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R ichard Schechner

O ator é, pelo menos em parte, ao mesmo tes, exibidos e prostituídos que viviam pelo
tempo criador, modelo e criação. Ele não deve aplauso. O grande ator e diretor russo insistia
ser imodesto, pois isso leva ao exibicionismo. que o ator deveria viver a sua vida “na arte”, um
Ele deve ter coragem, mas não apenas a cora- estado marcado pelo treinamento rigoroso, pela
gem de se exibir – uma coragem passiva, po- auto avaliação, pelos padrões éticos elevados e
demos dizer – e sim a coragem dos que se por um gosto refinado, tanto no palco quanto
desarmam, a coragem de se revelar (...) fora dele. Para chegar a esse objetivo, o ator
O ator não deve ilustrar, mas sim concre- aprendia a agir “naturalmente” diante de uma
tizar com seu próprio organismo um ‘ato da platéia, uma tarefa complicada e trabalhosa.
alma’ (Jerzy Grotowski). Vsevolod Meyerhold – o pupilo, rival,
amigo e (virtual) sucessor de Stanislavski – vi-
A Mãe não é um ser humano comum, como rou os ensinamentos do mestre do avesso, antes
você e eu. Ela tem uma força oculta tremen- mesmo de Stanislavski colocá-los no papel.
da. Ela pode fazer o que quiser. Ela é capaz Meyerhold queria o teatro no teatro, ele busca-
de uma concentração extrema (Vinnie de Sri va o “estilizado” e o “grotesco”.
Aurobindo Ashram).
O grotesco busca subordinar o psicologismo
à decoração. É por isso que em qualquer esti-
lo teatral dominado pelo grotesco, o design,

S
tanislavski deu à palavra “ator” uma digni- em seu sentido mais amplo, sempre foi tão
dade que ela nunca teve. Ele fez do ator um importante (por exemplo, no teatro japonês).
humanista e um psicólogo, alguém capaz de Não só os cenários, a arquitetura do palco e
entender e expressar os sentimentos, as mo- o próprio teatro são decorativos, mas também
tivações, as ações e as estratégias do com- a mímica, os movimentos, os gestos e as po-
portamento humano. Stanislavski deplorava ses dos atores. É justamente por serem deco-
atores que se deixavam explorar por empresários. rativos que eles se tornam expressivos. É por
Ele condenava os atores preguiçosos, indulgen- isso que a técnica do grotesco contém elemen-

Richard Schechner é diretor da Easter Coast Company, editor da TDR: Theater Drama Review e pro-
fessor do Performances Studies da New York University.

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tos da dança. Só a dança pode ajudar a su- mer revela o que é”) quanto teatralista (= “na
bordinar as concepções às tarefas decorativas.1 situação extrema da ação”).
A performance se resume a esse ato de
A dança não é “natural” no sentido nudez espiritual, uma des/coberta que não é
Stanislavskiano. Ela é cuidadosamente compos- construção de personagem, no sentido conven-
ta, com o objetivo não de imitar os ritmos do cional do termo, mas também não é muito di-
dia-a-dia, mas de expressar sentimentos e situa- ferente. É um ato que acontece naquela região
ções. A grande discussão no teatro moderno difícil, entre o personagem e o trabalho que o
entre os naturalistas e os teatralistas se resume performer faz sobre si mesmo. A ação da peça é
a isso: Onde está a verdade humana? Na superfí- construída através de um processo cíclico, e a
cie, no comportamento diário das pessoas, ou na base desse trabalho são as reações do performer.
profundidade, por trás das máscaras sociais? A sua própria identidade é exteriorizada, e se
Os naturalistas buscam reproduzir justamente transforma nos elementos cênicos da produção.
os detalhes mundanos que representam o ser A encenação é constituída desses elementos, que
humano em sua essência. Os teatralistas buscam são em certo sentido o personagem. Entretan-
meios de penetrar ou superar as máscaras diá- to, a reação do performer a cada elemento pode,
rias da vida para poder revelar o ser humano a qualquer momento, evocar um novo elemen-
em sua essência. Stanislavski e Brecht são na- to, que de novo transforma a encenação. O pro-
turalistas. Artaud e Grotowski são teatralistas. cesso é impiedoso e interminável.
Como em toda grande disputa, a maioria das O grande debate se manifesta em muitos
pessoas pegam um pouco de um lado e um pou- debates menores, nenhum mais feroz do que
co do outro, mas é bom conhecer o argumento aquele entre os defensores da espontaneidade e
em sua essência. os da disciplina. De novo, Meyerhold, assusta-
Aplicar o princípio do teatralismo ao tea- doramente atual.
tro ambiental significa aplicar o princípio do
design integral a todos os aspectos da produção, Será que a demonstração da emoção realmen-
incluindo o treinamento do performer, a orga- te diminui a disciplina do ator? Homens vi-
nização e o uso do texto, a disposição do espaço vos e reais dançaram em movimentos vivos
e todos os elementos técnicos. Nada no traba- ao redor do altar de Dionísio; suas emoções
lho é fixo ou pré-determinado. O performer pareciam queimar, inflamadas incontrolavel-
precisa trabalhar duro se quiser desenvolver a mente até o extremo êxtase pelo fogo no al-
coragem e a técnica necessárias para deixar a sua tar. Ainda assim, o ritual em honra ao deus
máscara de lado e se revelar como ele realmente é, do vinho era composto de ritmos, passos e
na situação extrema da ação que ele está interpre- gestos pré-determinados. Esse é um exemplo
tando. Eu não estou falando do famoso “se” da disciplina do ator inabalada pela demons-
stanislavskiano, estou falando da realidade da tração da emoção. Na dança, os gregos eram
ação, não da sua projeção imaginária. Estou fa- limitados por uma série de regras tradicio-
lando daquilo que “é”. A performance no tea- nais, mas eles tinham a liberdade de introdu-
tro ambiental é tanto naturalista (= “o perfor- zir o quanto de invenção quisessem.2

1 Meyerhold, Vsevolod Emilevich. 1969 [1911-1912]. Meyerhold on Theatre, tr. and ed. Edward Braun.
New York: Hill & Wang, p. 141.
2 Ibid., p. 129-130.

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Um dos objetivos desse capítulo3 é de- homem. Ele é um milagre.”5 Eu chamo atores
monstrar algumas técnicas que nos permitem que trabalham nesse sentido, em um processo
desenvolver a espontaneidade e a disciplina si- de des/coberta, de “performers”. O performer
multaneamente. “A espontaneidade e a discipli- não interpreta um papel (recuperando e reco-
na, longe de enfraquecerem uma a outra, refor- brindo-o). O que ele faz é remover resistências
çam-se mutuamente; o elementar alimenta o e bloqueios que o impedem de atuar de uma
construído, e vice versa, até se transformar em maneira inteira, seguindo completamente seus
um tipo de atuação que têm brilho.”4 impulsos interiores em resposta às ações de um
Durante uma visita a Nova Iorque, em papel. Na performance, o papel é o papel, e o
março de 1971, alguns membros do Teatro performer é o performer. Além disso, o perfor-
Nacional do Japão estiveram na Performance mer é um especialista em cantar, dançar, falar,
Garage e mostraram um pouco do seu trabalho em movimentação corporal; ele está em conta-
para o Performance Group. Mansaku Nomura to com os seus próprios centros; ele é capaz de
executou alguns trechos de uma peça Kyogen. se relacionar livremente com os outros. É claro
Eu adorei a simplicidade e a disciplina da sua que essa é uma figura ideal. Na realidade, algu-
performance, a clareza dos seus gestos, as mu- mas das performances mais interessantes acon-
danças repentinas de tempo e de voz. Eu per- tecem nas áreas de resistência, lugares de tur-
guntei a ele se era tudo partiturizado. bulências específicas, onde a vida-no-teatro do
“Sim”, ele respondeu. performer está em jogo.
“Mas e os seus sentimentos dentro da par- O treinamento do ator nos Estados Uni-
titura? Eles mudam?” dos é uma indústria distorcida justamente por-
“É claro,” Nomura respondeu. “Cada pú- que é uma indústria. As universidades e as esco-
blico me afeta de uma maneira diferente, e o las, assim como os indivíduos, guardam os seus
que eu estou sentido muda completamente a segredos e oferecem os seus próprios métodos,
textura da minha performance. Eu trabalho a competindo mesquinhamente uns com os ou-
partir do momento”. tros. Em vez da troca de técnicas que caracteri-
Ryczard Cieslak me deu uma resposta za uma tradição saudável, o treinamento é mar-
idêntica quando eu conversei com ele sobre o seu cado por métodos secretos e efeitos especiais.
trabalho como o Bobo em Apocalypsis e como o Uma parte tão significativa da nossa máquina
Príncipe em Príncipe Constante. Stephen Borst, crítica tem o objetivo de destruir, de desmon-
do Performance Group, definiu “personagem” tar, e uma parte tão pequena existe para apoiar.
assim: “um conjunto de ações físicas e vocais Existem poucos lugares nos quais os alunos po-
construídas a partir de movimentos e inflexões dem desempenhar a função de aprendizes, ou
relativos”. O círculo nunca se fecha. A partitura podem aprender através do exemplo, as melho-
sempre permite ao performer a liberdade de se res maneiras de se aprender.
expressar espontaneamente. A função da parti- No sentido mais profundo, nenhum re-
tura é justamente criar essa liberdade. lato escrito pode substituir a presença, e a pre-
“O ator é um ser humano que se des/co- sença é um aspecto fundamental do treinamen-
bre de tal maneira a re/velar [=desvelar] algo do to. Eu acredito no método do aprendiz, a

3 Esse texto foi inicialmente publicado como um capítulo do livro Environmental Theatre, em 1973.
Referências aos outros capítulos foram mantidas na tradução. [Nota do Tradutor.]
4 Grotowski, Jerzy. 1968. Towards a Poor Theatre. Holsterbro: Odin Teatrets Forlag, p. 121.
5 Grotowski, durante uma palestra na New York University, em 13 de dezembro de 1971.

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observação consciente e a imitação, temperadas do corpo e com a voz. Mas nenhum exercício
com uma dose de questionamento crítico e ex- é sacrossanto.
perimentação. A presença só se faz possível em Eu não quero que esse capítulo vire um
um lugar seguro, em momentos de confiança, manual, uma explicação de como funciona o
quando as barreiras do ego se dissolvem, ou pelo treinamento no teatro ambiental. A descrição
menos diminuem. O treinamento é o esforço dos exercícios é uma forma concreta de enten-
de criar um lugar seguro, de encorajar a con- der um pouco do trabalho do Performance
fiança em meio a um sistema social que gera Group e, através do trabalho do grupo, enten-
perigo e incentiva o medo. O objetivo dos exer- der o teatro ambiental como um todo. Além
cícios descritos nesse capítulo é apontar para disso, é no treinamento que o problema da re-
uma perspectiva integral da performance, que in- lação entre pessoa e personagem aparece da ma-
clui a encenação, a dramaturgia, e a disposição neira mais significativa. Para aprender os exer-
do ambiente, assim como o treinamento do cícios, é preciso estudar com um mestre, não
performer. Eu considero esse método um mé- com um livro. E o seu mestre precisa ter estu-
todo tradicional, embora ele não faça parte da dado com outro mestre, e assim por diante. A
tradição do Teatro Ocidental industrializado. vanguarda é a versão mais radical (=próxima da
Ao contrário, eu me baseio nas tradições dos raiz) do tradicional.
povos comunitários: a tradição dos teatros asiá- Existem quatro etapas no processo do
ticos, a tradição do teatro ocidental medieval e performer. Essas etapas não são como uma es-
do começo do Renascimento, a tradição do te- cada, que se sobe degrau a degrau. Elas aconte-
atro grego pré-aristotélico. As raízes desses tea- cem simultaneamente, uma alimentando a ou-
tros se encontram. tra. As quatro etapas são ritmos vitais – como
Os exercícios apresentados aqui, e o siste- respirar, comer, dormir, elas sustentam um per-
ma a partir do qual eles são gerados, formam former sem exauri-lo. As quatro etapas são:
um pequeno início para que possamos redefinir
uma perspectiva tradicional do treinamento do 1. Entrar em contato consigo mesmo.
performer. A liberdade que uma tradição pro- 2. Entrar em contato consigo mesmo di-
picia é a mesma que uma partitura propicia. ante de outros.
Uma partitura é uma tradição em miniatura. Eu 3. Relacionar-se com os outros sem uma
aprendi o meu trabalho aqui e ali, de diferentes história e sem uma estrutura formal elaborada.
mestres. Eu observei muitas pessoas trabalha- 4. Relacionar-se com os outros dentro de
rem, e peguei o que consegui daquilo que eu vi. uma história ou estrutura formal elaborada.
Mais importante, de longe, tem sido o
trabalho com os performers do Performance Um performer experiente nas quatro eta-
Group. Não importa a origem de um exercício, pas retorna às bases mais ou menos duas vezes
ou que tipo de associações ele produz, no mo- por ano. Ele começa com os exercícios mais bá-
mento em que os performers começam a traba- sicos (o que varia de performer para performer)
lhar com ele, eles tomam posse do exercício. e os experimenta de novo. Nesse processo, o
Todo treinamento é cara a cara, extraordinaria- performer descobre e desenvolve novos exercí-
mente íntimo, como o processo de dar à luz de cios na prática, variações sobre um tema, algu-
novo e de novo. Muitos exercícios nós desco- mas vezes significativamente diferentes do ori-
brimos, trabalhamos durante algum tempo, e ginal. A execução dos exercícios se baseia em
depois descartamos. Talvez eles voltem depois, duas fontes: padrões disciplinados que o perfor-
ou talvez sejam recriados de uma outra manei- mer aprende de um mestre, e impulsos íntimos
ra. Alguns poucos exercícios persistem, espe- e associações que ele evoca do seu próprio inte-
cialmente aqueles que trabalham com o centro rior. Esses impulsos e associações se expressam

