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Cláudia Leitão
Cultura e Municipalização

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c o l e ç ão c u lt u r a é o qu ê ?
vo l u m e i i i

Cultura e Municipalização
Cláudia Leitão

Secretar ia de Cultura do Estado da Bahia


Salvador, junho de 201 2
copyright© : 2009, by Sousa Leitão, Claúdia
Direitos desta edição cedidos à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

Permitida a reprodução total ou parcial, para fins não comerciais, desde que
citada a fonte.

jaques wagner  Governador do Estado da Bahia


márcio meirelles  Secretário de Cultura
ângela andrade  Superintendente de Cultura
carlos beyrodt paiva Superintendente de Promoção Cultural
gisele nussbaumer  Diretora da Fundação Cultural do Estado da Bahia
ubiratan castro  Diretor da Fundação Pedro Calmon
frederico mendonça  Diretor do Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia
pola ribeiro  Diretor do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia

revisão Wladimir Cazé


George Sami
A cultura na pauta
do desenvolvimento local
L 548 Leitão, Cláudia
márcio meirelles
Cultura e municipalização. / Cláudia Leitão. --

Salvador : Secretaria de Cultura, Fundação Pedro

Calmon, 2009.

72 p. – (Coleção Cultura é o quê?, III)

ISBN: 978-85-61458-14-0

1.Cultura 2.Cultura – Municipalização. I.Título. II.Série.

CDD 306 5
todo custo. Esse empobrecimento percebido nos cidadãos,
em sua maneira de estar e viver no mundo com outros, é
também, naturalmente diagnosticado no que o indivíduo
concebe e percebe, intelectualmente, desse mesmo
mundo que o acolhe, ou seja, há uma crise, igualmente
instituída na apreensão dos saberes. Na velocidade, perde-
se a visão do todo, busca-se algum fragmento, chega-se
Neste novo volume da série Cultura é o quê?, trazemos à síntese vazia. A redução da cultura geral a uma cultura
o texto da doutora em sociologia Claúdia Leitão, que técnica e científica, que descontextualiza qualquer objeto
faz um equilibrado contraponto entre algumas teorias de seus campos formadores, como aqueles históricos,
contemporâneas, que denotam uma perda de rumos sociais, políticos, por exemplo, acaba por propor uma
sociais, e sua experiência prática como Secretária de cultura padrão, uma “cultura empresarial global”, que sob
Cultura do Estado do Ceará (2003 a 2006), no intuito de o pretexto da união, da sinergia, da dissolução de fronteiras,
corrigir localmente o que o panorama de um mundo em na verdade esconde seu objetivo maior de standartização,
crise lhe apresentava até então. pela otimização econômica sob modelos hegemônicos de
produção que só demarcam eternas e novas exclusões.
Há uma aceleração atávica no ritmo atual da vida que nos
conduz inevitavelmente a um desinteresse pela própria A autora então volta-se para discutir o equivocado olhar do
existência. Tamanha quantidade de informações, de Estado, especificamente, como gestor de políticas públicas,
acontecimentos, de mercadorias e inovações destitui o que não consegue conectar, em suas ações para o futuro,
futuro de expectativas. No atropelo perdem-se os valores, a cultura com o desenvolvimento. Ao mesmo tempo
esvaziam-se as identidades. Na busca identitária, marcada sinaliza que, no final do século XX, cientistas, técnicos,
pela procura obsessiva da diferença entre seres, perde- políticos, empresários e burocratas, ao se depararem com
se o sentido do coletivo. Marca-se o espaço territorial do o fracasso de muitos projetos que desprezavam os vínculos
indivíduo, sobre uma condicional liberdade apregoada a culturais entre os homens e seus territórios de origem,

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começaram a integrar as dimensões humanas, ambientais Pensando-se então numa política pública de
e culturais aos debates sobre o tema do desenvolvimento. desenvolvimento, que parta da cultura como motor, a autora
“Desenvolvimento com envolvimento”, portanto, parece destaca a necessidade de que as chamadas ex-colônias
sugerir alguns “sintomas da construção de uma nova bacia devam ultrapassar obstáculos decorrentes dos processos
semântica para as representações sociais”; é um novo traumáticos colonizatórios, o que já exige dessas nações
período que se inicia, segundo Claudia Leitão. independentes, como o Brasil, tomadas de responsabilidades
para repudiar aquilo que continua naturalmente gerido por
Nesse sentido, alguns movimentos organizacionais “ex-colonizadores e ex-colonizados”. É hora de assumirmos
aparecem como, por exemplo, o da Conferência Geral o nosso desenvolvimento. As ações nesse sentido devem
da UNESCO, logo após o 11 de setembro de 2001, partir de um pacto com a sociedade civil, aquela que demanda
que promulgou a “Declaração Universal sobre a políticas públicas e, ao mesmo tempo, serem movidas por
Diversidade Cultural” em que identidade, diversidade, determinação, bom senso e equilíbrio no que compete ao que
criatividade, enfim, expressões típicas do discurso cabe ao estado realizar: sem clientelismo, fazendo política de
artístico passaram a fazer parte dos discursos políticos, estado e não de governo, enfatizando o conceito de cidadania
econômicos, jurídicos e sociais. que garante direitos e deveres face à preservação, autonomia e
contínua revelação de uma cultura local sempre em constante
A estruturação dos territórios, a partir de seu arcabouço diálogo com outras culturas.
cultural, segundo Claudia Leitão, começa então a ventilar
como assunto, chega às comunidades e passa a participar Na parte que finaliza seu texto, Claudia Leitão vai expor sua
dos processos de municipalização, visando mesmo experiência prática como Secretária, à frente da Cultura do
a uma reconstrução de novas bases ao “valorizar os Estado do Ceará. Essa prática, materializada em políticas
imaginários locais, a partir do fomento das expressões públicas culturais pode ser assim sintetizada: numa busca
culturais tradicionalmente descartadas e excluídas, de “valorização das culturas regionais” (nome dado ao
compreendendo-as como produtoras de sinergias e programa que ela empreende); em uma aproximação física
estimuladoras de solidariedades comunitárias.” com as localidades (implanta uma “secretaria volante”);

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Da experiência municipal poderíamos partir para o
na formação de fóruns representativos em todo o Estado, desenvolvimento macro, e pela cultura, de um país inteiro e
compondo colegiados; em investimentos na “cultura grande como o Brasil? A autora deixa a pergunta em seu texto,
do interior”, quer nas oportunidades oferecidas, quer fazendo-nos crer que é no “envolvimento com o Outro e na
no aprimoramento das atividades desenvolvidas pelos direção do Outro”, pelas chamadas solidariedades comunitárias,
artistas; nos investimentos em comunicação (difusão, que pode se dar o tão desejado progresso.
trocas e intercâmbios) entre os equipamentos culturais
de todo o estado; no mapeamento cultural do estado em
suas manifestações mais representativas e, finalmente,
na criação de um programa de fomento à cultura entre as
regiões mais pobres do estado.

Todas essas ações, acompanhadas por uma secretaria


itinerante que corria todo o estado, estimulando a
formação dos sistemas municipais de cultura, que
capacitava gestores locais, que cadastrava toda e qualquer
manifestação e espaço cultural, e que promovia e difundia
as manifestações locais, em diversas linguagens artísticas,
semeou e colheu memória e mais cultura para o Ceará. Em
2007, através de parceria entre o IBGE e o MINC, sai um
indicativo que tornou-se um coroamento para as ações que
Cláudia empreendera até 2006: o Ceará tinha indicativos
de que 76,6% de seus municípios já tinham uma política
cultural, contra 57,9% dos municípios brasileiros.

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I

a cultura no século xxi entre


ilusões e esperanças

Alice estava começando a ficar cansada... quando de


repente um Coelho Branco de olhos cor de rosa passou
correndo por ela. Não havia nada de tão extraordinário nisso;
nem Alice achou assim tão esquisito ouvir o Coelho dizer
consigo mesmo: ‘Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!’
(Lewis Carroll. Aventuras de Alice no País das Maravilhas).

