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Roger Chartier

Nas entrelinhas do passado


Redação

Uma conversa com o historiador Roger Chartier é como um encontro com a própria erudição. Nascido em
Lyon, na França, ele conta com simplicidade como o gosto pelos textos literários, pelas leituras dos
clássicos franceses e espanhóis, ainda na juventude despertou seu interesse pela História. Sua trajetória
intelectual, então, tratou de unir as duas paixões: a história do livro e das práticas de leitura na época
moderna.

Diretor de estudos e investigações históricas da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Chartier
leciona desde 2006 no tradicional Collège de France, onde neste mês de outubro inaugura uma cadeira
intitulada “Escrita e cultura na Europa Moderna”. A criação desse espaço de reflexão é resultado da atenção
que os historiadores têm dedicado ao tema nos últimos anos. E isso inclui os estudos feitos no Brasil.

Entre sorrisos e gestos simpáticos, Chartier fala sobre seu contato com as instituições e os intelectuais
brasileiros e sobre a ausência de imprensa no Brasil colonial. Mas, especialmente, sobre a reconstrução
fascinante das formas de se produzir os livros, do impacto provocado pela presença do impresso dentro da
sociedade. A emoção de uma história da leitura que abrange aquele espaço de privacidade que se cria entre
os olhos do leitor e as letras impressas nas páginas de um livro, de papel ou virtual. Participou desta
entrevista Andréa Daher, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.

REVISTA DE HISTÓRIA - Como se deu a sua opção pela História e a sua preferência pelos estudos
de história cultural?

ROGER CHARTIER - Há um perigo em responder a esta pergunta, que é o de cair na idéia de uma
trajetória absolutamente necessária, enquanto a vida intelectual está cheia de passagens, encontros,
oportunidades. Não sei exatamente por que a História sempre me interessou, desde a escola primária. Mais
tarde, quando entrei no liceu, meu interesse se voltou ao mesmo tempo para os textos literários. Lia muitos
livros clássicos franceses, e quando comecei a aprender castelhano, também os clássicos espanhóis.
Quando comecei a fazer trabalhos acadêmicos, no final dos anos 1960, na França, a História utilizava as
técnicas estatísticas para a quantificação dos fenômenos culturais e, no fim das contas, a literatura não
desempenhava um papel particularmente importante nessa perspectiva. A história da cultura mobilizava as
mesmas técnicas, as mesmas fontes que a história demográfica, social e econômica, baseada em dados
objetivos. Ela não permitia, necessariamente, responder a perguntas importantes.

RH - Que perguntas seriam importantes para relacionar a História e a literatura?

RC - Por exemplo, era possível, embora difícil para os historiadores dos anos 1960 e 70, reconstruir a
produção tipográfica de uma cidade durante um certo período, reconstruir o conteúdo das bibliotecas
privadas, a partir das fontes cartoriais, a partir dos catálogos impressos. Mas o que essas análises diziam
sobre a leitura? O que diziam sobre a relação entre o leitor e os textos que foram lidos? Evidentemente,
muitos liam textos que não possuíam e, como nós, possuíam livros que nunca leram. E, dentro dessa
perspectiva, tratava-se de construir um projeto compartilhado de uma história da leitura e dos leitores,
entendendo leitura como apropriação do texto, ou seja, o texto incorporado, transformado pelos indivíduos
em algo que dava sentido à sua relação com o mundo.

RH Por que o interesse pelas práticas de leitura na época moderna?

RC A palavra “moderna”, pelo menos em francês, tem um sentido ambivalente, porque para muitos significa
o tempo contemporâneo. Há os que pensam que saímos da modernidade, que há uma pós-modernidade.
Mas para os historiadores, como se sabe, a época moderna vai do século XVI ao XVIII, o que se classificou
também de Antigo Regime em francês, a partir do momento em que se pensava a Revolução como um novo
regime. Na tradição francesa, os historiadores que líamos, e que têm uma força de escrita ou de invenção
intelectual ou conceitual, trabalhavam, em sua grande maioria, sobre a época moderna. Lucien Febvre,
fundador dos Annales com Marc Bloch, era um historiador do século XVI. Braudel era um historiador
modernista.

RH E como ocorreu sua aproximação com o Brasil?

RC É verdade que se pode ter uma relação com um país, com uma cultura, sem nunca ter estado
efetivamente presente nele. Na França, fazíamos muitas leituras sobre o Brasil. Por exemplo, Michel de
Certeau ficou fascinado com o texto de Jean de Léry. Isto é mais um Brasil, sem dúvida, textual, imaginado,
conhecido por intermédio de obras e de historiadores. Depois, em 1993, tive o primeiro convite para vir ao
Rio de Janeiro, no aniversário do CPDOC, na Fundação Getulio Vargas. Começaram, então, relações
regulares com diversas instituições, colegas, comunidades intelectuais e científicas. E isso foi possível, me
parece, porque no Brasil havia também interesses paralelos, principalmente em torno da história das
práticas de leitura.

RH No Brasil, qual a razão deste interesse?

RC No Brasil, a convergência das ciências sociais, como a sociologia e a antropologia, a dimensão histórica
e a importância central do tema para a educação criaram este interesse pela história das práticas de leitura.
O deslocamento que foi feito da história do livro para a história das práticas de leitura, questionando suas
possibilidades, os tipos de fontes, o método de investigação, tem encontrado interesse por parte deste
mundo intelectual que se dedica à mesma perspectiva. A cada dia, produzem-se novos textos importantes e
interessantes no Brasil sobre esses temas.

RH Como o historiador deve proceder para pensar as práticas de leitura passadas?