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no contexto da disciplina dos exercícios, atra- 2. Entrar em contato consigo mesmo


vés do corpo e da voz, como um todo. Os mo- diante de outros: exercícios em dupla de aceita-
vimentos e os sons que esse processo gera se ção e entrega, círculo dos nomes, trocas, músicas.
transformam em novos padrões disciplinados, 3. Relacionar-se com outros sem uma
que formam, por sua vez, a base de novos im- história e sem uma estrutura formal elaborada:
pulsos e associações. Nesse sentido, o trabalho trabalhos de testemunha, confrontações, rola-
é auto-gerativo. mentos, carregar os outros, pular, voar, exercí-
É impossível querer dominar a primeira cios de confiança.
etapa antes de partir para a segunda. Não existe 4. Relacionar-se com outros dentro de
um domínio absoluto. O trabalho é como a li- uma história ou estrutura formal elaborada:
nha do horizonte no mar, você sempre chega improvisações, cenas, workshops abertos, en-
mais perto, mas nunca a alcança. Cada etapa do saios, ensaios abertos, performances, papéis
trabalho depende da anterior. Por exemplo, um partiturizados.
performer só se conhece à medida que ele se re- As duas primeiras premissas do trabalho
laciona com os outros. Cada pessoa encontra a são: o performer é um criador, e o performer é
sua maneira de trabalhar. Essa busca pessoal um trabalhador, e não deve ser explorado pelos
muda à medida que as pessoas mudam, e o tra- diretores, empresários, produtores ou pelo pú-
balho muda à medida que o grupo que faz o blico. As responsabilidades do performer inclu-
trabalho muda. O trabalho é íntimo, mas ele em não ser auto-indulgente nem preguiçoso,
não pode ser feito sozinho. Se ele for feito sozi- entregar-se à disciplina do trabalho e respeitar
nho, ele vira meditação, que tem o seu valor, o trabalho dos outros. Mais cedo ou mais tarde,
mas não para a performance. o trabalho afeta a sua vida pessoal, e não há es-
Assim como o indivíduo passa por ciclos paço no trabalho para drogas, nem para com-
no seu trabalho, o grupo também passa. Os portamentos patológicos, como histeria ou de-
exercícios são feitos em um espaço que permi- pressão. Até mesmo o tabaco e o álcool inter-
ta aos indivíduos verem e ouvirem uns aos ferem no trabalho, comprometendo o corpo e
outros. Mesmo se um performe escolher tra- diminuindo a energia do performer. O perfor-
balhar absolutamente sozinho, as energias dos mer precisa aprender a trabalhar para si, a
outros o alimentam. Às vezes os performers tra- exteriorizar os seus sentimentos, mesmo quan-
balham em dupla, às vezes o grupo inteiro do assustado ou envergonhado. Caso contrário,
trabalha junto. Existem muitas técnicas para se ele internalizar tudo, ele cria ressentimentos
esse tipo de trabalho em grupo. Períodos de com seus colegas e com seu trabalho. Tudo isso
contato se alternam com períodos de solitude. para dizer que a performance é o trabalho de
Fazer os exercícios em um espaço onde outras uma vida.
pessoas também estão trabalhando – e onde esse Processo – um termo muito usado no te-
trabalho gera movimentos e sons – estabelece, atro ambiental – significa “chegar lá”, e não
de maneira sutil mas profunda, uma sintonia “chegar lá”, a ênfase está no fazer, não naquilo
entre essas pessoas. que é feito. As diferenças entre o processo e o
Existem exercícios associados a cada eta- produto, porém, não são absolutas. Para o es-
pa do trabalho: pectador, a peça é um produto. A tarefa do tea-
tro ambiental é tornar o processo parte de cada
1. Entrar em contato consigo mesmo: performance. A grande maioria do trabalho di-
exercícios psico-físicos de associação, exercícios ário do performer é processo. Se ele soubesse
verbo-físicos básicos de respiração, movimento para onde estava indo e como chegar lá, seria
e ressonância. impossível inventar e descobrir soluções em res-
posta aos obstáculos, conhecidos ou desconhe-

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cidos. Um performer profundamente envolvi- parceiros. Processo = participar concretamente


do com o processo se satisfaz com qualquer pon- no aqui e agora. Processo = revelar associações e
to do seu trabalho, desde que ele esteja em con- segui-las aonde elas levarem, até o final6. Pro-
tato com aquele ponto. O ultimato do seu cesso não significa improvisação ou caos, em-
trabalho é idêntico a sua imediaticidade: estar bora tanto a improvisação quanto o caos podem
vivo no aqui e agora, expressar-se aqui e agora. ser úteis. O processo, entretanto, é um dialogo
Isso é um risco enorme! Aqueles que amam o entre a espontaneidade e a disciplina. A disci-
produto valorizam as coisas e transformam to- plina sem o processo vira mecânica, o processo
dos os seres vivos em coisas. Aqueles que amam sem a disciplina se torna impossível.
o processo valorizam a vida e transformam to- Todo o trabalho da performance começa
das as coisas em seres vivos. Escolha um. e termina no corpo. Quando eu falo de espíri-
Muitos atores rejeitam o processo, achan- to, ou mente, ou sentimento, ou psiquê, eu es-
do que o treinamento só serve para prepará-los tou me referindo a dimensões do corpo. O cor-
para a apresentação. “Assim que eu terminar po é um organismo de adaptabilidade infinita.
isso”, eles dizem para si mesmos, “eu posso apre- Um joelho pode pensar, um dedo pode rir, uma
sentar e apresentar”. Mas o treinamento cresce barriga chorar, um cérebro caminhar, e as náde-
em importância à medida que a pessoa amadu- gas podem ouvir. Todas as funções sensórias,
rece. Não só há mais trabalho para se aprender, intelectuais e emocionais do corpo podem ser
mas há hábitos que precisam ser desaprendidos, executadas por diversos órgãos. Mudanças de
bloqueios ocultos que aparecem subitamente. humor se refletem em mudanças de química,
O corpo oferece mais resistência à medida que pressão sangüínea, respiração, pulsação, dilata-
a pessoa envelhece, e é preciso encarar, enten- ção vascular, suor, e assim por diante, e muitas
der e lidar com cada resistência. O sucesso tam- das chamadas atividades involuntárias podem
bém é uma ameaça para o performer. A tendên- ser treinadas e controladas conscientemente.
cia é congelar aquilo que o público aplaude. Isso não é uma novidade para os yogis, cujos
Sem o sucesso, o performer fica amargo, com o sistemas se baseiam no conhecimento de que o
sucesso, ele cultiva mentiras. Muitos jovens ato- corpo é um ser integral e interconectado. Além
res se congelam em uma tentativa patética de disso, o corpo não termina na pele. A idéia que
preservar seu talento. Eles acabam aprendendo, as pessoas geram “auras” de vários tipos é verda-
tarde demais, que para curtir a criatividade, é de. Além disso, a energia de um grupo é maior
preciso vivê-la. do que, e diferente de, a energia de um indiví-
Processo = aquele estado em que o per- duo, ou do que a soma das energias dos indiví-
former não se preocupa com sua imagem ou seu duos que constituem o grupo.
som, em que ele não tem nem consciência do Para o propósito do treinamento, eu iso-
efeito do seu trabalho. Ele se entrega completa- lei quatro sistemas do corpo: as vísceras, a colu-
mente para o trabalho atual, rende-se aos im- na, as extremidades, e o rosto7. Eu cheguei a essa
pulsos, procura o contato apenas com os seus divisão depois de observar muitos performers

6 Com exceção da violência física, que eu proíbo não por questões estéticas, mas por questões éticas e
práticas, não existe nada que não deva ser feito a priori no palco. Quanto à violência física, eu acho que
os combates rituais têm uma vantagem estética sobre ela. Nesse sentido, eu sou profundamente influen-
ciado pela etologia. Eu acho que as raízes do comportamento humano na performance podem ser
traçadas às cerimônias animais, especialmente às danças de acasalamento e à substituição da agressão
por gestos de submissão e triunfo. Veja On Aggression, de Konrad Lorenz.

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por centenas de horas. Eu via, de novo e de Mesmo quando está dormindo, o corpo não
novo, pessoas usando somente as mãos e o ros- desliga, apenas se internaliza, e há uma clara re-
to, ilustrando o texto de uma peça e reduzindo lação entre o sistema visceral e os sonhos.
a arte da interpretação a uma espécie de arte de Entretanto, mesmo com toda essa ativi-
falar em público. Eu senti que a forma mais efi- dade, eu conheço muitas pessoas visceralmente
ciente de ajudar os atores a entrarem em conta- mortas. Os exercícios iniciais ajudam o perfor-
to com o seu corpo era ignorar inicialmente os mer a entrar em contato consigo mesmo, a des-
braços, as mãos, as pernas e os pés, forçando-os cobrir que ele tem vísceras, e que elas podem,
assim a usar o seu centro corporal. por mais complexas, teimosas, muitas vezes ca-
O sistema visceral é a fonte, a primeira prichosas, poderosas e responsivas, funcionar
casa da performance. As vísceras começam na como um salva-vidas que conecta a pessoa com
boca, nariz, orelhas, olhos, e seios paranasais, o seu centro8.
concentram-se na garganta, e levam aos pul-
mões e ao estômago; as vísceras incluem todos Esfíncteres. Fique em pé e de olhos fechados,
os órgãos da digestão, o coração, o fígado, o a mandíbula relaxada, joelhos dobrados ape-
baço e a bexiga, os esfíncteres anal e o urinário, nas o suficiente para manter uma postura ere-
e a genitália. Considerando a diversidade de suas ta. Contraia os lábios, formando um peque-
partes, as vísceras são surpreendentemente har- no círculo, relaxe. Repita. Depois contraia os
mônicas. Existem cinco ritmos. Para as mulhe- esfíncteres anal e urinário, relaxe. Repita.
res, são sete: as ligeiras e constantes batidas do Depois todos os esfíncteres em uníssono; em
coração; o poderoso movimento de inspiração sequência e variando o ritmo; em diferentes
e expiração; as lentas mas profundas contrações combinações. Repita deitado de costas, de-
do sistema digestivo; a contração e descontração pois de barriga para baixo.
do sistema excretor; os clímaces do orgasmo se- Tocar o Som. Deite de costas, olhos fechados,
xual; o ciclo menstrual; a gestação, nascimento, relaxado. Inspire até encher os pulmões.
e amamentação dos infantes. O conjunto des- As mãos deitadas sobre a parte inferior da
ses ritmos constitui o diálogo primitivo das barriga, para poder sentir o diafragma traba-
vísceras com o mundo exterior. A comida é se- lhando. Deixe o ar sair, sem fazer nenhum
parada em nutrientes e excrementos; a respira- esforço para fazer ou conter o som. Geral-
ção é separada no oxigênio que é aproveitado e mente acontece um leve toque no som, um
no dióxido de carbono que é emitido; os flui- “aaaaaaaaah”.
dos seminais e o sangue menstrual são expeli- Ofegar. A mesma posição de Tocar o som. Ins-
dos; de vez em quando, um bebê é gerado e tra- pire e expire, primeiro devagar e depois mais
zido ao mundo precoce e neotênico. O ritmo rápido, pela boca. O objetivo é realmente ofe-
de cada sistema visceral tem seu próprio reló- gar, e não encher o pulmão e soltar o ar em
gio, desde o coração, que bate mais de uma vez pequenas explosões. A verdadeira respiração
por segundo, até os noves meses da gestação. ofegante é um tipo específico de respira-

7 É claro que o corpo pode ser “dividido” de muitas formas, dependendo do objetivo da divisão. A hatha
yoga, por exemplo, divide o corpo em parte superior (cabeça e pescoço), parte média (tronco, braços,
mãos, e genitália) e parte inferior (nádegas, reto, pernas e pés).
8 A idéia de centro, tanto para os gregos quanto para os hindus, está localizada no umbigo, ou na região
entre o umbigo e as genitais, e a perspectiva budista é a mesma. O bebê, antes de nascer, está conectado
com a sua mão diretamente pelas vísceras, e esse fato da biologia encontra paralelos na mitologia.

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ção que pode ser mantido indefinidamente. O diretor deve ter o cuidado de não se
Depois de ofegar sem som, ofegue com intrometer na busca de cada pessoa pelo seu
som, um som diferente para cada respiração. centro. Algumas pessoas têm o centro alto, ou-
Ofegue subindo e descendo a escala. Ofegue tras o centro baixo, e algumas têm o centro fora
uma música. do centro. O diretor não deve impor a sua pró-
Engolir. Fique em pé e relaxado, mandíbula pria percepção sobre onde está o centro do per-
relaxada mas de boca fechada. Junte saliva e former. Se a pessoa já não têm uma consciência
depois engula, devagar, sentido ela descer pela forte do seu centro, ela tende a se impressionar
garganta e chegar no estômago. Encha a boca muito fácil, e um diretor ansioso pode condu-
de banana, mastigue por um minuto, engula zir muito mal um performer que tem dificulda-
devagar. Trace a rota da banana com a mão, des. No máximo, o diretor se relaciona com o
na garganta e no peito. performer com as mãos, tocando-o, ajudando-
o a sentir o formato exterior do seu corpo.
Tocar o Som e Ofegar são exercícios vocais Independente de onde o centro profun-
básicos. A voz faz parte do sistema visceral. Es- do de um indivíduo se localiza, existem pontos
ses exercícios ensinam o performer a reconhe- de contato na nuca, na base da coluna, no um-
cer suas funções viscerais: respirar, salivar, en- bigo, no ânus e nas genitais, que são os termi-
golir, produzir gases, arrotar, o ronco do nais, os lugares por onde a energia do corpo en-
estômago, soltar gases, liberar excreções. A pri- tra e sai. Esses pontos são áreas de contato na
meira lição é criar a consciência de que algo sem- superfície do corpo correspondentes a centros
pre está acontecendo no corpo. Depois, o perfor- de energia em lugares internos do corpo. Os
mer aprende que as vísceras começam na região exercícios que envolvem o centro do corpo co-
do rosto e terminam na região do ânus e da meçam com a conscientização dessas áreas de
genitália. Aos poucos, o trabalho cria conexões contato na superfície. Aos poucos, o performer
entre essas duas extremidades, e começa a se começa a seguir as linhas de energia que par-
concentrar no centro. O performer sente que a tem dessas áreas de contato e chegam nas fon-
sua respiração é uma maneira de trazer o mun- tes profundas do interior do corpo. Esses exer-
do externo para o centro do seu corpo, e que a cícios incluem reagir ao meio através do ritmo
produção vocal – sons, palavras, músicas – é da respiração e dizer palavras sem entonação,
uma maneira de alertar o exterior sobre o que completamente a partir de variações nos ritmos
acontece por dentro. As primeiras vocalizações da respiração e das contrações e descontrações
são variações sobre os sons viscerais: ruídos, so- dos órgãos internos, especialmente dos múscu-
luços, respiração arfante, contrações, vômito, los do estômago.
cuspe; depois risadas, choros, gritos; e finalmen- Esses exercícios fazem parte da segunda
te tons, escalas, músicas. etapa do trabalho. Porém, antes de aprendê-los
No começo, muitos performers não têm detalhadamente, o performer aprende vários
a consciência do centro dos seus corpos, eles não exercícios psico-físicos básicos de associação:
conseguem localizar os seus centros. Essas pes- rotações de cabeça, quadril e corpo, todos exer-
soas precisam aprender a ficar paradas, a se ou- cícios viscerais.
virem de dentro para fora, a não resistir aos im-
pulsos que se originam nas vísceras. Eu costumo Rotação da cabeça9. Em pé e relaxado. Locali-
pedir aos principiantes que relaxem o rosto, es- ze a articulação da base da nuca. Ela geral-
queçam suas mãos, e expressem o que estiverem mente fica saltada quando você inclina leve-
sentindo através de variações na intensidade e mente sua cabeça para a frente. Comece a gi-
no ritmo de sua respiração. rar a cabeça, em qualquer direção, tendo

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como eixo do a articulação da base da nuca. tensão dificulta muito o movimento, e pode
Não empurre a cabeça, deixe-a cair em todas resultar em sérios problemas musculares.
as direções, uma de cada vez. A cabeça cai Muitas vezes, esse exercício provoca tontura
para a frente, um leve esforço faz ela se mover e náusea no início. É inevitável que algumas
para um dos lados até que ela caia para aque- pessoas percam o equilíbrio e caiam. Algu-
le lado, depois um leve esforço a move para mas chegam a vomitar, especialmente se co-
trás até que ela caia para trás, depois um leve meram a menos de duas horas antes do en-
esforço a move para o outro lado, e então para saio. Além disso, as repentinas e contínuas
a frente de novo, e assim por diante. A cabe- mudanças de atitude corporal geram muita
ça gira sem nenhum ritmo pré-estabelecido. ansiedade. Quando o corpo está completa-
O ritmo se adapta naturalmente às associa- mente para trás, ele fica aberto, vulnerável a
ções, e por isso ele muda, às vezes com ser atacado no rosto, pescoço, garganta, pei-
frequência. A respiração é profunda e varia to, barriga e genitália. Depois dessa posição
de acordo com a situação. Os olhos geralmen- indefesa vem imediatamente uma posição
te ficam fechados. extremamente protegida, a cabeça entre as
Rotação do quadril. Em pé e relaxado. Deva- pernas, barriga e genitália guardadas pelas
gar, dobre o corpo para a frente, até que a costas e pelas nádegas.
cabeça fique entre as pernas. Balance vigoro- Se a rotação do corpo for feita regularmente,
samente. O instrutor dá tapas no osso do mantendo uma respiração correta, a tontura,
quadril, na base da coluna. Levante lentamen- a náusea e a perda de equilíbrio tendem a
te até ficar em pé, relaxado. Então comece passar. Inspire quando a cabeça estiver joga-
gentilmente um movimento circular da pélvis, da para trás, e expire quando ela cair para a
a partir do osso do quadril, algo como o re- frente. Não tente controlar a profundidade
bolado de uma stripper. A pelve gira como se da respiração, nem o ritmo geral do exercício.
tivesse indo em direção a alguma coisa na fren-
te dela, e depois alguma coisa atrás. Não gire Esse exercícios são difíceis, mas não são
as coxas e os joelhos, nem o resto do tronco. ginástica. Não existe uma maneira perfeita de
A pelve deve ser isolada. Muitas pessoas gi- fazê-los, nenhum modelo ideal que o iniciante
ram a pelve com força demais, bloqueando imita. A descrição dos movimentos é uma mol-
assim outros ritmos e associações. dura, um guia que pode ser descartado assim
Rotação do corpo. Em pé e relaxado. Devagar, que o performer encontra o seu próprio cami-
dobre o corpo para a frente, como no come- nho. Mesmo assim, no começo, o instrutor pre-
ço da rotação do quadril. A partir dessa posi- cisa ajudar os iniciantes a encontrarem os seus
ção, gire o corpo primeiro para um lado, de- próprios bloqueios. Ele deve conferir se o per-
pois para trás, depois para o outro lado, e former faz todos os movimentos básicos, se o
depois para a frente. O torso inteiro gira a seu corpo está relaxado, se a sua respiração está
partir da articulação na base da coluna. desimpedida e profunda. Os pontos de tensão
Mãos e ombros relaxados. A cabeça deve ir mais comuns ficam no pescoço, nos ombros,
inteiramente para trás e ficar pendurada. A nas coxas, nos esfíncteres anal e genital e na gar-

9 A rotação da cabeça é um exercício visceral porque lida, não com a superfície do rosto ou da cabeça,
mas com os a parte interna do rosto. O movimento da cabeça, começando da nuca, estimula o sistema
digestivo e provoca reações no resto das vísceras.

