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JESUÍTAS E TUPI: O ENCONTRO SACRAMENTAL

E RITUAL DOS SÉCULOS XVI-XVII

Adone Agnolin
Departamento de História-FFLCH/USP

Resumo
Traduzindo os dogmas doutrinais pós-conciliares para os indígenas americanos,
os missionários empreendiam uma tradução de uma tradição religiosa ocidental
para uma cultura que não participava dela. Os códigos culturais daquela cultura
“estranha” deviam servir para inscrever a tradição religiosa ocidental entre os
indígenas. Para fazer isso, a “redução” devia corrigir os excessos (dos costumes)
e as ausências (de crenças) dos novos catecúmenos americanos. Os excessos
impunham a disciplina, enquanto as ausências reclamavam a doutrina. Nesse
percurso, o hibridismo cultural decorrente de uma interpretação ritual do
encontro doutrinal e sacramental reescreveu a relação com o sagrado segundo
uma nova estrutura, tipicamente colonial.
Palavras-Chave
Missões jesuíticas • Tradução • Índios Tupi

Abstract
In translating post-Trentian dogmas to Amerindian peoples, missionaries sought
to translate a Western religious tradition to a culture completely unfamiliar with
this doctrine. The cultural codes belonging to that “alien” culture were to serve
as a medium for inscribing the Western religious tradition among indigenous
peoples. In order to do so, missionaries adopted a “reduction” strategy to correct
excesses (in customs) and absences (in beliefs) among the Amerindian
neophytes. Excesses demanded discipline, while absences called for doctrine.
In this process, the ritual reinterpretation of the doctrinal and sacramental
encounter resulted in a form of cultural hybridism, which reformatted relations
with the sacred according to a new, typically colonial structure.
Keywords
Jesuit Missions • Translation • Tupi Indians

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Das Disputas Doutrinais Acerca da Fé... à Fé Enquanto Produto Histórico


Introduzindo a problemática histórica para servir de base à análise do texto
tupi dos catecismos brasileiros, num artigo anterior1 propusemos uma primeira
contextualização esquemática e geral da catequese: o objetivo inicial era aquele
de apontar para os principais fundamentos doutrinais que, na perspectiva revo-
lucionária da revelação cristã, se tornarão de extrema importância para funda-
mentar a “missão” e a conseqüente e necessária prática da catequese missionária.
No decorrer do mesmo artigo, apontamos, portanto, para uma contextualização
histórica mais atenta da prática missionário-catequética do século XVI – nas
suas profundas peculiaridades frente à nova situação histórica que se determinara
na Europa, com a crise aprontada pela Reforma – e à conseqüente reformulação
da prática missionária, dentro e fora da Europa. Finalmente, com relação ao
mundo indígena americano, na parte final do artigo2 apontamos para o fato de
que, antes de se configurar como uma “experiência religiosa”, a conversão vinha
se impondo como aquisição de um idioma capaz, por um lado, de dar voz aos
sentidos e aos limites da dominação colonial e, por outro, de replasmá-los dentro
da nova situação colonial. Se, de fato, nenhuma tradução é neutra, por outro
lado, também, nenhuma tradução é incólume. E é, justamente, em relação à
“literatura catequética” que podemos verificar este dois aspectos – isto é, o
constituir-se dessa “mão dupla” – que caracterizam o sistema da comunicação
(catequética) colonial.
A partir da introdução desses aspectos – anteriormente propostos e que
aqui não poderemos retomar a não ser remetendo (quando for estritamente
necessário) àquele texto –, neste artigo pretendemos esboçar a continuidade
da investigação destacando apenas uma fundamental continuidade nos dois
contextos, europeu e americano: se, no caso americano, novas gramáticas e
novas semânticas serviram para tornar possível a pragmática interpretativa do
sistema colonial sub specie religionis, por outro lado, não podemos deixar de

1
AGNOLIN, Adone. “Jesuítas e Selvagens: o encontro catequético no séc. XVI”. In: Revis-
ta de História, n. 144, 1º semestre de 2001, pp. 19-71. Trata-se de um artigo que se propôs
enquanto síntese de um primeiro Relatório Científico para FAPESP, São Paulo, Fevereiro de
2001, resultado do começo de uma pesquisa de Pós-Doutorado, desenvolvida junto ao De-
partamento de História-FFLCH/USP e financiada pela Fapesp.
2
Que leva o subtítulo de Conceitos, palavras e gramáticas, pp. 58-65.

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observar que esta linguagem interpretativa tem uma sua história – anterior a esse
encontro colonial específico e interna ao próprio Ocidente – e uma sua projeção
sobre outras formas de fazer história, modalidades com as quais o Ocidente entrou
em contato nessa época. Com relação a isso devemos levar em consideração que,
na perspectiva da catequese, sua gramática, sua semântica e suas modalidades de
comunicação estruturam-se a partir de uma dimensão comum (universal) do
homem enquanto catecúmeno: isto é, a catequese pretende realizar a revelação
cristã “ao longo de um caminho histórico da humanidade que torna os homens
catecúmenos, isto é, na realização de um projeto (mistério) de Deus que, ao
mesmo tempo, transcende a, e se inscreve na, própria história”3.
Ora, se nossa indagação fosse de caráter teológico, diríamos que a fé
transcende a história e que a inscrição do mistério na história se resolveria na
missio (o anúncio de Deus, enquanto misterium, e de Cristo, enquanto verbum).
Nesse caso, a missão imporia ao homem cristão uma obra de “inculturação na
fé”, da qual a catequese representaria o instrumento doutrinal privilegiado.
Todavia, partindo da perspectiva exatamente oposta – isto é, de uma ótica que,
histórica ou antropológica que seja, larga mão das transcendências para abrir-se
a uma dimensão horizontal da história do homem –, destacamos como, nos
pressupostos de nosso estudo e em contraste com a perspectiva (teológica) anterior:

1) a fé se oferece enquanto produto histórico;


2) a missio constitui-se enquanto uma (peculiar) perspectiva histórica de
encontro com o ‘outro’, culturalmente (isto é, historicamente) distinto;
3) a “inculturação na fé” transforma-se em “inculturação da fé”;
4) e, finalmente, quando a missio se estabelece em bases doutrinais (no interior
de uma estrutura cultural compartilhada) a inculturação transforma-se em
disputa (doutrinal).

Essa seqüência não se pretende um percurso lógico a priori: é o resultado


de um determinado percurso histórico que, principalmente (mas não só), em
relação ao período que nos interessa, inverte os resultados que produzem essa
relação “lógica”. Por conseqüência, do ponto de vista histórico, parte-se antes

3
Ibidem, p. 22. Ver a respeito toda a parte que leva o subtítulo Apontamentos sobre a catequese,
pp. 22-25.

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das disputas doutrinais, para começar a se dar conta de que, além da procura
de uma inculturação na fé, realiza-se uma inculturação da fé (de um crer que,
de alguma forma, se constituirá como tal) que, através da disputa (e, quando
possível, da mediação) com o outro doutrinariamente diferenciado (mas histo-
ricamente definido), leva à possibilidade de um (de alguma forma) “encontro”
com o outro culturalmente (e historicamente) distinto. O reconhecimento his-
tórico (a consciência) desse percurso leva, finalmente, à possibilidade de en-
tender a fé como produto histórico, oferecendo-se enquanto a base que determina
o delinear-se da perspectiva antropológica e da história das religiões. Em suma,
parte-se das disputas doutrinais, para se chegar à história das religiões4.

Sacramentos Tridentinos e Rituais Sociais


No caso do encontro ensaiado pela missão jesuítica entre os tupi do Brasil,
duas perspectivas parecem tecer e determinar a sua característica peculiar e
fundante:

1) a primeira (problemática) enquanto problema fundamental na implementação


do processo de catequese (o ‘problema’ da Crença/Fé): enquanto a “fé”
revela-se como uma das problemáticas constantes, abordadas pelos nossos
catecismos, constituindo o território fundamental para se realizar a missio
jesuítica com seus imperativos catequéticos, o destacar-se da possibilidade
ameaçadora da ausência de uma ‘crença’ ou de uma ‘fé’ colocava em sério
risco o próprio fundamento do empreendimento missionário.

4
O período histórico que interessa nossa investigação adquire uma importância central em re-
lação a essa problemática que se configura, de fato, profundamente enraizada nas disputas
doutrinais. Frente aos novos problemas histórico-culturais do começo da Idade Moderna, es-
sas disputas doutrinais encontram seus instrumentos críticos justamente na Traditio da Patrística
cristã. E isso, tanto em relação ao seu constituir-se como fundamento da identidade católica,
quanto em relação ao mundo da reforma luterana que, projetando na traditio a luz funesta de
uma decadência, pretende, de fato, voltar para uma presumida forma original do Cristianismo:
este o sentido próprio da Reforma. Nesse contexto histórico de disputas doutrinais, no que diz
respeito ao mundo católico, é na relação entre a assembléia conciliar tridentina e o centralismo
romano que assistimos ao determinar-se dos resultados mais significativos para uma nova
catequese: aquela pós-tridentina. Nessa, alguns importantes aspectos sacramentais emergem
em sua nova configuração doutrinal, estabelecendo um conflito – e, até um certo ponto, uma
forma de convivência, de longa duração – com os rituais sociais tradicionais.

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2) a segunda (resolutiva) delineia-se, por conseqüência, como uma possível


solução do impasse da ação missionária, a “‘solução’ da Idolatria”: frente
aos graves riscos representados pela primeira perspectiva, esta última parecia
poder realizar aquela re-fundação das hierarquias de sentido requerida pelos
missionários, tanto projetando as categorias religiosas ocidentais nas outras
culturas, quanto impondo um sentido à própria ação catequizadora que
somente a extensão do conceito de religião (decorrente do renascimento
europeu) podia, até certo ponto, permitir5. Isso significa que, na América,
os jesuítas deviam realizar uma primeira transformação simbólica da
idolatria: quando era reconhecida nas práticas indígenas, além e apesar de
se constituir como “culto das divindades falsas e mentirosas”, ela revelava-
se, pelo menos, como indício de uma outra forma de crer que confirmava
a pertença dos indígenas ao comum gênero humano.

Entre o problema da fé e a solução idolátrica, todavia, queremos destacar,


no presente artigo, uma outra problemática da investigação que emerge, em
sua nova configuração doutrinal para a época, a partir das resoluções doutrinais
tridentinas: trata-se daquela relativa aos aspectos sacramentais. A própria docu-
mentação catequética, jesuítica e romana, nos revelou, de fato, nesse começo
da Idade Moderna, a emergência de uma profunda revolução em curso entre
as novidades doutrinais tridentinas e as velhas tradições sociais européias. E,
além do mais, parece-nos que os primeiros fundamentos de uma profunda
revolução social – que constituirá as características próprias da Idade Moderna
enquanto tal – se encontram, justamente, nessa “revolução sacramental”.
Por outro lado, se o esforço peculiar no caso da catequização tupi ia, tam-
bém, na direção de uma transformação simbólica da idolatria, esse esforço mos-
trava, nesse específico caso, ter que se renovar continuamente enquanto
constante “reinvenção da idolatria” que nunca estava garantida. Isto significa

5
A partir desse pressuposto, a prática quotidiana de aculturação teria feito com que o clichê
‘idolatria’, sofresse, “... a primeira transformação simbólica: seguramente um signo da dis-
tância da fé cristã, mas também indício de um crer ‘outro’ que confirma na prática e com a
prática a pertinência dos indígenas ao comum gênero humano”. Dessa forma, a idolatria se
teria configurado, portanto, “como universalização do crer [que] é a primeira forma geral de
pensamento selvagem produzida pela cultura cristã moderna”. GASBARRO, Nicola. “Il
linguaggio dell’idolatria: per una storia delle religioni culturalmente soggettiva”. In: Studi e
Materiali di Storia delle Religioni, Roma, vol. 62, n.s. XX, nº 1/2, p. 189-221, 1996. p. 205.

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que, por um lado, o problema catequético de encontrar uma ‘crença’ para fun-
damentar sua missio levava (quase que necessariamente) o missionário em di-
reção a uma ‘solução’ idolátrica. Quando, todavia, nos momentos críticos, essa
última solução afastava-se do horizonte missionário – isto é, quando parecia
não haver mais a possibilidade desse reconhecimento entre determinadas cultu-
ras indígenas – tornava-se claramente desesperadora a ação missionária6.
Sugerida por nossa própria documentação (antes jesuítico-romana e posterior-
mente jesuítico-missionária), a nova perspectiva de indagação soma-se à
peculiaridade segundo a qual tal revolução sacramental realizou-se em relação e
em estrita necessária dependência para com as tradições sociais indígenas. À medida
em que se delineava, progressivamente, a fragilidade de uma possível ‘solução’
idolátrica para fundamentar a missão entre os tupi, parece surgir e afirmar-se uma
outra forma e estratégia (paralela, antes, e alternativa, depois) de ‘solução’ que
realize (torne possível), de algum modo, o encontro cultural que devia constituir-
se como base de um complexo processo transculturativo: o encontro catequético
devia realizar-se através de um “encontro de ritualidades” que, com seus autos,
solenidades e teatro jesuítico, implementaram o Teatro da Fé7.
É somente levando em consideração (isto é, historicizando) as problemáticas
religiosas (ocidentais) que podemos tentar entender o processo do encontro
catequético com os tupi em suas peculiaridades. Todavia, hoje nos parece evidente
que, através de uma atenta análise da nossa documentação em terra de missão, o
momento ritualista concentre o transbordamento das problemáticas desse encontro
por além dos limites, sempre prontamente (e necessariamente) erguidos pelos
missionários, de sua “redução religiosa”. Esse momento do “encontro ritualista”
coloca em foco a rica produção documental que nos permite, de alguma forma,
a possibilidade privilegiada de incursão nas culturas indígenas.

6
Exemplo significativo da percepção missionária do iminente risco/possibilidade de falência da
própria missio é a lamentação do Pe. Manuel da Nóbrega, a respeito dos Tupinambá brasileiros,
feita em 1556: “Se tiveram rei, podérão se converter, ou se adorárão alguma cousa; mas como
não sabem, que cousa é crêr, nem adorar, não podem entender a prégação do Evangelho, pois
ella se funda em fazer crêr e adorar a um só Deus, e a este só servir; e como este gentio não adora
a cousa alguma, nem crê em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada”. Carta de Pe. Manuel
da NÓBREGA (1556-57), In: LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas no Brasil. São
Paulo, vols. I-III, 1956-58: carta que se encontra no vol. II, p. 320.
7
Segundo o título do livro de KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: representação religiosa no
Brasil e no México do século XVI. São Paulo: Hucitec, 1998.

