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Acção de Formação Têpluquê II.

Livro e Literatura Infantil e Juvenil


Coordenador: Professor Doutor Osvaldo Silvestre

A MATERIALIDADE DO LIVRO NA OBRA INFANTIL


DE MONTEIRO LOBATO (1882-
(1882-1948)

Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar.


(in Carta de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, Rio de Janeiro, 7/5/1926)

Trabalho realizado por: Maria da Graça Pimentel de Almeida

Coimbra, 19 de Julho de 2010


Apresentação

O motivo pelo qual decidi levar a cabo este trabalho prende-se com o facto de ter tido o
privilégio e a felicidade de, na minha infância, ter entrado no mundo mágico do Sítio do Picapau
Amarelo através dos livros de Monteiro Lobato. Apesar de ter tido contacto (primeiro ouvindo e
depois lendo) com os clássicos da literatura infantil, tais como O Capuchinho Vermelho, A Gata
Borralheira, O Gato da Botas, Alice no País das Maravilhas, etc., a verdade é que nenhum destes
livros me marcou tão profundamente e me incutiu tanto a paixão pela leitura como as histórias de
Lobato.

A revolução de Monteiro Lobato

Parece ser hoje consensual a ideia de que Lobato deu origem, no Brasil, à chamada
literatura infanto-juvenil. Na verdade, ele operou, neste campo, uma verdadeira revolução, já que
ninguém tinha até então (e há quem defenda que até aos dias de hoje) conseguido penetrar tão
profundamente na alma infantil e, sem artimanhas, clichés ou moralismos serôdios, fazer com que
as crianças e jovens devorassem os seus livros com um indescritível prazer. Aliás, nunca a
expressão devorar livros foi tão apropriada, já que é da boca de uma das suas personagens, Emília
(o alter ego de Lobato), que surge esta ideia de livro comestível:
O leitor vai lendo os livros e comendo as folhas. Leu uma, rasga e come! Quando chega ao
fim da leitura, está almoçado ou jantado. (...) O livro-pão! O pão-livro! Quem souber ler lê o livro e
depois o come; quem não souber come só, sem ler. Desse modo, o livro pode penetrar em todas
as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. (in A Reforma da Natureza).
Esta brincadeira mais não é do que a tentativa de Lobato de dessacralizar a leitura e retirar-
lhe a carga erudita de que até então estava imbuída; simultaneamente, introduzia a ideia de que
ao acto de ler deverá estar sempre associado um sentimento de prazer.
É com base neste espírito que surge a obra infantil de Monteiro Lobato, cuja análise, na
minha opinião, se enquadra perfeitamente no âmbito do tema proposto para o trabalho final desta
acção de formação “A Materialidade do Livro Infantil”. Na verdade, nos livros de Lobato, pode-se
dizer que tudo é material, concreto, palpável, desde, evidentemente, as capas, lombadas e folhas,
passando pelas ilustrações, até à própria linguagem. É isto que vou, seguidamente, tentar
demonstrar, a partir de algumas das muitas obras deste autor que li e reli ao longo da minha vida.

Primeiro contacto com a obra de Lobato


Quando a atenção de uma criança se dirige para um determinado livro, tal facto é motivado
por aspectos aparentemente tão prosaicos como a forma, a capa (material e ilustração), o peso, o
tipo de papel do miolo, etc. Contudo, serão estes elementos os primeiros responsáveis pelo
desenvolvimento do desejo de leitura ou, pelo contrário, pela sua rejeição.
Tal facto pode ser comprovado pela minha experiência pessoal, pois ainda hoje mantenho
bem vivo na memória o fascínio que sentia ao manusear os livros de Lobato, ao qual se seguia,
invariavelmente, uma irresistível vontade de os ler. Assim sendo, passo a apresentar alguns desses
livros, editados na década de 50 e ilustrados por André Le Blanc. Apesar de apenas ter contactado
com um exemplar de uma edição mais recente, apresentarei algumas que fui encontrando ao
longo das minhas pesquisas pela internet.

O Saci (Editora Brasiliense, 16ª Edição, 1958)