Cultura e Municipalização Atravessamos velozmente o século XX, mas sempre com


a sensação de estarmos atrasados para o século XXI.
Segundo Elias Canetti, essa velocidade nos fez abandonar
a realidade. A aceleração dos tempos modernos, em
qualquer dos seus domínios (científico, tecnológico,
midiático), em qualquer de suas trocas (econômicas,
políticas, culturais, sociais), levou-nos a uma total perda de
referências, tornando-nos espectadores inertes de nossas
próprias existências. De repente, atingimos um ponto
em que parecemos sair da história, em que os excessos

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(de acontecimentos, de informações, de mercadorias, de os outros amanhã. Aí está uma primeira e importante
inovações), conduziram-nos à ausência de expectativas, pergunta: Quem somos nós? Quem são os outros? O
à morte anunciada do futuro. Corremos em busca de que excluímos de nós e o que nos falta? Por sermos o
grandes ideais, mas, nos últimos tempos, parecemos que somos , o que poderemos ser?
estar perdidos e frustrados. Perdidos pelos movimentos
desarmônicos do planeta. Frustrados com o caráter Nas sociedades contemporâneas, a busca excessiva
aleatório do mundo. pela diferença acabará provocando o esgotamento da
alteridade, a eliminação do Outro. O mais irônico é
Sabemos que os excessos levam à ultrapassagem de que o culto à diferença, ou mesmo o direito à diferença,
limites que, por sua vez, produzem o esvaziamento funcionará como uma forma de exorcismo do Outro,
de identidades, valores e significados. O resultado é uma dissimulação universalista que acabará legitimando
que, enquanto vivíamos os excessos, perdemos nossas sua superioridade, exatamente por pensar a diferença,
bases identitárias e, dessa forma, penetramos em um ou seja, por definir critérios para estabelecê-la. Em nome
mundo de referenciais flutuantes, onde as ideologias de uma compreensão altruísta, o discurso da diferença
tornaram-se incapazes de justificar nossas escolhas ou criou estereótipos, estabeleceu categorias e normatizou
de orientar nossos destinos. Quando tudo se politiza, comportamentos, com o intuito de absorver todas as
adverte-nos Jean Baudrillard, a política perde o sentido; formas violentas da alteridade. Para os índios, por exemplo,
quando tudo se estetiza, nada pode ser considerado ele definiu a demarcação das terras, para os negros, as
bonito ou feio; quando tudo se mercantiliza, a políticas de quotas raciais, para os imigrantes, as legislações
categoria econômica se esvazia de significados. disciplinadoras de suas condutas. Dessa forma, a lógica da
Esse esvaziamento das identidades é especialmente diferença foi historicamente construída pelos mesmos
constrangedor quando nos perguntamos sobre o centros que estabeleceram os critérios e significados
nosso lugar no mundo, quando nos indagamos sobre da cultura, da liberdade e do desenvolvimento. Mas,
nossos desejos, necessidades e direitos. Somos nós que desenvolvimento queremos? Em nome dos direitos
e somos os outros em nós, somos agora para sermos humanos ou dos ideais democráticos, o pensamento

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jurídico-político moderno iludiu-nos a todos, construindo
garantias de um destino digno para a humanidade, uma
espécie de “marco zero” que elegia a liberdade como valor
fundamental. Mas por qual liberdade lutamos?

Liberdades são tão ilusórias quanto são os ideais


democráticos nelas fundamentados. Ao mesmo tempo,
Como reaver o ilusões são estratégias de sobrevivência e produtoras
de simulacros. Assim, a ilusão democrática elimina
capital social de o que não pode ser mediado, articulado, significado,

comunidades
enquanto recicla pulsões e repulsões sociais, simulando
conciliações e consensos. Para tanto, pactua significados

excluídas, (...) para o desenvolvimento, atrelando-o à riqueza, ao poder, à


solidariedade universal, ao melhor do nosso humanismo.

despossuídas de A ilusão democrática é, ainda, produtora de consensos


suspeitos, que não se constrangem em refazer a história,
auto-estima e de em reciclar fatos, transfigurando-os em feitos. Assim, as

capacidade de
diferenças acabam por se tornar, ora indiferenças, ora
radicalidades. Torno-me indiferente ao Outro quando

mobilização? não permito, na existência do Outro, aquilo que é


inegociável ou inconciliável para mim. Por outro lado,
as diferenças também suscitam alteridades radicais,
ou seja, se o Outro não permite negociar sua diferença,
aproximando-se de mim, deve ser exterminado. Dessa
forma, o Outro e o Eu vivem uma espécie de síndrome

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identitária, numa sociedade em que a clonagem é menos abstraindo seus objetos de pesquisa dos contextos sociais,
uma conquista científica e tecnológica do que uma históricos, políticos, culturais e ecológicos nos quais
representação sugestiva da replicação dos corpos e da os mesmos foram gerados. A Economia, por exemplo,
domesticação dos espíritos. entre as Ciências Sociais, por ser matematicamente a
mais avançada, tornou-se, numa perspectiva humana, a
Edgard Morin também reflete sobre a desumanização mais atrasada das ciências. A Ciência Política e a Ciência
da era moderna, a partir dos destinos tomados pelo Jurídica, cujas bases e fundamentos se alimentaram, desde
conhecimento humano. O filósofo francês constata suas origens, do campo moral do “dever-ser”, também
que o século XX foi marcado por uma primeira grande perderam vitalidade e confiabilidade, pois seus projetos
distinção entre a cultura geral e a cultura técnica e de construção de uma sociedade com “s” maiúsculo,
científica. Enquanto a primeira é ampla e abraça tanto estruturada por padrões normativos e regras gerais de
informações quanto idéias, a segunda compartimenta conduta, apresentam “rachaduras” nos seus fundamentos
o conhecimento, tornando difícil sua contextualização. e nas suas dogmáticas. O resultado aí está: desmoralização
Utilizando-se de uma metodologia reducionista para dos grandes relatos, das grandes utopias, das grandes
conhecer (simbolizada pelo método lógico dedutivo, ideologias (ressalte-se o sentido etimológico da expressão
que parte do todo para o conhecimento das partes “desmoralização”, ou seja, sua deslocalização do campo da
que o compõem) e da obsessão determinista pelas leis moral, sua incapacidade de prever, categorizar, normatizar
gerais (em que se oculta o acaso, o novo, as exceções), ou sancionar a imensa diversidade dos comportamentos
o conhecimento científico moderno também contribuiu sociais) que são cotidianamente banalizados, reciclados
para o empobrecimento do mundo, quando retirou e espetacularizados através da televisão, jornais, rádios,
do objeto pesquisado, o seu contexto, reduzindo e revistas ou pela internet.
simplificando fenômenos, no afã de explicá-los.
Tal qual as ciências, também a cultura alimentou-se, no
Vítimas desse reducionismo, as Ciências Humanas século XX, mais de ilusões do que de esperanças. Também
reduziram sua atuação ao calculável e ao formulável, ela foi significada a partir de uma razão universal e única igual

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para todos os homens, em todos os tempos; também ela
foi compreendida como um elemento superior, definidor
dos processos ditos civilizatórios. Por isso, tornou-se um
triste apanágio para genocídios, escravidões e exclusões.
Enquanto discurso científico, a cultura produziu mestres
dos símbolos universais da diferença (os antropólogos
não representariam essa maestria?) que construíram,
por sua vez, uma espécie de “ecumenismo humanitário”,
sempre disposto a negociar conflitos, a harmonizar
De que forma as
discórdias, a neutralizar antagonismos. A Antropologia políticas culturais
poderiam contribuir
ocidental “branca” produzirá sua legitimidade a partir
de uma retórica de respeito às diferenças e de uma
compreensão altruísta do mundo, mas, ao longo do
tempo, não conseguirá esconder nem o desprezo para a construção de um
profundo pelas culturas alheias, nem a decepção com a
sua própria cultura. Segundo Jean Baudrillard, a cultura
“desenvolvimento com
ocidental acabará produzindo uma “ecologia maléfica”
que, crescendo, criou excrescências, ou seja, sua apologia
envolvimento”(...)?
às diferenças não a impedirá de submergir, não somente
diante dos dejetos industriais ou urbanos que ela mesma
produziu, mas por fazer da espécie humana (comunidades
religiosas, tribos indígenas, gangues, guetos, deportados,
migrantes, populações subdesenvolvidas) também um
dejeto, um resíduo sem valor e sem significado.

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A multiplicidade e a superposição de discursos das Essas perguntas referem-se não somente a continentes
sociedades globalizadas, assim como a transformação, desiguais como a América Latina ou a África, mas dizem
criação, transmissão, apropriação e interpretação dos bens respeito a todo planeta. Com os altos fluxos migratórios
simbólicos, produzirão menos sinergias do que alergias e uma economia globalizada, todos os países tendem
no corpo social. Aliás, a metáfora de um corpo para a a transformar-se em complexos patchworks culturais,
sociedade já não mais encontra eco nem fundamento, pois espaços de eterna e conflituosa construção e reconstrução
o corpo desaparece, seja enquanto suporte biológico seja de identificações e sociabilidades. Esse fenômeno, por sua
enquanto referência simbólica. Em sociedades marcadas vez, esvazia os significados e as categorias relativas à cultura
pela informação e pelo avanço das tecnologias, se o mundo e ao desenvolvimento, categorias essas construídas a
parece encontrar-se cada vez mais em todos, nem todos se partir de valores e ideologias coloniais. Em um mundo não
encontram no mundo. E o que dizer desse “encontrar-se linear, não há como encorajar esperanças evolucionistas
no mundo” em sociedades com grandes desigualdades entre povos considerados subdesenvolvidos, a partir dos
sociais como a sociedade brasileira? A desigualdade suscita significados evolucionistas propostos pelas ciências ou
desconfiança, assim como é produtora de uma lógica de pelas tecnologias dos povos, ditos, desenvolvidos. Se essas
distanciamento entre grupos e estratos sociais. E nós, populações possuem chances de se desenvolver, esta
habitantes de países considerados “em desenvolvimento”, chance se dá exatamente pela possibilidade de escaparem
poderíamos nos perguntar: como reaver o capital social dos modelos hegemônicos ocidentais tradicionais
de comunidades excluídas, de ex-colônias submetidas e construírem, de forma autônoma, suas próprias
à domesticação de suas culturas, despossuídas de alternativas de desenvolvimento, de formularem novas
auto-estima e de capacidade de mobilização? Estamos estratégias de pensar, agir, e de se relacionar com o mundo.
preparados para lidar com uma cultura empresarial global
que constrói suas próprias visões, valores e procedimentos
e que vasculha o planeta em busca de tendências e fraturas,
controlando resultados e aliciando mentes?

