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Adone Agnolin
Departamento de História-FFLCH/USP
Resumo
Traduzindo os dogmas doutrinais pós-conciliares para os indígenas americanos,
os missionários empreendiam uma tradução de uma tradição religiosa ocidental
para uma cultura que não participava dela. Os códigos culturais daquela cultura
“estranha” deviam servir para inscrever a tradição religiosa ocidental entre os
indígenas. Para fazer isso, a “redução” devia corrigir os excessos (dos costumes)
e as ausências (de crenças) dos novos catecúmenos americanos. Os excessos
impunham a disciplina, enquanto as ausências reclamavam a doutrina. Nesse
percurso, o hibridismo cultural decorrente de uma interpretação ritual do
encontro doutrinal e sacramental reescreveu a relação com o sagrado segundo
uma nova estrutura, tipicamente colonial.
Palavras-Chave
Missões jesuíticas • Tradução • Índios Tupi
Abstract
In translating post-Trentian dogmas to Amerindian peoples, missionaries sought
to translate a Western religious tradition to a culture completely unfamiliar with
this doctrine. The cultural codes belonging to that “alien” culture were to serve
as a medium for inscribing the Western religious tradition among indigenous
peoples. In order to do so, missionaries adopted a “reduction” strategy to correct
excesses (in customs) and absences (in beliefs) among the Amerindian
neophytes. Excesses demanded discipline, while absences called for doctrine.
In this process, the ritual reinterpretation of the doctrinal and sacramental
encounter resulted in a form of cultural hybridism, which reformatted relations
with the sacred according to a new, typically colonial structure.
Keywords
Jesuit Missions • Translation • Tupi Indians
1
AGNOLIN, Adone. “Jesuítas e Selvagens: o encontro catequético no séc. XVI”. In: Revis-
ta de História, n. 144, 1º semestre de 2001, pp. 19-71. Trata-se de um artigo que se propôs
enquanto síntese de um primeiro Relatório Científico para FAPESP, São Paulo, Fevereiro de
2001, resultado do começo de uma pesquisa de Pós-Doutorado, desenvolvida junto ao De-
partamento de História-FFLCH/USP e financiada pela Fapesp.
2
Que leva o subtítulo de Conceitos, palavras e gramáticas, pp. 58-65.
observar que esta linguagem interpretativa tem uma sua história – anterior a esse
encontro colonial específico e interna ao próprio Ocidente – e uma sua projeção
sobre outras formas de fazer história, modalidades com as quais o Ocidente entrou
em contato nessa época. Com relação a isso devemos levar em consideração que,
na perspectiva da catequese, sua gramática, sua semântica e suas modalidades de
comunicação estruturam-se a partir de uma dimensão comum (universal) do
homem enquanto catecúmeno: isto é, a catequese pretende realizar a revelação
cristã “ao longo de um caminho histórico da humanidade que torna os homens
catecúmenos, isto é, na realização de um projeto (mistério) de Deus que, ao
mesmo tempo, transcende a, e se inscreve na, própria história”3.
Ora, se nossa indagação fosse de caráter teológico, diríamos que a fé
transcende a história e que a inscrição do mistério na história se resolveria na
missio (o anúncio de Deus, enquanto misterium, e de Cristo, enquanto verbum).
Nesse caso, a missão imporia ao homem cristão uma obra de “inculturação na
fé”, da qual a catequese representaria o instrumento doutrinal privilegiado.
Todavia, partindo da perspectiva exatamente oposta – isto é, de uma ótica que,
histórica ou antropológica que seja, larga mão das transcendências para abrir-se
a uma dimensão horizontal da história do homem –, destacamos como, nos
pressupostos de nosso estudo e em contraste com a perspectiva (teológica) anterior:
3
Ibidem, p. 22. Ver a respeito toda a parte que leva o subtítulo Apontamentos sobre a catequese,
pp. 22-25.
das disputas doutrinais, para começar a se dar conta de que, além da procura
de uma inculturação na fé, realiza-se uma inculturação da fé (de um crer que,
de alguma forma, se constituirá como tal) que, através da disputa (e, quando
possível, da mediação) com o outro doutrinariamente diferenciado (mas histo-
ricamente definido), leva à possibilidade de um (de alguma forma) “encontro”
com o outro culturalmente (e historicamente) distinto. O reconhecimento his-
tórico (a consciência) desse percurso leva, finalmente, à possibilidade de en-
tender a fé como produto histórico, oferecendo-se enquanto a base que determina
o delinear-se da perspectiva antropológica e da história das religiões. Em suma,
parte-se das disputas doutrinais, para se chegar à história das religiões4.
4
O período histórico que interessa nossa investigação adquire uma importância central em re-
lação a essa problemática que se configura, de fato, profundamente enraizada nas disputas
doutrinais. Frente aos novos problemas histórico-culturais do começo da Idade Moderna, es-
sas disputas doutrinais encontram seus instrumentos críticos justamente na Traditio da Patrística
cristã. E isso, tanto em relação ao seu constituir-se como fundamento da identidade católica,
quanto em relação ao mundo da reforma luterana que, projetando na traditio a luz funesta de
uma decadência, pretende, de fato, voltar para uma presumida forma original do Cristianismo:
este o sentido próprio da Reforma. Nesse contexto histórico de disputas doutrinais, no que diz
respeito ao mundo católico, é na relação entre a assembléia conciliar tridentina e o centralismo
romano que assistimos ao determinar-se dos resultados mais significativos para uma nova
catequese: aquela pós-tridentina. Nessa, alguns importantes aspectos sacramentais emergem
em sua nova configuração doutrinal, estabelecendo um conflito – e, até um certo ponto, uma
forma de convivência, de longa duração – com os rituais sociais tradicionais.
5
A partir desse pressuposto, a prática quotidiana de aculturação teria feito com que o clichê
‘idolatria’, sofresse, “... a primeira transformação simbólica: seguramente um signo da dis-
tância da fé cristã, mas também indício de um crer ‘outro’ que confirma na prática e com a
prática a pertinência dos indígenas ao comum gênero humano”. Dessa forma, a idolatria se
teria configurado, portanto, “como universalização do crer [que] é a primeira forma geral de
pensamento selvagem produzida pela cultura cristã moderna”. GASBARRO, Nicola. “Il
linguaggio dell’idolatria: per una storia delle religioni culturalmente soggettiva”. In: Studi e
Materiali di Storia delle Religioni, Roma, vol. 62, n.s. XX, nº 1/2, p. 189-221, 1996. p. 205.
que, por um lado, o problema catequético de encontrar uma ‘crença’ para fun-
damentar sua missio levava (quase que necessariamente) o missionário em di-
reção a uma ‘solução’ idolátrica. Quando, todavia, nos momentos críticos, essa
última solução afastava-se do horizonte missionário – isto é, quando parecia
não haver mais a possibilidade desse reconhecimento entre determinadas cultu-
ras indígenas – tornava-se claramente desesperadora a ação missionária6.
