortanto, a concepção aristotélica da unidade
nem uma criatura muito grande (a contemplaç�o não se efetiva de uma só vez, do tempo dramático p;ocura �eHmi'.a_r uma esfera estética fechada �-ori1 um
_

324 2 lbid., p. 2. 3 Aristóteles, Poetik. Stuttgart, 198'.I., cap. 7, p. 26. 325


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' .
tempo artístico próprio e conc_eb_er uma ·expe�iência do belo que o consti- e da confusão. A razão da regra é a afirmação da regra, É preciso evita � a
tui como análogo da racionalidade. Essa analoglii está a �ervlço·da exigência confusão, a fantasia que vaga livremente, não dirigida ou regulada pelo pro­
de continuidade interna, coerência, simetria ?rgânicà·e visão de conjunto cesso dramático, a irrupção da recepção imaginada sabe Deus en'I que outros
temporal. Por contraste, o claro rec:o_nhecimento está entre as mais elevadas mundos espaciais e temporais.
, propriedades emocionais do teatro: compãíxão' [eleos] e medo [phobos] são Caso a apreensão de fnaiores lapsos temporàis seja imprescindível, deve
afetos tntensos, e a catarse deve dominá-los mediante uma espécie de enqua- ser regulada de tal 010�0 que o tempo estendido seja situado entre os atos. A

dramento pelo l6gos. ', tematização do tempo real deve ser evitada mediante a ausência de qualquer
A despeito_ de suas implicações filosóficas, a Poétiàl-de Aristóteles era um indicação de tempo precisa no texto falado. Os relatos sobre eventos que se
texto pragrt1ático e descritivo. Na era moderna, suas observaçõe�·foram con­ deram antes da ação cênica devem ser minimi�ados para não sobrecarregar
-
-
vertidiiifem-reg�s
. n--'- orn�;tlvas, as ·reg�as ;·�·preceitos, os preceitos em leis; o a memória e a potencialidade intelectual do espectador. Como o duplo mais
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que era descrição tornou-se- pr'escrição: Burante.õJ.t��ascimento, ainda riva- perfeito possível da realidade e ao mesmo tempo como instância de raciona­
lizavam utna concepção de arte platônica, orientada para o furor poético, e lidade e coe�ênéfasugestivas, o teatro necessita da unidade de tempo, con­
uma concepção aristotélica, orientada parà a razão e a regra. A linha aristo­ centrandq-s·e no presente e excluindo a multiplicidade de espaços temporais.
télica saiu-se vitoriosa e tornciu::-se determinante para as.idéias teatrais da era Ao ge,r�fr continuidade, a unidade deve tornar imperceptível qualquer cisão
n'l.oderna, s�b�et�do no classicismo. Em s�u Discurso sobre as três unidades entl'� tempo fictício e tempo . real. Afinal, qualquer ruptura na estrutura tep:i­
[Discours sur les trais unites], de 1600, Corneille afirma que o autor dramático poral traria consigo o perigo de que a diferença entre original e reprodução,
deve tentar ÕJéãiiçar unia.lde�tidade entre o tempo representado e ó tempo entre realidade e imagem, se tornasse consciente e o espectador fosse irreme­
da representação te�tral. Essa regra, esclarece ele, não provém somente da diavelmente reenviado ao se�tempo, o tempo real. :Desse modo, ele poderia,
autoridade de Aristóteles, mas também, diretamente, da "razão natural": o sem controle, fantasiar, refletir ou mesmo devanear.
"poema dramático" seda "uma imitação, ou melhor dizendo, um retrato das As estruturas temporais da tradição aristotélica não são simplesmente
ações dos homens''. Essa comparação logo se tort1a útil para o argl!!,l}�J!t � um_ arcabouço inocente e hoje en'l dia antiquado, mas componentes essen­
prit)cipal, já que a perfeição de um retrato se mede - "sem duvida alguma" � . . . . . . __.. � - ciais de uma poderosa tradição. O teatro do presente ainda precisa perma­
. pela semelhança com o original. No que diz respeito à função da unidade de nentemente se afirmar contra o efeito normativo dessa tradição, por mais
\ tempo, essa passagem fundamenta o especial motivo pelo qual se aspira à que ninguém mais defenda a norma da unidade de tempt> num sentido
. identidade de tempo �epresentado e tempo d.a representação: o "medo de cair formal. As concepções estéticas e dramatúrgicàs d�ssa �adição devem ser
no desregramento'; nos termos de Corneille,4 Não é a identidade pragmática interpretadas como definições e delimitações da recepção, como tentativa
e técnica do tempo representado e do tempo da representação que constitui o ' de estrut�açãÕ dos modos de fanta·siar, pensar e sentir no teatro. A unidade
verdadeiro inativo da unidade de tempo, mas sim o fnedo do desregramento
.i temporal torna-se assim um valor sintomaticamente importante. Os dois
aspectos complementares da unidade de tempo - continuidade interna e

ísolamento em relação à exterioridade - eram e até hoje são regras básicas


1

4 Pierre Corneille, Discours sur les trois unités, ln CE11vrcs complétes. Paris, 1963, p. 844.
A comparar com o signlficado central do conceito de "desregramento" na poética da rno­
não s6 do teatro mas também de outras formas de narração, co�w--fác11-
dcrnidnde desde Rimbaud, que promove o "desregramento d� todos os sentidos" a um pro­ mente comproval'ia uma brev� consideração dos filmes hollywô'odianos
grama poético. com o ideal da "montagem invisível''. . 327
A tr�gição aristôtélicà da draro.aturgia do. tempo tinha por meta - assun
pôcl'ért1os resuli1ir - nada �en?s que impedir a manifestação do tempo como
tempó. O tempo é:ôillo tal devia peth'lanecer reduzido a uma ínsignifica1)te
condição da ação, devia permanecer imperceptív,el,e para tanto havia as devi­
das regras, Nada deve.desviar o espectador do··rumo dos acontecimentos âra­
maticõs. O autêp.ticõ sentiqo 9à estétka temporal a(istotélica não.é.estético. A
LJ.11idade de tempo no teatro aponta sobretudo para ufna imagem fantasiada
do continuum. d teatro deve espelhar e aprofundar ô continuum social de inte­
ração e comunicação, o continuum de um contexto sociossimbólico de ideais,
valores e convenções. Inversameüte, se o teatro tomar o ptrrtido da ruptura
coni esse continuum mais profundô, também a unidade de tempo irá ces�ar ... - -·
não só no drama, tôlno também na realidade do texto da performance.

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Olhares sobre o corpo
-·---- ·-. - - Em nenhuma out�a forma de �,rte ó corpo humano ocupa _uma posi�ão tão cen­
..,, tral quanto no teatro, coríl s�';realidade Vi.tlhe;ável, brútàl, erótica ou "sagrada''.
O teatro teve início quando um in�iv{duo se desligou dô coletivo e foi algo nó­

- ..... ·- .. -·· ----···


tâvel de si mesmo: o impulsionador, que fantasia seu corpo, 1alvez expondo un1
-co.q�o especialmente belo e forte, e relata atos heróicos (próprios); ou o cõrajõsçi,
4ue ousa sair da doletividade protetora e adentrar ufü qutro espaço, àlém e diante
do grupo. Esse outro âmbito permanece estranho e inquietante, dç tnodo que o
palco conserva algo dó Hades: nele perainbulári1 espíritós. O corpo do teatrô é
sen1pre da ií.iôrte. O f,alcô é um outro mundo, com ufn - ou nenhwn - tempó
próprio, �1anece ligado a ele um fator de medo inconsciente de dirigir um
olhar proibido e voyeuristicõ ao reiriõ dos mortos, Vmá intuiçãô do pensatn.ento
afitigo associa hybris e teatró, A hybris faz o ser hufilano sair do coletivô pafü
à visibilídade. �la· srgnificâ estar exposto ao pe.rigo. O local que simboliza esse
risco é o palcó. O homem da hybris - o homem como "mais do que ele mesmo"­
tem e desperta em si uma espécie de distanciamefito de si próprio, Uflla··-auto­
exalt<_lção que é ao mesmo tempo uma exaltação dos outrôs. Assim, elê'atrai para
. -
\
si iiweja, ciúlile, desejo de vingança: ó preço de sôoressair-se. 331
O ·corpo vivo é uma complexa rede de púlsões, intensidades, pontos de de jeito cômica), constitui o prazer teatral - e com freqüência mais do que a
ene'rgia e fluxos, na qual proc_essos sensório-motores coexistem com lem­ dramática oferecida. Mas antes da modernidade a corporeidade só foi expres­
branças corporais acumuladas, codificações e choques. Todo corpo é diverso: samente tomada como tema em casos excepcionais, que confirmam a regra
corpo de trabalho, corpo de prazer, corpo de esporte, corpo públlco-e pri­ de ;{1a marginalização discursiva: o phallus das comédias antigas, a dor do
vado.• A concepção cultural sobre ô que é "o" corpo está sujeita a flutuações ferimento de Filoctetes, os tormentos e a tortura do inferno no teatrn cristão,
"dramáticas''. e o teatro articula e reflete �ssas conçepções. Ere representa · a corcunda de Gloucester, a doença de Wõyzeck. Com os J'nôdernos, a sexua­
corpos e ao mesmo tempo os tem como seu principal material de significa­ lidade, a dor e a doença,. as deformações corporais, a juventude, a velhice, a
ção. lvfas o corpo teatral não se contenta com essa função: ele é um valor sui cor da pele (Wedekind, Jahnn) se'tornaram temas "admitidos': O "casamento
generis. Não obstante, antes da modernidade a realidade física do corpo per­ de homem e máquinà' (Heiner Müller) começou nas vanguardas históricas,
maneceu geralmente incidental nó teatro, Disciplinado, treínàdo e moldado com a junção do orgâJlico e do mecânico, e perdu�ou. sob a influência das
para a função da significação, o Corpo não er,a nem um problema nem um · -·-rrovas-tecnologias, passando a abarcar o corpo humano, que, conectado a sis­
tema autônomo do teatro dramático, �o qual permaneceu sobretudo como temas de informação, gera novos fantasmas no teatro pós-dramático.
uma espécie de "subentendido''. Isso não é de surpreender, já que o drama se Ao passo que na organização espacial do "Balé Triádico" de Schlemmer
constituitt essencialmente em função da abstração da densidade do material, ou na organização da superflcie pictórica de Mondrian estava implícita a
da c_onccntração "dramátic/ em conflitos espirituais - em contraposição à perspectiva de uma organização social utoplcament� rac!onal, as máquinas
predileção épica pelo detaU1e concreto. Assim, a sexualidade aparece como tecnológicas de desejo e ier'ror do teatro contemporâneo ati.ãi1aonan1 a via
amor; a dor e a degeneração como sofrimento e morte. (dramática) da utopia. Com isso, aparecem diversidades de u91 corpo tecni­
O novo teatro, inversamente, segue uma via que conduz da abstração píÍra camente infiltrado: as.a.tíQJ:�� tmagens de corpos entre organismo-e, maquina­
a atração. Já Elsei1stein discute esse tema quando fala da "montagem-d� atra­ ria; a graciosidade onírica da figura hu�a�a-nõ movimento em câmera lenta
ções': na qual "é difícil precisar onde termina o fascínio pela nopf�za do he­ de Robert Wilson, cujo teatro se aproxima da leveza e graça das marionetes
rói (moli1ento psicológico) e onde começa a sua seduçã� ·pess;�,
(isto é, sua kleistiaóas mêdiante a adaptaçã_o c!_e uma técnica cinematográfica; a "comuta­
ação erótica sobre o espectador)''.2 Não'é o caso de detalhar aqui como se deu ção" do olhar entre presença ao vivo -�-;íd�Õimage11i âo'S córpes; o olhar sobre
essa metamorfose do corpo, que alg·o implicado na tradição teatral dramática . as imagens �orpç>rais distanciado·por procedimentos:tecnológicos (close-�p,
passa a tema nas vanguardas históricas e por fim a realidade determinante da blow-up). Um motivo 1;_1ais profundo para esse esforço de deslocar a fnfase da
forma no teatro pós-dramático. Note-se apei:ias que a atração emanante de abstração para a atraçã�--pode ser .encontrado na intenção de, com a· corporel-
·-....
atores, dançarinos e cantores desde sempre foi um elíxir da vida das represen­ dade teatral, contrapor-se à gei1eralizada descorporlzação que separa o corpo
tações. A aparição corporal da estrela, com sua elegância e beleza (ou sua falta do desejo e do erotismo no desvio que pa�sa pela sexuallzação totalmente·
superficial. Baudrillard escreve:_.. -·· ···
·------
:
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Ver Roland Barthes, Dle Lust am Text. Frankfurt am Maio, 19 86.
Sem falar nada da reduplicarão genética, hoje em dla temos a ver COJ�l uma re-
2 Serge j M. Eisenstein, "Monta ge ·der Altraktlonen· : in Franz-Josef Albersmeicr (org.), Texte
i11r'Theorie des Films. Stutt gart, 197 9, p. 48. {Utlllzou-s. €aquJ a tradução de "Montagem de
duplicação fractal das imageps e �os. rnodos de manifestação do corpo. [ ... ) O
atrações" publicada em lsmail X�vier (org.). A experiência do cinemà. Rio de faneiro: Graal, close de um rosto é-tãq obsée1w quanto um;õrgão sexual observado de perto.[... )
332 1983, pp. 187-98.] Procuramos o preenchim.ento · do de�ejo na artificialidade técnica do corpo e nos 333
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' . ,
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esforç_amos para alcançar sua diversificação_em objetos parciais. [ . .,J Hoje em dia interpretada por corpos teatrais vivos, em movimento, e convertida 'em umà
_ se trata de ter um.corpo_;·m�s de �tar c�feé;ado a um Ç.9f.Pº: [.,,J Mesmo
não mais cena, como no Marat de Peter Weiss e Peter Brook, em que a pintura de Da­
na boate, as pessoas se sentam no bar e olha� p ara a pist;i'de dança como os con­ vid é citada com atores agrupados em torno da .figu.ra de Marat. De imediato,
_
·-
troladores de vôo em seus aparelhos de radar diinte
'
da pista de pouso.3 ·mesmo o "quadro" mais pleno de significado é transposto para além de qúal­
quer possibilidade de interpretação, para a materialidade cega, a representa­
f\liás, nessa paradoxal dessensualizaçâo pela presença contínua -de imagens ção sensória, para o efêmero fogo de artifício dà ação teatral.
corporais sexualizadas o corpo mais uma vez ·se,toma um portador de signi­ Um quadro existe· como realidade autônoma; ele articula os elementos
ficados por excelência. O que si; liga a ele etn tern�Ôs-q_e graciosidade se torna en: uma concentração·sincrônka para, em cada caso, "produzir nos campos
imediatamente "signo de" (fitness, adequação, sucesso:�tatu� etc,). É estreita 'desentranhados da matéria um excedente em termos de sentido".4 O teatro,
a via pela qual o teatr9 pode valorizar o corpo, entre a significação destituída em contrapartida, sempre apresenta os significados em uma extertsão tem­
de sensualidade e uma·corporeidª-._d� _co_111� signo. poral, de modo que algo Já desaparece tão logo quanto novos momentos se
- � .. ·-�·---
anunciam. � s;ada P,\J:SS� dissolve-se a força instituidora de sentido da mol­
Imagem, teatro e sentido dura, da a,:ticulação estética; as construç'ões são permanent_emente abaladas
por :§.Sª oscilação, Tudo, inclusive o sentido mais profundo, recai em um des­
A conseqüência imediata da igualdade de direit�;-�ios dois aspectos de sig- locámento que suspende a doação de sentido, mudando com o imprevisível
nificação do córpo teatral - personagem incorporado e graciosidade livre de tumulto da physis. Aqui mais uma vez vem à tona o fato de que no procedi­
sent[do do corpo blcorporador - é que, teoricamente, o segundo reivindica mento do teatro em geral está unplicada uma falta de arte que lhe é própria
validade própria por si só, de modo que a graciosidade também possa existir e especifica como forma artística, algo que não se encontra em uma obra de
no teatro sen1 a incorporação de sentido. A superação do corpo semântico artes plásticas mesmo quando ela põe em jogo suas cama�as pré-estéticas,
proporciona novas forças ao teatro moderno e ao teatro pós-dramático. Um sua mera materialidade. .,
fato peculiar do teatro recobra seus direitos: nele se aplica a fórmula "a sen­
sualidade subverte o sentido''. Podes se ilustrar essa circunstância m�cÍia:iíté it.... - · · -·· !>6 agon à agonia
comparação entre urna cena teatral e uma pintura que é nela citada. A fixação
.� e todos os dados senslvei? em uma pilltura se oferece ao olhar como compo- O caráter sensório da cena não é muito propício ao sentido. O que acontecerá
sição estética de tal maneira que cada detalhe, "eternizado" pela imobilização, quando a realidade em si mesma já "dessemantlzada" do corpo na dor e no
pode ganhar uma plenitude de significado, por mais que se trate de coisas prazer (para Lacan, limites Insuperáveis do discurso em geral) for eleita como
comuns (no quadro Marat em seu último suspíro (Marat a son dernier souplr] tema do feãtro? É Justamente Isso o que ocorre no teatro pós.:dramático. Ele
de David, por exemplo, o punhal, as cartas, as penas, a água, a postura do mo- faz do próprio corpo e do processo de sua observação um objeto estético-tea­
ribundo etc.). Enquanto a pintura realiza uma metam;rfose da sensualidade tral. É menos como significante do que como provocação que esse objeto
em sentido, comporta-se de uma maneira inteiramente diferente quando é vem à tona. ,Na religião artística dos antigos, o c�rpo belo havlá sido, afinal, .
um tal valor- próprio, ainda que certamente ·como manifestação de seJ1-Hdô.
__.,,./
3 Jean Baudrlllard, in Ars Electrnnlca (org.), Phi/osophien der neuen Technologie. Berlim, 1989,
334 pp. u6-19. 4 Cottfrled Boehm, ln Jdem, Was is/ e/11 Bild?. Munique, 1995, p. 38. 335
Depois �le -teve de significar o incorpóreo. Foi necessária a emancipação do espontânea, mas também uma "segunda colonização" a par�ir da qual se for­
teatro como uma dlmensão_própria da arte para se compreender que o corpo, talecem sua expressividade, precisão, tensão e coJn isso sua presença. Barba
sem prolongar tuna existênéia como significante, pode ser ,agenteprovocador literalmente subordina o drama - que tem lugar entre dramatispersonae in­
de uma experiência livre de sentido, que não consiste na atualização de um corporadas - ao corpo orgânico:
real e de um significado, mas é experiência dopotencial. Ao designar apenas a
s�a presença em uma auto-deixis, o corpo inaugura o prazer e amedo de um ·o processo criati�o do ator pode ser realizado com total distanciamento. Ele pode
olhar dirigido ao vazio paradoxal do possf- vel: teatro do corpo é teatro dopo­ ein
dividir seu corpo diversas partes, remontá-las e assim, ao fazer que as diyersa�
tencial que, na situação teatral, se volta para um imprevisível entre-os-corpos partes de seu corpo dialogµem, ntJngir efeitos dramáticos, uma situação de con-
e valoriza o potencial como privação ameaçadora - tal como Lyotard pensa o fllto, introversão ou extroversão. Mediante uma dialética física, ele produz uma
conceito do sublime -, mas ao rnesmo tempo como promessa. imagem que torna visíveis as tensões emotivas, conceituais e psicológicas,6
O processo dramático se dá entre os corpos; o processo pós-dramático,-no
corpo. No lugar do duelo inental que a morte física e o duelo sobre o palco ape­ Punctum, antropofania
nas evidenciavam, aparece a dinâmica motora do corpo ou o_ seu impedimento: ..
forma ou deformidade, totalidade ou segmentação. Se o corpo dramático era Uma vez qu� o corpo pós-dramático se caracteriza por suapresença, e não por
o portador do agon, o. corpo pós-dramático estabelece a imagem de s�a ago­ algo como sua capaclda,de de significar, torna-se. consciente sua capacidade
.
nia. Isso 11\terdita toda representação ou interpretação placidamente apoiada de perturbar e Interromper 'toda semiose que possa pro;ir . di esl:rutu;a, da
no corpo como mero Intermediário. O ator precisa se colocar, Valere Nov11rina dramaturgia e do sentido lingüístico. Por isso, sua presença é _§empre pausa
afirma: "O ator não é um intérprete, porque o corpo não é um instrume9ti de sentido. Ele faz vir à t.on.ª-�quilQ_q�e .Roland Barthes chamõtt ·de.!!pu-nctum"
,._ -· ....
Ele refuta a idéia de "composição" de um personagem dramático pelo átor e acerca da fotografia, Trata-se do detalhe ocasional, da singularidade, de uma
s�stenta, em cont�ário, que "é � decomposição do ho_mem que se.. d·á sobre o qualidade não racionalizável no que é retratado, um momento indefinível. É
palco''.5 Em razão desse deslocamento, põe-se uma nova t��êfa·pa�a as pessoas a essepunctwil"quê o teat..r-o,. pó�-fl.ra_tp?tico leva o espectador: à visualidade
de t_eatro formadas segundo o modelo europeu: elas precisam reaprender a li­ opaca do corpo, à sua'pecúliaridade não-��;c�it�iãl,'tãlve:nriv!g-l, ql!f:__�ão se
dar com o corpo a partir das experiências de outras·cu!tui-as teatrais. pode denominar, à idiossincrática gratlosidade de um and·ar, de,um gesto, de
Eugenia Barba, que inicialmente havia trabalhado com Grotowski, estu­ uma postura: de �-in:a pi:_oporção corporal, de um ritmo de movimento: de um
dou a escola kathakali na fndla e em 1964 fundou o Gdin Teatret. Posterior­ rosto. Aliás, é uni acaso nolá'\'.�l qu� Barthes, nesse contexto, tenha comentado
mente, fundou um laboratório teatral que pesquisava os fundamentos da in­ justamente urna fÕto de Rober.t'Wilson (ao lado de Philip Glass): algo da "ma- ,
tensificação da presença ·corporal dos atores no sentido de uma "antropologia gia'' da pessoà parece ter-se trans�!ti�o ali pela foto de Mapplethorpe a Bar­
teatral", Com suas palestras, oficinas e escrit�s, Barba se encontra entre os thes, que jamais escreveu sobre' o teatro de Wilson, mas f�).?.��i sobre "o Bob
mais influentes defensores de uma nova corporeidade do ator. Segundo ele, Wilson dotado de um punctum
. indefinível,
'' a quem eu gostaria de conhecer''.7
o corpo se apresenta co�o que "colonizado'; de modo que necessita de ui11 '
treinamento que compreende ·não apenas sua lib.�rtação para uma expressão
6 Eugenlo Barba e lben Nagei �ahuussen; -Béinerkungcn zum Sc!Hveigc n der Schrift, org.
C. Falke e W. Ybema. Frankí ��-t nm Main�1983, p.139.
336 5 Valere Novarina, Le T11éâtre des paroles. Paris, 1988, pp. 21 e 24. 7 Roland Barthcs, Die hei/e Kammcr. Frankfurt am Main, 1989, p, 66. 337
i
I
No teatro pós-dramático, o çorpo "afeta'' o �spéctador menos como infor-
mação do.que como comunicação. Essa comunü;ação corresponde sobretudo
ao modelo de um "contágio" pelo teatro, à maneirà da metáfora de Artaud
1

em "O teatro e a peste". A comunicação como contágio por uma bactéria não
é transmissão de informação; antes, equivalé à uma fusão e uma participação
miméticas. Poder-se-ia dizer que a d1nân1ica que o drama mantinha como
. forma de procedimento é transposta para o aor=po, para sua existência "banal''.
Opera-se uma autodramatizaçilo da physis. O impclso do teatro pós-dramá­
tic�_de cóncretiz:lr a pre.sença h1tensifica9a ("epifanias") do· corpo humano é Imagens corporais pós-dramáticas
uma busGa d� antropofania. Todavia, no paradigma do teatro pós-dramático
não pode haver ��nhurri"hüinanismo";easo.se ent�� �om isso a afirmação
de qualquer tipo de ideal "do" ser humano. Trata-se sempre da manifestação de _,,... · -......
um homem individual determinado, singular e real, do caráter inconfWld1-
vel de .seus gestos, de sua vivência em um tempo.real, .do tempo limitado do . /
teatro como jqgo. Isso torna o particular absoluto, de um modo novo, insti­ Dança
tuindo para a physis um eqtúvalente da antiga teofania. Em contrapartida, o
corpo se recusã i\'"ctcrnidadc" da existência .fictíéia na representação - eter­ Não por acaso, é na dança ql}� as novas imaget)s corporais podem ser consi­
nidade ambígua, uma vez que se confunde com o reino dos mortos. A partir deradas de modo mais claro. A dança é radicalmente caracterizada por aquilo
dessa posição fundamental surgem diversas imagens corporais, que em seu que se aplica ao teatro p6s-dramáticô em geral: ela não formula sentido, mas

--- ---
conjunto apontam para a realidade engendrada tão-somente no teatro. articula energia; não representa uma ilustração, mas uinà ação, Tudo nela
é g.e�to. Já se descreveu a transição da dança clássica para a moderna e em
-·.---
seguida para a pós-moderna como um deslocamento que - para usar as ca­
tegorias da lingüística - partiu do campo semâlltlco para o sintático e então
para o pragmático, isto é, o compartilhamento emocional de Impulsos com os
espectadores nas situações de comunicação do teatro. Esse deslocamento vale
de modo g��para a manifestação dó co_rpo no teatro pó,s-dramático. A rea­
lidade própria das tensões corporais, livre de sentido, toma o lugar da tensão
dramática. O corpo parece desencadear energias até então desconhecidas ou
secretas. Ele é exposto
, como sua própria menságem e ao mestno tempo como
um elemento profundamente estranho a si m_esmo: o "próprio" é terra 111:9.g­
nita -·seja porque que na crueldade ritual b1,1scam-se os extremos d9.súp�rtá­
vel, seja porq�e o elemento inusitado e estranho do corpo é levado à superfl­
3 38 cie (à flor da pele): gesticulação impulsiva, turbulêncià e tumulto, convulsões 339
histéricas; desmembramento autístico da forma, perda do equilíbrio, queda e gressão. Nessa ambigüidade de utopia e lamento, a dança mais uma vez é
deformação. A dança moderna çriou uma expressão corporal capaz de articu, exemplar para o dispositivo pós-dramático, Enquanto a edificação teórica
làr disposições extremamente espirituais. Na dança pós-rnoderna, retoma-se "responsável" se esforça para cumprir as normas da sociabilidade, o teatro
a mecânica e intensifica-se a fragmentação do vocabulário da dança. O que vai desabando freneticamente sobre si !nesmo e sobre seus freqüentadores.
se enfatiza no corpo não é tanto. a qualidade tradicional da semiose, à uni­ Ele não se permite r�correr à estrutura e à forma do drama como seguro
·o
dade de um Eu dançante, mas sobretudo potencial das diversas variações · cultural para o ordenamento das contradições, ao rigor do discurso co1110
gestuais possíveis do mecanismo corporal articulado, garantia para o "sentido" e a "órdem das coisas". Um "outro" associai entra
O teatro de dança de Pina Bausch é u�a marcante e minuciosa explora­ em jogo nessas fori11as do teatro. Elas podem terminar em quietude ou
ção do corpo, e mesmo sendo coreografia genial é muito mais do que apenas irror'ilper em convulsão, em esgotamento. O desgaste é previsto. Em traba­
uma linguagem formal próxima ao balé. A começar pelas imagens cênicas, lhos como os de Meg Stuart pode-se perceber o g�nh!) : numa estética que
quase sempre repletas de :11aterial real: folhagem, terra, água, flores. Assim · assi�_aii1plifiEa a linguagem de Pina 13ausch, suas sessões de dança
como os objetos, os gestos corporais são perceptíveis como realidades antes abrem cosmos de sentimentos por meio do jogo (até o ridículo) com ges­
de toda significação, de modo que não mais conseguimos perceber efetiva­ tos da melancolia e da solidão coletiva.
mente a realidade exterior no percurso da visão, orientada cada vez tnais para
o ab�trato. O corpo sofre pela infância perdidato"teátro de dança a investiga Movimento em câmera lenta
novamente. Nessa autodramatização, a representação dramática de ações e .... ___ ,
acontecimentos é substituída pela atualização de percepções corporais laten­ E{?-tr:. .as imagens corporais que poden) ser consideradas sinto�áticas do tea­
s

tes, No lugar do drama como meio d� complexa e simbólica representaçã9'âe tro pós-dramático .s.�jgs�_a_ ��'::'i�a �o movimento em câmera -lenta� que
/
conflitos, encont,a-se a vertigern corporal de gestos. é encont,rada em toda parte como desdob�;;,,ei1to de Wilson. Essa técnica
Assim como privilegia a descontinuidade, a noY,a dança elev� os mem­ não deve ser reduzida a um mero efeito visual exterior. Se o movimento
bros individuais do corpo acima de sua totalidade con�tlfutiv'a. A renúncia do corpo é tão desacefoi:ad.P. g�e.� ��mpo de seu decurso parece como que
ao corpo "ideal" em William Forsytl1e, Meg Stuart ou Wim Vandekeybus ampliado com uma fopa. também o co�pÕé fofçOSãmente·-exposto em sua
não pode passar despercebida: nenhum traje que realce o corpo, a não ser concretude, co!U:o que focado pela lente de aumentçi de um obse�·� a-dOr_e
com intenção irônica; posturas inusitadas, que não excluem as de _cair, dar ao mesmo tempo "reç:�rtado" do contlnuum espaço-temporal como objeto
cambalhotas, deitar, sentar, contorcer-se, gestos como dar de ombros, in­ artístico. A lupa do temp-o isola um
',� . contorno de visibilidade empática do
serção de linguagem e voz, uma nova intensidade dos toques corporais. O espaço (campo de visão) e sin'i\:lltaneamente atrai o olhar irritado diante da
ritmo domina o espaço; �spectos negativos comó peso, carg�. dor e vio­ tarefa incomum. À tensãq corporal e mêntal do ator, que realiza movimen:
lência se antepõem à harmonia, que era preciosa para a tra'dição da dança. tos muito vagarosos, correspônaé a te11são do observador, que se dedica a
º