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ganta. Para que a rotação da cabeça possa acon- go ao meu corpo, quando faço o exercício sem
tecer, o performer precisa deixar a cabeça cair ficar me julgando, sem me comparar com um
completamente para trás, completamente para ideal, se eu estiver trabalhando em um lugar se-
o lado, completamente para a frente. Durante a guro, um espaço onde eu não tenho medo de
rotação do corpo, a cabeça precisa ir completa- ser interrompido, de alguém ficar me espiando,
mente para trás, os ombros e os braços preci- de outras pessoas me julgarem, então eu come-
sam estar relaxados, e a parte superior do corpo ço a “pensar por mim mesmo”. Para mim, é algo
precisa girar a partir da articulação na base da como sonhar acordado, como fantasiar sobre
coluna. Os iniciantes têm uma tendência a se coisas que eu quero ou das quais tenho medo,
segurar, a manter a cabeça erguida para poder ou como falar sozinho, ou como alucinações
olhar para frente. A respiração deles tende a ser hipnagógicas10, ou às vezes até mesmo realida-
superficial e forçada, e eles tendem a ficar sérios des idênticas às dos sonhos. Às vezes minhas as-
e em silêncio. Uma impressão comum, gerada sociações são estados de exaltação, uma consci-
pela tontura, pelas quedas e pelo vômito, é que ência corporal elevada, algumas vezes um
o corpo vai se arrebentar e que coisas horríveis sentimento de êxtase ou de separação do meu
vão sair dele: merda, vômito, urina, comida próprio corpo, como se eu estivesse flutuando,
meio-digerida, gases, as próprias vísceras, enfim, ou como uma projeção astral, ou levitando.
todos os segredos internos. Esse medo é uma Outras vezes elas são uma consciência aguda de
fisicalização de fatores psíquicos. Na verdade, os uma parte do meu corpo, como quando eu tive
exercícios de associação realmente ajudam o a sensação de que estava rindo com a lombar
performer a expor suas vísceras. enquanto estava curvado para trás. Muitas ve-
Eu fico falando sobre “associações” sem zes eu penso sobre o próprio exercício, sobre
explicar o que eu quero dizer. É importante não quando ele termina, sobre o que as pessoas es-
definir o que é uma associação antes do perfor- tão pensando de mim, ou sobre como ele pode
mer experimentar por si. A melhor regra para a me ajudar, e assim por diante. Eu considero es-
primeira semana de trabalho é ficar em silêncio ses pensamentos bloqueios.
e ensinar a mecânica do exercício. Se algum per- Exercícios de associação são uma manei-
former insistir, dizendo, “eu não vou continuar ra de se entregar ao corpo. Eles nos ajudam a
até que você me explique!”, fique em silêncio. superar na prática a idéia de que a mente e o
Deixe que ele decida. É ele que escolhe ir ou corpo são entidades distintas, sempre lutando
ficar. Ele precisa aprender desde o começo que um contra o outro. Nos exercícios de associa-
esse trabalho é dele, ele o faz para si, e aceita as ção, a mente não “controla” o corpo, e nem o
responsabilidades do trabalho. corpo “conduz” a mente. Os exercícios levam a
Uma associação é algo particular, e que- um “raciocínio corporal integral”, em que os
rer definir o que isso significa para o outro é sentimentos fluem para, e provêm de, todas as
presunção. Tudo o que eu posso fazer é com- partes do corpo, sem distinção entre “corpo” e
partilhar o que o termo quer dizer para mim. “mente”. As associações podem levar desde al-
Quando eu deixo a minha cabeça ir e me entre- guns segundos até uma hora ou mais. É impos-

10 De acordo com Freud, alucinações hipnagógicas são “imagens, muitas vezes extremamente vívidas e
muito rápidas, que costumam aparecer – de maneira bastante frequente para algumas pessoas – duran-
te o período em que a pessoa está adormecendo; e que também podem persistir por algum tempo
depois que a pessoa abre os olhos.” Freud, Sigmund. 1961 [1900]. The Interpretation of Dreams, tr.
James Strachey. New York: John Wiley & Sons.

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sível forçar as associações, assim como é impos- e aleatória permite ao performer continuar no
sível forçar os sonhos. Mas existem técnicas para fluxo. Quanto ao aumento do torpor, não exis-
não interromper as associações até que elas che- te nenhuma maneira de lutar contra isso e ao
guem ao seu fim. Durante uma associação há mesmo tempo manter o fluxo. Por outro lado,
escolhas: uma imagem ou um sentimento (ou se o performer permitir que o torpor tome con-
o que quer que seja a associação) se “apresenta”, ta dele, às vezes até mesmo adormecendo, no-
depois outro, depois outro. Geralmente, em al- vas associações podem acontecer.
gum momento, duas associações acontecem si- Uma associação acaba quando ela acaba.
multaneamente, ou um cansaço parece acabar No meu caso, de repente surge um branco fi-
com a associação. Nesse momento, o performer nal, ou eu volto subitamente ao local de ensaio.
pode escolher em qual associação ele quer se Às vezes eu percebo que foi um final falso, que
concentrar, ou se ele quer deixar o torpor au- eu cortei as coisas prematuramente. Não há ne-
mentar até que a associação suma. O importan- nhuma maneira de saber com certeza, e você
te é que o performer decida instantaneamente não precisa se preocupar com isso. Ir até o fim
qual associação ele quer seguir. Diante de uma significa ir até o máximo que você consegue na-
escolha, o performer tem a opção de parar as quele momento11.
associações e considerar suas alternativas. Se ele No começo, o exercício provoca dor
escolhe aleatoriamente e imediatamente, po- muscular, exaustão física, perda de ar, e tontu-
rém, as associações tendem a continuar, geral- ra. É preciso aguentar esses obstáculos. Entre-
mente em alguma direção inesperada. Eu cos- tanto, dores agudas, como cãibras, pontadas ou
tumava pensar que o performer deveria escolher tensão nos tendões e ligamentos, são sinais de
a associação mais “difícil” – aquela que lhe dá que o performer deve moderar, para não acabar
mais medo – mas essa escolha implicaria um se machucando. Se o performer se esforça de-
julgamento, afastando o performer da imedia- mais e acaba se machucando, pode ser um sinal
ticidade do momento. Uma decisão instantânea do seu medo de entrar em contato demais con-

11 A técnica de associação aleatória de estados interiores é a principal ferramenta da psicanálise. A diferen-


ça é que, na análise, o corpo geralmente fica imóvel, e a expressão é verbal. Essa técnica também é
semelhante ao “fluxo de consciência” e à “escrita automática”, instrumentos populares no começo do
século vinte. Todos esses procedimentos estão relacionadas com a idéia de que, por trás dos fenômenos
aparentes, existe uma consciência humana mais primitiva e mais autêntica (isto é, menos condicionada
pelas circunstâncias sociais). Essa é uma versão moderna de crenças muito antigas e que existem no
mundo inteiro, de que as consciências são múltiplas e que existem muitas realidades paralelas e simul-
tâneas. Arieti relaciona o raciocínio dos esquizofrênicos com os sonhos e com a livre associação. Segun-
do ele, essa maneira de pensar têm uma lógica especial, que ele chama de “paleológica”, ou lógica
antiga. A paleológica não é causal, não é aristotélica. Ela funciona pela associação de predicados e não
de sujeitos, e ela é completamente concreta. A paleológica cria linguagens particulares que precisam ser
interpretadas para serem entendidas. A poesia é uma forma de linguagem semi-particular, uma forma
artística que tem apenas o suficiente de linguagem pública para continuar acessível. As associações de
um performer não são reveladas para o público, elas formam o alicerce da linguagem pública da perfor-
mance. Os workshops e ensaios são necessários para que o performer possa se conscientizar das suas
associações, e para encontrar correlatos objetivos que possam ligar essas associações particulares à lin-
guagem pública da performance. Eu agradeço a Ralph Ortiz por me mostrar o trabalho de Arieti.
Arieti, Silvano. 1948. “Autistic Thought”. In J.N.&M. Disease, 288-303; Id., 1948. “Special Logic of
Schizophrenic and Other Types of Autistic Thought”. Psychiatry, Vol. 11, November 1948, 325-338.

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sigo mesmo. O exagero que leva ao ferimento é Outros exercícios do sistema visceral in-
pseudo-heroísmo. Feitos da maneira correta, os cluem: Ingerir, que relaciona engolir-vomitar
exercícios ajudam cada pessoa a encontrar um com o que uma pessoa vê, conectando os ritmos
equilíbrio entre as exigências da disciplina do da respiração com os ritmos digestivos; exer-
trabalho e os limites do seu próprio corpo. cícios de cheirar e experimentar, como aquele
Os próprios exercícios funcionam como um pa- com o cesto de frutas descrito no Capítulo 1;
radigma para o teatro ambiental, onde a per- exercícios de escuta, nos quais os performers tra-
formance é uma combinação da encenação duzem o que ouvem no seu próprio corpo em
partiturada com os sentimentos e associações movimentos viscerais e/ou vocalizações.
pessoais de cada performer. Muitos exercícios viscerais lidam com o
Eu descrevi apenas três exercícios do sis- ato de comer, de colocar alguma coisa dentro
tema visceral, entre dezenas. As rotações de ca- do corpo e transformá-la em outra. Em julho
beça, quadril e corpo são exercícios da primeira de 1971, eu conduzi um exercício com os alu-
etapa. Existem exercícios viscerais para a segun- nos do workshop na Universidade de Rhode
da etapa, e os exercícios da primeira etapa po- Island que levou alguns desses temas até uma
dem se transformar em exercícios da segunda se conclusão. (Improvisações desse tipo fazem par-
feitos com um parceiro. Por exemplo, a rotação te da quarta etapa do trabalho.)
do corpo pode ser feita com uma pessoa rodan-
do e outra ajoelhada por trás, com a mão no Um círculo com um centro bem definido.
osso do quadril, na base da coluna. O performer Todo mundo em volta do círculo, ninguém
ajoelhado sintoniza sua respiração com a pessoa dentro.
que está fazendo a rotação. O contato entre os Alguém vai até o centro e se oferece para ser a
dois performers aumenta, até incluir uma cons- Refeição. A pessoa fecha os olhos, manten-
telação de signos corporais: a respiração, o to- do-os fechados até o final. Se em algum mo-
que, o suor, o cheiro, os sons. Cada pessoa cria mento a Refeição abrir os olhos e ver o(s)
suas próprias associações, mas elas ocorrem no seu(s) Devorador(es), ela não pode mais par-
contexto de uma consciência expandida, no es- ticipar e deve sair do exercício. Essa regra é
paço compartilhado entre os dois performers. necessária, porque é importante que a Refei-
Stephen Borst, que já faz esses exercícios ção se entregue completamente às suas fanta-
há vários anos, diz: sias em relação aos Devoradores, e os
Devoradores devem gozar da liberdade abso-
É importante para mim poder experimentar luta que a anonimidade traz.
a mortalidade do meu corpo. Todo dia eu A Refeição espera os Devoradores se aproxi-
começo de novo os exercícios de associação, marem, quantos quiserem. Eles não fazem
e tenho que vencer a gravidade mais uma vez. nenhum barulho, a não ser o necessário para
Não existe nenhuma solução final para esse comer. Eles podem comer qualquer parte do
problema. Eu rio e choro muito ao mesmo corpo da Refeição, mas sem provocar dor
tempo, por causa da incrível ironia desse aguda ou machucar. Eles podem mordiscar,
desejo de ser infinito, de voar, junto com a chupar, lamber, morder, mas não podem fe-
mortalidade absoluta do corpo. No final rir, tirar sangue, ou tratar a Refeição com vi-
das contas, é uma grande experiência, rir olência. Se os Devoradores sentirem essa vio-
e chorar e experimentar essas duas coisas lência, eles devem expressá-la na voracidade
simultaneamente. com que mastigam, engolem, e respiram. Os
Devoradores podem despir a Refeição e po-

