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Artigo Original – Original Article

1
O ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO ENTRE A
RETÓRICA E A INSENSIBILIDADE

THE COOPERATIVE CONSTITUTIONAL STATE BETWEEN


RHETORIC AND INSENSIBILITY

Winnicius Pereira de Góes


Doutorando em Direito Público pela Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP)
Professor da Faculdade do Norte Novo de Apucarana (FACNOPAR)
e da Faculdade Paranaense (FACCAR)
Coordenador dos Cursos de Pós-graduação Lato Sensu em
Direito do Estado e Direito do Trabalho e Previdência Social
da Faculdade do Norte Novo de Apucarana (FACNOPAR), PR, Brasil
wpgoes@gmail.com

RESUMO
O presente artigo trata do Estado Constitucional Cooperativo e de suas bases internacionais
originárias de direitos humanos, que lhe dão substância e o orientam em direção à desejada
fraternidade e solidariedade entre os povos. Dentre os objetivos desenvolvidos no texto está a
análise das dificuldades em materializar este modelo de Estado em um período da história no
qual as necessidades do mercado especulativo-financeiro e produtivo, agora globalizado,
acabam por assumir posição central, quebram o sentido clássico de soberania ao retirar dos
governantes o poder de decisão sobre os rumos da economia que, ao final, condicionam a
sanidade fiscal dos Estados e comprometem as políticas públicas de natureza social. Neste
emaranhado de intenções solidárias e de insensibilidade dos números da economia, o ideal
cosmopolita e universal de direitos humanos (ainda que constitucionalizados) permanece cada
vez mais mergulhado no abismo da ilusão sustentada pela retórica.

Palavras-Chave: Estado Constitucional. Globalização. Direitos Humanos.

ABSTRACT
This article deals with the Cooperative Constitutional State and its international bases
originating from human rights, which give it substance and guide it towards the desired
fraternity and solidarity among peoples. Among the objectives developed in the text is the
analysis of the difficulties in materializing this model of State in a period of history in which
the needs of the speculative-financial and productive market, now globalized, end up
assuming a central position, break the classic sense of sovereignty to remove from the rulers
the decision-making power on the directions of the economy, which, in the end, condition the
fiscal sanity of the states and jeopardize public policies of a social nature. In this tangle of
sympathetic intentions and insensitivity to the numbers of economics, the cosmopolitan and
universal ideal of (though constitutional) human rights remains increasingly plunged into the
abyss of illusion sustained by rhetoric.

KEY-WORDS: Constitutional State. Globalization. Human rights.

Revista Diorito, v. 2. n. 1. Jan./Jun.2018. ISSN 2527-1784


Winnicius Pereira de Góes
ISSN 2527-1784

INTRODUÇÃO

Os direitos humanos assumiram um papel fundamental no plano internacional logo


após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, em um processo iniciado por meio da
elaboração da Carta das Nações Unidas, instauradora de um novo paradigma de relação
interestatal consolidado paulatinamente por outras declarações internacionais.
Dentre as principais alterações comportamentais propostas aos Estados signatários da
Carta estão a cooperação internacional para a promoção, a disseminação cultural e a
consagração material dos direitos humanos em âmbito local, regional e global. Buscou-se
desde o início o estabelecimento de um novo modelo de Estado, mais humano, preocupado
não apenas com os seus problemas e interesses particulares, mas, também, com os problemas
do outro, em clara pretensão de despertar o sentimento de fraternidade e solidariedade entre os
Estados, para melhor instituir patamares de bem-estar comum intra e intergeracional de
amplitude cosmopolita.
Todavia, nem tudo correu como foi incipientemente imaginado. A globalização não se
limitou a expandir o ímpeto competitivo entre instituições privadas no mercado econômico e
produtivo internacional, pois teve como reflexo o acirramento da competição entre Estados, o
que fez das intenções cooperativas de raízes humanistas um “entrave” à competição
mercadológica imposta pelos definidores das regras do jogo econômico.
O presente artigo põe em debate o Estado Constitucional Cooperativo suas promessas
e suas intenções de cooperação, analisando o seu mergulho nas incoerências e nas relações
paradoxais acentuadas pela globalização, que tanto dificultam a materialização do bem-estar
comum em direitos humanos e coloca o modelo de Estado idealizado nos trilhos da retórica e
subjugado à dominação insensível dos números e da economia.

1. AS BASES INTERNACIONAIS DO ESTADO COOPERATIVO

Em decorrência das atrocidades ocorridas durante as duas grandes guerras que


marcaram as primeiras décadas do Século XX, o segundo pós-guerra mundial colocou o
direito internacional em destaque. Logo após esse breve e significativo período negro da
história da humanidade, as discussões em torno dos direitos humanos e da maior cooperação

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entre os Estados pela busca da paz e pelo bem-estar de todos os povos foi acentuada.
Aos vencedores da guerra não restou somente a tarefa de contribuir para a
reconstrução dos países destruídos pelos seguidos combates. A principal missão endereçada
aos Estados vencedores e por estes mesmos outorgada e proclamada essencial para a
humanidade, foi a de protagonizar uma ofensiva jurídico-cultural em benefício do
estabelecimento de bases internacionais de direito humanos, nas quais, ao menos em tese, a
“pessoa humana”, independentemente de suas condições sociais, econômicas, culturais,
sexuais, dentre outras características, passaria a figurar no plano internacional como sujeito de
direito.
O primeiro passo foi dado em 1945, por meio da elaboração da Carta das Nações
Unidas , inauguradora da era do universalismo humanístico2. Logo em suas primeiras linhas,
1

o texto da carta declara que os povos envolvidos nas Nações Unidas tem a intenção de
“[…] preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no
espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade [...]”, e espraiar e
reafirmar a “[…] fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do
ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das
nações grandes e pequenas [...]”, em um regime de cooperação internacional que
tem como fim a promoção do “[…] progresso econômico e social de todos os
povos.” (ONU, 1945, Preâmbulo).

Em complemento ao estabelecido regime cooperativo entre os Estados em matéria de


direitos humanos, o artigo 1, do Capítulo I, intitulado “Propósitos e Princípios”, traz em seu
item 3 que as Nações Unidas tem como propósito,
“Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais
de caráter econômico, social, cultural ou humanitário”, cooperação esta voltada à
promoção e estímulo do “[…] respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua e religião” (ONU,
1945, Capítulo I).

A exigência de cooperação internacional fica ainda mais evidente quando a própria


carta diz que as Nações Unidas é o centro de debates e meio de harmonização da
“[…] ação das nações para a consecução desses objetivos comuns”, assegurado no
“[…] princípio da igualdade de todos os seus membros [...]” (ONU, 1945, Capítulo
I), que deverão cumprir de boa-fé todos os compromissos assumidos a partir da
assinatura ratificadora da carta, e dos demais instrumentos internacionais de direitos
humanos (ONU, 1945, Capítulo I).