RC Nosso grande risco é o de projetar no passado nossas maneiras de ler, pensar, sentir. E sempre
devemos pensar na diferença: reconstruir um mundo, que é um mundo diferente, por meio da postura
antropológica que deve ter o historiador. Hoje em dia, de modo geral se lê com os olhos, silenciosamente. É
como se tivéssemos estabelecido um espaço de privacidade entre o leitor e o que ele lê. Aliás, ler no ônibus
ou na biblioteca pode ser definido como um espaço abstrato, imaginário, espaço em que o texto encontra os
olhos. A prática de leitura em voz alta tem se mantido apenas em circunstâncias institucionais: lê-se em voz
alta na igreja, nas aulas da universidade para ditar conferências, no tribunal para pronunciar sentenças, na
escola em situação de aprendizagem, entre outras. No entanto, na época moderna, a leitura em voz alta era
muito mais presente dentro da sociedade.

RH Como se lia na época moderna?

RC Muitas formas regulares de sociabilidade, como o salão e as sociedades literárias, estavam fundadas
sobre uma leitura compartilhada que podia, depois, alimentar a conversação e o intercâmbio. Desta
maneira, há uma leitura em voz alta para os outros, dentro dos meios particularmente alfabetizados, em que
cada um podia ler por sua própria conta, mas que é uma forma de compartilhar o texto e, a partir daí, iniciar
uma conversação, uma reflexão coletiva. E isto podia acontecer também em lugares menos regulares, por
exemplo, como a leitura em voz alta durante uma viagem. Pensava-se, assim, que o texto tinha uma força
maior quando era lido por uma voz que o retirava da inércia. Esta é uma primeira diferença entre a era
moderna e a nossa: a onipresença da leitura em voz alta como forma da sociabilidade. Há uma segunda
diferença que vemos somente hoje em dia, quando se fala de um analfabetismo funcional, quer dizer, de
pessoas que podem ler, mas apenas certos tipos de textos, e que para entender o texto devem ouvi-lo, em
certo sentido, pronunciando-o ao mesmo tempo. E este tipo de capacidade, que é uma capacidade
particular de leitura, certamente era muito mais difundida e caracterizava uma população maior nas
sociedades modernas do que hoje, quando se transformou em um dos critérios do analfabetismo.

RH E como pensar em lugares marcados pela ausência da imprensa, como o Brasil colonial?

RC Não havia imprensa, mas circulavam panfletos, libelos, sermões e pasquins em forma manuscrita. Esses
materiais desempenharam um papel importante em diversos momentos históricos do Brasil antes da
imprensa. Não se deve confundir nunca a circulação da produção escrita com a presença de imprensa numa
determinada situação histórica e geográfica. Evidentemente, ao contrário, quando há oficinas de imprensa, a
circulação ou a produção dos livros pode se transformar, assim como a produção de textos impressos que
não são livros, como os panfletos e os libelos. Todo um mundo de impressos que se relacionam com a
atividade comercial, com a atividade administrativa ou religiosa implicava também um uso mais freqüente da
escrita manuscrita. Afinal, muitos desses textos impressos tinham espaços em branco que esperavam uma
assinatura, um nome de pessoa, uma menção manuscrita. O paradoxo é este: talvez a invenção de
Gutenberg tenha transformado a circulação dos livros, mas transformou ainda mais a cultura manuscrita.

RH Qual seria o foco de interesse de uma história da cultura escrita no Brasil colonial?

RC Se faltava a imprensa, talvez se devesse medir, no Brasil, como era esse papel do escrito dentro dessas
relações comerciais, administrativas e religiosas. Não se deve focar somente na cultura livresca. Talvez se
devesse pensar que muitos textos impressos não são livros, e que muitos textos impressos que não são
livros implicam o uso da escrita manuscrita. Significa pensar que a originalidade de uma situação histórica
em que não existia a imprensa estivesse mais vinculada à ausência de documentos impressos no cotidiano
do que à ausência dos livros. Afinal, como sabemos, havia muitos livros no Brasil, inclusive os que a
Inquisição queria proibir e destruir. Esta seria uma maneira de esboçar o tema dentro da perspectiva de uma
história da cultura escrita, e não somente na dimensão da cultura dos livros impressos.

RH Que outros campos de investigação no Brasil se relacionam com as suas pesquisas?

RC Creio que a História da Vida Privada no Brasil. O projeto francês foi dirigido por Georges Duby e Philippe
Ariès, e depois da morte de Ariès, pediram-me para dirigir um volume intitulado Do Renascimento às Luzes.
Tratava-se, é claro, da vida privada no mundo ocidental europeu. Eu não li todos os volumes da história da
vida privada no Brasil, mas no primeiro tomo, o que me chamou atenção foi, em termos de comparação, que
nos países europeus, o modelo político supõe a existência de uma autoridade estatal que se impõe em um
território mais ou menos estável e mais ou menos controlado. Há um vínculo entre o exercício de poder,
configurações sociais e estruturas psicológicas. Evidentemente, quando se lê o primeiro volume da história
da vida privada no Brasil, fica-se diante um mundo totalmente diferente, pois uma reflexão sobre a dimensão
territorial e a dimensão política brasileiras pode encontrar figuras totalmente diferentes, em que há
imbricações transculturais que criam formas de relação do indivíduo com as diversas definições de privado:
a solidão, a família ou os grupos de sociabilidade. Ainda que utilizando os mesmos conceitos, haverá
sentidos totalmente diferentes em relação à Europa no que diz respeito às estruturas familiares, às formas
de experiência da privacidade, à relação entre a existência cotidiana e as crenças mais profundas, como,
por exemplo, as religiosas.

RH A sua entrada no Collège de France, em 2007, acontece justamente com a criação da cátedra
“Escrita e Cultura na Europa Moderna”. O que significa a criação de uma cátedra como esta?