22 23
notas II

Claúdia Leitão - Doutora em Sociologia, professora do Mestrado políticas culturais e o


em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará e ex- imaginário do
secretária de Cultura do Ceará. desenvolvimento

‘Que o júri pronuncie seu veredito’, disse o Rei, mais ou me-


nos pela vigésima vez naquele dia. ‘Não, não!’ Disse a rainha.
‘Primeiro a sentença ... depois o veredito’. ‘Mas que absurdo!’
Alice disse alto. ‘Que idéia ter a sentença primeiro!’ ‘Cale a
boca!’ disse a Rainha, virando um pimentão. ‘Não calo!’ disse
Alice. ‘Cortem-lhe a cabeça!’ berrou a Rainha. (Lewis Car-
roll. Aventuras de Alice no País das Maravilhas)

A histórica distinção entre cultura e desenvolvimento


ilustra perfeitamente a incapacidade das ciências e do
Estado de construírem conexões eficazes entre a cultura
e o território. Perdemos, ao longo dos últimos séculos, a
capacidade de imaginar um desenvolvimento capaz de se
nutrir da terra e do homem, especialmente das expressões
culturais produzidas a partir do relacionamento do
homem em um determinado território. Se na origem da
palavra cultura está o cultivo, poderíamos, em um primeiro

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momento, refletir sobre as conexões entre cultura e território
através da metáfora da agricultura, ou seja, pensar a cultura a
partir dos significados do plantio, do cultivo, da germinação,
da colheita, da cooperação, do tempo cíclico, enfim, do
cuidado ou do envolvimento necessários, daquele que cultiva,
com aquilo que é cultivado.

O grande papel das Mas, excluímos, a partir do século XVII, o imaginário


dos nossos processos intelectuais, o que empobreceu
políticas culturais (...) nosso olhar e, por conseguinte, nossa forma de ser.

será o de valorizar os
A modernidade, enquanto “ética do fazer”, marcada
pela lógica binária aristotélica, constituída de apenas

imaginários locais, a dois valores (um falso e um verdadeiro), limitou, por


exemplo, as representações do território à imagem de

partir do fomento das um espaço geopolítico voltado a um desenvolvimento


meramente econômico. Desse modo, o território
expressões culturais deixou de ser tratado como um espaço de produção

tradicionalmente
de imaginários e culturas, tornando-se uma abstração
estéril. A racionalidade do “terceiro excluído” retirou,

descartadas e da relação do homem com o território, tudo aquilo


que nessa relação não se conseguia medir, tudo

excluídas (...) aquilo que fosse da ordem do evanescente ou do


imaterial. Compreendida dialeticamente, a expressão
desenvolvimento tornou-se, especialmente, ao longo
do século XX, oposta à expressão envolvimento, uma

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oposição que não se limitará somente ao terreno para determinados comportamentos, que valorizam ou
abstrato dos conceitos, pois definirá éticas e, inclusive, desvalorizam a dimensão simbólica da vida social.
estéticas, ao longo de sua existência.
Ora, no final do século XX, cientistas, técnicos, políticos,
Imaginemos que a “ética do desenvolvimento” tenha, nos empresários e burocratas, ao se depararem novamente
últimos séculos, se alimentado de um “regime diurno com o fracasso de muitos projetos de transformação
de caráter heróico”, estrutura antropológica ascensional territorial, começaram a integrar as dimensões humanas,
voltada para fora, para o futuro (simbolizada por uma lógica ambientais e culturais aos debates sobre desenvolvimento.
da antítese, da distinção e da análise). Imaginemos, ainda, Essa constatação aponta para uma tendência de
que a “ética do envolvimento’ esteja marcada pelo “regime redirecionamento do “trajeto antropológico”, nas
noturno de caráter místico”, estrutura antropológica sociedades do século XXI. As imagens do homem
de descida interior em busca do conhecimento, voltada integrado ao planeta (e não vice-versa), do resgate dos
para dentro (simbolizada pela lógica da conciliação e saberes tradicionais, da culturalização da natureza (assim
complementaridade dos contrários). Os regimes diurno como da naturalização da cultura) revelam sintomas
e noturno das imagens foram propostos pelo sociólogo da construção de uma nova bacia semântica para as
francês Gilbert Durand, que concebeu uma “estrutura representações sociais. O esgotamento de um período
antropológica do imaginário”, ou seja, uma organização das marcado pelo “fazer” e “transformar” parece abrir
imagens ou de um repertório de imagens que marcam as espaço para um novo tempo: o do “relacionar-se”, do
culturas nos diversos períodos históricos. Durand considera “integrar-se”. Essa tendência, de estruturação de um novo
o “trajeto antropológico”, a maneira pela qual cada cultura repertório de imagens encoraja-nos a ousar formular novas
se relaciona, entre suas pulsões subjetivas e o meio em que respostas a velhas perguntas: Os fatores culturais voltam
vive. Haveria, segundo o sociólogo francês, certas normas a ser fundamentais nas relações do homem com o seu
de representação imaginárias, relativamente estáveis, que território? De que forma as políticas culturais poderiam
caracterizam períodos históricos, espécies de grandes contribuir para a construção de um “desenvolvimento com
bacias semânticas que justificam escolhas, que contribuem envolvimento”, entre as comunidades e seus territórios?

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As conexões entre as transformações sociais e suas
implicações culturais atravessaram o pensamento
moderno, a partir das obras pioneiras de Adam Smith, Alex
de Tocqueville, Lewis Henry Morgan e Max Weber. O próprio
tema das relações entre cultura e desenvolvimento, já havia
sido muito discutido nos anos 40 e 50, especialmente
por economistas e sociólogos, os quais consideravam
que a cultura (dos países subdesenvolvidos) era um
sério obstáculo ao desenvolvimento. Na apresentação de
Neste novo século,
uma vasta coletânea sobre o tema, Samuel Huntington a cultura começa a
ser considerada uma
comparava, por exemplo, as trajetórias de Gana e da Coréia
do Sul nos últimos 40 anos, mostrando a semelhança
dos indicadores econômicos e sociais dos dois países, no
inicio do período, e o enorme fosso que os separa hoje. estratégia chave de
Segundo seu ponto de vista, o que explica essa disparidade
seria a cultura. Mais uma vez, a constatação se converte
combate à pobreza,
em explicação para dar base a um raciocínio circular e assim como um fator
decisivo de coesão
ahistórico. A explicação é sempre construída a posteriori;
se determinado país cresceu economicamente, a cultura
pode ser tomada como uma alavanca do desenvolvimento;
se outra nação estagnou ou empobreceu, a cultura se social
revela como um obstáculo ao desenvolvimento.

Essa espécie de doutrina de predestinação de


determinadas sociedades à pobreza ou à riqueza, a partir

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de determinantes culturais é avaliada por Guy Hermet, nacionais, a racionalidade instrumental moderna foi
através da experiência fracassada de organizações especialmente nefasta, pois ignorou o papel das políticas
internacionais no continente africano (2002, p. 68): culturais nas agendas de desenvolvimento dos países.
Por essa razão, inúmeros programas, projetos e ações
A partir dos anos 80 começam a se produzir dois tipos de de intervenção territorial tornaram-se absolutamente
inversão dos sentimentos, não menos discutíveis, embora de ineficazes, no momento de sua aplicabilidade e
sentido exatamente oposto: uma delas é fruto do fracasso aceitação, por serem dissociados dos imaginários e das
da ajuda à África e a outra da popularidade que adquiriu, representações sociais das populações para quem os
por compensação, a ação humanitária. De repente, graças a mesmos eram destinados.
amálgamas abusivos sugeridos pelo primeiro desses fatores,
tanto os programas de macro-desenvolvimento adotaram Com o fracasso das ações humanitárias e colonizatórias,
a aparência de ilusões onerosas e, às vezes, nefastas, as organizações internacionais passaram, na história
alimentadas pela nostalgia colonialista das grandes recente, a rever seus modelos de desenvolvimento,
potências ou pela inesgotável, mas ingênua, caridade de desta feita levando em consideração a necessidade
organizações vinculadas, em particular, às Igrejas... As do protagonismo social nos processos de intervenção
organizações humanitárias difundiram a idéia de que os territorial. Em 1999, em Paris, o Fórum “Desenvolvimento
países pobres não tinham a possibilidade de sair de sua e Cultura”, organizado pelo Banco Interamericano de
indigência a não ser por seus próprios esforços, com um Desenvolvimento, virá emprestar novos significados a essa
mínimo possível de intromissão exterior, tendo em conta temática. Compreendendo a cultura como uma matriz
suas especificidades culturais. dinâmica das diversas formas humanas de ser, de estar
e de se relacionar com o mundo, acabará resignificando
Como se vê, tanto nos discursos públicos quanto privados, o próprio desenvolvimento, libertando-o de sua matriz
as expressões desenvolvimento e cultura foram, ora infra-estrutural. Assim, desenvolver um território não
mitificadas, ora dogmatizadas, ora estigmatizadas. No significará somente construir obras de saneamento,
âmbito das políticas públicas produzidas pelos governos estradas, habitação, urbanização, mas, sobretudo, dirá