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Levando em consideração a centralidade desse característico encontro, acre-


ditamos que poderemos tentar focalizar, na documentação, os momentos (pre-
ciosos) em que a conversão podia (devia, segundo nossos pressupostos) adquirir
para os índios um sentido próprio que transbordava, necessariamente, aquele
de uma (redutiva) experiência religiosa (ocidental). Neste momento privile-
giado do encontro (catequético), a tradução das tradições (da cultura) indígena
pode, de fato, nos permitir colher, mesmo que sombriamente, tanto algumas
características de suas próprias tradições, quanto a peculiar perspectiva – ritual
antes que mitológica? – de sua tradução da tradição “religiosa” ocidental. To-
davia, pode-se obter este resultado desde o momento em que conseguimos en-
focar com clareza os instrumentos que a tradução (ocidental) afinou, no
“trabalho de campo” missionário, para traduzir sua alteridade.
Entre o século XVI e o século XVII, verifica-se uma brusca e característica
transformação no que diz respeito ao conceito (ocidental) de fé: da suficiência
de uma fé ingênua que se caracterizava como sumária adesão a uma ritualidade
que permanecia, substancialmente, incompreensível, passa-se para uma nova
e forte exigência que vê a fé perder seu primeiro significado de fiducia para
ganhar, de maneira definitiva, aquele de crença. Para responder a essa nova
exigência, o Catecismo vem se configurando como o instrumento indispensável
para fornecer este minimum de conhecimentos (“coisas a serem acreditadas”)
e, portanto, se impõe como instrumento para as massas. Esse resultado realiza-
se, historicamente, partindo do pressuposto que, no fundo, é a fé, em si, que
caracteriza de forma peculiar a religião cristã: fato que determina, de forma
significativa, nosso conceito de religião. Explica-se, assim, a contingência his-
tórica que tornou fundamental, para o cristianismo, a profissão de fé8. Esta
perspectiva nos mostrará como, por exemplo, não é por acaso que, em 1530,
encontramos o configurar-se da profissão de fé como “confissão religiosa”,
assim como não é sem significado o fato de que o começo da Idade Moderna

8
No que diz respeito à peculiaridade da “profissão de fé cristã”, poderá revelar-se de grande
utilidade seguir algumas das indicações traçadas pelo trabalho de Sabbatucci, no primeiro capí-
tulo de La prospettiva storico-religiosa que leva, de fato, o título (por enquanto) curioso de fede
nella fede (fé na fé). Cf. SABBATUCCI, Dario. La Prospettiva Storico-Religiosa: fede, religione
e cultura. Milão, Il Saggiatore, 1990. Cf. o capítulo I: fede nella fede, de p. 5 à p. 18.

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leve, também, o nome de “Idade Confissional”, justamente com o objetivo de


distinguir uma comunidade de crentes de outra9.
Essa problemática é de fundamental importância para entender os resultados
mais significativos da nova catequese pós-tridentina e, entre esses, a impor-
tância do encontro/choque entre a nova normatização dos sacramentos triden-
tinos e os antigos rituais sociais, sejam esses europeus ou americanos. Em de-
corrência desse choque, a “consumação do sagrado”, adquiriu uma nova
caracterização em relação à dimensão ritualista da fé católica. E antes de des-
tacar-se enquanto fenômeno típico da cultura colonial americana, esse fenômeno
caracterizou também o encontro (conflito e interação) entre os dois modelos
de catolicismo da Europa: um rural, tradicionalista, oral, ritual, centrado nas
redes de parentesco, e outro metropolitano, tridentino, textual, sacramental,
centrado na responsabilidade individual10.
Na complexidade dos diferentes contextos, da qual se desprende esse con-
flito cultural, vale a pena notar como, os elementos de mediação fundamentais
– isto é, os elementos através dos quais, de algum modo, se realiza o encontro
(acomodamento a longo, longuíssimo prazo) das duas diferentes perspectivas
culturais – se constituem, justa e significativamente, ao redor dos rituais e dos
sacramentos: elementos cruciais e performáticos da transformação mais signi-
ficativa da sociedade na Idade Moderna. Mesmo que em sua peculiar caracte-
rística cultural, parece-nos que uma análoga e imprescindível função mediadora
caracterizou os rituais e os sacramentos11 no lento, mas inexorável, processo
de encontro ensaiado em terra americana entre a perspectiva indígena e aquela
jesuítica missionária, típica e emblematicamente pós-tridentina.

9
Trata-se, de fato, do ano em que Carlos V presidiu a dieta de Augusta (Augsburg, na Baviera)
a fim de resolver a controversa questão religiosa decorrente do nascimento e da difusão do
luteranismo. Nesta ocasião – com a importante contribuição de Melanchton, grande humanista
amigo de Lutero – os teólogos luteranos elaboraram sua profissão de fé, apresentada à dieta
e nota como a “Confissão de Augusta”. Em seguida, adequando-se ao ordenamento eclesial
das várias comunidades protestantes nacionais, as Confissões se multiplicaram.
10
Veja-se, a esse respeito, o exemplo da Irlanda gaélica, proposto no trabalho de PO-CHIA
HSIA, Ronnie. The World of Catholic Renewal (1540-1770). Trad. it.: Bolonha, Il Mulino,
2001, pp. 119-20. Onde, por exemplo, às páginas 119-20, destaca como “rituais e sacramen-
tos tornaram-se elementos cruciais” ao redor dos quais construir e administrar o encontro (e
a compatibilização) entre os dois modelos do catolicismo europeu.
11
De fato, uma forma necessariamente ritual de aproximação ao “sagrado”.

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A Fé e Sua Historicização: instrumentos catequéticos e “apresentação da Fé”


Os catecismos escritos na América fazem parte de um esforço idêntico produzido
no Extremo Oriente, na Índia e nas Filipinas, durante o século XVI. Esta produção
tão pouco reconhecida como “literária”, deve essa problemática classificação justa-
mente ao fato de que tais catecismos, mesmo dentro de sua diversidade, se caracte-
rizam por sua dimensão instrumental: trata-se de instrumentos impressos ou manus-
critos, que deviam servir para a “apresentação da fé”.
A utilização instrumental dos textos catequéticos, na ótica propriamente
missionária, implicava um afastamento inicial da possibilidade de colher uma
ótica indígena diferente, dando por pressuposta uma certa “fé na (eficácia da)
fé”. Essa pretensa (fideística) missionária e os choques dela decorrentes encon-
trar-se-ão à base da obra e dos equívocos da catequização que, em princípio,
pressupunha dever resolver “simplesmente” os problemas da forma e da língua
(tradução) dos textos a serem utilizados. Dois motivos nos impõem de esclarecer
esse pressuposto: em primeiro lugar, porque diz respeito a alguns equívocos
importantes que, desde a atuação missionária ao longo da história do Cristia-
nismo, acompanham essas abordagens de estudos, influenciando ainda hoje
parte importante das ciências históricas e das ciências sociais12; em segundo
lugar, porque esses equívocos adquiriram uma dimensão peculiar e significativa
na nova situação de embate entre Velho e Novo Mundo, sobretudo em relação
à problemática da nossa indagação.
Sabbatucci releva como, de fato, a história das religiões tem problematizado
os objetos de fé, mas não a própria fé. Isso significa que ela não fez, da própria
fé, um problema de ordem histórico. A “fé em alguma coisa” apareceu como
o ponto central de cada religião, e sendo que se presume que não exista, nem
nunca tenha existido, um povo sem religião, considera-se a fé à maneira de
um dado (transcendente) e não de um fato (histórico). O dado seria a exigência
humana de crer em entidades (seres ou forças) extra-humanas: não tem im-

12
Cf. a definição emblemática de Nicola Gasbarro que, nesta perspectiva, define esquemática
e exemplarmente este percurso: “Única cultura no mundo a inventar-se em termos de civili-
zação e de religião, e a construir a sua história e, sucessivamente, aquela do mundo com uma
contínua oscilação entre os dois termos, depois da religião natural e do direito natural, o
Ocidente inventa a civilização e a religião enquanto construções culturais, isto é, a antropo-
logia e a história das religiões”. GASBARRO, Nicola. “Religione e Civiltà: F. Max Müller
e E. B. Tylor”. In: Storia, antropologia e scienze del linguaggio, III, 1988, p. 126.

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portância por quais fins, sendo que acerca dos fins não existe acordo e, portanto,
estes ficam fora do dado, ou daquilo que se aceita como um dado. Ora, é um
fato que a fé por si mesma caracteriza a religião cristã e condiciona o nosso
conceito de religião; por isso nós estamos acostumados a conceber a própria
religião, qualquer que seja, como um comportamento baseado na fé. Mas do
ponto de vista histórico-religioso não é correto falar de religiões de outros igno-
rando este condicionamento13. Com certeza o “fideísmo” cristão tem marcado
toda a cultura ocidental; portanto o primeiro passo para uma historicização da
fé deveria ter como objetivo a verificação da contingência histórica (e da con-
seqüente necessidade teórica) que tornou fundamental, para o cristianismo, a
profissão de fé14.
Ponto de partida para uma interpretação crítica é o fato de que não é uma
fé que faz a religião, mas é, eventualmente, uma religião que faz (constrói,
inventa mesmo) a fé; tal eventualidade encontra-se inscrita no cristianismo,
enquanto religião que incluiu a fé nos próprios atos institucionais. A fé por si
mesma, isto é, des-historificada, não faz religião15. Ora, em relação a esse pro-
blema, torna-se evidente que “crer é um conceito genérico e por nada especi-
ficamente religioso: pode-se crer em coisas totalmente profanas”16. Eventual-
mente, o próprio Brelich distingue entre “um crer espontâneo e sem alternativas”
e o “crer podendo escolher entre diferentes possibilidades”; porém acrescenta:
“ambas estas formas do crer podem ser ou profanas ou religiosas”. Nessa pers-
pectiva, os cristãos realizaram-se como tais justamente pelo “crer com alter-
nativa”. Determinadas circunstâncias históricas os tinham colocado em frente
a uma escolha: para se tornar cristãos deviam escolher sê-lo e dar testemunha
da escolha através de uma profissão de fé. Foi assim no começo, quando se
tratou de escolher entre duas possibilidades: Jesus era ou não era o messias
esperado pelo povo hebraico. Aqueles hebreus que escolheram a primeira al-
ternativa deixaram de ser hebreus e tornaram-se cristãos17.
Com Jesus, o reino terrestre de Deus, concebido pelos profetas hebraicos,
tornou-se o Reino dos Céus, uma realidade extra-mundana, transcendente,

13
SABBATUCCI, Dario. Op. Cit., p. 5.
14
Ibidem, pp. 7-8.
15
Ibidem, pp. 9-10.
16
BRELICH, Angelo. Introduzione alla Storia delle Religioni. Roma: Ed. dell’Ateneo, 1965, pp. 6-7.
17
SABBATUCCI, Dario. Op. Cit., p. 10-11.

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como o próprio Deus, a existência terrena. Aceitar esta nova perspectiva im-
plicava uma profissão de fé na função messiânica de Jesus, mas comportava,
sobretudo, uma escolha entre salvação mundana e salvação ultra-mundana.
Decorre disso o fato de que se tinha uma identidade hebraica por nascimento,
mas tornavam-se cristãos por eleição, através de um ato de fé. O ato de fé
numa realidade ultra-mundana superava o condicionamento mundano da na-
cionalidade ou, genericamente, do nascimento. Era suficiente um ato de fé no
Reino dos Céus que, além disso, em vida, podia ser somente esperado e não
experimentado. De experimentável tinha o Império romano, o único modelo
histórico da realidade meta-histórica defrontada pelos cristãos em chave de
universalidade, enquanto através dele superava-se o condicionamento étnico
através da distribuição da civitas romana às pessoas de qualquer raça18. Não
era coisa de pouca monta: tornar-se súditos do Reino dos Céus significava sub-
verter idealmente os reinos terrestres; historicamente significou subverter o
Império romano, o próprio modelo da universalidade: e contra os “subversivos”,
súditos do Rei dos Céus, o Império romano procedeu em termos de lei. A subver-
são tornou-se martírio, isto é, testemunha: uma testemunha constituída, também,
em termos de lei, tanto que a fé testemunhada tornou-se lei, por sua vez, quando
o Império romano se transformou em Império cristão, um império no qual
caía-se na ilegalidade se não “se acreditasse” ou não se acreditasse da justa
forma. A alternativa do crer tornava-se perigosa e, de qualquer forma, ilegal19.
Nessa direção, como bem analisou Anthony Pagden, a extensão da cris-
tandade continuou, sucessivamente, circunscrita ao território que se considerava
ter sido ocupado pelo Império romano. “O orbis terrarum se converteu, assim,
através da variação efetuada por Leão o Grande no século V, no ‘orbis
Christianus’, que por sua vez se transformou de imediato no ‘Imperium Chris-
tianum’. Um século depois, Gregório o Grande o traduziria por ‘sancta res-
publica’: uma comunidade dotada da mesma exclusividade simultaneamente
aberta que havia caracterizado a ‘respublica totius orbis’ de Cícero”. Portanto,
mesmo que nos termos do direito natural todos os homens, fossem pagãos ou
cristãos, tivessem idênticos direitos políticos, “os não cristãos, pagãos que tam-
bém eram barbari, deviam ser animados para juntar-se à ‘congregatio fidelium’,

18
Ibidem, pp. 11-12.
19
Ibidem, p. 12.

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da mesma forma em que haviam sido impulsionados os ‘bárbaros’ a integrar-


se à civitas romana”20. Dessa herança cultural do Império romano21, resultou o
instituto da Monarchia Universalis que, com o antigo sonho dos imperadores
cristãos, “transformou a ambição pagã de civilizar o mundo no objetivo análogo
de converter literalmente todos seus habitantes ao cristianismo. O único sistema
legal unificador – o koinos nomos – se converteu, assim, num único sistema
de crenças. A enorme influência que teve a noção estóica de lei nas reformu-
lações realizadas pelos Padres da Igreja, de Santo Agostinho a São Tomás, asse-
gurou um alto grau de continuidade teórica entre os impérios pagão e cristão
e [juntamente] a convicção [...] de que a conversão não podia alcançar-se de
forma plena ou adequada sem uma correspondente transformação política e
cultural”.22 Estruturada e potencializada ao longo de toda a Idade Média23, essa
Monarchia Universalis encontrou-se investida com os Impérios Ibéricos, pouco
antes de seu iminente ocaso, da complexa tarefa de administrar o impacto pro-
blemático – e suas conseqüências teóricas em relação ao instituto monárquico
universal – das descobertas americanas.
Conseqüentemente, a missio “religiosa” não se distinguia daquela “política”
e, essas duas perspectivas oferecem-se, conjuntamente e ao mesmo tempo, en-
quanto fundamento da monarquia universal espanhola. Nas palavras da Historia
Ecclesiastica Indiana do franciscano Gerónimo de Mendieta (1525-1604), mis-
sionário no México a partir de 1554, resume-se significativamente esse aspecto:

“estou firmemente convencido de que, como os reis católicos [Fernando


e Isabel] foram encarregados da missão de extirpar os três esquadrões
diabólicos do ‘pérfido’ judaísmo, do ‘falso’ maometanismo e da ‘cega’
idolatria, juntamente com o quarto esquadrão dos heréticos, em direção
dos quais a Santa Inquisição é remédio e medicina, assim a seus
sucessores foi entregue a função de completar a obra. Como Fernando

20
PAGDEN, Anthony. Lords of all the World: Ideologies of empire in Spain, Britain, and
France, 1500-1800. Yale University Press, 1995. Trad. Espanhola. Barcelona: Península,
1997, pp. 38-39.
21
Que não podemos aqui re-visitar em sua complexidade, mas em relação à qual reenviamos,
todavia, para a rica e significativa síntese do primeiro capítulo (A Herança de Roma) da obra
citada de PAGDEN, pp. 23-44.
22
PAGDEN, Anthony. Op. Cit., p. 45
23
Veja-se, em relação a esse aspecto, o segundo capítulo da obra de Pagden (Monarchia
Universalis), pp. 45-86.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 83

e Isabel limparam a Espanha destas pérfidas seitas, assim seus descen-


dentes levarão a término em todo o mundo a destruição universal destas
seitas e a conversão final de todos os povos da terra que voltarão, final-
mente, ao seio da Igreja”.