RC É necessário definir o que é o Collège de France, porque é uma instituição tão rara que não tem
equivalentes fora da França. Foi fundada em 1530 por Francisco I para ditar matérias que não eram
ensinadas na universidade. E as primeiras cátedras foram as de Hebraico, de Grego e de Matemática,
enquanto que a Universidade de Paris ditava a formação do Latim e, como se sabe, a Teologia, a Medicina
e o Direito. E a tradição se manteve, mais ou menos, através da época moderna. Um segundo momento de
importância do Collège de France foi o século XIX, quando o exercício das cátedras era utilizado como uma
forma de oposição ao Segundo Império (1852-1870). Ao longo do século XX, foi uma instituição que
reconheceu para as ciências exatas uma forma de excelência. No caso das Humanidades ou das Ciências
Sociais, se podem encontrar nos corredores do Collège de France fantasmas impressionantes, como
Braudel, Foucault e Bourdieu, entre outros. A cátedra que ocuparei a partir deste ano se refere,
especificamente, ao tema das múltiplas formas do escrito, da cultura escrita – não somente a impressa –
nas sociedades, do século XVI ao século XVIII, e sua importância para as diversas formas culturais. Este
espaço só foi possível, me parece, porque nas últimas décadas foram construídos os saberes necessários
para fundamentar uma cátedra como essa.

RH Como se pode pensar hoje as relações entre a história científica e o grande público?

RC Isto me parece estar relacionado com uma questão essencial, que é a capacidade, hoje em dia, de
representação do passado. A história como disciplina, com seus próprios métodos, critérios de validação e
exigências críticas, tal como se entende pelo menos a partir do século XIX, como uma disciplina que produz
conhecimento o mais adequado possível ao seu objeto, está capacitada para representar o passado, tendo
ao seu lado a literatura. Isto não é uma novidade. Há, ainda, diversas formas de memória, seja a memória
de um grupo, de indivíduos, comunidades, ou a memória mais institucionalizada do Estado, das
comemorações e dos lugares de memória, dos museus, dos monumentos, que consistem também numa
capacidade de representar o passado. E a história como disciplina não é necessariamente a mais poderosa
nesse domínio, pois a força de atração do romance histórico, se for bem escrito ou se for escrito segundo os
padrões que permitam encontrar um público amplo, é maior.

RH Que força tem hoje a literatura, especialmente o romance histórico?

RC De modo geral, as obras de Shakespeare têm mais força que os relatos dos cronistas. Assim acontece
com as formas de representação ficcionais da história, que são os filmes ou as telenovelas. O romance
histórico tem como princípio tornar a história presente – algumas vezes, até o ponto de uma imitação das
técnicas e da prova histórica, como é o caso das biografias imaginárias ou dos romances que são escritos
como se fossem relatos históricos, até mesmo documentados. Há escritores que jogaram com isso, como é
o caso de Borges, que se apropriou das técnicas mais evidentes da prova histórica para produzir uma
ficção.

RH Qual seria o papel da imprensa na difusão do saber histórico?

RC Parece-me que pode desempenhar um papel essencial. As revistas de divulgação historiográfica


correspondem claramente a uma expectativa do público, oriunda da sua relação com a ficção ou com a
memória, de comparar, de comprovar uma experiência do passado através do discurso dos historiadores.
Não servem para pensar que vamos restituir a história como a única forma de representação do passado.
Podem permitir aos indivíduos compreender que cada um pode ter um extraordinário prazer lendo romances
históricos – inclusive os historiadores mais sérios –, mas que não se trata do mesmo registro de relação com
o passado que o de uma análise que se fundamenta num trabalho de definição de um objeto, de construção
de suas fontes, de eleição de um modelo de explicação e de submissão aos critérios de validação da
comunidade científica de seu momento. Neste ponto, me parece que há uma tarefa importante destas
revistas de grande circulação, mas, evidentemente, com uma tensão permanente: como tornar acessível o
saber histórico para pessoas que não são profissionais, e sim leitores de História, sem que a História deixe
de ser, ao mesmo tempo, um saber científico? Trata-se de manter a relação com o saber tal como se
constrói dentro do mundo universitário, acadêmico, científico, sem que se caia na tentação da história das
narrativas de destinos de rainhas, de eventos extraordinários ou de acontecimentos políticos, a história mais
fácil e imediatamente comunicável.

VERBETES

Jorge Luís Borges (1899-1986)


Poeta e ensaísta argentino, é um dos mais importantes autores da literatura mundial. De seus escritos
destacam-se os contos “A Biblioteca de Babel”, publicado em Ficções (1944), e “O Zahir”, em O Aleph
(1949), ambos marcados pelo realismo fantástico.

Escola dos Annales


Movimento historiográfico surgido na França em 1929, conhecido por propor novas fontes, novos temas e o
uso de diferentes disciplinas no estudo da História. Foi fundada pelos historiadores franceses Lucien Febvre
(1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944). Um dos mais importantes expoentes dos Annales foi Fernand
Braudel (1902-1985).

Georges Duby (1919-1996)


Historiador francês especialista em Idade Média, professor do Collège de France entre os anos de 1970 e
1992. É autor de clássicos como O tempo das catedrais (1979) e O ano mil (1986).

Philippe Ariès (1914-1984)


Dedicou-se ao estudo da história da família, da infância e da morte. Seus livros mais conhecidos no Brasil
são História Social da Criança e da Família (1960) e Um Historiador Diletante (1980).

Segundo Império
Regime monárquico instituído na França por Napoleão III, de 1852 a 1870. Neste período, Paris foi o centro
de grandes exposições que refletiam o desenvolvimento econômico francês e o progresso cultural e
industrial europeu.

William Shakespeare (1564-1616)


Dramaturgo inglês, considerado um dos mais importantes teatrólogos da Humanidade. Autor, entre outras
peças, de “Hamlet”, “Romeu e Julieta” e “Ricardo III”.