Sugerida por nossa própria documentação (antes jesuítico-romana e posterior-
mente jesuítico-missionária), a nova perspectiva de indagação soma-se à
peculiaridade segundo a qual tal revolução sacramental realizou-se em relação e
em estrita necessária dependência para com as tradições sociais indígenas. À medida
em que se delineava, progressivamente, a fragilidade de uma possível ‘solução’
idolátrica para fundamentar a missão entre os tupi, parece surgir e afirmar-se uma
outra forma e estratégia (paralela, antes, e alternativa, depois) de ‘solução’ que
realize (torne possível), de algum modo, o encontro cultural que devia constituir-
se como base de um complexo processo transculturativo: o encontro catequético
devia realizar-se através de um “encontro de ritualidades” que, com seus autos,
solenidades e teatro jesuítico, implementaram o Teatro da Fé7.
É somente levando em consideração (isto é, historicizando) as problemáticas
religiosas (ocidentais) que podemos tentar entender o processo do encontro
catequético com os tupi em suas peculiaridades. Todavia, hoje nos parece evidente
que, através de uma atenta análise da nossa documentação em terra de missão, o
momento ritualista concentre o transbordamento das problemáticas desse encontro
por além dos limites, sempre prontamente (e necessariamente) erguidos pelos
missionários, de sua “redução religiosa”. Esse momento do “encontro ritualista”
coloca em foco a rica produção documental que nos permite, de alguma forma,
a possibilidade privilegiada de incursão nas culturas indígenas.
6
Exemplo significativo da percepção missionária do iminente risco/possibilidade de falência da
própria missio é a lamentação do Pe. Manuel da Nóbrega, a respeito dos Tupinambá brasileiros,
feita em 1556: “Se tiveram rei, podérão se converter, ou se adorárão alguma cousa; mas como
não sabem, que cousa é crêr, nem adorar, não podem entender a prégação do Evangelho, pois
ella se funda em fazer crêr e adorar a um só Deus, e a este só servir; e como este gentio não adora
a cousa alguma, nem crê em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada”. Carta de Pe. Manuel
da NÓBREGA (1556-57), In: LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas no Brasil. São
Paulo, vols. I-III, 1956-58: carta que se encontra no vol. II, p. 320.
7
Segundo o título do livro de KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: representação religiosa no
Brasil e no México do século XVI. São Paulo: Hucitec, 1998.
8
No que diz respeito à peculiaridade da “profissão de fé cristã”, poderá revelar-se de grande
utilidade seguir algumas das indicações traçadas pelo trabalho de Sabbatucci, no primeiro capí-
tulo de La prospettiva storico-religiosa que leva, de fato, o título (por enquanto) curioso de fede
nella fede (fé na fé). Cf. SABBATUCCI, Dario. La Prospettiva Storico-Religiosa: fede, religione
e cultura. Milão, Il Saggiatore, 1990. Cf. o capítulo I: fede nella fede, de p. 5 à p. 18.
9
Trata-se, de fato, do ano em que Carlos V presidiu a dieta de Augusta (Augsburg, na Baviera)
a fim de resolver a controversa questão religiosa decorrente do nascimento e da difusão do
luteranismo. Nesta ocasião – com a importante contribuição de Melanchton, grande humanista
amigo de Lutero – os teólogos luteranos elaboraram sua profissão de fé, apresentada à dieta
e nota como a “Confissão de Augusta”. Em seguida, adequando-se ao ordenamento eclesial
das várias comunidades protestantes nacionais, as Confissões se multiplicaram.
10
Veja-se, a esse respeito, o exemplo da Irlanda gaélica, proposto no trabalho de PO-CHIA
HSIA, Ronnie. The World of Catholic Renewal (1540-1770). Trad. it.: Bolonha, Il Mulino,
2001, pp. 119-20. Onde, por exemplo, às páginas 119-20, destaca como “rituais e sacramen-
tos tornaram-se elementos cruciais” ao redor dos quais construir e administrar o encontro (e
a compatibilização) entre os dois modelos do catolicismo europeu.
11
De fato, uma forma necessariamente ritual de aproximação ao “sagrado”.
12
Cf. a definição emblemática de Nicola Gasbarro que, nesta perspectiva, define esquemática
e exemplarmente este percurso: “Única cultura no mundo a inventar-se em termos de civili-
zação e de religião, e a construir a sua história e, sucessivamente, aquela do mundo com uma
contínua oscilação entre os dois termos, depois da religião natural e do direito natural, o
Ocidente inventa a civilização e a religião enquanto construções culturais, isto é, a antropo-
logia e a história das religiões”. GASBARRO, Nicola. “Religione e Civiltà: F. Max Müller
e E. B. Tylor”. In: Storia, antropologia e scienze del linguaggio, III, 1988, p. 126.
portância por quais fins, sendo que acerca dos fins não existe acordo e, portanto,
estes ficam fora do dado, ou daquilo que se aceita como um dado. Ora, é um
fato que a fé por si mesma caracteriza a religião cristã e condiciona o nosso
conceito de religião; por isso nós estamos acostumados a conceber a própria
religião, qualquer que seja, como um comportamento baseado na fé. Mas do
ponto de vista histórico-religioso não é correto falar de religiões de outros igno-
rando este condicionamento13. Com certeza o “fideísmo” cristão tem marcado
toda a cultura ocidental; portanto o primeiro passo para uma historicização da
fé deveria ter como objetivo a verificação da contingência histórica (e da con-
seqüente necessidade teórica) que tornou fundamental, para o cristianismo, a
profissão de fé14.
Ponto de partida para uma interpretação crítica é o fato de que não é uma
fé que faz a religião, mas é, eventualmente, uma religião que faz (constrói,
inventa mesmo) a fé; tal eventualidade encontra-se inscrita no cristianismo,
enquanto religião que incluiu a fé nos próprios atos institucionais. A fé por si
mesma, isto é, des-historificada, não faz religião15. Ora, em relação a esse pro-
blema, torna-se evidente que “crer é um conceito genérico e por nada especi-
ficamente religioso: pode-se crer em coisas totalmente profanas”16. Eventual-
mente, o próprio Brelich distingue entre “um crer espontâneo e sem alternativas”
e o “crer podendo escolher entre diferentes possibilidades”; porém acrescenta:
“ambas estas formas do crer podem ser ou profanas ou religiosas”. Nessa pers-
pectiva, os cristãos realizaram-se como tais justamente pelo “crer com alter-
nativa”. Determinadas circunstâncias históricas os tinham colocado em frente
a uma escolha: para se tornar cristãos deviam escolher sê-lo e dar testemunha
da escolha através de uma profissão de fé. Foi assim no começo, quando se
tratou de escolher entre duas possibilidades: Jesus era ou não era o messias
esperado pelo povo hebraico. Aqueles hebreus que escolheram a primeira al-
ternativa deixaram de ser hebreus e tornaram-se cristãos17.