Devido às suas dimensões (22x15,5cm), peso (400g), número de páginas (118), tudo isto
aliado ao facto de possuir uma capa dura (cartonada), este livro, tal como muitos outros desta
série, constituía para mim um verdadeiro desafio, pois assemelhava-se a muitos dos livros para
adultos; por isso, sentia uma pontinha de orgulho e até, porque não, vaidade, ao dizer às pessoas
que tinha conseguido lê-lo. Contudo, devo acrescentar que vários factores contribuíram para que a
minha motivação não esmorecesse perante aquilo que parecia ser uma dificuldade, a começar
pelas belíssimas ilustrações de André Le Blanc.
Este é um dos livros com maior número de ilustrações de toda a obra infantil de Monteiro
Lobato, sendo a da capa, na minha opinião, absolutamente irresistível para qualquer criança. À
semelhança de outras obras desta série, a ilustração começa na capa, atravessa a lombada e
termina no verso da capa, o que a torna bastante mais sugestiva; por outro lado, as cores e os
motivos combinam-se de forma a estimular a imaginação e a fantasia da criança. O predomínio do
negro da noite, atenuado apenas pelo amarelo da luz que se desprende da fogueira, desperta na
criança a sensação de mistério, de medo, mesclada com a natural curiosidade perante o
desconhecido; por outro lado, e em perfeita sintonia com as cores, temos a figura do Saci (com
uma sombra sinistra junto de si) e da Cuca, personagens inspiradas no folclore brasileiro e que as
crianças associam aos seres misteriosos que habitam a floresta. É óbvio que qualquer pequeno
leitor, ao fim de algum tempo de observação desta ilustração, começa a identificar-se com o
menino representado no verso da capa (a personagem Pedrinho) numa atitude de suspense e
algum receio e, tal como ele, não vai resistir ao desejo de se embrenhar naquele mundo
fantástico.
Perante tal descrição, poder-se-ia pensar que estamos perante um livro de terror, mais do
que um livro infantil; contudo, ao longo da história, o carácter sinistro e maléfico de algumas
personagens é habilmente combinado com elementos que remetem para a inocência e candura do
mundo infantil; por exemplo, a Cuca usa uma touca que lhe confere uma aparência algo feminina
(até mesmo maternal) que corta boa parte do temor provocado pelo seu focinho de jacaré e pelo
seu corpo enrolado em cipós, resultando até numa figura, de certa forma, cómica; por seu turno,
o Saci representa uma figura excêntrica e diabólica, mas o seu
comportamento acaba por se assemelhar ao de uma criança
travessa que gosta de pregar partidas às pessoas. A figura ao
lado reproduz uma das muitas ilustrações presentes no miolo do
livro (todas a preto e branco), e é muito sugestiva da forma como
o pequeno duende interage com Pedrinho, como se de um
estranho companheiro de aventuras se tratasse. Nesta obra, a
maioria das ilustrações surge lateralmente ao texto, ou
intercalada neste, contribuindo para um reforço dos sentidos e
um melhor visualismo. Os capítulos são indicados por numeração
romana, e iniciam-se em caixa alta, a negrito, sendo a restante
fonte suficientemente grande para facilitar a leitura, mas sem exagero, de forma a não infantilizar
o texto. A primeira página de cada capítulo não é numerada, apresentando as restantes a
numeração no canto superior externo.
Ao longo dos tempos, muitas foram as edições das obras
de Lobato e muitos os ilustradores, a maioria de reconhecido
mérito, que contribuíram para as tornar mais apelativas ao
jovem público leitor. Contudo, após a década de setenta,
verificou-se uma alteração profunda no formato dos livros e
respectivas ilustrações. As versões cartonadas deram lugar às
brochuras (talvez por razões económicas), constatando-se, além
disso, um empobrecimento e uma infantilização ao nível das
ilustrações, que penso estar bem patente na edição de 2005 de
O Saci, representada acima, ilustrada por Manoel Victor Filho. Todo o mistério que se desprendia
da ilustração de André Le Blanc se desvaneceu, para além de a personagem Pedrinho ter sido
bastante descaracterizada, a meu ver, ao ser representada pela imagem de um menino mais novo.
Para além disso, esta edição é mais leve (180g) e com um menor número de páginas (46), mas de
maiores dimensões (27x21cm), passando o texto a apresentar-se em duas colunas, o que obriga a
uma diminuição drástica do tamanho da fonte.

Viagem ao Céu (Editora Brasiliense, 12ª Edição, 1958); capa cartonada; dimensões
(22x15,5cm), peso (480g), número de páginas (152);

Nesta obra está patente mais um excelente trabalho de André Le Blanc, onde predomina o
azul do céu, enquanto a maior parte dos astros é representada a amarelo, o que confere à
ilustração uma maior luminosidade. Contudo, o aspecto que me parece fazer mais apelo à
imaginação e à fantasia dos jovens leitores prende-se com o facto de os meninos serem
representados a cavalgarem um cometa, estando Pedrinho em situação de queda iminente. Mais
uma vez, à semelhança do que acontece em O Saci, a criança é atraída para um mundo de
mistério e aventura (neste caso uma viagem ao céu) passando a estar completamente motivada
para a leitura do livro. Por seu turno, o verso da capa apresenta uma nota de humor,
absolutamente condizente com o espírito de Lobato, através da representação de Tia Nastácia
montada no Burro Falante, voando pelo espaço, com o planeta Terra em fundo. Se somarmos a
tudo isto o facto de, durante muitos anos após a primeira edição desta obra, as viagens espaciais
e a chegada do Homem à Lua serem uma miragem, compreenderemos ainda melhor toda a magia
que se desprendia da leitura destas páginas.
No que respeita ao miolo do livro, constata-se que o mesmo apresenta idênticas
características às verificadas em O Saci, à excepção da localização das ilustrações, que neste caso
surgem ocupando a página inteira (ver figura abaixo), apresentando, além disso, uma legenda que
consiste sempre numa transcrição de um pequeno passo do texto, e que funciona como um
reforço da ligação entre a linguagem visual e a linguagem verbal.