Em uma versão otimista, essa·vertigem destituída de sentido do palco pós­ esse processo de percepção, A,; duas tensões, Ju�tas, faz;;,·o corpo se tor­
dramático constitui a afirmàção nostálgica de uma utopia: na queda e na nar manifestação. Ao .inesmo. te�po, o aparelho
.
motor é distanciado: cada
.. \ ·,
elevaç�o, na dor e fio erotisu";o provocante pergunta-se com Nietz�che pelo ação (modo de andéJ;r, de fic. ar parado, de se.levantar, de sentar etc.), embora
"deus dançarino", procura-se um ser anterior a toda determinação dialética, ainda reconhecível, ·é. transfo.ànada;e� a!�o como jamais se vira. O atp de
34 0 que - para formular çom Georges Bataille - se encena ,no riso e na trans- andar se decompõe em erguer urn °pé, dobrar a perna, deslocar Ô centro 341
1
'•.
·,

de gr avida çle, pousar cuida dosãmente



a sola do P,é: a '.'.ação" cênic
• ..•
a 9,e. andar a tendência de desembocar eni um "sublime" soldadesco, têm uma história
1
g anha à beleza do gesto puro, gratuito, altamentecontraditória no século xx, nà teoria do teatro e não apenas. na
teoria da dança. Trata-s� de temas não só das vanguardas progressistas, mas
, O gesto também d as utopias teatr ais conservador as,3
A estética escultural destaca-se nos trab alhos te atrais dà Soclet as Raffaello
Na reflexão de Giorgio Agamben sobre a moderni_dade à luz-�ª perda d a lin­ Sanzio, um dos fenômenos mais importantes do teatro experime ntal it alia11b
. guagem g�stual, o gesto é pensado no âmbit� dos '\:naj.?s sem finalidade". A desde o início dos anos 1980. O grupo também pertence à mod alidade do tea­
dança, por exef\1plo, é sobretudo gesto porque "consiste ·ihte.irame�te em su- tro de projeto. Para c ada tra balho se reúne um novo cónjunto êm torno do
_
. portar e..ex_ibir o carát�r rt1edial dos movirf1eiltOs corporais. O gestó consiste núcleo do grupo, os lrn1ãos Romeô e Claudia Castelluccl. FreqüenteJnente
em exibir uma mêdialidacle1-em. tQW!!r visível utn melo como tal''. 1 Ness a des­ são integr ad as pessoas com uma corporeidade diferente ou a doentadà
crição, que segue Walter Benj amin, o ��;p�: �n1
�eumodo de ser gestual, se ("Cada corpo t�ifl sua própria fábula':· diz Ro111eo), Na montagem da Ores­
manifesta como uma dimet1são na qual tudo permanece como "potência" nó téia (1995) feitâ' pel�·grupo, abundam citações das artes plástic;s, Um ator é
"ato", wn "meio p1,1ro" (Mallarmé)._O _ges_to é aguilo que fica em suspenso em escolhtdo por ser comprido e delgado como uma figura de Gi acometti; um
cada açã� võltaqa·para um objetivó: um exc�de�te-de-potencialidade, a feno­ out;6,'vestido e maquiado de br anco, lembra escultur as de George Segai, às
mena lidade de hma visibilidade como que ofuscante, que ultrápass a o olhar vezes com postur as e gestos que lembram desenhos de Kafka. Clitemnestra
oi:den adór - o-que se torna_possível porque nenhuma finalidade e nenhuma é representada por uma atriz que parece ser liter almente um monte de carne
reprodutibilid ade enfra quece o real do espaço, do tempo e do corpo. O corpo pintado de vermelho, paradc1 _ali em imobilidade fabulosa, como a ponto de
pós-dramcHico é, nesse sentido, um corpo do gesto. derreter. Como signo corporal, seu peso comunica seu poder, mas o que
predomina é a impressão sensorial crua, destituída de qualquer interpreta­
Esculturas ção. Cassandra está encerrada dentro de uma estrutura de vidro cuja textura
.. ...._____ - ·-·-- deforma seus traços ao olhar do espectador, que crê assim estar diante de
Um modo especial da presenç a corporal pós-dramática é a transformação do um quadro de Fr�ncis Bacon, O teatro se encontra aqui na maís estreita pro­
iator em tun objeto-homem, uma escultura viva. Já na concepção da dança das ximidade com as artes plásticas, Certamente, não é à toa que na infância os
Castelluccis gostavam de se divertir montando "quadros vivos''.4
. �anguardas históricas é possível observar aquela dualidade que volta a apa­
recer no teatro pós-dramático: a "conjunção de uma idéia vitalista da dança, O elemento escultural e a iconografi a multifacetada se juntam aqui ao as­
concentrada na dinâmica de movimento, com uma imagem corporal estática, pecto ritualól!, atuação dos intérpretes: o ator como que cumpre a função da
orientada pela escultura antigà'.2 Tanto a imagem corpor al dinamizada, que necessária vítima sacrifici al no ritual de degradação e regeneração da repre­
termina em êxtase, quanto a imagem corporal estatuária, que não pode negar sentação teatral. Em Júlío César (1997), a transformação do ator em realidade

Giorgio Agamben, "Noten zur Geste': in Jutta Georg-Lauer (org.), Postmoderne 1md Politik. 3 Cf. Gaetano Blccari, Zufluc/1t des Gelstes? Konservaliv-revolutioniire, Jaschistlsche untf'íla­
Tlibingen, 1992, pp. 97-107, p. 99· lionn/soziallstische Theaterdiskurse ln Dculsc/1/n11d und Jtalien 1900-44. Frankfur(� Maifl,

342.
2
furtam Main, 1995, p. 69.
--
Gabriele Brandstetter, Tanz-Lektüren. Kêirperbilder 1md Raumfiguren der Ava11gm:de. Frank-
.
4
1998 (fnimeo.).
Cf. Theater der Zeit, maio/Junho de 1996, p. 47. 343
corpo�al.exposta é ainda mais pronunciada. Quando aparece no palco uma No caso de Lauwers, os corpos dos atores freqüentemente permanecem para­
petfÓa realmente acometid� por anorexia nervosa e sob risco de vida, cria-se dos por muito tempo enquanto eles encaram - de modo agressivo, 1'elaxado,
no espectador um bloqueio para interpretar o significado da figura dessa pes­ provocativo ou curioso - o público. Ou então alguém estremece em um choro
soa (que de fato veio a morrer antes mesmo da apresentação em Frankfurt, em claramente "mostrado" (não naturalísta), mas. consternante em razão de sua
1998); a voz de um ator operado da laringe choca pela sonoridade metálica do intensidade física, um choro que pára se1n que a pessoa se rnova. Ou os corpos
aparelho de emissão vocal. Romeo Castellucci declarou em uma·en-trevista:· se expõem à apreciação em posturas notavelmente afetadas ou provocativas.
Pelo menos quando eles ficam em pedestais ou bases estreitas, que quase não
Nas Eumênídes, Apolo intervém para defender Orestes. O ator que trabalha co­ permitem nenhum movimentot evidencia-se·o quanto os corpos dos atores se .,
nosco e personifica Apolo não tem braços. Ele se apresenta exatamente como uma encontram aqui em uma relação com estátuas. A escultura humana que estre­
escultura grega que perdeu os braços. Essa é a concepção que temos do corpo mece com vida, a figura plástica em !llovimento, entré a rigidez e a vivacidade,
clássico, a Jmagem de Apolo que está em nossa memória: um corpo perfeito, ab­ ·· - - · · --le.���:7� do olhilr'voyeúrista do espectador dirigido ao ator.
solutamente perfeito, que justamente por isso personifica.a idéia divina - uma O retorno do tema escultural no teatro dos anos 1980 e 90 acontece segundo
estátua, uma figura divina, 5 presságios totalmente diferentes daqueles dos modernos clássicos. Do idea.l se
passa a um tema do medo. O corpo não é mais exposto em funçãô de sua ideali­
A entrada em cena do.mencionado ator sem braç0s; dei rapaz com Sínckome de dade plástica, mas de uma dolorosa confrontação com a imperfeição. O encanto
Down .que representa Agamenon ou do autista que representa Horácio torna e a dialética estética das estátuas· de corpos clássicas consistem·Il'o fato de que o
experienciável- no limite da norma (e da suportabilidade) - o corpo "inumanp''. ser humano vivo não pode concorrer com el.as. A escultura é (ta�bém) o corpo
Surge assim uma cena de pesadelo na qual os corpos escapam a qualquer ca!ego­ ideal, que não envelhece, mas exerce atração visual como forma erótiça (narra­
rização, mas ao �esmo tempo, de modo paradoxal, deixam entrever s�a beleza tivas antigas relatam.atos· al;��ntéindecoràsõ§'de apaixonados· entusias1�-ados
mesmo na desfiguração. A Orestéia da ·societas Raffae�o Sanzio re��l:íeu a desig­ por estátuas de Vênus). Em contrapartida, na instant�neldade da troca de olha­
nação de gênero "comédia orgânica': e de fato é como se uihâ"caminhada infernal res entre o público e.a c_e� o corpo que envelhece e degenera (Mil Seghers)
dat!tesca em meio aos organismos, mas também uma percepção reprimida do experimenta, em seu cansaço� �sgõiãmento;úhra exposição..de.s.W_uída de beleza,
caráter orgânico fascinantemente belo, se convertessém em contemplação cênica. assim como o corpo obeso, "imperfeit9" (Viviani de.Muynék). O "e�tar·exposto"
do ator não é"filtràdo p�lo papel e pelo drama. O corpo �e aproxima do�espe;ta­
O corpo, o sacrifício, o voyeur dor de modo ambivalentee-a.rfieaçador - porque se recusa a se tomar substância
significativa oÚ ideal e passar·pàra a· eternidade como escravo do sentido/ideal.
.Outras formas de transformação do ator em escultura são perceptíveis no De certa maneira, trata-se do retorno da fórmula de dança de Mallarmé,·
teatro de Jan Lauwers e no teatro de dança de Saburo Teshigawara, que era a segundo a qual a dançarina não·é--de modo algum uma mulher que dança,
princípio pintor e escultor e sq veio para a dança nos anos 1980. Teshigawara · mas, como um poema sem autqr, constelação de ressonáncills, associações e
não representa etnoções, mas as desperta por meio da imediatidade de sua figuras poéticas, abstração fas�inánte de todo o real, que deveria tornar pos­
presença corporal, que assu1Üe a qualidade de·uma escultura em movimento. sível a percepção "simbolis�a''.6\�q�, em contr�partida, a partir d� abstração
__.,,..:..-
344 5 Romeo Castellucci, ln Infor.màiionsb/att 1/ieater der Welt. Dresden,_1�/06/1996. 6 Stéphane Mallarmé, ["Crayonhé aú théâtr;"], in cÉuvres completes, Paris, 1970, p. 304. 345
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da forma se_ destaca novamen.t e a éonfiguraçâo co1creta. Jogo perigoso, pois a A apresentação sem música da bailarina Louise Lescavaller, do Human Steps, .
fixação em escultura cria uma experiência de visão' de ou�o tipo: o performer e seu ato de força no limite do circense radicalizam a imagem de propaganda
,, .
se equilibra no fio d� navalha entre uma metamorfose em peça de exposição parafascista do corpo totalmente saudável, capaz, realizador, belo, robusto. Já
morta e sua auto-afirmação como pessoa. Dt cérto modo, ele se oferece e se Vandekeybus cria wn teatro de dança dó vigor físico,. com corpos que caem
·, apresent_a como uma vitima sacrificial: sem á proteção do papel, sem o forta­ uns sobre os outros, batidas, pisadas, saltos arriscados e tnovimentos de cuja .
lecimento por melo da serenidade idealizante dé.!deal, o coq�o está também tensão o observador nã9 pode escapar. A côréôgrafia consiste essentialmente
·entregue, em sua fragilidade e aflição, como e;tlmulõ·er6tico e provocação ao em convulsões do corpo dançante no chão, quedas, lutas corporais bastante
.
julgamento dos �lhares que o avaliam.
,, reais e provas de força. O artista (que também atuou em O poder das tolices tea­
' .
A part� �-essa posiçãô·de-vítima, porémr a imagem corporàl escultórica trais (De Macht der Theaterlijke Dwaasheden], de Jan Fabre) pertence àquela
pós-dramática se·converte-em. um.��� de agressão e de questionamento do jovem geração teatral belga ..que rapidamente álcançou reconhecimento In­
público. Na medida em que ô ator o e���;a· como �soa vuln�rável, indivi­ ternacional nos anos 1980, a exemplo de Roxane Huilmand, que causou sen­
dual, o espectador se torna consciente de uma realida�e que é oculta no teatro sação pela força e êicptessividade de seu.dese.rnpenho no solo Muramento
tradicional, ainda que ela inevítay_elmente faça parte da relação do olhar com [Mtiurwe1,kÍ, produzido também cofno filme (1987), uma tempestade dan-
o "espetáculo": o �to de ver que se apü.ca de mÕdo voyeüilsllcê> ao ator exposto, çad:,ªº/ desespero e do protesto entre muros de pedra.
como se ele foie um objeto escultural. Nenhurn ordenamento narrativo ou
dramatúrgico ser:v:e aos observadores cómo "desc_ulpa" para encarar as pes­ ó corpo e as coisas
soas no palco. O espectador sê encontra sobretudo na situação de um voyeur
que se torna consciente dessa realidade - mesm_o de sua atnbigüidade -, 1'la O corpo é um ponto de intexseccção no qual, quando se observa mais de perto,
qual, ademais, é flagrado, por assim dizer, pela-técnica da confrontação acen­ a fronteira entre vida e morte constantemente se torna tema e problerna. Já
tuada, pelos olhares dirigidos diretamente ao público, pela frontalidade do que as coisas sempre são uma espécie de substitutô para algo.diferente, enlg­
ordenamento arrancada d� segurança imaginária do voye1:1r, O títülô lia· pri'- ...... __ mátJ�o, que p.ão conseguimos �ar facilmente com p?,lavras, a estética teatral,
.melra parte da Trilogia canto da serpente [Snakesông Trilogy] de Lauwers é assim que lhe damos atenção, se move na região de fronteira entre o âmbito
justamente "O voyeur". humano e o das coisas. Espíritos e fantasmas são a matéria· de que também
parece ser feito o mundo das coisas, que de modo enigmático não está sitn­
Corpo-força plesmente morto. E já que, inversam�flte, o corpo vivo pode ser efetivamente
convertid�'objeto': com freqüência se comparou o ator com o xamã, com
No teatro pós-dramático, principalmente i1n dança, um papel especial é de­ o esportista, com a prostituta e com um manequim (isto é, boneco), Mesmo
sempenhado pelo corpo esportivo, atlético. Nas coreografias de Wlm Van­ que a mecânica corporal do dançarino se afaste daquela q1,1e é habitual no
dekeybus, na exaustiv� mobilização do corpo em Einar Schleef, nas arrisca­ homem, ele se _aproxima não só de uma esfera "mais elevada': como também
das exposições esportivas de capacidades corporais da trupe canadense La La das coisas e de sua mecânica, entra em seu _relno. (o "teatro de marionetes"
La Human Steps, espelha-se ô fato de que, num cotidiano corporal cada vez de Kleist). Se a voz humana, mediante um artifício extremo, sê afast_a.toíãl­
nlenos estruturado por atribuições de sentido, a força e a beleza dos corpos mefite do habitual que conhece�os como �atureza, transcende o lilbite pará
se tornam um vexdadeiro fetiche., a derradeira verdade-aparentem.ente "cérta". o mundo dos ruídos produzidos pelas coisas mortàs. O potencial de fantasia 347
das cois�s.se torna novamente reconhecível por meio da aproximação do ho­ com passarelas (que faz pensar no famoso palco de ..O magnificente carnudo [Le
mem ao mundo das coisas. O teatro de·Kantor junta os movimentos grotescos Cocu magnifique, de Pernan.d Crornmelynck] de Meyerhold), os atores percor­
e mecânicos do ser humano e 0°funcionamento de aparelhos desatinados. riam sempre os mesmos caminhos, que levavam a confro1:tações em função dos
Na tradição do teatro dramático, o envolvimento do corpo no mundo das ritmos diferentes. A partir desse espaço de abstração "minimalista" se produ­
coisas era reprimido; em seu poder mágico e em sua realidade concreta, o ziam situações quase dramáticas.7 Mas no terreno das formas teatrais distantes
mundo das coisas era prerrogativa das representações líricas e épiçM - pois do dran1a destaca-se sobretudo o assim chamado "teatro do Objeto'; que chegou a
o procedimento de abstração do paradigma dramático está estreitamente li­ ter algum prestígio graças a ârtistas como Stuart Shennan, Christian Carrignon,
gado à exclusão do corpo da esfera do mundo corporal morto/vivo. Assim, já Jacques Templeraud e Peter Ketturkat. Um teatro-objeto de Jean-Pierre Larro­
no começo do teatro algumas col!taS pertencem ao ator: uma arma, um bastão, che e Pascale Hanrot foi convidado para a edição de 1996 do festival 'teatro do
uma fantasia, a máscara. Ele por sua vez se "objeti.fica': pôr exe.n1plo, ao fazer Mun.do [Tueater der Welt), em Dresden, Na Holanda, essas e outras pequenas
caretas (onde está o limite entre a çareta e a máscara?) e ao fazer poses expr�s­
sivas com seu corpo. O teatro joga - e isso constitui a permanente fascinação
, ·
--·--··-· -�
formas de teatro recebem
. -. atenção especial. Grupos comp '.Ihéâtre Manarf e Vélo
Theãrn:tl-evem ser mencionados.
do teatro de marionetes - com o reflexo, de modô que o ator tom;i. a coisa viva Ainda que os aficionados dessas modalidades do teatro de figuras possam ser
e com isso funciona ele mesmo como um instrumento, de certa forma dei­ para si mesmos uma espécie bizarra, em sua prática se expressa algo de essencial
xando-se dirigir pelas leis ocultas da mecânica (ou da graça). Decerto, a arte em relação ao corpo pós-dramático. Winnicott desenvolveu o conceito do objeto
da cen?grafia podia dedicar seus esforços a tornar clara uma conexão entre as de 1:ransição e demonstrou o .que propriíµnente nos fascina .no objeto:·o fato de.
-
ações dos sujeitos e seu mundo de cóisas, constr�ções, -objetos, mas o drama que ele se torna sujeito e com isso desperta a sensação de que ·�6s mesmos, em
se impõe soberanamente, sem se importar com esse envolvimento. Ao co�trá­ contrapartida, não seríamos simplesmente sujeitos vivos, mas, enrparte, objetos.
rio, ele com freqüência ·alcança seus momentos involuntariamente mais'ridí­ 2 fascinante quando se·eonfunde o Jiinlte, qua�9 o sujeito teod� à coisa ·e a .coisa
culos quando dá· espaço aos objetos. (o lenço em Otelo, a limona9a im Luisa à criatura viva, quando se perde a certeza de poder distinguir com segurança en­
Miller etc,), Apenas excepcionalmente ele lidou con1 téqras.que representas­ tre vida e morte, entre sujeito e objeto. O teatro com bonecos, o bunraku e o teatro
sem de modo autêntico o fatídico ou mágico envolvimento da vida no mundo no qual Edward Gordoti Craig·propunha 4 �$!!Permarlonete" - o ator totalmente
das coisas. O tea�o pós-dramático reanimou a interação do corpo humano e disciplinado, "sem �a" - são um lugar privilegi;·dÓ j,ara"ã êxp·erJêncja de tais
do mundo dos objetos, a afinidade entre boneco, marionete e corpo - ternas transposições deJi!)1ites. A; categor'lãiio uêstranhamente familiar''. [UnheÍ;.;.;li,h],
teatrais que eram excluídos do teatro dramático e só podiam desfrutar de uma que desde Freud se refer� sobretudo a essa questão da dissolução da fronteira en­
existência à margem, no teatro infantil. tre o vivo e o não-vivo, p�eQ.a contribuir para descrever a estética corporal do
No teatro pós-dramático, a "comunicação" do corpo mudo se emanclpa do teatro pós-d�amático sob esta perspectiva: o que é o meu Eu se ele Já encontra
discurso verbal. Um fenômeno sintomático disso foi a manifestação, na segunda nele mesmo o estranho, o outro, o Q�jetp do qual pretendia se separar categorica�
metade dos anos 1970, do teatro de movimento, que se dedicava à busca de novas mente? Esse Eu parece então desatinado; sua racionalidad� �2!! �m jogo.6
possibilidades expressivas não-literárias, com ênfase corporal beirando a panto­
mima, ampla renúncia à lingúagem e referência à tradição da comédia. Uma das Ver Frits Vogels, "Termiek: Oriftig zoeken� Toneel 111eatral (Holanda), n. 3, 198.1, p, 30.
7
·primeiras é impactantes montage�s nessa direçã� foi Por um triz do diabo [Door 8 Ver Hans-Thies Lehmann, "��s-�rhabene !sf das Unheimlkhe': Merkur, sctembro/01m1bro
het oog van de diabo/o], de Willemien Oostcrveld, em 1976. Sobre uma estrutura de19s9. - ..• ·, , · 349
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Nas tradicionais formas, popula'res da.representação éom bonecos, assim Animais


como nos mais avançados achádos da vanguarda teatral, en�ontra-se ufn ln-
. . \
tenso fluxo do teatro do objeto, que inspira, ora de modQ velado, ora de modo Por meio da antropomorfização das figuras de animais, o gênero da fábula
evidente, tanto velhas tradições quanto ex��rlmentos · recentes. Um teatro formula a doutrina dialética de que os homens se comportam como animais
que abre mão do modelo draniático é �_ap��_.dê restituir às coisas o seu valor (por isso pode-se narrar algo a respeito de animais como se eles fossem ho•
e aos atores a experiência da coisificação, que se tornou estranha a eles. Ao mens). O teatro pós-dramático vai tão longe na negação do antropomorfismo
mesmo te111po, esse teatro ganha um novo campo de atuação no âmbito das imanente aó drama que em sua� cenas se dá uma equivalência de corpos ani­
. máquinas, que, das grotescas m�quinas de a!bor ;·thorte de Kantor ao teatro mais e corpos humanos. O corpo nmâo do animal se torna a quintessência do
high-tech, estabelece uma ligação entre o homem, a m�cânu::� e a 5ecnologia. corpo humano oferecidó efn sacrifício. Ele transmite.uma dimensão mítica.
Heirier)viüll�r referiu-se-'à -'·'unidade de homem e máquina [como] o próximo No entanto, O mito se refere a uma realidade en1 que predomina a luta muda
passo da 'êvolução'?-De.-fatq,.._ªJ�1dência de que a crescente tec110logização de vida e de morte e na qual o homem,'mesmo e justamente quando se retira
se
faça o corpo deixar de ser um "desuni pa� transfolmar num aparelho que desse contexto.,de...coa.çãi>, sempre volta a ser desnorteado pela linguagem
pode ser conduzido e escolhido, nuln tecnocorpo pràgramável, parece indícar que acaba.dé adquirir. O corpo, que se torna quase mudo, que suspira, grita
w1'la mutação ai1tropol6gica cujQ� primeiros abalos são registrados mais pre­ e sol�;vru!dos animais, é a quintessência de uma realidade mltlca para além
cisame-nte nas artes do que nos disc�s�� p�liticos e jurÍdlcos, que estão eove- dQ_.d'.rama humano. Na deformação e na monstruosidade, no autismo e nos
lhecendo depre·ssa. Um capítulo específico do teatro do objeto é constituído distúrbios da fala, os corpos humanos se aproximam do reino animal.
pelos grandes..çele�rações teatrais con1 máquinas em lugar de atores humanos. No teatro pós-dramático declara-se o quaflto n realidade do corpo hu­
Máquinas enormes e agressivas foram exibidas ao público pelo grupo Survi­ mano tem afinidade com a aô corpo animal. No teatro de Jan Fabre os ani- ·
val Research Laboratories: un1 tUillultô de máquinas, vagões, guindastes que mais se encontram em pé de igualdade com os àtÔres; a presertçtl de animais
cuspiam fogo, batiam-se ruidosamente ou eram dotados de estranhos braços sobre o palco, proibida I'lô teatro dramático (eles denunciam a ficção por sua
mecânicos - coisas que aparecen). aqui como potencial estranho e destrutivo existência sem consciência), torna-se um tema recorrente. No teatro de Wil­
da sociedade industrial. Formas lúdícas desse grande; _teatro, com drâgõesvoã::---- - . - son há uma legião de animais. Na montagem de Heiner Goebbels de Pai­
dores, grandes construções de papel machê, pessoas sobre pernas de pau gi- sagem narrativa [Narratíve Landsca pel, de Michael Simon, era fascinante a
gantes e mecanismos de transporte peculiares, mostram uma versão idllica do co-presença de um cantor e de um cavalo no palco. Nas ações performáticas
teatro de grande formato, no qual os objetos predominam. Aqui, a fantasma- de Joseph Beuys havia un'l cavalo (Ijig�nia) ou a co1wtvênda co!n um cóiôte
goria da produçãçi industrial com seus demônios; lá, o circo. Também como em uma Jaula. Em uma entrevista, Romeo Castelluccl, da Societas Raffaello
teatro-objeto o dispositivo pós-dramático inaugura novos modelos teatrais Sanzi9, diSsnobre a Já referida montagem da Orestéia:
entre a instalação, a arte cinética do objeto e a arte-paisagem.
Na primeira parte há dois cavalos pretos que passam ao fundo, quase invisíveis,
atrás de Cassandra. Sãg os cavalos da carruagem q).le a acompanha. No fuhdo,
ouve-se e.penas o ruído dos cascos. [ ...] São sensações que não têm n;!3humá
justificativa. São dois cavalos que nos acompanham na turnê e que vlv� apenas
3 50 9
..... -
Heiner Müller, Heiuer MUiier Material, org. Frank Hõrnigk. qõtpngen, 1989, p. 5Q. alguns segundos no.palco. [...]. São segundos muito poderosos, nos quais a pura 351
comu�!çação surge por meio da P.r�ença dos.animais. Trata-se de um elemento seu·elucidativo estudo sobre o teatro de Jan Fabré, Emil Hrvatin investigou
� aclid;naJ essencial, pois aqui a fábula está novamente em jogo, na medida em que os div:ersos aspectos dessas "estratégias''. 11 A agressão cometida nos corpos e
animais convivem com ho'mens e também tên'I a palavra.'º a uniforil}ização, que nega ao corpo individual o pra�er e a sensibilidade em
favor· do corpo de trabalho ou de dança funcionalizailte, convertem-se na
Ademais, em uma encenação para crianças sobre as fábulas de Esopo apare­ visibilidade enfática do corpo individual subjugado pela formalização. Torna­
ciam centenas de animas vivos; em Hamlet,-o único ator, represe.n.t�ndo Horá­ se consciente o fato de que a formalização, fator inco'ntornável mesmo da fi­
cio, andava de um lado para o outró com bichos de pelúcia e de plástico. gur11 estética que p ·arece inteiramente espontânea, como estrutura matemática
ou ornamental, acarreta ao mesmo tempo efeitos estéticos individualizantes.12
Cor po estético versus corpo real O que tradicionalmente é descartado ou reprímido - a frágil bfilarina não '.
deve deixar que se note qualquer vestígio d9 exercício extenuante - reaparece
A diferenciação entre a consideração estética (ou formal) e o prazer {ou 9�s­ . quando se tornam-perceptíveis a fronteira da formalízação estética e, com
prazer) sensorial diz respeito inevitavelmente ao corpo. Forma, aqui, é tam­ isso:·a f�onteira entre o corpo estético e o real. Quando este "se acaba" pelo
bém prática de uma disciplina. A história do. novo teatro também pode ser esforço, o re�l volta a se destacar da forma,
lida como uma história da tentativa de mostrar o corpo como forma bela e
ao mesmo tempo a proveniência de sua beleza }.9!!ª1- a partir da violência da t'
/ Dor, ca�arse
disciplina, portanto não simplesmente abolir a ilusão do teatro, mas torná-la ··-- ... _
visíve!.'Nessa história, é preciso dar um lugar marcante aó teatro de Jan Eabre. O teatro sempre foi fascinado pela dor, ainda que ela, ao contrário do sofri­
No centro de seus grandes trabalhos se encontra um procedimento de forp-ia­ mento ideal, não tenha recebido tanta atenção tradicionalme6t�_na estética.
Iização geomelTizante do espaço do palco e dos corpos. Este� parecem funcio­ ·e·
Dor, violência, morte os·sêritímeii'tos dàí ptovenientes, medo e comp�ixão

