You are on page 1of 7

Universidade Federal de Viçosa

Colégio de Aplicação Coluni


Trabalho de Literatura – Cobra Norato, Raul Bopp.
Alcimar Melo e Grupo
3º A – 2009

“ Ecce exiit qui seminat, seminare.” S. Mateus,XIII, 3.


Que é o poeta senão um semeador de sonhos e emoções, de projetos e anseios?

Introdução: A Literatura e a Sociedade.

“A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas


idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral e de mais belo na
natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua
glória e o reflexo progressivo de sua inteligência. E, quando esse povo, ou essa
geração, desaparece da superfície da terra, com todas as suas instituições, crenças e
costumes, escapa a literatura aos rigores do tempo para anunciar às gerações futuras
qual fora o caráter e a importância do povo, do qual é ela o único representante na
posteridade. Sua voz, como um eco imortal, repercute por toda parte, e diz: em tal
época, debaixo de tal constelação e sobre tal ponto do globo existia um povo cuja
glória só eu a conservo, cujos heróis só eu conheço. Vós, porém, se pretendeis também
conhecê-lo, consultai-me, porque eu sou o espírito desse povo e uma sombra viva do
que ele foi.” Machado de Assis - Discurso sobre a história da Literatura no Brasil –
Revista Nictheroy 1836

A afirmação machadiana vem reiterar a importância da literatura para uma análise


meticulosa da realidade sócio-cultural de uma sociedade, tendo em vista a intrínseca
relação entre produtor, produção e interlocutor. O papel da literatura é tão abrangente, tão
vasto que sua compreensão se torna imprescindível para a plenitude do ser. Ela nos
auxilia a conhecer o todo e assim a conhecer a nós mesmos – saber o que somos, o que
pensamos e representamos, enfim descobrir a essência que nos compõe – tornando-nos
um pouco mais lúcidos perante a alienação que ora pode imperar. Entretanto, esse papel
não é uma obrigação da literatura, embora o vejamos muito presente nas hostes literárias.
É nesse contexto relacional entre literatura e sociedade que aflora no seio
brasileiro, ainda início do século XX, o Movimento Modernista, cuja síntese abarca, num
lance de vista; repensar a origem do Brasil de forma crítica (1ª fase); questionar a
existência do ser no mundo (2ª fase) e reestruturar a função da palavra na construção
comunicativa, lembrando que a guerra foi o símbolo de sua falha, cúmulo do
desentendimento humano (3a fase).
Raul Bopp, literato dessa época de renovação ideológica, nos presenteia com um
fruto da Primeira Geração Modernista, especialmente o movimento Antropofágico, a
saber: Cobra Norato, que além de peculiar é, sobretudo, perturbadora. E é no sentido de
desvendar essa obra de Bopp que o estudo se mantém – “Cobra Norato: confluência de
mitos e lendas que compõe a riqueza cultural brasileira.”.
Cobra Norato publicado em 1931 é uma rapsódia que ilustra, brilhantemente, esse
período literário uma vez que consegue demonstrar não só suas qualidades, mas, também,
suas limitações.

A construção de uma analise a partir da desconstrução do livro.