Conversa com Roger Chartier


Por Isabel Lustosa
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"Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo


de que todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à
posição de quem o enuncia e nunca ao objeto", afirma o historiador em
entrevista exclusiva

Encontrei Roger Chartier no hall da Casa de Rui Barbosa no dia anterior a


essa entrevista. Ele voltava do almoço com Sandra Pesavento, sua amiga
e organizadora do Seminário de História Cultural, do qual estava
participando. Sandra já lhe havia falado de mim e dito do meu interesse
em conversar com ele, de modo que quando nos vimos de longe ela me
acenou. Imediatamente, o professor Chartier veio ao meio encontro com
aquele sorriso simpático que é uma de suas características. Pois Roger
Chartier, a par de ser uma celebridade do mundo acadêmico, é
extremamente simples, afável, quase carioca na maneira natural e bem-
humorada de se aproximar das pessoas, de deixá-las à vontade.
Marcamos a entrevista para a manhã do dia seguinte (16/09/2004), no
Hotel Glória, onde o historiador gosta de se hospedar no Rio de Janeiro.

Sabendo o quanto Chartier tem sido entrevistado por historiadores e


jornalistas e seguindo o meu pendor natural para conhecer a vida das
pessoas, orientei minhas primeiras perguntas no sentido de conhecer um
pouco da biografia do entrevistado. Chartier resistiu bravamente a se
tornar ele mesmo objeto de estudo, mas no exercício legítimo desta
resistência nos proporciona aqui uma interessante reflexão sobre a
questão biográfica.

Entrevistado que facilita o trabalho do entrevistador, pois reage aos


temas com clareza, vivacidade e erudição, o que ressalta do discurso de
Chartier é o seu permanente interesse pelos temas relacionados ao seu
trabalho. A maneira articulada e inteligente como as suas respostas
brotam denunciam o intelectual em que trabalho e vida se confundem, tal
como na proposição de Wright Mills: "A erudição é uma escolha de como
viver e ao mesmo tempo uma escolha de carreira; quer o sabia ou não, o
trabalhador intelectual forma seu próprio eu à medida que se aproxima
da perfeição de seu ofício".

Diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e


professor especializado em história das práticas culturais e história da
leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos historiadores da
atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. Sua
reflexão teórica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos em
história cultural e estimula a permanente renovação nas maneiras de ler
e fazer a história.

Chartier foi professor convidado de numerosas universidades estrangeiras


(Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John Hopkins, Chicago, Pensilvânia,
Berkeley etc) e publicou no Brasil os seguintes livros: “História da vida
privada, vol. 3: da Renascença ao Século das Luzes” (Companhia das
Letras); “Cultura escrita, literatura e história” (Artmed), “Formas do
sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação” (Mercado de
Letras), “Os desafios da escrita” (ed. da Unesp), “A aventura do livro”
(Unesp), A beira da falésia” (Editora da Universidade), “Do Palco à
Página” (Casa da Palavra), “A ordem dos livros” (UnB), “História da
leitura no mundo ocidental” (Ática), Práticas da leitura” (Estação
Liberdade), “O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente”
(sob a direção de M. Baratin e C. Jacob, Ed. UFRJ) e “Leituras e leitores
na França do Antigo Regime” (Unesp).

Quem é Roger Chartier? Como a sua obra se relaciona com a sua


história de vida?

Roger Chartier: Tenho sempre uma certa prudência com questões


pessoais. Acho que, quando a gente fala de si, constrói algo impossível
de ser sincero, uma representação de si para os que vão ler ou para si
mesmo. Gostaria de lembrar, a este propósito, o texto de Pierre Bourdieu
sobre a ilusão biográfica ou a ilusão autobiográfica. Bourdieu critica este
tipo de narrativa em que uma vida é tratada como uma trajetória de
coerência, como um fio único, quando sabemos que, na existência de
qualquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, as
oportunidades.

Outro aspecto da ilusão biográfica ou autobiográfica é pensar que as


coisas são muito originais, singulares, pessoais, quando são, na verdade,
freqüentemente, experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas
pertencentes a uma mesma geração. Ao fazer um relato autobiográfico é
quase impossível evitar cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da
singularidade das pessoas frente às experiências compartilhadas ou a
ilusão da coerência perfeita numa trajetória de vida.

Penso que esse tipo de relato só tem sentido quando podemos relacionar
um detalhe, algo que seria puramente anedótico, com o mundo social ou
acadêmico em que se vive. Pierre Nora lançou a idéia de “ego-história”
numa coletânea de ensaios onde estão reunidas oito autobiografias:
George Duby, Jacques Le Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autores
conhecidos falando sobre sua trajetória pessoal ou relacionando-a com a
escolha de determinado período ou campo histórico. Mas pessoalmente
considero muito difícil evitar o anedótico ou o demasiado pessoal nesse
tipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu próprio
destino social? Acho que é preciso primeiro situar-se dentro do mundo
social e daí fazer um esforço de dissociação da personagem: a
personagem que fala e a personagem sobre a qual se fala, que é o
mesmo indivíduo.

Isto posto, podemos entrar, com uma certa cautela, na resposta à sua
pergunta. Nasci em Lyon e pertenço a um estrato social fora do mundo
dos dominantes, sem tradição no meio acadêmico. Minha trajetória
escolar e universitária foi conseqüência desta origem. Na França, o traço
dominante era a reprodução: o sistema escolar e universitário levava a
que os filhos reproduzissem as mesmas posições sociais dos pais. Pierre
Bordieu e Jean Claude Passeron trataram desse tema em dois livros. O
primeiro, publicado em 1964, chamava-se “Os herdeiros” e o segundo, de
1970, “A reprodução”.
Naturalmente que há espaço para que as pessoas que vêm de outro
horizonte social possam driblar essa tendência. A minha própria trajetória
pertence a esta exceção. Para entendê-la é preciso um certo
conhecimento da realidade social do pós-guerra na França, entre os anos
1950 e 60, quando predominava o sistema de reprodução, mas onde
havia também alguma possibilidade de ascensão para gente de outra
origem social. Acho, no entanto, que quando há este tipo de tensão entre
uma forma dominante de escola e uma individualidade de origem
diferente que consegue furar este sistema sempre se mantém algo dessa
tensão, dessa dificuldade.