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respeito às formas de envolvimento e relacionamento Nessa perspectiva, passa-se a compreender que, quais-
dessas comunidades com essas intervenções. quer projetos de desenvolvimento devem partir da (re)
construção de bases culturais locais. Por outro lado, as
A conferência Geral da UNESCO, por sua vez, logo após o recomendações internacionais acerca dos novos papéis da
dramático atentado do 11 de setembro de 2001, formatará cultura influenciarão a agenda política dos governos, que
a “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”. Este começarão a institucionalizar o domínio da cultura, dan-
documento ratificará o esforço dos países na construção do-lhe autonomia e objetivos cada vez mais integrados às
de um diálogo intercultural, capaz de contribuir para uma pastas de desenvolvimento territorial. Assim, as políticas
cultura de paz entre os povos, considerando a diversidade culturais passam a participar dos processos de municipali-
cultural um patrimônio comum da humanidade. Identidade, zação, com o objetivo de resgatar, através do fomento à di-
diversidade, criatividade, expressões tradicionalmente versidade cultural, a capacidade de autodeterminação des-
presentes nos discursos artísticos, passam, enfim, a sas comunidades, trabalhando essa diversidade a favor do
compor os discursos políticos, econômicos, jurídicos desenvolvimento territorial sustentável, local e regional. O
e sociais. Ao se levar, finalmente, em conta a função grande papel das políticas culturais, nesse processo de (re)
estratégica da diversidade cultural para o desenvolvimento construção das bases locais, será o de valorizar os imagi-
dos povos, assume-se o papel das culturas na construção nários locais, a partir do fomento das expressões culturais
planetária de um “desenvolvimento com envolvimento”, tradicionalmente descartadas e excluídas, compreenden-
o qual impactará de forma significativa na estruturação/ do-as como produtoras de sinergias e estimuladoras de
(re)estruturação dos territórios. A este respeito, Teixeira solidariedades comunitárias.
Coelho cita Lévi-Strauss, na sua obra “Raça e História”:
Para a formulação de políticas públicas que tornem
Não se trata de preservar o conteúdo da diferença, que é intrinse- complementares os programas de desenvolvimento
camente dinâmico e refratário à preservação, mas de preservar o cultural e territorial, necessitamos superar os traumas
fato em si da diferença, a possibilidade de promover a diferença, relativos aos nossos próprios processos históricos,
as condições que deram e dão origem à diferença. que nos permitam identificar o que descartamos de

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nós mesmos, ao longo desses processos. Segundo Mia
Couto, o colonialismo não morreu com o advento das
independências. Mudou de turno e de executores. Durante
décadas, buscamos culpados para as nossas infelicidades e
incompetências. Inicialmente culpamos os colonizadores.
Em seguida, construímos imagens “românticas” do que
fomos antes deles. Mas os colonizadores se foram e as
A cultura foi novas formas de colonialismo continuam a acontecer
entre nós. Essas formas são naturalmente geridas entre ex-
historicamente colonizadores e ex-colonizados. Como nos diz o escritor

concebida de forma
moçambicano: “Vamos ficando cada vez mais a sós com
a nossa própria responsabilidade histórica de criar uma

unilateral enquanto outra História”. Ao mantermos o mesmo modelo mental


dos colonizadores, perdemos nossa capacidade de pensar,

uma “política de criar e imaginar, limitando-nos a repercutir pensamentos


alheios, a consumir, de forma passiva, bens culturais
governo’, não (...) “importados”. As conseqüências dessa baixa auto-estima,

como (...) uma


desse cerceamento do pensamento, são dramáticas
para nós: ora resultam num ufanismo ou messianismo

“política de Estado” ingênuos, sempre em busca de novos colonizadores, ora


em uma profunda inação diante do presente. Alternamos
os seguintes discursos: “somos maravilhosos e talentosos,
só necessitamos ser descobertos!”; “somos incapazes,
somos vítimas, nada podemos fazer”. Esse comportamento
pendular tem sido historicamente reforçado pelo Estado

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brasileiro. No campo da cultura, pelas ações populistas
dos governos e, no campo da economia, pelas agências
de fomento e seus projetos de desenvolvimento, quase
sempre tão inadaptados e distantes de nós.

Segundo o dicionário Michaelis, desenvolver significa tirar


o invólucro, descobrir o que estava encoberto; envolver
significa meter-se num invólucro, comprometer-se.
Assim, poderíamos dizer que desenvolver uma pessoa ou
É fundamental
uma comunidade significaria retirá-la do seu invólucro considerar, nas
políticas públicas
ou do seu contexto, descomprometê-la. Esboçar um
novo modelo de desenvolvimento que leve em conta
a nossa riqueza e diversidade cultural é, portanto, hoje
um desafio e uma urgência. Diversidade cultural como culturais, o papel da
substrato para um desenvolvimento com envolvimento,
como cimento para a dignidade, cidadania, auto-estima,
cultura como um fim
sentimento de pertença. Ao longo do século XX, nossa
inteligência mecanicista, compartimentada e reducionista
em si mesmo
bradou aos quatro ventos sua racionalidade como único
instrumento de transformação do mundo. No afã de
criarmos e de descrevermos sistemas, abdicamos da
vida real. Ao desprezarmos as anomias, perdemos a
capacidade de percepção, de ampliação do nosso “estar no
mundo”. Voltemos, portanto, à tensão desenvolvimento/
envolvimento, considerando-as pólos entre os quais

38 39
estão incluídas vivências em diversos campos, inclusive o das III
responsabilidades sociais. A respeito da comunidade caiçara,
Virgílio M. Viana afirma que des-envolver, para as populações municipalização e
tradicionais, significaria perder o envolvimento econômico, políticas públicas
cultural, social e ecológico com os ecossistemas e seus
culturais para um outro
recursos naturais, perdendo-se com ele a dignidade, o saber, o
conhecimento dos sistemas tradicionais, enfim, a perspectiva
desenvolvimento no Brasil
de construção da cidadania.

Se, neste novo século, a cultura começa a ser considerada “... O camundongo pulou fora d’água e pareceu estremecer
uma estratégia chave de combate à pobreza, assim como um todo de medo. ‘Oh, desculpe-me!’. Alice se apressou em
fator decisivo de coesão social, não necessitaríamos construir exclamar, temendo ter magoado os sentimentos do pobre
urgentemente, no Brasil, uma agenda menos submissa e animal. ‘Esqueci completamente que você Não gostava de
mais audaciosa para o nosso desenvolvimento, a partir da gatos’. ‘Não gostar de gatos! Gritou o camundongo com uma
nossa diversidade cultural? Para isso, os governos brasileiros voz estridente, exaltada. ‘Você gostaria, se fosse eu?’ (Lewis
não deveriam tratar as políticas culturais como um substrato Carroll. Aventuras de Alice no País das Maravilhas)
para as demais políticas públicas? O caráter transversal das
políticas culturais não garantiria efetividade aos projetos Para compreendermos as relações entre cultura e
de desenvolvimento local e regional, proporcionando às municipalização, necessitamos refletir sobre a histórica
populações o protagonismo que lhes falta? Já não poderíamos vulnerabilidade da institucionalização da cultura no Brasil,
ter produzido uma nova matriz de desenvolvimento, capaz pois ela é fruto das fragilidades da própria sociedade civil
de incluir nossas expressões culturais, nossos valores, brasileira. No campo da política, por exemplo, a atenção
nossos comportamentos e nossos costumes, nas redes de dada às políticas públicas federais, estaduais e municipais,
comunicação que estabelecemos, assim como nas diversas na área cultural, foi historicamente insignificante. Embora
expressões de solidariedade que construímos? presentes nos palanques dos candidatos ao legislativo ou

40 41
ao executivo em nosso país, os discursos sobre cultura privilegiando-se um grande número de pequenas ações.
não se reverteram, ao longo do tempo, em projetos O resultado dessa relação se traduz na atuação clientelista
de lei capazes de garantir políticas culturais voltadas à e assistencialista das agências de fomento cultural,
descentralização, inclusão e democratização dos bens e conforme afirmação de Sérgio Miceli: clientelista, de um
serviços culturais. Se no país já se reconhece a estabilidade lado, por se limitar a atender, de maneira geralmente
de princípios e diretrizes para uma política econômica, o passiva, às demandas da clientela própria da área artística
mesmo não ocorre no âmbito de uma política cultural. em geral; assistencialista, de outro, por tratar a cultura
No campo científico, o fenômeno também se repete, como ação filantrópica, como lenitivo ou mera tentativa de
constatando-se pouca produção acadêmica no setor, neutralização das nossas mazelas e desigualdades sociais.
assim como lacunas de natureza teórico-metodológica nas Por último, na agenda de desenvolvimento nacional, a
pesquisas produzidas, que, por sua vez, contribuíram para cultura foi historicamente concebida de forma unilateral
a escassa produção de dados necessários à consolidação enquanto uma “política de governo’, não tendo sido
do setor. No campo artístico, a compreensão acerca dos formulada e pactuada pela sociedade civil, como deve ser
significados das políticas públicas para a cultura também uma “política de Estado”. Esse fenômeno tem produzido
é incipiente, em função, de um lado, das carências de inúmeros impactos para o campo cultural, valendo
formação do campo cultural, e, de outro, da inexistência destacar, entre eles, a descontinuidades dos programas
de um sistema nacional de informações culturais, capaz de e ações culturais, assim como o descrédito na eficiência,
subsidiar a formulação das próprias políticas. efetividade e eficácia das pastas de cultura no país.

