Professional Documents
Culture Documents
Corpos em trânsito
subjectividade que conta, nem mesmo o olhar do espectador. O movimento sem sujeito
desencadeia-se com outras forças, o contágio faz-se de outro modo na sua fisicalidade
natural.
As “obsessões da imaginação” que diz, em 68, serem uma parte dos seus próprios
recursos inventivos serão por nós analisadas a partir da noção de movimento
imaginado6. O caso da imaginação, o movimento imaginado serão pensados enquanto
modos de funcionamento do espírito-músculo, do corpo-espírito.
2. Como não ver que “the mind is a muscle”? E, porque não ver que o corpo é espírito?
A imaginação é tomada por nós, em sentido deleuziano, como uma faculdade com uma
função vital. Neste caso tomá-la–emos num sentido muito particular para analisarmos a
noção de movimento imaginado que escapa de um corpo que o quer realmente executar.
Imaginar o movimento, inventar, é dançar. Necessariamente ligada ao movimento
humano “atravessa domínios, ordens, níveis, abate divisórias”, é uma faculdade
disjunta, geradora da diferença, fora do senso comum. Não é aqui essencial na
determinação do espaço em conformidade com o conceito, mas sim, enquanto e como
guia do nosso corpo e inspiradora do nosso espírito, que tem um poder de “contracção”
e de apreensão da unidade espírito-músculo. Criadora, vai e vem sem parar no seu
movimento vivo e habitado até à obsessão .
Eis, o que Deleuze diz em Diferença e Repetição:
“Foi frequentemente observado que o comportamento sexual global do homem e da
mulher tende a reproduzir o movimento dos seus órgãos e que este movimento, por sua
vez, tende a reproduzir o dinamismo dos elementos celulares; três dramatizações de
ordens diversas ecoam: a psicológica, a orgânica e a química. Se cabe ao pensamento
explorar o virtual até o fundo de suas repetições, compete à imaginação apreender os
processos de atualização do ponto de vista dessas retomadas ou desses ecos. É a
imaginação que atravessa os domínios, as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, co-
extensiva ao mundo, guiando o nosso corpo e inspirando a nossa alma, apreendendo a
unidade da natureza e do espírito, consciência larvar, indo sem parar da ciência ao
sonho e inversamente.”7
A experiência do movimento nunca é só física. Deixamos “correr” a imaginação, ela
acelera ou abranda, desloca-se, intensifica-se, e outros movimentos desencadeiam-se e
desenvolvem-se. Quando nos preparamos para executar um movimento somos capazes
4
Um duplo trajecto contribui para a construção da nova realidade que jorra do sentir mais
intensivo. É preciso primeiro que as imagens ganhem força emocional, isto é, que os
gestos dos piratas e os movimentos marinhos ecoem no corpo do poeta e o façam vibrar.
É preciso, em seguida, que o corpo inscreva e absorva, ou seja, que encarne contraindo
toda a realidade vivida, sentida. Toda a realidade, simplesmente. Essa é a função da
imaginação corpórea.
Os gestos dos piratas, os movimentos das coisas (“A ânsia das cousas absolutamente
cruéis e abomináveis” do mar) não são apenas evocados pela imaginação mas
imprimem-se, por assim dizer, na carne da alma do poeta, “cinzelam” e “tatuam” a sua
alma. A alma é tatuada como um corpo o é. A imaginação imagina os movimentos da
alma como se fossem os movimentos do corpo porque passam a sê-lo realmente (“The
Mind is a Muscle” como diz Y. Rainer): todos os movimentos imaginados se movem,
agora, como movimentos do corpo.
Para que as imagens da imaginação corpórea ganhem a evidência maior do real,
nenhuma outra realidade lhe deve escapar, tudo o que é imaginável deve entrar no seu
âmbito. É o todo da experiência que Pessoa (e Y. Rainer) experiencia(m) como o todo
do universo:
A imaginação corpórea não representa nem simboliza, encarna porque coincide com o
movimento das coisas. O real surge nas imagens que não são alucinações, mas “as
coisas mesmo”.
Uma observação de Deleuze ajudar-nos-á a compreender o elo que une a intensificação
das sensações, a imaginação e a produção do real ontológico. No Anti-Édipo, evoca-se
esta problemática: “Há uma experiência esquizofrénica das quantidades intensivas no
8
estado puro, a um ponto quase insuportável. […] Fala-se muitas vezes das alucinações e
do delírio; mas o dado alucinatório (vejo, oiço) e o dado delirante (penso…)
pressupõem um Eu sinto mais profundo, que dá às alucinações o seu objecto e ao delírio
do pensamento o seu conteúdo. Um “eu sinto que me torno mulher”, “que me torno
deus”, etc., que não é delirante ou alucinatório, mas que vai projectar a alucinação ou
interiorizar o delírio. Delírio e alucinação são segundos relativamente à emoção
verdadeiramente primária que inicialmente não sente senão intensidades, devires,
passagens”15. O real assim produzido não é “subjectivo” como a alucinação nem
“objectivo” como a coisa empírica, mas de outra ordem, ontologicamente primeira, mais
rica, mais complexa, virtual e determinando o “subjectivo” e o “objectivo” (que são
actualizações parciais, empobrecidas e mutiladas do virtual).
Em Pessoa, a imaginação corpórea depende e acompanha o movimento das sensações. O
“Eu sinto” transforma-se em “eu imagino”, e o real forma-se na imagem encarnada do
movimento das coisas. Em Y. Rainer a imaginação corpórea encarna-se no corpo da
bailarina que, assim, dança o movimento do mundo que é o movimento do pensamento –
“ My body remains the enduring reality”.
Afastámo-nos do movimento imaginado de Stern, mas não estamos longe dele. Na
poesia, na dança, na arte em geral, o movimento imaginado não se resume ao
movimento físico dos músculos; um elemento novo é sempre produzido por ele - o real
- graças à especificidade do fazer artístico: a expressividade. Expressividade estética16
que traz o infinito ao objecto de arte.
1
Esta análise baseou-se quase exclusivamente na leitura de “Statement” (1968) in Yvonne Rainer, Work,
1961-73, Press of the Nova Scotia College of Art and Design, N. Y. University Press, New York, 1974.
2
Daniel Stern, Les Formes de Vitalité, Odile Jacob, Paris, 2010, p. 30.
3
Idem, p. 31.
4
Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Relógio D’Água, Lisboa, 2000, p. 357.
5
Idem.
6
Daniel Stern, 2010, p. 66.
7
Deleuze, 2000, p. 358
8
José Gil, Movimento Total, Relógio d’Água, Lisboa, 2001, 192.
9
Daniel Stern, 2010, p. 170.
10
Idem.
11
Idem, p. 172.
12
José Gil, Ritmos e Visões, Relógio d’Água, 2017.
13
Álvaro de Campos, Livro de Versos, ed. Crítica (org. Teresa Rita Lopes) Ed. Estampa, Lisboa, 1993, p.
117
14
Idem, pp. 117-118.
15
Gilles Deleuze, Felix Guattari, L’Anti-Œdipe, Minuit, Paris, 1972, p. 25.
16
A não confundir com o expressionismo coreográfico de Martha Graham por exemplo.