1
No Brasil, a Carta das Nações Unidas foi promulgada por meio da edição do Decreto 19.841 de 22 de outubro
de 1945, pouco mais de trinta dias após o governo brasileiro ratificar o documento internacional.
2
“[…] as Nações Unidas nasceram com a vocação de se tornarem a organização da sociedade política mundial, à
qual deveriam pertencer, portanto, necessariamente, todas as nações do globo empenhadas na defesa da
dignidade humana.” (COMPARATO, 2013, p. 226)

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As bases de cooperação são reforçadas na Carta das Nações Unidas em seu artigo 13,
alíneas “a” e “b”, pertencentes ao Capítulo IV, quando organiza a “Assembleia Geral” da
Organização das Nações Unidas (ONU). Nos termos deste artigo, a cooperação internacional
a ser promovida pelos Estados em cooperação internacional no plano político, tem como
finalidade o desenvolvimento do direito internacional codificado em atendimento às bases
humanísticas (ONU, 1945, Capítulo IV). O artigo ainda vincula o sentido cooperacional ao
desenvolvimento em condições de igualdade,
“[…] nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário [...]”,
objetivando o favorecimento do “[...] pleno gozo dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião.” (ONU, 1945, Capítulo IV)

Em vista disso, nota-se facilmente que desde as suas primeiras disposições, a Carta das
Nações Unidas calhou por solidificar a ideia de que todos os países e seus governantes
deveriam planificar as ações em sentido cosmopolita, para universalizar os direitos humanos
de modo igualitário e recorrente, em desprovimento a indicações parciais e restritivas de
interesses particulares em qualquer esfera de atuação política, jurídica e econômica que afete
a sociedade delimitada mundialmente. Supera-se assim, a supremacia do condicionamento das
relações interestatais regionalizadas (não que com isso se as tenha abandonado por completo),
dando-se importância às relações de amplitude global, por meio do reconhecimento de que os
acontecimentos localizados poderão afetar outras partes do globo materialmente ou por
influência política.
A própria Carta das Nações Unidas carrega consigo elementos de viabilização da
cooperação, tanto que o Capítulo IX cuida expressamente de matéria extremamente
importante atualmente, designadamente, a “Cooperação Econômica e Social Internacional”.
Por isso, do artigo 55 e seguintes do Capítulo IX extrai-se que a cooperação
internacional ideal no plano econômico e social deve partir de níveis de cooperação em que os
Estados atuem em pé de igualdade (reafirmação de que os interesses particulares dos Estados
e de instituições privadas não devem prevalecer sobre os legítimos interesses locais, regionais
e mundiais de consagração dos direitos humanos), sem a imposição de modelagens políticas,
institucionais e culturais que venham a violar a autodeterminação dos povos (ONU, 1945,
Capítulo IX).
Este paradigma é reforçado nas alíneas do artigo 55 combinadas ao artigo 56, por
ordenarem que os membros da Organização das Nações Unidas se comprometerão em agir em

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cooperação (ONU, 1945, Capítulo IX), para favorecer o desenvolvimento humano nos “[…]
níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento
econômico e social [...]”, por intermédio da “[…] solução dos problemas internacionais
econômicos, sociais, sanitários e conexos [...]”. Tal desenvolvimento foi pensado em para ser
associado à disseminação cultural e educacional em direitos humanos 3 e, por consequência
disso, alcançar o almejado “[…] respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.” (ONU,
1945, Capítulo IX).
Após o estreitamento da vontade política internacional explicitada na Carta das
Nações Unidas, diversos tratados de direitos humanos surgiram para direcionar e condicionar
higidez cooperativa da conduta dos Estados e de seus governantes.
Assim, nos anos seguintes ao encerramento da Segunda Guerra Mundial e à edição da
Carta das Nações Unidas, sobreveio a era dos direitos (BOBBIO, 2004, p. 66-80;
DOUZINAS, 2009, p. 126-129), marcada por textos compromissórios como, por exemplo, a
Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 1948, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, o Pacto
Internacional de Direito Civis e Políticos, estes dois últimos estabelecidos em 1966.
Além desses documentos internacionais, outros mais dão vigor documental ao ideal
humanístico que tomou conta do direito internacional e, posteriormente, invadiu as cartas
nacionais compromissórias e dirigentes, como, por exemplo, a Convenção para a Prevenção e
a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, a Convenção sobre a eliminação da
Discriminação Racial, de 1965, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra as
Mulheres, de 1980, a Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 1992, dentre outros4.
Cada um destes textos apresenta as novas “roupagens” de direitos humanos, cada qual
originada das mazelas e da realidade vivida por determinada parcela da população mundial,

3
Vale frisar que a disseminação cultural e educacional em direitos humanos não autoriza os Estados-membros da
Organização das Nações Unidas a impor a cultura de direitos humanos. A Carta das Nações preza pelo respeito à
autodeterminação dos povos, o que, obviamente, abarca o respeito a cultura de cada um dos povos, não podendo
ser imposto coercivamente a cooperação e o compartilhamento do humanismo entre as sociedades.
4
Inobstante isso, o fortalecimento sistemático da humanização do direito ante a adoção do antropocentrismo
jurídico é fortalecido com a criação de sistemas de proteção internacional de direitos humanos, ainda que
regionalizados, originados das Convenções Europeia de Direitos Humanos de 1950 e Americana sobre Direitos
Humanos de 1960 e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981. Cada uma dessas
convenções regionais firma o seu próprio rol de direitos humanos e seu sistema jurisdicional especializado nesta
matéria. Os sistemas regionais seguiram o modelo estabelecido na Carta das Nações Unidas (composta pela
Assembleia, Conselhos e Sistema Jurisdicional) quanto a estruturação de seus órgãos.

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que em certo momento passa a afetar indiretamente outras regiões do globo e transforma a
questão fática em objeto de debate de todos os povos cooperados.
Por sua vez, deve-se ter na memória que todos os textos de direitos humanos, seja qual
for o tema por eles abarcado, por si só constituem objeto de todos os Estados componentes da
Organização das Nações Unidas, mesmo quando o problema social, político, econômico ou
ambiental não os afete diretamente.
Dos diplomas internacionais acima citados, no que se refere à cooperação
internacional, vale tratar especificamente da Declaração Universal de Direitos Humanos e da
Convenção sobre a Diversidade Biológica.
A Declaração Universal de Direitos Humanos5 trata dos mais variados temas em
caráter recomendatório (COMPARATO, 2013, p. 238), dentre eles o direito à igualdade, o
direito a vida e à liberdade (ONU, 1948, p. 4-5 e 8), o direito ao devido processo legal (ONU,
1948, p. 7), direito à liberdade de opinião, de pensamento e de religião, o direito ao sufrágio,
direito a segurança social, direito a trabalho e ao repouso e lazer (ONU, 1948, p. 10-2), direito
à educação e à participação social (ONU, 1948, p. 14-5). Como se vê a variedade implicou na
inserção textual de direitos civis e políticos (liberdades), direitos econômicos sociais e
culturais (igualdade) e direitos de solidariedade (fraternidade), respectivamente classificados
como direitos de primeira, segunda e terceira geração de direitos humanos.
Mas a importância da declaração não se firma apenas sobre a ordenação do rol
exemplificativo6 distribuído em modalidades de direitos humanos, pois o texto aprovado pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu preâmbulo justifica a proclamação
internacional da declaração, ao considerar que “[…] o advento de um mundo em que os todos
gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da
necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum”, sendo
imprescindível a promoção do “[…] desenvolvimento de relações amistosas entre as nações

5
Sob a perspectiva história, “Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um
processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser
humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição, como se diz em seu artigo II. E esse reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível
quando, ao término da mais desumana guerra da História, percebeu-se que a ideia de superioridade de uma raça,
de uma classe social, de uma cultura ou religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria sobrevivência da
humanidade” (COMPARATO, 2013, p. 240).
6
O rol de direitos humanos é renovado e atualizado de acordo com as novas necessidades e demandas oriundas
das relações sociais, de violações de direitos humanos ainda não identificados ou relacionados nos tratados e
convenções internacionais.