Vale, ainda, ressaltar que, a ausência de clareza na Se o Estado brasileiro foi omisso na sua ação de
formulação de diretrizes que estabeleçam os limites da definição de transversalidades, de institucionalização
intervenção do Estado no campo cultural, provocou, e regulamentação da cultura, também a sociedade
em muitos casos, ou um confronto aberto de posições civil passou ao largo das demandas, intervenções e
radicalmente antagônicas, levando à paralisia decisória, controles que poderia ter protagonizado. Todas essas
ou a uma certa tendência a evitar projetos mais ousados, questões nos remetem à necessidade da relocalização

42 43
das políticas culturais nas agendas públicas brasileiras.
É o que enfatiza Teixeira Coelho:

Nenhum desenvolvimento econômico e humano digno desse


nome será alcançado sem que a cultura esteja instalada no
centro das políticas públicas todas, da educação à saúde,
do transporte à segurança, da economia à indústria... a
Sabíamos que não sociedade civil como ator cultural privilegiado, a cultura
como centro de referência das políticas públicas. A tradução
bastaria somente desse princípio implica, por exemplo, que o secretário de

garantir recursos
cultura de um município assim como o ministro da cultura
de um estado são figuras constantes na mesa de decisões

para o interior, pois o sobre todas as políticas.

nosso maior desafio As políticas culturais podem e devem qualificar as políticas


de educação, saúde, habitação, trabalho, entre outros
seria capacitar domínios da vida humana. Essa constatação já permeia

artistas e produtores
os debates contemporâneos acerca do desenvolvimento,
assim como vêm crescendo as discussões sobre a

culturais a fazerem economia da cultura e seu significado estratégico para o


desenvolvimento local e regional. Todas essas conquistas

bons projetos são importantes e passam a legitimar um novo discurso


sobre as políticas culturais no Brasil. No entanto, é
importante ressaltar que a cultura não deve ser somente
considerada, enquanto política, a partir de seus impactos

44 45
de natureza pragmática, relativos à geração de empregos não se poderia repensar os significados das políticas de
ou à redistribuição de renda. É fundamental considerar, desenvolvimento no Brasil? E mais. As políticas culturais
nas políticas públicas culturais, o papel da cultura como não contribuiriam para a necessária compreensão das
um fim em si mesmo, ou seja, a cultura é por si sozinha, diferenças entre políticas de Governo e políticas de Estado?
responsável pela sua própria sustentabilidade. Nesse
sentido, produzir cultura, compartilhar cultura, fruir
cultura são experiências únicas, fundamentais e valiosas,
pois representam, para o homem, o substrato da sua
própria existência.

Enfim, vale lembrar que o grande desafio das políticas


públicas de cultura é o de estender o conceito de
cidadania. Consideramos que cidadania cultural teria
fundamentalmente duas vocações: afirmar os direitos e
deveres dos indivíduos face às suas culturas e às demais
culturas; determinar os direitos e deveres de uma
comunidade cultural frente às demais comunidades
culturais. Nesse sentido, só se pode construir uma política
cultural quando é garantida a livre expressão de indivíduos
e comunidades, assim como os meios para que estes
estabeleçam objetivos, elejam valores, definam prioridades,
controlando, enfim, os recursos disponíveis para alcançar
seus objetivos, a partir de suas crenças e valores. Essa é
a liberdade que propugnamos. A partir dos processos
de municipalização formulados pelas políticas culturais,

46 47
IV da realização de um seminário, cujo objetivo era o de
reunir reflexões teóricas e experiências práticas que
políticas públicas de contribuíssem para a realização de um diagnóstico sobre
as políticas culturais no estado. O Seminário Cultura XXI,
cultura, municipalização
realizado em março daquele ano, foi concebido como
e desenvolvimento com
um primeiro espaço para a escuta de manifestações,
Envolvimento: breve relato do demandas e sugestões que, por sua vez, fundamentariam a
projeto “secult itinerante - a construção do Plano Estadual de Cultura.
cultura em movimento”
(Ceará, 2003-2006) Como faria, posteriormente, o próprio Ministério da
Cultura, nas conferências nacionais, estaduais, municipais
e intermunicipais de cultura, decidimos estruturar nosso
‘Como consegue continuar falando tão calmamente de Seminário em torno de cinco temas basilares: política e
cabeça para baixo?’ Alice perguntou, enquanto puxava gestão cultural, legislação cultural, economia da cultura,
o Cavaleiro pelos pés e o deitava num monte na borda do municipalização da cultura e patrimônio cultural. Nosso
fosso. O Cavaleiro pareceu surpreso com a pergunta. ’Que convidado para refletir sobre a temática “municipalização
me importa onde está meu corpo?’ disse. ‘Minha mente da cultura” foi o próprio ministro Gilberto Gil, que
continua trabalhando do mesmo jeito. Na verdade, quanto defendia, no início de seu primeiro mandato, a retomada
mais de cabeça para baixo estou, mais invento coisas novas.’ de uma Política Nacional de Cultura, fundamentada no
(Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas) resgate da dignidade dos brasileiros. Para tanto, propunha
uma nova reflexão acerca dos significados da cultura, em
Assumi a gestão da cultura do Ceará em 2003, levando seu discurso intitulado “Cultura no Governo Lula: uma
para a Secretaria as discussões sobre políticas e gestão visão estratégica do MINC”:
cultural que já me ocupavam na Universidade. A primeira
decisão tomada foi a de ritualizar nossa chegada, a partir

48 49
Falo de cultura não no sentido das concepções acadêmicas
ou dos ritos de uma ‘classe artístico-intelectual’. Mas, em
seu sentido pleno, antropológico. Vale dizer: cultura como a
dimensão simbólica da existência social brasileira. Como usina
e conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação.
Como eixo construtor de nossas identidades, construções
continuadas que resultam dos encontros entre as múltiplas
representações do sentir, do pensar e do fazer brasileiros e a
diversidade cultural planetária. Como espaço de realização
Graças às redes
da cidadania e de superação da exclusão social, seja pelo que construímos,
passamos a conhecer
reforço da auto-estima e do sentimento de pertencimento,
seja, também, por conta das potencialidades inscritas no
universo das manifestações artístico-culturais com suas
múltiplas possibilidades de inclusão socioeconômica. Sim. e a dialogar com
Cultura, também, como fato econômico, capaz de atrair
divisas para o país - e de, aqui dentro, gerar emprego e renda
(...) profissionais da
(Leitão e Santos, 2006, p.15). cultura do interior
Os grandes temas do Seminário Cultura XXI estavam que, até então,
coincidentemente presentes no discurso do ministro,
mostrando-nos, a todos, que os desafios para o campo mantinham-se
cultural possuíam dimensão nacional: a cultura deveria
ser planejada e gerida estrategicamente; deveria
“invisíveis” para a
promover a auto-estima e a diversidade de expressão
entre comunidades e povos; deveria ser um instrumento
Secretaria
50 51
de empregabilidade e de redistribuição de renda; deveria, na inclusão de todos os brasileiros, especialmente dos
enfim, promover a inclusão social e a consolidação da estados mais pobres da federação.
cidadania. Por outro lado, ao ampliar os significados da
cultura, libertando-a dos espaços eruditos ou acadêmicos Meses depois do “Cultura XXI”, produzimos e publicamos
e ousando ir além dos seus conteúdos tradicionais, o Plano Estadual de Cultura do Ceará (2003-2006), que
impostos pelas linguagens artísticas, o governo federal portava um subtítulo significativo: “Valorizando a diversidade
inaugurava, através do discurso do ministro Gilberto e promovendo a cidadania cultural”. O Plano dará concretude
Gil, naquele Seminário, um novo tempo para as políticas ao compromisso do estado na formulação e implementação
públicas de cultura no país. de uma política pública de cultura, voltada à descentralização
e à inclusão. Para tanto, define em seu preâmbulo os
As questões levantadas durante o Seminário Cultura princípios do respeito à diversidade cultural, da participação
XXI eram, portanto, estaduais e nacionais. Constituía e do compartilhamento da gestão, assim como da autonomia
voz unânime, entre os participantes, que a Secretaria da e da autodeterminação para fixar suas próprias metas,
Cultura possuía uma presença tímida no interior, que suas eleger seus valores e determinar-se por eles. Esses princípios
ações não eram inclusivas nem descentralizadas e que os fundamentarão os cinco programas do Plano: Valorização
seus programas eram sazonais. Por outro lado, afirmava- das Culturas Regionais; Gestão do Conhecimento na Área
se que a Secretaria não possuía informações culturais do Cultural; Preservação do Patrimônio Cultural Material e
estado, não contava com indicadores capazes de aferir Imaterial; Apoio à Criação Artística e Cultural; Gestão Pública
resultados e impactos de suas políticas e de sua gestão. Eficaz e Compartilhada.
E mais. Artistas, produtores, prefeitos, empresários,
jornalistas, dirigentes municipais, secretários de cultura O Programa “Valorização das Culturas Regionais” foi se
de outros estados brasileiros, lideranças comunitárias e tornando, aos poucos, o “carro-chefe” da nossa gestão. Hoje,
demais representações da sociedade civil denunciavam, percebo que ele simbolizava o rompimento com as velhas
praticamente em uníssono, naquele Seminário, a ausência formas tradicionais de gestão cultural, formas estas quase
de uma política pública, para a cultura no país, com foco sempre focadas, ora no fomento aos projetos culturais