Nesse específico contexto histórico, a extensão da universalidade do im-


perium constituiu-se na paralela imposição de civilizar o mundo, segundo o
modelo da civitas romana, e converter seus habitantes, segundo o modelo do
cristianismo. E se a cultura (moral) do Império romano encontrava-se funda-
mentada na pietas – que denotava a lealdade familiar e à comunidade, junto
com a estreita observância das leis “religiosas” dessa comunidade –, no novo
contexto histórico que impunha a equação de “civilizar e converter” (civilizar
para converter), a pietas24, que tinha sido causa da fundação do Império romano,
transforma-se em ‘humanidade’, base essencial, mas não suficiente, para tornar
o homem cristão. Com esses pressupostos e sob a égide dos impérios ibéricos,
os missionários puderam levar (construir) a fé católica nas Américas, na África,
na Índia e nas Filipinas onde, diferentemente das missões em China e Japão,
evangelização e conquista constituíram-se paralelamente. De qualquer forma,
para realizar (converter) o homem enquanto tal, tornava-se fundamental trans-
mitir-lhe a “fé na fé”. Desse ponto de vista, se a “religião” (pietas) fazia o
homem, a “fé” (fides) produzia o cristão. Trata-se, segundo o nosso ponto de
vista, de uma distinção de extrema importância, na medida em que, muitas
vezes, os dois termos foram confusamente denotados de forma análoga.
De fato, independentemente dos objetos históricos da fé, aos olhos do bom
cristão de hoje, assim como aos olhos missionários de outrora, o “pagão” (ou,
melhor, o não-cristão) que, apesar de desviar do “verdadeiro objeto”, demonstra
aderência à própria fé é, de seu jeito, um virtuoso; e, ao contrário, o ateu, o
agnóstico ou o céptico, uma pessoa pouco virtuosa. Neste último caso, o que
constitui a “diversidade” é, portanto, a falta da fé: esta é uma indicação do
grau de qualificação cultural que o fideísmo assumiu entre nós.
No nível da ciência histórico-religiosa, a fé laica num ser supremo foi obje-
tivada numa noção atribuída, com demasiado desembaraço, às culturas mais
primitivas, tornando-as assim mais facilmente recuperáveis à nossa fé. Assim,

24
Que compreendia a prática da virtus, a “humanidade” que se expressava na capacidade de
valorizar o bem da comunidade, a utilitas publica, acima da própria conveniência pessoal, a
utilitas singulorum.

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por exemplo, podemos falar de predisposição (cultural) em inventar um Ser


supremo a ser atribuído aos povos primitivos: foi o caso da “descoberta” de
Andrew Lang no século XIX e de seu pronto recebimento, a “fé num Ser
supremo”, na etnologia religiosa. A idéia de Deus representa uma componente
fundamental da cultura ocidental: não esquecendo isso, poderíamos dizer que
aquele Ser supremo que era atribuído às culturas primitivas era o Deus europeu
oportunamente des-historificado ou, de qualquer forma, tirado do contexto histó-
rico cristão. Tratava-se de uma realidade filosófica (não necessariamente teológi-
ca) à qual parece que o europeu não possa renunciar sem renunciar a tantos pontos
fundamentais da própria cultura: de Platão a Kant. Aconteceu assim que o euro-
peu, mesmo quando rejeitou a fé cristã em nome da livre razão, conservou, contu-
do, o Deus cristão sem ter consciência que fosse tal, mas supondo tratar-se de
uma realidade universal (pré-cristã ou a-cristã), isto é, objeto da pesquisa filosófica
e não também histórica. A fé sem história torna-se, assim, uma virtude humana
e não faz nenhuma diferença que se fale de “fé num Ser supremo”, de “fé nos
espíritos da natureza”, de “fé num ideal”, transferindo num nível de comporta-
mento laico a religiosidade própria do fideísmo.25
Levando em consideração esses problemas de caráter histórico, que emer-
gem da perspectiva histórico-religiosa, já se entrevê quanto, além dos problemas
de clareza doutrinal, de síntese conceitual e de traduzibilidade lingüística, os
instrumentos impressos ou manuscritos que deviam servir para a “apresentação
da fé” destinada às novas populações do orbis Christianus determinaram um
espaço para um “encontro” que se constituirá necessariamente repleto de equí-
vocos. E serão justamente esses equívocos que se tornarão as peças fundamentais
sobre as quais se estrutura a possibilidade do encontro missionário (cultural)
com as “religiões” e as “civilizações” americanas.
Ao analisar o problema em relação aos pressupostos ‘fideísticos’ da cultura
missionária, com sua inevitável confusão na definição de ‘crenças’, ‘religião’
e ‘fé’, e levando em consideração a finalidade e o caráter instrumental dos
textos catequéticos, deveremos ter sempre presentes, todavia, alguns importantes
aspectos distintivos e esclarecedores dos textos em seus contextos26.
O que importa, finalmente, é que o catecismo (e sua leitura) representa
sempre, necessariamente, a parte de um todo mais amplo, que deveremos levar

25
SABBATUCCI, Dario. Op. Cit., pp. 13-15.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 85

em consideração para contextualizar o próprio texto catequético. Além do mais,


às vezes podemos encontrar um esboço do contexto em que se insere a obra,
justamente em sua parte introdutória27. Mesmo assim, esse eventual trabalho
de contextualização é sempre particularmente reduzido, em relação a uma con-
textualização histórica geral: seja porque isso não faz parte, propriamente, dos
objetivos do texto catequético; seja porque o autor, em sua posição de missio-
nário, não pode elevar-se, por além de sua condição, quando não há o específico,
às vezes necessário, interesse em ocultar tal contexto.
Além do mais, no caso concreto da evangelização americana28, nas instru-
ções sobre “como fazer catequese”, não há coisa mais importante a ser levada
em consideração do que a “inconstância da alma selvagem”29 ou, dito de outra
forma, a aparência de certas conversões que, às vezes, manifestando-se segundo
as formas externas de um cristianismo que significava a aceitação obsequiosa

26
A catequese não se identifica, pura e simplesmente, com o catecismo. Em primeiro lugar,
devemos levar em consideração algumas características gerais do contexto (sempre historica-
mente determinado) dentro do qual o homem (cristão) é impelido a uma ação catequética
(evangelizadora), e no qual se coloca a especificidade instrumental do texto catequético. Em
decorrência do contexto, encontramos vários dados que se referem à ação da catequese: ob-
servações relativas à explicação do catequista, à forma concreta de torná-la clara, às dificul-
dades que o catequista pode encontrar no seu ensino, às eventuais objeções que pode desper-
tar perante seu auditório, à rejeição ou à aceitação implícitas na ação evangelizadora e que
nem sempre são facilmente perceptíveis pelo catequista, etc. A importância e prioridade des-
ses pressupostos pedagógicos e propedêuticos, do texto catequético, para com os próprios
“mestres” da doutrina, são evidentes desde o De Catechizandis Rudibus de Santo Agostinho.
Desde esse notável exemplo teórico-prático modelar, a incumbência pedagógica se destaca
por seu caráter pastoral, enquanto destinada a esclarecer tanto a metodologia do ensino, quanto
os aspectos gerais ou específicos da doutrina cristã: em breve, em breve, o texto catequético
tem que responder, também, à pergunta “como fazer catequese?”. Santo AGOSTINHO. De
Catechizandis Rudibus. Tradução italiana de G. Vigini. Milão: San Paolo ed., 1998.
27
Cf. AGNOLIN, Adone. Op. Cit., (As introduções dos catecismos publicados), pp. 46-52.
28
Mas não só: vejam-se os caso da Índia, das Filipinas e do Extremo Oriente.
29
A expressão ganhou uma certa notoriedade nos estudos antropológicos que se referem ao
Brasil, desde o artigo de VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a Murta: sobre
a inconstância da alma selvagem”. In: Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 1992, v. 35,
pp. 21-74. Por outro lado, nesse artigo, a expressão é tirada do Sermão do Espírito Santo do
Pe. Antonio Vieira: “a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a
mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo [...]. Outros gentios são
incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos”. No final das contas, a
expressão só torna emblemático, na vocação do célebre “imperador da língua portuguesa”,
um motivo presente ao longo de toda a literatura jesuítica sobre os índios do Brasil, desde a
chegada dos primeiros inacianos: a dificuldade da conversão dos indígenas (tupi).

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da preponderância econômica, política e cultural da sociedade à qual pertenciam


os missionários30, ocultava a fragilidade da conversão (a murta de que eram
feitas essas “estátuas indígenas”, o sermão de Vieira). Por outro lado, mais uma
vez, esse risco está presente, também, nas “instruções agostinianas”31.
Em relação à “inconstância indígena” – esse fácil dobrar-se dessas nações in-
dígenas “à doutrina da fé” em contraposição a um “coração que crê”, de fato–, são
várias as denúncias que podemos encontrar entre os jesuítas, desde o começo da
missão no Brasil. E é paradigmático que, além dessas denúncias, freqüentes
ao longo da ação evangelizadora dos jesuítas, encontremos a sinalização desse
perigo também na obra de autores franciscanos, por exemplo no México, que
sucessivamente ao fracasso da estratégia dos batismos em massa, chamam a

30
No que diz respeito a esse problema, vale a pena relevar a importância da obra de: GLIOZZI,
Giuliano. Differenze e Uguaglianza nella Cultura Europea Moderna. Nápoles: Vivarium,
1993. O autor reconduz o mito do ‘bom selvagem’ à discussão acerca do colonialismo, que
se desenvolveu na França no início dos anos de 1870 (cf., a esse respeito, a primeira parte da
obra, “Il ‘mito del buon selvaggio’: prospettive storiografiche”, pp. 23-119). Nesta perspec-
tiva, a imagem dos selvagens que viajantes, políticos e missionários do Quinhentos e Seis-
centos nos transmitiram pôde aparecer benévola somente se não se leva em consideração os
instrumentos culturais com os quais eles tiveram que interpretar as novidades que encontra-
ram. E se na Bíblia, considerada o quadro histórico geral da civilização européia cristão, se
encontrou a resposta acerca das origens daquelas populações, segundo Gliozzi é possível
compreender as escolhas entre as alternativas oferecidas pelo texto bíblico: elas refletiam as
diversas formas de colonialismo, os problemas que elas encontravam e as “razões” que era
necessário inventar para justificá-las. Enfim, para o autor, aquelas que foram levadas em
consideração enquanto explicações mitológicas ou sonhos coletivos eram, de fato, “ideologi-
as historicamente determinadas”. Essa última definição decorre do outro fundamental traba-
lho, de GLIOZZI. Adamo e il Nuovo Mondo: la nascita dell’antropologia come ideologia
coloniale – dalle genealogie bibliche alle teorie razziali (1500-1700). Florença: La Nuova
Italia, 1977. Síntese exposta, sobretudo, à p. 4.
31
As quais sublinham como: “Se [alguém] quer tornar-se cristão porque espera alguma van-
tagem por parte de pessoas às quais pensa não poder fazer coisa grata de outra forma, ou para
evitar problemas por parte de gente que teme ofender e tornar-se inimiga, na realidade não
quer, de fato, tornar-se cristão, mas somente fingir sê-lo. Porque a fé não é dada por um
corpo que se dobra (sujeita), mas por um coração que crê” (Santo AGOSTINHO. Op. cit.,
pp. 27-28: Instruções para a Catequese, 5.9). E as instruções tecem, também, uma estraté-
gia: “Caso tenha-se apresentado com falsa intenção (“Ficto pectore”), somente para obter
favores humanos ou para evitar problemas, não há dúvida que mentirá. Devemos, todavia,
principiar partindo, justamente, do que ele diz mentindo, sem todavia rejeitar sua mentira [...]
[e emergindo uma sua] resposta não conforme às disposições de espírito de quem está por
ser iniciado na fé cristã, é necessário repreendê-lo com modos doces e afáveis, como pessoa
inexperta e inculta...” (Idem, Ibidem).

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 87

atenção para este fato. Essa é a situação evidenciada, entre outros, por
Bernardino de Sahagún:

“... en todas partes y en las más porfíam de volver a cantar sus cantares
antiguos en sus casas o en sus tecpas (lo qual pone harta sospecha en la
sinceridad de su Fee christiana) porque en los cantares antiguos, por la
mayor parte se cantan cosas Idolátricas en un estilo tan obscuro que no
hay quien bien los pueda entender sino ellos solos; y otros cantares
usan para persuadir al pueblo a lo que ellos quieren, o de guerra o de
otros negocios que no son buenos, y tienen cantares compuestos para
estos, y nos los quieren dexar”.32

Essa “guerra de costumes” re-propõe, implicitamente, a estratégia esboçada


pelo próprio texto agostiniano. E é o Pe. Nóbrega que justifica, exemplarmente,
a estratégia – que às vezes expunha os missionários a censuras – aplicada pelos
jesuítas no Brasil.

“Se nós abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são
contra nossa fé católica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar
cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo tom e tanger seus
instrumentos de música que eles usam em suas festas quando matam
contrários e quando andam bêbados; e isto para os atrair a deixarem os
outros costumes essenciais (...); e assim o pregar-lhes a seu modo em certo
tom andando passeando e batendo nos peitos, como eles fazem quando
querem persuadir alguma coisa e dizê-la com muita eficácia; e assim
tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque
semelhança é causa de amor. E outros costumes semelhantes a estes”.33

Essa mesma estratégia, bem descrita por Vasconcelos em relação às


pregações do Pe. Azpilcueta Navarro, mostra de forma paradigmática quanto

32
SAHAGÚN, Bernardino de. Psalmodia Cristiana. México 1583: prólogo ao leitor (f. 2v.-
3r). Citado por ICAZBALCETA, J. García e MILLARES, A. Bibliografia Mexicana del
Siglo XVI. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, 2ª ed., p. 249.
33
Carta de Manuel da NÓBREGA a Simão Rodrigues, 17 de setembro de 1552. In:
Monumenta Brasiliae, vol. I, pp. 407-408.

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a “retórica” indígena despertou a atenção missionária e, portanto, quanto ela


está presente em suas pregações.

