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infância e da adolescência
Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly
Resumo
Introdução
As possibilidades de ser humano trazem, em seu bojo, o desamparo primordial (FREUD, 1895
apud GABBI JR., 2003) que acarreta paixão – pathos – intensidade e movimento que se
manifestam como sofrimento psíquico. Esta paixão/sofrimento demanda manejo constante e
isso se faz com o outro humano, na qualidade de função da transmissão (portanto, na
qualidade de Outro), conduzindo-se cada um a dar conta de si ao mesmo tempo que se orienta
coletivamente.
Para existirem os humanos, deficientes instintivos, é a humanização que, dia-a-dia, precisa ser
cozida e cosida (costurada). Cozida, no sentido de haver um tempo desta ação, que demanda a
apuração do sabor. Cosida, costurada, por se tratar de ações que, em si são nada, e que, no
conjunto, fazem uma composição.
Desta forma, humanizar-se é sempre no gerúndio, não tem fim, não se esgota e não faz parte
de um conhecimento específico fora dos cuidados cotidianos. Ou seja, humanizar é da ordem
do banal e não de um estudo que estaria reservado a especialistas ou sabedores doutos.
O outro nome desta transmissão é educação. O processo educativo permite a transmissão, dos
mais velhos aos mais jovens, sobre como sobreviver (cuidar de si mesmo e de estar com os
outros), desenvolver autonomia (fazeres consigo e com o outro a partir das marcas de
sobrevivência) e conquistar a independência (a partir da sobrevivência e da autonomia, decidir
sobre o próprio caminho).
Para que a sobrevivência, a autonomia e a independência aconteçam, cabe aos adultos ensinar
para a sobrevivência (desde a higiene do corpo, à construção dos hábitos, aos ditames e regras
da convivência social), supervisionar a autonomia (garantir que o aprendizado da sobrevivência
aconteça nas mais variadas situações, permitindo a escolha da melhor maneira de fazer o que
se precisa) e orientar a independência (refletir e discutir sobre as dificuldades de ser sozinho e,
ainda assim, estar com os outros).
Este percurso de transmissão é complexo, pois não tem respostas ou conduções prontas e
adequadas; demanda, dos adultos, persistência e permanência. Entende-se a permanência
como uma forma de estar no tempo, paralela à persistência. Na persistência, há um processo
de presença que, nas ações cotidianas, atualiza a função educativa do adulto e a recepção disso
pelo jovem. Na permanência, há os lugares de cada coisa, independente das adversidades e
conflitos, configurando os lugares onde as pessoas se situam para que as relações se deem.
1. Antes de qualquer coisa, é preciso ser dito por alguém. Antes da aposta, há um dizer
que anuncia a presença no porvir de uma criança que ainda não foi.
2. Deste dizer prévio, a criança pode vir a dizer, sem palavras, com o olhar, com o corpo,
com os adoecimentos, na sua não-fala, típica dos infans... Para que este dizer se faça
linguagem, o outro lê de acordo com a aposta, pois entende que há alguém que fala no
que diz.
3. Sendo dito e dizendo, isso conduz a criança ao entendimento do mundo à sua volta,
mas agora no grafo do desejo que se atualiza em sons. Sons são palavras e palavras
fazem sentido aos sentidos. Palavras que se apresentam no lugar das sensorialidades
dos ditos.
4. Dos ditos e do entendimento, brotam as palavras – agora, da boca da criança em
direção ao outro, também prevendo que alguém a entende – se é gente ou boneco, o
irmão ou um treco, tanto faz.
5. Finalmente, da palavra falada, emerge a compreensão. Linguagem apropriada,
assenhorada...
É a linguagem, pois, que articula e viabiliza o manejo das questões e problemas da
humanização. É a linguagem que entrama, articula e costura o processo educativo.
Para comprometer esta equação, o uso de mediadores-objetos deste encontro entre os adultos
e os jovens (crianças e adolescentes) é corriqueiro: terceirização das relações, aparelhos
eletrônicos (celulares e tablets), dicas e propostas advindas de fora da comunidade familiar ou
escolar (blogs, textos de livros, consultores para hábitos) e o uso da medicação psiquiátrica. A
aposta, o voto, não passam por mediadores cotidianos, criando uma situação de gravidade
tanto paras as crianças da primeira infância como para os adolescentes, no sentido da
dessubjetivação; ou seja, a contemporaneidade maneja as relações educativas/ensinativas de
forma a não produzir escolhas ou autoria. Pode-se, então, dizer que, nesta situação, há riscos
de constituição do sujeito.