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[...]” (ONU, 1948, p. 2), em suas relações políticas, econômicas e sociais.


O preâmbulo ainda pontua que os Estados-membros da Organização das Nações
Unidas se comprometem a promover a cooperação e o “[…] o respeito universal aos direitos e
liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdade”, para dar
efetividade e eficiência ao projeto político-jurídico humanístico internacional, assentado no
entendimento de que a “[…] compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta
importância para o pleno cumprimento desse compromisso.”(ONU, 1948, p. 3).
Deste modo, para além do mero compromisso, a declaração deve ser vista como

“[…] o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o
objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade […]”, se esforcem
conjuntamente e promovam, por intermédio da educação e do ensino de viés
humanístico, a obediência às cláusulas internacionais cosmopolitas e
universalizantes, em respeito aos direitos e liberdades adicionados à declaração e
outros tratados, sem declinar da eventual “[...] adoção de medidas progressivas de
caráter nacional e internacional […]”, para consolidar “[...] o seu reconhecimento e a
sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-
Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição” (ONU, 1948, p.
4).

Com efeito, a Convenção sobre a Diversidade Biológica7 tem origem na Conferência


das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de
Janeiro no ano de 1992, e quebrou o paradigma antropocentrista estrito (BOFF, 2014, p. 65-9;
FREITAS, 2012, p. 60-3; LOURES, 2009, p. 71) ao conciliá-lo com uma nova visão
humanística sobre a posição do homem no espaço terrestre, integrando-o aos elementos da
natureza, tornando imprescindível a preservação ambiental para as gerações presentes e
futuras8, consagrando, por conseguinte, os princípios de justiça intergeracional9 e da

7
O Decreto Legislativo nº 2/1994 Aprova o texto da Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada durante a
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada na cidade do Rio de Janeiro,
inserindo-a definitivamente no ordenamento jurídico brasileiro.
8
Em que pese este artigo trate da cooperação internacional entre os Estados, vale mencionar que o Relatório
Brundtland de 1987, intitulado “Nosso Futuro Comum”, resultante dos trabalhos da Comissão sobre Meio
Ambiente da Organização das Nações Unidas contribui significativamente para que as bases de cooperação entre
os Estados fosse ampliada, pois definiu de modo claro e conciso o que deveria ser considerado desenvolvimento
sustentável. (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 9-10).
9
“De acordo com as novas realidades do entrelaçamento espacial e temporal, deixa de ter sentido entender o
contrato social em sentido exclusivista, isto é, como coisa que só envolve os membros de uma determinada
comunidade ou só envolve os actualmente vivos. O modelo de contrato social que regula unicamente as
obrigações entre os contemporâneos deve ser estendido aos sujeitos vindouros, em relação aos quais nos
encontramos em completa assimetria. As questões de justiça intergeracional não são resolvidas com uma lógica
de reciprocidade, mas com uma ética de transmissão. […] no fundo da questão das gerações vindouras, o que
está em jogo é a própria noção de humanidade.” (INNERARITY, 2011, p. 26-7).

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sustentabilidade10.
O preâmbulo da convenção em análise dá mostras da necessidade de cooperação ao
afirmar que
“[…] a conservação da diversidade biológica é uma preocupação comum à
humanidade [...]”, sendo imprescindível a “[…] cooperação internacional, regional e
mundial entre os Estados e as organizações intergovernamentais e o setor não-
governamental para a conservação da diversidade biológica e a utilização
sustentável de seus componentes […]” (BRASIL, 1994).

Os fundamentos internacionais de cooperatividade em matéria ambiental-humanística


são seguidamente reafirmados na convenção, fator essencial que mereceu atenção especial no
artigo 5º, no qual se encontra o imperativo (guardado na força recomendatória que lhe cabe)
comportamental dos Estados, que deverão, a partir de então, cooperar com os demais Estados
interessados,
“[…] diretamente ou, quando apropriado, mediante organizações internacionais
competentes, no que respeita a áreas além da jurisdição nacional e em outros
assuntos de mútuo interesse, para a conservação e a utilização sustentável da
diversidade biológica.” (BRASIL, 1994).

Os artigos 1011 e 1412 da convenção ainda estabelecem parâmetros de cooperação entre

10
A sustentabilidade é o princípio informador do direito internacional e do direito constitucional, que redefine os
direitos humanos e fundamentais, ao dirigir ao Estado e à sociedade o dever fundamental de atual em regime de
cooperação e solidariedade para promover o desenvolvimento material e imaterial, ético e eficiente, de modo
preventivo e precavido para assegurar às gerações do presente e do futuro o direito ao bem estar e de viver com
dignidade (BOFF, 2014, p. 107; FREITAS, 2012, p. 41 e 77-8).
11
Artigo 10 - Utilização Sustentável de Componentes da Diversidade Biológica. Cada Parte Contratante deve, na
medida da possível e conforme o caso: a) Incorporar o exame da conservação e utilização sustentável de recursos
biológicos no processo decisório nacional; b) Adotar medidas relacionadas à utilização de recursos biológicos
para evitar ou minimizar impactos negativos na diversidade biológica; c) Proteger e encorajar a utilização
costumeira de recursos biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências
de conservação ou utilização sustentável; d) Apoiar populações locais na elaboração e aplicação de medidas
corretivas em áreas degradadas ande a diversidade biológica tenha sido reduzida; e e) Estimular a cooperação
entre suas autoridades governamentais e seu setor privado na elaboração de métodos de utilização sustentável de
recursos biológicos.
12
Artigo l4 - Avaliação de Impacto e Minimização de Impactos Negativos. 1. Cada Parte Contratante, na medida
do possível e conforme a caso, deve: a) Estabelecer procedimentos adequados que exijam a avaliação de impacto
ambiental de seus projetos propostos que possam ter sensíveis efeitos negativos na diversidade biológica, a fim
de evitar ou minimizar tais efeitos e, conforme o caso, permitir a participação pública nesses procedimentos; b)
Tomar providências adequadas para assegurar que sejam devidamente levadas em conta as consequências
ambientais de seus programas e políticas que possam ter sensíveis efeitos negativos na diversidade biológica; c)
Promover, com base em reciprocidade, notificação, intercâmbio de informação e consulta sobre atividades sob
sua jurisdição ou controle que possam ter sensíveis efeitos negativos na diversidade biológica de outros Estados
ou áreas além dos limites da jurisdição nacional, estimulando-se a adoção de acordos bilaterais, regionais ou
multilaterais, conforme o caso; d) Notificar imediatamente. no caso em que se originem sob sua jurisdição ou
controle, perigo ou dano iminente ou grave à diversidade biológica em área sob jurisdição de outros Estados ou
em áreas além dos limites da jurisdição nacional, os Estados que possam ser afetados por esse perigo ou dano,
assim como tomar medidas para prevenir ou mínima asse perigo ou dano; e) Estimular providências nacionais