52 53
de determinados grupos econômicos e políticos, ora nos compartilhamento das políticas e da gestão da cultura
interesses de alguns representantes da classe artística, no estado. Iniciamos nossa empreitada pelo reforço
especialmente, daqueles formadores de opinião e com às instâncias de participação dos representantes da
maior acesso às mídias. Para nos aproximarmos de forma sociedade civil nos órgãos da gestão estadual. Por isso,
eficiente e eficaz dos municípios cearenses, deveríamos reestruturamos o Conselho Estadual de Preservação do
vencer o tradicional isolamento da Secretaria, sua falta Patrimônio Histórico e Cultural - COEPA - e o Conselho
de capilaridade nas diversas regiões do estado, enfim, Estadual da Cultura - CEC, que, embora estivesse previsto
necessitávamos superar, de um lado, o desconhecimento em lei desde 1966, junto com a criação da própria Secretaria,
da existência de uma Secretaria Estadual de Cultura encontrava-se desativado. O COEPA, criado no ano 2000,
por parte dos municípios e, de outro, a descrença do no governo Tasso Jereissati, teve em nossa gestão sua
campo cultural na sua capacidade de descentralização e estruturação alterada, para agregar novas representações da
de democratização de seus serviços. Vale ressaltar que a sociedade civil; o CEC também foi reestruturado, passando
Secretaria Estadual da Cultura era considerada, até então, a formular, junto com a Secretaria da Cultura, as políticas e
como a Secretaria de Cultura de Fortaleza, pois como programas de fomento à cultura no estado.
a capital não dispunha de uma secretaria municipal, a
secretaria estadual, de uma certa forma, tentava suprir Nessa primeira etapa, de fomento à gestão compartilhada,
a ausência de políticas municipais de cultura. O desafio estimulamos a institucionalização de instâncias regionais
estava posto. Necessitávamos “estadualizar” a Secretaria de formulação e compartilhamento das políticas e da
para chegar a todos os municípios e, finalmente, gestão da Secretaria. Por isso, foram criados os Fóruns
“municipalizar” os seus programas, projetos e ações... Regionais de Turismo e Cultura em todo o Ceará, cuja
T missão era fomentar a parceria e os consórcios entre os
odo processo de municipalização pressupõe a existência municípios da mesma região, enfatizando-se o “turismo
de etapas que permitam sua viabilização, garantindo-lhe cultural” e seus impactos para o desenvolvimento local
êxito nos resultados almejados. A primeira delas referia- e regional. Esses colegiados construíram intersecções
se à criação de um “leito institucional”, que garantisse o valiosas entre os campos da cultura e do turismo em todo

54 55
o estado, durante quatro anos, tornando-se o principal
espaço de interlocução entre as secretarias estaduais
e municipais de cultura e turismo, o trade turístico,
Como um órgão as organizações não-governamentais, os produtores
culturais, as associações artísticas e outras instituições
público (...) poderia públicas e privadas. Os Fóruns eram coordenados por um

desenvolver a comitê gestor, formado, por sua vez, por uma diretoria,
com representantes da sociedade civil (presidente,

necessária mobilidade vice-presidente, primeiro e segundo secretários) e


representantes do poder público (secretarias da cultura,
organizacional para do turismo, da educação, do desenvolvimento econômico
etc), entre outras instituições voltadas ao desenvolvimento
percorrer todas as (Sebrae, Sesc, Banco do Nordeste, Universidades etc).

regiões do estado? A segunda etapa consistia na estruturação, difusão e


acessibilidade das formas de fomento à cultura. Urgia
construir instrumentos claros e eficazes de fomento
cultural voltados, de forma clara e transparente, à inclusão
social. Com a criação de uma política de editais de fomento
às artes e ao patrimônio material e imaterial, demos o
primeiro passo para a inclusão, pois garantimos em lei
que pelo menos 50% dos recursos do Fundo Estadual de
Cultura seriam voltados ao apoio de projetos advindos
do interior do estado. Essa legislação suscitou grande
polêmica em meio aos artistas formadores de opinião, que

56 57
discordavam radicalmente da mesma, argumentando que da cultura do interior que, até então, mantinham-se
o interior do estado não tinha projetos para consumir os “invisíveis” para a Secretaria. Lembro que, no Governo Lula,
recursos propostos pelos novos editais. Nossa proposta, o Sistema Nacional de Museus teve sua primeira reunião no
no entanto, não era a de “dar o peixe”, mas, sim, de “ensinar município do Crato, no Cariri cearense, quando lançamos
a pescar”. Sabíamos que não bastaria somente garantir o Sistema de Museus do Ceará, reunindo gestores de mais
recursos para o interior, pois o nosso maior desafio seria de setenta museus e unidades museológicas de todo o
capacitar artistas e produtores culturais a fazerem bons estado. O mais interessante dessa construção coletiva foi a
projetos, que concorressem e fossem selecionados pelos possibilidade de proporcionarmos o encontro de gestores
editais. Necessitávamos dar, rapidamente, um passo culturais com demandas semelhantes e, em geral, vítimas
além da legislação - passos que garantissem, inclusive, a do mesmo isolamento e dos mesmos processos de
sobrevivência e a longevidade das próprias leis de fomento. exclusão. Percebíamos que a municipalização era, menos
um processo de aumento de recursos para a área da
A terceira etapa dizia respeito à criação de canais de cultura, do que um movimento de estímulo ao encontro
comunicação, interação e apoio, entre os diversos entre pessoas, de resgate das solidariedades individuais
equipamentos culturais, em todo o estado. Ao longo comunitárias, enfim, da restituição de espaços da fala e da
dos anos de 2004 e 2005, fomos instituindo, no âmbito escuta entre indivíduos ligados pelos mesmos interesses e
da administração pública estadual, os sistemas estaduais motivados pelos mesmos sonhos. Vale ressaltar que, para
de museus, de teatros e de equipamentos culturais, ao criarmos as redes, ampliamos as “missões” dos grandes
mesmo tempo em que fomos consolidando os sistema equipamentos culturais do estado, situados na capital (a
de bandas de música, de bibliotecas e de arquivos, já Biblioteca Pública Menezes Pimentel, o Arquivo Público,
previstos em lei, mas com ações sazonais no interior. A o Theatro José de Alencar, o Museu do Ceará, o Centro
experiência da criação dos sistemas representou um passo Cultural Dragão do Mar), que passaram a ser espécies
significativo na tarefa de municipalização. Graças às redes de “cabeças” de cada Sistema, desempenhando um
que construímos, passamos a conhecer e a dialogar com papel de liderança e de responsabilidade pelo seu bom
artistas, gestores de equipamentos e outros profissionais funcionamento.

58 59
A quarta etapa referia-se à ação de estruturação do campo A quinta etapa consistia na criação de um programa de
cultural de cada região do estado, a partir do mapeamento fomento à cultura, voltado especificamente à inclusão dos
de suas vocações mais representativas. Através dos Fóruns municípios mais pobres do estado, assim como dos bairros
Regionais de Cultura e Turismo, a Secretaria passou a com os menores índices de desenvolvimento humano
conhecer os movimentos culturais de cada região e, com da capital. Através de recursos do Fundo Estadual de
cada uma delas, apoiou a criação de festivais regionais, Combate à Pobreza – FECOP, tornou-se possível enfrentar
com enfoque na formação profissional da linguagem a exclusão, através e a partir do fomento à cultura. Entre
artística e cultural mais desenvolvida naquela região. O os diversos projetos culturais apoiados pelo FECOP,
grande objetivo desses festivais, que chamamos de “eventos ressaltamos o Projeto “Talentos da Cultura” (bolsas de
estruturantes” era, portanto, o de “estruturar” a linguagem incentivo a jovens aprendizes, a artistas profissionais,
artística mais expressiva em cada região, permitindo a a agentes culturais e aos guardiões da memória local), o
formação de produtores, gestores, artistas, enfim, dos Projeto “Fortalecimento Musical”, que promoveu cursos
profissionais da cadeia produtiva daquele evento. O Encontro e edição de partituras, reequipou as bandas musicais de
dos Mestres do Mundo (Vale do Jaguaribe), a Festa do Livro e todos os municípios do estado, assim como os conjuntos
da Leitura de Aracati (Litoral Leste), a Mostra Cariri das Artes de música regional (acordeons, zabumbas, triângulos),
(Cariri), o Festival Internacional de Trovadores e Repentistas de música urbana (guitarras, teclados, percussão) e
(Sertão Central), o Festival de Música de Câmara do Vale do de música erudita (pianos e outros instrumentos) e o
Salgado (Centro Sul e Vale do Salgado), o Festival de Dança Projeto “Agentes de Leitura” (voltado para a promoção e
do Litoral Oeste (Litoral Oeste), o Festival de Circo, Bonecos democratização do livro e da leitura, através da formação
e Artes de Rua (Inhamúns) e o Festival Música na Ibiapaba de agentes leitores que, indo de casa em casa, em
(Serra da Ibiapaba) constituíram “eventos estruturantes” cada bairro, distrito e município, emprestavam livros,
que contribuíram para a criação de canais definitivos realizavam rodas de leitura, estimulando a alfabetização,
entre a Secretaria e as diversas regiões do estado, durante a leitura e a interpretação e compreensão de textos da
nossa gestão, ao mesmo tempo em que possibilitaram a literatura internacional, nacional e regional).
reestruturação do próprio campo cultural cearense.