--
nar como aparelhos mecânJcos. De modo recorre�te, dive;sos _atoré� fazem [eleos e phobos], éncontravain-se desde a Antigüidade no "motivo do prazer
de maneira planejada as mesri.1�s c�lsas (vestir-se, ãespir-.se,,d��çar...), em com assuntos trágiços''. Hoje em dia, eleos e phobos são . preferencialmente
uma homogeneidade enfatizada serialmente. Mas no t�atro, paradoxalmente, traduzidos por l�me.l)tOs e ê::ãlàfrfos:· Na -Poétfoa1-Aris.tó�i�� p_ressupõe um
a serialidade, a ;epetição e a simetria despertam.para as mínimas diferenças maciço envolvjmento do espectad.Qn10 processo te�tf\\l,'cpm ifit�risõs efeitos
dos corpos e para a aura do dançarino e do ator, sua figura e seu modo de se ·l. . ·· afetivos do ins°fabte, corporalmente �nànife�tos. O te�tro não é objeto de cib­
mover. A tentativa de perfeição faz do motivo de sqa inl!lcançabilidade - a servação contemplati�à;--a,!ltes, ele afe�a o espectador por meio de um ataque
insuficiência e a fraqueza do corpo - uma experiência.. psicofísico - o que aliás.co�tra:;tà de modo peculiar con'l à construção raclo­
Em O pàder das tolices teatrais, quando os atores homens têm de erguer llal da forma trágica e seu caráter especialmente "filosófico''. A tragédia deve
repetidamef1te as mulheres e carregá-las pelo palco, de modo que o esgQtà­ ter como efeito no espectador a �!catiµ-se': unia "purificação" desse� estados de
mento físiço do ator _{)erturbà, â partir d� dentro, a simetria, e assim ó "ma­ lamentos e calafrios. O efeito 01.;1 m·esmo a existência dà-tat-arse é . posto em
terial" formado do corpo esc.apa da forma, o resultado é uma conversão, pre­ dúvida hoje em dia. Adorno c6nstata que ela,
vista conceitualmente, da percepção formal do � orpo na percepção "real''. Em
,
\ - -- .
u Emll Hrvatin, Jan Eab.reda-d/scipUne du thaos, le-chàos de la discipline. Bagnolet, 1994.
I
35 2 10 Cl1stelluccl, op. cit. 12 Cf. Paul de Man, Allegor_ien des Lesens. Frankfurt am Main, 1988, p. 214. 353
•,
' .
como ação de purificação contra os afctos,·está de acordo com·a repressão. [...J.
A catarse aristotélica é ultrapassada como uma pe�a de mitologia da arte, ínade­
l de outro modo seria insuportável. Mas ela também a cria inevitavelmente
à custa de formar {alterar) o seu objeto. Isso também vale quando ela, para
q_uada aos efeitos de fato, [...] Indicio dessa falsidade é a justificada dúvida de que compensar essa deficiência, "exagera" o feio.
o benfazejo efeito aristotélico já ten,ha ocorrido alguma vez; a substituição pode O falsum predomina em toda parte. A imagem televislV)l de uma favela já
ter gerado instintos reprimldos. 13 renega o corpo: a duração real, as horas, dias, meses, anos, gerações de quem
está ali. Sem uma referência de tempo, a abreviação da apresentação falsl.fica o
A atualidade duradoura da reflexão sobre a m�'ese e a catarse não se deve real. Fedor, peso, calor-· a in1agerí) engana a respeito dessas coisas: Ela oferece à
à idéia de efeito curativo da purgação, Isso ocorre di'modo muito mais efe­ percepção um encanto óptico. A empatia se torna empatia in'laginada e esta se
tivo, caso
. se q_ueira 3:credita1:_ incondiclonilmente
. - ·•
nesse tipó de mecanismo toma a indiferença como reflexo do lado do receptor, No caso da dor, a repre­
de efeito, no caso _çl�s descargas de raiva no estádio de futebol, dó medo e da sentação mimética se torna um problema. Ela parece nos mostrar tudo no novo
agressividade nos thrille·;;_ O Tnteress-e·da temática '.'mJ.��se e catarse" se deve mundo da mídia e no entanto engana totalmente a respeito do que torna invi­
sobretudo à estreita ligação que ela postula entre o teatro e o terror. sível; justamente· poE isso)á um abismo intransponível na imagem elétrica do
A estética midiática se apói� ou se compraz no desaparecimento não tanto choque elétrico. Uma certa "anestesia" da arte em relação à dor. e ao sofrimento
do corpo à beira da morte quanto do corpo do tor-mento..O vídeo e a tele­ sempre'foi imanente a ela (e seria o caso de escrever a história dessa anestesia),
visão transformám a Guerra do Golfo em estatística; o número aparece na mas"no mundo da mídia esse problema se radicaliza de tal modo que a imitação
imagem eletrônica lla frente do corpo. Quando . o cínema de entretenimento incorre em menµra em um sentido moral. O teatro pós-dramático responde a
·�' -
desdobra os efeitos de poder do t�rror (e horror) visual, estabelece q_ue não essa situação com wn truque surpreen.dente: ele expõe a clrcunstância, antes
podemos tomar a dor do outro de modo direto em nossa percepção sub­ latente, de que o teatro, co�ó-pritica corporal, não s6 coohece.a representação
jetiva empátic�, mas apenas registrar seus indícios. Na dor evidencia-se ao da dor mas também experimenta a dor, o corpo no trabalho de representar.
máximo a profunda ambigüidade da própria mimese, a representação como Na evocação do não-representável, isto é, da dor, deparamos um pro­
imitação. A grande conquista no campo estétiço é que a dor traz para,o.hori.: ble!Ila central do teatro: a exigência de tornar presente o inapreensível com o
zonte do sentimento e do ·pensamento realidades antes não percebidas, .8 em - ·· · · · ·· ·· auxílio do corpo, que é ele próprio memória da dor, já que a cultura, ao dis­
·função da mimese que nos apropriamos em um determinado âmbito de ex­ cípliná-lo, e a "dor como mais poderoso auxiliar da rnneínônica" (Nietzsche)
periências alheias e podemos torná-las familiares. Mas a mimese possibilita foram registradas nele. A mlmese da dor significa a princípio q_ue a tortura,
essa mediação mediante urna espécie de falsificação de seus objetos. Isso não ô tormento, o sofrimento corporal e o terror·são imitados, sugeridos de ma­
acôntece por acaso, mas necessariamente - a saber, por meio do recurso de neira enganosa, de modo que a sensação dolorosa Sl!-fge na dor representada.
sua própria possibilidade. Ela não seria imitação caso não �ansforri1asse seu Mas o te�tropós-dramático conhece sobretudo a mimese na dor: quando o
objeto (uma imitação P.erfeita não poderia ser diferenciada do original: se- palco se iguala à vida, quando a banalidade real se despeja nele, surge o medo
ria um original repetido). Por meio do abrandamento, do amortecimento, da quanto à integridade de quem atua, A transição da dor representada para uma
redução do real que lhe são imanentes, a mimese cria uma percepção que dor experimen'tada na representação - essa é a nqvidade que se tornou, em
sua a�ibigüldade moral e estética, o indicador para a questão da r�preS'én�
13 lheodor W. Adorno, Ãsthetisclre Theorie, in Gesammelte Sdirlften, v. 7. Frankfurt am Maio, tação: ação corporal extenuante e arriscada sobre o palco {La La tá Human
' Steps); exercícios que dão a impressão de algo paramilitar (diversos teatros 355
354 1984, p. 354.
de dança, Einar Schleef ); masoquismo (La Fura dels Baus}; jogo moralmente se trata aqui do curto-circu_ito dessa postura (evidentemente, dor e diversão tam­
' pr9.vocante c�m a ficção ou a realidade do horror (Jan Fabre); exibição de bém são �s elementos que mais incitam a rivalidade e a luta encarniçada), mas
corpos doentes ou desfigurado_s. Um teatro do corpo-dor leva a percepção a do reconhecimento de que as formas do teatro p6s-dra1nático fazem de tudo
uma cisão: aqui, a dor representada; \Ili, o ato lúdic_o, prazeroso, de sua repre­ aquilo que era objeto da representação um fator do próprio procedimento de
sentação, que dá testemunho da dor. representação, e para tanto levam em conta de modo legítimo uin empobreci-
Depois que artistas perf.ormátícos, já nos anos 1960, pretendera.,m reagir à . menta; .uma trivialização e banii,lização dos objetos, a fim de obter uma refe­
insensibilidade com a realidade da dor, esse gesto alcançou há muito tempo rência à realidade. Por isso o teatro se encontra sempre à margetn: já pronto a
o teatro. No fundo, com isso radicaliza-se a mais antiga fórmula para o teatro desistir de ser arte para ser realidade, mas sempre recuando para ó significado
trágico: o esquiliano "aprender com o sofrer''. A exposição dos traços dolorosos, diante desse último passo.
maquinais, horríveis na produção de aparências do pi:óprio teatro é uma novi­
dade. À mera ilustração, ao jogo infantil das máscaras e do massacre, respoi1qe
o "teàtro" - nori1e alegórico para toda arte que se propõe esse desafio - com a
! --·-·
·-·-- _
-.CQrpo infernal
... .

recusa a informar sem compromisso. Ao passo que a informação torna a dor ino­ Em comparação com o teatro dos anos 1960, que tinha' u1i1 otimismo corporal
fensiva, faz dela um efeito sensacional ou a transfigura, na qualidade de elemento não-problemático, o corpo se tornou um campo de batalha real e discursivo.
do gesto exposto a dor se torna uma expedência_cjJstanciada da compreensão. O movimento feminista abalou as imagens corporais, os fantasmas e os clichês
Artkular a dor, em vez. de apenas reproduzi-la, e incluir nessa articulação a ação patriarcais, mas o novo paradigma da sexualidade livre e liber-tada vão foi con­
de representar como dor significa, a partir de então, fazer teatro. Em comparação quistado por causa disso. É preciso constatar sobretudo uma im�gem corporal
com as representações da f!.1Ídia, o terror representado no palco com recur�os obsctira, neobarroca. As desfigurações temporais, as sinuosidade'� espaciais, as
teatrais convenciôhais se tóma rid!culo e inverossímil. Mas se o ato e a prese'nça torções corporais ê Õs .desfôcãrõ.enfos n'ão tê'nrlugílr sob o signo âa i���-rgência
do momento corporal da própria representação aparecem em primeiro· pÍano, o e da disposição experimental revolucionária. O que ocorre é que o teatro re­
ato do teatro remete novamente ao seu real, que se perde nas·1magen;. descobre a perda do �undo barroca, acompanha ca'tivado as curvas do corpo
O teatro responde ora com a implicação terrorista (La Fura dels Baus); ora humano. Essa revirav-9ltapóêfe'estãrligada·eom..a.eip.Ç..ri�I1�� d; que o idea­
com hipernatura.lisinó e imagens de horror que geram reflexão por meio da pa­ lizado corpo "bom" do Eros não dese,!1Ca�eou tod� a liberação socfaI,-mas fez
ródia óu do exagero e assim provocam uma empatia que se diferencia da empatia o sexo se insqev"er predominantem;nte no maquinismo do mÍindo dos pio­
resultante da percepção do cinema ou do vídeo (Reza Abdoh); ora na linha da dutos, aquietar e cont;ntar,_suas supostas necessidades no campo da sa'tisfação.
presença da performance, que pode assumir diversas formas, desde o relato pes­ Coreógrafos criam mu.ndo-�àe.!el'ror feltos de choques elétricos, relâmpagos
soal até a arte performática. Thomas Oberender aponta �- enfoque que esti na Juminosos, barulho insuportável e paredes metálicas sem saída (Teshlgawara),
. base de grande parte do teatro contemporâneo, em especial o da jovem geração: delineiam panoramas inteiros de,depravação moral e decadência do fim dos
"lidar com a verdade derradeira, que escapa a toda relatiyização - a verdade cor­ tempos, atacam os nervos do público com cenários deslu.mbrantes e cruéis a
poral. Dor e diversão são as únicas pontes confiáveis entre dois homens''. 14 Não partir do arsenal dos ,demônios: 'dt>entes sangrando, sexualidade exercida de
modo atormentado, corpos nlls pingando de suor, pele, gordura e muscula­
14 Thomas Oberender, "Theatcr der Vergleichgültlgu11g''. Theater der Zeil, março/abril de 1998, tura. Eles tendem a in�agens.Jrlferná]sêf� uin/sociedade mâis do que apenas
p. 87, "doetlte de Aids"i uma sociedade perdida e tondenada. 357

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Não é nenhum
•• acaso o obstinado retorno da metáfora do mundo como e realidade. Ele não oculta que o corpo está destinado a morrer; ao contrário,
• • 1 •• , •
hospital e universo de loucura se·m futuro, PªF? o qual l\�9 parece restar üe- enfatíza esse fato.
nhuma outra alternapv� que não ô igualniente cátastr6fico caminho de volta Quando observamos.o novo teatro em busca das Imagens da ameaça da
_para o isolamentb solipsista . Como já etn..Beçl<�tt e em Müller, encontram-se 1:1orte e da decadência, notamos que a Aids foi por muito tempo a sombria
.
pessoas em cadeiras de rodas em trabalhos de Tadashi Suzuki (como Díonlsío palavra mágica: os doentes de Aids são os autênticos mortos-vivos, os novos
e Electra), que encena imagens infernais de pint-utas rigidam_eflte formaliza­ fantasmas, que estã_o cercados pela morte "no meio da vida". A Aids velo a ser
das como procissões. O grupo La Fura dels 13a�s la�çà--Q_público em cenários metáfora do estado de wna sociedade (ou um mundo) que não mais pode
claustrofob.icamente fechados, detnonfacos, de imag;ns do tqrmento que pa­ realmente integrar a vida dos impulsos, já que esta não é mais parte dela,
recem inspjradas no "Inf�tib" de Dante: córpos nus mergulhados �� água e mas uma alternativa a ela como sexo livre e espaço de fuga. Pouco antes de
óleo que parecem Terver;penduraciQ� J�g-�_dos, maltratados; fogo saindo de sua morte em conseqüência da Aids, o ator Ron Vawter atuou em um retrato
.
toda parte; prisioneiros torturados e chicote.idos; tõrturador�s que berram de dois homossexuais norte-americanos. Nas repentinas pausas em sua per­
ordens em meio a um barulho infernal de tambores, lamentos e gritos. Sem formance, não·;� sàbra ao certo se se tratava de momentos de esgotamento
qualquer explicação dara sobre o .<:_ontexto e o sentido das ações auto-agres- representado ou real.
. I
sivas e assustadoras, o grupo constan;em�nte �nfÕcmnidade de violência e �Ós trabalhos de Reza Abdoh, que morreu prematuramente com Aids, os
I
enigma, cerne do teatro desde Édipo rei. Violência ritual, dor, morte e nasci- espíritos rnidiáticos, históricos e teatrais constituíam uma simbiose de show e
mento são os temas. provocação, grand-guignol sangrento e tristeza abissal. Seu te�tro era barroco:
sensualidade brutal e direta,. �usca de transcendência, anseio vital e confron­
Corpo decadente tação ·com a morte, advêrtência de um mundo sem seJ1tido, no qual predo-
1uinam o frio, a dor, a doença, o tormento � a degeneração. Abdoh - que em
Fotos, cinema e mídias mostram de um módo impiedosamente drástico a Citações de uma cidade devastada [ QuotoJions from a Ruined City] projetou
decadência, a violência_e a_dor corporais. Mas o mostrar e o perceber'sã?rse-. .._ . ___ no palco um radical e provocante panorama de depravações sexuais, morais
parados, não têm lugar no processo entre a imagem e o espectador. Em con­ e políticas - criticava a tão louvada reflexão no teatro e se opunha veemen­
�apartida, o que é específico ao teatro pode ser esclarecido pela cena em g_ue temente ao "au�o-espelhamento" generalizado. Para ele, tratava-se de uma
�recht, na estréia da Peça didática de Baden {Das Badener Lehrstilck]. após mensagem talve1. muito direta, à maneira norte-americana, de uma catártica
protestos do público diante de fotos chocantes de feridos de guerra, repetiu "celebração dos sentimentos'� 1' da qual faz parte a consciência sobre a morte
o procedimento com esta advertência: "Reconsideração da representação da como cQ�O do corpo e de seu prazer. O que contava para ele não era o tão
morte recebida com desprazer''. 15 O mostrar é ele mesmo um processo so- comentado horror chocante de seu teatro - de fato, seu efeito era tranqüilo
cial. Ele está sujeito à uma mudança que atualiza o potencial !Mente desta em comparação com o dos filmes de terror -, mas o teatro como "lugar de
realidade social: o teatrp dramático encasula ó processo corporal nos papéis conferir forrqa a idéias, uma espécie de fórum para a trotà de idéias''.17
representados; o teatro pós-dramático visa a demonstração pública do corpo
e de sua decadência num ato que não permite distinguir com segurança arte
16 Re1.a Abdoh, entrevista. T/1eafersclrr lft, n. 3, 1993, PP· 48-64, p. 58,
15 Bertold Brecht, ln Werke, v. 3, Berllm/Welmar/Frankfurt am Màfn, 1993, p. 415. 17 lbid., p. 60. 359
Espíritos O isolamento de Grotowski é um exemplo extremo, mas tafnbém autores
como Peter Handke e Boto Strauss tendem a afirmar a dimensão de uma ex­
O reconhecimento de que Ô teátro vive ao mesmo tempo da transcendência periência ex:clusiv\l, e mesmo no caso da Humínista Ariane Mnouchkine, em
do corpo e de suas limitações leva para além da verdade evident.e de q_ue o A cidade perjurada, ou o despertar das erfnias [La Vil/e ptnjure ou l.e réveil des
corpo constitui o centro e a fascinação do teatro. A fascinação cotn o corpo, erinyes], peça de Hélene Cixous, a çidade do mundo cai em desgraça e cor­
evidente na dança e na acrobacia, rnas tam:bérn perceptível na Goncentração rupção e só pode esperar alguma salvação do p�nsamento - cristão - do per­
corporal e mental dos atores, sugere nada menos do que a idéia da possível dão. Na maio1:la las vezes, esse tema da afirmação do teatro como um lugar .
. espiritualização do corpo. Herbert Blau falou dessa dimensão espiritual do especial da meditação e do crescimento espiritual é algo semiconsciente ou .
teatro e traçou uma comparação com Phílippe Petit, q'ue balan,çava na corda­ inconsciente, mas não raramente é também explícito. Por que o russo Anatoli'
bamba entre as torres do World Trade Center. 18 Por meib da disciplfoa, seu Vasslliev e o holandês Gerardjan Rijnders, ambos dii:etor�s de destaque de
corpo se torna quase espírito, manifestação corporal do incorpóreo. Essa djs­ -� ·-Se!J$..pi\.Í��_s, tiveram a idéia de levar ao palc o, num curto intervalo de tempo
ciplina é auxiliada pelo treinamento, e dada a credibilidade já metafísica que um do outro, as Lamentações de Teremias? Vassiliev declarou: '.'O caminho
ultimamente se ligà·às dimensões de experiência do treinamento corporal im­ do materialismo está quase no fim''. Procura-se, ao que parece, uma esfera do
põe-se o pensamento de que aqui retorna a idéia primordial dos exerdci,os re­ lamento, que Vassillev também tornou predominante em seu Anfitrião [de
ligi9.sos. Assim como estes, o treinamento corporal e· o controle disciplinado Mollere). Não é s6 por causa do espaço cê'nico cristão que o teatro se torna
prome�em um contato com um nível de espiritualização mais elevado. um lugar de oração; justamente o gesto do lamento abre o·espãço espiritual.
Inspirados pela filosofia oriental, muitos arti�tas teatrais trabalham com Será que falta de fato o lugar nó qual, em um formato grand j, pode ressoar
pedras, plantas, chão e atmosfera etn busca de uma forma de experiênda o l�mento que po�er�a ���cu�ar o desconsolo e o desampar� sem .esp_erança
"mais espiritual''. Eles pretendem se associar novamente à época esoté�',icáque contrariando o otimismo prescrito?.. · · --. ·
o teatro Já havia vivenciado. São sintqm.áticas a au.ra e a fama que �n'iiolveram 'trata-se da busca de um perdido "tom elev�do': que Handke formula
Jerzy Grotowskl, que na última fase de seu trabalho, -�isenvoMda em Ponte­ como fator de· uma ·nov.a:·��piritualidade" e Strauss como no\la capacidade
dera, no interior da Itália, praticava com seus poucos adeptos selecionados sensitiva. Na oraçãõ; no rltuai -�o�;rÕ-eua··cõifi1:tt1icaçã0- de.t_ipo comuni­
um intenso controle "espiritual" do corpo, cultivando um "teatro" cujos mé­ tário, o teatro.§�gue o rastro de suas raí�es religiosa,$·e \nísti�as''. Ên1 Vez de
todos tinham algo de exercícios religiosos. 19 Tão notável quanto essa inco­ wna psico)ogia de p,�uco fôlego, almejam-se grandes paixões e e� últin1a
mum escola teatral e sua prática é sua ressonância: a espantosa presença de instância a paixão. Basta.nte surpreendente·: na era tecnológica, o teatro
Grotowskl no pensamento das pessoas de teatro radica,!s, o respeito que sua continua a ser um lugar d;'met�física mais sugestivo. Já que a realidade se
insistente aproximação do "sagradó'' conquistou. Esse respeito demonstra a encontra diante de nossos olhos como abandonada_pelos deuses, caracteri­
noção, com muita ·freqüência renegada no cotidiano teatral, de que mesmo zada por uma falta não só dé sêr,-mã; mesmo �e uma_aparência não�trivial,
uma arte tão pragmatlcamehte envolvida no cotidiano como o teatro perde o evidencia-se a necessidade de buscar outros mundos, atÕpias e utopias nas
seu valor quando é exercida sem uma tal busca "impossível''. cifras do palcoyara:;eaUzar ��á autênti<:8. experiência do espiritu�. I.

18
. Herbert Blau, Take up lhe Bodies: Thenter atthe Vcmishing Point. Chicago, 1981. [N.E,) - - .. . .\
19 Ver Thomas Rlchards, 1heaterarbeit mil Grotowskl an physischen Hm1d!�.ngen. Berlim, 1996.
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Teatro e mídias

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Prê'dõrn.Íliio das mídias?

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Mesmo a modernidade clás.�,tca já se encontravã sob· o signo de um inteüs'ô
•; -� predonünió das imagens'(fotografia, dnem_a) e.aó mêsmo tempo da críti�a ao
efeito paralisante do conslllilo de imagens ilusóriãs s.óbre a complexl9ãde lli1- ·
güístlca, a lmaginaçã� e a reflexão. Será que as imagens tiràn1 a força do enten·
"'---- ·-· -di.trtênto, assim como, segundo a suspeita de 'lbótnas Mann, a mtrsic'a enfra­
q'uece a raclonaWiade? Não se deve recapitular aqúi a longa ttadl�ão da crftiéa
� sociedade de consumá e à lf1dt'1stria cultural, desde O capítulo correspón -
dente na Dialética do esclatecimento e a crítica situacionista de Guy Debord à
"só�iedàde dó espetáculo" àté as tese_s de Herbert Marcuse e Jean Bauârillard
ou Paul�· O fátô de que essa tradiç�o une pefi:sadóres cónmmerite asso­
ciados à mo.derflidade e pensadoré·s incluídos·entre os p6s-íi1odernos sugere
que a "p6s-m.ociernldad�".cJevé ser entendida nã? cofno cesura hlst6rlca, mas
simplesmente ;como Ufi1 olhar i'ilodificado sobre à ínodernldade, uma ntvà
telação com ela, Ao mesmo tempo, ficá dar? que o ptobléprn não pode ser
evocado apenas por �mà visão cónservadora, .
Na dvilizaçãó midiá!JGà'
.-· "pós-

·-
filOderna'; a iínagen'l representa um meio e>-.iraordinariarnente poderoso, mais
\
ií1for.m.atlvó dô que à música, consuiilido mais rapidamente do que a escl'itá,
As imagens cinematográficas e depois as de vídeo conquistaram seu poder O hábito do consumo de imagens eletrônicas favorece exatamente essa redu­
graçâs à fascinação por elas �uscjtada. As imagens fotográficas em movimento ção da idéia de comunicação ao modelo da emissão/recepção de sinais para além
e depois eletrônicas atuam sobre a imaginação - e sobre o imaginário - de ma­ do registro de responsabilidade e desejo. O dispositivo telemátic ? preenche in­
neira muitô mais forte do que o corpo vivo presente no palco. Será que, na li­ teiramente o espaço mental com "informação''. Se um usuário morre em um ter-
nha dos "imateriais': ele não se torna cada vez' mais supérfluo? Tem grande im­ 1ninal do mundo de cabos de fibra óptica, para um outro usuário, em um outro
portância para o poder da simulação um procedimento que já se-destacou no tern;unal da rede, esse acontecimento em nada se diferencia de um distúrbio ou
século XIX: delegar o olhar humano a aparelhos. A visão se emancipa do corpo. uma queda !1º slsttma. Aqui, o sujeito humano está voltado principalmente para
Evidentemente, sempre houve "percepção por instrutnentos" científica. Mas no a informação computadorizável.e desse modo não constitui senão um prolon;
processo do desenvolvimento técnico nos séculos XIX e xx a "realidade da per­ gamento - imperfeito e sujeito a distúrbios - do dispositivo eletrônico. Em urna\
cepção sensorial" torna-se um problema, se não filosoficamente, pelo menos variante da bela frase de Gertrude Stein - "As pessoas vêm e vão e a conversa da.
na vida mundana, já que campos cada vez mais amplos são conquistados pela . festa continua a mesmà' (People come and-go, party talk stays the same) -, aqui
"realidade da percepção por instrumentos" (Buckminster Fuller). 1 Em todos os "us�ários vêm e vão e a rede mundial continua a mesma': De modo paradoxal,
tipos possíveis de instrumentos, indicadores e-telas, o que se vê são signos mals essa nova configuração do alheamento se estabelece justamente pelo fantasma da
ou menos abstratos; aspectos essenciais da realidade escapam dos sentido_s cor­ intimidade, pelo erro espontâneo de se considerar alguém contatado pela rede
porais: "O reino da percepção sensorial se reduz a um mínimo nicho ecológi�o uma pessoa próxima e acessível. Em contraste coJ11 essa falsa aparência de
em um_imensó espectro de ondas mecânicas e eletromagnéticas''.2 acessibilidade, a presença-do outro como co-presença suscita 11 experiência
. No entanto, esse "nicho ecológico" da percepção imediata é ao mesmo de sua essencial inàcessibilidade, de sua aura - "aparição única de uma distân­
tempo o campo de uma intersubjetividade que põe em· jogo a interação cia, por mais próxima que esteja" [na definição de Walter �e�j_-�min].
entre os corpos, �a relação do encontro comum em uma situação Í;cial
que constitui um outro "tempo" entre sujeitos. No cerne da atitude estética, Publicização, e>rperiência
mas sobretudo em toda idéia de "responsabilidade"'.:. l�gõ;' tánt� na atitude
ética quanto oo cerne da afetividade em geral -, encontra-se a indisfarçável
.. -----� ..
Afirmou-se: "Novas, experiências 1:0letivas-sào.feit.a�..P!1Jealidade midiática''.3
situação da "presença" do outro. Essa "presença" não poae ser definida sim­ No entanto,. a recepção de dados e info�mações
,-.
d.isponfvei;��letivam�te
. ..
não
plesmente pelofactum da percepção sensorial em si, mas �stá ligada a ele na constitui tlll)â experiência coletiva. Esta não acontece simplesmente por meio
medida em que a( se põe em jogo a possível i:>-fluêncla real de quem percebe de um repertório com� de fatos que podem ser citados coletivamente, de
no objeto da percepção. A situação de influência virtual implica que o pro­ gestos conheddos pela coletlyidade, mas apenas na conjunção de histórias co­
cedimento de emitir/receber sinais não pode ser dissociado do envolvimento letivas e ind.ividuaJs, a qual, por sua vez, está ligada a algum engajamento que
do sujeito comunicante no desejo, .na responsabilidade e .na obrigação. diga respeito ao sujeito da experiência em sua realidade de vida. O consumo, · ·
o acúmulo e a distribuição de ·sinais de reconhecimento ·conhecidos, tais como
os qu.e a cultura �idiática cdnverte em padrões de comportamento, estão
Apud Joachim Krausse, ("Ephomerisierung. Wahmehmung und Konstruktion"), in Ber­
nhard J. Dotiler e Ernst Muller (orgs.). Wahrnehmung und Geschlchte. Marklerimg zur Ais­ ' ' . ..
thesís materla/is. Berlim, 1995, pp. 135-63, p. 162. 3 Gõti Grossklaus, Medlen-Z-elt:1Yfc'ilÍ�rr-Raum. Z11m Wandel der ra11m-zelllichen Wahmeh-
mung ln der Moderne. Frankfurt am Main, 19�5 , p. 108,
2 lbld. '
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, 1

muito longe de efetivar essa experiência coletiva. A primeira vista, a comuni­ .assim dizer, tenh� de permanecer em aberto. De todo modo, o efeito estético
cação de grupos pela internet parece·p· ossibilitar issh. Grupqs de'ínteresse po­ pode ter como ponto de partida uma tal "situação óscilante" da dúvida. A outra
dem se enconttar e trocar suas experiêilcias, más'.t.rata-se d� experiências prin­ possibilidade do teatro tnidiático consiste, evidentemente, na ex.ploràção ar­
cipalmente prívadas. Assim, formam-se grupo� de pessoas interessadas em tística da própria fascinação que provém dos efeitos midiáticos. Exemplos
-
determinados temas - por exemplo, de pesso�s q�� ;ofrerain acidente� de auto­ disso são apresentados neste capítulo. É certo porém que o encanto do novo ·
móvel. A internet é a generalizaçãó da subjetividª1e; não é nenhum campo está sujeito a um rápido ciesgaste1 dentro e fora do teatro. Na 11,edida em que
p.àra atos de comunicação que sifüem o sujeito 'no càm� de u�a tomada de a sociedade midiática fez da surpresa uma norma, do choque um hábito, do
posição resP,oi'1sável e responsabilizada. Pode-se portantô iflsistir em designar achado dâ variante uma regra, a surpresa não mais surpreende, o improvável
a lnterntt.como mídia de massas, mas por.s.eu �onteúdo ela é �n1a niídia pri­ se torna provável, o "etemo retorno do mesmo" (Walter Benjamin) leva a um
vada, que -�àmo tal-nãQÇQJJ��t� nenhuma experiência col�i�a. Desse modo, estado apenas aparente de percepção a(erta, um estado que na verdade pode
as possibilidades da atitude estéti�� pàra ê:õ.mühTéãr tais .experiências só po­ ser uma espécie âe sonolência indiferente a tudo.
dem estar em um desvio do di'spositivo mldiático, não em seu emprego. Tornou-se
/
íí'�
t6pos da teoria do teatro de vanguarda o fato de que ele
A primeira vista, pode parecer que o futuró do teatro também estaria na analisa e desconstrói as condições da visão e da audição na sociedade midiá-
/
assi.Jiülação às·tecnôlogias da info;��à-ção, .ó.a ·circulaçao· àceleradâ de imagens tica:/Sem levar em conta se essa convicção tem fundamento ou não, pode-se
e simulacros. A u(ilização de novas e velhas mídias audiovisuais - projeções, qü��tionar se a auto-referencialidade dos trabalhos teàtrais é realmente engen­
texturas sonora§.,_ il_ui:ninações refinadas -, àpoiadas _EJO� ur.na tecnologia com­ drada em primeira instância pelo páthos da análise, que tem seu lugar .sobre­
putacional avançada, certániente levqu a um teatro high-tech que amplia cada tudo nos esforços teóricos. 4_!)tes, parece realista que se.manifesta aqui ufna
vez mais as fronteiras da representação. Da arte performática radical ao grande estética que busca a proxímidade com a percepção artificialmente alterada. O
teatro estabeleddo, constata-se uma crescente utilização de mídias eletrônicas. palco precisa se assemelhar ao m�ndó exterior pàra articular alguma experiên­
Com isso, a imagem habitual do teatro de texto perde ainda mais sua Vé\lidade cia. Nesse sentido, podem ser consideradas comô um reflexo da percep'ção
normativa e é substituída por uma prática interinidiática e multimidiáticlnpa·
. =-. ......... -1 midiática fragmentada a sobreposição e a recorrente interrupção abrupta das
re ntemente
_ sein limites. Agora existem lado a lado: um teatro de imagens, que cenas e das ações. Assim como, no côtidiano, aprendemos com a televisão e
110; linha da tradiç_âo da "obra de arte total" adota todos os registros das núclias; o vídeo a nos contenta·r com um mínimo de continuidade e unidade, a segui­
um ritmo de percepção altamente intensificado, segundo o modelo da estética damente mudar o foco da atenção entre um momento de ação na tela da tv
dévídeó; mera presença do ser humano, sempre parecendo "lentà' em termos e a realidade do dia-a-dia (ou uma 9utra emissóra), também no novo teatro,
comparativos; o jogo com a experiência do conflito �ntre o corpo presente e a seja no cas.o...Qo_ Wooster Group, de _Jan Lauwers ou dos grupos 't Barre Land
manifestação imaterial de sua lrí1agem dentro de uma mesma encenação. e Baktruppen, os atores alternam contatos (apare11ten1ente) privados com re­
Seria o caso de averiguar se no teatro high-tech se dá a diluição do limite presentação, níveis de realidade diversos com � niversos de imagefn, Quando
entre virtualidade e realidade ou se é criada a disposição de encarar toda o objeto é um,texto clássico da literatura dramática (como de preferência no
percepção com uma dúvida permanente. A hesitação dubitativa de Hamlet Wooster Group: O'Neill, Wílder, Miller, Eliot, . Tchekhov), êlestaca-se ainda
4
./
(o espectro é um verdadeiro espectro?) talvez seja o antídoto para a trans­ mais, pelo contraste, o efeito zap, a similari�ade com a tróca de canys,···
missão midiática, ainda que a póssibilidade de um tal modo de percepção
da dúvida dllatória, de uma "estética da desconfiança!' p'Ós-b.rechtiana, por 4 Ver David Savran, 1he Wooster Group: Breaking Rules. Nova York, 1988. 369
Interaçã9.. que uma forma disfarçada da utilização solitária 'de um instrumento.7 Além
disso, no teatro, a reprodução - que com certeza só raramente desaparece por
O que constitui a verdadeira força propulsora da interrogação sobre a rela­ completo - de coisas previamente dadas é sobreposta pelo datum sensorial
ção entre teatro e m1dia não é o problema, com (reqüência falsamente "dra­ que se dá no e pelo momento do próprio teatro. Não é por acaso que, simul­
matizado'; de que as aparentemente ilimitadas possibilidades de simulação taneamente à aparição e à ampliação de uma civilização midiática - simula­
de realidades por meio de tecnologias rriídiáticas deixem muito para trás ção de realidade, interação tecnológica -, o teatro até então essencialmente
as possibilidades de reprodução dó teatr0. O teatro já é per se uma arte dos "dramático" se submete à .1i1udança estrutural descrita neste estudo. O predo-
_
signos, não da reprodução (uma árvore que parece verdadeira no palco per­ mínio do drama e da ilusão migra para as mídias, enquanto à atualidade da.
manece signo de árvore e 1)ão reprodução de uma árvore; uma árvore num representação se torna o novo traço domiuante do teatro. Evidencia-se que a ·
filme pode até ter um sentido como signo, mas é antes· de tudo reprodução chance do teatro pós-dramático não é a imitação da estética das mídias nem
fotográfica da árvore.) Ele não sin1ula, ffillS permanece evidentemente como
uma realidade concreta do lugar, do tempo e dos homens que produzem
í ... · a sli11ill��ão, ma�·o real e a reflexão. Como "máquina de imagem'; sua possl­
billdade específica de reprodução da realidade, apesar de todas as ampliações
signos teah·ais no teatro - e eles·sempre são "signos de signos''.5 No teatro, o possíveis, permanece radicalmente limitada. Como "discurso", em contra­
mundo das c?isas tem a característica denon)inação "acessórios": a realidade 0
partida, ele realiza um procedimento insubstituível, que tainbém lhe permite
ilusória aqui é "somente o mais necessário", objetos necessários para a repre­ ignorar e superar os limites q�e o cinema e as �fd1_�s revelam.
sentâçã?, No entanto, o que rea{mente deve inquietar� teatro é a tendência 4 .. , _ - ....