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os Estados com vistas a melhor conservação ambiental. Como exemplo de conduta a ser
adotada pelos Estados em cooperação, estão a adoção de medidas que diminuam o impacto
ambiental, o estímulo à troca de experiências sustentáveis entre autoridades governamentais e
representantes do setor privado, a notificação imediata de danos iminentes à diversidade
biológica em área de sua jurisdição ou de jurisdição de outro Estado, intercambiar
informações sobre riscos à diversidade biológica. Por meio destes artigos se tem o reforço da
ideia de que todos podem ser componentes de apenas um grupo, a humanidade, que depende
da cooperação entre os Estados para se manter em linha de desenvolvimento nas mais
variadas áreas de interesse humano individual e coletivo.
Outra significante contribuição trouxe a convenção por intermédio do artigo 1813. Nos
termos deste artigo a cooperação entre os Estados é estendida a aspectos técnicos e científicos
“[…] no campo da conservação e utilização sustentável da diversidade biológica [...]”, o que
deve ser feito inicialmente por meio “[…] da elaboração e implementação de políticas
nacionais [...]”, acompanhadas do “[…] desenvolvimento e fortalecimento dos meios
nacionais mediante a capacitação de recursos humanos e fortalecimento institucional [...]”,
para que assim se possa criar “[…] programas de pesquisa conjuntos e, empresas conjuntas,
para o desenvolvimento de tecnologias relevantes [...]”, que atendam aos objetivos da
convenção em nível satisfatório.
As bases internacionais do Estado cooperativo podem ser exemplificadas nos dois
documentos internacionais examinados nos parágrafos precedentes, por representarem a

sobre medidas de emergência para o caso de atividades ou acontecimentos de origem natural ou outra que
representem perigo grave e iminente à diversidade biológica e promover a cooperação internacional para
complementar tais esforços nacionais e, conforme o caso e, em acordo com os Estados ou organizações regionais
de integração econômica interessados, estabelecer planos conjuntos de contingência 2. A Conferência das Partes
deve examinar, com base em estudos a serem efetuados, as questões de responsabilidade e reparação, inclusive
restauração e indenização, por danos causados à diversidade biológica, exceto quando essa responsabilidade for
de ardem estritamente Interna.
13
Artigo 18 - Cooperação Técnica e Científica. 1. As Partes Contratantes devem promover a cooperação técnica e
científica internacional no campo da conservação e utilização sustentável da diversidade biológica, caso
necessário, por meio de instituições nacionais e internacionais competentes. 2. Cada Parte Contratante deve, ao
implementar esta Convenção, promover a cooperação técnica e científica com outras Partes Contratantes, em
particular países em desenvolvimento, por meio, entre outros, da elaboração e implementação de políticas
nacionais. Ao promover essa cooperação, deve ser dada especial atenção ao desenvolvimento e fortalecimento
dos meios nacionais mediante a capacitação de recursos humanos e fortalecimento institucional. 3. A
Conferência das Partes, em sua primeira sessão, deve determinar a forma de estabelecer um mecanismo de
intermediação para promover e facilitar a cooperação técnica e científica. 4. As Partes Contratantes devem, em
conformidade com sua legislação e suas políticas nacionais, elaborar e estimular modalidades de cooperação
para o desenvolvimento e utilização de tecnologias, inclusive tecnologias indígenas e tradicionais, para alcançar
os objetivos desta Convenção. Com esse fim, as Partes Contratantes devem também promover a cooperação para
a capacitação de pessoal e o intercâmbio de técnicos. 5. As Partes Contratantes devem, no caso de comum
acordo, promover o estabelecimento de programas de pesquisa conjuntos e, empresas conjuntas.

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virada paradigmática dos direitos humanos em diferentes estágios de desenvolvimento


econômico, social, político e jurídico da humanidade. Cabe neste momento caracterizar o
Estado Constitucional Cooperativo, expressão utilizada para qualificar os Estados que
procuram dar efetividade no plano interno e externo aos direitos e deveres enraizados em
direitos humanos.
O tempo “democrático” em que vivemos
“[…] obriga-nos a especiais sincronizações, graças às quais se regula a
compatibilidade, a cooperação ou a concorrência. A política tem precisamente por
função assegurar a unidade cultural do tempo face às tendências de desintegração
social [...]” (INNERARITY, 2011, p. 40).

Todavia, deve respeitar concomitantemente o pluralismo cultural e social do presente,


sem se esquecer de pensar nos pluralismos futuros.
Daí é que se retira a importância de caracterizar o Estado Constitucional Cooperativo e
disseminar a ideia de que todos devem cooperar para atingir os objetivos comuns de bem-
estar intertemporal em matéria de direitos humanos. As políticas internacionais e nacionais
tem papel essencial para a consolidação deste modelo de Estado.

2. A CARACTERIZAÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO

Conforme já mencionado em breves linhas, os compromissos firmados pelos Estados


não permaneceram apenas na Carta das Nações Unidas. Os direitos e deveres firmados no
plano internacional não tardaram a serem inseridos nos ordenamentos jurídicos nacionais, seja
em legislação ordinária ou nos textos constitucionais.
Por esta via, os Estados signatários da Carta das Nações Unidas e dos tratados e
convenções que compõem a base fundamental de direitos humanos no plano internacional,
procuraram reafirmar categoricamente no plano interno as promessas internacionalmente
assumidas, tomando-as não somente como instrumentos de direcionamento de suas condutas
no plano internacional, mas, sobretudo como um contrato composto por intenções unilaterais,
dirigentes e compromissórias que expressam a vontade de constituição reflexiva dos anseios
sociais mais próximos de seus governados.
Revela-se, portanto, um humanismo constitucional e legislativo mediante o
estabelecimento de uma série de direitos considerados fundamentais e, por isso,

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caracterizadores do legítimo Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa


humana, princípio enraizante, de elementar observância na condução das ações estatais em
suas relações institucionais14 e com seu próprio povo em todas as suas esferas de atuação, seja
por meio de prestações positivas diretas ou indiretas15 na realização material de direitos
sociais ou, no asseguramento do exercício dos direitos civis e políticos.
É o que ocorre no Brasil. O Estado brasileiro além de ser signatário de diversos
tratados, pactos e convenções internacionais proclamados após a Segunda Guerra Mundial, e
logo na sequência à queda do regime ditatorial instaurado pelo golpe militar do ano de 1964,
através da atuação do poder constituinte originário, inseriu no texto constitucional diversos
axiomas de índole humanística já estabelecidos no plano internacional, admitindo a dignidade
da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) entre seus valores fundantes e de indeclinável
reverência, tanto para instituições públicas, quanto para privados.
O compromisso constitucional brasileiro foi aprofundado pelo legislador constituinte
originário por meio da constituição axiomática em direitos fundamentais de diversos direitos
humanos textualizados em instrumentos internacionais, o que deu origem a uma Constituição
Federal analítica e dirigente, que, ao menos em tese, mostra um Estado compromissado com
seu próprio povo.
Por esta razão, em diversos artigos da Constituição Federal de 1988 se nota a
preocupação do legislador constituinte originário em proteger o cidadão e consagrar a
dignidade da pessoa humana. Sem alongar, pode-se citar o artigo 5º, que cuida de direitos
civis e políticos, garantias processuais, liberdades de associação, reunião e manifestação do
pensamento, defende a propriedade, garante o acesso à justiça e o direito de petição em defesa
de direitos ou contra ilegalidades e abuso de poder e veda a criação de tribunais de exceção; o
artigo 7º cuida especificamente de direitos sócio trabalhistas, ao tratar do salário mínimo,
limitação da jornada de trabalho, remuneração dos serviços extraordinário e noturno, proteção

14
A referência a relações institucionais se deve ao fato de que muitas das políticas públicas (prestacionais ou não)
a serem desenvolvidas pelo Estado tem a sua materialização dependente das boas relações políticas e
institucionais. A título de exemplo pode-se citar as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo. Embora
sejam poderes independentes, não há dúvida de que devem atuar de modo coordenado, no sentido de fazer valer
da constituição como instrumento dirigente, dotado de normatividade e eficácia no plano material, instruidora da
cooperação internacional compromissada, cooperação esta que, obviamente, deve começar pelas boas ações
governamentais no plano interno. Vale deixar claro que aqui não se defende a subordinação de um poder em
relação ao outro, pois certamente está condição é indício da captura e dominação das relações institucionais por
interesses particulares.
15
A referência a prestações positivas diretas ou indiretas refere-se ao fornecimento de serviços públicos de
natureza social, tais como educação e saúde, ofertados diretamente pelo Estado ou, indiretamente por meio de
entidades subvencionadas pelo poder público.

