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“Tal visão renovada da realidade contraditória de cada fração do território deve ser
oferecida à reflexão da sociedade em geral, tanto à sociedade organizada nas associações,
sindicatos, igrejas, partidos, como à sociedade desorganizada, que encontrarão nessa nova
interpretação os elementos necessários para a postulação e o exercício de uma outra
política, mais condizente com a busca do interesse social”. Milton Santos·
Apresentação
O Complexo do Alemão aparece há algum tempo como um dos significantes de uma cadeia
de imagens da nossa “guerra civil”, que tece relações estreitas com uma certa leitura dos
problemas das metrópoles brasileiras. O Rio de Janeiro em 2007 entra na agenda estratégica
nacional pelo enlace entre os Jogos Pan-americanos e o ensaio geral da política nacional de
segurança. Uma certa ciência social e uma certa tecnocracia se alimentam e se balizam na
superfície da profusão de imagens que se entrelaçam para justificar um novo passo na
gramática do poder, uma nova síntese produtiva que gera um efeito de bloqueio à
construção de alternativas para os modos de vida urbanos a partir das classes populares.
Nosso texto é de advertência sobre a necessidade de desvendar os modos de atualização das
estratégias de segregação e controle social das classes populares nas grandes cidades
brasileiras, a partir do cenário emblemático do Rio de Janeiro como laboratório de uma
nova política de segurança.
Acumulação e cidade
1
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
1
classes populares a produção da escassez é ampliada por força das exigências da
reestruturação dos territórios, que impõe novas distâncias sociais, econômicas e culturais2.
As novas polarizações explodem na razão direta dos modos de exclusão e da imposição dos
modos de consumo e reprodução social que desarticulam as práticas e os ritmos próprios
aos moradores dos espaços identificados como favelas.
2
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização : do pensamento único à consciência universal, Rio
de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.
3
SANTOS, Milton.Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional, São
Paulo: Hucitec, 1994.
2
Controle social e jogos de poder
O fantasma das classes perigosas ronda e alimenta a cultura do novo “grande medo”,
ampliando e radicalizando a escala do conflito armado. Violência e capitalismo tem uma
relação historicamente simbiótica, quando se trata da espoliação e do controle direto sobre
o espaço, o corpo e o imaginário das classes populares. A desqualificação e a destituição
fazem parte do círculo de produção de uma certa hegemonia na produção da subalternidade,
de modo que às classes populares só reste o horizonte da venda subordinada de seu tempo
de trabalho ao custo da reprodução de uma vida entre a pobreza e a miséria. A tolerância
zero, no século XXI, é o discurso que legitima como caso de polícia a questão social na
profusão de uma retórica e de imagens da guerra contra os pobres no lugar da guerra contra
as desigualdades.
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O biopoder da criminalização do social se traduz nas ações de encarceramento, vigilãncia e
segregação na lógica da apartação social. O espaço urbano em crise se reproduz atravessado
pelo desconhecimento e pela falta dos mapas do conflito real, desconhecendo a relação
entre os lugares e as pessoas. Na leitura dominante, o sujeito se torna objeto ao ser tomado
pela idéia de ignorância face à lei. Na superposição construída de imagens sobre o outro,
não devemos esquecer a superposição de espaços diferenciados, segregados a partir dos
pontos, dos lugares que se conformam, no dizer de Milton Santos, como “cidade moderna
seletiva”. Os subespaços preféricos disfuncionais para uma apropriação material direta pelo
capital e seus padrões de produção e consumo continuam tendo sentido funcional para a
máquina do capital, desde que operem no papel de fornecedores na objetivação do trabalho
barato compondo a paisagem das “prisões da miséria” e, também, sustentando a
subjetivação para a apropriação econômico-simbólica.4
A grande questão da via única da globalização hegemônica é a de que uma nova lógica de
jogos de guerra se desenvolve no plano mundial através de múltiplas conflagrações locais.
A globalização localizada é o efeito de um impulso localista promovido pela mundialização
na era do capitalismo tardio mundializado, espaço urbano metropolitano nacional é onde
esse efeito gera um quadro que se manifesta de formas variadas de conflito com a ordem
global na Faixa de Gaza, em Beirute, em Bogotá, em Paris, em São Paulo ou no Rio de
Janeiro. O macro-modelo de intervenção imperial de ocupação como no Iraque, se
complementa e desencadeia uma profusão de dispositivos e acentua os desdobramentos de
contextos e imagens de guerra civil difusa e permanente na sociedade global. No plano
subjetivo e nos processos reais se cruzam as dinâmicas da guerra e da economia,
substituindo a política e a cultura crítica.