“Começava a despejar a torrente da sua eloqüência, levantando a voz e


pregando-lhes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé,
espalmando as mãos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos cos-
tumados entre seus pregadores, pera mais os agradar e persuadir”.34

Seleção e adoção de costumes indígenas, portanto, para enraizar neles e


impor-lhes um novo sentido: esta pareceu uma forma de cimentar o crer indí-
gena ao redor da doutrina cristã, uma forma de transformar a murta em már-
more. Não se trata, todavia, de uma operação nova na estratégia jesuítica de
evangelização: de alguma forma, assistimos, de fato, à reedição de uma estra-
tégia já apontada, em algum lugar, pelo próprio Inácio de Loyola que convidava
a “entrar com a [razão] deles [dos outros], para se sair com a nossa”. O pro-
blema permanece em saber se, ao invés de sair dessa situação com uma razão
(doutrinária) ocidental, não se saiu (necessariamente) com uma terceira: um
“encontro” (inevitavelmente) tecido de equívocos, implicitamente reconhecidos.
E, neste caso, trata-se de pensar se o mal-entendido não se constitua, realmente,
como uma experiência fundante e fundamental da comunicação inter-cultural35.
De fato, o pressuposto universalista da missão leva, implicitamente, à ne-
cessária constituição dessa comunicação inter-cultural – imposta pelas intenções
da evangelização que impõe uma convivência necessária com a diversidade
cultural –, a fim de conhecer a peculiaridade de sua(s) forma(s) de comunicação.
Isso porque, antes de converter os gentios, os missionários deviam “converter
o Evangelho” segundo a cultura local; sucessivamente, eles deviam “converter”
a cultura local para dentro da perspectiva universalista ocidental, com a pre-
tensão de “compreender” a economia da alteridade dentro da própria ordem
cultural: é justamente na perspectiva universalista ocidental que esse esforço
de conversão/tradução, para fora (a tradução do Evangelho) e para dentro (a

34
VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Vols. I-II. Petrópolis: Vozes,
1977 (1663), vol. I, p. 221.
35
Pela qual problemática, apontamos, entre outros, para o trabalho de LA CECLA. Franco.
Il Malinteso: antropologia dell’incontro. Roma-Bari: Laterza, 1998.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 89

tradução da alteridade), encontra a chave fundamental que permite criar, de


alguma forma, essas possibilidades de tradução36. Todavia, este universalismo
deriva diretamente do percurso histórico ocidental pouco acima apontado que
leva do universalismo do Imperium (romano), enquanto imposição de civilizar
o mundo segundo o modelo da civitas romana, para o universalismo que, tor-
nando-se modelo de uma Monarchia Universalis, torna o orbis, necessariamente,
Christianus: impondo-lhe, portanto, a ação de converter seus habitantes, se-
gundo esse modelo. E, a esse respeito, o próprio instrumento jurídico formal
do requerimiento americano, elaborado pelo jurista espanhol Juan de Palacios
Rubios ao redor de 1512, nos fornece o exemplo mais significativo do produto
desse modelo: usado em situações práticas de conquista, ele era ritualmente
lido em espanhol ou latim impondo, além da linguagem, a doutrina de uma
Monarchia Universalis absolutamente incompreensível para os indígenas. A
conversão dava-se, portanto, também no plano jurídico, que constrói suas ne-
cessárias doutrinas de forma inevitavelmente entrelaçada com o plano teológico
mais geral. No novo imperativo de um orbis Christianus, o próprio Juan de
Palacios Rubios apontava, conseqüentemente, tanto para a “teologia do reque-
rimiento”, quanto para a dificuldade indígena de sua compreensão:

“Meu Senhor, parece-me que estes indígenas sejam insensíveis à teologia


deste requerimiento e que não haja ninguém em condição de fazer com
que o compreendam; não gostaria Vossa Excelência de ficar com ele até
que tenhamos colocado na gaiola um desses indígenas, de modo que
possa aprendê-la [essa teologia] a seu cômodo e meu Senhor Bispo possa
explicá-la?”37

Quase caçoando do modo em que podia, de alguma forma, impor sua


compreensão, o autor revela a dificuldade que só a “gaiola” do processo histórico
do encontro teria permitido superar. De qualquer modo, o documento respondia
às exigências da conquista e contribuiu para aliviar a consciência da realeza.
Esse documento, portanto, destaca-se dentro da perspectiva universalista
apontada: essa última revela-se enquanto instrumento fundamental de uma

36
Termo, neste caso, fortemente caracterizado por sua etimologia latina tra-ducere.
37
Citado em HANKE, Lewis. The Spanish Struggle for Justice in the Conquest of America.
Boston: Little Brown, 1965, pp. 33-34.

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90 Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118

possibilidade de tradução “para” e “do” outro culturalmente diferente e encontra


seu momento mais representativo de constituição na hora em que se passa de
um conceito de religião romana, fundamentada na pietas (que constrói o
homem, culturalmente romano), para um conceito (religioso) de cristão, que
não pode mais ser conotado culturalmente, mas somente através da extensão
da fides: esta, e não mais a própria cultura, produz o cidadão da (nova) civitas
Dei (de agostiniana memória).
O(s) mal-entendido(s) da comunicação inter-cultural, que o Ocidente
enfrentou, enraizaram-se, portanto, nessa dimensão peculiar de seu percurso
histórico que, todavia, apesar de seus contínuos equívocos e reajustes, tornou
possível essa comunicação. Nesta dimensão nasceu, de fato, no sentido mais
amplo da expressão, a perspectiva antropológica: esta fundamentará a prática
de uma disciplina construída, principalmente, sobre esses equívocos e sobre
sua possibilidade de um entendimento, de uma explicação.
Mas, no momento do encontro, esse processo de conversão/tradução esta-
beleceu-se, necessariamente, também do lado da perspectiva indígena que, to-
davia, distinguia-se daquela ocidental por seus paradigmas mítico-rituais. Neste
sentido o impor-se (ocidental) da “com-versão” criou uma necessária e inevi-
tável “com-vergência” (recíproca e, todavia, distinta) na qual os mal-entendidos
multiplicaram-se: tanto uma, quanto a outra das partes envolvidas tornaram-
se, ao mesmo tempo, produtoras, vítimas e beneficiárias desse processo de co-
municação, constituído por equívocos e mal-entendidos. Os missionários
procurarão, por longo tempo, uma pietas peculiar das culturas indígenas – mais
do que uma “religião”, um sistema de “crenças” – para poder construir, segundo
o modelo oferecido pelo mundo romano, o percurso de um cristianismo que
possa levar à fides: trata-se, no fundo, da preocupação própria e constante da
catequese. Por outro lado, a fides missionária podia tornar-se, para os indígenas,
um instrumento de negociação, na medida em que, segundo seus paradigmas
culturais de ordem mítico-ritual, os gestos “resolviam” as intenções recônditas
de uma consciência e de uma “religião do coração” que não podiam (não tinham
os instrumentos culturais para) conceber. Nessa perspectiva, a “simulação” indí-
gena era a única possibilidade para o indígena agradar, de algum modo, a exi-
gência missionária: daqui a acusação de inconstância e fragilidade desse pro-
cesso de conversão. E não será por acaso que a característica específica do texto
catequético consistirá em sua contínua repetitividade por parte do catecúmeno
indígena: tratava-se, de fato, de construir ex novo uma forma peculiar, ao mesmo
tempo e correlativamente integradas, da memória e da consciência, para medir,

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de algum modo, um nível “tranqüilizador” em relação à apresentação da fé,


na espera de que o catecúmeno, partindo de um “saber” que teria que emanar
do texto, pudesse chegar, finalmente, a “possuí-lo” em termos de convenci-
mento e de efetiva (isto é, não ritualista) assimilação doutrinal.
Levando em consideração as perspectivas culturais (e estruturais) peculiares
que condicionam esse encontro catequético (uma verdadeira “inculturação da
fé”) vamos agora, finalmente, abordar alguns importantes aspectos distintivos
e, esperamos, esclarecedores desses textos em seus contextos.

Os Sacramentos entre os Tupi: mediações simbólicas e cultura indígena


No início do capítulo V de A Escrita da História, Michel de Certeau aponta como:

“quatro noções parecem organizar o campo científico cujo estatuto se


fixa durante o século XVII e que recebe de Anpère o seu nome de etno-
logia: a oralidade (comunicação própria da sociedade selvagem ou
primitiva, ou tradicional), a espacialidade (ou quadro sincrônico de um
sistema sem história), a alteridade (a diferença que apresenta um corte
cultural), a inconsciência (estatuto de fenômenos coletivos referidos a
uma significação que lhes é estranha e que não é dada senão a um saber
vindo de algures). Cada uma delas garante e chama as outras. Assim, na
sociedade selvagem, exposta à vista do observador como um país ime-
morial (...), supõe-se uma palavra que circule sem saber a quais regras
silenciosas obedece. Corresponde à etnologia articular estas leis numa
escrita e organizar este espaço do outro num quadro de oralidade. [...]
Este quadrilátero “etnológico” [...] tem [...] seu corolário na historiografia
moderna, cuja construção apresenta, na mesma época, quatro noções
opostas: a escrita, a temporalidade, a identidade e a consciência”.38

Tendo em vista o objeto de nossa indagação, nos parece de grande relevo


a análise que pode ser construída em relação à especularidade desse “quadrilátero
etnológico” que emerge exemplarmente no começo da Idade Moderna e que
deve ser levado em consideração através de uma prática que se estabelece como
ponte fundamental para essa leitura especular que é a etnologia: trata-se da

38
DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982, p. 211 [ed. orig. francesa, Paris: Gallimard, 1975].

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92 Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118

prática de tradução. E, repare-se bem, quando falamos em tradução entende-


mos sim o processo através do qual, de alguma forma, se traz para dentro do
próprio mundo cultural uma cultura longínqua, mas entende-se, também e ao
mesmo tempo, os instrumentos culturais que permitem, antes dessa (propria-
mente dita) tradução, uma incursão na cultura outra a fim de conceituá-la.
Na perspectiva específica de nossa indagação, esse processo encontra-se
ulteriormente complicado: traduzindo para os indígenas americanos os dogmas
doutrinais pós-conciliares, os missionários empreendiam uma tradução de uma
tradição religiosa ocidental para uma cultura que não era partícipe dessa tra-
dição. Para poder realizar sua tarefa, o missionário devia tentar entender, por-
tanto e a priori, os códigos culturais daquela cultura nos quais pudesse inscrever
sua própria tradição (religiosa).
Além do mais é claro que, se a tradição da catequese se estabelece num
plano universal (teleológico), subordinando a esse, segundo seu ponto de vista,
a própria história, por outro lado, segundo o nosso ponto de vista, a relação
entre história e catequese é, antes de mais nada, um problema interno à pers-
pectiva histórica. A partir daqui, resultam claramente pertinentes as perguntas
que o próprio Certeau coloca na abertura de seu trabalho: “Qual é o significado
histórico de uma doutrina no conjunto de um tempo? Segundo quais critérios
compreendê-la? Como explicá-la em função dos termos propostos pelo período
estudado?”39. Se, em relação a essas perguntas, já apontamos algumas propostas
de indagação, na especificidade da nossa indagação deveremos, agora, tentar
responder a difíceis perguntas ulteriores em relação à peculiar situação de “me-
diação cultural” realizada pelos missionários (jesuítas) em terras americanas.
E essas perguntas dizem respeito, justamente, às modalidades segundo as quais
a escrita, a temporalidade, a identidade e a consciência puderam tentar se ins-
crever nas culturas indígenas, ao mesmo tempo em que esse quadrilátero etno-
lógico tentava transcrever para dentro do mundo ocidental a oralidade, a espa-
cialidade, a alteridade e a inconsciência do mundo indígena americano. Falamos
em tentativa de inscrição e de transcrição, não para negar a possibilidade que
isso possa ter ocorrido (as representações partilhadas tornam-se, de fato, reali-
dade), mas para abrir um espaço fundamental para a indagação que é, justa-

39
Idem, Ibidem, p. 33.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 93

mente, o espaço de uma negociação implícita nos processos de encontro cul-


tural. E isso implica, de alguma maneira, a tentativa de debruçar-se “sobre a
construção do sentido do Outro, ou seja, sobre os códigos colocados em jogo,
de um e de outro lado do encontro colonial, para entender a alteridade humana,
que penetrava de uma forma tão inusitada e violenta no mundo e no fluir da
história, criando para tanto novos universos simbólicos com os fragmentos dos
tradicionais”40. Trata-se, enfim, de entender (entrever) o verificar-se de conver-
gências de horizontes simbólicos enquanto construções históricas que se
realizaram no impacto colonial: isto é, entender o processo de seleção, absorção
e transformação de elementos/estruturas culturais outros, nos respectivos dois
lados do encontro, na medida em que esses elementos faziam sentido para a
cultura (indígena ou missionária) que os recebia e/ou eram transformados nessa
direção. E se, no momento do encontro traumático, o sentido era diferente, a
cultura colonial acaba, de fato, implementando-se nesse processo de conver-
gência que a transforma numa “cultura híbrida”41 ou “mestiça”42. E, vale desta-
car, até mesmo algumas peculiares categorias de análise (ocidentais), que ser-
viram para interpretar a alteridade nesse processo histórico de encontro
desenvolvido no interior do Ocidente, constituíram-se enquanto características
“categorias híbridas”: é o caso emblemático do próprio conceito de “religião”.
Mesmo visando investigar, especificamente, às modalidades do encontro
doutrinal, por outro lado, todavia, não podemos perder de vista o fato de que
essa especificidade do encontro retalha um seu espaço particular dentro de um
panorama histórico complexo, como por exemplo, aquele do Brasil colonial
onde Colonos, Coroa, administradores e missionários estabeleceram alianças
ou travaram lutas em torno da condição básica para a colonização da América
Latina: a conquista do trabalho escravo. Nesse específico contexto histórico,
as missões jesuíticas ocuparam um lugar estratégico ao se constituírem como

40
POMPA, Cristina. Religião como Tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil
Colonial. São Paulo: Edusc, 2002, p. 24.
41
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial.
São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
42
GRUZINSKI, Serge. La Guerre des Images: de Christophe Colomb à “Blade Runner”
(1492-2019), Paris, Fayard, 1990; GRUZINSKI, Serge e BERNAND, Carmen. De la Ido-
latria: uma arqueologia de las ciencias religiosas. México: Fundo Econômico de Cultura,
1992 [ed. original francesa de 1988].

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94 Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118

poder moderador nessa disputa pelo trabalho. Apesar de sua peculiar posição,
os inacianos acabaram se tornando, necessariamente, instrumentos da política
de desenvolvimento da Colônia, servindo, portanto, aos interesses da Coroa
portuguesa: nessa perspectiva a catequese e, mais geralmente, a obra dos jesuítas
no Brasil se caracteriza também por procurar um método alternativo de
conquista e assimilação dos povos nativos, os “negros da terra”.43
Ora, este método alternativo identificou-se com uma operação de “redução”
das culturas indígenas que, antes de institucionalizar-se nos famosos modelos
alternativos da organização social que levam esse nome, destacou-se como
prática necessária de um seu reconhecimento e indagação. Os primeiros reco-
nhecimentos – a leitura e interpretação das culturas indígenas, que devia funda-
mentar o novo ponto de equilíbrio entre catequese e civilização – parecem delinear-
se, decididamente, em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro.
Num primeiro tempo, os excessos serão identificados com os costumes e as
ausências com as crenças: e, no imperativo de cristianizar os indígenas, os primei-
ros parecem, em princípio, ter preocupado mais do que as segundas.
Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de
“costumes abomináveis” ou “maus costumes” (cauinagem, guerra, antropofagia,
sexualidade desordenada, pinturas, danças etc.) que conotava um estágio (de
aristotélica memória) inferior de humanidade44, revelador de uma profunda
desordem social e que dificultava, a um tempo, o próprio processo de civili-
zação, fundamento irrenunciável para a sucessiva obra de cristianização. No
combate a esses institutos, assim como à instituição central da cultura tupi do
karaíba, os “redutores” jesuítas, serão sempre irredutíveis.

“Os impedimentos que há para a conversão e perseverar na vida cristã


de parte dos índios, são seus costumes inveterados [...] como o terem
muitas mulheres; seus vinhos em que são muito contínuos e em tirar-

43
Entre os vários trabalhos que abordam essa questão apontamos os de MONTEIRO, John
Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Cia.
das Letras, 1994. Cf. pp. 36-37. MONTERO, Paula. A universalidade da Missão e a parti-
cularidade das culturas. Apud: MONTERO Paula (Coord.). Entre o Mito e a História: o v
centenário do descobrimento da América. Petrópolis: Vozes, 1996. Cf. pp. 86-89.
44
Cf., a esse propósito, PAGDEN, Anthony. The Fall of Natural Man: the american indian
and the origins of comparative ethnology. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 95

lhos há ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais [...]. Item


as guerras em que pretendem vingança dos inimigos, e tomarem nomes
novos, e títulos de honra; o serem naturalmente pouco constantes no
começado e sobretudo faltar-lhes temor e sujeição [...]”.45

Essa denúncia do Pe. Anchieta é um dos numerosos exemplos que podem


ser encontrados nas cartas jesuíticas do final do século XVI, mas que se pro-
longa, no século sucessivo, nas denúncias de “ações e costumes bárbaros da
gentilidade”, segundo as palavras do Pe. Vieira.
Neste sentido, na base do processo de catequização impunha-se o trabalho
enquanto instrumento de civilização. Tanto os aldeamentos, quanto as ‘reducciones’
constituíram-se como lugares de trabalho que, como tais, eram finalizados à civilização
do indígena americano46: estabilidade, regularidade, hierarquia, tornavam-se instru-
mentos de uma administração (indispensável) de diferentes temporalidades, que encon-
travam um de seus mais significativos desafios no controle e ordenação temporal de
uma sexualidade indígena que os jesuítas consideravam, mais uma vez, enquanto
desordenada e excessiva. O processo (civilizador, antes do que missionário) de redução
manifesta, enfim, o domínio político como policiamento endereçado a modificar os
(excessos dos) costumes indígenas.
Em contraposição aos excessos dos comportamentos, destacam-se, por
outro lado, de forma paralela e correlativa, algumas significativas ausências
em relação à memória, à vontade47 e à religião48: e isso, apesar do definitivo

45
ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 333.
46
A importância do trabalho enquanto instrumento de civilização – e conseqüentemente de
conversão – foi bem evidenciado por ZERON, Carlos Alberto. La Compagnie de Jésus et
l’institution de l’esclavage ao Brésil: les justifications d’ordre historique, théologique et
juridique, et leur intégration par une mémoire historique (XVI- XVII siècle). Tese de Douto-
rado, EHESS, 1998.
47
Em relação ao problema da “memória” e da “vontade” indígena, cf. os trabalhos de VIVEI-
ROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selva-
gem”, artigo citado e de HANSEN, João Adolfo, a comunicação apresentada em ocasião dos
Seminários sobre “Instrumentos da Comunicação Colonial”, realizados na Universidade de
São Paulo nos dias 24 e 25 de agosto de 2000.
48
E em relação a isso, cf. POMPA, Cristina. Religião como Tradução. Op.Cit., principal-
mente o capitulo 1. (O Encontro e a Tradução), pp. 35-56.