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do trabalho da criança e da mulher e a igualdade entre todos os trabalhadores,


independentemente de sexo, idade, estado civil e cor; o artigo 225 trata da proteção ao meio
ambiente, da preservação da biodiversidade e do patrimônio genético do país, da proteção da
fauna e da flora, da educação ambiental; o artigo 203 e seguintes, que protege a família, a
criança e o adolescente por meio da assistência social, entre outros temas transportados da
esfera humanista internacional.
Portanto, a existência do Estado Constitucional Cooperativo pode ser identificada na
própria vontade de constituir a ação do Estado através da pactuação do compromisso
constitucional com seu próprio povo, fundamentado em direitos fundamentais de essência
humanística, inspirados nos direitos implementados na esfera internacional ou renovados em
outras concepções particulares relacionadas à cultura, história, política, jurídica e social de
seus nacionais. Dito de outra maneira, a configuração desta forma de Estado parte da ideia de
“renovação do contrato social de fora para dentro das fronteiras territoriais”, efeito de todo o
processo reivindicatório de cada quadra da história, assim como de toda a evolução dos
direitos humanos gravurados na Magna Carta (1215), Lei de Habeas Corpus (1679),
Declaração de Direitos (1689), Declaração de Independência e a Constituição dos Estados
Unidos da América, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Convenção
de Genebra (1864) e as Constituições da França (1848), do México (1917) e da Alemanha
(1919).
Isto torna patente e indelével o entrelaçamento existente entre o direito internacional e
o direito constitucional, em constante transformação conjunta, de onde se retira que “[…] o
Direito constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional […] o Direito
Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional" (HABERLE, 2007, p. 11-2).
Por isso se pode afirmar que o genuíno Estado Constitucional Cooperativo é aquele
que encontra “[…] a sua identidade também no Direito Internacional, no entrelaçamento das
relações internacionais e supranacionais, na percepção da cooperação e responsabilidade
internacional, assim como no campo da solidariedade” (HABERLE, 2007, p. 4).
Esta conexão entre direito constitucional e internacional, que rege o Estado
Constitucional Cooperativo, acaba por quebrar o modelo de Estado fechado em si mesmo,
centrado em sua soberania e alheio a novos elementos jurídicos e políticos (BOBBIO, 2004,
24-5), “[…] ele não mais exige o monopólio na legislação e interpretação: se abre – de forma
escalonada – a procedimentos internacionais ou de direito internacional de legislação, e a

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processos de interpretação” (HABERLE, 2007, p. 61).


Sem dúvida, esta troca enriquece não somente as bases jurídicas, sociais e políticas das
partes envolvidas na cooperação, orientada por meio da educação e da conscientização
transformadora da sociedade16, mas, sobretudo, serve para instruir e conduzir o Estado e seus
administradores à boa governança e influenciar positivamente os Estados ainda reticentes à
inexorável abertura que o modelo cooperativo propõe.
O constitucionalismo cooperativo dá, portanto, vazão a uma espécie de Estado
pluralista (HABERLE, 2007, p. 11-2), aberto a novas percepções principiológicas que
ultrapassam as barreiras fronteiriças espaciais e temporais, para impactar não apenas as
sociedades em seus aspectos localizados e as gerações do presente. Isto quer dizer que o
desenvolvimento do direito interno, quando exposto ao regime de cooperação proposto nos
tratados internacionais, cria condições de desenvolvimento do direito interno em conjunto
com o direito internacional, acompanhado, também, do desenvolvimento do direito interno de
outros Estados, em sintonia e harmonia com os direitos humanos e fundamentais em escala
global, ou seja, cosmopolita (KANT, 2011, p. 3-22), sem que com isso a autodeterminação e a
soberania de cada um dos povos envolvidos seja mitigada ou ameaçada por interesses
particulares.
A relação equilibrada e harmoniosa entre os povos e Estados envolvidos neste jogo de
influências em nível global e cooperativo é a chave para a manutenção da fórmula do Estado
Constitucional Cooperativo. Por isso, a interação entre os Estados está intrinsecamente ligada
à superação do egoísmo nas relações internacionais.
Ademais, o sistema cooperativo obviamente resulta da cooperação entre os Estados e
seus respectivos povos, vinculado ao diálogo, à preocupação com o outro (HABERLE, 2017,
p. 9-10), acolhendo-o como seu semelhante, seja ele próximo ou não.
Isto exige a submissão sincera ao sentimento de fraternidade, enquanto princípio
inspirador dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, bem como a sincera aceitação de

16
Enquanto os governos do Ocidente procuram estabelecer um Estado de bem-estar social sobre as bases
cooperativas internacionais de direitos humanos, no Oriente os Estados assumem outra postura. Para
exemplificar citam o modelo de Cingapura, defendido por seu ex-primeiro ministro Lee Kuan Yew: “O modelo
cingapurense de modernização autoritária, portanto, questiona diretamente dois princípios básicos do Estado
Ocidental: o governo democrático e o governo generoso. O paradigma de Lee é elitista e austero. […] Os que
compartilham o com o de Lee é, primeiro, a suspeita de que o Ocidente não tem todas as respostas e, segundo, a
percepção de que o governo é um fator essencial na corrida global para o sucesso. No Ocidente o governo é
caótico, informal e espontâneo. Em Cingapura, é organizado, formal e planejado [...]” (MICKELETHWAIT;
WOOLDRIDGE, 2015, p. 133).

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que os problemas alheios de qualquer ordem (social, econômica, ambiental, político) e em


qualquer lugar do espaço terrestre, sejam tomados como seus, tendo sempre em vista que a
humanidade não se divide em espécies, raças, sexo, idade ou outra forma de diferenciação,
pois, a realidade mostra que a humanidade é um patrimônio uno, indivisível, composta de
sujeitos de direito dotados da mesma dignidade reconhecida internacionalmente.
Em resumo, o Estado Constitucional Cooperativo é o Estado Fraterno, que faz da
reciprocidade elemento de condução das suas ações, no sentido de cooperar com os demais
Estados no plano internacional e nacional mediante o abandono de posturas egoístas e
desprovidas de humanidade, e que tem como pressuposto de atuação as bases principiológicas
de direitos humanos e a sua disposição material e imaterial para todos os povos.