de transição para uma interação de parceiros afastados entre si mediante Teatralidade e morte
recursos tecnológicos. Será que essa interação cada vez mais aperfeiçoa-d� )

disputará o lugar _co,m o domínio das artes teatrais ao vivo, cujo prinç.1pÍ; é a Em 1963, Roland B�;tl;� es;��e�em 1titei:a1u-ra e significação" ("Litté;�ture et
participação? Frank Pofper afirma:
·----. /
slgnification"]: "O que é o teatro? Uma espécie de máquina _ cibernética''. A afir­
mação soa tão clari�ide.o!!:_décadas depois porque parece incluir o fator essen­
Nas obras da arte high-tech as interações técnicas são exploradas em seu nível cial da reação, da interação. ·p��-�Ü-trÕ-Iãdo; füita:;s-e 1:ambém �rpª_limitação nesse
máximo. Pelo menos em sua r11anifestação elas contêm elementos d� perfeição. modo de c .on7epção: no sentido-da conjuntura .do.pensamento sêintoló_gico
[ ...] Mas a essência da arte high-tech também pode se apresentar nas tentativas de daquele períod�; Barthes via o teatr.o como uma máquina de informação que
artistas de incluir ós espectadores no processo criatlvo.6 gera significado, o qu.itle-<!ecifrado pelo espectador mediante um at_o· cognitivo..
Ocorre porém que a estr_utl;1'a-de· comunicação do teatro não tem seu centro no
De todo mo-do, não é exata a oposição que só se encontra aqui entre interação fluxo de informações, mas em um outro tipo de significação, que inclui a morte.
(midiática) e participação direta: também na participação teatral há um fator A informação está fora da morté; para·além da experiência elo tempo. Já·o teatro,
interativo, e sem nenhuma participação a " inter" -ação não seria nada mais do . na fne4ida em que nele o emi�;or e o receptor ;nvelhecem}ü1rtos, é uma espécie
1
de "insinuação da mÓrtalida�e" no sentido da observação de Heiner Müller de
-'

Erlka Fischer-Llchte, Semiotik des 1heaters, v. 1. Tübiogén, 1988, pp. 7 ss, que o "inoril:Íu�do em potenbial" constitui� e�pecificidade
_ do teatro�
\ - . . -··
6 Frank Popper, ["High Technology Art"], ln Plorlan Rõtzer (org.), Digita/er Schein. Jisthelik - '
370
'
I
der e/ektro11isd1en Medic11, Frankfurt am Maln, 1991, p. :i.57,
371
'
7 Cf. Mark Reaney, "VirtuarReallty on Stage': VR World, maio/junho de 1995.

. ,,
Na tecnologia de comunicação midiática; o hiato da computadorização a cobaia tem a sensação de que seu cotovelo se estica, embora isso não acon­
separa os suj'eitos uns dos outros dé fal maneira que proxµnidãdê e -distân­ teça; quando se permite a ela tocar seu nariz, ela têm a nítida sensayão de que
cia se tornam fatores indiferentes. Em contrap�i:;tida, na medida em que o prolonga o nariz, como t�m Pinóquio virtual.?
teatro consiste em um tempo-espaço c9inum de mortalidade, ele formúla Se impulsos externos podem ser transmitidos para o corpo por compu­
-con�o arte performativa a necess�dade dêlidár-�o� a morte, portanto com tador (cada um é s�u pr6prio títere), pode-se pensar uln horizonte etn que
a vitalidade da vida. Seu tema é, para falar com �üller, o terror e a alegria algum dia impulsos d� pensamento também possam ser transmitidos dire­
da transformação, ao passo que o cinema se càracteri.za por assistir à morte. tamente Pª!ª outras pessoas. Parece 16gico quando pessoas como .Marvin
No fundo, (esse,aspecto do espaço-tempo comum da mortalidade, com suas Mlnsky reftetem exata111ente sobre a possibilidade de "inseri� dados dire­
impliéaç_§es éticàs e teóricas,..que persiste i::omo diferença categõricã entre o tamente no cérebro do homem por meio do microcomputador''. 10 De todb
teatro e as n-ilcUas, · . .. ........ - -· -- t"nodo, a generallzáda existência-mónada solipslsta parece possível um passo
- . --- adiante no caminho, no qual "a diferença entre percepção e imaginação é [... )
Corpo midiático e tecnocorpo retraída; a peréépçãó é irrealizada, a imaginação realizada''. 11 Esses potenciais,
que já não se reduzem a meras invenções sem collslstêncla,.são a indicação
Quaüdo·o·artista p.erfortnático Stélàrc (Steliós Arbdiou) considera. que o de �.in· questionamento da identidade do corpo, respondido pelas artes com a
corpo humano tem de se adaptar às avançadas estruturas de informação do exposição do corpo cofno tal e com a estratégia da defesa àvançàndo, de ma-·
computador, fo_r·mula
-··· sobretudo a perspectiva
. virtual do discurso mldiático,
'
nelra mais rápida do que a da tecnologia, para ordenar identidades sexuais e
que talvez seja a da mutaç�o antropológica. Stelarc, por exemplo, instalou outras. Ê transposto o limiar r.ara uma época em que algo como a identidade
uma terceira mão no antebraço, que "é movida por contrações musculares corporal e mesmo mentál não é mais garantida de maneira evidente. Não
traduzidas eletricamente de seu abdome e de suas pernas':ª Trata-se da utopia são mais apenas fotografias híbridas que surgem, e sim mundos híbridos de
de desenvolver evolutivamente o corpo de maneira intencional, dotar-lhe de vivência, aos quais se junta uma mistura de diversos organlsm.os e sistemas
olhos artificiais e de novas funções ainda imprevisíveis. Por_ tr js dessas ·teeao....�� .. ___ ... ____ j de pensamento que se interpenetram.
fantasias ert1erge um problema mais complexo e mais misterioso: a questão De fato, a substituição de conceitos formais tradicionais por algoritmos
d� identidade. Busca-se justamente transformar, por computador, sensações de computador j� está muito adiantada em muitos campos. Merce Cunnin­
cdrporais em informações, induzindo assim estímulos, impulsos e movime11- gham pode coreografar diretamente no monitor, usando um progr!lma que

·-
tcis do próprio corpo em um outro (que reage, portanto, como um boneco apresenta movimentos de dança feitos por figuras simples. William Forsythe
humano à sua "programação"). É interessante, nesse contexto, a indução ar- e outros fazem experimentos com sistemas interativos. Os dançarinos, por
tificial das sensações cinestésica�, com cujo auxílio localizamos as partes do exemplo, regem o palco com o auxílio da luz computadorizada, já que seus
nosso corpo no espaço (sem um senso cinestésico, nãô poderíamos dirigir movimentos de dança acionam ou interrompem elementos musicais ou lumi-
muito bem as pontas de nossos dedos de olhos fechados). No cotovelo, os
sensores cinestésicos se encontram bem na superfície, de modo que é possível
9 ·cf. Manfred Watfender (org.}, Cyberspace. Ausj/üge ln vlrtuelle Wirk/lchkeiten. Rel�eck,
realizar o seguinte experimento: esses sensores são estimulados, de modo que _../
1991, p. 114. ./ -
10 Cf. Rõtzer (org.}, op. clr., p. 65.
\
372. 8 Arnd Wesemann, Medienzeitalter, conferência em Bremen, 30/04 /-1 99 6. ·· 11 lbid., p. 67. 373
nosos. Ulrike Gabriel realiza uina performance intitulada Respiração [Breath] A luz passava por materiais transparentes e criava disposições complexas. No
na ·qual equivalentes gráfico� da_ respiração de um saxofonista são projetados: caso do século xrx, é preciso mencloi1ar o advento do panorama, do diorama
"O músico inspira: os polígonos ainda abstratos, quadriláteros que se tornam e de outras formas iniciais das "mídias de massa''. O panorama é denominado por
figuras de mais lados, voam [ ... J. Agora parece que ó·saxofonista está no meio Stephan Oettermann como "máqµina de imagens'; e não deve ter sido por acaso
de seus pulmões. Ele expira, sopra: Os polígonos voltam em sua direção, ace­ que o "inventor alemão do panorama'; Johan_n Adam Breysig, foi um "expe­
lerados, em forma modificada''. 12 A páisagem óptica surgida assim, ao mesmo riente pintor de cenários e teórico da perspectiva''. 13 Mesmo em fenômenos
tempo artificial e produzida pdo organismo, mostra uma relação de troca real contíguos ao teatro, �omo o "Eidophusikon" [teatro mecânico em mlniatura]1
entre o corpo vivo e a técnica digital, o que pode ser considerado sintomático inventado pelo homem de teatro Philip James de Loutherbourg (eltl 1781], �
[
das perspectivas do teátro pós-dramático. as iluminações artificiais de festas em torno de 1800, é possível perceber o',
j
l quanto o teatro sempre esteve próximo das artes da máquina. 14
Máquina de ilusãó 1 .. - · · ---�f�turistas ãbs experimentos da Bauhaus e ao palco de Pistator, o teatro
também era maquinaria que desfigura o corpo, cerca-o de efeitos, deforma-o
:É, uma questão saber se os recursos de multimídia, na medida em que represen­ para fazer dele "escultura cinética': para nele descobrir possibilidad�s escondi­
tam técnicas de ilusionismo, assinalam uma ruptura definitiva na his�ória do das (Oskar Schlemmer), ou, de Servandoni a Moholy-Nagy, teatró sem lingua­
teatr<;> ou se a simultaneidade possibilitada com isso e a i�certeza sobre o status gem ou sem atores humanos. A maquinalidade no t�atro diz respeito inclusive
de realidade do que é representado, ou seja, mostrado corno ilusão, significalil aos atores. Eles talvez fossem considerados corno estátuas fa'lãnles, como uma
apenas uma nova modalidade do maquinário da ilusão qu� o teatro já co11hecia. esp�cie de autômatos. Diderot reconheceu o paradoxo de q� o ator só pode
7
Imparclalmente, pode-se constatar que o teatro sempre foi também técnica'é ,, produzir a impressão de vivacidade convincente como uma máquina fria.
tecnologia. Ele er� u111 "medium" no sentido de uma específica tecnotogía da Portanto, o te�tro ��;�eita de �-ediàtõtodas as novas técnicas e t�cnolo­
representação, dâ qual as n;iais novas.tecnologias mid�áticas não p_odem repre­ gias, desde a per_spectiva até a internet. A utilização �as mídias técnicas moder­
sentar nada além de um novo capítulo. o teatro de modo àlgú'� mostrava o
º
nas no teatro - fotografia.,.projeções, aparelhos de som, cinema -, tambéin em
homem ingenuamente, para além de toda arte técnica. Desde a m�chuné antiga associação com ilumina�ões r;fi;;ad;s é'õiifras têcnkas cênicas1 começou logo
até o teatro high-tech contemporâneo, o· prazer i:J.o teatro sempre significou após a invenç�o dessas mídias. São,famosos os trabalhos multimldià de Plsca­
também prazer com uma mecânica, satisfação com o que dá certo, com a pre­ tor na segün�a·ni.et�_de dos anos 1920, como Inundação [Stul'�jlut] e O comer­
cisão maquinal. Desde sempre houve um apar�to que simula a realidade com ciante de Berlim [Deriú:iujmann von BerlinJ. A inserção de mídias.no teatro e
auxílio da técnica não sq do ator, mas também do maquinário teatral. na performance se: encontrà'em toda parte nos anos 19601 a exemplo do evento
Praticamente desde seu inicio, b teatro oferecia maquinaria cênica, tru­ Nove noites [Nine Evenings], organizado por Robert Rauschenberg em 1966,'e
ques de luzes e bástidores, transformações mágic;as. A tecnologia da cons­ nos anos 1970, como em Joan Jónãs'é"lJlril!=e Rosenbach,
_ entre outros. Em 19791
···-.... ..
trução de imagens em perspectiva e os efeitos de luz desempenharam um
,,
grande papel na tradição do teatr!). No teattó barroco, a iluminação a vela
13 éf. Blrglt Verwiebe, Sehsucht.\Das Panorama ais Massenunferhaltimg des 19. jahrh11nderts,
podia ser "regulada" ao se içar quebra-luzes de 1.J:m grupo de velàs para outro. Bonn, 1993, pp. 73 e 76.. L .
__
14 Cf. ibid. Ver também idem� Lichtspiele, Vom Jylondscheinlransparenl zum Diorama. Stutt-
' · '
374 12 Wesemann, op. �it.
'\
gart, 1997. 375
\,
- \)
'·,.
·,, '·
I

Harisgünther Heyme e Wolf Vó�te.11--l'.lpr�ertfarâm ;Ji


éolónia um Hamlet cóni
recursos eletrônicos..Na encenação de·Carl Weber d� Kaspar, de Peté-r'Handke,
e1n 1973, fõràn) instalados quinze monitores, dd rÍmdô que 'ô público assistia à
peça ao viyo, nas telás.de.tevê e em.'.filme. Chain9.u-se__� atenção para o fato de
·que _Handke estava trabaJhandô em Káspar·n�-·época e1n que viu o Fra�tket1steit1
do Li1/i.ng.Theatre em sua turl'l.ê européia: 15 nos d�casos, tr!lta: se de uni.a ex­
periência de tnundo "pré-verbaf' e ào mesmo tempo da�núncia de·uma,reali­
dade _ila qua! corp? e m. ente são dorüinad_os_pela. tecnologia':-.
....
- ------- --
'· ···--·· -· Mídias fio teatró pós-dramático
.. ..
--..

,./

( Nó i�atrô pôs-dramático, ou �s midias encontrant uin_ usó .ócaslonàl, qµe não


.} define de modo fundamental a cóhcepção de teàtr0 (mero aproveltame.Qto
.... .. ��
da m(dia); ou servem como .:fonte da inspiração para 0 te�trõ, sua estética ou
: j!
... -
fót'ma, .sem que a técnica mkliáticà necessariam_eúte desempenhe um grànde

l
papel nas próprias montagens; óu sãé constitutivas de' certas formas de teafró.
Pôr fim, teatro e arte tnidiática podefü se e�contràt 1ra'/or.tfi'a de videoiitstala­
· çõe�. É relativan1ente destituída çle interesse a meta utilização do meio para a
. ... "···-·-- --�---... ·--� representação "mais fiel'; mais cheia de efeitos ou mais clara, Certàtfiente há
uiü efeito quafido ·rostos de atores são ampliadôs pór liteio de umá inlàgeirt
de vídeo, mas a realidade teatral é definida pelo pro-cesso da comunitação,
que não se altera de maneira fund�ental pela mera adição de recurso1>. Só
quando a imagem de vídeo se encontra eín u.fíJ.à relação complexa com a rea-
. ___,_ . .
!idade corporal começa propriamente uma es'té�ca fnidiátlca áo teatro.

Utilização de mídias

Etn Calfgula (1996), com base no texto de C�nus, o grupo [holandts]-·.á;t


15 )une Schlueter, apud Sigrid Bausch.lnger, "Sprechteater und Theaterblld. Peter Hanke auf der Zuidelijk, sob a direção de Ivô v�n Hove, d�L'<a os acóntecitnentos s�bre uin
án)erikaniscli.en Bühne'\ in Sigrid B�uschinger e Susan L. Cocal/s (orgs: >, V� ni Worl zum
Bi/d. bus neue iheater ili Deutscltland und den USA. Berna, 1991; pj>'. 39-58, PP· 47-48.
palco imeilsô serem filmados e ao mesr110 tempo prbjetadôs en1 grande escala. 377
Algo se.111elhante se dá em Fausto (1,998). O tema "proxitnidade e distância do ção de ?inal Peter de Arturo Ui, de �recht, com o Haifa theatre (1997), na quâl
público em relação ao ator''. é a�sim abordado. Em Koppen (1997], com base o pavor do terrorismo, tal como é divulgado nas telas de TV, era confrontado
no filme Faces [1968], de John Cassavetes, a questão da proximidade e da dis­ com as orniMsas promessas de segurança de Arturo Uí. Um outro exemplo
tância é tematizada sem uma utilização direta de �écnica visual midiática: o é oferecido por um dos mais marcantes projetos teatrais da década de 1.990, o
público se posiciona em uma enorme quantidade de camas enormes (como épicó teatral de Robert Lepage Os sete afluentes do rio Ota [Les Sept branches
se as pessoas se aconchegassem confortavelmente diante do aparelho de tevê de la riviere Ota], no qual ele trabalhou com.seu grupo ExMachina de 1994 a
de casa). Os atores representam nos espaços intermediários, de modo que 1997. Há algo como uma viagem teatral político-histórica que se passa em Hi­
tem lugar uma espécie de "montagem aberta'; e ao mesmo tempo há uma roshima, Nova York, Theresienstadt e Amsterdã entre a época do nazismo e a '
alternância pensada "cinematograficamente" de c/ose-up e cenas a grande dis­ atual, abordando temas políticos e a memória histórica entre os Estados Unidos,',
tância. Em lugar da troca de primeiro plano e plano geral, é a percepção que o Japão e a Alemanha, A maneira de um caleidoscópio, estilos de representação
muda de plano: num momento ela está quase em contato com os atores, e_n.o .. -·---::. sobretudo mídias são continuamente trocados,· com a intenção, segundo o
momento seguinte talvez tenha de percorrer todo o espaço, porque a cena piprio [êpage, de "fazer um teatro que func_ione segundo as regras d� sonho''. 1•
acontece em outro canto da sala. Aqui, o teatro tenta integrar a percepção do Teatro de cãmara [�ammerspiel] realista, bunkaru e kabuki, teatro de sombras e
cinema e a da televisão e fazer com que se tenha consciência delas. estética cinematográfica hollywoodiana: sob uma ampla margem de [11anobra,
Em uma coreografia de Hans van Manen, uma dançarina é filmada pôr do videocl.ipe até o teatro tradicional, também com o emprego de 'pri�dpios
um operador de câmera no palco, e simultaneamente com sua entrada em narrativós do cinema, as mídias se convertem aqui em uma faptasja histórica e
cena a imagem é mostrada em uma grande projeção. Surgem tensões inte­ onírica. Em uma entrevista, Lepage declarou:
ressantes entre o movimento, a imobilidade e o paralelismo - por exem,plo,
.
I
1

/
quando a dançar!na pára em um lugar, quieta, mas o operador de c�méra se Eu estava descoricerfaaõ-com· o·môdô' co·mo· o mundo do ciné�a .Íe;oÚ.. ádiante
move depressa em torno dela, de modo que na tela se vê uma im�g'em muito a dramaturgia do teatro, como bons roteiros são divididos em cinco atos, e era
movimentada e inquieta. Por fim, a dançarina sai da sal"ir-teafr�l dançando, realmente poss1�el se_ntir como o mundo do cinema parece ter aprendido ou conti­
acompanhada pelo operador de câmeFa, e de repente o público se encontra nuado a tradição d� co-;;iliução arãihática·em Shakesp�_a�e. o_u no� gregos e assim
como q_ue abandonado, sozinho diante do pàlco-vazio e da grande imagem por diame. Mas acredito que no teatro,
. ..... ,,: no" teatro norte-americ a��, a dran1ática e as
. .., ..
de video, na qual é possível acompanhar movimentos de dança no joyer (já
convertidos em imagens de memória). Trata-se aqui do peculiar vestígio da ',
estruturas dramáticas são marcadas pela televisão e pela representação televlsi"va.l
......
presença, O que não se nota mais na televÚão, isto �.. o fato de que existe Inspiração nas mídias -,,, ,,.
uma pessoa real "atrás" 'da imagem (quando ela nãó é virtual}, é evidenciado
sensorialmente pela seqüência de presença real e vestígio, de convivência do Outras formas teatrais não se caracterizam primo�d-ialmente pela aplicação
públi�o com a dançarina, e em seguida de separação., de tecnologia midiática; mas'pela inspiração na estétita-das mídias, reco-
Muitos diretores usam mídias e!11 um ou outro caso sem que isso defina seu
estiló - por exemplo, Peter Séllars em sua encen.ação de O mercador de Veneza. � '
Robert Lepage, in material. de i:irograma do festival Teatro do Mundo ('.iheater der Welt),
No ca�o de um artista tratado como "pós-mode1:�o'; slmplesmenté faz parte de bresden, 1996. --· · ·- l.
·--
:
378 seu trabalho usar mídias. A dimensão política das mídias ��ou clara na encena- z ldem, entrevista a Brigitte Fürle em 1993. Theat;rschrift, janeiro de 1994, pp. 210-23. 379
l
i,
,,,

'1

nhedvel na estética da entenação. Incluem-sé'.ãfã" vertiginosa alternância de midiáticas. Neríl. na tentativa de encontrar intensidade pela identificação ra­
imagens; o ritmo de convérsação abreviado, al.gag das_ comédias· televisivas, dical cori1 o universo dos produtos da- mídia ·e com suas ofertas de diversão,
alusões aô entretenimento trivial da televtsão, a estrelas do clnema e da TV. que vão das drogas ao cinema, nem na tentativa cohsciente de se afastar des­
citações da cultura pop, dos filmes de entretenimento e dos temas veiculados sas coisas, um Eu "autêntico" pode se liberar do discurso mqldado pela mídia
pela publicidade midiática. Nessas fornYas,·prê'domina na maioria das vezes e das máscarás de comportamento vigentes. Na coinicidade e no l4tô, ele está
·um tom parôdico e irônico, mas outras vezes há a simples adequação aos ligado, para a vida e.para a morte, na máquina de som e ifnageríl. do universo
.......
temas da 1nídia. Esses experimentos são pós-cfta,:náticos na medida em que pop e midiático. Em tais trabalhos teatrais, que sabem extràir a poesia do
os temas, gags ou nomes citados não são expostoinos moldes de uma dra­ ritmo do pop, do clipe e do zapping, acontece um trabalho de luto que avalia
rnaturgia coerente, .tnas ser.vem como fr�ses em um ritmo· inusiçal, cor'no ele-· a história de um gesto "pós-moderno" de expre$são de alheamento e agressi­
men.tôs·de u..tn.a.�olagem de image11;. Em duas produções de 1992, Haraqulri vidade segundo a utilizaçã·o das formas oferecidas pelas rtovas mldias.
em um encontro de-;��-trfÍÓqúôs[H�rakiri einer BaJJf.h!�dnertagung] e Bulevar Com razão, destacou-se como câi:acterística do desenvolvlmeilto artístico
do terror [Splatterboulevard], René Pollesch mostrou como faz inteiramente "pós-mod;.mó" ·lf tendência de que a realidade seja cada vez mais transmitida
sem drama, a partir de diálogos pontuais, um texto para o qual servem de mediante esquemas interpolados, atitudes e padrões de representação·pré-fa­
módelo a �crewball comedy e a'sitcom [a "comédia-extravagante" no cinema e �{jéados, que se citam e se espelham reciprocamente. Schulte-Sasse observa:
a "comédia d !! situação" télevisivaL Aqui, uma elabôrada falta de gosto, uma
contínua recaída ení um estado de alegria desolada e apropríações midiáticas As imagens que definem a consciência humana são organizadas segundo os prin­
·parodística;·gera'm uma atmosfera de teatro pop. cí pios de uma dramatur �'. � do espetáculo, isto é, no estil _o das vinhetas carregudas
Em Tot�lmente de p�rto (Ganz nah dran], performance de Stefan. Pucher tmoclonal, sentimental e visualmente, cujo conteúdo va go, consciente, quase in­
realizada em Frankfurt junto con'l o grupo inglês Gob Squad, em 1996, o re­ tercambiável, disfarça a dimensão ideológica dessas vinhetas.3
pertóriô midíático que molda o discurso, o gestual e os padrões emocionais
da vida cotidiana era exposto de modo teatral. Grande parte da perfm:mé!nc_e �m tal jogo possibilita novas formas de configuração, mas tambétn traz coli­
consistia em auto-representação dos atores, em que a pa·rcela dos elementos sigo - diante da fulminante trivialidade da imensa maioria de tais "imagens"
biográficos "reais" era difícil de descôbrir. Tambéin aqui há recepção paro- circulantes - a questionável dependência. De modo paradoxal, pela riqueza
, d!stica de atitudes e gestos moldados pela. mídia na forma de fala dirigida de possibilidades arbitrariamente disponíveis chega-se a um estreitamento do
diretamente ao público e "de auto-representação de efeito privado. Em virtude repertório de temas e de universos de imagens. Tudo o que não é dado total­
do estilo negligente com que se estabelecem ligações entre os números indi­ mente novo volta a desaparecer lt�edíatamente (e no entanto o que acontec;e�
viduais, pelo fato de o público estar posicionado em vários blocos em torno antes cfiãnteontem, anteontem·ou logo ontem é muito parecido). Se apenas
do palco e assiin poder ser interpelado em grupos menores, e finalmente em o mais recente de hoje cedo serve para encontrar enteJ1climento ou funcionar
razão de um DJ operando no meio do palco, o conjlllito tem um espírito bá­ como sinal �e reconhecimento, resta então perguntar se a falta de todos os
sico muito próximo da festa e da danceteria. Acima do espelhamento do es­
pírito resignado da geração, as cenas tornam sensível, de uma maneira muito
3 .Jochen Shulte-Sasse, "Von der s.chriftlichen zur elektronlschen Kultur': in.Hãii's U. Gum­

li
:j "próxima': a tristeza por baixo.dos gestos indiferentes _, a intuição do vazio que brecht e Karl L. Pfelffer (orgs.), Mater/a//tat der Kommun/kation. Frankfurt am Main, 1988,
380 surge quandó a pessóa quase não pode mais renuç._çiar.aó uso de atitudes PP· 429-54, p. 439, 381