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reconhecimento (religioso) da alma aos indígenas americanos. Nessa direção,


“se o missionário deve modificar, através da força se necessário, o comporta-
mento e os costumes dos Indígenas para salvá-los, ele deve igualmente fazer
com que conheçam a lei de Deus”.49 Para tanto, se os excessos impunham a
disciplina, as ausências reclamavam a doutrina. Uma e outra eram, juntamente,
fundamentais para realizar o processo de cristianização. Na ótica de nossa in-
dagação, a tentativa de inscrição da disciplina e da catequização revela-se im-
portante para entender a dificuldade de sua inscrição junto aos indígenas ame-
ricanos (antes que da tradução de suas culturas para o Ocidente), isto é, a
dificuldade de inscrever nas culturas americanas um percurso constituído pela
escrita, pela temporalidade, pela identidade e pela consciência (ocidentais) para
um mundo outro que era representado por uma pontual diferença em relação
a esses instrumentos culturais.

A “Rede Demoníaca”: entre excessos e ausências


A uma primeira abordagem de tal relevante problema, parece-nos que dois
foram os instrumentos peculiares de tradução que se afirmaram como essenciais
nessa obra de inscrição: a tradução lingüística, junto e paralelamente à conse-
qüente e fundamental tradução conceitual. E esta última parece identificar-se,
decididamente, mais com o instrumento interpretativo do demônio (anhanga),
do que com aquele de Deus (tupã). Nessa direção, de acordo com Laura de
Mello e Souza50, acusamos, sem dúvida, na Terra de Santa Cruz, a forte presença
de uma “demonologia” que, além de propor-se enquanto produto histórico de
uma representação e de uma administração cultural das novas terras americanas,
destacou-se, sobretudo, enquanto imprescindível instrumento para gerenciar,
de alguma forma, seu peculiar encontro cultural. Com relação a isso, tanto a
língua, quanto o demônio constituíram-se, mais do que em instrumentos de
simples e pura inscrição/dominação, em instrumentos que levavam em direção
a uma inevitável e perturbadora imersão no mundo da cultura indígena. Tudo

49
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Les Ouvriers d’une Vigne Stérile: Les jésuites
et la conversion des Indiens au Brésil – 1580-1620. Tese de Doutorado, defendida em janei-
ro de 1999, junto à “Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales”, Paris, p. 142.
50
Cf. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil coloni-
al. São Paulo: Cia. das Letras, 1987; e Inferno Atlântico: demonologia e colonização – sé-
culos XVI-XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 97

isso, antes de se saírem como produto de uma nova, peculiar, dimensão cultural:
a cultura colonial, de fato. Isso significa que, dentro dos graves problemas
suscitados pelos excessos e pelas ausências da cultura indígena americana, a
‘conquista espiritual’ encontrou-se na necessidade de formular uma primeira
forma de redução dessas culturas, estruturando uma rede interpretativa que
lhe permitisse, de algum modo, ler e interpretar as práticas culturais indígenas:
tratou-se de uma rede redutora que encontrava ao redor do “demoníaco” a es-
trutura eficaz e cômoda para poder, mesmo que fosse para condenar, abrir-se
ao conhecimento dessas práticas51.
O “demoníaco” constituía-se como a rede que, em princípio, oferecia a
possibilidade de entender tanto os “excessos”, quanto as “ausências” que carac-
terizavam, aos olhos dos missionários, mas não só, as culturas indígenas. E o
“demoníaco” foi instalando-se timidamente numa primeira frágil dimensão que
se debruçou nas primeiras descrições da alteridade indígena. Buscando uma
sua específica “religiosidade pagã” que permitisse implementar o processo e
as estratégias de evangelização já experimentadas em relação às alteridades
européias, os missionários viram-se na impossibilidade de identificar (reco-
nhecer) esse modelo de alteridade religiosa. E antes do que o modelo, é sobre-
tudo a dimensão religiosa que parecia faltar completamente52.
No mais entusiástico dos casos, esse dado garante a primeira constituição
do mito do “bom selvagem”. Não é por acaso que as peculiaridades positivas
do indígena americano encontram-se, desde o próprio Caminha, na sua

51
Neste sentido, não estamos completamente de acordo com GRUZINSKI, La Guerre des
Images, obra citada, p. 31. Cf., ao longo desta obra, a rica análise do autor a respeito das
imagens (em suas ambigüidades entre destruição e substituição, intercâmbio etc.) e do ima-
ginário barroco. Neste “intercâmbio desigual”, o autor destaca como: “por la vía del trueque
las cosas de Europa penetraron en los mundos indígenas mucho más pronto que los conquis-
tadores. [...] Trueque de oro e imposición de imágenes: he ahí ya unidas dos caras de una
empresa de dominación dedicada a extenderse por todo el planeta: la occidentalización”. Ibidem,
p. 51. “Pasado el choque de lo desconocido y la primera interpretación colombina, tentativa
y flexible, se efectuó el encuadre (Pedro Mártir), se redujo el campo, se estilizó y se dramatizó
la visión, hasta que surgió la ‘visión americana’, en realidad réplica pura y simple de un déjà-
vu europeo. La mirada del colonizador colocó sobre lo indígena la red reductora pero eficaz
y cómoda de lo demoníaco”. Segundo nosso ponto de vista, essa peculiar ‘rede redutora’
permitiu, muito provavelmente, uma redução menos significativa, em relação às práticas in-
dígenas, do que a ‘rede’ oposta.
52
Cf. CLASTRES, Hélène. Terra sem Mal: o profetismo tupi-guarani. São Paulo: Brasiliense,
1978, p. 15. (1ª ed. Paris, 1975).

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98 Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118

docilidade e simplicidade53: a carta do primeiro cronista do Brasil representa,


portanto, manifestamente, a base de um projeto propriamente colonial, mas
se constitui, também e ao mesmo tempo, enquanto base de um entusiástico
projeto missionário: este via no bom selvagem a imagem de uma inocência
que lhe permitia entrever a possibilidade de fecundar sua alma virgem. É dessa
forma que, pouco depois de sua chegada, o Pe. Manuel da Nóbrega podia afir-
mar, com um tom manifestamente entusiasta em relação à atuação de seu projeto
missionário, que se trata de “gente que nenhum conhecimento tem de Deus,
nem ídolos54 e, sucessivamente, que “esta gentilidad a ninguna cosa adora”55.
Mas, pouco a pouco, a tabula rasa da cultura indígena devia manifestar-se em
toda sua ameaçadora dimensão que arriscava de não permitir, ao mesmo tempo,
nem a conversão (religiosa) nem a colonização (política). A ausência (até em seus
fundamentos lingüísticos) de fé, lei e rei revelava-se como o perigo do fracasso da
empresa colonial global. E, em sua especificidade religiosa, assiste-se, portanto, à
transformação da interpretação de Nóbrega, como aparece em sua Carta de 1556,
já apontada, emblemática correspondência, não mais de uma (pretensa) interpretação
etnográfica, mas, finalmente, de uma desesperadora lamentação.
A possibilidade de constituir a Humanidade enquanto sistema de compara-
ções entre suas específicas formas (hoje diríamos de suas culturas), era amea-
çada pela impossibilidade de encontrar uma série de valores (religiosos) comuns
que deviam fundamentar a comparação. Essa ausência constituía-se como a impos-
sibilidade de realizar uma autêntica conversão/tradução por parte dos missioná-
rios. A própria ação demoníaca caracterizava-se, tênue e timidamente, neste vazio
de crenças, como eco das caracterizações que a Idade Clássica e Média haviam
projetado nas alteridades da Índia, da Etiópia e da Escandinávia e que se transferia
para a América em seguida à expulsão ocorrida na Europa56. Mas, nas desnor-
teantes ausências das terras americanas, o próprio demônio corria o risco de se
encontrar sem chão para implementar sua ação. Para fundamentar a possibilidade

53
Necessitando de tudo, o indígena necessita, sobretudo e principalmente, daqueles bens
culturais que encontram na “creemça” a base fundamental que o Europeu se sente no dever de
impor: cf. CAMINHA, A Carta de Pero Vaz de Caminha: o descobrimento do Brasil. 2ª ed.
CASTRO, Sílvio (Org.). Porto Alegre: L&PM, 1987.
54
Carta de 10 de abril de 1549.
55
Informação das Terras do Brasil. Agosto de 1549.
56
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Inferno Atlântico, Op.cit..

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 99

de uma autêntica conversão tornava-se necessário, então, a anterior possibilidade


de uma “traduzibilidade” (apesar da novidade) da cultura americana. Fazia-se
necessário encontrar uma gramática das culturas outras que permitisse lê-las:
tratava-se de instaurar, finalmente, uma possibilidade de comunicação que
unicamente podia permitir uma (de alguma forma) conversão: deste ponto de
vista, adquire uma importante relevância o fato das palavras ‘conquista’, ‘conver-
são’ e ‘tradução’ encontrarem-se envolvidas numa relação semântica tão estrita-
mente recíproca57. E em termos comunicativos, verifica-se uma peculiar determi-
nação lingüística da própria conversão. É assim que os missionários, “in the same
way that they bypass the ambiguity of Christianity, they avoid the question of
the linguistic determination of conversion”58.
Por outro lado, não podemos perder de vista que tudo isso verifica-se, pon-
tualmente, na perspectiva de uma mediação de um religioso que se estabelece
enquanto código comunicativo que devia permitir uma penetração da cultura
ocidental nas outras culturas, ao mesmo tempo em que devia permitir uma ins-
crição das outras culturas num reconhecimento ocidental de sua (eventual) “reli-
giosidade”. E também não podemos perder de vista como o mundo simbólico
indígena devia ter-se aberto a uma perspectiva de tradução frente à linguagem
(religiosa) de mediação simbólica dos missionários, às vezes criando ou amea-
çando equívocos de que a estreita convivência, junto com a perspicácia de certos
missionários se deram, finalmente, conta. Assim o jesuíta Acosta aponta, sintética
e emblematicamente, para os problemas que surgiram ao longo da prática mis-
sionária nas Américas: essa experiência manifestava quanto podia ser contra-
producente e perigoso falar de “igrejas”, “monastérios” e “padres” a povos que
não conheciam essas coisas. A lição dessa experiência missionária constituiu-se,
portanto, na necessidade de adequar-se ao grau de compreensão dos próprios
indígenas: dessa forma, corrigiram-se algumas perspectivas catequéticas iniciais
como, por exemplo, algumas características diretrizes anchietanas.

57
RAFAEL, Vicente L. Contracting Colonialism: Translation and Christian Conversion in
Tagalog Society under Early Spanish Rule. Ithaca: Cornell University Press, 1988. Em relação
a essa estrita correlação entre os três termos, cf. principalmente todo o ‘Prefácio’, pp. IX-XIII.
58
Idem, Ibidem, p. 6.

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100 Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118

Portanto, como ao longo de seu percurso histórico (melhor, do percurso his-


tórico que ele determinou) e com uma destacada atenção perante a novidade do
encontro americano, o instrumento conceitual “religião” modelou-se, mais uma
vez, manifestando sua vocação no constituir-se como resultado privilegiado de
uma comunicação inter-cultural. A projeção das categorias religiosas ocidentais
– já produto da peculiar comunicação inter-cultural de uma história (religiosa)
que se desenvolveu ao redor do Mediterrâneo – nas outras culturas re-fundavam
(religiosamente) suas hierarquias de sentido: mas não podemos deixar de observar
como essa tradução devia constituir-se como recíproca, na medida em que a cultura
indígena podia transformar o sentido missionário das “igrejas”, dos “monastérios”
e dos “padres”, a que se refere a preocupação acostiana.
E, junta e paralelamente ao conceito de religião, é o processo de personi-
ficação dos seres extra-humanos que se constitui como o emblema mais signi-
ficativo do resultado de comunicação inter-cultural. A construção (conceitual)
religiosa encontra, quase, nesses últimos, os tijolos que a edificam. Nessa pers-
pectiva, parece-nos, por exemplo, que o problema do (conceito) “pecado”, que
se destaca na catequese missionária tupi e guarani, adquire nela uma sua signi-
ficativa relevância e que, portanto, pode ser tomado como um dos exemplos
mais significativos de sua característica e específica relação com o conceito
religião, por um lado, e com a personificação extra-humana do demônio, por
outro. Analisando essa relação, pretendemos encontrar a significação da ação
diabólica que procurávamos, junto aos primeiros missionários, enquanto
implementação de sua ação.
Da “ausência” desprendia-se a imagem edênica do Novo Mundo, do “ex-
cesso” desprende-se, agora, a imagem infernal. O Demônio torna-se o grande
antagonista do processo missionário em terra americana59 e a missionação vem
a corresponder, em seu fundamento inicial, ao mesmo processo de civilização.
É dessa forma que o aldeamento jesuítico constituiu-se como uma solução local
da obra, ao mesmo tempo, missionária e civilizadora, representando o mesmo
esforço de adaptação à situação econômica, política e religiosa que caracterizava
a Colônia. O aldeamento dos indígenas impunha-se, desse ponto de vista, como

59
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Inferno Atlântico,
Op.cit.; VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Op.cit.; RAMINELLI, Ronald. Ima-
gens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro/São
Paulo: Zahar/Edusp-Fapesp, 1996.