O modelo colombiano5
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A transposição de modelos deslocados dos contextos leva a políticas esvaziadas da
presença e da voz dos atores sociais reais. As ações quase sempre são desprovidas de
recursos para atender às demandas das populações nas grandes escalas territoriais e, sem
instrumentos que levem em conta nossa experiência recente. O modelo colombiano é
prisioneiro do espetáculo da guerra, acompanhado de um conjunto de quase-programas e
intervenções urbanas parciais.
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mobilização democrática e produtiva das populações levam a que se amplie o grande medo.
A imagem das classes perigosas reaparece como farsa, alimentando um novo tipo de
fascismo social que se alimenta conforme a uma construção seletiva da imagem das vítimas
e os rótulos impostos aos sujeitos sociais. A seleção de vozes e de imagens, que impedem a
visualização de outros possíveis, a partir das práticas e percepções das classes populares,
impossibilita o entendimento das conjunturas locais e a tomada de consciência individual e
coletiva. A articulação de alternativas é bloqueada pela estreiteza e pobreza das análises
que são acompanhadas pela saturação do imaginário pela forma entorpecedora da violência
como espetáculo.
As classes trabalhadoras e o povo que são o corpo coletivo com maior potencial
comunitário, cooperativo e solidário, a partir da sua organicidade e das condições de
contato e vizinhança, são pressionados por um movimento de autodestruição material e
simbólica. As redes sócio-criminais são vistas em desconexão com a dinâmica das redes de
poder vertical, que são a parte minoritária que perverte o corpo popular, que mercantiliza as
relações sociais, destruindo o sentido do público e do comum. O pensamento crítico deve
promover uma leitura que parte da percepção que a banalização da violência justifica o
regime institucional do Estado Policial de exceção, quando é naturalizada a visão sobre a
cidade. A ausência de pesquisa sobre as alternativas democráticas que partam das classes
populares é conseqüência de um modo de produção das percepções que eterniza as relações
de poder, que só visa garantir a acumulação por espoliação como uma componente chave
da acumulação flexível da globalização financeirizada.
A desmedida acumulação de capital, como horizonte civilizatório, tem seu preço na nova
gramática de guerras civis permanentes contra as populações segregadas, do ponto de vista
de classe. Articula-se a eternização de construção do inimigo no corpo da juventude não-
branca e afro-descendente; em geral, sem lugar nos processos derivados das novas
transformações técnico-produtivas e da intensificação da produção global da mais-valia.
Hoje, mais do que uma funcionalização do espaço urbano na forma disciplinar da divisão
social do trabalho, temos a construção substitutiva de uma razão cínica, que opera como
justificadora do controle policial ampliado.
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descolados dos conflitos oriundos da apropriação da riqueza, da nova divisão do trabalho.
Desta forma, escapa o reconhecimento dos lugares dos atores sociais na estrutura urbana.
Não se leva em conta a produção social da violência no quadro de uma teoria da escassez
ampliada pela lógica da acumulação acelerada pelo meio técnico-informacional e pelos
padrões culturais e de consumo que seguem os fluxos verticais. O impacto da globalização
e da restruturação capitalista, no espaço urbano, são abstraídos na leitura de processos
situados e localizados, que são banalizados pela hipertrofia dos simulacros.
Em busca da alternativa
As ciências sociais com seu enfoque nos estudos espaciais, em especial a geografia crítica e
o planejamento urbano, devem reorientar os estudos sobre as cidades brasileiras no
contexto da brutal metropolização que destrói o sentido de comunidade política e de
solidariedade. Cabe, como sugere Ana Clara Torres Ribeiro (2006), repensar o urbanismo e
o planejamento urbano na articulação entre lugar, tecido social e cotidiano, resgatando o
poder de produção de respostas e demandas para a construção de novos sentidos para o
direito à cidade, a partir do ponto de vista de uma nova centralidade, que parta da
perspectiva das classes subalternas, invertendo o olhar naturalizador e segregacionista.
O objetivo da leitura crítica é o de apoiar uma práxis dos sujeitos coletivos que parta de
uma nova centralidade e potencialidade da periferia/favelas para recriar as condições e os
modos de vida na cidade. O estudioso do espaço urbano deve orientar seu trabalho para os
novos modos de articulação entre os sistemas de ação e os objetos, pela via da apropriação
coletiva, pela via do público, como exigência do comum6.
6
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Presenças Recusadas: Territórios populares em Metrópoles Brasileiras.
In: Ferreira Nunes, Brasilmar (org.). Sociologia de capitais brasileiras: participação e planejamento urbano.
Brasília: Líber Livro Editora, 2006.