Não é, porém, uma questão somente de crianças e adolescentes, mas de todos. As formas de
estar juntos, assim, estão alteradas, favorecendo agrupamentos em que não há conjunto. “A
causa capitalista não solda os indivíduos entre si, e deixa cada um reduzido a seu corpo, fora do
laço” (SOLER, 2016, p. 16). Este desenlace tem consequências de todas as formas, de ordem
subjetiva – solidão, desencanto, decepção, desconfiança – e de ordem objetiva – na
precariedade das formas de relação, nas modalidades de trabalho e nos posicionamentos.
Metodologia
Esta proposta acontece no NEPE – núcleo de estudos em psicanálise e educação, que existe em
Poços de Caldas, MG, desde 2006. Neste espaço, há a formação em Psicanálise, que se inicia
com um curso – Curso de Introdução à Psicanálise – de quatro anos, de orientação lacaniana.
Também há atendimento psicanalítico, feito pelos que estudam no Nepe a partir do terceiro
ano, desde que tenham pelo menos dois anos de análise pessoal e que tenham curso superior.
Em 2013, vários dos participantes do Nepe participaram da capacitação PREAUT e começaram
a estudar as referências que sustentam a proposta do protocolo de avaliação de bebês
(CRESPIN e PARLATO-OLIVEIRA, 2015). No entanto, ao invés de bebês, surgiu a demanda de
avaliar/atender crianças pequenas (até 36 meses) com uma situação clínica específica: crianças
que não falavam e apresentavam atraso importante em outros aspectos (hábitos de sono, de
alimentação, da aquisição de ações cotidianas – vestir, calçar, alimentar-se, cuidar-se). Na
maioria dos casos, as crianças, o relato de uso de eletrônicos (celulares, tablets, videogames e
computadores) é constante, há dificuldade no estabelecimento de hábitos e a linguagem está
ausente ou atrasada, com poucas sílabas ou palavras, nem sempre contextualizadas.
Os pais participam das sessões, desde o momento de avaliação (em 6 a 8 encontros) e nos
atendimentos posteriores. Esta participação é ativa, no sentido de relatos sobre as situações
cotidianas, bem como das atividades desenvolvidas fora das sessões. Intenta-se, desta forma,
que os pais se tornem co-terapeutas no dia-a-dia da criança, replicando as ações necessárias
para a sustentação da aposta e da proposta.
Nas sessões, três terapeutas de formação psicanalítica, mas de graduação variada (Psicologia,
Terapia Ocupacional, Pedagogia e Filosofia) estão presentes: um que filma a sessão, dois que
interagem com os pais e com a criança. Todas as sessões são filmadas e assistidas
semanalmente para debate entre os terapeutas e para, semestralmente, dar subsídios para
relatórios que são apresentados aos pais e aos outros profissionais que podem estar
envolvidos (fonoaudiólogos, escola, instituições de reabilitação).
É preciso delimitar e explicitar o uso do referencial de André Bullinger que, distante das
discussões psicanalíticas, aborda o corpo em seus aspectos físico e sensorial. Tal perspectiva foi
encontrada como forma de abordar as alterações na criança desde o corpo e seu papel de base
para a construção das representações.
De acordo com a proposta de Bullinger (2004, 2006), não há etapas de desenvolvimento, mas a
co-ordenação do ambiente em direção às conquistas sensório-motoras do corpo do bebê em
movimento, em aprendizado e em contraste com a gravidade. A ênfase, porém, está na co-
ordenação do ambiente que permitirá que o corpo seja o instrumento que permite a
construção de representações.
Desta forma, o ambiente, na forma dos adultos educadores e cuidadores, modula a entrada
sensorial (auditiva, gustativa, visual, tátil, olfativa, proprioceptiva e vestibular) e permite que,
gradativamente – no tempo e no espaço – o bebê se organize de forma representacional. As
representações permitirão aprendizado e construção das praxias, fundamentais para dar conta
de todas as ações humanizadas: comer, vestir, calçar, mas também conversar, pensar e se situar
(Bullinger, 2004, 2006).
Nas crianças com alterações ou atrasos, observar que apoios podem ser utilizados dá a medida
para que a co-ordenação se faça de forma mais eficaz, na forma de habituação – reação do
organismo à estimulação sensorial estável (BULLINGER, 2001). Ressalta-se, todavia, que o autor
não se detém neste aspecto da criança com o outro, mas apresenta-se como apoio para que
isso se faça da forma como puder acontecer.
O que faria o trabalho do aparelho psíquico em suas origens não estaria no aparelho em si,
mas na função do Outro que, a cada ação e a cada encontro com a criança, enovela as ações
com palavras (marcas auditivas – futuros representantes auditivos, significantes) e é, por si só,
uma fonte de estimulação sensorial. Deste lugar, viria a aposta não anônima e a condição de
resguardar o bebê do bombardeio de informações sensoriais.