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dem mudar ela de posição. A Refeição deve em inúmeras variações e em diversas culturas.
ficar passiva, ela pertence aos Devoradores. A tragédia pode ser lida como uma distribuição
Enquanto está sendo devorada, a Refeição canibal dos poderes especiais de um líder, do seu
deixa sair sons que surgirem naturalmente, e mana. Não é de se admirar que Aristóteles cha-
mantém um ritmo solto da respiração. mou os efeitos da tragédia de catárticos, isto é,
As testemunhas na periferia do círculo ficam que atuam diretamente sobre as vísceras. Eu sin-
em silêncio, estabelecendo uma relação com to que a fonte dos temas teatrais não é única, e
a ação apenas com o olhar e o ritmo da respi- nem principalmente, a literatura, mas sim as
ração. Elas podem mudar de posição para experiências do corpo.
observar, ou para não ver. Elas podem entrar Para cada um dos sistemas do corpo – as
no círculo e se tornar Devoradores quando vísceras, a coluna, as extremidades e o rosto –
quiserem. existem exercícios de associação, exercícios em
Os Devoradores podem deixar a Refeição dupla, exercícios de confiança, de confrontação
quando quiserem. Assim que a Refeição ficar e improvisações. Mas o trabalho não é seco,
sozinha, ou disser “chega” (o que ela pode como essa catalogação pode fazer parecer. A
fazer a qualquer momento), o diretor espera maioria dos exercícios acontece apenas uma vez.
todo mundo voltar para o círculo antes de Quando o diretor compreende o trabalho, ele
deixar a Refeição abrir os olhos. A Refeição aprende a criar exercícios na hora, dando liber-
então olha para todas as pessoas do círculo, dade para os seus próprios impulsos e associa-
antes de se juntar a elas. ções, e assim fortalecendo assim a sua capacida-
Uma nova Refeição se oferece. O exercício de de contribuição. O diretor arrisca o fracasso
continua até que acabem as Refeições e/ou junto com os performers, e ele desenvolve as
Devoradores. suas habilidades lentamente. Não é preciso ter-
minar todos os exercícios ou dar a volta com-
Esse é um dos muitos exercícios sobre ca- pleta no círculo, para que todo mundo possa
nibalismo. Alguns desses trabalhos acabaram participar. O trabalho começa, alguns perfor-
entrando nas próprias performances, os banque- mers participam, e o trabalho é deixado de lado.
tes canibais de Makbeth, por exemplo. Em Eu já retomei exercícios depois de mais de um
1970, exercícios baseados no ato de comer, ou- ano incompletos. Às vezes um exercício é tão
vir os sons do corpo, vocalizá-los, e usar essas útil que ele é usado de novo e de novo. O tra-
vocalizações como base para uma dança, chega- balho é sistemático, mas não é linear.
ram a um padrão definido e recorrente para o Eu poderia descrever muitas coisas que
Grupo: identificar, engordar, matar, canibalizar acontecem em um ano de treinamento, o que
e ressuscitar o líder de um grupo, ou o seu bode encheria muitos livros, mas não traria o leitor
expiatório. Philip Slater identificou o mesmo mais para perto da essência do trabalho. O tra-
padrão no seu texto “Training Groups”: “O que balho se constrói em torno dos performers. Tan-
torna a idéia do ataque [ao líder] extremamente to os problemas quanto os saltos de desenvolvi-
interessante é a variedade de temas ficcionais mento são repentinos, e é preciso lidar com eles
associados a ele: temas de assassinato em grupo, imediatamente. O trabalho cresce quando o di-
de canibalismo, de orgia.”12 Eu tenho um inte- retor está em um período fértil e criativo, cresce
resse especial nesses temas, porque eles consti- quando o grupo consegue se sentir, e quando
tuem estruturas dramáticas básicas, encontradas relacionamentos de parceria substituem rela-

12 Slater, Philip E. 1966. Microcosm. New York: John Wiley & Sons, p. 24.

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cionamentos paternalistas. Isso não está em or- Nota: Poucas pessoas conseguem fazer esses
dem cronológica. exercícios até o final no começo. Não se ma-
Eu começo a trabalhar com o sistema da chuque. Faça o que conseguir. Com o passar
coluna ao mesmo tempo do que com o sistema do tempo, você vai melhorar. Os exercícios
visceral. Esses dois sistemas são tão básicos para desenvolvem a auto-confiança se forem fei-
o desenvolvimento do performer, e tão intima- tos com calma, mas com persistência. Deixar
mente conectados, que nenhum pode ser mais o seu corpo fazer é tão importante quanto
importante do que o outro. (O trabalho com as conseguir fazer.
extremidades e com o rosto fica para mais tar- Flexão para trás ajoelhado. Fique ajoelhado,
de.) O sistema da coluna começa na articulação alinhando as coxas, nádegas e costas. Então,
na base do pescoço, o eixo da rotação da cabe- lentamente, vértebra por vértebra a partir da
ça, e vai até o osso do quadril na base da colu- base da nuca, incline o corpo para a frente
na, o eixo da rotação do quadril e do corpo. É até que a sua cabeça toque no chão. Mante-
nessas articulações que o sistema da coluna se nha a cabeça, os ombros e os braços relaxa-
encontra com o visceral. dos. Respire com a boca levemente aberta.
A coluna suporta o centro do corpo e o Então, devagar, vértebra por vértebra, levan-
contém, como um grande cesto. A coluna não te o corpo a partir da articulação na base da
é rígida, ela é flexível, como uma árvore forte coluna. Continue o movimento, passando da
que cede ao vento. Mais performers sofrem de posição inicial, deixando a cabeça cair para
dores crônicas nas costas do que de qualquer trás, e se incline lentamente para trás, até que
outro problema. As costas deles são duras, tra- ela toque no chão atrás de você. Mantenha as
vadas, rígidas, há distensões musculares, espas- costas arqueadas, e os ombros e braços rela-
mos, puxões, e dores difusas mas constantes na xados. Quando a cabeça estiver no chão, gire-
base da coluna. Às vezes essa dor é provocada a lentamente o máximo que você conseguir
pela falta de força nos músculos abdominais, para um lado, e depois para o outro. Depois
mas muitas dores nas costas são psicogênicas. levante, mantendo o arco das costas. A ener-
A região da base da coluna e sua musculatura gia se concentra na lombar, como se você es-
adjacente é um imã para todo tipo de ansieda- tivesse sendo empurrado lentamente. Use os
de e de temores primais. Os exercícios da colu- músculos das costas e do abdômen, não das
na tocam nesses medos, e ajudam o performer coxas e nem dos ombros. A idéia é como se o
a se conscientizar deles e a enfrentá-los, a ser seu corpo flutuasse para cima.
obrigado a lidar com eles. Às vezes é simples- Repita várias vezes.
mente uma questão de fazer brotar uma certa Flexão para trás em pé. Esse é o mesmo exer-
associação, e os músculos das costas relaxam e o cício, exceto pelo fato de que o performer
corpo se abre. Geralmente não é tão simples. começa de pé. Deixe o centro do corpo cair
Existem três tipos de exercícios de asso- até que a cabeça esteja no meio das pernas.
ciação para a coluna: flexões, exercícios de equi- Depois erga o seu corpo, vértebra por vérte-
líbrio e exercícios de separação. bra, começando na base da coluna, até ficar
ereto. Deixe a cabeça cair para trás, e lenta-
Flexões. Mecanicamente, esses exercícios são mente se incline para trás, mantendo os om-
simples, o difícil é fazê-los com calma, bros e os braços relaxados, até que as mãos
sem interromper as associações. A respiração toquem no chão. Depois se apóie sobre as
deve ser livre, e o performer deve emitir o mãos, mantendo o arco das costas, forman-
som que quiser. do uma ponte completa. Depois levante,

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mantendo o arco das costas. O centro da ener- peito, na pelve, na coluna e nas pernas. A pes-
gia está na lombar. soa pode localizar e lidar com cada tensão en-
Repita várias vezes. quanto mantém o equilíbrio. De cabeça para
Nota: No começo é extremamente difícil fa- baixo, o corpo é como um jogo de blocos de
zer essas flexões até o final. Vá até onde você criança, cada um equilibrado no de baixo de
conseguir confortavelmente, desde que você uma maneira relativamente precária. A tarefa é
consiga voltar usando os músculos das costas fazer a pilha de blocos ficar mais alta, em uma
e do abdômen. Gradualmente, semana a se- ordem diferente, e depois mudá-los de lugar
mana, o performer consegue ir mais e mais sem derrubar a pilha.
para trás, até completar o movimento. Cada exercício provoca associações dife-
rentes para cada performer, mas eu tenho ob-
As flexões para trás ajoelhado e em pé são servado um certo padrão de associações duran-
dois exercícios muito bons para fazer em dupla. te a parada de cabeça. Quando um grupo inteiro
Entregue-se ao companheiro que faz mais for- fica de cabeça para baixo e começa a conversar,
ça. Especialmente na flexão ajoelhado para trás, eles parecem se transformar em crianças de cin-
o companheiro apóia a pessoa que está fazendo co a oito anos. O tom da voz fica mais agudo,
a flexão e a coloca cuidadosamente no chão. as risadas começam, as tensões se dissipam, e
Então, depois que o performer apóia a cabeça uma euforia especial toma conta do lugar.
no chão e a gira para os dois lados, o outro o Exercícios de separação ajudam o perfor-
levanta a alguns centímetros do chão, e balança mer a experimentar diferentes partes do corpo
o seu torso vigorosamente para cima e para bai- como unidades isoladas. Alguns exemplos par-
xo. O companheiro cuida para que a cabeça do ticularmente úteis incluem erguer o torso a par-
outro não bata no chão. As duas pessoas emi- tir da base da caixa torácica e girá-lo, primeiro
tem sons. Em uma variação da flexão para trás para a esquerda e depois para a direita; erguer o
em pé, o parceiro ajuda o seu colega a voltar da ombro, começando de uma posição baixa e re-
primeira posição à posição ereta, gentilmente laxada, para uma posição média, para uma po-
girando a sua cabeça com a mão, para verificar sição alta; girar o pescoço rapidamente do cen-
se os músculos do pescoço estão relaxados. tro bem para a esquerda ou bem para a direita;
Então, quando o performer estiver ereto, o seu girar o torso inteiro o máximo possível para a
companheiro literalmente deixa a sua cabeça esquerda e para a direita, mantendo os braços
cair para trás, apoiando-a gentilmente para na altura dos ombros e movendo a cabeça, ou
evitar uma torção muscular. Esses exercícios, na direção da rotação, ou na direção oposta.
que estão em algum lugar entre a segunda e a Eu quero enfatizar que esses são exercí-
terceira etapa, constroem confiança, e não de- cios de associação, e não ginástica. Nada é pior
vem ser feitos por duas pessoas que não confi- para o performer do que “exercícios de movi-
am uma na outra. Existem outros exercícios que mento” ou o “trabalho corporal” abstrato. Não
têm o objetivo de construir confiança e con- trate o seu corpo como uma coisa. O seu corpo
frontar a desconfiança. não é o seu “instrumento”, o seu corpo é você.
Os exercícios de equilíbrio são bem co- O terceiro sistema é o das extremidades:
nhecidos. Da yoga, há várias paradas de cabeça, ombros, braços, cotovelos, pulsos, mãos e de-
de ombros e posições de árvore. A tentação é dos; coxas e nádegas, pernas, joelhos, calcanha-
sempre fazer os exercícios de equilíbrio rapida- res, pés e dedos dos pés. Existem exercícios para
mente, para se exibir, mas na verdade eles são cada uma dessas partes. Alguns podem ser fei-
ótimos exercícios de meditação. Além disso, de tos junto com exercícios para outros sistemas do
cabeça para baixo é mais fácil sentir a separação corpo. Por exemplo, é possível fazer a rotação
entre as vértebras e as tensões nos ombros, no do quadril e uma torção da mão ao mesmo tem-

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po. Na verdade, os exercícios das extremidades tensionando e projetando os lábios, encolhen-


são, em parte, variações sobre os exercícios dos do o queixo, inchando as bochechas, etc. B o
sistemas visceral e da coluna. Os exercícios das auxilia, indicando em que partes do seu ros-
extremidades incluem torcer, balançar, soltar, to ele precisa trabalhar. Os dois performers
jogar, agarrar e separar. É importante que o per- usam as mãos para moldar o rosto de A.
former tenha a consciência da quantidade e Quando A chegar no seu limite, lentamente,
complexidade de trabalho criativo que uma passo a passo, ele relaxa o rosto, passa por
mão, um pé ou um dedo podem criar. Como as uma máscara normal, e continua até que o
pessoas são naturalmente muito expressivas com rosto esteja completamente esticado, cada
as mãos – as mãos e a fala estão intimamente parte o mais esticada possível: boca aberta,
ligadas – elas esquecem que é possível trabalhar bochechas esticadas, olhos arregalados, so-
com elas como meios de comunicação indepen- brancelhas erguidas, pescoço estendido. De
dentes e primárias, assim como na linguagem novo, B ajuda. Depois B faz o exercício com
dos surdos, ou no sistema Mudra do teatro in- a ajuda de A.
diano. Em algumas culturas, os pés são usados
para comunicar coisas quase tão complexas Os exercícios do rosto podem ser levados
quanto as mãos. para todo o corpo, que assume as qualidades das
Os exercícios do rosto começam com o máscaras faciais. Sons e movimentos acontecem
relaxamento total da máscara facial, e uma más- naturalmente, como consequência do processo
cara é exatamente o que o rosto é. Cedo na vida de fisicalização. Se o grupo inteiro fizer essas
as pessoas aprendem a “fazer uma cara”, e o re- máscaras exageradas, podem surgir improvisa-
pertório de expressões cresce praticamente até ções e confrontações extraordinárias.
o infinito. Cada pessoa tem um repertório ex- Dificilmente associações ou gestos desco-
tenso com variações ilimitadas, adaptando-se bertos durante os exercícios acabam sendo usa-
automaticamente à situação em que está. Para dos nas performances. O principal objetivo é
um estadunidense aparentemente comportado ajudar as pessoas a entrar em contato consigo
e de classe média, ser educado muitas vezes sig- mesmas, estabelecer relacionamentos com os
nifica controlar o rosto para que ele não de- outros, desenvolver consciência de grupo e re-
monstre nenhuma, ou pouca, expressão. Um lacionar estados interiores com estados exterio-
modelo de herói Norte-Americano é a “poker res. Os exercícios são uma maneira de aquecer
face”, a cara lisa que se faz no pôquer para es- o processo das associações para que o performer
conder qualquer sentimento. O adulto que qui- seja capaz de acessar os seus sentimentos duran-
ser rever sua maneira de usar o rosto tem que te a performance. Os exercícios ajudam o per-
descobrir os seus próprios clichês, tão inconfun- former a se familiarizar com as mudanças repen-
díveis quanto a letra de cada um. Para relaxar o tinas, e muitas vezes imprevisíveis, de humor e
rosto, é preciso soltar a mandíbula, a boca leve- de expressão, com flashes súbitos de alegria ou
mente aberta, sem fazer esforço para controlar de júbilo, e com a maneira majestosamente ca-
a saliva. Em muitos exercícios, o performer prichosa com que estados corporais podem evo-
mantém o rosto relaxado para encorajar a ex- car estados emotivos, e vice versa. Eu digo ca-
pressão do centro corporal. Outros, porém, tra- prichosa porque as mudanças ocorrem de
balham com a própria máscara facial. maneira súbita e inesperada, criando conexões
que são tão revigorantes quanto inusitadas. Co-
Puxar para dentro, esticar para fora. Dois nexões que não poderiam ser pensadas, imagens
performers sentam um de frente para o ou- que não poderiam ser inventadas, surgem e fi-
tro. A começa a fazer um focinho de cachor- cam. O performer se amplia e se aprofunda de
ro com seu rosto, fechando os olhos, uma maneira real nesse processo, a sua auto-