O historiador inglês, Richard Hoggart, em seu livro “The uses of


literacy”, reflete sobre a sua própria trajetória de estudante
bolsista oriundo de uma família de operários. Esta filiação ao lugar
de origem, essa relação entre a autobiografia e objeto de estudo,
foi extremamente proveitosa no caso de Hoggart, não lhe parece?

Chartier: Traduzido para o francês como “La culture du pauvre”, o livro


de Hoggart é realmente maravilhoso, pois consegue articular elementos
biográficos com uma reflexão profunda sobre a mídia voltada para as
classes populares, neste caso a classe operária inglesa dos anos 1940 e
50. O principal propósito desse livro é questionar a idéia segundo a qual
todos os leitores ou ouvintes das produções dessa indústria cultural
acreditavam piamente em suas mensagens. Viveriam sob uma forma de
alienação, submetidos aos modelos sociais que as mensagens dos “mass
media” do tempo -rádio, cinema e revistas- impunham.

Hoggart queria mostrar que havia uma relação muito mais complexa,
ambivalente, entre crer e não crer, aceitar a ficção e, ao mesmo tempo,
ter a consciência de que se trata de um mundo irreal, um mundo de
fábula, de ficção. A oposição entre nós e os outros era um elemento
muito claro no livro de Hoggart, e a maneira como estabelece a relação
entre história pessoal e discussão sociológica me parece muito justa e
adequada.

Em Lyon, no entanto, não éramos uma classe operária no mesmo sentido


de Hoggart. Vivíamos num mundo de artesãos que trabalhavam de uma
maneira ou de outra na atividade dominante da cidade que é a seda.
Havia algo como o que descreve Hoggart na relação com os horóscopos,
com os diários de grande tiragem e as canções. Mas não havia apenas a
circulação dos produtos culturais que descreve Hoggart, havia também
um certo gosto por uma parte da cultura dominante. A ópera, por
exemplo, era muito popular.

Na Lyon da minha infância ia-se à ópera como se ia ao cinema, duas, três


vezes por semana. Era uma apropriação muito popular não de todo o
repertório da ópera, mas principalmente da ópera italiana, de Verdi, dos
franceses. Meu pai viu “Carmen” 25 vezes. Essa relação mudou entre os
anos 1960 e 1970, quando este mundo dos artesãos foi gradativamente
desaparecendo e, em seu lugar, surgiu uma fratura mais profunda entre o
mundo dos que vão à ópera e o dos que gostam de outra forma de
diversão.

Um aspecto que me pareceu interessante no livro de Hoggart é a


importância que a literatura teve para a sua formação. Imagino
que na França, onde a tradição literária é tão forte, uma formação
baseada nessas leituras de mocidade deve influir na possibilidade
de romper com o sistema da reprodução. Você não acha?

Chartier: De fato, na França, a literatura tinha muita importância na


escola. Principalmente porque o currículo da escola primária utilizava
para diversos exercícios pedagógicos fragmentos dos clássicos, de Victor
Hugo, dos novelistas do século 19, como Alphonse Daudet. Dessa
maneira, como a escola é obrigatória, cada um, até a idade de 14 anos,
inclusive a gente das camadas mais populares, tinha uma relação direta,
ainda que fragmentária, com esse corpus literário que define a literatura
francesa.

Para os alunos dos liceus, havia também todo o repertório da literatura


clássica do século 17: Corneille, Molière, Racine. Havia uma impregnação
muito forte daquilo que, numa definição canônica, chamam de literatura.
Não sei se isso ainda é assim hoje em dia, porque a escola primária ou
secundária se desprendeu um pouco desse corpus canônico de textos e se
abriu a autores contemporâneos.

A mídia também mudou muito. Recordo que nos anos 1960 havia somente
uma rede de televisão que saía do ar às oito e meia da noite e onde se lia
Corneille. Apresentar numa rede pública, com uma programação única
para todos, às oito e meia, um texto clássico, é algo impensável hoje.
Salvo nos canais particulares destinados a um certo público.

O mundo mudou profundamente no final dos anos 1960. 1968 foi um


marco da ruptura cultural, não necessariamente no sentido que
usualmente se pensa: de uma abertura, da quebra da autoridade, de
formas mais abertas de comportamento. Mas o que também houve a
partir de 68 foi o agravamento desse espírito de comercialização, com a
destruição da dimensão cultural, por exemplo, da televisão.

Destruição no sentido de que não há apenas a possibilidade


compartilhada por toda a gente de ver ou desligar a televisão. Agora há
uma fragmentação infinita, há os canais para os que gostam de pop, para
os que gostam de rock, da música clássica. É uma forma de fragmentação
cultural que também se pode ver como uma forma de liberdade e de
diversificação. Mas ao mesmo tempo, 68 marca também o
desaparecimento de uma cultura compartilhada e arraigada numa
referência como a literatura nacional e universal.

A minha geração foi, no Brasil, talvez a última em que a leitura dos


clássicos da literatura universal era um hábito. Acho que isso criou
um universo de referência para a nossa geração que é diferente
dos jovens de hoje. De que maneira esse universo de referências
culturais originadas da leitura dos clássicos está na base da visão
de mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de que
maneira esse universo de referência cultural mais ampliado
contribuiu para a aceitação de abordagens interdisciplinares?

Chartier: Não devemos pensar que o passado era necessariamente


melhor. Há autores que se especializaram nesse tipo de diagnóstico
pessimista. Acho, ao contrário, que hoje se lê mais do que nos anos
1950. Inclusive porque o computador não é apenas um novo veículo para
imagens ou jogos. Ele é responsável também pela multiplicação da
presença do escritor nas sociedades contemporâneas. No computador
tanto se pode lê os clássicos como publicações acadêmicas e revistas em
geral. Podem não ser necessariamente leituras fundamentais,
enriquecedoras, mas são leituras.