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Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118 101

criação institucional em vista de uma necessária educação que só poderia levar


a (fundamentar) uma conversão. No caso dos costumes indígenas americanos,
tratava-se, portanto, de realizar, antes, uma forma de policiamento60 a fim de
poder, só sucessivamente, realizar uma verdadeira conversão. A catequese ofe-
recia-se, justa e peculiarmente, como o elo do processo entre as duas instâncias.
Nesta direção, civilizar, antes de converter, os costumes indígenas nas pequenas
“cidades de Deus” – não só catequeticamente afins à civitas Dei agostiniana –
significava, de fato, reduzir os excessos dos costumes selvagens. Não só, portan-
to, retirar e afastar os indígenas da costumeira vida itinerante e/ou do perigoso
convívio com os colonos, mas também e sobretudo exercer, através da educação
dos corpos e das almas, o “bom governo” e “conduzi-los”, “reduzi-los” de fato,
para a humanidade civil.
Como dizíamos anteriormente, a “escravização” das almas indígenas encon-
trava seu protagonista no Demônio que, além de configurar-se enquanto anta-
gonista do trabalho missionário, necessitava fundamentar sua ação em “falsas
crenças” dos indígenas. “Excesso” e “falsidade” resumem os códigos clássicos
da definição do outro pagão. É nessa perspectiva que a “gramática da idolatria”
tornou-se o primeiro fundamento de um “crer” que, antes do aparecimento da
empresa colonial e missionária, caracteriza-se, como vimos acima, por ser sem
alternativas. Mesmo que, pelo fato de não encontrar ídolos, templos e sacerdotes
entre os indígenas americanos, em base à “rede” de Las Casas se possa falar de
“grau zero” da idolatria61, essa idolatria adquire as características de uma “lingua-
gem”, isto é, constitui-se enquanto código de interpretação sub specie religionis
da alteridade americana, tornando-se, no limite, um esquema universal aplicável
a todas as culturas, a partir de uma idéia de religião comum ao gênero humano62.
Essa idéia de religião e esse seu produto de uma idolatria enquanto linguagem,
tornam-se, finalmente, segundo a nossa perspectiva, o fundamento da ação

60
Em relação a este processo, devemos evidenciar a importância desse “aprimoramento civil
dos costumes”, conforme a análise da obra de Norbert Elias, que é, paralelamente, o ‘proces-
so civilizador’ que manifesta um seu peculiar e intenso desenvolvimento justamente na época
renascentista.
61
BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. De l’Idolatrie: une archéologie des sciences
religieuses. Paris: Seuil, 1988, cap. III e passim.
62
Cf. GASBARRO, Nicola. Il Linguaggio dell’Idolatria. In: Studi e Materiali di Storia delle
Religioni, vol. 62, pp. 189-221.

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102 Adone Agnolin / Revista de História 154 (1º - 2006), 71-118

diabólica: se o “grau zero” das culturas apresenta “gradações” específicas nas


práticas idolátricas, no caso dos indígenas brasileiros, com suas notáveis
“ausências”, será justamente essa ação diabólica a representar a linguagem (inter-
pretativa) privilegiada para traduzir suas alteridades.
O Diabo, nas Américas, configura-se, de fato, como primeiro tradutor63
dos erros e das falsidades que se apresentam enquanto contraponto correlato
da primeira tradução religiosa do mundo americano. Nessa tradução (de costu-
mes, antes do que de crenças) que se estende enquanto território da ação dia-
bólica, os pajés ou caraíbas, os “feiticeiros” para os missionários, tornavam-
se a imagem de intérpretes principais. Os costumes, impedimento da ação
missionária e território da ação diabólica, eram inspirados, de fato, pelas “ce-
rimônias diabólicas”, realizadas pelos “feiticeiros”. A dificuldade da catequese
encontra neles o principal obstáculo, justamente enquanto eles evocam, com
suas cerimônias, os antigos costumes: neles se inscrevia a ação demoníaca. Neste
sentido podemos também destacar como entre missionários e caraíbas, entre
catequese e “cerimônias diabólicas”, determinou-se uma “batalha pelo mono-
pólio da santidade” (dos sacra), finalizada à disputa com (e à conquista de)
um “poder espiritual” que justificava e até exigia, em suas estratégias, o apo-
deramento de instrumentos, símbolos, modalidades, falas dos outros64.

A Bestialidade da Língua Indígena e sua Catequização


Mas, mais do que nas “profecias” das cerimônias indígenas, era na própria
língua indígena que os missionários descobriam uma “bestialidade” enquanto
língua da falta (conceitual) e, no limite, da falta de linguagem. Mais uma vez,
repete-se a estrutura antagônica e correlata que caracteriza, aos olhos dos mis-
sionários, as culturas indígenas: essa falta (o que antes definimos de “au-
sências”), ao mesmo tempo em que obscurece a visão do bem – como a ausência
da “f”, “l” e “r” impedem os institutos da “fé”, da “lei” e do “rei” –, ilumina

63
Do latim traducere: o que traz para dentro (o erro no mundo dos indígenas).
64
Em relação a esse problema, cf. a análise de POMPA, Religião como Tradução, Op.cit.,
pp. 53-56, onde, em relação ao conflito/encontro entre missionários e caraíbas, se aponta
para a “construção negociada” das santidades e dos profetas indígenas, isto é, de uma lingua-
gem “religiosa” enquanto terreno de mediação no qual a alteridade da outra cultura pode
encontrar seu sentido e sua “tradução”.

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sua natureza semper prona ad malum, a ausência (até nos próprios sinais lin-
güísticos) do bem, produz uma exacerbação (nos costumes) do mal, a falta de
uma eqüidade lingüística produz uma gente “absque consilio et sine prudentia”65.
Nessa direção, antes de enfrentar os problemas postos pela utilização da língua
indígena para a constituição dos catecismos jesuíticos, deveremos pelo menos
apontar uma primeira significativa identificação, que nos parece emergir em
certa literatura jesuítica, entre vernáculo e ação demoníaca. E se, na literatura
jesuítica, a língua será “doutrinada” nos catecismos, ela é “caracterizada”, por
exemplo, nos “autos”.
Em nosso trabalho anterior66, já reparamos nessa característica dos autos
anchietanos. Lá, observávamos como o Pe. Anchieta – que em várias ocasiões
sublinhava tratar-se de “gente tão indômita e bestial, que toda a sua felicidade
a põem em matar e comer carne humana”67 – sintetiza e “reduz” os “maus cos-
tumes” indígenas no próprio vernáculo. Se, portanto, o teatro anchietano tor-
nava-se a representação mais significativa da vis combativa (e triunfal) da cate-
quese, ele fundava sua representação nesse específico combate. E esse “teatro
poliglota” reservava à língua tupi a voz do demônio que se confunde com aquela
de um atento etnógrafo: assim como verificamos, por exemplo, no Auto de
São Lourenço, segundo as palavras e a língua que são atribuídas ao chefe dos
demônios, Guaixará. Eventualmente, à caracterização de uma descrição ritua-
lística etnograficamente densa, a língua tupi poderá, já nos autos anchietanos,
configurar-se como língua, ao mesmo tempo, doutrinada (gramaticalmente) e
doutrinadora (nos costumes).
Deste ponto de vista, a própria estrutura do auto de Anchieta manifesta
uma característica bastante significativa. Influenciada, de forma marcante, pelo

65
Manuel da NÓBREGA. “Do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro,
Coimbra-Salvador, 10 de agosto de 1549”. In: Serafim LEITE, Monumenta Brasiliae..., op.cit.,
vol. I, p. 136. No que diz respeito a essa conotação da língua e em relação a seu doutrinamento,
veja-se, também, a comunicação de João Adolfo HANSEN, apresentada em ocasião dos
Seminários sobre “Instrumentos da Comunicação Colonial”, op.cit.
66
AGNOLIN, Adone. “Mediações Simbólicas e Cultura Indígena: leitura jesuítica das prá-
ticas indígenas”. In: O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológi-
co. Alteridade e Identidade no caso Tupinambá. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 105-31.
67
“Do Ir. José de Anchieta aos Irmãos enfermos de Coimbra (São Vicente, 20 de março de
1555)”. Apud: LEITE, Serafim. SJ. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo:
Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1956, vol. II, doc. n. 23, p. 120.

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“auto” português de Gil Vicente e de sua escola, manifesta a característica mar-


cante da ação missionária jesuíta que apontamos: isto é, aquela de apropriar-
se dos repertórios culturais indígenas, mesmo (ou, sobretudo) quando fosse
para transformá-los. Em correlação à herança cultural especificamente portu-
guesa (ocidental), na América portuguesa o auto se constitui na base do ritual
indígena de recepção de uma personagem ilustre, o “ere-iur-pe”: saudação tupi
de recebimento que é significada literalmente pelas palavras (rituais) tupi dessa
saudação, isto é, ‘tu vieste?’68. Sem querer e nem poder entrar aqui no mérito
da estrutura dos autos anchietanos, parece-nos útil, todavia, para nossa inves-
tigação, observar como a introdução dos assim chamados “demônios” na parte
central dessas representações se oferece sempre como espaço, textual e teatral,
privilegiado para a encenação do diálogo/disputa entre bem e mal, expressos
na língua indígena enquanto condenação de seus “maus hábitos”. A língua tupi
torna-se, finalmente, nos autos anchietanos, o espaço literário reservado aos
institutos culturais que ela própria teria contribuído a instituir. E se nesse espaço
literário constitui-se enquanto condenação, ela já se manifesta por uma função
profundamente catequética.
Embriaguez pelo cauim, tintura e dança, inspiração do fumo, guerra e antro-
pofagia, adultério (a poligamia). Antes de uma “demonização dos ritos tupis”69,
em nosso trabalho citado destacávamos como essas ações tornaram-se “maus
hábitos” em decorrência de uma descontextualização cultural destas ações que
os missionários tiraram (cortaram) de seu contexto ritual: o culto dos mortos,
que dava sentido a essas ações na cultura indígena, nunca aparece a elas asso-
ciado. Além disso, observávamos que a demonização de determinados costumes
indígenas se produziu, justamente, pelo desconhecimento (ou melhor, pelo não
reconhecimento) de uma prática religiosa (cultual), denotada e conotada se-
gundo os parâmetros de um conceito específico de religião que representa uma
invenção cultural cristã. Isso tornava evidente, para nós, o reconhecimento de
um conceito de religião que, não podendo enquanto tal ser isolado de seu con-
texto cultural, era profundamente diferenciado entre o contexto indígena e

68
Cf.: Capítulo V da Introdução a: Pe. José de Anchieta S.J. Teatro de Anchieta. In: Obras
Completas. Trad., introd. e notas do CARDOSO Pe. Armando. São Paulo: Loyola, 1977.
vol. III, p. 51-57.
69
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 2ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 68.

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aquele missionário. Todavia, como pudemos verificar acima, tanto o instrumento


conceitual religião, quanto o processo de personificação dos seres extra-huma-
nos produziram-se, ao longo de sua história (ocidental), enquanto resultado
de uma comunicação inter-cultural: missionários, antes, e etnólogos, depois,
projetaram as categorias religiosas ocidentais nas outras culturas e, conseqüen-
temente, re-fundaram as hierarquias de sentido. Para os jesuítas, as hierarquias
de sentido da cultura indígena encontraram na personificação e na ação demo-
níaca seu instrumento interpretativo e de organização privilegiado. A nova
organização e as novas hierarquias da cultura indígena trilhavam, na interpre-
tação missionária, a pré-existente subordinação aos “espíritos” que, de fato,
caracterizava essas culturas etnológicas: mas isso foi feito para reconstruí-las
dentro da nova situação cultural (doutrinária) católica. É dessa forma que, como
no Auto de São Lourenço, também na parte central dos outros autos anchietanos,
a comida, a bebida, as práticas sexuais70, o fumo71, aparecem como caracte-
rísticas representações dos maus hábitos dos indígenas. E, vale ressaltar, nesse
gênero literário, esses hábitos falam (são expressos) na língua tupi.
Era justamente pela “força do hábito (mau)”, além que pela inconstância
do indígena americano, que a conversão do “triste e vil gentio” pelo conven-
cimento (pela catequese) configurava-se como de difícil alcance. E era para
corrigir a força desse hábito que emergia, com o Pe. Manuel da Nóbrega, a
estratégia da sujeição enquanto caminho apropriado e necessário para uma, de
qualquer forma, possível cristianização:

“Entendo por experiência o pouco que se podia fazer nesta terra na


conversão do gentio por falta de não serem sujeitos, e ela ser uma
maneira de gente de condição mais de feras bravas que de gente racional
e ser gente servil que se quer por medo e sujeição”.72

Uma “sujeição se impõe a quem sujeito não é”, segundo o trocadilho su-
gerido pelo próprio Nóbrega, uma repressão implacável aos costumes (intole-

70
Sempre estritamente ligadas ao “desregramento” alimentar.
71
Interessante observar que o verbo fumar em tupi (petymb-u) significa literalmente “ingerir,
comer fumo”: algo que insere, estruturalmente, a ação na perspectiva de uma prática alimentar.
72
Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. LEITE, Serafim (Org.). São Paulo: Missão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. v. I, p. 412; v. III, p. 71-72.

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ráveis) dos indígenas, uma “guerra aos costumes” para eliminar o costume da
guerra e dos rituais que se desenvolviam a seu redor. “Reduzir” a alteridade do
outro se configurava, portanto, além que como uma redução de sua alteridade
lida sub specie religionis – que privilegia, nesse específico “grau zero da ido-
latria” brasileira a ação demoníaca –, como uma “redução política” (um poli-
ciamento como redução) que se realizava com a concentração dos convertidos
(reduzidos) em aldeamentos organizados. Uma nova organização social que
incluía gestos, temporalidades, práticas e, não por último, a língua segundo a
qual deviam ser doutrinados.
Enquanto projeção significativa de uma cultura contra-reformista, a “bestia-
lidade” indígena configurava-se para os jesuítas, não mais como vazio cultural
a ser, eventualmente, preenchido por sua liturgia coral e pinturesca, mas, ao
contrário, como a presença forte e marcante do Demônio que teria imposto
“rituais bárbaros” ao “triste e pobre gentio”. Para corrigir hábitos produzidos
por essa ação, não bastava ensinar a doutrina: a “conversão do gentio” (Anchieta)
só podia se dar através de uma sua, anterior, “sujeição” (Nóbrega). Soltos no
espaço de uma animalidade onde não agiriam como sujeitos (políticos), os ín-
dios americanos tornavam-se “triste e vil gentio” enquanto subjugados por um
Demônio que lhes ensinara os abomináveis costumes. E se a língua se tornava
o instrumento por excelência da construção do espaço político73, tratava-se,
antes, de reduzir a língua para, sucessivamente, doutriná-la. Nessa perspectiva,
parece-nos bastante significativo o fato de que, na própria documentação de
nossa investigação, alguns catecismos em língua indígena “deslizem” para o
significativo título (programático) de Catecismos da língua indígena: é, por
exemplo, o caso do catecismo de Montoya (Catecismo de la Lengua Guarani)
e daquele de Bernardo de Nantes (Katecismo Indico da Lingua Kariris).
Reduzir a língua (indígena) significava, de alguma forma, torná-la apta para
receber – e, portanto, re-transcrever nela – a catequese (ocidental).
Todavia, reduzir a língua obrigava, de alguma forma, a adotá-la para poder
transformá-la. A “indigenização do Catolicismo”, que segundo Lacouture efeti-
vou-se pela habilidade do jesuíta em usar a seu favor a autoridade dos caciques74,

73
É extremamente interessante, a este respeito, levar em consideração a importância dessas
teorizações presentes nas obras de Aristóteles e Cícero, relidas com especial atenção pelo
Humanismo renascentista.
74
LACOUTURE, Jean. Jésuites: les conquérants. Paris: Seuil, 1991.