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consciência se expande. No final das contas, a aprender a confiar em si mesmo. O primeiro


partitura de uma performance funciona da mes- passo do desenvolvimento do performer é o
ma maneira que os exercícios: como um con- mais demorado, porque é muito difícil apren-
junto de circunstâncias capaz de evocar cone- der a confiar nos nossos próprios impulsos. O
xões perigosas e surpreendentes, não por segundo passo expande esse círculo de confian-
esforço, destreza ou planejamento, mas no flu- ça, incluindo pelo menos mais uma pessoa. Ao
xo natural dos eventos, como que por acidente. trabalhar com essa segunda etapa, é importante
Quanto maior a distância entre causa e efeito, que o performer não “interprete” ou “cumpra
melhor. No trabalho, o performer se concentra objetivos”, que não mascare o seu compromis-
apenas nas causas, em seguir o processo até o so pessoal de qualquer outra maneira, e que não
fim. A sua aparência, ou o seu som, não lhe di- facilite o seu próprio trabalho. Um exercício
zem respeito. Essas coisas são levadas em con- simples da segunda etapa, que eu costumo usar
sideração mais tarde, durante as conversas sobre no primeiro workshop, é o Círculo dos Nomes.
o trabalho, e elas são o domínio principal do
diretor, que mantém um olhar externo treinado Todo mundo senta em círculo. Uma pessoa
para enxergar os efeitos do trabalho, e a possibi- diz o nome de cada uma das outras, uma de
lidade desses efeitos serem usados na encenação. cada vez, dando o tempo suficiente de olhar
para cada pessoa com cuidado, reajustando o
*** ritmo da respiração e o comportamento cor-
poral. Se ela errar, pular alguém, ou trocar
Até agora eu descrevi principalmente um nome, a pessoa cujo nome foi esquecido,
exercícios da primeira etapa do desenvolvimen- pronunciado errado, distorcido ou trocado
to do performer. A segunda etapa, entrar em corrige o erro. Depois que uma pessoa termi-
contato consigo mesmo diante de outros, en- na de dizer o nome de todas as outras, outra
volve expressar o seu interior mesmo quando pessoa recomeça o processo.
alguém está olhando para você, observando
você. Isso é extremamente difícil, porque é pre- Às vezes as pessoas assumem, ou recebem,
ciso sustentar o contato interior da primeira eta- novos nomes, e eles acabam ficando. Nós en-
pa, os canais do corpo abertos, e ao mesmo tem- contramos os nomes para os personagens de
po ter consciência de outra pessoa. Essa outra Commune através do Círculo dos Nomes, e o pró-
pessoa também está sustentando o seu contato prio exercício acabou entrando na performance
interior diante de você. O relacionamento en- durante quase um ano. O Círculo dos Nomes é
tre essas duas pessoas não é um diálogo. Os um exercício que pode ser feito muitas vezes,
performers não estão tentando dizer algo para especialmente para relaxar as tensões e trazer as
o outro, cada um está apenas se expressando. pessoas de volta a uma consciência básica umas
Diálogo envolve dar e receber. Estar diante do das outras. Se a pessoa que está dizendo os no-
outro é apenas dar: é um treinamento para que mes esquece de dizer o seu próprio nome, al-
o performer aprenda a se expressar sem medo guém deve avisá-la: “Você esqueceu alguém”.
de ser julgado, nem por ele mesmo e nem pelo Um exercício relativamente mais compli-
outro. É uma questão de confiar em si mesmo e cado da segunda etapa se chama Vestir e Despir.
ser o que se é, aqui e agora, na frente de uma
outra pessoa. Cada um deixa uma peça de roupa no centro
Um performer precisa confiar nos seus do círculo e depois senta em volta. Uma pes-
companheiros, pelo menos no teatro. Se existe soa vai até o centro e começa a contar uma
essa confiança quase tudo se torna possível, mas história da sua vida. Enquanto fala, ela tira
antes de poder confiar nos outros, é preciso algumas peças de roupa, ou toda ela, e veste

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o que quiser da roupa que está no círculo. Depois de alguns segundos, as duas pessoas
Ela pode vestir a roupa de maneira convenci- começam a dizer palavras. Essas palavras
onal ou inusitada, usando uma camiseta como não são ditas para o outro, não é um diálogo.
calça, por exemplo. Elas são ditas diante do outro, de olhos aber-
O performer deve se concentrar em trocar de tos e olhando para o outro. As energias circu-
roupa, não na história que está contando, que lam de um para o outro, mas não na forma
acaba ficando truncada, confusa, incoerente. de diálogo.
Quando acabarem as roupas do círculo, ou
quando ninguém mais entrar para contar uma A rotação confrontante de quadril é o
história, essa fase do exercício termina. exercício verbo-físico fundamental. A presença
Depois disso, as pessoas vão até o dono das do outro estimula uma resposta, e um alimenta
roupas e as devolvem, tirando a roupa deva- o outro. Essas respostas se manifestam em pala-
gar e entregando a peça de volta ao seu dono. vras porque esse é o processo do exercício: dar
Todo mundo termina com a roupa que esta- uma forma verbal a impulsos físicos, permitir
va usando no começo. que o performer distorça o som das palavras,
sem perder a capacidade de dizê-las.
A maioria das pessoas tem dificuldade de Olhar vazio, afastar o olhar, fechar os
contar uma história, e ao mesmo tempo, esco- olhos, interromper a rotação, conversar ou sen-
lher, vestir e tirar a roupa. No entanto, quando tir raiva do diretor, conversar com o outro. Tudo
o performer se entrega à ação com as roupas, a isso são sinais de bloqueios. A paciência e a per-
sua história fica mais livre, mais expressiva, me- sistência são a melhor arma do diretor. Às vezes
nos programada. Ela assume o ritmo do conta- é inevitável que surja um confronto direto en-
dor. A roupa que o performer acaba usando tre um do participantes, ou os dois, e o diretor.
também reflete o seu humor, e frequentemente Nesse caso, o diretor não deve segurar o que ele
revela algo sobre o seu estado interior. estiver sentindo, independente do que seja.
Em Vestir e Despir, a função do diretor é Quando feita de verdade, a rotação confronte
lembrar o performer de que ele não pode parar de quadril libera tensões profundas, muitas ve-
de trocar de roupa enquanto estiver no centro, zes de origem sexual. O performer revela coi-
e que ele não pode parar de falar. O diretor in- sas, para ele mesmo e para os outros, das quais
siste que ele continue, mesmo que a sua histó- talvez nem ele mesmo tenha consciência. A ro-
ria não “faça sentido”, pois é frequentemente no tação confrontante de quadril é o primeiro exer-
que não faz sentido que as associações mais cício com palavras em que o performer desco-
poderosas acontecem. Além disso, quando a bre o que ele sente à medida que executa o
atenção do performer está concentrada em uma exercício. Ele opera no nível da des/coberta, e
tarefa simples, pensamentos mais profundos po- não da expressão.
dem surgir. Outro exercício verbo-físico é o Som
Nem o Círculo dos Nomes nem Vestir e Aberto.
Despir usam a linguagem no seu sentido mais
amplo, que inclui a música, ou usam partes do Um performer vai até o centro do círculo,
corpo em que respiração, vísceras e fala conver- deita de costas, olhos fechados. Outros vão
gem. A rotação confrontante de quadril faz as até ele, tocam nos seus pontos de tensão, con-
duas coisas. versam com ele, ajudando-o a relaxar e a sin-
tonizar a sua respiração com os seus senti-
Duas pessoas ficam frente a frente, a mais mentos. Então, o performer toca o som, que
ou menos um metro de distância. Cada pes- deve sair sem impedimentos. Se o som en-
soa começa a fazer a rotação do quadril. ganchar na garganta, ou em qualquer outro

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lugar, se o peito estiver tenso, se a respiração Outros exercícios verbo-físicos incluem


não estiver profunda, os outros informam o Cantar e Dançar e A canção do pé.
performer disso.
A cabeça do performer está inclinada para trás, Cantar e Dançar. Todo mundo deita de cos-
para que a passagem de ar da garganta até o tas. Uma pessoa levanta e começa a cantar
pulmão aconteça em um linha absolutamen- um verso de uma música bem conhecida.
te reta. Muitas vezes, enquanto continua a Quem conhece a música canta junto, mas
emitir sons, o performer é erguido e coloca- apenas um verso. Depois outra pessoa canta
do nas costas de uma ou duas pessoas, para um verso de uma outra música, e assim por
que a sua coluna fique relaxada e o seu corpo diante, deixando menos e menos tempo en-
fique arqueado para trás. Às vezes ele é ergui- tre os versos, até que surja um fluxo espontâ-
do e carregado, às vezes balançado um pou- neo de música sobre música, uma espécie de
co. Uma pessoa sempre fica perto do seu pes- siga-o-mestre em que a troca de mestres é
coço e da sua cabeça e os apóia, para que o muito rápida.
performer possa relaxar completamente. Para cada música, existem movimentos que
Outra fica perto da sua barriga e genitália. o proponente cria e os outros seguem.
As pessoas tocam, apertam, esfregam e sus- No final das contas, surge um fluxo de músi-
surram bastante. ca e dança espontâneo mas familiar.
Os sons que vêm do performer são muitas Canção do pé. Todo mundo deitado de cos-
vezes extremamente profundos, e podem ser tas. Uma pessoa levanta e toca as pessoas que
assustadores para alguém que nunca os ou- estão deitadas usando apenas o pé. Ela fala-
viu antes. Um repertório de sons aparece: canta enquanto toca as pessoas com o pé. As
choros, soluços, risadas, guinchos. Às vezes é palavras não são pensadas. As pessoas no chão
impossível dizer se a pessoa está rindo ou cho- emitem sons sem palavras. A pessoa em pé
rando com o abdômen. fica de olhos abertos, os outros de olhos fe-
A pessoa que faz o exercício geralmente passa chados.
por dois ou mais ciclos completos de sons Depois que todo mundo foi a pessoa em pé,
crescentes e decrescentes. O diretor deve ter todos levantam juntos, olhos fechados, e sen-
o cuidado de não cortar o exercício cedo de- tem uns aos outros usando somente o corpo
mais. O ritmo completo do exercício é: dei- e os pés, sem usar as mãos ou o rosto.
tar de costas e respirar – emitir sons suaves –
inclinar a cabeça para trás e emitir sons mais Cada um desses exercícios verbo-físicos
altos – ser erguido – ser carregado – emitir faz parte de uma roda verbo-física abrangente.
sons muito altos – ser colocado no chão – Cada tipo de som está conectado com todos os
soluçar/rir – respirar quieta e relaxadamente. outros sons, e cada um é uma função da respi-
Quando o performer estiver exausto, literal- ração/movimento, que é o eixo da roda.
mente vazio de sons, e for colocado no chão Faça cada performer completar a roda nos
pela última vez, o diretor pede que ele abra dois sentidos, sem pular nenhuma etapa.
os olhos e olhe para os outros, um de cada Um exercício interessante da segunda eta-
vez. Alguém se ajoelha perto da sua cabeça, pa que combina a fala e a ação se chama Locali-
para que ele não precise usar nenhum mús- zando uma relação no corpo. Esse exercício foi
culo, a não ser os olhos, para ver todo mun- criado em março de 1970, quando o grupo es-
do no círculo. Ele mantém o contato até que tava começando a lidar com o problema do “ra-
ele tenha observado todo mundo, um por um. ciocínio corporal”.
Sem pressa. Esse exercício pode chegar a le-
var meia hora para um único performer.

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Depois dos exercícios de associação, todo sentimentos identificados, não importa o quão
mundo se agacha. Um de cada vez, cada pes- banais, são a origem da verdadeira performan-
soa vai até alguém outro e diz alguma coisa. ce, por mais poética que ela seja. O principal
O diretor ajuda as pessoas a localizar em que bloqueio é o medo, medo de que algo pareça
lugar do seu corpo as palavras aparecem, ou a banal ou trivial, medo de parecer bobo, medo
que lugar as palavras se referem. da vergonha. Uma vez que o performer conse-
gue abandonar a máscara de alguém especial e
Cada vez, esse exercício acontece de um importante, a máscara da educação e do bom
jeito diferente. Em abril de 1970: gosto, e a máscara do “Eu não vou deixar nin-
guém descobrir quem eu sou”, ele está pronto a
M. para W.: Eu tenho problemas com a mi- experimentar os sentimentos da poesia sublime.
nha mortalidade. Y. B. Yeats escreve:
Diretor para M.: Como assim?
M.: Eu não sei explicar. [Pausa.] É alguma I must lie down where all the ladders start,
coisa com a morte, com o tempo. In the foul rag-and-bone shop of the heart.13
Diretor: Em que lugar do corpo você sente
isso?
M. Eu não sei exatamente. Eu me sinto alto, A terceira etapa do processo do performer
como se estivesse flutuando [Ele respira pro- é relacionar-se com os outros sem uma história
fundamente.] e sem uma estrutura formal elaborada. A tercei-
Diretor: Onde mais? ra etapa envolve confiar, relacionar-se, testemu-
M.: Nos meus joelhos. nhar e compartilhar.
Diretor: Deixe acumular lá, deixe o sentimen- Fazer amigos. Encontre alguém na sala de
to se concentrar lá. Lide com a sua mortali- ensaio e leve-o a algum lugar no qual vocês se
dade e com a morte a partir dos seus joelhos. sintam seguros. Joguem um jogo que seja di-
[M. lentamente desaba, a partir dos seus joe- vertido para os dois.
lhos, e cai duro no chão, terminando como uma Fazer amigos não é muito fácil, e a maio-
águia de asas abertas, pernas muito rígidas.] ria das vezes termina em uma confusão de papo
… furado, estranhamento e gente fingindo que está
S. para I.: Eu bloqueei você e eu não quero. se divertindo. Nós passamos nossas vidas fazen-
[Isso foi dito muito quieto, quase como se pe- do de conta que estamos gostando de uma situ-
dindo desculpas ou falando sozinho.] ação, compartilhando espaços com pessoas que
Diretor: Grite. [S. Grita.] Mais alto. [O dire- não conhecemos. A terceira etapa é um retorno
tor ajuda S. a encontrar uma posição curvado aos princípios do relacionamento.
para trás, para abrir a sua voz.] Agora, de novo Exercícios simples de movimentação po-
[S. grita nessa posição e faz contato.] dem ajudar as pessoas a se sintonizarem com os
L.: [Grita de volta, mas as suas palavras saem seus parceiros.
indistintas.] Eu também não quero!
No passo dele (por Cahterine Farinon-Smith).
Essas confrontações são banais, não têm Uma pessoa começa a caminhar ou se movi-
nada a ver com a grande poesia do drama. Mas mentar pelo espaço. Outra pessoa tenta en-

13 “Eu preciso me deitar onde começam todas as escadas / No imundo armazém de restos do coração.”
[Nota do Tradutor.]

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trar no passo. O objetivo não é fazer uma passam de um para o outro, ou o erguem do
imitação barata, mas realmente tentar entrar chão, etc.
no movimento do outro, entregar-se a ele. Voar. O grupo faz duas filas, uma de frente
Olhando para trás. Uma pessoa cruza de um para a outra, braços esticados, formando um
lado para outro do espaço. Uma outra pessoa trançado. Uma pessoa sobe em um lugar alto,
faz o caminho inverso. Os caminhos se cru- mais ou menos uns dois metros de altura, e
zam. Depois de passarem uma pela outra, elas pula nos braços das pessoas que estão espe-
param, viram, olham para trás, observam o rando.
outro e continuam os seus caminhos.
O Living Theater usou Voar na peça
Líder cego. Uma pessoa é vendada e trazida Mysteries, e o Performance Group em Com-
para o centro do grupo. Os outros a prote- mune. Muitos exercícios podem ser criados
gem, mas é o cego que conduz. Eles o cercam baseados no princípio de que o indivíduo preci-
e seguem o líder cego. O líder não sabe aon- sa do grupo, e que cada membro do grupo
de está indo, porque está cego. Os outros se- precisa um do outro. Se esse não for o caso, é
guem um líder cego, e são responsáveis por bom descobrir já no começo, para tomar as me-
sua segurança. didas necessárias.
Uma situação mais complicada é quando
Enxurrada. Todo mundo em pé contra uma o grupo alimenta sentimentos e fantasias sobre
parede. Uma pessoa, por impulso, vai em di- o seu nível de confiança. A hostilidade, a agres-
reção à outra parede ou a um objeto grande são, a mágoa, a traição e a raiva podem ser re-
na sala. Todo mundo segue, movimentando- sultados de dúvidas que as pessoas carregam em
se da mesma maneira que a primeira pessoa. relação à confiança. No entanto, a afetação ca-
(caminhando, correndo, engatinhando, etc.) muflada também é resultado de insegurança em
Todo mundo se junta, respira profundamen- relação à confiança. A auto-piedade, que geral-
te, relaxa e se espalha. Uma outra pessoa se mente é um sentimento composto, precisa ser
move por impulso, e assim por diante. dividida em suas partes, que são afetação, trai-
ção, medo e raiva.
Enxame. Um grupo sem líder se move, to-
dos juntos, na mesma velocidade e da mes- Rolamento. Um retângulo de tatames no chão,
ma maneira. mais ou menos dez por cinco metros. Uma
pessoa se apresenta e se deita em um dos la-
Esses exercícios simples colocam as pes- dos do retângulo. Ela fecha os olhos e relaxa.
soas em contato umas com as outras e com o Ela cobre a cabeça com as mãos, para não
grupo. Outros exercícios, como Confiança ou rolar por cima dela. Três ou quatro pessoas
Voar ajudam os performers a aprender os prin- vão até ela e começam a rolá-la. Eles a rolam
cípios básicos da confiança. até o final do retângulo, param, e depois ro-
lam-na de volta. Eles cuidam para que ela não
Confiança. O grupo forma um círculo peque- saia do tatame, não torça o corpo, não puxe
no, não mais do que um metro e meio de o cabelo, etc. A pessoa sendo rolada faz o som
diâmetro. Uma pessoa vai até o centro, fecha que quiser. Os roladores trabalham em silên-
os olhos, e começa a cair para um dos lados, cio. O exercício continua até que sobrem
mantendo o corpo rígido, para que ele caia menos de três roladores, ou até que a pessoa
como uma árvore que tomba. Os outros o sendo rolada diga “Pare”. Então, outra pes-
seguram e o devolvem à posição inicial, ou o soa se apresenta, e assim por diante.