60 61
Todas essas etapas cumpridas e os devidos programas em do poder público. As secretarias estaduais de cultura, que
funcionamento, acabaram por transformar, pouco a pouco, estão quase sempre abrigadas em prédios nos centros das
a imagem distante que a Secretaria mantinha no interior. cidades, em geral tombados pelo Patrimônio Histórico,
Essa transformação começou a ser percebida, já a partir do simbolizam, de um lado, o imobilismo do Estado, de outro,
segundo ano, quando começamos a receber manifestações a “pompa” e a “circunstância” que a cultura empresta aos
favoráveis às nossas ações, que resultavam na ampliação seus gestores. Ora, aquela proposta de “diáspora” da
de nossas parcerias com todo o estado. Era chegada a própria Secretaria, representava uma rebeldia a essa
hora de se realizar um gesto maior, uma aproximação tradição algo “aristocrática”, tão representativa da
ainda mais efetiva e eficaz de descentralização. Não seria a gestão pública de cultura em nosso país. Estávamos,
hora de deslocar a própria Secretaria da Cultura da capital portanto, a fazer, com a criação do projeto de uma
e fazê-la percorrer todas as regiões? O gesto simbólico “secretaria nômade”, quase uma provocação a uma
de criar sedes regionais provisórias para a SECULT, não velha repartição pública, refém de sua própria lentidão
seria o passo definitivo para a sua aproximação com os e do seu próprio isolamento:
municípios e regiões mais distantes? Assim surgiu, dentro
do Programa “Valorização das Culturas Regionais”, o O nomadismo é totalmente antitético à forma do Estado
Projeto “Cultura em Movimento: SECULT Itinerante”. moderno. Este busca, de forma constante, suprimir o que
considera uma sobrevivência de um modo de vida arcaico.
De início, o Projeto foi recebido com ceticismo pelo próprio Fixando-se, pode-se dominar. (Maffesoli: 1997, p. 22)
governo estadual, o que era de se esperar. Afinal, como um
órgão público, sempre sujeito a controles, interdições e Segundo Maffesoli, o nomadismo não se afina com a gestão
obstáculos de natureza burocrática, poderia desenvolver pública, pois é próprio do político, nos seus objetivos
a necessária mobilidade organizacional para percorrer de controle e de dominação, desconfiar de tudo o que é
todas as regiões do estado? Sabíamos que a Secretaria, errante, de tudo o que escapa do olhar. Se o Estado deseja
pela sua própria natureza, era vocacionada ao imobilismo tudo ver, tudo controlar, tudo classificar, tudo mensurar,
e à rigidez, simbolizada pela própria estrutura imutável nosso Projeto representava uma ação indesejável e

62 63
inoportuna aos interesses da gestão pública. Mas graças que sediavam os “eventos estruturantes”. Nossa agenda
à compreensão do governador, conseguimos superar os foi construída a partir do calendário dos festivais regionais,
maiores obstáculos e, em 2005, saímos de Fortaleza para com o objetivo de fortalecer, naquele período, aquela
uma “expedição” de conhecimento e reconhecimento do região, com toda a programação do “SECULT Itinerante”.
estado, com retorno previsto para o dia 6 de agosto de O Projeto instalava-se cerca de 20 a 25 dias por região,
2006, data de aniversário de 40 anos da Secretaria. realizando a maioria das atividades previstas, e as equipes
revezavam seus períodos de permanência, de acordo com
A lógica da itinerância exigiu uma grande engenharia de a natureza do eixo do Projeto em que estavam envolvidas.
produção, pois envolvia uma intensa programação de
atividades diferenciadas, que ocorriam, simultaneamente, O primeiro eixo referia-se à “Institucionalização da
em várias cidades por região. Para realizá-la no tempo Cultura e Prestação de Serviços Técnicos”. Seu objetivo
previsto, foram necessárias diferentes equipes técnicas e era o de apoiar a criação, estruturação e consolidação dos
um árduo trabalho de articulação diária com os municípios. Sistemas Municipais de Cultura. Enquanto os técnicos
Enquanto se executava as atividades numa região, outra da Secretaria se reuniam com os artistas e gestores
equipe realizava a pré-produção das regiões posteriores, em cada município, para conhecer os equipamentos
o que incluía necessariamente a prospecção técnica nas culturais municipais, para informá-los dos nossos
cidades, para avaliar espaços, equipamentos, locações, serviços de assessoria, para divulgar nossos editais
divulgação da programação local, seleção e inscrição de e programas, minha tarefa era a de visitar todas as
candidatos para atividades específicas etc. Em cada região, Câmaras Municipais, explicando, a partir de uma
contava-se com o apoio de outras secretarias estaduais, palestra aos vereadores, aos artistas e à população em
que viabilizaram a estrutura logística para o funcionamento geral, as diretrizes do federalismo cultural brasileiro,
de um escritório provisório da SECULT, durante sua o Sistema Nacional de Cultura e suas necessárias
estadia na região. As bases foram montadas em cidades- bases municipais. Ao final de cada sessão, eu própria
pólo regionais, com infra-estrutura de hospedagem, entregava a cada prefeito, presidente de Câmara e
alimentação e serviços de comunicação, normalmente as dirigente ou responsável pelo setor da cultura no

64 65
município, cartilhas com as informações acerca do estado. Vale ressaltar o impacto extremamente positivo
Sistema Nacional de Cultura, dos Sistemas Federal, dessas formações, voltadas para o estímulo à criação dos
Estaduais e Municipais, além dos modelos de leis para sistemas municipais de cultura. Em pouco tempo, vimos
a criação dos Sistemas Municipais de Cultura (com a nascer secretarias, conselhos, planos e legislações de
previsão da criação dos conselhos, da legislação de incentivo à cultura em todo o estado. Essa formação para
incentivo, dos fundos, dos órgãos municipais de cultura, os gestores, produtores e artistas em geral, teve como
assim como dos planos municipais de cultura). Nunca primeiro objetivo resgatar a auto-estima de lideranças
deixei de enfatizar, no meu discurso, a importância do municipais, que, tradicionalmente distantes do governo
município, enquanto espaço primordial da federação, estadual, mereciam ser reconhecidas pela sua persistência
território concreto onde a vida se dá, diferentemente e altruísmo. Em pouco tempo, desenvolvemos relações
das abstrações jurídico-políticas dos estados e da cúmplices e afetivas com todos eles, reforçando nos
União. Esse discurso de municipalização encontrou mesmos a necessidade de comportamentos e posturas
grande eco em nossa caminhada e foi definitivo nos profissionais, diante da gestão cultural. De um lado,
bons resultados de institucionalização municipal da insistíamos que o fazer cultural não poderia ser objeto
cultura que obtivemos. de filantropias ou voluntarismos políticos. De outro,
que, enquanto dever do Estado e direito da população, o
O segundo eixo era focado na “Formação de Gestores e fomento à cultura constituía obrigação do município e
de Profissionais do Campo Cultural”, e tinha por objetivo direito dos munícipes.
oferecer um “pacote” de cursos para gestores, produtores,
artistas e interessados, em todas as regiões do estado. O terceiro eixo, nomeado “Geração de Conhecimento”,
Os cursos de Gestão, Produção e Elaboração de Projetos era encarregado de mapear o patrimônio cultural
Culturais, de Educação Patrimonial e as Oficinas de material e imaterial do estado, assim como de cadastrar
Elaboração de Planos Municipais, ambos fundamentais equipamentos culturais, artistas, associações e entidades
para a criação e consolidação dos Sistemas Municipais do campo cultural. Graças a esse levantamento,
de Cultura, foram ofertados em todas as regiões do conseguimos criar e fomentar, através de cursos e oficinas,

66 67
os sistemas estaduais de teatros, museus, centros culturais, de um grande circo seria a base para a promoção e difusão
além de consolidar os sistemas estaduais de arquivos, cultural do Projeto. O “Circo Cultura em Movimento’,
bandas de música e bibliotecas. Para tanto, oferecemos composto de duas tendas, garantiu, durante toda a
cursos voltados à gestão de equipamentos, em função das itinerância, uma intensa programação cultural. Contudo,
demandas regionais, tais como o de Ação Educativa nos o mais valioso para a Secretaria foi o fato de conhecer os
Museus, Implantação de Arquivos Municipais e Conservação artistas e as diversas expressões culturais locais. Muitos
de Acervos Museológicos. Também em função das demandas habitantes desconheciam, entre seus vizinhos, a existência
regionais, foram oferecidos aos artistas cursos básicos de de talentos, que o Projeto revelava através do Circo. Esse
Dança, de Teatro, de Música, de Desenho e Pintura, de encontro das comunidades com seus próprios artistas
Xilogravura, de Cordel, entre outros. Graças ao “Ônibus impactou fortemente os municípios, tornando o Circo
Cultura em Movimento”, uma unidade de cadastramento um espaço de sinergia, de trocas, de formação de público,
móvel que circulou em todos os municípios do estado, enfim, uma grande arena cultural para toda a população.
conseguimos cadastrar mais de 20.000 profissionais da Mais de 115.000 pessoas participaram das ações no Circo,
cultura nas diversas regiões cearenses. números que demonstram a força do Projeto em todas as
regiões do estado.
O último eixo, o da “Promoção e Difusão Cultural”, era
responsável pela realização, durante a caminhada, de Se o Projeto “Cultura em Movimento”, em seu caminhar,
exposições, mostras de cinema, festivais nas diversas semeou em terreno fértil, oferecendo formações,
linguagens artísticas, espetáculos circenses, teatrais, informações e assessorias, ele também realizou colheitas.
musicais e literários, entre outras programações artísticas Entre os frutos do Projeto, vale destacar a criação de um
e culturais. Esse eixo integrou-se ao anterior, viabilizando Sistema Estadual de Informações Culturais para o Estado,
o cadastramento de milhares de artistas e profissionais da que subsidiou outros produtos/publicações, tais como, O
cultura em todo o Ceará, ao mesmo tempo em que nos Guia Turístico Cultural do Ceará, Os mestres da Cultura
permitiu conhecer talentos anônimos e fomentar novos Popular, As 1001 histórias do Ceará, A Memória do
públicos para a fruição cultural. Decidimos que a estrutura Caminho, O Catálogo dos Equipamentos e Profissionais