3. RETÓRICA E INSENSIBILIDADE

Embora os textos internacionais e a internalização dos princípios de direitos humanos,


seja nas constituições ou em legislação ordinária, sejam de enorme importância para a criação
de um modelo global de governação focalizado no bem-estar dignificante da pessoa humana
no presente e no futuro, a cooperação entre os Estados, tão desejada e planejada a partir da
Carta das Nações Unidas, não tem plena efetividade.
A Carta das Nações Unidas, em seu artigo 55 criou parâmetros de cooperação
econômica e social, ao dizer claramente que para
“[…] manter toda a situação de estabilidade e bem-estar necessária para que as
nações liderem as relações pacíficas e amigáveis ancoradas no respeito ao princípio
da igualdade e autodeterminação dos povos [...]”, os países, em conjunto com as
Nações Unidas, devem fomentar “[…] a melhoria do nível de vida, a ocupação plena
e os pressupostos para o desenvolvimento e ascensão econômicos e sociais [...]”,
assim como solucionar os “[…] problemas internacionais de natureza econômica,
social, de saúde e similares, bem como a cooperação internacional nos âmbitos da
cultura e da educação […], combinando as duas diretivas iniciais com o “[…]
respeito geral e realização dos direitos humanos e liberdades fundamentais para
todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” (HABERLE, 2007, p. 23).

No entanto, atualmente, a competição entre os Estados pela supremacia política e


econômica mostra o “desinteresse” pelo incremento efetivo e materializador das condições de
pleno exercício dos direitos humanos e fundamentais, sobretudo no que diz respeito aos

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direitos sociais. Esta afirmação resulta da mera análise comportamental 17 dos países que se
comprometeram a cooperar no plano internacional em matéria de direitos humanos, tomando-
se como ponto de partida nesta constatação o modo de atuar destes mesmos países no meio
internacional globalizado, naquilo se refere à competição entre Estados, sobretudo em matéria
econômica. A “visão economicista da virtude” que hoje prevalece alimenta a
“[…] crença nos mercados e promove a sua intrusão em esferas onde não pertencem
[…]. O altruísmo, a generosidade, a solidariedade e o espírito cívico não são
similares a mercadorias que se esgotam com o uso [...]”, muito pelo contrário, pois
são “[…] mais como músculos que se desenvolvem e fortalecem com o exercício
[...]”, sendo um dos “[…] defeitos de uma sociedade regida pelos mercados é que
permite que estas virtudes definhem” (SANDEL, 2015, p. 135).

O processo de globalização agudizado a partir da década de 1970 não se restringiu à


aproximação dos mercados globais e regionais. O principal reflexo sobre os Estados neste
período foi o constante acirramento da competição entre particulares dos setores produtivo e
especulativo, o que foi acompanhado pela constante competição entre Estados pela atração de
investimentos em seus mercados internos para incremento da produção e, em atendimento aos
anseios especulativos.
Foi neste período da história que a matriz produtiva assentada no trabalho foi
definitivamente substituída pela especulação financeira e pelo incentivo ao consumismo
(BAUMAN, 2010, p. 28-30), facilitada pela difusão de redes de comunicação que calharam
por tornar fluida a circulação de capitais em todo o globo (BAUMAN, 1999, p. 77-84;
INNERARITY, 2011, P. 40-1). O novo cenário mudou radicalmente o mundo e as suas
relações entre Estados e entre estes e particulares, sendo que coube aos Estados a tarefa mais
árdua: se adaptar às novas correntes e inconstantes exigências do mercado18, além de que
foram obrigados a mergulhar a fundo na implacável guerra do atrativismo fiscal pela atração
de ativos e investimentos em infraestrutura e no setor produtivo.

17
A questão comportamental em torno de objetivos próprio e cooperantes é bem exemplificada por SEN, (2012,
p. 95), quando explica o dilema dos prisioneiros, em que “[…] cada pessoa tem uma estratégia individual
“estritamente dominante”, no sentido em que, independentemente daquilo que os outros façam, os objetivos
próprios de cada pessoa são mais bem servidos adotando essa estratégia dominante (e de objetivo próprio). Ao
mesmo tempo, os objetivos de todos seriam mais bem respetivamente mais bem servidos se adotassem uma
estratégia diferente (e mais cooperante) dada a escolha do “objetivo próprio”, é claro que cada pessoa adotará a
estratégia não cooperante e, portanto, todos ficarão numa situação inferior à que teriam se seguissem a estratégia
cooperante.”
18
As condições impostas pelo mercado aos Estados não se resume a apenas oferecer meios de atração que
agradem os mercados. Segundo SANDEL (2011, p. 21), quando tudo dá errado e os lucros não aparecem, sobra
para os Estados socorrer, por exemplo, grandes bancos e instituições financeiras, como aconteceu nos Estados
Unidos em outubro de 2008, quando o presidente George W. Bush pediu ao Congresso que liberasse setecentos
bilhões de dólares para socorrer tais instituições, justamente as que obtiveram os maiores lucros durante os
períodos de fertilidade econômica.

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O risco nesta configuração de relações Estado-mercado recai sobre a sanidade fiscal


dos Estados, em razão do alto grau de dependência do mercado interno das voláteis intenções
de especuladores e investidores do setor produtivo.
Por meio da crescente globalização, o acirramento da competição mercadológica entre
Estados e entre Estados e blocos econômicos tornou-se, por conseguinte, um sério entrave à
sequência reafirmativa da cooperação caracterizadora dos Estados Constitucionais
Cooperativos e da efetivação do paradigma de governação baseado nos direitos humanos e
fundamentais. Tem início um período em que os teóricos adeptos do dirigismo constitucional
por meio de suas normas e princípios são desacreditados, como acontecera com
“[…] Tales de Mileto, há milhares de anos. São vítimas de risos irónicos,
semelhantes ao da mulher-serva da Trácia que acorreu gritos de socorro do astrólogo
milésico caído num posso quando observava à noite as estrelas.” Porém, o “[…]
trágico da queda não estará, hoje, só na incapacidade de os mira-estrelas assentarem
os pés no chão e tentarem compreender as armadilhas da praxis. Mais do que isso: o
ruir dos muros revelou, com estrondo, que a queda sequer tinha a grandeza do
pecado.” Isto porque o poço em que os teóricos caíram, assim como aquele em que
caíra o astrólogo “[…] não é uma cisterna em que a água brota cristalina das
profundezas da terra, antes se reduz a uma simples cova, a um fosso banal,
lamacento e sem fundura” (CANOTILHO, 2012, p. 104-105).

A guerra (concorrencial fiscal e de deslocalização de empresas (NABAIS, 2014, p. 34-


5; NABAIS, 2010, p. 130-2) do atrativismo fiscal entre os Estados e a indigitada luta pela
atração de capitais e investimentos mediante a concessão de benefícios de ordem fiscal,
tornou impraticável a programação constitucional, sobretudo em direitos sociais, exigentes de
prestações positivas do Estado de modo direto e indireto. No âmago da globalização, a
competição entre os Estados os colocou em posição instrumental de capitalização dos
interesses mercadológicos dos detentores dos meios de produção, em clara mitigação da
soberania dos Estados em matéria econômica (os Estados e os blocos econômicos já não tem
mais poder suficiente para centralizar as decisões e os rumos do mercado) (INNERARITY,
2011, p. 123), o que reflete sobre a (in)sanidade fiscal e orçamentária dos Estados e, os
incapacita relativamente a cumprir com as obrigações constitucionais assumidas perante a
sociedade em matéria de direitos fundamentais sociais (CANOTILHO, 2012, p. 118). A
cooperação internalizada enfrenta o risco, que é transferido de imediato para parcela da
população dependente das ações estatais de natureza social, ações estas que são
desprogramadas propositalmente por intermédio de políticas de austeridade (SCHUI, 2015, p.
15; DOUZINAS, 2009, p. 46) para superar a crise (CANOTILHO, 2009, p. 84-5) originada da
competição instalada entre os Estados.