f,,
espaços__ de relaçãb mais amplos in'lpedirá toda expressão que pretenda esta­ teria! de documento organizado se apresentava ao 'público diretamente como
belécer ligação com a histó!ia, com períodos anteriores, com a própria histó­ Instância centralizada. Isso seria quase impossível hoje ern dia, porque um
ria do gênero humano. Aqui, sentimos despoütar a lembrança do problema supernarrador desse tipo não teria credibilidade polítiéa e porque as imagens
técnico de que muitos recursos de computador se. tornam ilegíveis em razão miâiáticas multiplicadas, produzidas por coletivos artístico-tecnológicos, ul­
do progresso da tecilOlOgia, porque não há mais aparelhos com os quais os trapassam estruturalmente a idéia de um autor individualment'e responsável.
disquetes e programas, antiquados após um curto prazo, possam ser lidos. Se Como recurso de auto-reflexão problematizadora, as imagens eletrônicas no
toda expressão que pretende ganhar ao menos um pouco de profundidade teatro "pós-épico"' do Wooster Group se referem diretam.ente à realidade da
se refere a períodos para além da vida individual, então a aceleração das modas vida e/ou ao processo teatral dos atores, citando material de imagem - em
e dos campos de relação apresenta um corte marcante: em algum momento as O macaco peludo {1he Hairy Ape, de Eugene O'Neill], por exemplo, uma luta '.
mudanças se dão tão depress;1 que s6 existe ainda em grupos multo pequenos de boxe na qual um branco lutà com um negro - como extensão cognitiva do
um campo de conhecimento prévio a que se pode recorrer. .. p_al_<:9, n��-como doc�mento. É lógico, por isso, que a técnica de vídeo revela
Nesse sentido, a dependência das mídias ameaça também todo teatro com a tendência de ser usada para a co-presença de imagem de vídeo e de ator
a falta de linguagem que, no interesse de sua capacidade de comunicação, a vivo, funcionando de maneira bem geral como auto-referenci�lidade do teíltro
estética das mídias interioriza e aplica à encenação de dramas, de n10�0 que tecnican'lente transmitida.
resulta uma dramaturgia à la carte, que quase.,não'p1:_etende mais construir O recurso do vídeo é um_ fator central· no t.r_a balhô do Wooster Group.
grand_e s contextos de figuras, narrações ou temas. Contudo, ao que se pode Aqui, o teatro traz à tona suas possibilidades téc�i�as, divididà·s-em elemen­
supor, o teatro só se dá conta de uma de suas chapces de configuração no jogo tos 'individuais.
. A maquinaria teatral é _visível. O funcionamento -:
técnico
de troca entre "situação" e mídias, e não por meio da adaptação. O dispos(tivo da montagem é exposto abertamente: cabos, aparelhos e instrumentos . não
pós-dramático oferece uma série de poss;bilidades, por meio dos pr�cedimen­
tos da colagem e da montagem, de tomar consciência de um disfanciamento
.,' são escondidos co� p�dor�·mas.lntegraéfos"na representação como �-bJetos
de cena: O,s atores com freqüência imitam o COJ!1portamento pouco natu­
irônico em relação ao ónipresef1te relato de notícia� e '!fütóriás, mesmo que ral de apresentadores<!�.!�".'�· Em Anime-se! [Brace Up!J, baseado em As três
.
irmiis, de Tchekhov, uina narradÕÍ-a-{Kàtê 'Valk} -condu�.a ap.re.sentação, mas
para isso ele use os procedimentos mldiáticos.
também fala_ tei{tos · de personagens. que não.s�o represerítados p�;·bu.tros ato­
. j
Mídias como fator constitutivo i res, apreserita�fores �or exemplo, a já idosa Beatri�e Roth, q'ue represe�ta
a mais nova das três irmã�) e dá indicações de cena. Durante a montagem,
Ao passo que em tempos anteriores as imagens fi.lmad�s documentavam a rea­ podem começar debates s;ore a· possibilidade de pular ou não u�a deter­
lidade, a típica imagem de vídeo no teatro. pós-dramático não remete em pri­ minada passagem. Etn S\.llna, o que se mostra é intermediário entre ensaio e·
meira instância ao exterior do teatro, mas circula dentro dele. Szondi aponta representação, torna visível a·prodüção do te�tro e const�1ltemente se 'dirige
ao públiçô, i:omo na televjsão. ,' .. ·--·-
que em Piscator os d;cunientos - naquela época sobretudo fotográficos e
cinematográficos - se encontravam a serviço de uma instância totalizadora É característica a,utilizaçã� éi6 v(deo pata integrar atores ausentes: "Mi­
do narrador épico, de modo·que uma imagem _cênica que mostrava seu perfil chael Kirby não pôde estar a�ui esta !,:º!te, in�s nós o mostramos cÔ�ô ima­
em um tamanho monumental pode ser um emblema parà aquela tendência gem de vídeo"; "Umiu1triz.é-velhü-dimais para participar da turilê, mas nós a
• I
épica dos anos 1920: o aumento grandioso do Eu épic(),_qu e por meio do ma- mostràmôs em vídeo" etc. Assim, são' destacadQs de passagem os ilusionismos
'
',
' • . •
1
do teatro, a usual e no entanto de'scóncertante·equi\lalência de presença em
. . \
vídeo e p,resença ao vivô. O cotid�ano da percepção não é há muito tempo pro-
ator como entertai;er que se _dirige diretamente ao p(1blico como ·nas .ficções
coletivas dos concertos de rock, a visibilidade da- técnica evidenciam que aqui
vido exatamente do inesmo modo como apare�� e surpréende aqui no teatro? ocorre um jogo consciente com a "presença" - sua extensão _e sua modificação
artificiais. Consiste nisto a diferer1ça qualitativa em relação no show: como
Mídias teatralizadas procedimentos realizados conscientemente, as mküa_s não se reduzem a uma
produção de efeitos e ,afetos1 mas apontam para uma lnstânci� órganiiadora,
Com o auxilio de câmeras vi'sívcls, os movilflebt�s e as falas dos atores são re­ o grupo de teatro, que estabelece um diálogo virtual com a consciência do
gistrados e reproduzidos paralelamente em 1nonit�res,� mas freqüentemente espectador, um diálogo que, apesar de todas às camadas temporais da pre­
modificados, �ais lentos ou acelerados, parados, c6mbinadps com material sença e da ausência, tem lugar no espaço-tempo do teatro. Nos seus melhores
pré�film.�do. Assilri,..pcii:lé surgir no' espectador uma incerteza sobre quais momentos, o Wooster Group alcança dessa maneira a ligação (e uma i11definl­
iinagens sã� "reais"tp:rovenienteS-da ap.c�SÇ!).t�ç_ão a que'ele está assistindo) e bilidade) entre â provocativa frontalldàde em relação ao público e um encerra­
_
quais não são. O que ocor �e aqui é uma ifltensific-; çãÕ e ti.ma desconstrução inento não .1}1enôsp-rovocativo, quase autista, no aparato técnico das Iilídias.
do teatro em vários níveis. .Por um lado, o teatro "vivo" é posto elll suspen­ /

são e passa a se� uma ilusão, um....efoito_q� µ_gi� !_ll�':Wl-ª d� efeitos. Por outro A cená italiana
_
lado, �xpei-im�r'lta-se na atmosfera intensa' e yital do trabalho uma tendência
inversa: a tec1{�logla das mídias é teatralizada. O mecânico, a reprodução e a Desâe os anos 1970, a cena italiana do novo teatro demonstrou intenso inte­
re.l?rodutibilidadc se tornam material de representação e devem servir da me­ resse nàs modalidades do t��tro high-tech. Cabe mencionar, entre outros, o
lhor maneira possível à atualidade do teatro, à representação, à vida. Um caso grupo Magazzini (antes Il Carrozzone e Magazzini Criminali); os primeiros
especial nesse contexto é o uso do miJrofone no teatro: de um modo peculiar, • trabalhos da Societas Raffaello Sanzio (Rómulo é Remo, entre outros); o grupo.
ele enfatiza ao mesmó tempo a presença autêntica e sua intromissão tecnol6- i Falso Movimento, que foi inulto influenciado por Pasolini e mostra já nó
gica. Os microfones são manuseados como seriam por cantores d�_!ock,_gor i nome - wna homenagem· ao filme lvfovimento em falsô [Falsche Bewegung),
um apresentador de show.ou pbr jornalistas em entrevistas. Se o microfon;)-·· ·· - · ·- , _. ··· ·· de-,:Vim Wenders, com base em Peter Hand.ke - o interesse "lntermidiático':
visível, enfatiza-se ó fato de que os atores não se movem no espaço da ilusão, sobretudo no cinema. De modo geral, pode.-se dizer <l_ue o movimento ita­
:. mas falam diretamente ao público (ele deve poder ouvir tudo muito bem), en­ liano - falav.a-se em '1p6s-vanguarda'; "transvanguarda" e "nova espetacula­
quanto o som vem das caixas. Para a música pop, com seu hábito do playback, ridade" - foi influenciado de modo especialmente marcante pelo cinema e
no qual não se canta ao vivo no momento da filmagem ou mesmo no próprio produziu um intenso trabalho de pesquisa e desenvolvimento no setor do
show, els um tema espinhoso: o que é "genuíno" na apresentação de um êan­ vídeo. N;-�ores trabalhos ness· a direção, a mídia não serve apenas à gera­
tor pop se a sua atuação representá uma mistura indissolúvel de efeitos reais e ção de efeitos espetaculares, mas se conecta de tal maneira com a ação viva no.
simulados? Por que a voz individual ainda deveria ter um status privilegiado palco que surg�m novas modalidades da dramaturgia visual. Trabalha-se com
(inclusive financeiramente) e soar como se· fosse "verdadeira"? Por que ela câmeras e monitores de video móveis, com ' telas que continuamente abrem
.,, .,,.
deveria soar como se fosse ao vivo? novas janelas para outros espaç?s, com procedimentos refinados p�ios quais
No teatro, esse efeito midi�tico acabou se tôrnando estrutural: a enfati­ os atores parecem elitrar e sair de espaços em vídeo, como se a materialidade
zada e consciente alternância de voz natural e voz an��lifiç:ada, a posição do do corpo não importasse. O espaço não é mais subordinado ao ordenamento
da persp_ectiva e da separação de interior e exterior;.ele se torna um espaço dançantes multiplicados por eles, em parte despedaçado�, itwisíveis direta­
" virtúal" ou espiritual, no qual as coordenadas temporais se torhai11 oscilantes mente. Eles parecem tão semelhantes nos diversos reflexos indiretos que por
junto com as espaciais. O p;ocedimento do chroma key, com o qual imagens e muito tempo - até o final, no caso de alguns espectadores - não· se sabe ao
maquetes são projetadas, faz o espaço tridimensional se tornar cada vez mais .êerto se o que se vê é utn único corpo duplicado de algum modo pelos refle­
real. A estética do filme e do videoclipe é integrada ao palco. xos ou dois ou mais corpos. Como, cllém disso, só se pode enxergar as imagens
Nos anos 1980 e início dos 90, Giorgio Ba-rberio Corsetti e o Studio Azzurro corporais refletidas obliquamente dos movimentos de dança que ocorrem evi­
fizeram furor com uma série de trabalhos pos quais coreografias acrobáticas, dentemente atrãs da parede, ainda há, j�nto com os reflexos multiplicados do
partes do palco e monitores móveis geravam uma superação do espaço eucli­ espelho, peculiares encurtamentos, fragmentações e deformações ópticas, que
diano. Em meados dos anos 1970 Corsetti havia fundado o grupo La Gaia se combinam com figuras luminosas sem forma, de aparência psicodélica.
Scienza, que posteriormente dissolveu para fundar a Compagnia Theatrale Nesse espetáculo, que tira o corpo vivo da vistà e ao mesmo tempo terná-
di Giorgio Barberio Corsetti. Houve um trabalho em conjunto. com o Stuq_io �- - ............ --·-·4·
tiza a visão
-·-
do,eorpo, ouve-se de alto-falantes a voz âo ator thomas Thleme,
. Azzurro, que se especializou no uso de l'ecursos audiovisuais, da fotograna ao que recita um texto do autor russo Venedlkt Jerofejev, no qual se trata, ao que
filme e ao vídeo. NO teatro midiático de Corsetti, figur;ts humanas parecem parece, exclusivamente de vodka e de bebedeira. Quando, ao final, os dois
passear de cabeça para baixo, arrastar seus corpos segmentados segundo cor­ dançarinos - são realmente dois, e gêmeos -: vêm para a frente da parede
tes d � tela por uma série de monitores expostos.Já que cada monitor mostra para agradecer os aplausos, nada parece mais óbvio. No entanto, eles estava.J'n
apena� uma parte do corpo. Os atores agem durante um tempo em sincronia ali presentes de uma maneira tão fragmentada que à pergoota sobre a repre­
com sua imagelu em filme mostrada paralelamente, para de repente "cair para sentação se torna Jabiríntica, No que consiste a presença? O que se oferece ao
fora do filme"; objetos, monitores e atores posicionados em longas gangoi;.rás públlco senão uma presença que se espalha? Parece ser assltr.,.. !TIªs o que se
parecem agir contra a lei da gravidade. Em comentários críticos dess�s-iraba­ experimenta é muitÕ. mãis que'ísso: a presença não é o efeito s!mp-lesmente da
lhos surgem com· freqüência as palavras-chave "lirismo" e "estrut;1rii.' musical" percepção, mas do desejo de ver. A subtração desperta na cof1sciência o que
(em vez de dramático-narrativa). Com o auxílio da tecnologia;·têm lugar aqui na verdade a perceP,_ção do corpo "presente" já era: alucinação de um outro
""-·-
novas possibilidades da elaboração cênica de textos. Nos trabalhos de Corsetti corpo ausente, imqgo, guarn·eéictã·iia ·mesma-mediq.a _p_o_r_desejo e rivalidade
com base em Kafka, a transposição de fronteiras ·entre teatro, cinema e arte e assim aberta a todas as formqq.q_e rep_resent_açfiq__�,os çq.11llitos'mortais e das
midiática abre novos tipos de reflexões cênicas da identidade. promessas .de ' felicidade do Eros. E mostra-se o que a percepção do corpo
presente também é:"rrãQ percepção de presença, mas consci�ncia de presença,
Presença virtual confirmação sensorial ·�o�fµndo não necessitada nem capaz ;itada. É evi­
dente que tal teatro é ainda menos propício à reprodução pelo cinema -ou
O teatro também pode gera't "espaços virtuais" com seus próprios recursos, pela televisão do que as encenações tra�idonais. Não ·por causa da b�leza da
a exemplo dos trabalhos de Helen;i Waldmann, que nos anos 1990 se desta­ presença viva, mas porque q·a imagem sãô niveladas ils'"Camadas e as tensões
cou por uma série de "ordenamentos da visão" teatrais muito inventivas. Na entre presença físlc·a, ima�iná'rJa e mental nas quais tudo se baseia aqui.
performance Vodka cpncava'(Wodka konkav), �público s� posiciona diante
, de uma parede. Sobre ela há vários grandes espelhos cotn curvas 'côncavas. .L..
386 Quando começa a representação, aparecem lá no alto, h� s espelhos, corpos

..\1
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Jesurun ...
·"!' . . de Jesurun eles se encontram entre imagens de um tamanho descomunal,
• . 1 .
que funcionam coti10 instâncias de controle, como em Sono profundo [Deep
Uma parede como barreira para a visão tall)�énÍ dese�penhava um papel Sleep], em que grandes telas foram construidas nas duas extremidades do
central em Tudo que emerge deve convergir [EJérything that rises must con­ palco comprido. Ou então ficam inteiramente separados do público em ter­
verge] (1989-90), de John Jesurun. Uma paritde.branca de um lado e preta do h1os físicos, como Cl'n Calor opressivo [Blue Heat]: em que os atores represen­
.- outro dividla toda a área quadrada em que se dava a representação. O pú­ tam em espaços não acessíveis ao público, atrás do palco, de modo que este
blico sentava em dois lados, um diante do o�tro,.4ci111a da parede divisória permanece vazio. Aquf o teatro parece renegar sua especificidade, na medida
.se encontravam, para cada uin dos dois lados, cinco·inonitores. A decoração em que se converte em uma situação completamente midiática, sem contato
cenográ.fiéa dos dois lados consistia simplesmente em -�a- ipesa.grande e visual direto entre atores e público. Mas o reconhecimento da realidade men­
uma pe...que_na. ligádàs com a parede, cadeiras de escritório e, eri1 cada campo tal da percepção reciproca também é possível aqul, já que a falta do contato
de representaçãõ� uma--Gâmera. As_c!!lleras .6.l.rpavam se�ões da área da re­ visual direto se contrapõe à noção de que nesse teatro tudo se encontra virtual­
presentação que os espectadores não podi;� �e; pÕ.rcãüsa da parede. Assim, mente alcançJvel: --... _
o públic!) simultaneamente óbservàva uma parte da representação de modo
irt1ediato e a outr� parte apenas t�r1n�ml�ida pela .P!.?}�y_ão em vídeo. O que Comµfações
acontece então? /
l
Os campos separados, que só podiam ser vistos diretamente por "sua" Hoje em dia, o teatro com mídias também pode ser compreendido como um
parte do públlco,..se.revelam, nos textos dos atores falados em velocidade ver­ lugar de treínamento, no qual ós indivíduos exercitam o modo como afir­
tiginosa, como dois acampamentos, reinos ou países. Aqui, ao que parete, há mam �a segurança, uma résistênda pessoal e uma autoconsciência diante
um rei; ali, uma rainha. Um tradutor se perdeu e é procurado: o tema da co­ de sua convivência com as estruturas tecnológicas e sua dependência delas.
municação e de sua dificuldade vem à tona. Mas tudo isso permanece coino Um efeito colateral desse teatro rnidiático é o fato de que os espectadores se
interpretação, fragmento, possível início de uma história. O mais lm�tante tor�am conscientes da situação dos atores reais (mais do que dos personagens
não é a história, mas o jo_go com a percepção, que permite a ·experiência co�: -....._ · · --- .: por eles representados) e de ce{to modo também se unem a eles, os "parceiros"
ereta de que a fascinação se prende à 1n?-agem do monitor, portanto àquilo que vivos do público, contra o poder das imagens midiátlcas. Trata-se do poder
n�o se vê "realmente': ao vestígio em vídeo daquilo que se dá atrás da parede. de fascinação das lmagens.-O que fascina é a estética da comutação. Sons, evo·
o' olhar prôcura - não se pode deixar de notar coflsc!entemente - as imagens. luções, movimehtos, Imagens são articulados eletronicamente em conexões
De maneira lntendonal, é preciso constantemente buscar o caminho para a que são Ugadas e desligadas, de modo que em vez de corpos hwilanos· indlvi­
percepção direta, muito menos fascinante, das pessoas, cujo olhar repercute dualizadoseinü.m ambiente tecnológico surge um "agendamento" (Deleuze)
nas imagens. O espectador óbserva sua observação enquanto diante dele uma serial e muito rápido a ser codificado, uma comutação de elementos hetero­
imagem de vídeo concorre com a presença viva de um ator. gêneos (membros do corpo, som, imagem de vídeo, fala, redes de luz, câmera,
Esse modo de representação também cria para os atores uma situação microfone, monítores, máquinas...), que pode aparecer como munese da rea-
..,,,.
singular: eles falam com eles "mesmos" como ilnagem de vídeo, precisam lidade totalmente eletrônica. ... ,,,,... -
,

interagir com essa imagem de maneira precisa, construir um ''contato" com O "teatro cinematográfico" de Jesurun é exemplar para o novo teatro com

--
o parceiro, possibilitado apenas pela técnica do vídeo. J;m o�gos trabalhos
.
mídias. Ele parece comprovar o que [o psicólogo alemão Hugo) Münster- 389
berg de.signava etn 1916 como "psicotécnica". Subjetividade e tecnologia se Vídeoinstalação
torfiám !.o.separáveis. A po.ssib�lidade muito próxima da "�omutação" tecno­
logicamente direta de estímulos imagéticôs com o sistema nervoso central se Esse campo deve �er mencionado porque ganhou uma importância especial
tornou um dos temas preferidos do discurso midiático. Encontra-se aí uma para a "situação" da teatro por sua posição limítrofe entre o teatro e as artes
tese essencial: "A psicotécnica conecta psicologia e técnica midiática sob o plásticas. É evidente que instalações de vídeo ou performáticas de Gary Hill
pressupostó de que tódo aparato psíquico também é técnico e vi.ce-versa''. 4 ou Bill Viola se aproximam de um procedimento teatral. Muitas dessas ins­
Certamente é verdade que muitos mecanismos de percepção, a começar pela talações são interativas. No início dos anos 1960, Nam June Paik concebeu
atenção, têm seu "correlato tecnológico'? e que isso só pode ser assim porque um concerto para plano que deverla ser tocado ao mesmo tempo em Nova
é inerente aos órgãos do corpo uma certa "artificialidade': algo de técnico. York e Xangai: em uma das cidades a mão esquerda e na outra a direita; em\
Não obstante, resta a questão de uma diferença que some no discurso enfático TV Participação [Participation rvJ I e n, de 1963 e 1966, o observador de um,

das mídias. Se os gestos da interrupção reflexiva, da reflexão, do "espírito': llâo .n.-1onitor a cores gera todo tipo de linhas em uma imagém por meio de sua voz
considerados como algo antiquado e dispensável em relação ao registro sem [captad;·por mkrofoneJ.6 O que é em geral chamado de "interativo" é primi-
demora das lnforinações, a perspicácia versada tecnologicamente ameaç<1 se tivo e sobretudo de uma comicidade tocante. Adultos podem se divertir como
converter etn ideologia, na apoteose do funcionamento cego. crianças ao pôr esculturas cinéticas em movimento mediante seus próprios
Ãlgo diferente se.dá 'na reflexão estética aceno.a cfas novas tecnologias. No ruídos corporais, vozes e passos. Mas há exemplos profundos e complexos da
teatro. midiático de Jesurun, â princípio parece que se trata tão-somente de combinação de teatro e vídeo, que abrem novas po;sibilidMes;-Assin1, deve-se
freqüências, vibrações, conexões e ritmos ten)porais computadorizáveis, e pen�ar em instalações teatrais em que o ci:mtato direto inexiste,. é impedido ou
não de personagens individualizados. Contudo, essa impressão engana. Esse . atrapalhado (os atores s� encontram em um espaço inacessívêÍ il.Q�_espectado­
teatro desperta � lembrança de padrões narrativos tanto tradiciona!� q{ianto res e não podem ser reco11héclàõs direta'úi.ente, mas apenas de modo ��ediado
modernos. No fundo, continuamente se faz a tentat�va de conta�,afgo. Mas.º - e fragmentário), ou em ínstalações nas quais a tecnologia midiática se presta
suposto - "drama" aparece fragmentado e fi.ltrapo porpãdrõés e esquemas a uma intensificação ���1struosa" da percepção ·dos corpos. Em wna insta­
triviais, histórias de horror e de suspeilse, filmes de entretenimento, quadri­ lação interativa do Studio Ã�zooo··co"n'i õ·título,.Coro..,pess.g_a� dormindo sã.o
nhos e seriados de TV. Atravé's da desagregação· e do isolamento (com efeito projetadas 1:º chão e começam a.se Jnexer quand.o. Q visitante "pisa 11'efas".
de monólogo) das rápidas "máquinas de falar''. uma outra experiência - tris­ A videõin;'iàlaçã? também se aproxima do proc�sso teatral pelo fato de
teza, isolamento, silêncio - é dolorosamente perceptível. Nessa estética a mi­ que a temporalidadee-st� inscrita nela. À diferença de uma pintura, que à
mese tem lugar na lógica das novas mídias, no sentido daquilo que Adorno noite está a salvo no muse�'e.p.oêle sonhar com seu próximo observador, que
denomina "mimese no endurecido e petrificado", As imagens midiáticas são reconhece suas belezas duradouras, a videoinstalação não tem nenhum "sen­
um veículo da frieza necessária à articulaçâ0 est_ética - assimilação à frieza tido" imanente, nenhuma existência fora do momento da própria experiência
para poder se desviar d�la. da visão, nenhuma manifestaçã.o para além do e' ncontrõ. Êm·Ós adormecidos
['Jhe Sleepers, 1992],,de Viola, d1spõem-se no chão sete tonéis abertos cheios
d'água com monitores instal�dos eín cada um. deles, nos quais se vêêm rostos
Frledrich A. Klttler, Gramophon, Film, Typewrlter. Berlim, 1986, p: 238.
-�- -
\ . ..
4 1
1
390 5 lbld., p. 241. 6 Cf. Edith Decker, Paik Vídeo. Colônia, 1988, pp. 173 e 64-65. 391

, ,1
'\

de pessoas dormindo. A obsei:_vação d� pessó�s dô.finlndo em �ma quietude Ponto .de contato·central da dança e das assim chamadas novas mídias é aqui tam ·
como a �os mortos, através.da ,água, convert�-se para os e.spectadores em bém a Imagem do corpo, para o qual a pele huinana serve como superflcle de proje­
uma busca h'lcerta por sinais de viâa (que d� fáto aparicem aqui e ali). Justa­ 1 ção como uma tela. O espaço assume com isso ô papel de um lugar no qual se encon­
mente a duplicação das baqe�Eas entre as pe�soas que vêem e as que são vis­ i tram as imagens que as pessoas têm umas das outras, A diferenciação usual entre o
tas (a imagem e a água) suscita.o ·desejo-de despertar para a vida as imagens. real e o virtual é assim inteiramente superada; a itnàgem perma11ece imagem.8
Esse efeito é fortalecido pelo fato de que o espaço escuro só é iluminado pela
peculiar radiância dos monitores na água. As'c,\beças de pessoas dormindo ) . Assim como o teatro de dança multimidiático (Plan K, da Bélgica), a combi­
representam - esta é a questão - apenas o ponto d;· par�.?ª para uma experiên­ nação de yfdeo e dança - inclusive a "videodança''. concebida para a repro­
ci� do observador. Elas não constituem uma obra solidificada_. Na verdade, o . dução em vídeo - logrou se converter em uma modalidade especialmente
in;fante ga visão, fator de uina estética dÓ espanto, é organizado segundo con­ criativa do teatro atual.
dições determin'ãdãs; êi:iadà-s artificialmente, Tr��ª::: âà'experiência do outro Gary Hill acredita que só a linguagem atinge o interior, enquanto a maio­
dormi..ndo,.quieto, :morto, !nuito perto; trata-se do corpo,'e portanto também ria das imagens'pa:ssa por nós com tanta superficialidãde quanto as impres­
do corpo do observador nesse mo�ento. sões ªº. olharmos pela Janela do carro em movimento, 9 A linguagem não
o� . t�abalhos de Viola comprovam a tese. de 51µ�_Qs,temas da situação e do desçmpenha diretamé11te uin papel em todas as suas Instalações, mas sem­
ritual, que se ynpõem ao teatro pós-dramático, também são relevantes nas pré parece estar presente como problema. Assim como Bill Viola, Hill pode
artes plásticas; avançadas. Quando ele fala de sua tentativa de conferir à arte ser inserido na histórià de uma estética do estranhamento: "Sou apeqas um
ll1na função; wna base n,a vida, esclarece de imediato que Jsso não deve acon­ perturbador que está totalmente mergulhado em si mesmo, uma espécie de
tecer no sentido do embelezamento ou da diversão nem mediante respostas espírito que se movimenta ·cÕn:o um morcego através d.i, floresta e <lo portão
ou teses concernentes a questões sociais. Ele se-refere a "uma função da arte de uma imensa casa de hóspedes''. 10 A videoinstalação interativa Navios çom­
hum sentido originário, no sentido de um ritual, A arte pode servir para en- pridos [Tall Ships, 1992). talvez o trabalho �ais conhecido 'de Hlll, foi descrita
sinar alguma coisa na sua vida, ou seja, para aprofuudá-la''.7 como uma espécie de "casa h1al-ássombrada" na qual "algo" circula:
••• ___ ... ·- .
Mente expandida [Splayed Mínd Out, 1998], um trabalho em conjunto d�·--- · ·--­
artista de vídeo Gary Hill e da coreógrafa Meg Stuart, sonda as possibilidades A instalação é úm espaço semelhante a uma caverna ou a um subterrâneo - muito
'. do confronto de vivência ao vivo e de ii11agens de vídeo. As costas nuas de escuro, de modo que ao entrar pode-se facilmente esbarrar em outra pessoa que
uma dançarina aparecem imensamente ampliadas como imagem de vídeo . · já se encontra no espaço. A partJr de um ponto não visível, imagens de doze pes­

--
,
em uma tela no fundo do palco. Por meio da imagem, a pele se converte em soas são projetadas nas paredes, uma delas na parede ao final do corredor, de uns
uma realidade teatral aflitiva, sendo exp.erimentada em sua degeneração e dezoito metros de comprimento. Quando alguém se aproxima de uma imagem e
transitoriedade. A imagem de vídeo não se reduz à informação; a superfície permanece de pé em frente dela, de umà pessoa sentada mais atrás, por exemplo,
do corpo, movida e apertada pela mão da dançarina, torna-se uma paisagem­ esta reage, levanta-se, movimenta-se em direção a quem está ali e fica por um
corpo em uma p�esença fisicamente irrecusável. Gerald Siegtnund escreve:
,/'°'
8 Gerald Siegmund, ln Frankfurter Allgemeine Zeittmg, 28/01/l998. ...... /
9 Gary Hlll, ln Katalog Stedelijk Muse11m Amsterdam/K11nsthalle Wlen, 1993, p, 162.
392 7 Bill Viola, ln Katalog Salzb11rger K11nstvereln, 1994, p. 135. 10 Ibid., p. 159. 393
temp9 parada encarando a pessoa de alguma -maneira. Quando essa pessoa sai Nos trabalhos de vídeo de Gary Hill, a consciência sobre o próprio modo
�óú fica muito tet11po de p�, a imagem se vira, volta para o local original e senta­ de percepção é gerada por uma "dificultação da visão': 12 que provoca a ati­
se. Caso a pessoa esteja indo embora e resolva voltar, a imagem que estava se vidade intensificada da visão. Totalmente em contraposição à tendência no
retirando retorna e aproxima-se novamente par!! encarar quem está ali por m�is fundo iconoclasta, como foi apontado, das imagens usuais il�6rias da slmu-.
algum tempo.11 lação, 13 o caráter Icónico mantém aqui seu direito próprib. Ao passo que á
simulação perturba o lcônico, na medida em que conduz de modo simples e
Como recurso a uma técnica engenhosa (imagens de vldeó são projetadas em transparente àquilo que é representado, aqui a imagem _afirma sua autonomia
uma parede escura por meió de unia lente, sem moldura; uma certa impreci­ como par�eira de jogo do olhar. Mas trata-se de um olhar com o corpo inteir?·
são das imagens intensifica o aspecto fantasinagórico), esse espaço apresenta Na instalação, surge um palço próprio para o visitante, que experimenta com
um tnundo de sombras. Logo se faz utna associação cotn ·almas que retor­ seu corpo o espaço da imagem, encontra-se no melo dele. Isso corresponde
nam do mundo dos mortQs e buscam contato com os vivos, O conceito._ga · · ··-.....ê.Q��i_icutido feMmeno do espaço teatral integrado. Hans Belting afirma
obra tem afinidade tom a performance, pela maneira como tudo só existe que "o setor espacial escuro" da videoinstalação se difereí1cia tanto da sala
por meio da participação do espectador. A princípio, o observador perde as de cinema quanto da tela de TV. Seu espaço "tambén1 é o palco para o nosso
coordenadas: não se oferece a ele ném um contraponto claramente defi�ido - movimento no espaço, qué pode ser expresso com mais beleza pela palavra
imagem ou objeto, como no cinema ou diante._.de úma pintura -, nem um francesa déambu/er [deambular] do que pela palavra alemã herumgehen [cir­
espaço_ unificador do encontro, como no teatro. Entre o real e o ilusório, en­ cular)". 14 A temática da imagem virulenta no trab�lho âe·vfdeo - a dialética
contramo-nos em uma caverna de algum mod_o platônica, um_a senda de de- imaginação e projeção - retorna pa,:a o observador: "Movemo-nos nesse

Orfeu, um mundo de espíritos e sombras. 'tem lugar uma dissolução çlâs espaçb corporalmente, como nos movemos no-mundo comci_e$p-ªço: af se en-
molduras, o que deixa o acontecimento (ou sua falta) inteiramente a -é�rgô contra a superi�;id;dede.�màinstafaçâos'obre um monitor, no qu�itodas as
da percepção do ób�ervador, que de�encadeia o procedimento ç�·ó;�a dinâ­ imagens terminam no enquadramento''. 15 Ao mesmo tempo, por meio dessa
mica espaço-temporal. Sua ação se torna um componente·rla-"etirà'. Ao passo "arte midiática filosófica'; a presença corporal e os nossos próprios passos se
que as imagens imaginárias ganham corpo, os outrós observadores, percebi­ convertem, sob ascondiçõ�s-db.qi.iéstro·nãme�to-do.ato..d�'(l:!i em "metáforas
dos nas sombras, perdem a consistência. A aproximação de sombras e corpos de movime1:tos lnteiramente dife_çentes, que de.c.or7' em.em nossa 'cí:,nsciência.
reais assim obtida faz dessa instalação, como um reino da transição entre os [ .. .] O espaço· da instalação se converte em um símbolo daquele 'lugar das
nfvers dá realidade,- uma metáfora dó mundo de sombras real do teatro. Pois imagens' que nós l�eSID?S somos''. IG
..... ,
o que se destaca em tais trabalhos é a pergunta acerca d� identidade diante do ...,_
fato de ser observado. Ser visto constitui aquele terreno da co-presença que é o
cerne do teatro. Assim como as enormes superfícies pictóricas de um Barnett 1l Gottfrled Boeh.m, "Zeitlgung. Anni!herunge_n an Gary Hill'; in Theodora Fischer (org.),
Newman, mas de outra maneira, essa videoinstalação tem o efeito de uma Gary Hill. Arbeit am Video. Baflléia, 1995, pp. 16-42, p. :1.6. ··- · ·
pergunta dirigida ao observador (espectador) sobre o que é sua presenç�, sua 13 Cf. idem "Die Blldfrage': ln idem eorg.), Was 1st ein Bild? Munique, 1994, p. 336.
14 Hans Beltlng, "Gary Hill une\ das Alphabet der Bílder': ln Vischer (org.), op,dt., pp. 43-70,
relação com outros, 6 modo ôe ser de sua "com�nicação''.
p.63.
15 lbid., p. 64. - -·- .L.- ....
394 11 lbld., p. l7l, 16 lbld., pp. 65 e 64. 395

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Rep·resentação e répresentablllda.de
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( Imagens eletrônicas como descarga

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Ó teatro midiático coloca a �;9uinte questão pàtà o espê�tâdor: tliante da op­
ção de. "absorver" algo reâl ou algo imagináriq, põt qut, a illlagem e o que n1ais.
o fasciüa? O que afihal constitui a atração mágica que cônduz o olhar pàrà a
itúager11? Urna respÕsta póssível é que a im�geín é exfraviáàà âa vida real, que­
·····--------·-' à aparência dalmageín se prende algó de libertação que dá prazer ao olhar, A
imagem liberta o desejo das penosas "outras circunstâncias" dos corpos reais,
elevando-os a sonhos.