Não se pode dizer, portanto, que estejamos assistindo ao


desaparecimento da cultura escrita. O problema é qual cultura escrita
persiste. É difícil entender a articulação sempre instável entre as novas
formas culturais, as novas preferências dos jovens e o que se mantém
como uma referência fundamental. O fato de que os textos lidos pelos
adolescentes no computador, suas leituras prediletas, não pertençam
àquele repertório definido como literário não é necessariamente algo
ruim. O problema está numa certa discrepância entre essa nova cultura e
os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais consistentes e
forneceriam mais recursos para a compreensão do mundo social, a
compreensão de si mesmo e a representação do outro.

Para isto não tenho resposta, mas me parece que há duas posições que
se deve evitar. Uma é a que considera que essa presença da literatura na
realidade cotidiana pertence a um mundo definitivamente desaparecido.
Não me parece um diagnóstico adequado, pois há, na atualidade, um
esforço dentro da escola e fora da escola para preservar a cultura
literária. O que torna difícil identificar esse esforço é que, se antes ele
era evidente e se concentrava em algumas atividades, hoje ele se
diversifica através, por exemplo, dos novos e variados meios de
comunicação.

A outra posição é a dos que pensam que não há nada de proveitoso, útil
ou fundamental nesse novo mundo. Postura que me parece muito
inadequada quando pensamos nas possibilidades educativas criadas pelas
novas tecnologias, nas diversas experiências para a alfabetização, para a
transmissão do saber à distância.

Acho que é responsabilidade dos intelectuais, dos meios de comunicação,


dos editores, assegurar a transmissão de um saber sobre o mundo,
através de projetos que vinculem a dimensão estética ou a dimensão
científica com a existência cotidiana. Para que as pessoas não sejam
totalmente submetidas às leis do mercado, à incerteza ou à inquietude, o
essencial é dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o mundo
em que vive e a sua própria situação neste mundo. Esse saber que pode
vir da sociologia, da literatura, da história, possibilitaria a resistência às
imposições dominantes que vêm de todas as partes: dos discursos
ideológicos, das mensagens dos veículos de comunicação, da cultura de
massa etc.

O que Hoggart descrevia em seu maravilhoso livro era a maneira como


também podemos nos plasmar, nos construir através do conhecimento.
Trata-se de uma experiência densa e forte que se pode obter através dos
textos literários, do presente ou do passado, uma perspectiva que
envolve tanto a transmissão da beleza, mas também uma dimensão
crítica. Mas me parece que, se há um caminho não literário para se
adquirir saber sobre o mundo social, por que procurar os instrumentos
mais vulneráveis para decifrar esse mundo?
Apesar da valorização teórica que a moderna historiografia tem
promovido da narrativa sempre vejo os historiadores a
trabalharem ainda com um certo pudor, acompanhando cada fato
narrado de uma análise minuciosa daquele aspecto ou então
recorrendo ao chamado argumento de autoridade. Parece-me que
isso prejudica o resultado do ponto de vista da narrativa, pois, em
geral, a torna fragmentada e desinteressante. O que você acha?

Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma


de saber controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas
estatísticas, conceitos teóricos etc. Acreditavam que o saber inerente à
história devia se sobrepor à narrativa, pois achavam que o mundo da
narrativa era o mundo da ficção, do imaginário, da fábula. Desta
perspectiva os historiadores rechaçaram a narrativa e desprezaram os
historiadores profissionais que seguiam escrevendo biografias, história
factual e tudo isso. A tradição francesa dos Annales foi uma das que
levou mais longe essa tendência.

Hoje, no entanto, a situação tornou-se muito mais complicada. Uma das


razões é que autores como Hayden White e Paul Ricoeur mostraram que,
mesmo quando os historiadores utilizam estatísticas ou qualquer outro
método estruturalista, produzem uma narrativa. Quer dizer: quando
dizem que tal coisa é conseqüência ou causa de outra, estabelecem uma
ordem seqüencial, se valem de uma concepção da temporalidade, que é a
mesma de uma novela e de um relato historiográfico.

Ao mesmo tempo, entidades abstratas, como classes, valores e conceitos,


atuam no discurso dos historiadores quase como personagens, havendo
toda uma forma de personificação das entidades coletivas ou abstratas.
Dessa forma o historiador não pode evitar a narração, inclusive quando a
rechaça conscientemente. Pois a escrita da história por si mesma, pela
maneira de articular dos eventos, pela utilização da noção de
causalidade, trabalharia sempre com as mesmas estruturas e com as
mesmas figuras de uma narrativa de ficção.

É a partir desse parentesco entre a narrativa de ficção e a narrativa


histórica que se coloca a questão: onde está a diferença? Alguns críticos
pós-modernos adotaram um relativismo radical e decidiram que não havia
diferença e que a história era ficcional não apenas no sentido da forma.
Ou seja: não diziam que não há verdade na história, mas que a verdade
do saber histórico era absolutamente semelhante à verdade de uma
novela.

Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo


específico no discurso histórico, pois este é construído a partir de
técnicas específicas. Pode ser uma história de eventos políticos ou a
descrição de uma sociedade ou uma prática de história cultural, para
produzi-la o historiador deve ler os documentos, organizar suas fontes,
manejar técnicas de análise, utilizar critérios de prova. Coisas com as
quais um novelista não deve se preocupar.

Portanto, se é preciso adotar essas técnicas em particular, é porque há


uma intenção diferente no fazer história: que é restabelecer a verdade
entre o relato e o que é o objeto deste relato. O historiador hoje precisa
achar uma forma de atender a essa exigência de cientificidade que supõe
o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares, sabendo que
seja qual for a sua forma de escrita esta pertencerá sempre à categoria
dos relatos, da narrativa.

Alguns historiadores decidiram então que não valia à pena lutar contra
algo inevitável e passaram a utilizar-se dos recursos mais persuasivos da
narrativa a serviço de uma demonstração histórica. Adotaram formas de
narrativa que permitiam assegurar, digamos assim, a mise-en-scène da
prova. Historiadores como Carlo Ginzburg utilizam técnicas de narração
que são até mesmo mais cinematográficas do que propriamente
novelescas. Outros entrecruzam diversas histórias de vida.