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realizou-se, antes, justamente no plano lingüístico. Nesse plano, os missionários


buscavam a possibilidade de entrever equivalências e, portanto, possibilidades
de traduções entre as duas realidades culturais. A apropriação de repertórios
culturais indígenas tornava-se, enfim, de grande importância para a eficácia da
evangelização. É dessa forma que, por exemplo, impunha-se a tradução do nome
de Deus como Tupã ou a do Demônio com vários nomes de “espíritos da floresta”
e, no teatro de Anchieta, até mesmo com nomes de personagens históricos que
teriam combatido contra os portugueses.
Tudo isso comportava a necessária conseqüência de transformar/traduzir75
o conjunto das crenças indígenas para impor uma:

“aculturação católico-tupi [que] foi pontuada de soluções estranhas


quando não violentas. O círculo sagrado dos indígenas perde a unidade
fortemente articulada que mantinha no estado tribal e reparte-se, sob a
ação da catequese, em zonas opostas e inconciliáveis. De um lado, o
Mal, o reino de Anhanga, que assume o estatuto de um ameaçador Anti-
Deus, tal qual o Demônio hipertrofiado das fantasias medievais. De
outro lado, o reino do Bem, onde Tupã se investe de virtudes criadoras
e salvíficas, em aberta contradição com o mito original que lhe atribuía
precisamente os poderes aniquiladores do raio”. E com esse processo
cria-se, necessariamente: “uma terceira esfera simbólica, uma espécie
de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível”.76

E as experiências das reduções foram relativamente bem sucedidas, pois


tiveram como resultados tanto as relações sociais concretas representadas pelos
aldeamentos, quanto a constituição da cultura paralela e, portanto, de um novo
imaginário: essas duas dimensões da realidade encontravam-se, de fato,
estritamente interligadas. É a esse respeito, ao analisar a santidade na situação
colonial, que Vainfas fala em hibridismo cultural, destacando que “foi, portanto,
no plano informal e pragmático dos gestos e nos interstícios e mediações de

75
“Aculturar também é sinônimo de traduzir”, como releva BOSI, Alfredo. Dialética da
Colonização. Op.Cit., p. 65. Nós diríamos, todavia, que aculturar é, sobretudo, traduzir,
uma tradução que se impõe à alteridade traduzida e que lhe impõe de interagir no espaço
dessa tradução.
76
Idem, ibidem, pp. 65-66.

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cada universo de crenças que se foi operando a possível fusão católico-


tupinambá”77 e que “fora mesmo nos aldeamentos da Companhia que se havia
forjado o amálgama entre o catolicismo e a mitologia tupinambá”78, desse
modo, índios e jesuítas teciam juntos a teia da santidade.
E, do nosso ponto de vista, esta “santidade” encontrava seu instrumento privi-
legiado de construção em uma “demonologia” que, contrastivamente, oferecia
sua preciosa colaboração na tentativa de defini-la. Se, de fato, o mundo (ociden-
tal) do século XVI sofre uma ausência e reclama a necessidade de refletir a pre-
sença de um “Deus [que] não se oferece por inteiro ao olhar, [de fato] Ele [esse
Deus] deixa suas marcas no mundo. A tarefa do cristão e particularmente do
sacerdote cristão é tentar ler essas marcas que inscrevem nos objetos sua distância
e sua diferença do Paradigma. A tarefa do sacerdote cristão missionário é maior.
Ele não é apenas um leitor das marcas; deve lê-las e modificá-las. Se a mudança
não for possível deve abandoná-las à sua sorte ou – melhor – eliminá-las”79. E
entre a tentativa (imposição) cristã de ler “as marcas da distância” e a tarefa do
sacerdote missionário de modificá-las (ou eliminá-las), nós não vemos nenhuma
diferença significativa. Com efeito, a leitura destas marcas por parte dos jesuítas
se traduzia na produção de uma verdadeira e copiosa literatura. Este fato provocava
uma profunda reconstituição de práticas e rituais (em medida muito menor, de
mitos) que se encontravam recriados e relidos dentro de um contexto lingüístico
e cultural completamente novo. Além isso, muitas vezes fragmentos dessas práti-
cas, mitos e rituais tornavam-se simplesmente signos esvaziados de seu próprio
universo simbólico e recuperados para articular o novo universo simbólico da
tradição ocidental.
Dessa maneira, além da tradução, em todas as suas formas, a escrita (e a
leitura) vem a representar a outra grande marca deste processo de aculturação.
De fato “uma cultura não-letrada podia, pois, manter uma identidade básica
simplesmente conservando a estabilidade de seu vocabulário e de sua sintaxe
[...]. Usando um semelhante vocabulário, a pessoa, desde a infância, adquire
informações sobre com quem se casar e com quem não se casar, com quem se

77
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Op.Cit., p. 111.
78
Idem, ibidem, p. 211.
79
BAËTA NEVES, Luiz Felipe. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 35-36.

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unir e com quem não, quem amar e quem odiar, que comer, que usar. Suas ex-
pectativas culturais lhe são dadas. Ao usar o termo ‘informação armazenada’80
incluímos tanto descrição como prescrição. As duas modalidades [de fato] se
sobrepõem”. Ora, a escrita altera profundamente a codificação inconsciente da-
queles que se identificam com o grupo lingüístico, na medida em que “procura
elaborar um enunciado especial do que eles seriam, de modo a identificá-los”81.
Se o processo de aculturação, na preservação da similitude, não faz tabula
rasa nem ignora o conjunto de crenças da cultura indígena, a releitura das prá-
ticas através da escrita, subtraindo-as à relação direta ou indireta com o rito,
torna-se ela mesma rito “no momento em que troca o desvendamento dos sacra
e do segredo com o desmascaramento das lógicas coercitivas e impessoais que
dominam a vida social e subtraem a identidade ao homem; ou, de outra forma,
permanece apenas narração consolatória que contudo não funda de maneira
alguma a realidade, enquanto, ao ato fundante, substitui uma promessa de salva-
ção”82. Desvendamento e, ao mesmo tempo, não-reconhecimento dos sacra en-
quanto tais, os rituais indígenas encontram-se esvaziados de suas funções fun-
dantes (identificadoras) através do sistema das analogias e do simbolismo.
Os rituais bárbaros, que teria tornado o gentio tão triste e pobre, eram mani-
festação da linguagem diabólica. E se a língua indígena constituía-se como o
produto dessa sujeição, antes de ensinar a doutrina, devia-se “reduzir” a língua,
para cortar os “excessos”, antes de doutriná-la para preencher suas “ausências”.
A primeira operação se identifica com uma “gramatização” (escrita) da língua
indígena: trata-se da construção da “língua geral”83, não só para o Tupi do Brasil,
mas também para o Guarani do Paraguai de Montoya, ou para o Quéchua e
Aymara do Perú de José de Acosta.
Mas, ao mesmo tempo em que a língua era reduzida, empreendia-se o es-
forço paralelo de adotá-la para podê-la transformar. E no esforço contínuo de

80
Que diz respeito à estrutura desse processo implicitamente identitário.
81
HAVELOCK, Eric A. The Literate Revolution in Greece and its cultural consequences.
Princeton: Princeton University Press, 1982. [Trad. port. de O. J. Serra. São Paulo: Unesp/
Paz e Terra, 1994. p. 109.].
82
SCARPI, Paolo. La Fuga e il Ritorno: storia e mitologia del viaggio. Veneza: Marsilio,
1992. p. 183.
83
Um esboço dessa análise encontra-se em nosso artigo citado, na parte que se refere a “Con-
ceitos, palavras e gramáticas”, pp. 58-65.

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buscar equivalências para achar possibilidades de traduções entre as duas reali-


dades culturais, muitas vezes impunha-se a necessidade de criar, ex novo, con-
ceitos – enquanto instrumento de tradução – fundamentais para a mensagem
missionária (ocidental) e que não existiam nas culturas indígenas. Nossa investi-
gação procurou detectar alguns dos compromissos lingüísticos (culturais) que
encontramos materializados em nossa documentação catequética em língua tupi.
Grosso modo, parece que tais compromissos resumem duas estruturas funda-
mentais em seu modus operandi: uma transformação do significado (“ociden-
talizado”) em relação ao signo (indígena) e uma inscrição ex novo de um signo
e um significado ocidental na cultura indígena. Mesmo que de forma diferente,
nos dois casos tornava-se essencial, a fim de realizar essas operações, conseguir
dominar (lingüística e culturalmente) os repertórios lingüísticos e culturais
indígenas e se apropriar deles. Isso se tornava, de qualquer forma, fundamental
para a eficácia da evangelização.
Ainda com relação à subordinação da cultura indígena, será interessante
apontar para alguns dos problemas que se desprendem dessa específica perspec-
tiva. A suspeita inicial é de que, para realizar esses fundamentais compromissos
(lingüísticos), além e antes da “mitologia paralela”84, da qual fala Alfredo Bosi,
deva ter-se constituído uma fundamental “ritualidade paralela e transversal”
às duas culturas. A “alegoria”, contraponto e base da catequese, segundo o autor
da Dialética da Colonização, constituiu e produziu a transformação no plano
ritual: só esse pareceu oferecer, de fato, as bases cultu(r)ais em condição de
produzir a transformação do novo contexto que permitisse traduzir a especi-
ficidade da nova invenção/criação lingüística, mitológica e cultural85.
Desse modo verificou-se, antes de uma, de qualquer forma, frágil “mito-
logia paralela”, uma evidente e consistente “ritualidade paralela”, a respeito
da qual se desenvolveu uma peculiar alegoria que produziu a transformação
no plano ritual. É nesse quadro ritual (indígena) que se organizou a absorção
de elementos cristãos: por outro lado esses últimos não deixaram de plasmar-
se, de alguma maneira, em relação às estruturas rituais dentro das quais inse-

84
Também porque, mais do que uma mitologia, trata-se propriamente de uma (com)figuração
do(s) protagonista(s) das ações “excessivas” (abomináveis, más) a serem reduzidas, e das
ações catequísticamente “doutrináveis”.
85
Nova no sentido de inventio latina: produto de uma nova disposição das partes do discurso
(e/ou da sua sintaxe).

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riam-se para adquirir algum sentido. Nesse deslocamento que apontamos, de


uma chave de leitura mitológica para uma ritual, parece confirmar-se uma espe-
cífica relação estrutural evidenciada pela Escola Italiana de História das Reli-
giões. De fato, partindo da observação de De Martino86, segundo a qual, na
cosmo-visão indígena, o ritual se configura enquanto instrumento para intervir
na realidade e assimilar a mudança, o nosso exemplo e sua ênfase ritual, con-
trariamente àquela mitológica, parece confirmar, sobretudo, o desenrolar-se
da análise proposta por Sabbatucci87. Segundo este autor, de fato, enquanto o
mito define uma realidade imutável e fundada uma vez por todas, como essencial
à condição da humanidade e, portanto, não passível de transformação, o rito
tem a função de abrir a possibilidade de intervir na realidade para modificá-la
em relação às transformações que historicamente se impõem.
E ainda, nessa perspectiva, é significativo o fato de que, em todos os docu-
mentos de nossa indagação, redigidos por missionários, encontra-se de forma bas-
tante evidente uma “identificação” nítida entre o Tupã indígena e a primeira pes-
soa da Trindade88. Essa identificação, aliás, parece constituir-se, muito mais como
instrumento lingüístico do que como uma “figura” indígena tupi que realmente
pudesse ser pensada, pelos jesuítas, em seu paralelismo com a figura do Deus cristão.
Em suma, a “figura” Tupã não parece ter tido a oportunidade de configurar-se
enquanto instrumento apto a veicular importantes significados, próprios do Deus
cristão: a não ser aquele de uma certa característica irascível, que tem, todavia,
uma sua importância estratégica na catequização jesuítica. Essa figura pareceu
constituir-se, enfim, enquanto signo apto a tornar-se um bom instrumento para
veicular uma significação doutrinária e ritualisticamente preenchível.
Encontramos essa mesma nítida “identificação” em relação ao Demônio
(católico) com o Anhanga (tupi). E um outro importante instrumento lingüístico
encarregou-se, em sua função doutrinária, de veicular (inscrever) a significação
peculiar do Demônio no signo de Anhanga: tratou-se do termo que, para ser
traduzido para a língua tupi (para sua cultura), apareceu na obra anchietana

86
DE MARTINO, Ernesto. Il Mondo Magico: prolegomeni a una storia del magismo. Tu-
rim: Einaudi, 1948 e La Fine del Mondo: contributo all’analisi delle apocalissi culturali.
Turim: Einaudi, 1977.
87
SABBATUCCI, Dario. Sommario di Storia delle Religioni. Roma: Il Bagatto, 1991, p. 183 e segg.
88
Excluindo o exemplo do único autor não jesuíta, o franciscano frei Bernardo de Nantes que utiliza,
em seu lugar, Inhinho, em relação à cultura Kiriri, pela qual o jesuíta Vincencio Mamiani continua
usando a “identificação” de Tupã.

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como o mais controvertido: o termo “pecado”, antes de impor-se definitiva-


mente com o signo lingüístico tupi angaipaba. Evidentemente, podemos pensar
que a inicial circulação do signo lingüístico tupi (e guarani) possa ter criado
evidentes problemas para veicular o significado do conceito (ocidental) de
pecado. E isso porque devia haver uma clara diferença entre os conceitos de
“mal”, “maldoso” ou das “coisas da alma perversa”89 nas duas diferentes pers-
pectivas culturais. A sucessiva adoção do signo lingüístico tupi indica, segundo
nós, o encerramento de uma doutrinação da língua que, com os simultâneos
recursos catequéticos, sermonários, mas também poéticos e teatrais, acabou
re-plasmando o (velho) signo indígena. Dessa maneira, segundo nosso ponto
de vista, a realização da obra, a produção desse peculiar resultado histórico-
colonial, não se configura tanto num plano mitológico, quanto num plano ritua-
lístico. Assim, o signo Anhanga deverá, de algum modo, sua imposição – sua
veiculação mais prenhe de significados em relação ao seu antagonista (missio-
nário) Tupã – enquanto sujeito manipulador, ritualisticamente determinável,
desse ‘pecado’ do qual o indígena é – devia ser representado enquanto – vítima.

A Catequização em Língua Indígena


É nessa “ritualidade paralela e transversal” que achamos se deva procurar
a construção do encontro cultural entre jesuítas (missionários) e selvagens. O
resultado mais significativo desse encontro parece sintetizado de forma emble-
mática pela postura do jesuíta Acosta segundo o qual, a fim de elaborar uma
estratégia eficaz de catequese fazia-se necessário, antes, conhecer os costumes
dos selvagens: e, de fato, “foi só no cotidiano das aldeias, no confronto perma-
nente com os costumes gentílicos, que as descrições do universo simbólico indí-
gena se tornaram mais ‘densas’, no sentido de desvendar uma teia de signifi-
cações em processo permanente de ajuste à realidade”90.
A perspectiva da catequese, à base de nossa documentação, nos desperta a
suspeita de que esse encontro de ritualidades realizou-se, sobretudo, através

89
Expressões que nos pareceram já o resultado mais evidente das re-transcrições que afeta-
ram profundamente a possibilidade de pensar de forma menos metafísica (ocidental) este
conceito de “mal” indígena, para o qual apontamos uma peculiar indicação de tradução de
angá (t)up-aba correspondente, de alguma forma, a um “estar deitado da alma”, esta última
que traduziria de forma problemática o termo angá, que na língua tupi indicaria, propriamen-
te, uma “sombra”, que não cabe perfeitamente na materialidade do termo ‘alma’.
90
POMPA, Cristina. Religião como Tradução. Op.cit., p. 341.