Nestas páginas podemos constatar a interacção entre a ilustração e o texto. À esquerda,


dentro de uma caixa, e escrita em maiúsculas, encontramos a informação - A FAMÍLIA ESTÁ
AUSENTE. SÓ VOLTA NO COMÊÇO DE MAIO. - que constava de um letreiro colocado à entrada do
Sítio durante o mês de Abril, dedicado ao descanso. À direita, e de forma muito sugestiva,
deparamos com a representação de Pedrinho, deitado na relva, cochilando como lagarto ao sol.
Um aspecto curioso que se destaca nesta e noutras ilustrações deste livro é o facto de alguns
elementos ultrapassarem os limites da moldura onde estão inseridas (neste caso, o braço da
personagem e a flor presa entre os dedos dos pés).
Também no caso desta obra, as edições a partir da década de setenta surgem numa
apresentação em brochura, mais pobre e infantil, como se constata nos exemplos que em seguida
apresento.

1971 1995
A boneca Emília surge nestas capas com uma aparência de criança doce e inocente, a qual
não corresponde em nada à personalidade transmitida pelo texto de Lobato. De facto, nenhuma
das inúmeras ilustrações produzidas ao longo dos tempos conseguiu, a meu ver, reproduzir
plenamente a complexidade desta personagem que, apesar de ter a aparência de uma boneca de
pano, revela uma personalidade contestatária, irreverente e, por vezes, até sarcástica, sem,
todavia, chegar a ser chocante ou grosseira.

Nas ilustrações acima apresentadas, de J. U. Campos e Belmonte (décadas de 30 e 40), a


personalidade forte e determinada de Emília está, de certa forma, patente na sua postura, de
queixo empinado e mão na cintura, apesar da sua aparência ingénua e infantil.
Curiosamente, a melhor representação feita até hoje desta personagem surge, no meu
ponto de vista, em formato televisivo, na célebre série da TV Globo, Sítio do Picapau Amarelo,
transmitida também em Portugal, e onde, de 1978 até 1983, a boneca linguaruda foi interpretada
pela actriz Reny de Oliveira.

Nas imagens acima reproduzidas, podemos observar a excelente caracterização da actriz, da


qual se destacam os olhos vivos, grandes e pestanudos, o rosto sardento e os cabelos coloridos,
características que traduzem bem a inteligência, a excentricidade e o carácter azougado da
personagem.
A linguagem na obra de Lobato

No fundo não sou literato, sou pintor. Nasci pintor, mas como nunca peguei nos
pincéis a sério, arranjei, sem nenhuma premeditação, este derivativo de literatura, e
nada mais tenho feito senão pintar com palavras. (in Carta a Godofredo Rangel, 6/7/1909)