Acho que a situação atual não é a de uma oposição absoluta entre a


narrativa como ficção e a história como saber, mas de um saber que se
escreve através da narrativa e daí ser necessária uma reflexão sobre que
tipo de narrativa adotar. Uma narrativa onde se respeite o discurso do
saber, mas que, ao mesmo tempo, seja atrativa para um público de
leitores. Não é uma tarefa fácil, mas há exemplos que demonstram que
pode ser feito.

Talvez aqui se possa colocar também a questão do talento do


narrador. Alguns livros de história, como os de Robert Darnton,
Nathalie Zemon Davies e Michel Volvelle, são bem escritos,
agradáveis de ler...

Chartier: É uma questão de talento, sim, mas também do campo de


investigação. Penso que há formas de saber nas ciências humanas e
sociais que são absolutamente fundamentais, mas que não podem se
apresentar através de maneiras tão sedutoras ou mesmo que não
pretendem necessariamente encontrar um grande público.

Se alguém trabalha, por exemplo, sobre técnicas arqueológicas na


Mesopotâmia antiga ou sobre algum tema da história econômica mais
difícil, evidentemente os critérios de cientificidade exigidos para a
realização do trabalho o afastam de um formato mais sedutor e fácil para
os leitores. Se alguém trabalha, por exemplo, sobre a filologia grega,
estabelecendo o texto de uma tragédia de Sófocles, é uma contribuição
fundamental para o conhecimento, mas não vamos pensar que vá vender
100 mil exemplares.

Digo isso porque me parece que na França, particularmente, após o


sucesso de livros como o “Montaillou”, de Le Roy Ladurie, fixou-se a idéia
de que toda a obra de história deveria necessariamente atrair um grande
público. A partir daí as editoras passaram a privilegiar os livros que
tratavam de temas que estivessem na moda, adotando uma atitude de
desprezo para com trabalhos mais modestos ou difíceis.

Por um lado é muito bom pensar que o historiador não deve permanecer
em sua torre de marfim, que assim está fazendo algo útil ao fornecer um
instrumento crítico ao público para pensar seu passado coletivo e seu
mundo contemporâneo. Mas isto se torna perigoso quando a busca pelo
êxito afasta o historiador dos objetos ou critérios próprios da prática
científica.
O importante é estabelecer formas de mediação. Atualmente, junto com
Michèlle Perrot e Jacques Le Goff, ocupo-me de um programa de rádio em
Paris, “Les matins de France culture”, onde discutimos livros que
dificilmente podem encontrar um grande público. Mas, se há a mediação,
o público pode ter idéia do progresso do saber. Isso é um exemplo do que
considero uma forma mediatizada de conhecimento.

Há algum tempo fiz a resenha de um livro de ensaios do


antropólogo James Clifford. Tive uma certa sensação de
desconforto diante de leitura pós-moderna e desconstrutivista que
ele faz da tradição etnográfica. A etnografia foi um instrumento
criado pela cultura ocidental para entender pessoas de outras
culturas, não significando que aquelas pessoas tivessem a mesma
ânsia de nos entender ou de entenderem a si mesmas, ou, ainda,
que achassem que a etnografia seria a ferramenta adequada para
isto. Cada cultura tem os seus próprios meios de se relacionar com
o mundo. A meu ver, sempre se parte de uma base histórica,
ideológica ou cultural para fazer alguma coisa, para pensar ou
para agir. O pós-modernismo foi um exercício de desconstrução da
cultura ocidental, e nossa base é o universo de informações que
compõem a cultura ocidental. Ela é que nos fornece os
instrumentos e a motivação para pensarmos sobre nós e sobre o
mundo. E até para fazer a crítica dessa maneira de pensar.

Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford está


em paralelo ao de Hayden White. Acho que é algo legitimo fazer
historiadores e antropólogos refletirem sobre a própria escrita. Durante
muito tempo a escrita foi vista como um meio neutro para falar sobre o
passado ou para descrever o outro. Daí ter sido fundamental fazer dela
um objeto de reflexão, tal como fez White, ao pensar sobre o papel, na
escrita do historiador, de elementos como a retórica e as figuras que se
manejam para escrever sobre o passado. O mesmo fez James Clifford com
relação aos dispositivos que os antropólogos utilizam em seu trabalho.

Outra contribuição fundamental dessa corrente foi a idéia de que há uma


descontinuidade necessária entre o presente e o passado, ou entre o
antropólogo e o outro, a qual não pode ser anulada pela idéia de
universalidade e de compreensão de si próprio. Tal concepção se apóia
sobre o conceito de descontinuidade de Foucault, que demonstrou que
existe ruptura em conceitos como de loucura, medicina, clínica e
sexualidade. Essa atitude proporciona uma consciência dos limites da
utilização de técnicas de investigação ou de observação. Supõe também
uma forma de ética na investigação, no encontro com o outro, do passado
ou de hoje.

Mas tanto no texto de White quanto no de Clifford há um relativismo


absoluto. Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-
modernismo de que todos os discursos são possíveis porque remetem
sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto. De acordo com
essa visão, o discurso é sempre autoproduzido: não diz nada sobre o
objeto e diz tudo sobre quem o escreveu.

Parece-me uma conclusão equivocada, a partir de premissas


interessantes, porque, tanto no caso da história quanto no da
antropologia, uma produção de saber é possível e necessária. É também
uma perspectiva que se vale dos argumentos do politicamente correto,
assumindo-se como a forma de respeitar o outro, aquele que está
absolutamente desconhecido, conservando-lhe a identidade própria.

Esta justaposição de situações históricas ou situações antropológicas


onde não existe nenhuma comunicação, nenhum intercâmbio, nem sequer
de saberes, parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo que
poderia ser um projeto de conhecimento compartilhado. Razão pela qual
estou completamente em desacordo com essa postura pós-moderna, essa
idéia de que não há nenhuma possibilidade de conhecimento.