A lenda em torno da qual a história é estruturada, é a de Cobra Norato. Uma


mulher teve dois filhos gêmeos em forma de serpente, que foram batizadas com nomes
cristãos: Honorato, também conhecido como Cobra Norato, e Maria, conhecida como
Maria Caninana. Ele era a cobra boa e ela, a cobra má. Mas, Maria, por ser muito má, foi
sacrificada. Há, também, a presença de outras figuras mitológicas amazonense, como o
boto cor-de-rosa e o curupira.
A Amazônia é retratada, não só nos aspectos culturais, mas também como cenário
atuante no desenvolvimento da narrativa. Destaca-se a presença da floresta amazônica
bem como a da fauna local, que ajudam no processo de construção do enredo.
É importante lembrar que a obra se ambienta no plano onírico, como se constata
no trecho: “Então você tem que apagar os olhos primeiros/ O sono escorregou nas
pálpebras pesadas/ Um chão de lama rouba a forca dos meus passos”.
O início da história se dá quando a Cobra Norato abandona sua enorme pele de
seda à margem do rio e é invadida por um jovem. A partir da fusão desses dois seres,
inicia-se uma peregrinação em busca da filha da rainha Luzia. Durante essa saga o
protagonista confronta-se com vários obstáculos e seres que o interpelam, ora ajudando-
o, ora impedindo-o de alcançar seu objetivo. No entanto, este enredo não traduz de
maneira completa a mensagem do livro, que só pode ser captada se estudada à luz do seu
contexto literário.
Como já foi mencionado, Raul Bopp integrou o Movimento Antropofágico, e por
isso uma característica marcante em suas obras é o processo de desconstrução/construção
do conceito de brasilidade. Para visualizar esse objetivo em Cobra Norato, deve-se
considerar, primeiramente, as metáforas construídas na obra, já que o significado que o
autor buscou dar ao livro se faz através da interpretação dessas.
A construção do livro exigiu por parte do autor grande empenho, uma vez que
Bopp teve que se preocupar em contar a história de Cobra Norato por um viés
antropofágico. Essa preocupação perpassa toda a construção do livro, desde a escolha da
linguagem até a das personagens. Não é exagero dizer que Cobra Norato é uma junção de
elementos alegóricos que materializam o objetivo da I Geração Modernista. Por isso,
analisar os signos e estratégias utilizadas pelo autor é essencial para uma interpretação
que visa chegar à verdadeira intenção do livro.
Da própria peregrinação em busca da filha da rainha Luzia pode se estabelecer
um paralelo com o propósito da Primeira Geração Modernista; a busca da construção do
verdadeiro conceito de identidade brasileira.
Ainda nessa lógica, a escolha da floresta amazônica e a maneira como ela é
retratada, contribui com o objetivo de Bopp. Sua escolha como cenário pode ser
explicada pelo fato da Amazônia ser o ambiente menos modificado pelo processo de
colonização e imigração no Brasil, sendo, portanto representante do que o Brasil tem de
mais primitivo e apropriado para se encontrar a essência do que realmente é ser
brasileiro. Por representar esse lado intocado e primitivo, o decifrar da “floresta cifrada”,
pelas próprias palavras de Bopp, é o decifrar da identidade brasileira.
Outro signo utilizado por Bopp foi a da Cobra Norato, essa personagem abandona
sua pele à beira de um rio e é invadida por um jovem. Construindo-se uma interpretação
alicerçada nos valores da geração literária que essa obra integra, podemos entender esse
episódio como a miscigenação que o povo brasileiro sofre em virtude, principalmente, do
processo de colonização.
Há de se destacar, também, a importância da figura do tatu, que por ser um animal
que escava buracos, abrindo caminhos, ajuda a cobra a se localizar na floresta e a atingir
seu objetivo; metaforicamente, redescobrir a brasilidade. Sua função pode ser comparada
a do autor, já que ambos norteiam o caminho a ser seguido.
Os sapos também são utilizados como alegoria por serem animais que não
possuem hábitat específico. São anfíbios e, por isso, não se identificam, totalmente, nem
com água nem com a terra. Assim como os brasileiros, que ficam no limiar entre a cultura
primitiva e a cultura estrangeira.
Além de se notar uma grande preocupação com o conteúdo, a análise do livro
também revela grande preocupação com a linguagem, que é muito bem explorada por
Bopp para construir o seu objetivo literário.
Dos aspectos gerais do texto, tem-se que o livro é dividido em 33 cantos que
apresentam versos brancos e livres. É considerado um poemeto épico-dramático,
apresentando uma estrutura não usual, já que tem o propósito de narrar uma historia
através de versos.
Em uma análise mais profunda nota-se algumas estratégias do autor para
relacionar a forma de construção do texto com o seu significado. Constata-se, por
exemplo, uma escassez de pontuação nos versos o que pode ser interpretado como se não
pudesse haver empecilhos na travessia da cobra. Pode-se perceber, também, o predomínio
das orações coordenadas, o que remete a idéia de uma comunicação primitiva.

Texto e intertexto: o que constrói uma obra literária?

Toda obra literária é construída através do anseio do autor em transmitir uma


mensagem ao seu interlocutor, muitas vezes a intenção desse autor comunga com um
número maior de autores, é justamente aí que surge o Projeto Literário; muitos artistas
imbuídos de um ideal se lançam em busca de solidificar suas tendências e concretizar
aquilo de que se revestiram. Diante disso, eis a epígrafe da Primeira Geração Modernista:

“ O índio que queremos não é o índio da lata de goiabada, inspirando poemas lusos ao
Sr. Gonçalves Dias e romances franceses ao Sr. José de Alencar. Esse índio decorativo
e romântico nós damos de presente à Academia de Letras.” Revista da
Antropofagia26.1.1 Autor desconhecido.