Com Monteiro Lobato iniciou-se uma nova era no que diz respeito à linguagem utilizada nos
livros destinados aos mais novos, tendo o escritor procedido a uma ruptura definitiva com o
carácter normativo, rebuscado e erudito patente nas obras escritas até então, para dar origem a
um tipo de escrita muito mais clara, criativa e expressiva, sem, apesar disso, passar a ser simplista
e menos rigorosa. Em carta enviada a Godofredo Rangel, em 1943, o escritor afirma: O certo em
literatura é escrever com o mínimo possível de literatura. (...) a mim me salvaram as crianças. De
tanto escrever para elas, simplifiquei-me.
Na verdade, em lugar da imposição de conhecimentos e de valores morais, perpassa ao
longo de toda a sua obra um enorme respeito pela inteligência das crianças, e o constante desejo
de que estas tenham um papel activo na construção do seu conhecimento e da sua visão do
mundo, estimulando-lhes a curiosidade intelectual e o sentido crítico. Ninguém como ele conseguiu
superar o problema, aparentemente paradoxal, expresso na frase: Todas as crianças gostam de
aprender, mas detestam ser ensinadas. (autor anónimo).
Assim sendo, irei em seguida apresentar algumas das principais características da escrita de
Lobato.
O primeiro aspecto que ressalta dos seus textos prende-se com a abundância de diálogos,
em detrimento das intervenções do narrador, que passam para um plano bastante secundário.
Com isto ele introduz um estilo coloquial, autêntico e espontâneo, conseguindo assim que se
desenvolva uma maior empatia entre os leitores e o texto. Por outro lado, as questões que se
levantam acerca dos assuntos, por assim dizer, mais sérios, surgem geralmente da boca dos
meninos e da boneca Emília, e nunca por intervenção do narrador, o que, pedagogicamente
falando, é muito mais eficaz, na medida em que aproveita a natural identificação dos leitores com
aquelas personagens, como se constata no seguinte excerto de Viagem ao Céu (pág. 29), quando
os meninos e Dona Benta observavam o céu estrelado:
— E a tal Cabeleira de Berenice, que a senhora falou outro dia? – quis saber Pedrinho.
— Ah, essa constelação tem um nome muito romântico. Trata-se duma história meio
compridinha…
— Conte, conte, pediram todos — e Dona Benta contou a história dos cabelos da Princesa
Berenice, espôsa de Ptolomeu Evergete, rei do Egito.”
Apesar deste estilo coloquial, Lobato não abre mão dos diversos recursos estilísticos,
apresentando-os, contudo, de forma bem divertida e compreensível para as crianças, como
acontece nos seguintes exemplos, retirados de O Minotauro, onde faz uso de sugestivas
comparações e metáforas: Emília é como certos despertadores que às vezes desandam. (pág. 98);
“Ao ouvir essa palavra, Pedrinho sentiu um sorvete na espinha.” (pág. 108); “Não há avó que não
se delicie com os nocautes que leva dos netos.” (pág. 75). É de realçar, neste último exemplo, o
emprego do neologismo nocaute, formado a partir do inglês; a este propósito, não posso deixar de
referir duas palavras inventadas por Emília, na obra Viagem ao Céu, e que são: bilongues
(aportuguesamento do vocábulo inglês belonging, com o significado de pertences, isto é, bens
possuídos por alguém), e batatal (adjectivo que significa óptimo).
Para terminar esta brevíssima incursão pela expressiva linguagem presente nas obras de
Lobato, não resisto a transcrever uma deliciosa réplica dirigida por Emília aos astrólogos, na obra
Viagem ao Céu, onde se revela claramente a veia humorística e sarcástica do autor: — Hipóteses
são as petas que os senhores nos pregam quando não sabem a verdadeira explicação duma coisa
e querem esconder a ignorância. (pág. 145).

Conclusão
Muito mais haveria a dizer acerca da magnífica obra deste escritor. Ainda assim, penso que
consegui apontar alguns dos aspectos que mais contribuíram, até hoje, para que um imenso
número de crianças de diferentes partes do mundo (sendo Portugal, infelizmente, uma das
excepções) se embrenhasse de corpo e alma na leitura dos seus livros. Podemos, deste modo,
concluir que o sonho a que se refere o excerto de uma carta dirigida a Godofredo Rangel
(transcrito na página de rosto deste trabalho) se realizou, e podemos também acreditar que, no
futuro, muitas gerações de crianças continuarão a querer morar nas páginas dos seus livros.
Gostaria ainda de salientar as guardas do livro Reinações de Narizinho (1931, Companhia Editora
Nacional), cuja reprodução acompanha o excerto da carta acima referida, e que apresentam uma
belíssima litografia de Jean Gabriel Villin.

Bibliografia

LAJOLO, Marisa e CECCANTINI, João Luís. Monteiro Lobato, Livro a Livro – Obra Infantil.
Editora UNESP, 2009
LOBATO, Monteiro. O Saci. Editora Brasiliense, 16ª Edição, 1958
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu. Editora Brasiliense, 12ª Edição, 1958
LOBATO, Monteiro. O Minotauro. Editora Brasiliense, 2ª Edição, 1950
VALE, Fernando Marques. A Obra Infantil de Monteiro Lobato – Inovações e Repercussões.
Portugalmundo Editora, 1994
Bibliografia online

A literatura infantil de Lobato: um marco na história da educação brasileira, por Helenita


Assunção Nakamura

Apostila II.Literatura Infantil. A Voz da Criança, por Maria José Palo e Maria Rosa D. Oliveira

A produção de Monteiro Lobato: Contribuições para a formação de professores a partir de


uma leitura semiótica da ilustração d’O Saci, por Fernando Teixeira Luiz

Importância e Evolução da Literatura Infantil, por Maria Laura Bettencourt Pires

Lições de natureza no Sítio do Picapau Amarelo, por Cristiane Fensterseifer

Literatura Infantil e Ilustração - Imagens que Falam, por Elisa Castro

Reflexões sobre Literatura Infantil, por Maria Laura Bettencourt Pires

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