Nas crianças acompanhadas, algo não permitiu que a modulação acontecesse da forma
necessária e isso parece vir tanto do desmantelamento contemporâneo dos pais como Outro,
em sua função, como das nomeações diagnósticas excessivas e as dificuldades anteriormente
relatadas (renúncia educativa).
Desta forma, com cada criança, é feita uma avaliação sensório-motora, buscando seus apoios e
sua forma de posicionamento diante da recepção sensorial que é, por outro lado, a recepção
da aposta do adulto cuidador/educador enquanto Outro. Estes apoios são utilizados como vias
de acesso para favorecer a interação com os terapeutas e, ato contínuo, com seus pais e
cuidadores/educadores.
O uso da proposta bullingeriana trouxe alguns materiais sensoriais para a sessão, como bolas,
argila, massinha, água, alimentos, lixas, espelho, tinta, cama elástica, redes, cordas. O sentido é
da exploração sensorial, mas também de estar com este material em uso com outra pessoa.
Enfatiza-se aos pais o distanciamento de mediadores eletrônicos, privilegiando o que pode ser
feito na/com a presença humana.
Como os pais estão presentes na sessão, estes se utilizam destas estratégias em outros
momentos em que percebam o desajuste ou desorganização da criança. Dependendo da
intensidade da necessidade do apoio, indicam-se estratégias não terapêuticas que permitam a
habituação e que tragam mais situações de interação e de bem-estar com os pais
cuidadores/educadores, pois é deste lugar que a aprendizagem acontece e que a aposta se
firma.
Resultados e Discussão
De setembro de 2015 a outubro de 2017 foram acompanhadas 20 crianças, das quais apenas
uma apresenta características de autismo. Das outras, encontram-se perda auditiva, alterações
neurológicas, falta de informações dos pais sobre a condução dos filhos, síndromes (X-Frágil) e
psicose.
Neste sentido, esta é uma perspectiva que diz respeito a crianças, mas também aos
adolescentes. A adolescência é um momento de revisão da transmissão educativa/ensinativa,
das possibilidades de ser-estar no mundo. Neste momento, os adultos são tão essenciais em
sua função, como na infância, com presença e permanência e os diagnósticos podem ser
deletérios.
Os diagnósticos também estariam “fora do tempo”, pois é possível dá-los em consultas de meia
hora. Quando, no Acompanhamento Pais-Crianças, dispendem-se dois meses de avaliação, há
uma busca de resgate da construção do diagnóstico no sentido de um conhecimento da
realidade da situação da criança, no sentido da constituição do sujeito.
As crianças em atendimento, assim, chegam “sem linguagem”, desconhecidas por seus pais –
tomadas por um nome advindo de saberes científicos (autista, TDAH/ Transtorno do Déficit da
Atenção com ou sem Hiperatividade, etc.). Talvez seja descabido indicar algo de fora da
linguagem, já que é esta que funda o humano e, como refere Dolto (1999), tudo é linguagem.
Mas estas crianças chegam de forma que nada do que apresentam traz pontos de costuras e
cozimentos de sentido.
As conquistas das crianças, com recuperação dos aspectos em atraso, com a aquisição da
linguagem, da marcha, da possibilidade de aprendizado dos hábitos (comer, vestir-se, calçar)
têm mostrado a importância do fazer humano diante do outro humano. Este é o real sentido
da aposta e é esta a possibilidade de ocupar um lugar no laço social, suportando-se e ao outro,
cumprindo as possibilidades de portabilidade ética.
Referências
CRESPIN, G. e PARLATO-OLIVEIRA, E. O projeto PREAUT. In: Dossiê Autismo. São Paulo: Instituto
Langage, 2015.
GABBI JR., O. Notas a Projeto de uma Psicologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
KAMERS, M., MARIOTTO, R. M. M., VOLTOLINI, R. (Orgs.). Por uma (nova) psicopatologia da
infância e da adolescência. São Paulo: Escuta, 2015.
LAZNIK, M. C., TOUATI, B e BURSZTEJN, C. Distinção clínica e teórica entre autismo e psicose na
infância. São Paulo: Instituto Langage, 2016.
LEBRUN, J.-C. Clínica da Instituição: o que a psicanálise contribui para a vida coletiva. Porto
alegre: CMC, 2009.
MURATORI, F. O diagnóstico precoce no autismo: guia prático para pediatras. Salvador: NIIP,
2014.
WANDERLEY, D. B. Aventuras psicanalíticas com crianças autistas e seus pais. Salvador: Ágalma,
2013.