Com Jesus, o reino terrestre de Deus, concebido pelos profetas hebraicos,
tornou-se o Reino dos Céus, uma realidade extra-mundana, transcendente,
13
SABBATUCCI, Dario. Op. Cit., p. 5.
14
Ibidem, pp. 7-8.
15
Ibidem, pp. 9-10.
16
BRELICH, Angelo. Introduzione alla Storia delle Religioni. Roma: Ed. dell’Ateneo, 1965, pp. 6-7.
17
SABBATUCCI, Dario. Op. Cit., p. 10-11.
como o próprio Deus, a existência terrena. Aceitar esta nova perspectiva im-
plicava uma profissão de fé na função messiânica de Jesus, mas comportava,
sobretudo, uma escolha entre salvação mundana e salvação ultra-mundana.
Decorre disso o fato de que se tinha uma identidade hebraica por nascimento,
mas tornavam-se cristãos por eleição, através de um ato de fé. O ato de fé
numa realidade ultra-mundana superava o condicionamento mundano da na-
cionalidade ou, genericamente, do nascimento. Era suficiente um ato de fé no
Reino dos Céus que, além disso, em vida, podia ser somente esperado e não
experimentado. De experimentável tinha o Império romano, o único modelo
histórico da realidade meta-histórica defrontada pelos cristãos em chave de
universalidade, enquanto através dele superava-se o condicionamento étnico
através da distribuição da civitas romana às pessoas de qualquer raça18. Não
era coisa de pouca monta: tornar-se súditos do Reino dos Céus significava sub-
verter idealmente os reinos terrestres; historicamente significou subverter o
Império romano, o próprio modelo da universalidade: e contra os “subversivos”,
súditos do Rei dos Céus, o Império romano procedeu em termos de lei. A subver-
são tornou-se martírio, isto é, testemunha: uma testemunha constituída, também,
em termos de lei, tanto que a fé testemunhada tornou-se lei, por sua vez, quando
o Império romano se transformou em Império cristão, um império no qual
caía-se na ilegalidade se não “se acreditasse” ou não se acreditasse da justa
forma. A alternativa do crer tornava-se perigosa e, de qualquer forma, ilegal19.
Nessa direção, como bem analisou Anthony Pagden, a extensão da cris-
tandade continuou, sucessivamente, circunscrita ao território que se considerava
ter sido ocupado pelo Império romano. “O orbis terrarum se converteu, assim,
através da variação efetuada por Leão o Grande no século V, no ‘orbis
Christianus’, que por sua vez se transformou de imediato no ‘Imperium Chris-
tianum’. Um século depois, Gregório o Grande o traduziria por ‘sancta res-
publica’: uma comunidade dotada da mesma exclusividade simultaneamente
aberta que havia caracterizado a ‘respublica totius orbis’ de Cícero”. Portanto,
mesmo que nos termos do direito natural todos os homens, fossem pagãos ou
cristãos, tivessem idênticos direitos políticos, “os não cristãos, pagãos que tam-
bém eram barbari, deviam ser animados para juntar-se à ‘congregatio fidelium’,
18
Ibidem, pp. 11-12.
19
Ibidem, p. 12.
20
PAGDEN, Anthony. Lords of all the World: Ideologies of empire in Spain, Britain, and
France, 1500-1800. Yale University Press, 1995. Trad. Espanhola. Barcelona: Península,
1997, pp. 38-39.
21
Que não podemos aqui re-visitar em sua complexidade, mas em relação à qual reenviamos,
todavia, para a rica e significativa síntese do primeiro capítulo (A Herança de Roma) da obra
citada de PAGDEN, pp. 23-44.
22
PAGDEN, Anthony. Op. Cit., p. 45
23
Veja-se, em relação a esse aspecto, o segundo capítulo da obra de Pagden (Monarchia
Universalis), pp. 45-86.
24
Que compreendia a prática da virtus, a “humanidade” que se expressava na capacidade de
valorizar o bem da comunidade, a utilitas publica, acima da própria conveniência pessoal, a
utilitas singulorum.
25
SABBATUCCI, Dario. Op. Cit., pp. 13-15.
26
A catequese não se identifica, pura e simplesmente, com o catecismo. Em primeiro lugar,
devemos levar em consideração algumas características gerais do contexto (sempre historica-
mente determinado) dentro do qual o homem (cristão) é impelido a uma ação catequética
(evangelizadora), e no qual se coloca a especificidade instrumental do texto catequético. Em
decorrência do contexto, encontramos vários dados que se referem à ação da catequese: ob-
servações relativas à explicação do catequista, à forma concreta de torná-la clara, às dificul-
dades que o catequista pode encontrar no seu ensino, às eventuais objeções que pode desper-
tar perante seu auditório, à rejeição ou à aceitação implícitas na ação evangelizadora e que
nem sempre são facilmente perceptíveis pelo catequista, etc. A importância e prioridade des-
ses pressupostos pedagógicos e propedêuticos, do texto catequético, para com os próprios
“mestres” da doutrina, são evidentes desde o De Catechizandis Rudibus de Santo Agostinho.
Desde esse notável exemplo teórico-prático modelar, a incumbência pedagógica se destaca
por seu caráter pastoral, enquanto destinada a esclarecer tanto a metodologia do ensino, quanto
os aspectos gerais ou específicos da doutrina cristã: em breve, em breve, o texto catequético
tem que responder, também, à pergunta “como fazer catequese?”. Santo AGOSTINHO. De
Catechizandis Rudibus. Tradução italiana de G. Vigini. Milão: San Paolo ed., 1998.
27
Cf. AGNOLIN, Adone. Op. Cit., (As introduções dos catecismos publicados), pp. 46-52.
28
Mas não só: vejam-se os caso da Índia, das Filipinas e do Extremo Oriente.
29
A expressão ganhou uma certa notoriedade nos estudos antropológicos que se referem ao
Brasil, desde o artigo de VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a Murta: sobre
a inconstância da alma selvagem”. In: Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 1992, v. 35,
pp. 21-74. Por outro lado, nesse artigo, a expressão é tirada do Sermão do Espírito Santo do
Pe. Antonio Vieira: “a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a
mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo [...]. Outros gentios são
incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos”. No final das contas, a
expressão só torna emblemático, na vocação do célebre “imperador da língua portuguesa”,
um motivo presente ao longo de toda a literatura jesuítica sobre os índios do Brasil, desde a
chegada dos primeiros inacianos: a dificuldade da conversão dos indígenas (tupi).