___
Televisão, videocassete, equipamento de vldeõ, viâeogaliles e coinputadores se
con'lbinam através de S'uas interfaces em um slsteiila que constitui un1 outro
' ..
mundo fechado em si mesmo. Bss"é sistefua ili:corpor/:1 o espeêtador/usuárió em
úma esfer.a espacial.mente desce11trallzada, temporalmente indetertn1nada e cô1no
que "sem co fpos''. [.. ,) Além disso, ns mídJas eletrônicas não são experJmerttadas
como uma projeção fechada e configurada [co.tiló·o' cineina). mas antes como
__,..,.
transferência dispersa, [.. ,J Quem vive nesse metahrnndo - longe de t_g.das'ás re-

--
ferências a um mundo "real" - sente-se a principio descarregado dos pesos es­
\
pirituais e físicos. (...] ô isoJamentó do Instante [...] leva à uma "presentificação" 397
.1
absotuy!-'(na qual o sistema "passado/presente/futuro" não tem mais sentido al­ Em contrapartida, a presença do corpo real é sempre envolvida por um
.g-uin) e também altera o caráter do espaço. [ ...) Descorporificação é um efeito es­ sopro dó desapontamento (produtivo), Segundo Hegel, ela refnete à tristeza
sencial do espaço eletrônico. Essa "presentificação" eletrônica não tem nem um que envolve as estátuas de divindades da Antigüidade: sua presença total­
ponto de vista netll um campo de visão. 1 mente completa e P.erfeita rião permite qualquer transcendência da materiali-,
dade a um interior espiritual insuficiente. De modo semelhante, pode-se dizer
Diante desse predomínio tão sedutor dos murdos imagéticos vit:t\l.íÜS, como acerca do teatro que nada mais vem após o corpo. Chegamos. Não se pode
pode se sustentar wna prática que se recusa a essa "descarga"? No modelo estar nem vir a ser mais presente. Em toda fascinação com o corpo vivo per­
reduzido da situação teatral, de que maneira se pode fazer da natureza da manece esse "resíduo" ·apenas cj.esejado, para o qual não ganhamos nenhum·
própria visão o objeto de uma percepção consciente, visão da visão? Como se acesso, algo para além do enquadramento, um pano de fundo, O olhar per:­
torna possível que a disposição do observador-sujeito, da maneira como ele manece diante da visibilidade do corpo real como o homem de Kafka "diante
se percebe nô curso da tecnologia midiática. seja ela mesma observada? Um_a : ___ .... --·....._da lei': Não há nada além desse único portal e não se pode atravessá-lo por-
resposta paradoxal é: em uma outra versão do virtual. : q�b]eto do desejo sempre está no pano de fundo, nunca pertence ao
Por estarem apenas "ali" em meio a corpos, os corpos teatrais não são modo de ser da presença, Desse modo, no teatro o corpo é significante (não
apreensíveis por nenhum vídeo. Nessa incerteza e nesse abandono, eles con­ objeto) do desejo. Já a imagem eletrônica é puro primeiro plano. Ela desperta
servam um pensamento próprio: atualizam (e ,apelam para a) experiência uma visijo completa, voltada para o primeiro plano, Já que nenhuma meta
corporal. E armazel'lat'n futuro, pois lembram de quando o desejo não está aparece na consciência como "pano de fundo" da imagem, nenhµma falta apa­
satisfeito e ilão pode ser satisfeito. Aí se encontra i1 alternativa às imagens ele­ rece. A imagem eletrônica carece de falttl, e por isso mera111ente conduz até a
trônicas: arte como processo teatral que efetivamente comporta a dlmens,ão pró�ma imagem, !ia qual mais uma vez.nada "perturba'; n_adi_��1pede que se
virtual, a dimens�o do desejo e do não-saber, "Teatro" é em primei�9 ,lú"gar, aproveite a plenitude· áaTinagem.
antropologicamente, uin comportamento (atuar, mostrar-se, de�efu.pei1har
papéis, reunir-se, assistir como um participar virtual oü'i'eal)-;"e� segundo Represeptabilidade, A��t}�ó
lugar é uma situação e s6 então, em últiina instância, representação. Imagens '· •... - . ...
midiáticas são em primeira e última instância representação, A imagem como Uma figura entra no palco. Ela. io�ere�sa porque a móldura do pàlco.. da en­
representação certamente nos oferece muito, sobretudo a sensação de estar a cenação, âa.àção, da conste1ação visual da cena a expõe. O lntéresse peculiar
caminho de alguma outra coisa, Somos os caçadores do tesouro perd.ido. Na com que ela é �bs�?vaà.� ponsiste na curiosidade em relação a um esclare-.
imagem, estamos sempre na pista de um segredo, mas �m cada momento já cimento iminente (e aus�nt,c). ·o interesse inquieto somente é mantido en­
"satisfeitos': porque preenchidos pela imagem. O motivo disso é que a imagem quanto ao menos um resíduo dessa "pergunta" é conservado. Contudo, em
eletrônica atrai pelo vazio, O vazio não oferece nenhuma resistência. Nada sua presença a figura é ausente;- Dever�s_e-la dizer "virtual"? Ela permanece
pode nos bloquear, interromper. A imagem eletrônica é ídolo (não simples­ teatral apenas no ritmo e na. medida da incerteza que.. ma.ntéil1 o ato de per­
mente ícone). cepçã9 em um movimento de ·busca, A dimensão do não-saber na percepção
teatral - cada figura é um'loráculo - ccirístrói .sua virtualidade constitutiva.
Para o olhar teatral, o. ç.9-rpo. sobre-o-palc9 se'converte em uma "imagem" num
1

Yivian Sobchak, "Toe Scene of the Screen'; in Hnns U. Gumbrecth e-Karl L, Pfeifler (orgs.),
Matcria//tiit der Kommunikation, Frankfurt am Main, 1988, pp. 416-.zB, p. 426. outro sentido da palav ..a - -1'1ãó �m um� lmagém eletrônica, como à que é 399
"'1\'-
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.
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'

discutida aqui, mas em image.i:n �9. s�;)tido e� qúfM�Imdahl compreende ter inesquecível de âconteclm�ntos que eles também deveriam ser chamados
esse termo. Em um� "suposição radical''. como des�aca Bernhard Waldenfels, de inesquecíveis se todas as pessoas os tivessem esquecido, que corresponde à
ele postula a "possibilidade de um estabelecime�to de reaÍidade na própria sua essência não serem esquecidos. Mesmo assitn, diz Benjamin, eles seriam
visão " e fala de imagem no sentido empático, c��o a oportunidade pela qual objeto de uma outra recordação, que o filósofo considera como a recordação
.se dá uma visão que é conduzida ao invisível:·· de Deus. Em um sentido parecido, a representabilidade é utna dimensão es­
sencial do teatro. O que a tragédia antiga já torilàva possível era o pensamento
Mas talvez a imagem também seja uma forma de �q>!'esentação de alguma outra de que era preciso que à vida humana fosse inerente algb como uma coerência,
coisà, ou s.eja, o modelo de concepção de uma realidade queiscapa a qualquer apreen­ inacessível ao saber dos próprios homens, uma coúfiguração, um contextó -
são.imediata ou definitiva,.cotn base na qual e;se modelo é interpretado como algo representável, visível apenas a partir de um ponto de vista que os homens não
de vis.ível;-embor;i ·
. -�ss� -realidade não tenha n�nh-�ma aparência·�vislvel.1 podem assumir: o ponto di r vlsta dos "deuses". Apesar da casualldade qu1; o
-- ... _ -,· -·-··· . ·-- . -
- homem partilha com todas as criaturas'e situações - não negada, ao contrário,
Na "imagem" assim compreendida trata-se da "experiência de uma insupe­ apontada de .mõdô -extremo -, apesar de sua imersão em chaos e tyche ["càos"
rável impotência da disposição'\ Essa formulação ajuda a compreender cotn e "fortuna"], não se deveria excluir de sua existência como criatura falant<;, as­
mais precisão _a elimJnação da rep1·eserrtação no teatro;·que providencia que à sim, afirma o discurso da tragédia antiga, a representabiUdade neste sentielo: a.
........
visão não seja enganada pela ilusão da disponibilidade do visível que se coloca vida nunca chega a conseguir essa representação, ma·s na medida em que ela é
.I
o na imagem eletrônica. É inerente ao olhar teatral interessado a expectativa de articulada teatralmente demonstra-se sua representabllidade. A vida não está

-o
_J que "um dia" eÍe ·enxergue o outro. Mas esse olhar não apreende sempre espa­ "dada" em momento algum, nunca é um "dado" porque, falando com Benja-
1..1..
LL ços cada vez mais irreais; seu trajeto circula sobre si mesmo, aponta para den­ min, corresponde à sua·essência ser representada em uma outra esfera, As
tro, para o esclarecimento e a visibilidade da forma que no entanto permanece imagens da mídia, em contrapartida, não sãô nàda além de dados. No teatro,
ro um enigma. Por isso, tal olhar é acompanhado pelo sentimento da falta, não da o ator é a perturbação da imagem, Imagens eletrônicas, por si.ta vez, evocam
(/) satisfação. A esperança não se satisfaz porque a plenitude insiste na pergunta,._ -···- .. a tmagem do pre.enchimento, do fahtasma, do "contato imediato" com o que
na curiosidade, na expectativa; na ausência, na lembrança, ·.não na realidade ......._ é desejado. No teatro, o que é percebido não está dado, mas apenas dá, chega,
"presente" do objeto. A forma teatral tem uma realidade apenas da chegada, não remetido à �éplica de coro e público em um "circuito Incandescente" (Heiner
di presença. Levando em conta a meta virtual - íl " representação" (na) da ple- Müller), no qual os significantes sempre são apenas utilizados e tudo se en­
nitude -, denominamo·s esse ti10do de ser da fo�ma teatral representabilidade. carrega de ir além deles: eles vão daquilo que é representado para o ator, deste
Mas as imagens eletrônicas, que superam o vazio, satisfazem o desejo, renegaín para os espectadores e daí de volta para o ator. A representabilidade é inerente
o limite, são nesse sentido a realização da representação. a esse pr���o temporal e permanece em tensão incOilciliável com todas as
O ensaio de Walter Benjamin sobre a tradução define "traduzibilidade" representações que pretendem se sustentar e que ela atravessa.
como a ineludível determinação de certos textos, que também valeria caso es­ Pode causar estranheza o fato de que nesse ponto está em jogo aquele
ses escritos nunca fossem traduzidos. No mesmo texto, afuma-se sobre o cará- truque teatral que talvez seja o mals antigo, ao q\1al se dá o nome de destino.
Mas de fato parece propícia ao teatro a fórmula segundo a qual destin,_9 tfúma
2 Bernhard Waldenfe!s, Sinneschwellen. Studlett z11r Phã11ome110/og/e des Fremden 3. Frank- outra palavra para a representabllidade. A imagem eletrônica, co1ripreendida
400 furt am Main, 1999, p. 139. ..� como o campo da representação, üãô é senão a éon,tínua reiteração da falta 401
de desti�o:. A representabilidade, como experiência ao mesmo tempo estética formado na figura apenas esboçada de possibilidade indefinida, a bandonando
e ética, é n1anifestação do destino, tema prlncipa,l do teatro trágico. Mas se assim o campo da concepção e transformando toda forma percebida no indí­
o teatro draináticó seguiu o pa .drão do destino antigo nos moldes de uma cio de algo desaparecido, O "teatro'' converte a mais simples representação da
narração, do desenrolar de un'l.a. fábula, no teatro pós-dramático chega-se a morte em virtualidade inimaginável. Em contrapartida, a imagem eletrônica
uma articulação que não se baseia na trama, mas na manifestaçâ9 do corpo: permite e consegue que se veja mesmo o impossível. :Nenhuma cavidade de
o destino fala aqui a partir dos gestos, não a partir do mythos. __ uma outra realidade; apenas o real. É possível que há muito tempo nos encon­
Arlstóteles exigia - e seguindo ele qu,\se to.da a teoria do teatro - que a tremos no cãminho para as imagens; diante dos olhos nada além de variações
tragédia fosse um tódo, tendo começo, meio e fim. Evidentemente essa era da faita de destino do õbjeto de desejo, comunicação virtual. Não se sabe, pois
w11a concepção paradoxal, pois na realidade, e também na realidade narrada, mesmo esse destino não aparece em nenhuma representação possível, mas
não há nenhum começo, nada que, segundo Aristóteles, não tenha quaisquer ap enas terá sido. Heiner Müller: ''.A.ssim como está não e'.
pressupostos, e também não há nenhum fim, nada que não tenha conseqü�_!)­
cia alguma. Contudo, o que Aristóteles expressa ein sua formulação ;i.penas
aparentemente óbvia não é nada menos do que a fórmula abstrata para a /e/
de toda representação. O todo com começo, meio e .fim é a moldura. Mas é em
vão que cada represe!)-tação P!ecisa afirm�r esse..enquadramento. O destino
(ou representabilidade) o transcende no mesmo sentido em que a vida hu­ ·-- ....
mana transcende a vida biológica por meio da plenitude, do aprofundamento
·i
e da diversificação das imagens dessa-vida. Porta�to, a representabilidade,,lel
de movimento da realidí!de teatral, não se opõe de modo algum à nqçãÓ de
. -··-- . - - ··-
que s6 se pode tratar da realidade húmana sob a condição de qu� e!� perma-
- ····· -· ../ ·
neça não-representável. ---. .
A imagem midiática possui representabilidade como mate��ticidade a .. . ..... -- .......
princípio ilimitada. Não se coloca aqui à questão- sobre uma representabíli­
dade constitutiva, que permaneça sempre virtual. O meio se restringe a um
circuito de disposições matemáticas, dados e pressupostos reunidos. A repre­
sentação é aqui a transferência para informação. Em A c_ondição pós-moderna,
Lyotard afirmou que, sob as condições das tecnologias de comW1icação gene­
. ... -· .
ralizadas, tudo aquilo que não pode assumir a forma da informação é excluído
do conhecimento da sociedade. Esse destino poderia caber ao teatro, uma vez -- .
que "teatro" no sentido enfático e de tipo ideal, tal como é discutido aqui, de
fato transmuta justamente ao i:1.lverso toda informação em alguma outra coisa,
ein virtualidade. Converte. até mesn'lo a repres�utação enJ manifestação da ....--· ,.;.-
. 40�
402 representabilidade, O que o espectador realmente vê dian�e dele já está trans-

___.. -
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Têàtro pôs·,,dramátlco e po!Ttica


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... . _______
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,/ •
I •
(. A invéstigação �o teatro p6s-d�ãtnático não tinha por objetivo empreender
uma derivação das nova� configurações teatrais a pàrtir das relações sociais..
-
, ... .... Essas derivações costumam ser por dêfnais redutoras qua.fl.do_se lida com
•1 uma inat�ria que r'etn:ônta a -unÍãlonga história - e aindà ruais quando se trata
do presente, .em que as amplàs análises da situaçâô mundial se mostram ex�

----------·
tremam.ente pretensiosas e contraditórias. No entanto, em ui)Ta realidade que
se e.{1contra tão saturada de cottflitos sociais e polítitéis, ·guerras civis, miséria,
-·-·· --- .
opres�ão e injustiçà social, parece. opórtuilo propor aqui algumas considera­
ções bastante geraksobre ó modo como se pode pensar a relação do teatró
pós-dramátic� com o âmbitb político.
São políticas as questões que conce:rüem ao poder sõ_ciàl. Questões de po­
der foram por multo tempo toilcebidas'no domínio do direitô, com seus feh6-
menos-limi��olução, afiatquia, guerra, estado de êxceção, Uma vez que à
sociedade (apesar aas manifestas tendências de juridicização 4e todos os Ca!Jl·
pos da vida) cada vez fnals organiza o "poder" como mkroflsicâ, como uma

1
rede em que mesmo a elite política dirigente quase não tem mais poder real
sQbre os processós polltico-econônücos - para ·não falàr das p�rsonali�dés'
individuais -, ô conflitó pol!tico tende a escapar à âpreensâo imediaf; [Ans­
chauung] e à representação cênica. Qua�e não mais sé ehcbb.traril pf:,rta-vôzes 407
de posiÇ,_ões de direito como adversários políticos . Nessas circunstâncias, a Company ainda podlam esperar um efeito político çom a mistura . de teatro
única coisa que gatlha algo como uma apreensibjlidade direta é a interrupção documentário, ritual e happening em us; o mesmo vale para os trabalhos
1
.
dos comportamentos normatiz�dos, jurídlcos, políticos, portanto o não-polí­ teatrais coletivos de David Hare ou Howard Brenton nos anos 1970. Mas de
tico: o terror, a anarquia, o delírio, o desespero, o riso, a revolta, o associal - e um modo geral já passou o tempo do teatro cômo um lugar em que confli­
inserida aí, de modo latente, a negação fanática OlJ fundamentalista de crité­ tos de valores sociais fundamentais erâm exibidos e tematizados. Quando jo­
rios racionais, universais e �manentes para a ação em geral. É porém na ima­ vens autores ingleses como Mark Ravenhill (Comprar e ttepar [Shopping and
nência desses critériós que se baseia; desde Maquiavel, a separação 1noderna Fucking, 1996]) escrevem novas peças mais políticas, com recursó à descrição
do âmbito político como campo de argumentação autônomo. realista do meio, quandd To F�bian faz, um teatro de dança mais poHtico (U{s­
que & bandeiras [Whisky & Flágs, 1994)), quando artistas díscutem em t�a­
De manifestos balhos teatrais de alto nível a história judia-alemã re�ente (Andrea Morein),
.• - ... _ ..._ olhando-se majs de perto isso não muda nada no quadro geral. Nos melhores
Casó se considere o t!!atro como uma prática pública, com um efeito público, �;tãmbém aqui os temas póHticos são sobrepostos por dolorosas sonda­
é inegável a noção de que quase todas as funções designadas como "políticas" gens da própria alma.
desapareceram. Ele não é mais, como na Antigüidade, centro de uma pólís, lu­ A "eficácia': o efeito político real - um critério pelo qual o teatro com pre­
gar de sua autocompreensão; o teatro, que se toi;nou assunto de uma minol'ia, tensão política tell'l. de ser medido como ação política -, está em questão em
também já i1ão pode ser um "teatro nacional': que fortaleceria uma "identi­ todas as formas ·do teatro diretamente poHticó. Pode-se mesIJtº questionar se
dade" cultural e histórica. O teatro com o objetiyo de propaganda específica convicções polítiéas foram significativamente formadas ou alteradas no flores­
ou auto-afirmação política de classe (como nos anos 1920) está ultrapassado éimento do agitprop e da revisão política, das peças djdáticas'e do teatro de tese
sociológica e politicamente; . o teatro como veículo de esclarecimentp
. � s�bre durante a RepübllcaõeWe1mar:Na ·malor·par.te das vezes, o te-�tro polltico não
1

abusos da sociedade dificilmente se sustenta em face das m�dJas e da im- passava de um ritual de confirmação para aqueles que já estavam convencidos.
prensa, mais rápidas e mais atualizadas. Na maioria das·vezeS;''Úrna peça que Hoje em dia, numa.época em que o discurso pôlítico ocupa todos os âmbitos,
foi_ escrita e publicada para depois ser encenada só chega ao palco quando os não é dlfer�nte -,peÍ�riíêri.õs ·no� ·países ada. .Eump� �entrai. É dificil avaliar
temas públicos Já mudaram. É uma exceção quando o teatro desempenha o a partir 1aqui como funcionam.? oliti�a!Uente, e.?:'. co�t�-;tos inteira()1�nte di­
papel de uma instância social de crítica, de um palanque para uma relação di­ ferentes; Q G'r1:1po de Teatro Macunaíma do Brasíl, o Market Th.eatre âe Joa­
ferente com o âmbito público. A liberalização nos países orientais também ti­ nesburgo � muito�at.ros latino-americanos, africanos ou asiáticos. Parece s1:r
rou dele grande parte do seu público, que só diante da çensura da imprensa e certo apenas que na E�6pa central essas formas quase não têm �enhuma base
da televisão havia valorizado o teatro como uma <>ut'ra esfera pública. Mesmo de efeito, embora etn alguns casos fascinem o público por seu humor e suá
o teatro como lugar em que se luta pelos interess_es da minoria se torna ob­ vitalidade (como a encenação·parisiens� da peça Woia Albert! por Peter Broôk;
soleto quafido cada minoria encontra seus temas ab0rdados em publicações com atores do MarketTheaf.re). · --�.
especiais a cada semana. No teatro aleµ1ão há uina1certa tradição do "jornalismo" político teatral
Por certo, há casos em qúe o teatro, como -� meio de reunião pública, que pode continuar a se\onfirmar' co(no tal. Poden1 servir de ·exemplo as
. "- : ,
ainda pode veicular uma percepção aguçada acerca da injustiça, deman­ • ..... - .
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dandó tõlerância e cô1i1preensãó. Em 1966, Peter Brook e �. Royal Shakespeare I


1 Sobre o titulo des.sa enceuação, ver a nota 21 na p. 168.
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sessões de teatro de dança de Johann Kresnik sôote p;;;onalidades politi­ uma cultura dominante. Subsiste na comunicação intercultural uina ambigüi­
cas conhecidas (tais como Rosa Luxemburgo, Frida'Kahlo, Ulrike Meinhof dade latente na medida em que as form�s de expressão cultural ainda sejam
e Ernst Jünger). Trata-sé de manifestos po/fticos da?19ados, te'atro de dança ca­ formas de uma cultura politicamente dominante ou oprimida, entre as quais
racteristicamente visual ·com tese. ·Como esses manifestos por vezes tendem a não se dá simplesmente "comunicação''.
um moralismo fácil, certamente pode-se conteslãi"seu valor poHtico (o valor Em vez de perseguir a miragem de uma "nova síntese comunicativa trans­
artístico não está etn discussão aqui), 111as o teatro de manifesto franco.e reso-
. '
cultural por meio da p_erformance", parece mais honesto meramente cons­
lut?. representa uma legítima pos�ibilidade de provoc;t"Ção política quando ar- tatar, com Andrzej Wfrth, a utilização dos mais diversos modelos e emble­
gw11enta com recursos teatrais. Os documentos coreográfiios sen'l. frivolidade mas culturais através da paisagem teatral internacional, mas sem esperar da
de Kresnik costwnam su�citar lnt�nsa� poljm�c.a�. , e nesse sentido fundonam interculturalidade um novo lugar teatral que faça as vezes da esfera pública
"politicamente'\· No e.µ!�to, esse teatro de intenção politica tat'nbém se encon- política. Para usar os termos ·de Wirth, aqui se tràta mais de "iconofilia" do
tra diante do problema q�; ÂdÕr.nõ identificava nas peça$..�!! RolfHochhuth: que de "interculturalidade''.3 Como confirmação involuntária do nosso ceti­
uma fixação em nomes próprios, em personalidades conhecidas, falsifica a císmo quanto .à·iaéià·do teatro intercultural pode-se mencionar um ensaio do
realidade propriamente política que se mostra em estruturas, complexos de próprio Pavis, que em duas das três encenações ali analisadas - Rei Lear de
poder e normas de _comportamento, não' nos expoentes-·da política. De todo Rob�rtWilson (Frankfurt, 1990 ), A Tempestade de Peter Bróok (Paris, 1.990)
modo, parece se co,11.firmar a avaliação geral de que as possibilidades autênti­ e Médida por medida de Peter Zadek (Paris, 1991) - não pôde constatar uma
cas do teatro consistem em um recurso muito mais indireto �a temas políticos. efetiva comunicação intercultural, sendo que seus argwflentos para justificar
.... . .....
a av aliação positiva da encenação intercultural de A Tempestade de ilrook
Teatro interculturaI também não são multo convin-centes.4
O conceito de "interculturalidade" deveria despertar mais a dúvida política
Alguns vêem a dimensão política do teatro em uma vocação "intercultural''. do que geralmente é o caso. Ele é preferível ao conceito ainda mais qLtestio­
Essa possibilidade não será aqui refutada por completo - mas defensores--�..__------· náv�i de "multiculturalismo': que privilegia mais o isolamento recíproco e a
da dinâmica intercultural cómo -Patrice Pavis, Richard Schechi.ier e mesmo auto-afirmação agressiva de identidades culturais de grupos do que o ideal
Peter Brook não foram veementemente criticados por autores indianos por urbano de inflµêncla mútua, mas também se colocam questões aqui. Não se
escamotearem nas atividades interculturais uma apropriação desrespeítosa e encontram de modo algum "culturas" como tais, mas artistas concretos, for­
superficial ou até uma exploração imperialista da �ultura do outro?2 O célebre mas de arte, trabalhos teatrais. E a troca interartlstlça absolutamente não.se
Mahabharata de Brook - assim como um 6utro conceituado exemplo do tea- dá no sentido de uma representação cultural: Wole Soyinka não elabora como
tro intercultural, O gospel em Colono [The Cospe/ at Côlonus], de Lee Breuer, representâ�têcta cultura africana um texto de Brecht como representante da
que combinava a tradição teatral greco-européia com tradições afro-ameri-
canas e cristãs - recebeu não só assentimentos, mas também duras críticas 3 An'drzej Wírth, "Jnterkulturalitiil und lkonophilia im neuen Theater� ln Sigrld Bauschinger
e Susan Cocalfs (orgs.), Vom Wort zum B/Jd. Das neue 171ealet in Deutsc/1/and und den USA.
como ufn exemplo de tratamento patriarcal de un)a cultura oprimida por ·
Berna, 199z, j)p. z33-43. .,-
4 · Patrice Pavls, "Wilson, Brook, Zadek: Eiil lnterkµlturelJes Zusamentreffen?'; !_11. Erlka Fls­
2 Cf. (por exemplo] Gautam Dasgupta, "The Mahabharata: Peter Brook's 'Orientalism"'. Per­ cher-Lkhte e Harald Xander (orgs.). We/tlhealer, Nationa/theater. Lokaltheatcr? Êuropiiis­
o forming Arts Journa/, v.10, n. 3, 1987, pp. 9-16. ches '111eater am Ende des .20. Jahrhundetls. 'rnbingen, 1993, PP• 179-201. 411
cultura européla.5 Sem levar en� conta a questão do que seja "a" cultura afri­ Encontra-se um outro exemplo em Fronteirama (Borderai'.na], trabalho
canaiou européia, ou alem�), o �ue vale é o fato de que a maioria dos artistas teatral de Guillertno Gómez-Pena e Roberto Sinfue'ntes de 1995. A partir de
se posiciona a cada momento com utna certa estranheza t:µnbém em relação à sua experiência da zona de fronteira entre os Estados Unidos e o México,
sua "própria" cultura, tendo nela uma atitude dissidente, desviante, marginal. os artistas desenvolveram um estilo teatral próprio a fim de dar expressão à
Um bom exemplo de teatro intercultural, com suas possibilidades e seus experiência "intercultural" de opressão e marginalizàção, ton'lbinando mt't­
problemas, é dado por um trabalho com um título deveras barroco,.Os con­ sica, televisão, rádio, cinema e literatura. Migrações, tentativas de transpor a
testadores aborígenes confrontam a proclamação da República Australiana fronteira, criminalidade, racismo e xenofobia são traduzidos em uma forma
em 26 de janeiro de 2001 com a produção teatral A missão, de Helner Müller, teatral que entremeia - coín d_esenvoltura surpreendehte - talk show, esporte,
apresentado etn Weimar em 1996. O projeto fo.i montado pela primeira vez paródia cinematográfica, manifestação de rua, atmosfera de casa noturna: e
em Sydney. Após difíceis preparativos, que duraram muitos anos, a idéia do pop agressivo. Uma performance anterior [de G6mez-Pe.õ.a e Coco Fusco),
germanista Gerhard Fischer, que leciona na J\_ustrália, foi por fim realizad;i: Dois ameríndios não descobertos visitam G Espanha [Two Undiscovered Ame-
montar um texto do-autor aborígene Mudrooroo [The Aboriginal Protesters 1�i;diêins V/sit Spain, 1992], obteve reconhecimento ihternacional.6
Confront the Declaratio11 of the Australian Republlc with the Productíon of
Toe Commission by Heiner Müller], escrito por iniciativa de Fischer, que A representação, a medida e a transgressão
mostra como a intenção de um grupo de atores-aos aborígenes de encenar
A missão [Der Auftrag], um dos textos mais importantes de Müller, com obje­ Em face da dificuldade de desenvolver formas· adequadª� e!� teatro político,
tivos políticos levou a conflitos ainda mais intensos. A consciência po!Itica há um retorno tanto disseminado quanto questionável a uma falaciosa moral
dos atores e a visão profundamente cêtica do autor europeu - que no entanto imediata, supostamente desvinculada das ambigüidades db mundo político.
sempre manlfesto_u sua silnpatla política pelo "Terceiro Mundo" - se �os't;am Isso favorece à vólfa"êlã'Tdéi.a--do espetá<.:ul<;> teatral consideràôó·como "ins­
muito afastadas entre si. A peça· de Müller, que tem por subtítulo "�ecordação tituição moral" - que no entanto sempre padecerá com o fato de não poder
de uma revolução� gira em torno da história de três ;missátiÔs da França re­ acreditar em sj me$ma. Por outro lado, o teatro pode desconstruir o espaço
volucionária na Jamaica, que são incumbidos de ali atiçar a revolta dos autóc­ do discurso pollt!c� �m rec\lrsus·artlsticos,.çxp<?.;.�� concepção autoritária
tones contra à dominação colonial. A peça termina com a traição e o fracasso latente, na medida em que esse discurso estabelece tes"ê,-
opini�o, ordefia­
da revolução, inas levanta a questão da permanente opressão de raças e clas­ mento� -1eCtotalidade orgâni�a do ��rpp polltic�: Isso se dá por meio da des­
ses de maneira implacável. A encenação de Noel Tovey em Sydney se tornou .l'nontage� das �;rtez__as discursivas do âmbito pollttco, do desmascaramento
um acontecimento político-teatral justament� pela de1,�1onstração da distân­ da retórica, da abertura'cle,um modo de representação a-tético, 'se a dimensãq
cia quase intransponível entre autor e realizadores teatrais. A peça de Mudroo­ política do teatro não deve ser totalmente exclulda, é preciso constatar �ntes
roo mostra como o grupo de teatro acaba por se decidir majoritariamente de tudo que a questão do teatro po�ítlcb se transforma radicalmente sob as
contra a representação do texto de Müller ( que no entanto é apresentado pra­ condições da sociedade da informação. Mostrar indiyJduos_ politicamente
ticamente na Integra no decorrer dos ensaios mostrados na peça). oprimidos no p�léo não ibrna o teatro político. E se o mundo político e seus
aspectos sensacionais servem como meros efeitos de divertimento, então o
Ver Alain Palrice Nganang, l11terkult11raliti/t tmd Bearbeitung. Untersuchu11g zu Soyinka und .1 - . .---·
S
412 Brecht. Munique, 1998, 6 Ver Erika Flscher-Llchte, The Sito:? and tlt6 Gaze of 1l1ealre. Iowa, 1997, pp. 211 ss.