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Nestas breves linhas se percebe que em nossos dias não há um compromisso com o
passado, e nem mesmo com o futuro. Não existe o comprometimento com o ideal de justiça
intergeracional, sendo que o equilíbrio buscado é o de curto prazo, parcialmente calculado e
sopesado em vantagens para aqueles que têm maiores condições de “barganha” nas “mesas de
negociações”. A cooperação fica em segundo plano, o egoísmo proveniente da competição é o
protagonista.
Logo, no atual modelo econômico em que o mercado impera assentado na
desequilibrada relação entre produção e especulação, enuncia ser desinteressante para os
Estados globalizados e competitivos assumir a propalada cooperação que nutre e caracteriza o
Estado Constitucional Cooperativo. A retórica prevalece, e os compromissos contratados
internacionalmente em regime de cooperação se mostram inviáveis. Dito de outra maneira,
pelo viés econômico,
“[…] os catálogos de direitos humanos reconhecidos pelas constituições modernas
têm vindo a tornar-se crescentemente inclusivos, mas as práticas políticas
prevalecentes continuam a cometer ou tolerar violações, muitas vezes massivas, dos
direitos humanos” (SANTOS, 2013, p. 76).

A atração fiscal intermediada por benefícios fiscais a investidores e especuladores


financeiros (VALE, 2014, p. 247) exige a seguinte reflexão: a concessão destes benefícios
seria mais uma espécie de violência praticada pelo Estado em face de seus administrados?
Seria uma espécie de legalização de “evasão fiscal” (MEZÁROS, 2015, p. 53) ou, na pior das
hipóteses, configurariam benefícios fiscais equivalentes a subvenções ou subsídios (NABAIS,
2014, p. 44) suportados pela sociedade - os mais fragilizados economicamente - (NABAIS,
2014, p. 53) enquanto mantenedora do Estado?
Implica na diminuição das receitas estatais frente às exigências de seus cidadãos pela
manutenção e ampliação de serviços públicos de natureza social, muitos destes serviços
voltados à materialização dos direitos sociais dispostos na constituição e nos tratados
internacionais (NABAIS, 2014, p. 35; MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015, p. 230-1).
A paradoxal relação entre atração fiscal e o atendimento da demanda existente no
presente, e a demanda que seguirá no futuro, geralmente em sentido crescente, deixa claro que
a sustentação fiscal dos próprios Estados envolvidos está cada vez mais difícil e em vias de
desestabilização recorrente.
Os problemas que se colocam não se resumem à simples incapacitação para atender às
necessidades sociais. A incessante luta mercadológica ultrapassa a simples insustentabilidade

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financeira originada da variação dos níveis de arrecadação, ao atingir em cheio a estabilidade


política e institucional dos Estados, justamente em virtude da sua incapacidade de impor os
interesses públicos e de Estado, sejam eles de natureza social ou não, junto aos operadores
(investidores e especuladores) que dominam os mercados internacionais e internos. A
dependência exacerbada do Estado em relação ao mercado globalizado, em todos os níveis de
atuação, abala a confiança na política (SANDEL, 2011, p. 130; BOFF, 2014, p. 18;
MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015, p. 220-1; INNERARITY, 2011, p. 124)19, nas
instituições democráticas dos Estados e carrega consigo a fragilidade que signa a soberania20
dos próprios Estados (BAUMAN, 1999, p. 73-4; NABAIS, 2004, p. 84-8).

O abalo nas instituições democráticas e a perda de confiança na política é ainda


agravada pelas recorrentes promessas incumpridas dos governos populistas, sobretudo nas
democracias populares, em que para se conseguir o voto para vencer os adversários é
necessário prometer (BAUMAN, 1999, p. 73-4; BELCHIOR, 2015, p. 30; INNERARITY,
2011, p. 19) e convencer, sem se preocupar se aquilo que compõe o plano de governo será
efetivado ou, se existem condições econômico-financeiras de ao menos iniciar aquilo que se
prometeu.
Como equilibrar o ímpeto reivindicatório da população com baixos impostos e
benefícios fiscais sem dissimular as contas públicas ou endividar as gerações do presente e do
futuro? É uma das várias questões que permanecem sem resposta quando a cooperação entre
os Estados é colocada em “xeque”.
Com efeito, presos à rede globalizada de interesses privados, os Estados tem as suas
estruturas políticas e jurídicas envolvidas pelos interesses particulares do mercado, que de

19
“A confiança é assim vista como um termômetro da vitalidade do sistema democrático que, quando aponta
para valores negativos, significa a prevalência de problemas e dificuldades no funcionamento do mesmo,
podendo em última análise por em causa a estabilidade do próprio sistema. Neste sentido, a desconfiança política
é sinónimo de potencial crise no sistema” (BELCHIOR, 2015, p. 28).
20
“[…] a globalização está mudando a política nacional profundamente. Os políticos nacionais renunciam a cada
vez mais poder, em relação, por exemplo, aos fluxos comerciais e financeiros, para o que poderia ser
denominado, sem muita precisão, de capitalismo global. Outorgaram soberania a várias entidades
supranacionais, como a Organização Mundial do Comércio ou, com efeito, a União Europeia, ou delegam poder
aos tecnocratas, sobretudo a banqueiros centrais, para conquistar a confiança dos mercados. Em tudo isso
sobressai uma lógica cogente: como um país isolado poderia manejar problemas globais a exemplo da mudança
climática? Também se constata um elemento nobre de autocontenção: para os políticos nacionais, a melhor
maneira de resistir ao canto das sereias de imprimir dinheiro é amarrar-se ao mastro da autoridade monetária
[...]”. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2015, p. 249).

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forma impetuosa, mas sutil e manipuladora, coloca sua “mão invisível”21 por sobre as
políticas econômicas e jurídicas (trabalho legislativo) dos países, direcionando-os, o que calha
por capturar seus governantes e legisladores, em muitas oportunidades congregados a
defender as causas de mercado sob o véu (falácia) (FREITAS, 2012, p. 148) do interesse
público. Sem dúvida, esta coordenação de fatores dificulta a materialização de direitos
humanos e fundamentais, pois onde há o interesse econômico e produtivo de mercado em
primeiro plano, não se tem o interesse público e social como objeto primordial de
materialização. Os resultados cada vez mais expressivos obtidos pelos especuladores e
investidores entrincheirados em suas riquezas e, os resultados sociais e políticos obtidos pelos
Estados submetidos ao seu império, bem mostram que são aspectos segregadores de
coexistência inconciliável com a cooperação internacional proposta após a Segunda Guerra
Mundial.
Assim, pode-se dizer que, a integração global por meio da competição não viabiliza no
plano político-jurídico do próprio Estado o regime de cooperação prevalecendo apenas a
“legitimação” mercadológica da lei do mais forte (MEZÁROS, 2015, p. 16-17). O domínio do
mercado condiciona a vida das pessoas, da sociedade e dos Estados, “[…] para reger a saúde,
educação, segurança pública, segurança nacional, justiça penal, proteção ambiental, recreação,
procriação e outros bens sociais […]” (SANDEL, 2015, p. 18).
Por sua vez, estas condições são agravadas em países de menos capacidade
competitiva e de reduzido poderio econômico.
Nestes casos, além de competir aceleradamente no mercado internacional em meio a
guerra atrativista com países de mesma “hierarquia”, ainda enfrentam a dominação política e
econômica dos países que detém o controle (indireto) do mercado em decorrência da alta
capacidade produtiva e econômica, o que lhes permite participar da criação das regras do jogo
e absorver antecipadamente as exigências do próprio mercado (MEZÁROS, 2015, p. 56-7)22,