Ainda no tocante ao Projeto Modernista ele é formado por duas vertentes: Projeto
estético; relacionado às modificações operadas na língua, através da ruptura da língua
tradicional e o Projeto ideológico, diretamente atado ao pensamento e a construção da
consciência nacional. É importante observar que essas vertentes em nenhum momento se
excluem, ao contrário; elas se mesclam na consolidação do movimento.
Estar ciente da relação entre Projeto e obra, é condição necessária para entender os
artifícios dos quais o autor lança mão na construção de sua obra.
“Nenhum texto é puro”; Essa afirmação contundente soa severa e objetiva, uma
vez que coloca o indivíduo na condição de reescritor – todo aquele que produz um texto,
seja oral ou escrito, reproduz algo que leu ou ouviu, de modo que sua função muitas
vezes, é a de tecer o emaranhado para constituir a comunicação.
Partindo disso, a análise de um texto remete a outros e não poderia ser diferente
na obra aqui analisada. Aqui cabe o questionamento – O autor faz essa busca de forma
inconsciente? Certamente que não. No labor da escrita o autor se assemelha a um mestre
de garimpo; deve ser exímio ao elencar tudo aquilo que vai ao encontro do projeto - sua
fonte, sua inspiração emanam do encontro entre a matéria-prima ideal e o produto, de
forma que este último consiga expressar toda sua intenção que é, a grosso modo,
transformar o verbo em carne – “ Et verbum caro factum est.”.
Deve-se começar do primeiro documento redigido em terras brasileiras, a Carta de
Pero Vaz de Caminha. Esse relato da descoberta das terras brasileiras pela Coroa Lusa é
fonte de indefinível versatilidade para os nossos poetas; isso se deve ao seu caráter de
neutralidade, permitindo sua adaptação aos contextos mais díspares.
É nessa ótica que se pode encontrá-la inspirando os mais doces romances
românticos, sobretudo na escrita de José de Alencar e Gonçalves Dias, mas também no
Movimento Modernista que, embora tão conflitante com o primeiro também se apodera
da obra. Os resultados, entretanto não poderiam ser diferentes; no poema épico I Juca
Pirama, Gonçalves Dias narra os feitos de um valoroso índio tupi pela Amazônia; Raul
Bopp, que vai pisar nas mesmas folhas, respirar o mesmo ar e avistar a mesma floresta
traz uma leitura muito diferenciada. Mas a que se deve essa diferença? Ela se deve ao
Projeto Literário ao qual cada autor está inserido, é o projeto que norteia o que usar e
como usar essa matéria-prima na lavra poética. Bopp quer revisitar o passado, de uma
forma crítica, saindo em busca das raízes culturais brasileiras.
Por falar em raízes, encontra-se outro texto cujo diálogo se faz de forma ainda
mais veemente: a rapsódia Macunaíma, de Mario de Andrade. A busca pela Muiraquitã
perdida, simbolizando a brasilidade esquecida, ignorada, é, em Cobra Norato,
representada pela filha da Rainha Luzia, sendo esta a luz que abarcará o resgate de nossas
origens. Os dois textos revelam que a Amazônia é o relicário cultural brasileiro,
representando o Brasil pré-cabralino, ainda muito próximo do índio nativo da época do
descobrimento.
Outro aspecto importante diz respeito ao conhecimento de mundo que o autor
insere na obra através da figura da cobra – a cobra é um símbolo comum a todos os
povos, ora representando as virtudes e ora, a perdição, como presente no Livro da
Gênese, ao mesmo tempo nos remetendo à origem representada por este último livro.
Aqui nota-se um caráter interessante porque se apresenta um jogo de dualidade: aqueles
que se faziam obstáculo ao projeto modernista o viam como um pecado e aqueles que
viam nele a fundamentação de uma nova interpretação o avistavam como uma virtude.
Quanto ao livro da Gênese e Cobra Norato encontra-se: Euclides da Cunha afirmou:
“Seria Cobra Norato a transfiguração épica do capítulo que falta ao Gênese.”
É necessário trazer à tona uma aproximação entre a umidade que perpassa toda
obra com o surgimento da vida, a umidade da mata nos remete ao ambiente do
nascimento, à origem, a um começo diferente, torneado de novas aspirações e anseios,
típicos de um movimento que busca resgatar o que somos na essência.
Para completar, não se pode deixar de trazer uma citação do já tão afamado crítico
brasileiro, Antônio Cândido, que afirma: “o geral e o particular invadiram nossas formas
de expressão.” O geral é o objetivo de buscar a brasilidade e esta conquista se dá através
de um âmbito particular – a Amazônia e sua riqueza local. Em síntese; é nesse
movimento de busca ou em algum momento não muito distante dele que o Brasil deixa
de ser objeto e torna sujeito, isto é, finalmente a literatura brasileira tomou forma (excerto
do Trabalho Literatura de Dois Gumes

Bibliografia

 Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira.


 Filho, Leordegário A. de Azevedo. Poetas do Modernismo Antologia Crítica Volume III
- Coleção de Literatura Brasileira. p.13- 27
 Moisés, Massaud. História da Literatura Brasileira Vol. III – Modernismo. p. 246- 249
 Helena, Lúcia. Uma Literatura Antropofágica. p. 139- 145

You might also like