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dos sacramentos: neles deveremos procurar, na medida do possível, as moda-


lidades (lingüísticas e culturais) que constituíram o momento de encontro e a
recíproca reformulação cultural. A “mitologia paralela” torna-se, de conse-
qüência, apenas o resultado formalizado desse processo.
E a partir desse ponto de vista é importante destacar – mesmo que brevemente,
na economia desse artigo – a importância e a centralidade que os sacramentos
vieram adquirindo, no interior das reuniões conciliares tridentinas, em sua profunda
função de demarcar a ortodoxia doutrinária que, catolicamente e mais do que nunca
antes, começava a ser medida pelos atos de fé: testemunhas da peculiaridade dessa
fé. Com as novas definições doutrinárias dos sacramentos podemos então delinear
seu impacto (mas também as formas de convivências), já anteriormente apontado,
com os rituais sociais tradicionais. A peculiaridade americana, e especificamente
aquela brasileira, nos permitirá entrever, enfim, analogias e diferenças do mesmo
processo. Além do mais, na peculiaridade lingüística da catequese segundo o ver-
náculo indígena (o texto), não podemos perder de vista o “fazer ritual” (o contexto)
que constrói e configura o espaço do encontro.
O exemplo mais geral e representativo, a respeito desse último fundamental
problema, nos parece configurar-se, justamente, na estrutura do encontro entre
os compromissos lingüísticos (culturais), que se realizam através de duas es-
tratégias: a transformação do significado (“ocidentalizado”) em relação ao signo
(indígena) e a inscrição ex novo de um signo e um significado ocidental na
(estranha) cultura indígena. Nos dois casos, essa operação tornava-se possível
na medida em que se constituía como paralela à primeira distinção importante
que vimos impor-se no (e impor o) mistério sacramental: como essa última, a
primeira também decorria de (fundamentava-se em) uma estrita correlação entre
mais termos como, por exemplo, entre marca (signo) e graça (significado),
entre visível e invisível, entre material e espiritual, entre ver (o signo) e receber
(o fruto) etc. Nossa investigação fez emergir, a esse respeito, alguns exemplos
significativos já presentes na catequese jesuítica européia dessa época.91

91
Por exemplo, no extenso e importante catecismo do cardeal jesuíta Roberto BELLARMINO.
Dottrina Christiana dell’Ill.mo e R.mo Card. Rob. Bellarmino figurata d’Imagini. [In Augusta
con licenza de’ Superiori appresso Christophoro Mango, 1614]. Edição de 1718:
Dichiarazione della Dottrina Cristiana Compofta per ordine di N.S. Papa Clem. VIII. di fel.
mem. Dal Rer. P. ROBERTO BELLARMINO Sacerd. della Compagnia di Giesù, poi
Cardinale di S. Chiefa del Tit. di Santa Maria in Via. Do ponto de vista doutrinal, a distância
cultural indígena podia ser lida como uma ausência de instrumentos lingüísticos-conceituais

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Finalmente, em síntese, no instituir-se de uma comparação (de humani-


dades) organizada por um paradigma (teológico) entrevemos, de alguma forma,
o paralelo processo do determinar-se de uma unicidade (modelar) da gramática
lingüística (latina e ocidental) que devia permitir, de algum modo, a apropria-
ção (tradução, para o Ocidente, e reconstrução) das línguas indígenas. As duas
estruturas paralelas organizam e fundam uma leitura baseada num processo de
tradução. Essa estrita associação encontra-se evidenciada, nessa mesma pers-
pectiva, na obra de Vicente Rafael que destaca claramente como a:

“Christian conversion can be said to repeat the process of translation,


at least where the missionaries were concerned. Both processes involved
the sublation of all signs and speech to the sacred Sign of God, Christ.
As the Sign of the Father, Christ stands at the apex of all creation insofar
as He is the perfect fusion of the Father’s will and expression. In Christ
one has the image of perfect speech, in that in Him everything that has
been and will be said has already been spoken. To be converted is to

que eram essenciais para empreender qualquer possível forma de catequese. Apreender os
nomes para aprontar as primeiras estruturas significativas desse Mistério significava, antes
de mais nada, apreender o “oculto” no “manifesto” e, ao mesmo tempo, uma “unidade” que
esse oculto projeta sobre a “diversidade” das coisas manifestas. (BELLARMINO: [1614]
1718: 5-6, fólios A3-A3v). Verdade e divindade impõem-se conjuntamente como unicidade,
medida de uma diversidade que não se mede por diferenças de estrutura, mas por afastamen-
to-aproximação a essa medida referencial. E essa medida encontra sua integrativa parte
referencial numa, diríamos hoje, “naturalização” desses conceitos: a unicidade da natureza
ecoa, no plano do manifesto, a unicidade da “essência infinitamente potente”, que se oculta
nele. E esse oculto que “des-cobre-se” nas coisas manifestas – porque antes estaria encoberto
nelas – parece caracterizar-se como o que Baêta Neves define o “paradigma ausente”, mas
que do ponto de vista missionário constitui-se, frente à alteridade, enquanto “paradigma
estruturante”. Na perspectiva missionária, o paradigma torna-se estruturante – com relação à
leitura da alteridade cultural – na medida em que: “se Deus não se oferece por inteiro ao olhar,
Ele deixa suas marcas no mundo. A tarefa do cristão e particularmente do sacerdote cristão é
de tentar ler essas marcas que inscrevem nos objetos sua distância e sua diferença do Paradigma.
A tarefa do sacerdote cristão missionário é maior. Ele não é apenas um leitor das marcas; deve
lê-las e modificá-las” (Baêta Neves, 1978: 35-36). Todavia, antes da modificação dessa
alteridade em relação ao paradigma, o que nos interessa é o fato de que essa leitura da dife-
rença constitui-se como a possibilidade de inserir a alteridade cultural por dentro de uma
estrutura paradigmática. Mesmo estabelecendo as diferenças enquanto gradações – qualitati-
vamente denotadas – de um afastamento da sua referencialidade, esse paradigma começa por
organizar uma perspectiva antropológica, mesmo que, ainda, subordinada àquela teológica.
Frente à relação paradigmática do Sagrado, o conceito de Humanidade fundamenta a possi-
bilidade de criar e estabelecer, finalmente, uma comparação das diferenças, mesmo que ainda
submetidas a um julgamento qualitativo.

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recongnize the Sign as the sole and authentic representation of the


Father. It is to acknowledge one’s words and intentions as therefore
derivative of a prior Word”.92

Os Sacramentos entre os Indígenas


Ora, como temos apontado acima, tanto em relação à nova situação pós-
conciliar da Europa – que se estruturava, de fato, ao redor de um prioritário e
arriscado (polêmico) problema de tradução bíblica e doutrinária –, quanto em
relação à catequese indígena em terra americana, esse problema de tradução
tornava-se particularmente explícito e marcante, em termos de controle e refor-
mulação das estruturas sociais tradicionais, justamente no que diz respeito à
administração dos sacramentos. O sacramento – isto é, a ação e a relação com
os (mas, também, a manipulação dos) sacra – representava o momento (ritual-
mente determinado) da aproximação mais significativa com o Mistério neles
contido. O Mistério que é dado colher, até onde possível, justamente nessa abor-
dagem ritual que, tomisticamente, em seus efeitos faria resplandecer seu signi-
ficado93. O Mistério constituiu-se nessa dimensão, ao mesmo tempo, enquanto
“mistério da palavra” e mistério ritualmente (até onde possível) desvendado.
Mas, na época do debruçar-se de perigosas heterodoxias e de incursões
místicas nessa dimensão do sagrado – inclusive aquela do próprio Inácio, fun-
dador da Companhia de Jesus –, a relação, já própria da história do Cristia-
nismo, entre mistério e ministério foi reforçada. E o exemplo mais significativo
desse esforço colhe-se, justamente, na codificação doutrinal dos sete rituais
sacramentais regulamentados pelo Concílio de Trento. Uma normatização sa-
cramental impunha-se paralelamente à insistência sobre a importância da traditio
estabelecida pelos Pais da Igreja. Processo normativo dos rituais sacramentais
e mediação da Patrística estabeleceram-se como os nós fundamentais da me-
diação eclesiástica católica na aproximação do Mistério dos sacra.
Nessa aproximação, o ministério da palavra e o ministério sacramental
(ritual) se configuram como as principais traduções dessa sacralidade, necessa-

92
RAFAEL, Vicente L. Contracting Colonialism. Op.cit., p. 91-92.
93
AMADIO, A. M. “Sacraments of the Church”. In: New Catholic Encyclopedia. New York:
McGraw-Hill, 1967, vol. 4, p. 808. Citado por Rafael, Contracting Colonialism..., Op.cit.,
p. 92.

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riamente administrada. Do ponto de vista catequético, essa administração carac-


terizava-se, enquanto tal, tanto na tradução (lingüística e sacramental) dos
catecismos, quanto na normatização (dos gestos, dos momentos e dos signifi-
cados) dos sacramentos. Todavia, a extensão missionária da universalidade de
um crer e de suas mediações sacramentais, junto aos instrumentos lingüísticos
que afinava para sua doutrinação, estava longe de (poder) conseguir essa rígida
normatização e ortodoxia. Pelo contrário, e necessariamente, o imperativo ex-
pansionista missionário acabava abrindo, como no caso americano, um inevi-
tável espaço de negociação, entre perspectivas culturais diferenciadas, que resul-
tava alargar, muitas vezes para além dos limites suspeitados pelos próprios
missionários, a estrita rede da normatização doutrinal e a presumida ortodoxia
da tradução lingüística e sacramental.
Uma primeira verificação desse fato, como em outras características situa-
ções lingüísticas no caso americano, pode ser encontrada na significativa intra-
duzibilidade do próprio termo “sacramento”. Este não parece ter encontrado
uma tradução utilizável (pelo menos sem perigo de confusão com as práticas
rituais indígenas) em nenhum dos catecismos e em nenhuma língua da nossa
documentação: tanto em tupi, como em guarani e em kariri, o termo foi intro-
duzido como tal (com o significante das línguas ocidentais) dentro do texto
em vernáculo. Podemos imaginar, portanto, quanto essa introdução termino-
lógica estranha pudesse se apresentar, em princípio, insignificante para os indí-
genas: e se o processo de significação se construía na doutrina e na prática
sacramental, há de se entrever a concreta possibilidade de uma sobreposição
de significados, nas duas perspectivas culturais que entraram em relação: nas
ritualidades que fundamentavam o encontro, assim como na doutrina não
dificilmente desdobrável em sua interpretação ritual.
Eis que, por exemplo, nas introduções catequéticas jesuítas em tupi, a
primeira característica através da qual foram definidos os sacramentos é a de
‘remédio’, ‘medicina’ (possanga94, mosanga95), com exclusão do Pe. Vincencio

94
Em: Pe. José de ANCHIETA. Doutrina Cristã - Tomo 1: Catecismo Brasílico. Com texto
tupi e português. Introdução tradução e notas do CARDOSO, Pe. Armando, S.J. Incluindo
o texto fac-similar (tupi) manuscrito classificado como APGSI N. 29 ms. 1730. São Paulo:
Loyola, 1992: fólio 27.
95
Em: Pe. José de ANCHIETA. Diálogo da Fé Diálogo da Fé. Texto tupi e português com
introdução histórico-literária e notas do CARDOSO, Pe. Armando, S.J., que inclui os textos
fac-similares manuscritos classificados como APGSI N. 29 ms. 1730 e ARSI Opp. NN. 22

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Mamiani que optou por defini-lo enquanto “sinal visível da ‘graça’ (em por-
tuguês no texto kariri) invisível (graça que ele distingue, sempre rigorosamente
em português, em ‘santificante’ e ‘auxiliante’)”.96 O termo vernáculo kiriri
para remédio parece também ter sido aquele escolhido pelo franciscano
Bernardo de Nantes97. Em relação a essa caracterização medicinal do sacramento,
nos catecismos tupi não aparece a definição terminológica do pecado: este se
entrevê na própria definição de um sacramento-remédio da alma (angá), em
Anchieta e Araújo (mas também no texto guarani de Montoya, junto ao conceito
de justificação), ou na peculiar resolução da definição de graça em Mamiani.
Bernardo de Nantes – significativo: um capuchinho e não um jesuíta – é o
único autor que insere (traduz) o termo pecado nessa parte de seu catecismo
com o signo lingüístico kariri.
Verificamos, ainda, as dificuldades lingüísticas presentes na ‘alma’ tupi
(angá): mas, tanto essas dificuldades, quanto aquelas que se referem ao termo
‘pecado’, parecem encontrar, juntas, uma sua forma de superação no ensino
doutrinal. Desse ponto de vista, o pecado acaba identificando-se como ‘doença’
– (correspondente tupi: mara’ar, adoecer), em todos os nossos catecismos tupi
(além que naquele guarani de Montoya e naquele kariri de Bernardo de Nantes)

e sua cópia APGSI n. 33 ms. 1731. São Paulo: Loyola, 1988: fólio 7. E, finalmente, em Pe.
Antonio de ARAÚJO, S.J. Catecismo na Lingoa Brasilica, no qval se contem a svmma da
Doctrina Christã. Com tudo o que pertence ao Myfterios de noffa fancta Fè & bõs cuftumes.
Composto a modo de Dialogos por Padres Doctos, & bons lingoas da Companhia de IESV.
Agora nouamente concertado, ordenado, & acrefcentado pello Padre Antonio d’Araujo
Theologo & lingoa da mefma Companhia. Com as licenças neceffarias. Em Lisboa por Pedro
Crasbeeck, ãno 1618. A cufta dos Padres do Brafil. Texto em reprodução fac-similar da 1ª
ed., com o título Catecismo na Língua Brasílica. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade
Católica, 1952: fólio 79.
96
MAMIANI, S.J. Catecismo Da Doutrina Christãa Na Lingua Brafilica Da Nação Kiriri.
Composto Pelo P. LUIS VINCENCIO MAMIANI, Da Companhia de JESUS, Miffionario
da Provincia do Brafil. Lisboa, Na Officina de MIGUEL DESLANDES, Impreffor de Sua
Mageftade. Com todas as licenças neceffarias. Anno de 1698. Citado na edição fac-similar,
Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. Fólio 110.
97
Bernardo de NANTES. Katecismo Indico Da Lingva Kariris, Acrescentado de Varias
Praticas Doutrinaes, & Moraes, Adaptadas ao Genio, & Capacidade dos Indios do Brafil,
Pelo Padre Fr. BERNARDO DE NANTES, Capuchinho, Pregador, & Miffionario Apoftolico;
Offerecido ao Muy Alto, e Muy Poderoso Rey de Portugal DOM JOAÕ V, S. N. Que Deos
Guarde. Lisboa, Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, Impreffor de Sua Mageftade.
M.DCCIX. Com todas as licenças neceffarias. Que citaremos na edição fac-similar publicada
por Julio Platzmann, Leipzig, B. G. Teubner, 1896, p. 70.

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– da ‘alma’, desse “duplo corporal” (?) tão difícil de traduzir lingüisticamente


sem correr o risco de recriar, em sua ressonância perante o conceito de pessoa
indígena, um inevitável hibridismo cultural.
Em relação à especificidade dos sacramentos, talvez possamos entrever,
de forma mais emblemática e significativa, um processo que se desprendeu,
em princípio, a partir de inevitáveis equívocos e mal-entendidos que foram
sendo ajustados, na medida em que foi se determinando um alargamento dos
instrumentos conceituais e lingüísticos (construídos ex novo ou transformados),
para dar conta da inédita situação de catequese. O momento ritual (sacramental)
da prática catequética representa, portanto, segundo tudo quanto entrevemos
e apontamos, o momento da verificação dos resultados dessa comunicação, ao
mesmo tempo em que se constitui enquanto um reajuste da própria prática sa-
cramental (de seu prestar-se a equívocos) e de sua tradução (ameaçadora) para
dentro do mundo cultural indígena. A verificação do momento ritual aponta,
de fato, para a fluidez, inevitável, das barreiras lingüísticas e culturais, em
princípio dadas por adquiridas. Segundo a nossa perspectiva de análise, nessa
peculiar dimensão do encontro cultural, antes de uma administração dos sacra-
mentos por parte dos missionários, verifica-se uma recíproca administração
nos rituais sacramentais dos diferentes paradigmas culturais (indígenas e missio-
nários). A administração dos sacramentos cristãos acabava por se estruturar
como o espaço privilegiado de um hibridismo cultural que se encontrava na
necessidade de reescrever essa relação (ritual) com o sagrado, segundo uma
nova estrutura, muitas vezes compartilhada – consciente ou inconscientemente
– por missionários e indígenas.

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