30
No que diz respeito a esse problema, vale a pena relevar a importância da obra de: GLIOZZI,
Giuliano. Differenze e Uguaglianza nella Cultura Europea Moderna. Nápoles: Vivarium,
1993. O autor reconduz o mito do ‘bom selvagem’ à discussão acerca do colonialismo, que
se desenvolveu na França no início dos anos de 1870 (cf., a esse respeito, a primeira parte da
obra, “Il ‘mito del buon selvaggio’: prospettive storiografiche”, pp. 23-119). Nesta perspec-
tiva, a imagem dos selvagens que viajantes, políticos e missionários do Quinhentos e Seis-
centos nos transmitiram pôde aparecer benévola somente se não se leva em consideração os
instrumentos culturais com os quais eles tiveram que interpretar as novidades que encontra-
ram. E se na Bíblia, considerada o quadro histórico geral da civilização européia cristão, se
encontrou a resposta acerca das origens daquelas populações, segundo Gliozzi é possível
compreender as escolhas entre as alternativas oferecidas pelo texto bíblico: elas refletiam as
diversas formas de colonialismo, os problemas que elas encontravam e as “razões” que era
necessário inventar para justificá-las. Enfim, para o autor, aquelas que foram levadas em
consideração enquanto explicações mitológicas ou sonhos coletivos eram, de fato, “ideologi-
as historicamente determinadas”. Essa última definição decorre do outro fundamental traba-
lho, de GLIOZZI. Adamo e il Nuovo Mondo: la nascita dell’antropologia come ideologia
coloniale – dalle genealogie bibliche alle teorie razziali (1500-1700). Florença: La Nuova
Italia, 1977. Síntese exposta, sobretudo, à p. 4.
31
As quais sublinham como: “Se [alguém] quer tornar-se cristão porque espera alguma van-
tagem por parte de pessoas às quais pensa não poder fazer coisa grata de outra forma, ou para
evitar problemas por parte de gente que teme ofender e tornar-se inimiga, na realidade não
quer, de fato, tornar-se cristão, mas somente fingir sê-lo. Porque a fé não é dada por um
corpo que se dobra (sujeita), mas por um coração que crê” (Santo AGOSTINHO. Op. cit.,
pp. 27-28: Instruções para a Catequese, 5.9). E as instruções tecem, também, uma estraté-
gia: “Caso tenha-se apresentado com falsa intenção (“Ficto pectore”), somente para obter
favores humanos ou para evitar problemas, não há dúvida que mentirá. Devemos, todavia,
principiar partindo, justamente, do que ele diz mentindo, sem todavia rejeitar sua mentira [...]
[e emergindo uma sua] resposta não conforme às disposições de espírito de quem está por
ser iniciado na fé cristã, é necessário repreendê-lo com modos doces e afáveis, como pessoa
inexperta e inculta...” (Idem, Ibidem).
atenção para este fato. Essa é a situação evidenciada, entre outros, por
Bernardino de Sahagún:
“... en todas partes y en las más porfíam de volver a cantar sus cantares
antiguos en sus casas o en sus tecpas (lo qual pone harta sospecha en la
sinceridad de su Fee christiana) porque en los cantares antiguos, por la
mayor parte se cantan cosas Idolátricas en un estilo tan obscuro que no
hay quien bien los pueda entender sino ellos solos; y otros cantares
usan para persuadir al pueblo a lo que ellos quieren, o de guerra o de
otros negocios que no son buenos, y tienen cantares compuestos para
estos, y nos los quieren dexar”.32
“Se nós abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são
contra nossa fé católica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar
cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo tom e tanger seus
instrumentos de música que eles usam em suas festas quando matam
contrários e quando andam bêbados; e isto para os atrair a deixarem os
outros costumes essenciais (...); e assim o pregar-lhes a seu modo em certo
tom andando passeando e batendo nos peitos, como eles fazem quando
querem persuadir alguma coisa e dizê-la com muita eficácia; e assim
tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque
semelhança é causa de amor. E outros costumes semelhantes a estes”.33
32
SAHAGÚN, Bernardino de. Psalmodia Cristiana. México 1583: prólogo ao leitor (f. 2v.-
3r). Citado por ICAZBALCETA, J. García e MILLARES, A. Bibliografia Mexicana del
Siglo XVI. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, 2ª ed., p. 249.
33
Carta de Manuel da NÓBREGA a Simão Rodrigues, 17 de setembro de 1552. In:
Monumenta Brasiliae, vol. I, pp. 407-408.
34
VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Vols. I-II. Petrópolis: Vozes,
1977 (1663), vol. I, p. 221.
35
Pela qual problemática, apontamos, entre outros, para o trabalho de LA CECLA. Franco.
Il Malinteso: antropologia dell’incontro. Roma-Bari: Laterza, 1998.
36
Termo, neste caso, fortemente caracterizado por sua etimologia latina tra-ducere.
37
Citado em HANKE, Lewis. The Spanish Struggle for Justice in the Conquest of America.
Boston: Little Brown, 1965, pp. 33-34.
38
DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982, p. 211 [ed. orig. francesa, Paris: Gallimard, 1975].
39
Idem, Ibidem, p. 33.
40
POMPA, Cristina. Religião como Tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil
Colonial. São Paulo: Edusc, 2002, p. 24.
41
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial.
São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
42
GRUZINSKI, Serge. La Guerre des Images: de Christophe Colomb à “Blade Runner”
(1492-2019), Paris, Fayard, 1990; GRUZINSKI, Serge e BERNAND, Carmen. De la Ido-
latria: uma arqueologia de las ciencias religiosas. México: Fundo Econômico de Cultura,
1992 [ed. original francesa de 1988].
poder moderador nessa disputa pelo trabalho. Apesar de sua peculiar posição,
os inacianos acabaram se tornando, necessariamente, instrumentos da política
de desenvolvimento da Colônia, servindo, portanto, aos interesses da Coroa
portuguesa: nessa perspectiva a catequese e, mais geralmente, a obra dos jesuítas
no Brasil se caracteriza também por procurar um método alternativo de
conquista e assimilação dos povos nativos, os “negros da terra”.43
Ora, este método alternativo identificou-se com uma operação de “redução”
das culturas indígenas que, antes de institucionalizar-se nos famosos modelos
alternativos da organização social que levam esse nome, destacou-se como
prática necessária de um seu reconhecimento e indagação. Os primeiros reco-
nhecimentos – a leitura e interpretação das culturas indígenas, que devia funda-
mentar o novo ponto de equilíbrio entre catequese e civilização – parecem delinear-
se, decididamente, em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro.
Num primeiro tempo, os excessos serão identificados com os costumes e as
ausências com as crenças: e, no imperativo de cristianizar os indígenas, os primei-
ros parecem, em princípio, ter preocupado mais do que as segundas.
Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de
“costumes abomináveis” ou “maus costumes” (cauinagem, guerra, antropofagia,
sexualidade desordenada, pinturas, danças etc.) que conotava um estágio (de
aristotélica memória) inferior de humanidade44, revelador de uma profunda
desordem social e que dificultava, a um tempo, o próprio processo de civili-
zação, fundamento irrenunciável para a sucessiva obra de cristianização. No
combate a esses institutos, assim como à instituição central da cultura tupi do
karaíba, os “redutores” jesuítas, serão sempre irredutíveis.
43
Entre os vários trabalhos que abordam essa questão apontamos os de MONTEIRO, John
Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Cia.
das Letras, 1994. Cf. pp. 36-37. MONTERO, Paula. A universalidade da Missão e a parti-
cularidade das culturas. Apud: MONTERO Paula (Coord.). Entre o Mito e a História: o v
centenário do descobrimento da América. Petrópolis: Vozes, 1996. Cf. pp. 86-89.
44
Cf., a esse propósito, PAGDEN, Anthony. The Fall of Natural Man: the american indian
and the origins of comparative ethnology. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
45
ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 333.
46
A importância do trabalho enquanto instrumento de civilização – e conseqüentemente de
conversão – foi bem evidenciado por ZERON, Carlos Alberto. La Compagnie de Jésus et
l’institution de l’esclavage ao Brésil: les justifications d’ordre historique, théologique et
juridique, et leur intégration par une mémoire historique (XVI- XVII siècle). Tese de Douto-
rado, EHESS, 1998.
47
Em relação ao problema da “memória” e da “vontade” indígena, cf. os trabalhos de VIVEI-
ROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selva-
gem”, artigo citado e de HANSEN, João Adolfo, a comunicação apresentada em ocasião dos
Seminários sobre “Instrumentos da Comunicação Colonial”, realizados na Universidade de
São Paulo nos dias 24 e 25 de agosto de 2000.
48
E em relação a isso, cf. POMPA, Cristina. Religião como Tradução. Op.Cit., principal-
mente o capitulo 1. (O Encontro e a Tradução), pp. 35-56.
49
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Les Ouvriers d’une Vigne Stérile: Les jésuites
et la conversion des Indiens au Brésil – 1580-1620. Tese de Doutorado, defendida em janei-
ro de 1999, junto à “Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales”, Paris, p. 142.
50
Cf. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil coloni-
al. São Paulo: Cia. das Letras, 1987; e Inferno Atlântico: demonologia e colonização – sé-
culos XVI-XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
isso, antes de se saírem como produto de uma nova, peculiar, dimensão cultural:
a cultura colonial, de fato. Isso significa que, dentro dos graves problemas
suscitados pelos excessos e pelas ausências da cultura indígena americana, a
‘conquista espiritual’ encontrou-se na necessidade de formular uma primeira
forma de redução dessas culturas, estruturando uma rede interpretativa que
lhe permitisse, de algum modo, ler e interpretar as práticas culturais indígenas:
tratou-se de uma rede redutora que encontrava ao redor do “demoníaco” a es-
trutura eficaz e cômoda para poder, mesmo que fosse para condenar, abrir-se
ao conhecimento dessas práticas51.
O “demoníaco” constituía-se como a rede que, em princípio, oferecia a
possibilidade de entender tanto os “excessos”, quanto as “ausências” que carac-
terizavam, aos olhos dos missionários, mas não só, as culturas indígenas. E o
“demoníaco” foi instalando-se timidamente numa primeira frágil dimensão que
se debruçou nas primeiras descrições da alteridade indígena. Buscando uma
sua específica “religiosidade pagã” que permitisse implementar o processo e
as estratégias de evangelização já experimentadas em relação às alteridades
européias, os missionários viram-se na impossibilidade de identificar (reco-
nhecer) esse modelo de alteridade religiosa. E antes do que o modelo, é sobre-
tudo a dimensão religiosa que parecia faltar completamente52.
No mais entusiástico dos casos, esse dado garante a primeira constituição
do mito do “bom selvagem”. Não é por acaso que as peculiaridades positivas
do indígena americano encontram-se, desde o próprio Caminha, na sua
51
Neste sentido, não estamos completamente de acordo com GRUZINSKI, La Guerre des
Images, obra citada, p. 31. Cf., ao longo desta obra, a rica análise do autor a respeito das
imagens (em suas ambigüidades entre destruição e substituição, intercâmbio etc.) e do ima-
ginário barroco. Neste “intercâmbio desigual”, o autor destaca como: “por la vía del trueque
las cosas de Europa penetraron en los mundos indígenas mucho más pronto que los conquis-
tadores. [...] Trueque de oro e imposición de imágenes: he ahí ya unidas dos caras de una
empresa de dominación dedicada a extenderse por todo el planeta: la occidentalización”. Ibidem,
p. 51. “Pasado el choque de lo desconocido y la primera interpretación colombina, tentativa
y flexible, se efectuó el encuadre (Pedro Mártir), se redujo el campo, se estilizó y se dramatizó
la visión, hasta que surgió la ‘visión americana’, en realidad réplica pura y simple de un déjà-
vu europeo. La mirada del colonizador colocó sobre lo indígena la red reductora pero eficaz
y cómoda de lo demoníaco”. Segundo nosso ponto de vista, essa peculiar ‘rede redutora’
permitiu, muito provavelmente, uma redução menos significativa, em relação às práticas in-
dígenas, do que a ‘rede’ oposta.
52
Cf. CLASTRES, Hélène. Terra sem Mal: o profetismo tupi-guarani. São Paulo: Brasiliense,
1978, p. 15. (1ª ed. Paris, 1975).
53
Necessitando de tudo, o indígena necessita, sobretudo e principalmente, daqueles bens
culturais que encontram na “creemça” a base fundamental que o Europeu se sente no dever de
impor: cf. CAMINHA, A Carta de Pero Vaz de Caminha: o descobrimento do Brasil. 2ª ed.
CASTRO, Sílvio (Org.). Porto Alegre: L&PM, 1987.
54
Carta de 10 de abril de 1549.
55
Informação das Terras do Brasil. Agosto de 1549.
56
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Inferno Atlântico, Op.cit..
57
RAFAEL, Vicente L. Contracting Colonialism: Translation and Christian Conversion in
Tagalog Society under Early Spanish Rule. Ithaca: Cornell University Press, 1988. Em relação
a essa estrita correlação entre os três termos, cf. principalmente todo o ‘Prefácio’, pp. IX-XIII.
58
Idem, Ibidem, p. 6.
59
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Inferno Atlântico,
Op.cit.; VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Op.cit.; RAMINELLI, Ronald. Ima-
gens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro/São
Paulo: Zahar/Edusp-Fapesp, 1996.