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A primeira vez que eu fiz Rolamento foi ela agacha e diz “pronto”. Alguém outro le-
no Goddard College, em setembro de 1970. As vanta e começa.
pessoas tinham formado ressentimentos, e os Nota: o diretor precisa participar desse exer-
temperamentos estavam curtos. Houve algumas cício. Ninguém pode ficar de fora. As únicas
confrontações diretas entre membros do Gru- testemunhas são as que cada pessoa escolhe.
po, mas os sentimentos negativos persistiam.
Uma performer específica sentia que não podia Por causa da natureza do exercício, eu não
confiar nos outros. Eu pedi que ela escolhesse vou contar nada que eu tenha visto, a não ser
três pessoas nas quais ela menos confiasse, e três dizer que as ações são muitas vezes extremas e
nas quais ela mais confiasse. Então ela foi rola- reveladoras. Surgem revelações que, caso con-
da pelas três pessoas nas quais ela mais confia- trário, ficariam escondidas por meses, se não
va. No decorrer do exercício, eu substituí essas para sempre.
pessoas pelas três pessoas nas quais ela menos Testemunha levanta três regras que não
confiava. As substituições foram feitas de tal estão diretamente ligadas a uma etapa em parti-
maneira a não interromper o ritmo dos rola- cular do desenvolvimento de um performer,
mentos. Quando ela abriu os olhos no final do mas que são importantes para todas elas: (1)
exercício e viu que tinha sido conduzida pelas nada de represálias ou chantagem, (2) nada de
pessoas nas quais ela não confiava, ela chorou. julgamentos, (3) o diretor não participa dos
“Eu não sabia a diferença entre vocês e os ou- exercícios. Só o primeiro ponto é absoluto. O
tros”, ela disse. Muitas vezes, sentimentos de trabalho não evolui se as pessoas fofocarem so-
desconfiança são projeções das nossas próprias bre ele fora do espaço, usando o workshop
dúvidas e medos. como um lugar onde elas conseguem infor-
Uma parte do objetivo da terceira etapa é mações para serem usadas em outros contextos.
trazer outras pessoas para dentro do seu mun- O treinamento deve ser encarado por todos
do, não só fazer algo na frente delas, mas fazer como o relacionamento entre um advogado e
coisas em relação a elas, ou com elas. um cliente, ou um padre na confissão. Algumas
fofocas podem arruinar o trabalho de um mês.
Testemunha. Depois de terminar os exercíci- Por outro lado, quaisquer reações que
os de associação, todo mundo se agacha. Nin- ocorram no contexto do treinamento, por mais
guém enxerga mais do que um pequeno cír- pessoais que sejam, devem ser expressadas no
culo ao redor dos seus pés, já que todo mun- aqui e agora do workshop. Saber fazer isso é
do olha para baixo. É proibido espiar. muito delicado. Olhando de fora, pode ser que
Uma pessoa levanta, escolhe quantas pessoas haja pouca diferença entre apoiar e julgar, mas
ela quiser, desde uma até todo mundo, ar- na verdade há toda a diferença do mundo. Ge-
ranja-as de alguma maneira, e então faz algu- ralmente, as pessoas que estão assistindo a um
ma coisa na frente delas, ou com elas. A ação exercício não expressam suas reações de modo
pode estar diretamente relacionada às teste- visível ou audível. A maioria das reações podem
munhas, como abraçá-las, ou pode ser sim- ser traduzidas em variações nos ritmos da respi-
plesmente algo que a pessoa quer que a teste- ração, que geralmente não atrapalham quem
munha veja. A pessoa fazendo a ação pode está fazendo o exercício. Às vezes, no entanto,
usar som, se quiser. As testemunhas ficam em reações audíveis e visíveis são boas, já que elas
silêncio, a não ser que a pessoa peça que elas podem ajudar alguém que esteja lidando com
façam som. uma dificuldade. É preciso evitar, no entanto,
Quando a pessoa termina, e todas as teste- claques, ou outros tipos de auto-indulgência, ou
munhas tiverem voltado à posição agachada, reações de desdém, ou outras formas de julga-

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mento que possam diminuir os outros. Às ve- dou de um modelo autocrático e parental para
zes, mesmo no meio de um exercício, alguém um modelo de colaboração entre colegas, eu
sente que precisa interromper. Se esse for o caso, achei mais fácil e mais necessário participar do
ele deve fazê-lo de maneira clara e precisa. A trabalho. Mesmo assim, eu geralmente não par-
partir disso, a sua interrupção será ou aceita, tor- ticipo da mesma maneira que os outros. En-
nando-se parte do exercício, ou rejeitada. A quanto os performers fazem os exercícios de
maioria das vezes é preferível interromper o rit- associação, eu faço yoga. Eu participo dos exer-
mo natural da discussão e pedir que as pessoas cícios de treinamento que não precisam de mim
falem uma de cada vez. Assim, cada pessoa tem do lado de fora, e quando alguém outro dirige
a chance de ser levada em consideração ao má- o exercício, eu participo. Em outras palavras, em
ximo. Quando uma pessoa, ou uma equipe, ter- vez de ficar fora a não ser quando eu preciso
mina, a outra pode entrar no exercício, alimen- estar dentro, eu fico dentro exceto quando eu
tando diretamente o trabalho com os seus preciso ficar fora.
sentimentos. Essas questões são delicadas, e Se Testemunha é um exercício de revela-
nada do que eu disse aqui deve ser considerado ção pública, Barco é um exercício de comparti-
como um absoluto. lhar segredos.
Quanto à participação do diretor no tra-
balho, eu realmente acredito que ele deve en- Duas pessoas sentam no chão, uma de frente
trar apenas quando o exercício não pode ser fei- para outra, as pernas de uma por cima das
to sem ele, como é o caso de Testemunha, ou coxas da outra, e se seguram pelos pulsos, para
quando o exercício não precisa de sua atenção, que, quando uma deitar, a outra seja puxada
como um grupo experiente fazendo os exercíci- e obrigada a sentar. Elas começam a se balan-
os psico-físicos iniciais. Quando houver mais de çar, sem se ajudar, mas deixando cair o peso,
um diretor no grupo, então é claro que os dire- para que as duas se cansem rapidamente.
tores que não estão dirigindo devem participar. Quando as duas estiverem exaustas, elas caem
No entanto, eu não acho que diretores devam nos braços uma da outra. Uma pessoa conta
entrar no trabalho para sentir o exercício, ou uma história para outra, uma história verda-
para aprender mais sobre o processo do perfor- deira, secreta, uma espécie de confissão, uma
mer. Essas intenções, por mais admiráveis que história que a pessoa não gostaria de contar
sejam, deveriam ser satisfeitas pelo diretor no em voz alta. Quando A termina, os dois vol-
workshop de alguém outro, onde ele possa re- tam a fazer os movimentos até a exaustão.
almente ser um dos performers. O desejo do Então B conta a sua história.
diretor de temporariamente se desvestir de sua
autoridade e se tornar “apenas um performer” é Barco é um exercício de comunicação bá-
um sinal de arrogância. Os performers traba- sica para o palco, o diálogo em sua essência:
lham diariamente para desenvolver suas habili- uma pessoa contando algo para outra. É tam-
dades. O diretor pode ser mais útil como um bém um exercício de presença, confiança e en-
olhar externo, ou como alguém que intervém trega. Assim como todos os exercícios da tercei-
para ajudar. Ele não tem o direito de exercer o ra etapa, Barco é um exercício colaborativo.
papel de rei disfarçado de plebeu. Compartilhar também tem o seu lado
Tudo isso muda se o diretor não for um agressivo. Relacionar-se com o outro inclui fi-
rei. No Performance Group, por causa de uma car com raiva dele, confrontá-lo, enfrentá-lo.
mudança estrutural do grupo, eu não sou mais Existem muitas maneiras de confrontar. Um
o único líder. A liderança é coletiva, e o grupo pessoa pode “pedir um círculo” e convidar to-
colabora nas questões artísticas. Eu discuto esse dos os outros a testemunhar/participar da con-
processo no Capítulo 8. Quando o grupo mu- frontação. Ela pode ficar sozinha com o outro,

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marcar um encontro em um “lugar seguro”, O combate começa quando A e B terminam


onde duas ou mais pessoas podem resolver seus de dançar. Nada de pressa, nem de ataques
problemas. Ela pode transformar esses senti- surpresa. O combate envolve som, movimen-
mentos em som e movimento, ou injetar os seus to e a entrega total do corpo, mas nenhum
sentimentos diretamente no trabalho de outras contato físico. Cada vez que um combatente
formas. A única coisa que um performer não ataca, o outro recebe o “golpe” no seu corpo,
deve fazer é engolir os seus sentimentos, pois à distância. O atacado então responde. Nin-
sentimentos bloqueados consomem uma gran- guém erra, todo golpe fere. Ninguém se re-
de dose de energia. Se uma pessoa precisa se cupera. Uma vez machucada, a pessoa conti-
concentrar em se segurar, em bloquear o que nua com aquela ferida até o final do comba-
está sentindo, esses bloqueios interrompem sua te. Todo combate termina na morte de um
capacidade de resposta, não só na área suprimi- ou dos dois combatentes.
da, mas em muitas outras também. Por exemplo, A ataca com um soco, fazendo
Exercícios que estimulam ações agressivas, um movimento como um pistão de motor
assim como aqueles que estimulam áreas de afe- com o braço esquerdo. A continua a fazer esse
to, não precisam partir de um incidente especí- movimento até o fim da luta. B fica ferido no
fico. A estrutura formal do exercício é em si um estômago e se dobra. B deve continuar do-
estímulo que invoca imagens concretas, associ- brado até o final da luta. A partir dessa posi-
ações, memórias e impulsos. (Exercícios agres- ção, B dá um chute brutal que quebra o om-
sivos são tão fundamentados na presença e na a bro de A. O ombro de A cai para trás, o seu
confiança quanto exercícios afetuosos. Nos dois outro braço continua a fazer o movimento
casos, sentimentos verdadeiros fluem de estru- de pistão. A chuta B e quebra uma de suas
turas formais. O formato dessas estruturas, por pernas. Caído, B morde o tornozelo de A, e
sua vez, é criado pelos sentimentos que elas fa- A cai. E assim por diante, até a morte.
zem fluir. É como as margens de um rio que Por causa da totalidade e intensidade do com-
são constantemente transformadas pelas águas promisso envolvido, o combate é breve. Ge-
que o rio contêm.) Um dos exercícios mais ralmente, um minuto ou menos é o suficien-
agressivos é o Combate ritual, baseado no traba- te para matar alguém.
lho de Konrad Lorenz, especificamente na sua Se um dos adversários sobreviver, ele é o ven-
análise das danças de exibição e submissão e na cedor, e ele tem o direito de fazer uma dança
cerimônia de triunfo dos gansos14. da vitória sobre o corpo do perdedor. As pes-
soas que estavam torcendo pelo vencedor dan-
O grupo define uma zona de combate, geral- çam com ele. O grupo que escolheu o lado do
mente um círculo de mais ou menos seis perdedor vai pedir o seu corpo, fica de luto
metros de diâmetro. A vai até o centro e lan- sobre ele, e depois o ressuscita. Então as duas
ça um desafio na forma de uma dança. Se o danças se juntam em uma só celebração.
desafio não for aceito por ninguém, A se reti-
ra. Se ele for aceito, A e B dançam frente a A estrutura do Combate Ritual é clássica:
frente, uma provocação aberta. As pessoas do apresentação e exibição; dança preparatória para
lado de fora escolhem um lado e demonstram a guerra; combate; dança triunfal e lamento; res-
o seu apoio. surreição; celebração. O Combate Ritual com-

14 Lorenz. 1967. On Aggression. New York: Bantam Books, p. 125-132, 174-179.

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bina intensidade, formalidade e compromisso tamente, mas é claro que as roupas caem de
pessoal com uma ação, uma história, dança e acordo com as leis de Newton. Quando to-
celebração em grupo, de uma maneira que bei- das as roupas estiverem no chão, o diretor diz:
ra o dramático. Eu usei esse exercício muitas “Aqueles que ainda estão vestidos, juntem as
vezes como base para improvisações mais lon- roupas que foram jogadas e tragam-nas para
gas. As situações podem se tornar elaboradas, o centro do espaço.”
quase épicas, envolvendo guerras entre cidades,
a coroação de reis rivais, combates entre heróis Nota: tirar a roupa é uma “sugestão”, e
de culturas diferentes, danças de transe, escravi- não uma “exigência”. Quando eu vi que algu-
dão, e cerimônias triunfais elaboradas. mas pessoas não tinham tirado as suas roupas,
O Combate Ritual pertence à terceira ou eu usei isso na improvisação. Em uma situação
quarta etapa, dependendo do número de ele- genuinamente colaborativa, o diretor tem o di-
mentos dramáticos envolvidos. A maioria dos reito de pedir o que ele quiser, e o performer
exercícios da quarta etapa, relacionar-se com os tem o direito de rejeitar o que ele quiser. Assim,
outros dentro de uma história ou estrutura for- o trabalho dos dois mantém a qualidade de um
mal elaborada, são improvisações, cenas, ensaios, organismo vivo.
ensaios abertos, performances, trabalhos parti-
turizados, ou seja, o material de que o teatro é Assim que cada pessoa terminar de trazer as
feito. Na quarta etapa, o performer combina es- roupas para o centro, ela pára de dizer no-
pontaneidade, personificação e interação com mes. Ela congela na posição que estiver quan-
significados objetivos, iconografia e encenação. do as roupas que ela trouxe tocarem o chão.
Em Julho de 1971, eu improvisei Arranjos Quando todas as roupas estiverem no cen-
durante o workshop na Universidade de Rhode tro, as pessoas nos lugares altos param de fa-
Island. Mais tarde, eu adaptei uma versão de lar nomes.
Arranjos e chamei de Roupas (ver Capítulo 3). Então, em silêncio, em câmera lenta, as pes-
A descrição do diretor abaixo são as anotações soas nos lugares altos descem, pegam as suas
que eu fiz depois da improvisação do exercício. roupas, vestem-nas, e encontram um lugar
seguro para deitar e fechar os olhos.
Arranjos. Todo mundo deita no chão em si- As pessoas no centro descongelam, e olham
lêncio. As pessoas começam a se levantar, uma para as pessoas deitadas. O diretor diz: “Se
de cada vez, e se movem em câmera lenta até você sentir vontade de ficar junto de alguém
o lugar mais alto do espaço. Enquanto se que está deitado, tire sua roupa, vá até a pes-
movem, elas dizem nomes em voz baixa. soa, coloque as suas roupas ao lado dela, de
Os seus próprios nomes, nomes de outras pes- acordo com a posição que você gostaria de
soas no workshop, nomes de conhecidos, no- ficar, e volte para o seu lugar, dizendo o seu
mes míticos ou legendários, nomes de pesso- nome o tempo todo. Depois olhe para você,
as mortas – nomes. Elas falam em câmera len- deitado do lado da pessoa com quem você
ta, de modo que os nomes se transformam gostaria de deitar”.
em sons, indistintos, como se elas estivessem Depois disso, todo mundo volta para o lugar
falando embaixo da água. de onde veio, e o diretor diz: “Aqueles que
Quando cada pessoa chegar ao lugar mais alto estão deitados levantem e vejam se há roupas
que conseguir encontrar, ela congela. Assim do seu lado. Se houver, entregue-as para o
que todos estiverem congelados, o diretor diz: dono, movimentando-se em câmera lenta,
“Tirem suas roupas e deixem elas caírem no dizendo o nome da pessoa enquanto você se
chão em câmera lenta”. As pessoas tiram suas movimenta. Se não houver roupas do seu
roupas lentamente, esticam seus braços len- lado, simplesmente sente e observe”.