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teatro talvez seja político - mas uni�amente-no fnáu s'ê�tido do estabeleci­ são pertinentes no horizonte aparentemente ilimitado do capitalismo multi­
mento (no mínimo inconsciente) das relações, tlacional''.ª Desse modo, não mais poderia havef ilenhuma política artística
Não é pela tematização direta do político que o't�atró se torna político, mas "transgressiva': mas apenas "resistente", Sem levar em conta qu,e a diferença
pelo teor irt1plícito de seu modo de repr�sentação. (Aliás, isso implica não só talvez fosse reduzida em uma análíse mais atenta do que termos "transgres­
determinadas formas, mas também um modo dé1ràôalliar específico. Mal se sivo" e "resistente" signifi.c�1 na discussão americana-, cabe aqui contra-argu­
falou disso neste estudo, mas mereceria uma investigação , ·
à parte saber eÍn que mentar que o fator transgressivo aiilda é essencial para a compreensão de
meq_ida ó teor político do teatro também pode estar (tindamentado no modo toda arte, não só da arte política; A arte privilegia acima de tudo, mesmo na
con�o ele é feito.) O teatro, não como tese, mas como práticii';r-epresenta exem­ "criação coletiva': o individual, aquilo que permanece itnponderável mesmo
. plarmente uma ligação de eleP.:����s he_terC?g��_?s que simboliza'·a.- utopia de em relação à melhor lei, em cujo âmbito se pretende calcular até o imprevisí­
' individual
uma "outra·v1da": tra�-�!h; espiritual, artístl�o e c,;rpórál, atividade
. ---... -
vel. Na arte fala s;mpre o Fatzer de Bre:ht:
e coletiva são aqui conciliados. .Assfoi;elepcrde·affrmar..ll.tD�·prática de resis-
tência já pelo fato de dissolver a coisificação de ações e trab�hos ;m produtos, .,.---
Mas vocês..contam a fração
objetos e informações. Na medida em que o teatro impõe seu caráter de acon­ Do que Í;1e resta a fazer e à põem na conta.
tecimento, manifesta_a �lma do produt'Ci morto, o trabalho-az:t!stico vivo, para o t-(l:is não faço Isso! Contem!
qual tudo permanecç·imprevisível e está P!ira ser inventado, Portanto, o teatro .. 'éontem côin os dez centavos de perseverança de Fatzer
é virtualmente político segundo a concepção de sua prática. E a queda diária de Fatzer!
Julia Kristeva dêstaêa que o dcn'l.ento político é aquilo que dá a medida. Avaliem meú abismo,
O elemento político está sob a lei da lei, e não pode senão impor um orâena­ Ponham cinco no imprévisto,
mento, uma regra, um poder que vale para todos, uma medida geral.' A lei Conservel_'ll de tudo o que há em mim
sociossimbólica é a medida geral e ó âmbito político é o campo de sua con­ Apenas o que é útil para vocês.
firmação, seu fortalecimento, sua garantia, sua adaptação ao curso mutáveL-... ._ .Q resto é Fatzer.'
das coisas. Por isso, há um abismo insuperável entre o âmbito político, que dá
a regra, e a arte, que é sempre, digamos simplesmente, exceção - é exceção a O próprio teatro não teria surgido sem o ato híbrido pelo qual um individuo
toda regra, afirmação do que não pode ser regrado até mesmo na própria re- se desgarra do coletivo e aspira ao desconhecido, a uma possibilidade inima­
gra. Como atitude estética, o teatrC> é impensável sem o fator da transgressão ginável, sem a coragem para uma traf1sgressão dos limites, de todos os limites
do prescrito. Opõe-se a isso um argumento onipresente na discussâó norte­ do coletiyQ:..I'(ão haveria teatro algum sem autod.ramatlzação, sem exagere>,
americaóà, segundo o qual - sob o diagnóstico de que haveria um "desmoro­ sem hipercar�terização, sem a exfgência de atenção para "sse corpo singular,
namento da velha oposição estrutural entre o cultural e o econômico com os sua voz, seu movimento, sua presença e aquilo que· ele tem a dizer. É certo
processos simultâneos de mercantilízação do primeiro e de simbolização do que na orige� da prática. social do teatró também se encontra a auto-ence­
segundo" - uma "política vanguardista da transgressão" se torna impossível nação intencional e racional dos );amãs, che�es e príncipes, que rnanif �n

na medida em que os limites culturais que ela poderia transgredir "não mais
8 Hal Foster, Recordi11gs: Art, Spectacle, Cultural Politics. Seattle, 1995, p. 145.
7 Jul!a Kristeva, "Pôlitique de la littéralure': ln Polylog11e. Paris, 1977, pp\a-i1.- - 9 Bertold Brecht, ln Werke, v. 10. Berllm/Welmar/Frnnkfurl àlll Maln, 1993, p. 495. 415
sua pos!ção especial na coletividade por meio de um gestual e de um vestuá­ Einbora os fazedores políticos raramente saibam o que instituem, acomo­
rio--exâgerados - o teatro c�mo _efeito de poder. Ao mesmo tempo, porém, o dam-se em uma certeza de que em todo caso instituem algo, uma certeza de
teatro é uma prática em e com utn material de significação que não cria orde­ que aquilo que fazem é de todo modo um fazer. Mesmo hão sabendo o que
namentos de poder, mas introduz a hovidade e o caos na percepção ordenada essas ações sigflificam, alimentam a Ilusão de que se trata de algo "significa­
e ordenadora. O teatro pode ser político como abertura do procedimento tivo''. Não é assim com o teatro, que sequer produz um objeto, que é enganoso
logocêntrico1 no qual predomina a identificação - abertura em favor- de wna como ação, que ilude mesmo ao subverter a ilusão e mesmo então só é "real"
prática que não teme a suspensão da função de designação. de uma maneira ambígua, quando se aproxima do real ei'n sua fuga da falsa
aparência. O teatro impõe a toda representação a dúvida sobre o fato de algo
Arte ad-formáticà? ter sido representado ou não; a cada ato a incerteza quanto ao fato de se tr�tar
ou não de um ato; a cada tese, cada posição, cada obra, cada sentido uma.in­
Neste ponto abre-se a possibilidade de propor uma reflexão ligada à filosofia determinação e um potencial cancelam�nto.·O teatro talvez não possa saber
da linguagem e ao mesino tempo política, considerando-se a questão do tea­ se 1âi'"algo, se produ� algum efeito e se significa alguma coisa. Por Jsso - sem
tro político sob uma outra óptica. Quando se vê o elemento político do teatro levar em conta o lucrativo e ridículo entretenimento de massa do musical -,
· como força de oposição, como contraposição e ação - ela mesmo política -, ele faz cada vez menos e produz cada vez menos significado, pois na proxi­
em vez de reconhecê-lo como uma não-ação e como interrupção da lei, o que midade do ponto zero (na imobilidade, no silêncio dos olhares) algo talvez
ele de fato é, há um movimento em falso no esquema. Se o ato de lidar com possa acontecer: um agora. Performativo indefinido1 acte_afl_:·formática,
signos lingüísticos foi determinado pela teoria dos atos de fala como perfor­ Qu_ando se trata da diferenciação evidente (impossível) de teatro e per-
m�tivo, o teatro não é um ato performativo no sentido pleno da palavra. Efe . formance, constantemente vem à tona o pensamento de tima oposição entre
apenas age como _se fosse. O teatro nunca é tese, mas forma de arti�uÍa�ão a performanéé càmoüma !!Ção Teal" e teatro como o campo· da ficção, das
1

-·-
que escapa ao tético e ao ativo em geral. Seria poss(yel tomar emprestado o ações "como se': campo no qual se entende alguma coisa e os limites são cla­
-
conceito de "ad-formativo" (Afformativ], elaborado nu� ÔÜfrbcontexto, 1º e ros. Alguns cheg�m mesmp a afirmar que a performance estaria no mesmo
designar o teatro como arte "ad-formáfica" (afformance artJ a fim de sugerir nível do ato terrJirista.12 Amoonêm-lugar no te!l,lP.9_ real, histórico; os pe1for-
esse caráter de certo modo não�performativo próximo à performance. •1 mers agem COffiO eles mesmQS; ao,mesmo te�p-� a�S�;nêin um valor simbó­
lico etc. Ãfnda que aceitemos algumas reveladôras semelhanças estruturais
entre ter.rorism·o' e,performance, permanece determinante esta diferença:
10 Werner Hamocher, ''.AJformatlv, Strelk� ln Chrlstlaan Hart Nlbbrig (org,), Was he isst •vars­
a performance não �c:o.qe corno meio para um outro objetivo (poHtlco), e
lel/e1i-?. Frankfurt am Main, 1994, pp. 340-;n. nesse sentido ela é justamente "ad-formativa': ou se ja, não é simplesmente
u Os neologismos Ajformaliv e nfformance (respectivamente em alemão e cm Inglês) são for­ um ato performativo; em contrapartida, na ação terrorista trata-se de um ob­
mados com o prefixo de origem latina "ad-': com acepção de "em direção n, próximo a" jetivo político ÓU de algUÍjl OUtrO tipô (seja qual for-O Julgamento a seu res­
(como sublinha o autor), que nessas Hnguas se torna "af-" antes de palavras latinas iniciadas
peito), O ato teJ,torista é'iritencional, é performance, um ato e uma intenção
por"(" (não se trata portanto do prefixo de origem grega •a-� com acepção de"privação,
negação"), Assim, o termo ajformt,nce ar/, gerado a pilrtlr de performance art (corrente­
no campo· da lógica de �eios e fim.
mente traduzido cofi\o "arte perfortnática"), teria como uni possível correspondente e111 - . .... L- . ..
416 português a forma "arte ad-forinática� (N,B,) ll Arthur J. Sabbatinl, "Terrorlsm, Perform'� Hlgh Performance, v. 9, n. 2, pp, l9·33,

Drama e sociedade
um olhar, de toda uma situação. Corn isso, ele também dá uma po· ss(vel res­
1 posta ao fastio da torrente cotidiana de fórmulas artificiais de intensificação.
Embora a questão do caráter político do estéticô' diga respélto·às artes em To;nou-se lt1suportável a dramatização inflacio1iária de sensações diárias que
geral e a todas as formas teatrais, impõem-se entre a estética pós-dramática embota os sentidos. Não se trata de realçar, mas de aprofundar um dado, uma
e �1a possível dimensão politiça do teatro relações que repercutem já nas situação. Em termos políticos: trata-se ao mesmo tempo do destino dos erros
indagações em torno disso. Há teatro político sem narração ou sem fábula da imaginação dratná�ica.
no sentido brechtiano? O que seria teatro político após,e sem Brecht? Para Há décadas, o ensaio de Althusser sobre Bertolazzi e Brecht evidenciou
representar o âmbito pol!tico, o teatro depende da fábuÍi'tomo veiculo de como um teatro político pode ser compreendido: de tal maneira que a fan­
representação do inundo (co�o muitos acreditam)? Se o trabafüo. artlstico tasmagoria dramática do sujeito se quebrava contrà o muro imóvel de um
·o
do teatro faz part� da.9.ueles "modos de produiÍr mundo" ["ways of world­ "outro" tempo do.social. O qüe é vivenciado e/ou estilizado como "drama" não
making"] (Nelson Goodrnãnfque·a1nd· a trazem .consigg_2_ p�tencial da re­ passa da enganosa atribuição de perspectiva a acontecimentos como ações. O
flexão, poderlà parecer um paradoxo que o teatro deixasse sem combate utn aconteclmel).tóé' füterpretado como um fazer: essa é a fórmula de Nietzsche
ponto forte, consagrado pela tradição: ô drama. Formas e gêneros sempre para a mitfficação. Essa fórmula também Cílracterlza � percepção da realidade
oferecem po�s�bilidades de compreensão sobre a experiência.coletiva, não só do indivíduo em sua ilusão natural, sua ideologia "eterna" de unia percepção
sobre a particular -·rqrmas artísticas são padrões coagulados de experiências esp�ntaneamente antropom�rfizadora. Quase só a existência de terroristas e
coletivas. Como é p�ssível funcionar um theatrum mundi sem as possibili­ a sensação das experiências individuais em revoluções pol(ticas côntit�uam n
cfades de ficclonaliza,;ão dramMiç_a, sem a riqueza ligada a ela de jogo entre criar a necessidade de uma certa plausibilidade! e.la articula�ão da realidade
dramatis personae .fictícios, mas de algum modo percebidos como quase reais, como. drama, na maior parte.das vezes como melodrama, enfatizando assim
e atores reais? os mínimos espaços de atuação restantes para as formas de ação do homem
De fato, poder-se-ia temer que a dissolução do cânone das formas levasse individual. A experiência da cisão, vista por Althusser como cerne do teatro
necessariamente ao despovoamento de grandes domínios da interrogação.so_-__
bre a experiência humana. Mas o panorama do teatro pós-dramático mostra
-- ... _ ,.. , .. -· pqlítico, atinge assim o nervo da pol1tica como tema do teatro. No caso de
Brecht, Althusser mostrou como o teatro épico se apropria da alteridade de dois
que a preocupação é infundada, que o novo dá vida de modo mais acertado tempos: de um lado, o tempo nâo-ctialético e massivo do processo histórico e
à essêúcia e às possibilldades específicas do teatro. Na medida em que no social, impalpável e inapreensível para o indivíduo; de outro, a trama temporal
teatro mais recente não é representada uma .figura .fictícia (em sua eternidade da vivência subjetiva - o melodrama. Nesse sentido, ainda hoje parece poss{vel
imaginária, Hamlet), mas é exposto o corpo do ator em sua temporalidade, rea� a política ded um teatro que propicie aos espectadores a experiência das ilusões
parecem, certamente de uma maneira nova, os temas da mais antiga tradição do· sujei� a realidade heterogênea dos processos sociais como relação de
teatral: enigma, morte, decadência, despedida, velhice, culpa, sacrifício, tra­ uma falta de relação, como discrepância e "alteridade''.
gicidade � Eros. No tempo real do palco, a morte pode aparecer como uma Para dizer a verdade, quase todas as formas parecem mais adequadas do
saída de cena: não como uma tragédia fictícia, roas como utn gesto cênico que a ação lógicq-causal, com a sua atrlbulç ão de proveniência dos acont:ci­
_
"pensado como morte''. Contudo, o gesto mais simples conserva todo o p�so tnentos às decisões dos indivíduos. Drama e sociedade não combil!,aln�Mas
da fundamental experiência "cotidiana" da despedida. ô teatro pós-dramá­ se o teatro dramático perde o chão de m�do tão "dralnático", lss� pode ser
tico se aproximou do trivial e do banal, dà sifnplicid!lde de uni encontro, de uma indicação de que a forma de vivência está 110 caminho de volta para a
própria re�Jldade à qual essa forma ct>rresponde. A questão dos fundamentos capacidade de_ uma sociedade de constituir uma coesão. �la dispõe de um
par.a-o retorno e a não-·obviedade da representação dramática não pode ser quadro de solidariedade que possibilita a constante tematizaçãó de sua di­
abordada nem muito menos res'olvida aqui. Convém apenas apresentar algu­ nâmica conflituosa patente e latente. Profundidade, abrangência, pre�são e
m.as reflexões sobre isso, ·· coerência da tematização conflito mostram como ele está assentado na so­

Uma prJmeira tese poderia ser esta: se o drama moderno tem como base lidariedade ou na unidade · simbólica mais profund·a da sociedade - o quanto
o homem lai1çado em uma relação inter-humana, o teatro pós-dramático se de drama ela pode suportar, por assim dizer. S.ob essa perspectiva, caberia
baseia em um homeJn para o qual, ílSsim parece, mesmo os maiores conflitos ponderar que·o dramà se torna o cerne de um entretenimento de massa mais
não querem aparecer como drama. A forma de representação "drama" está ou menos banal, r�duzido ·à mera ação, e desaparece cada vez 1_11ais na forh1a
preparada, mas roda no vazio quando deve dar forma à realidade experi­ artística mais complexa do teatro inovadór. ;
mentada (para alétn das ilusões tnelodramáticas). Certamente ainda se pode Aqui deve ficar em suspenso se os processos rituais da crise e da reconci­
reconhecer em um ôu outro momento da luta dos detentores.do poder um� liação analisados por 'Bateson, Goffman, Turner e outros descrevem os pro-
"dramaticidade': mas logo se evidencia que a decisão acerca das questões reais �essos sociais com precisão do ponto de vista antropológico e sociológico.
se dá em blocos de poder: elas não são decididas por protagonistas, que são De todo modo, o retraimento da representação dramática na consciência da
intercambiáveis na prosa das relações burguesas. Além disso, o teatro parece sociedade e dos artistas é inegável, e demonstra que com esse modelo não
renunciar à idéia de um começo e um fim. Ele es_tA próximo do pensat11�nto mais se dá conta da experiência. O enfraquecimento do impulso do drama
de que a catástrofe (ôu o divertimento) poderia continuar da mesma maneira. pode ser constataqo, não importando o motívó·- seja.por_qy� está desgastado
Noções científicas de um universo que se expande e se retrai ritmicamente, a e como conciliâção tliz sen)pre "o mesmo': seja porque supõe um modo de
teoria do caos e a teoria do jogo de$dramatizaram ainda mais a realidade. /.. -agir que não é mais reconhecido em parte alguma, sej_a ainda porque pinta
Uma outra reflexão sobre o desaparecimento do impulso dramático pÓde uma imagem'ofü-õleTã-dos conflitos soGiai� e pessoais. Se i;Õr-w1i nomento
i
. /
se apoiar nas teses de Richard SchechnerY ;Ele enfatiza que o. módelo do suspendemos todas as nossas reservas e tentamos considerar o teatro pós­
"drama'; entendido no sentido de [Victor] Turner cotno "dram,r's�cial", com dramático cof!)o .uma expressão das estruturas sociais atuais, o resultado é
0

sua seqüência de ruptura da nôrma social, crise, reconciliação ("redressive· uma lfnagem SOJ!l bria:E-difídrevitaP•a-susp.eHª �� _sue a sociedade não pode
action") e reintegração, portanto restabelecimento-do continuum social, apre­ ôU não quer suportar represe.�.t�ÇÕ!!S complexas e apr-;fundãdas d� conflitos
senta o modelo de um conflito e de seu domínio, o que no fim das contas se dilacerantes. Ela represe1�ta p�a im�sma a ���édÍa de uma sociedàde que
baseia em uma coesão social abrangente, A estrutura seqüencial da "perfor­ suposta�ente nao-�ais apresenta tais conflitos. A estética teatral també_ m
mance" no sentido mais amplo, que serve de base à te?ria da performance espelha sem querer alg'o-Q�sse sentido. Vem à tona uma certa paralisia do dis­
cultural ria antropologia do teatro, consiste nas fases·da reunião, da própria curso público sobre os fundamentos da sociedade. Não há nenhuma questão
performance e da díspersão, Nesse quadro precisamente fixado, ela oferece atual que não seja exaustivamente "yerbalizada". em infindáveis comentário's,
a imagem de uma encenação do conflito, que é cercado por um espaço da programas especiais, talk s�ows, enquetes, entrevistas-=..mas não há nenhum
solidariedade e primordialmente por ele possibilitado. Pod�-se assumir esse sinal de que a Sf?deçlade ·,üsponha da capacidade de "dramatizar", mesmo que
ponto de vista e -inferir que a presenç· a do dnu:3a comprova justamehte a de tnanelra incerta, suasiquestões fundamentais e seus fundamentos, embora
eles estejam forten:!_�ri!�. ab�lados� O �eatí:o pós-dramático também é um tea­
tro em uma ép�ca das imagen� de conflito omitidas.
0

420 13 Richard Schechner, Performance Theory. Nova York, 1988, pp. 166 ss.
Sociedade do espetáculo e teatro . �. tudo, essa promessa consoladora comporta uma ameaça igualmente clara, embora
ao mesmo tempo não expressa: "Permaneça aí onde você está. Pois se você se mo­
É evidente que o recuo do dramático não significa ó tnesmo que' o recuo do ver isso poderá facilmente resultar em intervenção, seja ela humanitária ou não". 15
teatral. Ao contrário, a teatralização perpassa toda a vida sócia!, a começar
pelas .tentativas individuais de gerar/forjar por meio -d� moda um Eu público: Reconhece-se aqui que a dissociação ..; continuamente repetida e reforçada -
culto da àuto-representação e da automanifestação me4_iante sinais da tnoda de acontecimento e espeftador conduz a um esvaziamento do ato da comu­
e outr9s que devem atestar um tnodelo de Eu (na maior.fà'.-�s vezes empres­ nicação justamente pôr intermédio do noticiário. A consciência de estar co­
tado) diante de um grupo ou mesmo da multidão anônima. A�'lado da cons­ nectado com ,os outrôs "na linguagem': em meio à própria comunicação, e
trução exterior do indivíduo se t:ncontra a au�odemqnstração de identidades com isso ter Üma obrigação, ser responsável, recua em favor de uma comu­
específicas de grupos qu . .d� g�z:�s:�es'. que por falta de discursos,,programas, nicação como troca de infonnàção. A fala é, por princípio, fala responsável.
._
ideologias ou utopias se representam comÕ-fenômêrios organizados de 111odc (a declaração "Eu te amo" não é nenhuma informação, tnas uma ação, um
teatral. Caso se ácrescentem a isso a propaganda, a auto-encenação do mundo engajamento prã; mídias-transforJ:nam o dom dos signos em informação e
dos negócios e a teatralidade da aut9-representação mldiática da política, assim dfas.olvem, por meio do hábito e da repetição, o sentimento de que o
parece se cumprir o que Guy Debord viu· despo"ntar ·coiriô sociêdade do espe­ ato de,efultir signos envolve o emissor e o receptor em uma situação comuín
táculo. O dado fundatnénta1 da sociedade ocidental é que todas as experiên- em inelo à linguagem. É esse o verdadeiro motivo pelo ·qual, como freqüeil·
. das humanas (vida, erotismo, sorte, reconhecimento... ) estão associadas a temente lamentamos, a ficção e a realidade se C(?nfu.ndem, Não é porque .nos
mercadorias, ou seja, �oseu consumo ou à sua posse, e não a um discurso, A enganamos sobre o fato de q��- num caso se trata de algo inventado e no
isso corresponde precisamente a civilização da imagem, que sempre aponta outro de uma ,notícia, mas porque o modo do processo de signi,íicação se­
tão-somente para uma sucessão de imagens. A totalidàde do espetáculo é a para coisa e signo, referência e situação da produção do signo. O incontrolá­
"teatralização" de todos os campos da vida social. vel grau de realidade das imagens deslocaliza os acontecimentos divulgados
Na medida em que a sociedade parece mais e mais se libertar da privação· --·- - - •. ··-- ... _. pela mídia e ao mesmo tempo institui comunidades de valores de especta-. ·
de suas necessidades tnediante·o coútínuo crescimento econômico, incorre dores que recebem as imagens isolados em seus apartamen.tos, de modo que
ao mes1�0 tefnpo numa total dependência desse crescimento, portanto dos se dá um distanciamento radical entf'e a apresentação sempre renovada de
recursos, pollticos para assegurá-lb, 14 Mas para issó é imprescindível a defi- corpos vitimados, feridos, tnortos por catástrofes (isoladas, reais ou fictícias)

·-
nição dos cidadãos como espectadol'es - uma definição que ganha cada vez e ô espectador passivo: a soldagem de percepção e ação, mensagem recebida e
mais plausibilidade na sociedade midiática. Em um texto acerca dos efeitos résponsabílidade, é dissolvida. Encofltramo-nos dentro de um espetáculo
da mídia no campó da política, Samuel Weber afirma: no qual s6 podemos observar - teatrõ tradicional ruin1. Sob essas condições,
o teatro pós-dramático tenta escapar da multiplicação das "imagens", il.8.S
Se permanecemos espectadores, se permanecemos bravamente ali onde estamos, quais afinal de contas
' se baseiam todos os espetáculos; ele se torna "imper-
diante do aparelho de TV, as catástrofes permanecerão sempre nô exterior, serão
sempre "objetos" para um "sujeito" - essa é a promessa Impllcita da mídia. Con- Í �----
15 Samuel Weber, "Humanltãre lnterventlon lil1 Zeitalte·r der Mediei!. Zur Frage elnér 1ete-
rogenen Politik': ln Hans-Petec Jãck e Hannelore Píeii (orgs.), Politiken des Anderi!n, v. 1,
14 Cf. Guy Debord, Die Gesel/schnft des Spektalrels. Berlim, 1996, p. 40. Frankfurt am Main, 1995, pp. 5-17, p. 26, 423
tu�bável'� ':estático", oferece imagentsem refer�ncia e deixa o dramático para entre a imagem e a recepçãq da imagem. Essa d�scontinuidade é constante­
as i.magens _de violência e cônflito das mídias, quando não se apropriá delas mente confirmada pela técnica da circulação mldiátka de signos. Parece que
para fazer paródias. são indivíduos a dar as notícias, tnàs são coletivos1 que pôr sua vez agem ape-·
··· nas comoJunções da mídia, não se servem realmente da mídia. O que acontece
Política da percepção, estética da responsabilidade um instante após o outro é o desaparecimento do vestígio, a negação da auto­
referência dos signos, Assim, chega-se a um "fracionamento" velado da lingua­
O teatro se vale de um aprofundamento reflexivô dos temas pol!ticos. Seu en­ gem. Por um lado, a mídia dispensa o emissor de qualquer ligação com o que é
gajamento político não se encontra nos temas, mas nas formas de percepção. emitido e ao mesmo tempo oculta ao receptor a percepção d!i circunstância de
No teatro alemão, essa noção pressupõe a superação daquilo que Peter von que a participação na linguagem também faz dele, o receptor, responsável pela
Becker certa vez chamou de "síndrome Lessing-Schlller-Brecht-6?''. 16 Mas con­ mensagem. O truque tecnológico e as dramaturgias tradicionais asseguram, à
vém igualmente evitar a asserção fácil de que o político é apenas um aspecto maneira da� fábulas, uma defesa contra.o temor de quem faz e de· .quem con-
superficial da arte ou, ao contrário, de que toda arte seria "de algum modo" ·
· ·· - 1 . � .... __

- some; a_fantasia de poder que é inerente à reprodução e ao registro das mídias:


poUtica: quer o lado político seja considerado inteiramente ausente da arte, dispor de todas as realidades, mesmo as mais Inacessíveis, com toda calma e
quer seja visto cotnó elemento geral dela, deixa de ser interessante. No entanto, podei: ordená-las sem ser atingido por elas. Quanto maior o horror da imagen1
por sua prática o teatro é uma arte do socíal por �çelência. Assim, na medida reproduzida, mais irreal se torna a sua versão. Horror rima com conforto. Em
em que sua análise se aplica a uma realidade definida politicamente, não pode contrapartida, ô "estranhamente familiar" [Unheimlicf.l],.qu�freud encontrava
se dar por satisfeita com uma despolitização. Mas aqui a política se funda no na mistura de significante e significado, é descartado.
modo de ser da utilização dos signos. A política do teatro é uma polltica da p�r- Seria um absurdo esperar do teatro que ele pudesse ctntrapor wna alter­
cepção. Sua definição começa com a advertência de que o modo da perci;pção nativa eficaz'ãop:tedmnfnlo-maciço c:!essa� estruturas. Màs-é possível propor
não deve ser separado da existência �o teatro em um mundo da v:ida domi­ a questão de uma tese ou uma antítese política no campo do próprio uso
nado pelas mídias, que modelam maciçamente todas à's percepçõê;, dos signos. Faz parte da estrutura da percepção transmitida pelas m!dias que
A imagem transmjtida em um ·átimo e aparentemente fiel à realidade sugere entre as imagens -!Õêllvfdua-is recebidas, mas so_bretudo entre a recepção' e a
o real que ela mesma torna acessível, suaviza e enfraquece. Produzida longe de
' ·-·- '"·-�- -
emissão, não se experimente nenhuma conexão, nenhumã ·relaçã<:> de enun-
sua observação, recebida longe de sua proveiüência, a imagem inscreve uma ciação e resposta. É-só por ·;;�io- de um� pol/ti�a da percepção, cÚjo nome
indiferença em tudo o que é mostrado. Entramos em contato (mediatizado) também pode;lâ'-sez estética da responsabilld(,lde, que o teatro é capaz dé rea­
com tudo e ao mesmo tempo nos sentimos desconectados da profusão de fatos gir a isso. Em vez da ·au.il-lidade e.nganosam�nte tranqüllizadofà de aqui e ali,
e ficções sobre os quais somos informados. As mídias dr�matizam os conflitos interior e exterior, essa prática pode ter como centro a inquietante in:zplíca­
políticos incessantemente, mas a profusão das informações, ligada à dissolução ção recíproca de atores e.espectadores na geração teatral de imagem, tornando
de qualquer posição política sobre os fatos claramente reconhecível, produz na i10vamente visíveis os fios arrebentàdos- entre a per.c.epção e a experiência
onipresença da imagem eletrônica uma desconexão (negada em vão pelos in- própria. Tal ex,eeriêntia tião•seria apenas estética, mas também étko-polJtica.
si�tentes gestos de apelo das mídias) entre a repr��ução e o que é reproduzido, Todo o-resto, inclusive a de1110nstràÇãó polí�ca realizada com·-perfeiçãó, não
escaparia do diagnóst}�Q
..... .
�e.Baudtilfard;
. segundo o qual só temos a ver com
424 16 Peter von Becker, ln iheater Heute, Janejro de 1990 1 p. 1. simulacros que circulam. · ' 4
,,