60
Em relação a este processo, devemos evidenciar a importância desse “aprimoramento civil
dos costumes”, conforme a análise da obra de Norbert Elias, que é, paralelamente, o ‘proces-
so civilizador’ que manifesta um seu peculiar e intenso desenvolvimento justamente na época
renascentista.
61
BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. De l’Idolatrie: une archéologie des sciences
religieuses. Paris: Seuil, 1988, cap. III e passim.
62
Cf. GASBARRO, Nicola. Il Linguaggio dell’Idolatria. In: Studi e Materiali di Storia delle
Religioni, vol. 62, pp. 189-221.
63
Do latim traducere: o que traz para dentro (o erro no mundo dos indígenas).
64
Em relação a esse problema, cf. a análise de POMPA, Religião como Tradução, Op.cit.,
pp. 53-56, onde, em relação ao conflito/encontro entre missionários e caraíbas, se aponta
para a “construção negociada” das santidades e dos profetas indígenas, isto é, de uma lingua-
gem “religiosa” enquanto terreno de mediação no qual a alteridade da outra cultura pode
encontrar seu sentido e sua “tradução”.
sua natureza semper prona ad malum, a ausência (até nos próprios sinais lin-
güísticos) do bem, produz uma exacerbação (nos costumes) do mal, a falta de
uma eqüidade lingüística produz uma gente “absque consilio et sine prudentia”65.
Nessa direção, antes de enfrentar os problemas postos pela utilização da língua
indígena para a constituição dos catecismos jesuíticos, deveremos pelo menos
apontar uma primeira significativa identificação, que nos parece emergir em
certa literatura jesuítica, entre vernáculo e ação demoníaca. E se, na literatura
jesuítica, a língua será “doutrinada” nos catecismos, ela é “caracterizada”, por
exemplo, nos “autos”.
Em nosso trabalho anterior66, já reparamos nessa característica dos autos
anchietanos. Lá, observávamos como o Pe. Anchieta – que em várias ocasiões
sublinhava tratar-se de “gente tão indômita e bestial, que toda a sua felicidade
a põem em matar e comer carne humana”67 – sintetiza e “reduz” os “maus cos-
tumes” indígenas no próprio vernáculo. Se, portanto, o teatro anchietano tor-
nava-se a representação mais significativa da vis combativa (e triunfal) da cate-
quese, ele fundava sua representação nesse específico combate. E esse “teatro
poliglota” reservava à língua tupi a voz do demônio que se confunde com aquela
de um atento etnógrafo: assim como verificamos, por exemplo, no Auto de
São Lourenço, segundo as palavras e a língua que são atribuídas ao chefe dos
demônios, Guaixará. Eventualmente, à caracterização de uma descrição ritua-
lística etnograficamente densa, a língua tupi poderá, já nos autos anchietanos,
configurar-se como língua, ao mesmo tempo, doutrinada (gramaticalmente) e
doutrinadora (nos costumes).
Deste ponto de vista, a própria estrutura do auto de Anchieta manifesta
uma característica bastante significativa. Influenciada, de forma marcante, pelo
65
Manuel da NÓBREGA. “Do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro,
Coimbra-Salvador, 10 de agosto de 1549”. In: Serafim LEITE, Monumenta Brasiliae..., op.cit.,
vol. I, p. 136. No que diz respeito a essa conotação da língua e em relação a seu doutrinamento,
veja-se, também, a comunicação de João Adolfo HANSEN, apresentada em ocasião dos
Seminários sobre “Instrumentos da Comunicação Colonial”, op.cit.
66
AGNOLIN, Adone. “Mediações Simbólicas e Cultura Indígena: leitura jesuítica das prá-
ticas indígenas”. In: O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológi-
co. Alteridade e Identidade no caso Tupinambá. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 105-31.
67
“Do Ir. José de Anchieta aos Irmãos enfermos de Coimbra (São Vicente, 20 de março de
1555)”. Apud: LEITE, Serafim. SJ. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo:
Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1956, vol. II, doc. n. 23, p. 120.
68
Cf.: Capítulo V da Introdução a: Pe. José de Anchieta S.J. Teatro de Anchieta. In: Obras
Completas. Trad., introd. e notas do CARDOSO Pe. Armando. São Paulo: Loyola, 1977.
vol. III, p. 51-57.
69
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 2ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 68.
Uma “sujeição se impõe a quem sujeito não é”, segundo o trocadilho su-
gerido pelo próprio Nóbrega, uma repressão implacável aos costumes (intole-
70
Sempre estritamente ligadas ao “desregramento” alimentar.
71
Interessante observar que o verbo fumar em tupi (petymb-u) significa literalmente “ingerir,
comer fumo”: algo que insere, estruturalmente, a ação na perspectiva de uma prática alimentar.
72
Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. LEITE, Serafim (Org.). São Paulo: Missão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. v. I, p. 412; v. III, p. 71-72.
ráveis) dos indígenas, uma “guerra aos costumes” para eliminar o costume da
guerra e dos rituais que se desenvolviam a seu redor. “Reduzir” a alteridade do
outro se configurava, portanto, além que como uma redução de sua alteridade
lida sub specie religionis – que privilegia, nesse específico “grau zero da ido-
latria” brasileira a ação demoníaca –, como uma “redução política” (um poli-
ciamento como redução) que se realizava com a concentração dos convertidos
(reduzidos) em aldeamentos organizados. Uma nova organização social que
incluía gestos, temporalidades, práticas e, não por último, a língua segundo a
qual deviam ser doutrinados.
Enquanto projeção significativa de uma cultura contra-reformista, a “bestia-
lidade” indígena configurava-se para os jesuítas, não mais como vazio cultural
a ser, eventualmente, preenchido por sua liturgia coral e pinturesca, mas, ao
contrário, como a presença forte e marcante do Demônio que teria imposto
“rituais bárbaros” ao “triste e pobre gentio”. Para corrigir hábitos produzidos
por essa ação, não bastava ensinar a doutrina: a “conversão do gentio” (Anchieta)
só podia se dar através de uma sua, anterior, “sujeição” (Nóbrega). Soltos no
espaço de uma animalidade onde não agiriam como sujeitos (políticos), os ín-
dios americanos tornavam-se “triste e vil gentio” enquanto subjugados por um
Demônio que lhes ensinara os abomináveis costumes. E se a língua se tornava
o instrumento por excelência da construção do espaço político73, tratava-se,
antes, de reduzir a língua para, sucessivamente, doutriná-la. Nessa perspectiva,
parece-nos bastante significativo o fato de que, na própria documentação de
nossa investigação, alguns catecismos em língua indígena “deslizem” para o
significativo título (programático) de Catecismos da língua indígena: é, por
exemplo, o caso do catecismo de Montoya (Catecismo de la Lengua Guarani)
e daquele de Bernardo de Nantes (Katecismo Indico da Lingua Kariris).