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Assim que todas as roupas tiverem sido de- duras apropriadas às explorações do próprio per-
volvidas e todo mundo estiver vestido, deixe former, quanto mais o diretor e os performers
que o silêncio dure bastante. estiverem verdadeiramente em sintonia um com
o outro, mais satisfatório o trabalho será.
Isso é um exemplo de uma improvisação Para o performer, não basta ser ele mes-
que se utiliza de temas recorrentes no meu tra- mo na performance, e nem basta ser apenas o
balho: tirar a roupa, trocar de roupa com al- representante do diretor. A criatividade parte do
guém, roupas servindo como imagens para indivíduo, mas ela alimenta uma estrutura que
pessoas, congelar, câmera lenta, uma pessoa ves- é mais ampla e coletiva. No teatro essa estrutu-
tida com suas roupas e uma pessoa separada das ra maior é chamada de ação. Durante o final da
suas roupas. Eu não sei exatamente com o que sua vida, Stanislavski se debruçou sobre o pro-
eu estou trabalhando em exercícios como Ar- blema da identificação das ações. A sua “lógica
ranjos, mas eu me envolvo profundamente com das ações físicas” tem duas partes: os detalhes
essa improvisação. da partitura e as conexões entre cada detalhe.
Em todas as etapas do trabalho, mas es- Cada detalhe é a satisfação de suas próprias ne-
pecialmente na quarta etapa, as fantasias, asso- cessidades, por exemplo, como um halfback no
ciações e vocabulário corporal do diretor se re- futebol americano, esticando o corpo para ficar
fletem no trabalho. É nesse ponto do trabalho na horizontal enquanto se esforça para pegar a
que os riscos de manipulação e de fingimento bola. O performer busca a mesma pureza de
são mais altos. O diretor não é um performer, detalhe da ação, uma identificação absoluta en-
ele não segue os seus impulsos da mesma ma- tre ato e objetivo. Mas é mais difícil conseguir
neira que um performer segue. Em vez disso, esse tipo de pureza no teatro, porque a tarefa
ele conduz e segue o seu impulso de usar os ou- física é complicada por considerações psicoló-
tros para concretizar suas fantasias. Na quarta gicas e de encenação.
etapa, o diretor muitas vezes não está ajudando O grande problema da quarta etapa é
o performer, mas sim colaborando com ele na construir uma partitura para cada performer
construção de um mundo imaginário e concre- que faça sentido para o público (as conexões ló-
to. Na troca tenra e extrema entre o diretor e o gicas da ação física), e ao mesmo tempo ofereça
performer, os dois descobrem muitas coisas um a liberdade para cada performer buscar cada
sobre o outro. O trabalho é perigoso. Às vezes ação específica (os detalhes da ação física). Nes-
os performers se sentem usados, até mesmo se estado ideal, no qual nunca se chega, cada
constrangidos, pelas sugestões do diretor. Às ve- performer está completamente comprometido
zes o diretor se sente reprimido, com raiva ou com cada momento da performance, e a unida-
ressentido, se ele tiver que censurar os seus im- de da performance faz sentido para o público.
pulsos. O trabalho é um esforço para encontrar O equivalente no futebol seria um jogo perfei-
o espaço no qual os impulsos do diretor e os to para um estádio lotado de fanáticos. A teoria,
impulsos do performer podem convergir e dia- portanto, pode estar correta, mas a prática é
logar livremente um com o outro. Isso aconte- impossível. Ou a peça faz sentido, mas falta con-
ce necessariamente em uma parte pequena do vicção na performance, ou o compromisso do
trabalho. Esse tipo de trabalho requer confian- performer é total, mas o público não faz idéia
ça mútua. A maioria do tempo, os performers do que está acontecendo.
operam a partir dos seus próprios impulsos, e o A melhor técnica que eu conheço para
diretor observa. Em uma improvisação como chegar a uma partitura baseada na lógica das
Arranjos, porém, o diretor trabalha de uma ma- ações físicas é mudar o foco de perguntas que
neira profunda com o seu semi-consciente. são geralmente feitas intelectualmente para que
Quanto mais as sugestões do diretor forem mol- elas possam ser feitas a outras partes do corpo.

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Por exemplo, em Commune, quando a Clemen- ações da peça. Nós tentamos muitos exercícios
tine ataca a Lizzie com o braço, mão, e dedos, diferentes, mas nada funcionava. Nós sabíamos
enterrando os dedos na barriga dela durante o quais eram as ações, mas não conseguíamos
clímax da cena do assassinato de Sharon Tate, a conectá-las com o corpo, ou conectar uma com
pergunta para a performer não é “Por que eu a outra. A poesia dos grandes solilóquios pare-
apunhalo a Lizzie?”, mas sim “Como eu apunha- cia estranha. O Peter Brook assistiu a perfor-
lo a Lizzie?” A pergunta como é feita para o bra- mance e sugeriu um exercício: “Faça os atores
ço, mão e dedos de Clementine, para seu abdô- dizerem suas falas o mais rápido possível, eles
men e ombros, para seu rosto, seus dentes e sua devem recitar a peça inteira em meia hora.
língua. Se cada detalhe da ação estiver no seu Assim, a ação que existe por trás da psicologia e
devido lugar, se as conexões entre os detalhes da poesia das palavras será forçada a aparecer.”
forem fortes e lógicas, então a ação será tão in- Nós tentamos o exercício. Ele não resolveu to-
teira que qualquer resposta para a pergunta “por dos os problemas, mas foi útil. Forçados a aban-
quê” está certa. (Ou, para colocar de outra for- donar truques e caracterizações superficiais, sem
ma, saber “como” torna saber “por quê” desne- tempo de pensar na beleza da linguagem, os
cessário.) Na verdade, a resposta para “por quê” performers sentiram através das palavras, e che-
muda de performance para performance, de- garam na ação. (Sentir através é o equivalente
pendendo das circunstâncias imediatas daquela corporal a enxergar através, significa perceber
noite. Esse gesto de mudar a resposta para “por uma ação por trás de algo que era antes uma
quê” dentro do contexto de uma série estabele- barreira opaca e mortal. Em muitas produções
cida de ações é o que eu quero dizer com “o per- de Shakespeare, a poesia do mestre acaba sendo
former é livre dentro de uma partitura”. É exa- justamente esse tipo de barreira.) Diante de uma
tamente o que o Grotowski diz: tarefa impiedosa – dar as falas tão rápido que
era impossível pensar sobre o que estavam di-
A partitura do ator é formada pelos elemen- zendo – coisas começaram a acontecer: gritos,
tos do contato humano: “dar e receber”. Pe- risadas em lugares inesperados, sussurros fero-
gue outra pessoa, confronte-a com o seu ser, zes, e as ações se tornaram visíveis da mesma
suas experiências e pensamentos, e reaja. Nes- maneira que uma paisagem emerge de uma ne-
ses encontros humanos um tanto quanto ín- blina que se esvai. O ensaio começou com as
timos, sempre existe um elemento de “dar e pessoas sentadas em um grande círculo, mas
receber”. O processo é repetido, mas sempre logo os performers estavam em pé e se movi-
hic et nunc [aqui e agora], isto é, nunca é exa- mentando. Relações surgiram, como se vindas
tamente igual.15 do fundo de um mar de palavras. Ações lógi-
cas e fortes, que definiam o fluxo de cenas in-
Aqui e agora. A tensão, o confronto, o teiras, apagaram as anteriores, que eram no fi-
contato, a troca – entre o performer e o texto; nal das contas interpretações muito individua-
entre o performer e as suas ações; entre o lizadas do texto.
performer e seus companheiros; entre o perfor- Infelizmente, o Performance Group não
mer e o público; entre um espectador e os ou- conseguiu levar o exercício a cabo. Problemas
tros espectadores. terríveis estavam abalando as fundações do Gru-
Quando estávamos trabalhando em po. Makbeth nunca atingiu a urgência, a força,
Makbeth, nós não conseguíamos encontrar as a clareza e a beleza que teve naquele ensaio.

15 Grotowski, op. Cit., p. 212.

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Mesmo assim, eu uso o exercício do Brook até Qualquer trabalho dramático impregnado
hoje quando me deparo com esse tipo de pro- pela qualidade da verdadeira teatralidade pode
blema, em que eu não consigo enxergar a flo- ser submetido à esquematização total, até o
resta por causa das árvores, ou quando as coisas ponto de temporariamente remover o diálo-
estão atoladas no barro dos detalhes, ou quan- go que embeleza o esqueleto do roteiro. Feito
do o significado forma uma casca dura em tor- dessa maneira, esquemática e mimeticamente,
no do texto. uma peça verdadeiramente teatral pode mo-
Em 1969 e 1970, o Grupo trabalhou ver o espectador, simplesmente pelo fato de
constantemente com a idéia de que os sentimen- o roteiro ser construído com elementos tra-
tos devem fluir livremente de uma partitura dicionais e verdadeiramente teatrais.16
estabelecida de ações físicas. Essa idéia foi posta à
prova severamente durante a primavera de Se o diretor e os performers não tiverem
1971, quando o Grupo desenvolveu uma nova paciência, o trabalho de encontrar as ações de
versão de Commune. Originalmente, Commune uma peça fracassa. Encontrar uma partitura de
contava com nove performers, um diretor assis- ações leva centenas, talvez milhares de horas, e
tente e eu, essa foram as pessoas que fizeram o a maioria desse tempo é dedicada a soluções que
trabalho diário. Nós fomos assistidos por Paul serão descartadas no fim. Descobrir a lógica das
Epstein e Jerry Rojo, que trabalharam conosco ações, e testar implacavelmente a encenação
em algumas ocasiões. Na primavera de 1971, contra essa lógica, não é algo automático, fácil
nós estávamos tentando encontrar maneiras de nem natural. O temperamento das pessoas é
nos livrar de alguns relacionamentos que eram curto, e o trabalho é exaustivo e repetitivo. Mui-
baseados em personagens que já não estavam tos ensaios continuam por horas e terminam
mais na peça, ou em performers que já não es- sem nenhum ganho mensurável. A boa vonta-
tavam mais no Grupo. Commune teve que ser de da companhia é posta à prova.
refeita com seis performers. Uma tarde, eu pedi No final das contas, eu não tenho nem
aos performers que fizessem a peça inteira em certeza de que toda a mudança que leva a mais
silêncio, executando todas as ações, mas evitan- clareza ajuda. Eu acredito que as coisas podem
do cuidadosamente substituir os diálogos com ficar claras demais, fáceis e óbvias demais. A
gestos, como acenos de cabeça para dizer sim. melhor arte é aquela que incorpora irrelevân-
Eu queria testar se as ações tinham clareza, coe- cias, lapsos de lógica, tensões irresolvíveis. In-
rência e inteireza. Sempre que uma ação não es- corporar os erros não significa eliminá-los.
tava clara, ou estava incompleta, o ensaio corri- Franz Kafka: “Leopardos invadem o templo e
do parava, e nós trabalhávamos nos detalhes. bebem até o fim o conteúdo dos jarros sacri-
Muitas ações se revelaram superficiais, ficiais; isso acontece de novo e de novo; final-
outras não eram claras. Durante as semanas que mente, a ação pode ser prevista, e se torna parte
se seguiram, muita gordura foi cortada de da cerimônia.”
Commune, uma operação muito dolorosa, mas Partindo de todo esse trabalho, cada per-
pela primeira vez uma história clara apareceu no former começa a encontrar o seu papel. Um
cerne de Commune, e essa história recebeu cor- papel é uma entidade teatral, não um ser psico-
po com o ritmo cênico. Esse trabalho confir- lógico. Grandes erros são provocados pelo fato
mou uma opinião de Meyerhold: de performers e diretores pensarem nos perso-

16 Meyerhold, op. Cit, [1914], p. 150-151.

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nagens como se eles fossem pessoas, e não dra- Essa maneira de trabalhar é diferente do
matis personae – máscaras de ação dramática. teatro ortodoxo. No teatro ortodoxo, o ator
Um papel se conforma à lógica do teatro, não à quer “entrar” no personagem, e o objetivo dos
lógica de nenhum outro sistema de vida. Pen- ensaios é fornecer instrumentos para o ator “se
sar em um papel como uma pessoa é como fa- perder” no seu papel. Técnicas como a memó-
zer um piquenique numa paisagem pintada. ria emotiva ajudam o ator a encontrar no seu
O material da lógica teatral é fazer, mos- próprio passado experiências análogas às do per-
trar, incorporar, cantar, dançar e interpretar. Esses sonagem que ele “representa”, para que ele possa
são os recursos que um performer usa quando sentir o que o personagem deve ter sentido. Em re-
está preparando um papel. A única “psicologia” sumo, o personagem é tratado como uma pes-
que há no papel é a psicologia do performer, do soa, e o trabalho do ator se resume a se trans-
seu próprio ser. As experiências contingentes do formar naquela pessoa. O teatro ambiental
performer confrontam os elementos transcen- elimina a idéia de que “há duas pessoas”. Ao
dentes do papel partiturizado. No entanto, não contrário, há o papel e a pessoa do performer, e
é uma simples confrontação entre duas entida- tanto o papel quanto o performer são claramen-
des auto-contidas. A partitura é criada pelo per- te visíveis para o espectador. Os sentimentos da
former, a partir do performer. Ele é o seu pró- peça são os sentimentos do performer estimulados
prio material, ele não tem a proteção de um pelas ações do papel no momento da performance.
outro meio. O teatro não é uma arte que se di- O ator ortodoxo desaparece dentro do seu
ferencia dos seus criadores quando completa. papel. O performer do teatro ambiental estabe-
Não existe nenhuma maneira de mostrar a per- lece uma relação perceptível com o papel. O que
formance sem mostrar o performer. O que o o público experimenta não é nem o performer
público experimenta na performance são os inu- nem o papel, mas a relação dos dois. Essa rela-
meráveis e profundos pontos de contato e ção é imediata, ela existe apenas no aqui e agora
interpenetração entre performer e performan- da performance. O performer não tenta masca-
ce. A única coisa que eu posso fazer é mostrar rar suas dificuldades, porque uma grande parte
uma lista extremamente geral desses pontos: do que interessa na performance é como ele lida
com o papel. O performer e o papel estão aber-
Performer Performance tos um ao outro, o performer usa o seu papel
Pessoa Papel “como se fosse o bisturi de um cirurgião, para
Ser História, texto, ação se dissecar.”18 O contrário também é verdade:
Imediato Atemporal A maneira como um performer lida com um
Contínuo Intermitente papel revela coisas sobre o performer.
Contingente Transcendente A maioria das performances no teatro
Aqui, agora Sem tempo ou lugar ambiental não atinge a pureza do modelo nú-
Atual Reatualização17 mero 2. Elementos da atuação ortodoxa perma-
Inesperado Conhecido necem. Mas eu acredito que é um modelo pos-
Experiência Metáfora ou analogia sível. É só uma questão de treinar performers,
Pela última vez De novo e de novo diretores e público para encarar o teatro, não

17 Para uma discussão dos conceitos de “atual” e “reatualização”, ver Eliade, Mircea. 1965. Rites and Symbols
of Initiation, tr. Willard R. Trask. New York: Harper & Row; e Schechner, Richard. 1970. “Actual: A
Look into Performance Theory.” In The Rarer Action, eds. Alan Cheuse and Richard Koffler. New
Brunswick: Rutgers University Press, p. 97-138. (Também em Theatre Quarterly, Vol. 1, No. 2, 49-66.)
18 Grotowski, op. cit., p. 37.