Estética do risco -· -- próprias "aflições'� uma vei que modelava neles a constância, a força estóica
• • 1 da paciência. Lessing (e com ele o Iluminismo) via o teatr_o como um estabe­
No sentido de uina polltica da percepção do tea,tro, é evldep.te que não conta lecimento para o aprendizado do sentimento da compaixão, compreendido
! ;
aqui a tese (ou antitese) nem a f>?sição e o engaja�ento políticos (que perten- como requisito social. Mesmo Brecht atribuía ao teatro (sem pensar etn aban­
cem ao campo da polltica real � não aa r';l)Jo.duzida), mas justamente a ati­ doná-lo às "velhas" emoções) a tarefa de elevar os sentimentos "a um patamar
fude.fundamental da falta de consideração por toda durabilidade e afirmação - mais alto" e encorajar._sentimentos como o amor pela justiça e a indignação
em outras palavras, o ato de lidar ta1nbém conro··-ta.�u. O teatro continua a com a injustiça. Na época da racioflalização, do ideal do cálculo, da generali­
ter a ver com ele. 17 Se o tabu é visto como uma forma'cte...(eação socialmente'•.
zada racionalidade.do mercado, cabe ao teatro ô papel de, por meio de uma
enraizada, que antes de qualquer elaboração racional considerí\_ �etermina- estética do risco, lidar com afetos extremos, que sempre lnclue1n a possibili­
das re�fidafles, comportamentos ou reproduções como "intocáveis", ignóbeis, dade da dolorosa quebra di:ítabu. Êssa quebrá ocorre quando os espectado­
inaceitáveis, p·ortantõ como-um afeto iJ:lJ�ripf-ª _t9�a avaliação racional, então res são expostos ao problema de reaglr àqullo que se passa diante deles de
está correta a observação, feita muitas vezes, de q��-Õtàõu quase desapare­ modo que nâo'fliais ex.is.ta a distância segura·que parece garantir a diferença
ceu no curso da racionalização, da desmi�cação e do desencantamento do estética entre a sala e o palco. Justamente essa realidade do .teatro, o fato de
mundo. Em vez de propor um debªte _que nâô cabe_ �g�i, arriscamos fazer que çlé pode brincar com tais limites, o predestina a atos e ações nos quais
uma simplincação: a sociedade atual não conhece nada - ou quase nada - não' se formula utna realidade "ética" ou mesmo uma ·tese ética; antes, surge
/
sobre o que não p'ossa discutir racionalmente. Mas e se essa raciônalizaçâo uma situação na qual o espectador é confrontado com o medo abissal, com a
anestesiar até mesmo os reflexos humanos urgentemente necessários, que em vergonha e também com a irrupção da agressividade. Mais uma vez fica claro
um momento decisivo poderiam ser a condição para reagir a tempo? Hoje que o teatro não ganha sua re;lidade estética e étlco-poHtica pelo viés da co­
em dia, será que o desprezo pelos estímulos espontâneos (por exemplo, em municação, das teses e das informações, sempre artl.ficials - em suma, por
relação ao melo ambiente, aos animais, ao clima, à frieza social) em favor de seu conteúdo no sentido tradicional. Ao contrário, faz parte da concepção do
uma racionalidade econômica de metas já não levou a desastres evidentes . -- .. tea�o engendrar um terror, uma violação de sentimentos, uma desorientação
e irremediáveis? A luz de_ssa ç�servação do declínio progressivo da reação ..__··--·--· que, por meio de procedimentos supostamente "amorais'; "antissociais': "cí­
afetiva imediata, ganha importância crescente uma cultura dos afetos, o "trei­ nicos'; faça o espectador se deparar com sua própria presei1ça sem tirar dele
namento" de uma emocionalidade não atrelada a considerações racionais o humor, o choque do reconhecin'lento, a dor, a diversão, que são os motivos
pré�ias. Não basta apenas o Esclarecimento (aliás, mesmó no século xvm ele pelos quais nos encontramos no teatro.
foi �companhado pela poderosa torrente dos sentimentos). Cada vez mais,
será uma tarefa das práticas "teatrais': no sentido mais abrangente, produzir
···----
situações lúdicas em que a afetividade seja liberada.
O fato de que ô teatro tem a capacidade de realizar um determinado "trei­
namento" emocional já tinha sido urna concepção do barroco. Opitz chegou
a definir como tarefa da tragédia que ela preparasse os espectadores para suas

17 Cf. Hans-Thlcs Lehmann, "L'Esthétiqne du risque': L'Art du '.l11é'1t�e� 7, i;.&7, PP· 35-44.
_,,. ··- ·

lndlce onoíriástlco
[com colellvos teatrais em ltáli�oJ

--
--·· · ...._ ... -----

,
Abdoh, Reza,150,356, 359 Artaud, Antbnln,8,11,21, 47, 49-50,58-59
246, 258, 260, 338
80,10:1.,105, 129,140,
,. Ab1:amovic, Marina, 232
Carl, 161
'Artrn "'"··-···Hni,s
ann,
Açhternbusch, Herbert, :u4
Acker,Kathy,_2�3
·-------
Mamov, Arth.ur,-86 Bacon, Francis [filósólo), 36
Baco n,Ft<!JlciS [pintor), 343
Adorno, Tueodor Wiesengrund, 8-11,24,
9 -96, -� er,Bobb 2 1 ·:. ··---.. -.. _
y, 3
32, 35-36,5ih9,'H"9, l70,176°77,-1 5
238,323, 353-54,390, 410 Baktruppen,29, 2_02,3 69

___ _,,,.
/
Banu., Georges, 124, 126
.. Again_b��' Gio!glo,342
.
· Giffê.s,-192 · •. .__ .
Alllaucf, Barba, Eugertio,28, 30�; 336-37
· ··-Barlach..m
Akkõ 'theater, 29 ' m!i_ló7
Barnes, Djuna, 277··-·- .....__
Althuss�,Louis, 21,-297,417 ·--; .. Barthes;ilõlanê!; i9,45-47, 18:2,";:471 259,
Ander§en,Ha"lls-Christlan, 186
30 8-09,33 2,33 7,37 -1
Andersen,Laurie, i29
- us,29,20
, ·
4,254,280 B�taille, Georges,340
AngêlusNpv ·
,......._ Bateson, Gregory, 421
Ant9ine, André, 80,176
Baty,Gaston,46
Appia,Adolphe, 147 ·
- ···-······· ·Baudeláirê, Charles,141
Aragon, Louis,no
Baudrillard,.J.i:� 196-�7. 333-3'4,3 65, 425
Aristóteles, 56,63-65,69, 98, 114, 273, 288,
·f ; Bauer, Wolfgang, 197, :1.15·
303,323-26,353,:402. ,
Bausch, Pina,28, 248, :277-78, 30 9-10,
Arntzen, K,w_t Ove, 38-39 '
Arroyo,Eduardo, 127
1
.... -- -----------
.. -
..
340-41
4
,, . .

Bayer, Konrad,161 Büchnes Ge.org,162,78,129,215, 290 Decorte,Jan,':54 Foreman, Rlchatd, 28, 48-49,103-04,192
Bayerdõrfer, Hans-Peter,97-_9 8 ·• -. Búílders Association, The, 29 .Dehl�olm, Kirsten,39 Forsythe,William,28,146,309,340,373
Beck, Julian,300 Burden,Chris,2i8,232 Deleuze, Gilles,21,82, 139,149,211,259, Foucault,Nlichel,141,3:20
Becker,Jochen, 186 305,311,389 Freitas, Iole de, 228
.Becker, Peter von, 62, 422 -. Cl)ge, John, 85,149,152 ,250,304 Derrida,Jacques, 8, 21, 100, 246, 254, 261 Freud,Sigmund,132, 140, l45, 148,191,
Bec��tt,Samuel,32, 51, 62, 85,118,126, 149, Cali'iois,Roger; 59 Diderot, Denis,375 349,425
164,205,2.50, 298-30 1,358 Calvino,!talo, 178 Dito' Dito, 202 Freyer, Achim,28,123,272
BellmeJ:, Hans,58,1ô8 Camus, Albert,·8s,377 Doesburg,Theo van,160 Frisch, Max, 87, 198, 268-69
.Belting,Hans,395 Caravaggio,Michclangelo Merisl da, 237 Dood Pard, 202 Frye,Northrop,213
Bene, Carmelo,21 Carrignon,Christian, 349· Dorst,Tankred,132 Fuchs,Ellnor,103; 134
Benjamin, Walter, 77-78,124,12.6, 1��·. 214, Cassavetes, John,378 Dort,Bernard,46, 80, '-45 Fuchs,Georg,76-77, 83
2.35,238, 261,304, 309,319-20,342, 367, Cast�lluc:�( Claudla, 343 Dostoiévskl, ·Fi6dor Mikliailovitch,267
· Fuller,Buckminster, 366
369. 400-01 .
. -�- -�... -
- Cast�llµfç_l,_Romeo,3.43 Duchamp, Marcel, 108,173, 250 Ftt �a deis Baus, La, 29, 207, 224, 257, 356,358
Bennet,David,277 Castorf, Frank, 28, 15Õ';'203-04 Dullin,Charles,46 Fusco,Coco, 413
Berghaus, Ruth, :i.74 Cate, Ritsaertten,41 Duras, Marguerite, ·;;4 · ·· ··
Bergson,Henri, 2.87, 296 Celan,Paul,149 Dütrenmatt, Friedrkh,87, 198,215 Gabrielr Ulrlke, 374
Berliner Ensemble, 46,8� · 'Cézanne, Paul,104- --· DVB Physiéat 7/ieatre, 29 Gadamer,Hans-Georg,172
.Berry, Chuck, 85 ., Chagall,Marc, 127 Gala Sc/enza, La, 2i4
Ber tolaz1J, Cario, 21, 417 ' Chopin, Henry,250 Eclison,Thomas Alva, 132 Genet,Jean, 32,u6,180, 2.09, 304
.Beuys, Joseph, 351 . --· .• Christo [Javachev], 86 Eihstein,Albert, 50,13i Genette, Gérard, 200
Bierbaum, Otto Julius, 101 Clxous, Hélene, 361 Eliot,T. S., 116, 273,369 Glacometti, Alberto,H6, 343
Billedstofteater, 38 Claudel, Paul,84, 95, 176 Epigonent/teater zlv, 183 Ginkas, Kama, 267
Blau, Herbert, :i.19,360 Clever, Edith,191, 208, 257 Esopo, 352 Glass, Philip, 337
Bium, Léon, 127 Cohn,Roy, 209 Ésquilo,98,126,205 Gob Squad, 29,201,380
Blumenberg, Hans, 296
Boehm, Gottfried, 312.,335, 395
�ohrer, Karl Heinz, 237-40
Cõmediants, Els, 207
Cornei1Je,Pierre,251,299,326.
Corsetti, Glorgio Barberio, 28,248,386
·- --··-
....... __
___ . 1
Esslln,Martin, 56,87-88, ·208
Ex Machina, 379
Goebbels, Heiner,28,143-44, 152, 189-90,
209, 251,277,309,351
Goethe,Johann Wolfgang von, 45, 62, 77,
Êorie,Monique,96, u6, 118, 122 Corv!n, Mlchcl,35 Fabbri, Marisa, 208 117,127, 132, 1.95, 254, 279
Bread dnd Puppet, 187 Coupeau,Jacques, 147 Fabiah,fo, 409 Goetz, Ralnald, 20,29
BrentaI,10, Bernhard von, 12.7, 277 Cralg, Edward Gordon,�o,84, 97,102, 122, Fabre,Jan,22,28,41,148, 160-62.,164,168, Go/fman,Irving, i72, 419
Brenton, Howard, 409 191,349 181,187,193,207,223,229,257,271, 306, Goldberg, Roselee,223-24, 229
Breton, André, 108, uo Cricot 2, 121 . 309, 347, 351-53,-356 Gómez-Pe11a,Guillerino, 411
Breuer, Lee, 223,410 Cunningham,Merce, 85, 152, 192,373 Falso Movimento, 29,4�, 223,385 Goodman,Nelson,416
Breysig, Johann Adam, 375 Fassbinder, Ralner Werner,197, 289 G6rki,Maksim,113
Brinkmann,Rolf Dlcter, 277 Daguerre,Louis,130 Faulkner,William, 251 Gosch,Jürgen,274
Broch, Hermann, 208 Dali,Salvador, 108 Finter, Helga, 150, 259-60 Gray, Spald.ing! 41,181
Brock, Bazon, 29,191 Dante [Alighieri), 90, 156, 358 Fischer, Gerhard, 184,395,409-10 Greef,Hugó de, 40
Fischer-Llchte, Erlka, 53,83,_ 156,166-67, Gregory,André,185 .,,..-
Brook,Peter, 28, 37, 85, 109, 147,151, 168, David, Jacque�-Louis,109, 277, 334-35, 369,
191,293,307,320, 335, 408-11 407 228, 370,411,413 Grotowski,Jerzy, 28,47,109,164,185,248,
Brueghel, Pieter, 144 Dcbord,Guy, 8, 17.2, 365; 422 Forced Entertalr1ment, 29 265-66,336,360-61 431
Grüber, Klaus Michael, 28, 94, 117,122-27, Hübncr,Kurt, 86 Kaprow, Allan, 85 Lepage,Robert, 28,209, 307, 320,379
129, 2oa;· 214, 266,.271,277,306 Hu!lmánd, Roxane, 347 Keersmaeker, Anne Teresa de, 28 Lescavalier, Loul�e, 347
Grunberg,Karl, 203 Huppert, Isabelle,:i.08 Kerkhoven,Marianne vao,139 Lessing,Gotthold Ephraim, 30,u4-15,163,
Gründgens,Gustav, 85 Huysm1ms,Jor!s-Karl, 188 Ketturkat, Peter,349 424,427
Grupo de Teatro Macunaíma, 409 Kirby,Michael,56,93-94,99, 192, 224-25, Lessing,Theodor,280-81
Guattari,Felix, 149 lbsen, Henr!k,10,78,166,202 383 Levinas, Emmanuel, 256
Gumbrecht,Hans Ulrich,225, 235-36,319,381 Iden,Peter,90 Kirchner,Alfred, J86 Lissitzky,El [Lazar Markovic), 248
I�d�hl,Max, 1621 400 Kittler, Priedrl��· 255-56,390 Llving Theatre, 47,104,171,208, 225,248,
Halfa Theatre, 379 Innes,Christopher, 36-37 Klein,Yves, 86 .. 376
Halbwachs,Maurice, 317 Ionesco, Eugene,32,85-87 Kleist,Helnrich von,51, 126,191,208, 347. Lorenz, Renate, 160,186
Haq1acher, Werner, 414 Kloke,Eberhard1 282 Loutherbourg, Ph!lip James de, 375
Handke,Peter, 29, 49, 51,53, 91, 126,149, Jacoby,Wllhelm,204 Kluge,Alexander,77,240,306 Luxemburgo,Rosa,410
215,250,322,361,376,385 jahnn,Hans Henny, 333 Knap,En,28 Lyotard,Jean-François,8,18,58-59,129,
Hanrot, Pascale, 349 Jaime [rei), 133 · · ··· ·- ......Ko.e.ls,.Paul,151:5;· 148,157,239,336,402
Hare, Davíd,409 Jakobson,Roman, 124 Kokoschka, ôskar,107
Hauptmann,Gerhart, 217,279 Jandl,Ernst, 250 Kott,Jan,211 Maatschappij Discordia, 29,191, 257
Haussmann,Leander, 28, 102, 315 Jansen,Tom, 209 Krejca, Otomar, 218 Madame Curie [Marie Curie], 13:i.
Hebbel, Christian Friedrlch,40,78 Jarry,Alfred, 93 Kresnik, Johann, 150,410 Maeterl!nck,Maurice,94-98, 103,.114
Hegeí, Georg Wilhelm Fiiedrich,23,55, Jaspers, I{ârl,172 · Kristeva, Julla, 49,157, 246-47,414 Magazzini, 29. ! 385
65-71,295, 399 Jaum!naux, Cathé.rine,251 Kroetz,Franz Xaver, 1971 281 Mallarmé, Stéph·�·rw,94•95,98,104,116,
Heidegger,Martin,171,247 )elinek, Elfriede,20,29, 32 _Kruse, Jürgen, 28, 150-51, 274, 315 140, 149,154,169,188,2.09, 254,314,
Hemlngway, Brnest,183-84 Jerofejev, Venedlkt, 387 ., Kubrick, Stanley, 88 . 342,345
,,
Henrichs,Benjamin,214 Jesurun,Jphn,28,193-94, :i.23,259·69",'276, Kuhn, Hans Petêr, 21ó____ · · · ·• M�le,Louis,185
Hensel, Georg,119, 123,277 315,388-90 Mama, La, 104
/
Hertllng, Nele,40 Jetelová,Magdale1_1a,189 La La La Hwnan Steps, 150, 346-47, 355 Manen,Hans van, 378
.... ... . · ..,.,;
Het Zuidelljk, 377 Joglars, Els, 207 Labiclie,Eugenê,t26··-.- ....... __ .. jvlann,Thomas, 177,365
Heyme,Hansgünther, 376 ·· Jonas, Joan,132,375 Lacan, jacgues,254,.156,335 ·· -·- • Manthey,•:A:xel,-28,J90, 272-74
Hill, Gary,391-93, 395 Jourdheuil,Jean,192 Laerma!)S, Rudl, 251 .... ., Mappl�!horj,e, Robert,3;i7 · - ··
Hitchcock,Alfred,193 Jouvet,Louis,46,191 Lampe; Juttá',208,257 Marcuse: Herbert, 365
Hochhut, Rolf,&9, 410 Joyce, James, 152, 208 Lang,Elkê,277 ..__ Market Theptre, 409
Hoffmann,Jutta, 217 Judson Poets T/1eatre, 104 Langcr,Susanne, 173 .. , Marranca,Bonnle, 104
Hoffmann,Reinhild,28 Jünger, Ernst,408 Larroche,Jean-Pierre, 349 ·., Marthaler,Christoph, 217-18, 278,306,309
Hofmannsthal, Hugo von,98 LaÚb, Michael,39, 148 Mata Hari (Margaretha G. Zelle], 132
HõJderlin,Priedrích,123,126 Kafka,Franz, 85,177, 248-49,343 , 386,399 Laufs, Carl, 204 Matzat, Wolfgang,:i.26
Ho/landia, 29, 151-52, 214, 257, 281 Kah)o, Prida, 410 Lautréamont [Isidore Ducassé),109 Mayrõckcr,·Prieder!ke, .150
Hõrisch, Jochen, 147 Kaiser, Ceorg,107 Lauwers,Jan,:i.2,28,183-85,187--88, .109, McLuhan,Marshall, 147
Horn,Rebecca, 40 Kandinski,Wassili,160 .151,257, 274-75,344-46,·,369 Meinhof, Ulrike,yo
Hotchner,A�ron Edward,183 Kant, Im.manu�! 137-38, 297 LeCompte,EUsabeth, 223 t Mengcl, Uwe,28,173
Hove,Ivo van, 377 Kantor,Tadeusz, 13,28, 96, 117-22, 129, 131, Lenin,Vladimir Ilitch UUanbv,229: Menke,Christoph,65-69,71
43 2 Hrvatin,Emll, 28,353 217, 309, 348,350 Lenz,Jakob, 78, 217 Merleau-Ponty, Maurice, 172
1' _

' .

_1:-Jovarina, Valere, 336 Puch�r, Ste(an, 29, 201,·315,380 Schwltters, Kurt, 86, 152
Meyerhold, V sevoJod, 27,102, 248, 349
Purcarete, SJlviu, 28 ' Segai, George, 343
lvliller, Arthur, 278,348, 369
Minctti, Bernhard, 127, 186, 208 O'Neill, Eugene, 209, 383 Pynchoi1, Thomas, 178 Seghers, �1il, 345
·,
Sellars, Peter, 31,378
I ' •
Minks, Wilfried, 86 Oberender, Thomas, 356
Minsky, Marvin, 373 Odin Teatret, 336 Racine, Jean, 52, 78, 299 Semprún, Jorge, 127
Mnouchkine, Ariane, 151, 156,224, 271, Oostervéfd, W!llemie!J., 348 Rainer, Arnulf, 230 Sempionst/rea/er, 29,156
307; 320, 361 Opitz, Martin, 426 Rauschenberg, Robert, 86,375 Serban, Andrci, 109,214
Moholy-Nagy. Laszlo, 375 Oppenhel!Jl, M�et1 108 Ravenhlll, Mark, 409 Serreau, Genevieve, 35
Orlan, 232-33 Ray, Man, 108 Servandoni, Giovanni Niccolo, 375
Moliere, Jean, 10,191,361 · · '··,,.
Mondrian, Piet, 333 Régnier, Henri de, 98-99 Shakespearé, William, 78-80,97, 163,179,
Monk, Méredith, 28, 150 Pa\k, )iarn.June, 391 Remote Control Productfon, 39 191-92,203, 211,254,275, 294 , 319

Moreau, JcaAfie; :208, 2J7 ..


Morein, Andrea, 409
--- .. .
Pandur, Tomaz, 28,156
·· --• ·· · --Pane Gin.a, 228
.., . · -- ...
'
Rijndcrs, Gerardjan, 214,361
Rimbaud, Arthur, 188,326
She She Pop, 201
, Sherman, Stuart, 349
Mozart, Wolfgang Amadeus, 31
)

Panlzza, Oskar, 101 · - Robichez, Jacques,_ 176 Showcase Beat /e Mot, 201
Pasolini, Pier Paolo, 214, 385 Ronconi, Luca,·:i�ÍJ, 266-. Sleg mund, Gerald, 186, 318,392-93
Mudrooroo, 410
Pavls, Palrice, 35,290,295,307,410-11 Rosenbacj1, Ulrlke, 375 · Simon, Michael, 29,189-90, 277,320,351
Mühl, Otto, 29, 229
People Shõiv, 41 · ··• · Roth,,..Béatrice, 383 Slnf uentes, Roberto, 413_
Mukarovsky,']an, 115, 165,;1.1.2
MUiier, Heiner, 12-14, 2,t 29, 32-34, 49-51, l'erteval, Luk, 254 Roydl Shakespeare Company, 408-09 Smals, Wies, 40
Performance Group, The,171 Ruckert, Felb:,201 Smith, Julian Maynard, 209,282
62, 77, 81, 96, 115-16,118-19, 133-34,
Peter, Shiai, 379 Rudolph, Niels-Peter, 53 Socielas ,Raffael/o Sanzio, 2.9', 146,186,2531
145,171,189, 192:'io:r , 204-05, :,,o�,
Petit, Philippe, 360 Rühm, Gerhard, 161 344,385
216 , 239-40,247-48,251, 254, 277, 29 8,
Peymann, Claus, 123 Soyinka, Wole, 411-12
300-01, 310, 318,333, 350, 358, 371-72,
Peyret, Jean-François, 192 Sacks, Oliver, 191 Squat 111eatre, 29, 171
401,403, 412
Pfister, Manfred, 91,212 Sar razac, Jean-Pierre, 198 Staffel, Tim, 315
Münsterbcrg, Hugo, 389-90
Picasso, Pablo, 149 Sartre, Jean-Paul, 85, 172 Stalin, Josef, 132
Musset, Alfred de, 290
Pichai, André, 183 Sayre, Henry, 253 Stanislávskl, Constantln, 84, 245, 255
Muynck, Viviani de, 345
Plrandello, Luigi, 80 Schechner, Richard, 28, 31-32, 86,1081 115, Station House Opera, 29, 282
Mysina, Oksana, 'J.67
Plscator, Erwin, 375, 382 l'J. 7,165,180, 230-31,293,410, 420 Ste.in, Gertrude, 80,102-05,134,249,307,367
f>itoeff, Geprges, 46 Schlller, Friedrich, 45,62,78,123, 186, 195, Stein, Petei', 86, 90,123-241 2181 271
Nancy, Jean-Luc, 40,236
Plan k,393 215, 217, 236, 424 Stelncr, Gcorg, 240
Needcompany, 41,183-84
Platão, 191, 246 Schlnkel, Kad Frledrlch, 130 Steinwachs, Ginka, 20
Negt, Oskar, 306
Poe, Edgar Allan, 277 Schleef, Elnar;-22, 28, 58,117, 125, 159-60,_ Stelarc (Stellos Arkadion], 372
Neher, Carola, 127
Nekrosius, Elmuntas, ,.8, 153 Pollesch, Rerté, 29, 197,201, 315, 380 216-17,229,248,257 , 279,294 ,306,309, Stella, Frank, 161
Pollock, Ja�son, 55 346,356 Stockhausen, Karlheinz, 15'J.,303
Nel, Christoph, 28, 191,28'J., 320
Ponge, Francis, 149 Schlemme.r, Oskar, 333,375 Stoppard, Tom, 294
Newman, Barnett, 55,173,394
Popper, Frank, 370 Schlingenslef, Chrlstof, 204 Storch, Wol.fgang, 144, 279, 282
Nietzsche, Friedrich, 191,'J.80-81,297,340,
Poschmann, Gerda, 20, 89 Schnitzler, Arthur, 208 Stõtiner, Ernst, 251
355,419
Presley, Elvis, 85 Schrõder, Johannes Lothar, 230 Stramm, August, 32
Nightingale, Florence, 132
Primavcsi, Patrick, 7�1 124, 146 Schulte-Sasse, Jochen, 381 Strauss, Botho, 51, 113,183, 361
Nitsch, Herniann, 29, 229
Proust, Marcel, 177-78;262,i1s Schwab, Wcrncr, 20; 196-97 Strchler, Glôrglo, 191, 201 435
134 Noelte, Rudolf, 123
-�
Strindberg, Aµgust,78, 107
Strombç_rgrT�m, 40
Stuartt Meg, 28, 340-41, 349, 392
Studio Azturro, 386, 391
Ulay {Fr�nk Uwe Laysiepen),40
Unilowski,Zbignlew, 119
Utitz,Êmil, 115
u7, 122, 127-34,141, 148, 151, 156, 15 9,
180, 192-93,208-11, 223,.248, 250,25 5,
257,259, 271-74, 298, 30 3-04,307-09,
320-21, 333, 337,341,351,4ll
':"oolf, V lrgii1ia, 208
Wooster Grgup, 29, 4�, 171, 209, 274, 369,
383,385
Wysocki, Çils�la voil, 190
Sturm, Dieter,90 Valéry, Paul, 314 Wi�icott,Donalô Woods,349
Sulzer, Jbhann Georg, .98 Valk, Kate,383 Wirth, Andrzej, 48-51,4_11 Yeats, William �utler, 98
Survlyal Research Laboratories, 29, 135 Van _9ogh,.Yincent, 164 Witkiewicz,Stanislaw Ignacy. 80, 102,
Suvú Nuver, 29 v�·dekeybus,Wim, 150,34õ;"3:46�47 104-06 Zadek, Peter,86, 248,411
Suzuki, Tadashi, , 28,358 Varopoulou, Helene,146, 150, 153 Wónder,Ericlr,·189, 272 Zinder, David,109
Swinarskl,K'oilrad,85 Vass!liev,Anatoli, 28, :i.14, 361 Wohdratschek, Wolf, 277 Zischler, Hai1Qs, .208
Syberberg, Hans-Jürgeil, 28,125, 191,208 Vawter, Ron, 209,359
Szeiler, Josef, 204-05 Vé/b 'Iheatre, 349
Szondi, Peter, 8-10,24, 45-47, 6i, 79,95,
98-9.9, 179, 213-lif, 382
Verdi, Giuseppe, 278
Victoria, 29, 150,197,304
Viebrock, Anna, :i.72,278,298
,.- · ·-· ·-r. · ·· --"'" -----
't BarreLand, 202,369 Vihav.er, Michel, 197
-·-··-·
Tairov,Alexander, 1'24
Tnrdieu, Jean,88
Vfola, Bill, 391-93
Virilio, ·Paul,365 ' ssoTt=fCc1-1í-ús·P
1---···-.;;..c.--------�b, ____ ·· ·
318060 ·
Tchekhov,Ant!:)n, 84, 114; 123,11.7, :2. 18, .255, Vitez,Aníotne,80
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369,383 Vitória [rainha), 132, 304 ....
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'fealró .bue, 29 Vitrac, Roger, 109
Templeraud,Jacques, 349 Von Hetduck, 149, 186, 315 ,.-··
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Terzopoulos, Theodoros, 2�,158 Vostell,Wolf, 376 /
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Teshigawara, Saburci, .28,146,148, 344,357
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111eater AnHgtÍnc, 202 Wagner, Richard, :t.t6,... 141, :i:"So ·
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Théâtre de la Compllcité, 29 Wal�e�fcls,.Bernhard,128, 162, 4bo

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Théâtre du Radeau, 29, 148,257 • '· Waldmann, Helei\a, :i.9,386 '
'
·
1hé4tre du Solei/, 266,.291-92 Weber;· Carl, 376 ---- - .. ... _ ... --......
Tl_iétltre Manar!, 349 Weber,Samuel,4i2-23 ····..,:· .... , ..
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'Ihéâtre Repere, 326 Webern, Anton, 88 I

Thieme,Thomas, 387 Wedeklnd1 Fr ank, 107, 333 '


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Toller, Ernst, 107 Welss, Pcter, 85, 90, 189, 335
Tovey, Noel,410 Wenders,Wlin, 385
Trolle,Lothar, 197 Wicns, Wol_fgang, 210 _ ,, .. ___ ,_.,.._,
Turner, Victor, 57,420-.21 Wigman,Mary, 107·
..._... _
Turrinl, Peter, 197 Wilde, Oscar, i88, 294
,,
'lwombly,Cy, 55 Wilder, Thornton,103,289,:i94, 369
WUms, A,ndré, 251 '1
-. Wilson, R9pert, 12-14, 22, 28, 4 ?-49, 1 ··:---.
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436 51-5 2, 80,87, 94-96, 163-04, 106, no,
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