21
O interessante é que SEM (2012, p. 43) destaca que “Apesar de Smith ser frequentemente citado por
administradores imperiais como justificação para recusar intervir em carestias em locais tão diversos como a
Irlanda, a Índia e a China, nada indica que a abordagem ética de Smith à política pública se opusesse à
intervenção em apoio aos benefícios dos pobres. Embora se opusesse certamente à repressão do comércio, a sua
chamada de atenção para o desemprego e para os salários baixos como causas da fome sugere uma variedade de
respostas de política pública.”
22
Vale dizer que as regras do jogo não são apenas objetivas. A competição antecede ao estabelecimento das
exigências mercadológicas e dos países beneficiados. Todo o esquema globalizante foi precedido por uma guerra
cultural, por meio da qual se buscou definir uma linha de pensamento acadêmico e instrumental econômico que
beneficiasse os controladores do mercado, sejam eles países centrais ou particulares (especuladores e
investidores), em detrimento aos países periféricos. A estes, desde o início, sobram as migalhas.

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às quais também passaram pelo seu crivo antes mesmo de serem impostas aos demais
competidores periféricos.
O enfrentamento e a ausência de cooperação também são agravadas em países
periféricos e incapacitados a competir (atrair todo e qualquer investimento que agregue
receitas e desenvolvimento social e do mercado de trabalho-produtivo, principalmente em
longo prazo) em condições de igualdade, quando se tem em vista que o modelo de Estado
Constitucional por eles absorvidos ainda não saiu do plano imaterial, ao passo que a demanda
por serviços estatais de natureza social cresce a cada dia, sem interrupção.
Ao prevalecerem as concepções de desenvolvimento do mercado, sobressaem os
interesses de poucos, soçobram os interesses da maioria, a economia assume a soberania das
ações, e a cooperação humanística que marcou o pós-segunda guerra mundial cai na retórica
daqueles que utilizam os direitos humanos e fundamentais apenas como instrumento de
“catequização”23 dos Estados (DOUZINAS, 2009, p. 130 e 135; SANTOS, 2013, p. 16-7 e
32; MEZÁROS, 2015, p. 95).
É por isso que o
“[…] hiato entre o triunfo da ideologia dos direitos humanos e o desastre de sua
aplicação é a melhor expressão do cinismo pós-moderno” e também o resultado da
“[…] combinação de iluminismo com resignação e apatia e, com uma forte sensação
de impasse político e claustrofobia existencial, de uma falta de saída no seio da mais
maleável sociedade” (DOUZINAS, 2009, p. 30).

Assim, o Estado Constitucional Cooperativo, imaginado para romper com as barreiras


das desconformidades locais, regionais e globais em direitos humanos e fundamentais, fica
em segundo plano e enfraquecido, pois já não consegue crescer e legitimar-se por meio da
realização dos direitos fundamentais e da cooperação internacional em direitos humanos
(HABERLE, 2007, p. 70). A retórica humanística de cooperação e solidariedade ganhou
forma e se torna cada vez mais opulenta pelo acréscimo da insensibilidade (monetária,
especulativa e acumuladora) de quem domina o mercado e impõe as regras do jogo, haja vista
que o mercado e seus controladores não costumam se preocupar com bens mais nobres ou
dignos, pois apenas se preocupam com suas preferências (SANDEL, 2011, p. 23; SEN, 2012,
p. 85-7). Dentro desta perspectiva, a única preocupação está em decidir qual o preço a ser
exigido dos Estados e das sociedades globalizadas? Qual o preço a se pagar para se ter um

23
Os direitos humanos muitas vezes são instrumento de catequização do ocidente sobre o oriente, utilizados para
justificar ações bélicas e embargos econômicos que ao final não se ajustam às intenções cosmopolitas de
cooperação que, inicialmente, buscaram estabelecer uma nova ordem mundial, ainda que tenha sido
implementada para atender aos interesses dos países mais fortalecidos pelos pós-segunda guerra mundial.

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regime de cooperação assentado em diretos humanos e fundamentais?


E diante de toda esta conjectura sobra a todos pensar se hoje a questão dos
compromissos internacionais giram apenas em torno de contar os custos e benefícios da
manutenção do mercado, “[…] ou será que determinados deveres morais e direitos humanos
são tão fundamentais que se sobrepõem a tais cálculos?” (SANDEL, 2015, p. 42). Para
responder a esta pergunta, antes de tudo, deve-se identificar as prioridades, não apenas do
Estado, mas principalmente aquelas que movem as pessoas todos os dias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão que se propõe neste texto é estimulada pelas interligações dinâmicas da


globalização, instigadoras da competição entre os Estados que assumiram compromissos
internacionais de cooperação, hoje, deixados para “mais tarde” (ou, em caso de continuidade
da demora, para “tarde demais”?).
As prioridades agora são outras: competir no mercado globalizado, de fronteiras cada
vez mais invisíveis, sem se preocupar com a cooperação voltada para o bem-estar comum.
Cooperar, neste período da história, somente é interessante aos Estados e seus governantes em
casos excepcionalmente calculados, para atender aos interesses econômicos do mercado e dos
países dominantes.
Percebe-se muito facilmente que os direitos humanos e fundamentais caíram no
abismo da retórica, perderam espaço (será que já tiveram reconhecimento e espaço
verdadeiro?) para a insensibilidade dos números, que afastam a preocupação com os danos
aos próprios Estados envolvidos na teia competitiva e seus respectivos cidadãos. A
preocupação não gira em torno da manutenção de bons níveis de humanismo material, nem
mesmo na disseminação de seus paradigmas axiomáticos em vias de conscientização
horizontal.
O bem-estar comum e universal, de caráter cosmopolita e de longo prazo, para as
gerações presentes e futuras ainda é algo que se imagina para “depois”, quando a realidade
vivida por todos mostra que interdependência existencial supera as formalidades,
regionalismos e interesses particulares, pois é imprescindível a consagração material,
pragmática e sistêmica dos direitos humanos e fundamentais que dão sustentação ao Estado

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Constitucional Cooperativo.
A conciliação do desejo de que o Estado Constitucional Cooperativo mantenha-se em
frente e vivo com as relações econômicas que influenciam as decisões governamentais se
mostra cada vez mais difícil e, neste momento, pouco provável. A frieza dos números indica
que nesses idos de 2000 a humanidade está longe ser efetivamente mais humana, enquanto
que o Estado Constitucional Cooperativo existe, mas apenas em termos retóricos, pois não
tem calor suficiente para impor-se sobre a retórica de quem defende a insensibilidade do
mercado.

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Recebido em 05.09.2017
Aprovado em 20.12.2017

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