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como uma reflexão ou reprodução da realida- o consciente através dos sonhos, das fantasias e
de, uma segunda realidade, mas como uma es- das associações, o não verbal está sempre em
pécie de realidade primária em si mesmo, e de- comunicação com o verbal, através dos “uhhs”
pois despertar o interesse das pessoas para essa e “ohhs” que acompanham a fala, dos sons da
realidade da performance. respiração, dos sons do corpo, como a digestão,
No começo do capítulo eu descrevi os os assovios no ouvido, o som de engolir, e ou-
exercícios verbo-físicos. Eu quero retomar o as- tros sons que pessoas educadas aprendem a ig-
sunto do treinamento vocal. O trabalho com a norar e suprimir, como gases, soluços, risadas,
voz é intrínseco a cada passo do treinamento. murmúrios e guinchos súbitos. O trabalho com
Enquanto fazem os exercícios de associação, os as associações ajuda o performer a se relacionar
performers são encorajados a emitir o som que com esses sons.
quiserem. Esses sons não devem ser forçados, Quando o processo de liberação da voz
mas sim uma função do trabalho físico e de as- acontece, quando ela não é mais escrava da gra-
sociações. Alguém que não estivesse acostuma- mática, do decoro e da poesia literária, ela é ca-
do com os exercícios iniciais do Performance paz de criar linguagem tanto quanto de usá-la.
Group e ouvisse a primeira hora de um work- Jerome Rothenberg, no prefácio denso e extre-
shop, provavelmente acharia que as pessoas es- mamente rico para o seu extraordinário livro,
tavam loucas, sentindo muita dor, histéricas, à Technicians of the Sacred, coloca a questão nos
beira de um transe ou de um orgasmo. Todo seguintes termos:
som que pode ser imaginado é feito, desde risa-
das até gritos, soluços, respirações, murmúrios, Os poemas são carregados pela voz e são can-
gorgolejos, músicas, berros, trava-línguas, esca- tados ou recitados em situações específicas.
las etc. Nessas circunstâncias, diz a resposta fácil, o
O corpo molda a voz, controla sua inten- “poema” seria simplesmente a letra-da-músi-
sidade, volume, altura, ritmo, duração, variação ca. Mas um pouco depois surge a pergunta:
e timbre. Nos exercícios verbo-físicos, o perfor- quais são as palavras, e onde elas começam e
mer não pensa sobre o que diz. Ele não usa a terminam? A tradução, na sua forma impres-
sua voz para dizer o que ele sabe, ele usa a voz sa, pode mostrar apenas o elemento “signifi-
para descobrir o que ele está dizendo. Usar a voz cativo”, geralmente não mais do que uma sim-
não precisa ser a expressão de uma outra coisa, ples “linha” isolada; assim
usar a voz é em si mesmo um ato essencial. As- Uma lasca de pedra que é branca (Khoisan)
sim, novos sons, novas músicas e uma nova lin- Sêmen branco como a névoa (Australiano)
guagem viram possibilidades. O diálogo não Minhas-horas-de-brilho (Ojíbuas: uma palavra)
está limitado à linguagem verbal, ou às manei- Mas na prática essa única “linha” provavel-
ras convencionais de se usar a linguagem ver- mente será repetida à exaustão. (Será que ela
bal. Às vezes, simplesmente cantar uma música continua sendo “única” nesse caso?) Às vezes
enquanto se faz um exercício intenso como a ela é alterada foneticamente e as palavras
rotação do corpo revela novos sentimentos, no- são distorcidas das suas formas “normais”.
vas maneiras de cantar. Às vezes os performers Vocábulos sem um significado fixo podem
“conversam” uns com os outros através da res- ser intercalados. Todos esses dispositivos cri-
piração e da dança, uma forma não verbal, uma am uma distância maior e maior entre o re-
linguagem sem som. O não verbal é a contra- síduo “significativo” da tradução e aquilo-que-
partida sonora do inconsciente, é um sistema realmente-estava-lá. Nós encontramos um
de relações linguísticas ainda não moldado à fala “poema” diferente dependendo de onde o
ou à música convencionais. Assim como o in- movimento está, e podemos começar a nos
consciente está em constante comunicação com perguntar: Existe alguma coisa por trás desse

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trabalho que é o “poema”, ou será que tudo é mers, no ambiente da Garagem. (Ao contrário
o poema? do resto da produção, Epstein compôs a músi-
ca depois que o Grupo voltou da Iugoslávia.)
Rothenberg responde sua própria questão: A peça de Epstein, Concert for TPG, é também
uma colaboração.20
A raiz animal-corporal da poesia “primitiva”: Epstein escreve sobre Makbeth:
reconhecer uma base “física” para o poema
no corpo do homem – ou como um ato con- A seleção do texto, baseado nos critérios do
junto do corpo e da mente, da respiração e/ conteúdo fonético e do significado, foi uma
ou do espírito; em muitos casos também a parte significativa do trabalho de composi-
manipulação direta e aberta do imaginário ção da música para Makbeth. A composição
sexual, e (nos “eventos”) das atividades sexu- do texto da música, no final das contas, aca-
ais como fatores chaves na criação do sagra- bou sendo um processo de encontrar relações
do; o poeta como xamã, ou o xamã primitivo entre pedaços do texto e o contexto da ação
como poeta e vidente através do controle dos cênica. A procissão funerária de Duncan se
meios já citados: uma situação “visionária” transforma na marcha da coroação de Mak-
aberta anterior a toda a criação do sistema beth. A transição é feita com a música, à me-
(“sacerdócio”) no qual o homem cria através dida que os cantos funerais são substituídos
dos sonhos (imagens) e palavras (música), por pequenas fanfarras, e os temas dos frag-
“que a Razão pode ter idéias sobre as quais mentos de texto mudam de purificação e sono
construir” (W. Blake).19 para dever, honra, e a coroa. ...
Enquanto Makbeth assassina Duncan, os
Empregar esses conceitos não é tão difícil Poderes Negros interpretam uma cena de be-
quanto parece. Paul Epstein, ao criar a música bedeira, paralela em sua forma rítmica geral.
para Makbeth, relacionou-se com o som topogra- À medida que Makbeth lida com o punhal e
ficamente, como formas em vez de ruídos. Por gradualmente se encaminha para a ação, os
exemplo, aqui está o texto de Epstein para a leitu- sons da bebedeira ficam languidamente se-
ra de Lady Makbeth da famosa carta de Makbeth. dutores. Fragmentos do texto ressoam de uma
Essa é a instrução de Epstein para os parte do texto para a outra, e as frases sinuo-
performers: “A notação gráfica sugere um trata- sas de discurso modulado relacionam a bebe-
mento intensificado das palavras chaves. A no- deira ao desejo de Makbeth pela coroa. Os
tação é tanto uma transcrição/interpretação clímaces das duas cenas acontecem ao mes-
aproximada de coisas que surgiram no ensaio, mo tempo, e o som dos Poderes Negros di-
quanto uma partitura para ser reinterpretada minui até virar frases sussurradas, as palavras
pelo performer.” A música de Makbeth foi cria- escolhidas tanto pela sua qualidade sibilante
da em colaboração entre Epstein e os perfor- quanto pelo seu sentido.21

19 Rothenberg, Jerome, ed. 1968. Technicians of the Sacred. Garden City: Doubleday, p. xxi-xxiv.
20 A segunda parte de Concert, “Intersections 7”, saiu impressa em Scripts 2, Vol. 1, No. 2 (Dezembro de
1971), p. 62-70. Ali, Epstein detalha o uso do espaço, a notação especial desenvolvida para Concert, e o
processo dos ensaios.
21 No seu ensaio em duas partes, “Music and Theatre”, Epstein descreve sua estética e seus procedimen-
tos. Ver Performance (Vol. 1, Nos. 2 e 4, 1972). Epstein e eu trabalhamos juntos desde a fundação do
New Orleans Group, em 1965.

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Makbeth não é uma ópera, mas uma ten- no nível visual (e, por esse motivo, especial-
tativa de trazer de volta para o teatro ocidental mente na América do Sul, eles são associa-
as complexidades, possibilidades, alcances e sig- dos, mental e fisicamente, com as máscaras).23
nificados viscerais que o som tem nos teatros
asiáticos e “primitivos”, onde não existe nenhu- Lévi-Strauss estabelece vários pares opos-
ma divisão rígida entre música, dança e teatro. tos de transformação:
De certa maneira, o trabalho com a voz
transcende todas as quatro etapas do desenvol- contínuo intermitente
vimento do performer. O trabalho vocal é ao falado cantado/entoado
mesmo tempo o mais sofisticado e o mais primi- profano sagrado
tivo elemento do treinamento e da performan- mundano místico
ce. A voz é idêntica à respiração, à noção antiga sem enfeite mascarado
de espírito, da vida que vem de fora e possui o natureza cultura
corpo, ou da vida interior essencial do homem22.
O som é para a respiração o que o gesto é para o O primeiro termo é sempre o mais inclu-
movimento. As pessoas estão sempre respirando, sivo, a matriz do segundo. Mas o segundo ter-
e portanto sempre fazendo algum som básico, mo se decompõe (no sentido musical) no pri-
mas transformar a respiração em som é produzir meiro. Por exemplo, o rosto normalmente não
signos, e o alcance dos signos e das linguagens é está adornado, está sem máscara, mas é justa-
incalculável. Claude Lévi-Strauss entende, como mente pintando o rosto, vestindo-o, imitando-
poucos, que a dimensão vocal toca em questões o, distorcendo-o, que as máscaras são criadas e
básicas da cultura humana. usadas. Quando a cerimônia/celebração acaba e
a máscara é retirada e/ou destruída, o rosto con-
... inumeráveis sociedades, tanto passadas tinua a ser o que era antes.
quanto presentes, conceberam a relação en- Essa mesma elevação da transformação
tre a língua falada e a música como análoga caracteriza a performance. A partir das tarefas
àquela entre o contínuo e o intermitente. Isso diárias, treinar e ensaiar, surge uma performan-
equivale a dizer que, dentro de uma cultura, ce, passo a passo. Ela é executada pelo tanto de
cantar difere da língua falada da mesma ma- vezes que for, e depois ela é desmontada. Um
neira que a cultura difere da natureza; quer ritmo parecido afeta cada performer. Ele chega
cantado, quer não, o discurso sagrado do mito ao teatro antes da hora de abrir, prepara-se de
apresenta o mesmo contraste em relação ao alguma maneira para a excitação peculiar da
discurso profano. De novo, o canto e os ins- performance, atua, e quando o espetáculo ter-
trumentos musicais são muitas vezes compa- mina, ele passa por um processo de desacelera-
rados a máscaras; eles são equivalentes sono- ção e volta a um estado de equilíbrio. A sequên-
ros para aquilo que as máscaras representam cia aquecimento-performance-desaquecimento

22 A etimologia da palavra espírito é esclarecedora nesse sentido. Sua raiz latina é spirare, de onde vem
respirar, uma palavra onomatopaica. O latim spiritus significa sopro vital, a própria vida, o espírito, e
ao mesmo tempo uma simples respiração. Palavras derivadas dessa raiz incluem ações tão diversas quanto
conspirar, espirar, perspirar, transpirar e aspirar.
23 Lévi-Strauss, Claude. 1969. The Raw and the Cooked. Trad. J. And D. Weightman. New York: Harper
& Row, p. 28

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P erformer

é uma unidade de ação. A performance em si é rar os pacientes, ele também se cura, através
uma atividade intensa, um estado exaltado que de uma série permanente de restaurações.25
é intermitente, sagrado, místico e mascarado. É
um jeito especial que o homem tem de cantar. Uma performance é sempre sobre duas
O performer compartilha características coisas no mínimo: o corpo do performer e a his-
com o curandeiro e com a pessoa em êxtase. “O tória. A performance estimula o público a rea-
xamã se torna o exemplo e o modelo para todos gir àquilo que acontece com o performer no pró-
aqueles que querem o poder. O xamã é o ho- prio corpo deles. As histórias são variações de
mem que sabe e lembra, isto é, que entende os alguns temas básicos, todos eles envolvendo
mistérios da vida e da morte.”24 Poucos perfor- desmembramento e restauração. O performer
mers ocidentais chegam a essa compreensão, diz para o público: “Observe o meu interior an-
mas os ecos e os desejos permanecem. O traba- tes dele ser removido, veja enquanto eu derra-
lho do teatro ambiental é mexer na brasa, le- mo minhas vísceras diante de vocês, para vocês,
vantar a temperatura do teatro. por vocês, observem enquanto eu sou curado.”
Ao observar, o público participa de um ciclo de
O homem medicinal é um manipulador pro- conflito, agonia, morte, desmembramento e res-
fissional de vários tipos de ansiedades liga- tauração. É verdade que a história que está sen-
das à destruição do corpo e às cenas primais. do contada pode ter profundas consequências e
A sua iniciação é a remoção dos seus própri- significados no nível social. Ao mesmo tempo,
os intestinos corrompíveis, i.e., ele enfrenta a porém, acontece uma profunda experiência
punição pelas fantasias de destruição do seu visceral, que toca e produz reverberações pro-
próprio corpo, mas também pela compensa- fundas no público. A cada performance, o per-
ção exagerada dessa posição de ansiedade... former tenta encontrar para si – e vivenciar di-
As fantasias de restauração, que sempre se se- ante do público – o processo de nascimento,
guem às tendências de destruição do corpo, crescimento, abertura, derramamento, morte e
são introvertidas e direcionadas ao seu pró- renascimento. Esse é o mistério do ritmo da
prio corpo, e depois re-extrovertidas para os vida do teatro, o “teatro ao vivo”. Esse é o cen-
seus pacientes, que ele cura pelo estímulo de tro da experiência mais pessoal do teatro, o lu-
suas próprias fantasias de restauração. Ao cu- gar onde arte, medicina e religião se encontram.

RESUMO: O artigo é um texto histórico de Schechner escrito nos anos 1970. O diretor nova-
iorquino descreve não só o treinamento e exercícios usados pelos integrantes do Performance Group,
mas a abordagem teórica subjacente sobre direção, composição, design, espaço da performance e
formação de grupo. Parte de um livro central na obra teórica do autor, O Teatro Ambiental – termo
que ele tomou emprestado das idéias de Allan Kaprow sobre performance, assamblages e happenings
– se constitui em um testemunho histórico do teatro experimental norte americano dos anos 60-
70, fonte de inspiração para o teatro performático e político dos nossos dias.
PALAVRAS-CHAVE: Richard Schechner, The New Orleans Group, Performance Group, Teatro
Ambiental, Performance, performer, processo, treinamento, associação, presença, público.

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