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da Cultura, Os Cadernos da Memória, além de outros política de cultura. Os números revelados pelo IBGE
documentários e registros audiovisuais, assim como demonstram que a formulação de política pública para a
criação de acervos, realização de exposições etc. cultura, voltada à municipalização, permitiu a um estado
pobre como o Ceará (cujo Produto Interno Bruto é 14
A maior repercussão do Projeto “Cultura em Movimento” vezes menor que o de São Paulo!) tornar-se exemplar.
viria, no entanto, a acontecer em setembro de 2007. Se 42,1% dos municípios brasileiros não possuem uma
Graças à parceria entre o Instituto Brasileiro de Geografia política cultural e somente 4,6% deles possuem uma
e Estatística – IBGE, e o Ministério da Cultura, foram secretaria específica de cultura, por que existem, entre
levantados os primeiros dados culturais brasileiros os 184 municípios cearenses, cerca de 100 secretarias
na Pesquisa de Informações Básicas Municipais. municipais de cultura?
A “Munic-2006” veio confirmar o pioneirismo da
municipalização da cultura no Ceará. Segundo a pesquisa, A experiência de criação do Sistema Estadual de Cultura
enquanto 57,9% dos municípios brasileiros afirmam ter e do apoio aos sistemas municipais de cultura no Ceará
uma política cultural, 76,6% dos municípios cearenses demonstra que é possível construir-se um Sistema Nacional
já fazem esse trabalho. Todas as prefeituras no Ceará de Cultura para o país, onde recursos, competências e
possuem um órgão gestor de cultura, assim como programas da União, Estados e Municípios se articulem,
todo o Ceará aderiu ao Sistema Nacional de Cultura. Os garantindo a continuidade de políticas culturais para todos
números relativos à criação, estruturação e consolidação os brasileiros. Afinal de contas, a preservação do nosso
dos Sistemas Municipais de Cultura são também patrimônio cultural, a cooperação técnica, a construção
surpreendentes. O Ceará apresenta resultados acima da de redes de equipamentos culturais (bibliotecas, teatros,
média nacional no que se refere à criação de conselhos, museus, centros culturais, arquivos, salas de cinema etc)
fundos, leis de incentivo, planos, formação profissional são tarefas que dizem respeito a todos os entes federados.
parra o setor, redes de equipamentos culturais, grupos Quanto maior a integração e a articulação entre eles, mais
artísticos, festivais, mostras etc. Hoje confirmamos as eficazes seremos no conhecimento e reconhecimento
hipóteses que alimentaram durante quatro anos nossa da nossa diversidade e riqueza cultural, transformando

70 71
nossas expressões culturais em um ativo fundamental para referências
o desenvolvimento humano. Sabemos que a construção
do Sistema Nacional de Cultura é uma tarefa de todos. O
BARTHES, Roland. Fragmentos do Discurso Amoroso.
arcabouço de leis que o constitui não lhe dará eficácia nem
BAUDRILLARD, Jean La Transparence du Mal: essai sur les phé-
efetividade, caso não haja comprometimento mútuo entre
nomènes extremes. Paris, Galilée, 1990.
os governos e a sociedade civil.
____________________ L´Illusion de la fin ou La grève des
évènements. Paris, Galilée, 1992.
A criação do Sistema Estadual de Cultura no Ceará e o
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São
estímulo à criação dos Sistemas Municipais, implantado
Paulo, Perspectiva, 2007.
pelo “Projeto Cultura em Movimento: SECULT Itinerante”,
DURAND, Gilbert. Estruturas Antropológicas do Imaginário. São
representaram muito mais do que uma estruturação
Paulo, Martins Fontes, 1997.
formal de um modelo jurídico-político de fortalecimento
HARRISON, Lawrence & HUNTINGTON, Samuel. A cultura
do federalismo cultural em nosso país. O Projeto simboliza
importa: os valores que definem o progresso humano. Rio de
a formulação de uma política pública de municipalização Janeiro: Record, 2002.
da cultura disposta a resignificar os tradicionais modelos
HERMET, Guy. Cultura e Desenvolvimento. Petrópolis, RJ: Vozes,
de desenvolvimento, a ampliar os significados da 2002.
cidadania, a construir um desenvolvimento local e regional
LEITAO, Cláudia Sousa e SANTOS, Fabiano dos (org) Seminário
fundamentado no envolvimento com o Outro e na direção Cultura XXI: seleção de textos. Fortaleza, Coleção Nossa Cultura,
do Outro, a partir do reforço à diversidade cultural, dos Série Documenta, Secult, 2006.
afetos e das solidariedades comunitárias. MAFFESOLI, Michel Du Nomadisme: vagabondages initiatiques.
Paris, Librairie Générale Française, 1997.
MICELI, Sérgio (org.) Estado e Cultura no Brasil. São Paulo, Difel,
1984.
MORIN, Edgard. O desafio do século XXI: religar os conhecimen-

72 73
tos. Lisboa, Instituto Piaget, 1999. Perfil
ROCHA PITTA, Danielle Perin (org.) Ritmos do Imaginário,
Recife, Editora Universitária da UFPE, 2005.
TEIXEIRA COELHO, José. Política Cultural em Nova Chave: Doutora em Sociologia pela Université Paris V
indicadores qualitativos da ação cultural in Revista Observatório (Sorbonne-René Descartes), Mestre em Sociologia do
Itaú Cultural, n.3, 2007. Direito pela Universidade de São Paulo -USP(1988).
Foi Diretora Regional do Senac/CE (2001/2002)
Perfil dos Municípios Brasileiros: Cultura 2006, IBGE. Coorde-
e Secretária da Cultura do Estado do Ceará
nação de População e Indicadores Sociais, Rio de Janeiro: IBGE,
(2003/2006).
2007.
Foi coordenadora do Curso de Administração da
Plano Estadual da Cultura 2003-2006: valorizando a diversidade
Universidade Estadual do Ceará (1998/2003 )
e promovendo a cidadania cultural. Fortaleza, Coleção Nossa
do Mestrado Profissional de Gestão de Negócios
Cultura, Série Documenta, Secult, 2003.
Turísticos (1999/2003) (parceria com a Universidade
UNESCO, Déclaration Universelle sur la Diversité Culturelle. de Barcelona) e do Curso de Especialização em Gestão
Série Diversité Culturelle n.1, 2002. Cultural (2000/2002).
XV Ciclo de Estudos sobre o Imaginário. Congresso Internacional, É professora do Mestrado de Políticas Públicas e
http://www.ufpe.br/imaginario/ciclo2008/br/tema-br.html. Sociedade da UECE, Coordenadora do Curso de
Direito da Faculdade Christus e consultora associada
da Animacult Consultoria.
Autora dos livros: “A Crise dos Partidos Políticos
Brasileiros: Os Dilemas da Representação Política
no Estado Intervencionista” (1989), “Por uma Ética
da Estética: uma reflexão acerca da Ética Armorial
Nordestina” (1997), “Memória da Construção
Civil” (2002), “Memória do Comércio Cearense”
(2003). Organizou as publicações: “Gestão Cultural
- Significados e Dilemas na Contemporaneidade” e
“Seminário Cultura XXI: Seleção de Textos”.

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Coleção Cultura é o quê?

Vol. I - Cultura e Democracia - 2009


marilena chauí

Vol. II - Cultura e desenvolvimento em um


quadro de desigualdades - 2009
Marta Porto

Vol. III - Cult ura e Municipalização- 2009


Cláudia Leitão

Vol. I V - Cult ura como R ecurso -2012


Heloísa Buarque de Hollanda

Vol. V - Linguagem, educação e cultura: leituras - 2012


Eliana Yunes

Vol. V I - Panorama das Polít icas Cult urais


no Brasil: Práticas e Análises - 2012
Antonio Albino Canelas Rubim

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O projeto gráfico dste livro foi composto no Estúdio
Quimera por Iansã & Inara Negrão para a Secretaria de
Cultura do Estado da Bahia, em Salvador. Sua impressão foi
feita pela Gráfica Esperança em papel reciclato, capa 120 g/
m2, e miolo 90 g/m2.

Possui o formato 11x15 cm. A fonte de texto é DTL


Documenta Sans. Os títulos e apoios foram compostos
em DTL Documenta, família tipográfica projetada por
Frank Blokland.
Linha editorial da Secretaria de
Cultura da Bahia voltada para
apoiar processos de capacitação
e disseminar idéias e conceitos
contemporâneas de cultura.

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