Reduzir a língua (indígena) significava, de alguma forma, torná-la apta para
receber – e, portanto, re-transcrever nela – a catequese (ocidental).
Todavia, reduzir a língua obrigava, de alguma forma, a adotá-la para poder
transformá-la. A “indigenização do Catolicismo”, que segundo Lacouture efeti-
vou-se pela habilidade do jesuíta em usar a seu favor a autoridade dos caciques74,
73
É extremamente interessante, a este respeito, levar em consideração a importância dessas
teorizações presentes nas obras de Aristóteles e Cícero, relidas com especial atenção pelo
Humanismo renascentista.
74
LACOUTURE, Jean. Jésuites: les conquérants. Paris: Seuil, 1991.
75
“Aculturar também é sinônimo de traduzir”, como releva BOSI, Alfredo. Dialética da
Colonização. Op.Cit., p. 65. Nós diríamos, todavia, que aculturar é, sobretudo, traduzir,
uma tradução que se impõe à alteridade traduzida e que lhe impõe de interagir no espaço
dessa tradução.
76
Idem, ibidem, pp. 65-66.
77
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Op.Cit., p. 111.
78
Idem, ibidem, p. 211.
79
BAËTA NEVES, Luiz Felipe. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 35-36.
unir e com quem não, quem amar e quem odiar, que comer, que usar. Suas ex-
pectativas culturais lhe são dadas. Ao usar o termo ‘informação armazenada’80
incluímos tanto descrição como prescrição. As duas modalidades [de fato] se
sobrepõem”. Ora, a escrita altera profundamente a codificação inconsciente da-
queles que se identificam com o grupo lingüístico, na medida em que “procura
elaborar um enunciado especial do que eles seriam, de modo a identificá-los”81.
Se o processo de aculturação, na preservação da similitude, não faz tabula
rasa nem ignora o conjunto de crenças da cultura indígena, a releitura das prá-
ticas através da escrita, subtraindo-as à relação direta ou indireta com o rito,
torna-se ela mesma rito “no momento em que troca o desvendamento dos sacra
e do segredo com o desmascaramento das lógicas coercitivas e impessoais que
dominam a vida social e subtraem a identidade ao homem; ou, de outra forma,
permanece apenas narração consolatória que contudo não funda de maneira
alguma a realidade, enquanto, ao ato fundante, substitui uma promessa de salva-
ção”82. Desvendamento e, ao mesmo tempo, não-reconhecimento dos sacra en-
quanto tais, os rituais indígenas encontram-se esvaziados de suas funções fun-
dantes (identificadoras) através do sistema das analogias e do simbolismo.
Os rituais bárbaros, que teria tornado o gentio tão triste e pobre, eram mani-
festação da linguagem diabólica. E se a língua indígena constituía-se como o
produto dessa sujeição, antes de ensinar a doutrina, devia-se “reduzir” a língua,
para cortar os “excessos”, antes de doutriná-la para preencher suas “ausências”.
A primeira operação se identifica com uma “gramatização” (escrita) da língua
indígena: trata-se da construção da “língua geral”83, não só para o Tupi do Brasil,
mas também para o Guarani do Paraguai de Montoya, ou para o Quéchua e
Aymara do Perú de José de Acosta.
Mas, ao mesmo tempo em que a língua era reduzida, empreendia-se o es-
forço paralelo de adotá-la para podê-la transformar. E no esforço contínuo de
80
Que diz respeito à estrutura desse processo implicitamente identitário.
81
HAVELOCK, Eric A. The Literate Revolution in Greece and its cultural consequences.
Princeton: Princeton University Press, 1982. [Trad. port. de O. J. Serra. São Paulo: Unesp/
Paz e Terra, 1994. p. 109.].
82
SCARPI, Paolo. La Fuga e il Ritorno: storia e mitologia del viaggio. Veneza: Marsilio,
1992. p. 183.
83
Um esboço dessa análise encontra-se em nosso artigo citado, na parte que se refere a “Con-
ceitos, palavras e gramáticas”, pp. 58-65.
84
Também porque, mais do que uma mitologia, trata-se propriamente de uma (com)figuração
do(s) protagonista(s) das ações “excessivas” (abomináveis, más) a serem reduzidas, e das
ações catequísticamente “doutrináveis”.
85
Nova no sentido de inventio latina: produto de uma nova disposição das partes do discurso
(e/ou da sua sintaxe).
86
DE MARTINO, Ernesto. Il Mondo Magico: prolegomeni a una storia del magismo. Tu-
rim: Einaudi, 1948 e La Fine del Mondo: contributo all’analisi delle apocalissi culturali.
Turim: Einaudi, 1977.
87
SABBATUCCI, Dario. Sommario di Storia delle Religioni. Roma: Il Bagatto, 1991, p. 183 e segg.
88
Excluindo o exemplo do único autor não jesuíta, o franciscano frei Bernardo de Nantes que utiliza,
em seu lugar, Inhinho, em relação à cultura Kiriri, pela qual o jesuíta Vincencio Mamiani continua
usando a “identificação” de Tupã.
89
Expressões que nos pareceram já o resultado mais evidente das re-transcrições que afeta-
ram profundamente a possibilidade de pensar de forma menos metafísica (ocidental) este
conceito de “mal” indígena, para o qual apontamos uma peculiar indicação de tradução de
angá (t)up-aba correspondente, de alguma forma, a um “estar deitado da alma”, esta última
que traduziria de forma problemática o termo angá, que na língua tupi indicaria, propriamen-
te, uma “sombra”, que não cabe perfeitamente na materialidade do termo ‘alma’.
90
POMPA, Cristina. Religião como Tradução. Op.cit., p. 341.
91
Por exemplo, no extenso e importante catecismo do cardeal jesuíta Roberto BELLARMINO.
Dottrina Christiana dell’Ill.mo e R.mo Card. Rob. Bellarmino figurata d’Imagini. [In Augusta
con licenza de’ Superiori appresso Christophoro Mango, 1614]. Edição de 1718:
Dichiarazione della Dottrina Cristiana Compofta per ordine di N.S. Papa Clem. VIII. di fel.
mem. Dal Rer. P. ROBERTO BELLARMINO Sacerd. della Compagnia di Giesù, poi
Cardinale di S. Chiefa del Tit. di Santa Maria in Via. Do ponto de vista doutrinal, a distância
cultural indígena podia ser lida como uma ausência de instrumentos lingüísticos-conceituais
que eram essenciais para empreender qualquer possível forma de catequese. Apreender os
nomes para aprontar as primeiras estruturas significativas desse Mistério significava, antes
de mais nada, apreender o “oculto” no “manifesto” e, ao mesmo tempo, uma “unidade” que
esse oculto projeta sobre a “diversidade” das coisas manifestas. (BELLARMINO: [1614]
1718: 5-6, fólios A3-A3v). Verdade e divindade impõem-se conjuntamente como unicidade,
medida de uma diversidade que não se mede por diferenças de estrutura, mas por afastamen-
to-aproximação a essa medida referencial. E essa medida encontra sua integrativa parte
referencial numa, diríamos hoje, “naturalização” desses conceitos: a unicidade da natureza
ecoa, no plano do manifesto, a unicidade da “essência infinitamente potente”, que se oculta
nele. E esse oculto que “des-cobre-se” nas coisas manifestas – porque antes estaria encoberto
nelas – parece caracterizar-se como o que Baêta Neves define o “paradigma ausente”, mas
que do ponto de vista missionário constitui-se, frente à alteridade, enquanto “paradigma
estruturante”. Na perspectiva missionária, o paradigma torna-se estruturante – com relação à
leitura da alteridade cultural – na medida em que: “se Deus não se oferece por inteiro ao olhar,
Ele deixa suas marcas no mundo. A tarefa do cristão e particularmente do sacerdote cristão é
de tentar ler essas marcas que inscrevem nos objetos sua distância e sua diferença do Paradigma.
A tarefa do sacerdote cristão missionário é maior. Ele não é apenas um leitor das marcas; deve
lê-las e modificá-las” (Baêta Neves, 1978: 35-36). Todavia, antes da modificação dessa
alteridade em relação ao paradigma, o que nos interessa é o fato de que essa leitura da dife-
rença constitui-se como a possibilidade de inserir a alteridade cultural por dentro de uma
estrutura paradigmática. Mesmo estabelecendo as diferenças enquanto gradações – qualitati-
vamente denotadas – de um afastamento da sua referencialidade, esse paradigma começa por
organizar uma perspectiva antropológica, mesmo que, ainda, subordinada àquela teológica.
Frente à relação paradigmática do Sagrado, o conceito de Humanidade fundamenta a possi-
bilidade de criar e estabelecer, finalmente, uma comparação das diferenças, mesmo que ainda
submetidas a um julgamento qualitativo.
92
RAFAEL, Vicente L. Contracting Colonialism. Op.cit., p. 91-92.
93
AMADIO, A. M. “Sacraments of the Church”. In: New Catholic Encyclopedia. New York:
McGraw-Hill, 1967, vol. 4, p. 808. Citado por Rafael, Contracting Colonialism..., Op.cit.,
p. 92.
94
Em: Pe. José de ANCHIETA. Doutrina Cristã - Tomo 1: Catecismo Brasílico. Com texto
tupi e português. Introdução tradução e notas do CARDOSO, Pe. Armando, S.J. Incluindo
o texto fac-similar (tupi) manuscrito classificado como APGSI N. 29 ms. 1730. São Paulo:
Loyola, 1992: fólio 27.
95
Em: Pe. José de ANCHIETA. Diálogo da Fé Diálogo da Fé. Texto tupi e português com
introdução histórico-literária e notas do CARDOSO, Pe. Armando, S.J., que inclui os textos
fac-similares manuscritos classificados como APGSI N. 29 ms. 1730 e ARSI Opp. NN. 22
Mamiani que optou por defini-lo enquanto “sinal visível da ‘graça’ (em por-
tuguês no texto kariri) invisível (graça que ele distingue, sempre rigorosamente
em português, em ‘santificante’ e ‘auxiliante’)”.96 O termo vernáculo kiriri
para remédio parece também ter sido aquele escolhido pelo franciscano
Bernardo de Nantes97. Em relação a essa caracterização medicinal do sacramento,
nos catecismos tupi não aparece a definição terminológica do pecado: este se
entrevê na própria definição de um sacramento-remédio da alma (angá), em
Anchieta e Araújo (mas também no texto guarani de Montoya, junto ao conceito
de justificação), ou na peculiar resolução da definição de graça em Mamiani.
Bernardo de Nantes – significativo: um capuchinho e não um jesuíta – é o
único autor que insere (traduz) o termo pecado nessa parte de seu catecismo
com o signo lingüístico kariri.
Verificamos, ainda, as dificuldades lingüísticas presentes na ‘alma’ tupi
(angá): mas, tanto essas dificuldades, quanto aquelas que se referem ao termo
‘pecado’, parecem encontrar, juntas, uma sua forma de superação no ensino
doutrinal. Desse ponto de vista, o pecado acaba identificando-se como ‘doença’
– (correspondente tupi: mara’ar, adoecer), em todos os nossos catecismos tupi
(além que naquele guarani de Montoya e naquele kariri de Bernardo de Nantes)
e sua cópia APGSI n. 33 ms. 1731. São Paulo: Loyola, 1988: fólio 7. E, finalmente, em Pe.
Antonio de ARAÚJO, S.J. Catecismo na Lingoa Brasilica, no qval se contem a svmma da
Doctrina Christã. Com tudo o que pertence ao Myfterios de noffa fancta Fè & bõs cuftumes.
Composto a modo de Dialogos por Padres Doctos, & bons lingoas da Companhia de IESV.
Agora nouamente concertado, ordenado, & acrefcentado pello Padre Antonio d’Araujo
Theologo & lingoa da mefma Companhia. Com as licenças neceffarias. Em Lisboa por Pedro
Crasbeeck, ãno 1618. A cufta dos Padres do Brafil. Texto em reprodução fac-similar da 1ª
ed., com o título Catecismo na Língua Brasílica. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade
Católica, 1952: fólio 79.
96
MAMIANI, S.J. Catecismo Da Doutrina Christãa Na Lingua Brafilica Da Nação Kiriri.
Composto Pelo P. LUIS VINCENCIO MAMIANI, Da Companhia de JESUS, Miffionario
da Provincia do Brafil. Lisboa, Na Officina de MIGUEL DESLANDES, Impreffor de Sua
Mageftade. Com todas as licenças neceffarias. Anno de 1698. Citado na edição fac-similar,
Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. Fólio 110.
97
Bernardo de NANTES. Katecismo Indico Da Lingva Kariris, Acrescentado de Varias
Praticas Doutrinaes, & Moraes, Adaptadas ao Genio, & Capacidade dos Indios do Brafil,
Pelo Padre Fr. BERNARDO DE NANTES, Capuchinho, Pregador, & Miffionario Apoftolico;
Offerecido ao Muy Alto, e Muy Poderoso Rey de Portugal DOM JOAÕ V, S. N. Que Deos
Guarde. Lisboa, Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, Impreffor de Sua Mageftade.
M.DCCIX. Com todas as licenças neceffarias. Que citaremos na edição fac-similar publicada
por Julio Platzmann, Leipzig, B. G. Teubner, 1896, p. 70.