É diferente dizer que esse conhecimento sempre esteve organizado a


partir dos esquemas de percepção, de classificação e compreensão do
observador. E que, se existem formas de descontinuidade culturais, é
preciso, assim mesmo, fazer um esforço para entender o passado e o
outro. Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu um
saber, e me parece que os trabalhos fundamentais da história e da
antropologia demonstram que este saber não só é possível como também
pode ser oferecido ao outro para conhecimento de si mesmo -para fazer
com que o objeto do saber possa transformar-se em seu próprio
manufator, não dependendo apenas do conhecimento produzido pelo
antropólogo ou historiador.

Parece-me que, assim, temos a circulação da força crítica do saber. Se


isso for destruído, cai-se num relativismo absoluto. O que me parece
seria uma conclusão trágica e ao mesmo tempo muito ideológica.

Neste momento temos a sensação de que tudo se tornou possível:


práticas que haviam sido banidas por um conjunto de acordos
internacionais no pós-guerra vêm sendo implementadas pelos EUA
na guerra no Iraque ou ao manterem pessoas presas sem
julgamento em Guantânamo. Ao mesmo tempo, ocorre a perda de
força de organismos internacionais, como a ONU. Na medida em
que sabemos que as grandes idéias são filtradas e incorporadas à
agenda do senso comum, a perspectiva radicalmente relativista do
pós-moderno não teria influído de alguma forma nesse tipo de
política, esvaziando a confiança em algumas conquistas do
humanismo e da cultura do Ocidente?

Chartier: O maior paradoxo do pós-modernismo é que nasce de uma


perspectiva crítica das autoridades, das hierarquias e dos elementos
dominantes, mas, com a introdução da dimensão epistemológica do
relativismo, a análise fica sem nenhum recurso para fundamentar esta
postura crítica. Pois, se tudo é possível, todos os discursos podem ser
diferentes por sua competência retórica, por sua arte de expressão, mas
em termos de saber e como instrumento crítico não há diferença entre
eles. Cria-se uma tensão fundamental.

Hayden White, por exemplo, é um humanista que compartilha os valores


morais do humanismo. Mas a aplicação de sua perspectiva não dá à
história instrumentos para produzir um conhecimento crítico, desmentir
as falsificações e estabelecer um saber verdadeiro. Porque, se não há
nenhum critério para estabelecer diferenças entre os discursos dos
historiadores, torna-se muito difícil criticar os discursos enganosos, as
falsificações e as tentativas de reescrita do passado. Este é, me parece, o
grande limite do pós-modernismo: a contradição entre sua intenção e a
sua epistemologia.

Em seu livro “O grande massacre dos gatos”, Robert Darnton adota


as idéias e os métodos de Clifford Gertz, dando tratamento
etnográfico a um objeto de estudo histórico. Esse foco ampliado
sobre um detalhe me parece produzir uma visão distorcida do
objeto. De que forma você vê esse tipo de investigação?

Chartier: Houve um grande debate depois da publicação do livro de


Darnton. Uma das críticas mais fortes feitas a ele tem a ver com a sua
identificação com as idéias de Geertz e de sua tendência à textualização
das estruturas, das práticas rituais e de toda a cultura. O ponto de
partida de Darnton, utilizando a idéia de Geertz de que um rito pode ser
lido como um texto, era que se podia pensar as práticas sociais como se
fossem textos.

Em “O grande massacre dos gatos” as fontes de que Darnton se vale são,


sobretudo, textuais. Os historiadores que trabalham com textos
desenvolvem, em primeiro lugar, uma análise crítica do texto. No
entanto, Darnton quase não avança nessa direção. Para tratar o rito como
texto há como que uma supressão do texto em que o rito está narrado.
Quando se analisa meticulosamente aquele trabalho surge um problema:
não se pode dizer se a matança é imaginária ou real, se teria ocorrido
realmente. Ele menciona o texto de um artesão, mas não lhe dá maior
importância, porque pretende se colocar imediatamente na situação de
um espectador do massacre. Como Geertz em Bali.

Não podemos pensar que há uma identidade necessária entre a lógica


propriamente textual e as estratégias das práticas. Foucault estudou em
seus livros a tensão entre as séries discursivas e os sistemas não-
discursivos. Michel de Certeau plasmou isto na tensão entre as
estratégias discursivas e as táticas de apropriação. Bourdieu refletiu
sobre as razões escolásticas e o sentido prático. Nesses três casos de
vocabulários teóricos diferentes o que há em comum é a diferenciação
entre a lógica da produção textual ou da decifração de um texto
utilizando as escritas e as práticas ou estratégias de outras formas de
construção, que são as práticas cotidianas, habituais etc.

Isto está em oposição à idéia de Geertz que parece querer ver todas as
práticas do mundo social como se fossem textos decifráveis. O mais
complicado para o historiador é que essas práticas não-textuais, em
geral, se encontram através de textos. O desafio fundamental para o
historiador é entender a relação entre os textos disponíveis e as práticas
que estes textos proíbem, prescrevem, condenam, representam,
designam, criticam etc. O essencial é pensar a irredutibilidade entre a
lógica da prática e a lógica do discurso que, tal como dizia Bourdieu, não
se podem confundir.

As práticas do passado são acessíveis a nós, em geral, através de textos


escritos. E o historiador escreve sobre essas práticas. Ao descrevê-las o
historiador tem que ter claro que a operação da escrita não cria uma
forma de relação particular com essas práticas, que se tornaram
conhecíveis através de sua mediação. O desafio fundamental é pensar
conceitual e metodologicamente a articulação e a distância entre as
práticas e os discursos e evitar a repetição daquele momento, entre os
anos 1950-60, em que a metáfora do texto se aplicava a tudo: aos ritos,
à sociedade etc. Era muito cômodo.

Então qualquer documento que não seja escrito, que não seja
texto, coloca para o historiador esse tipo de problema. Tal é o caso
dos que trabalham com imagens -objeto que não é possível
enfrentar através de métodos ou regras muito esquemáticos, não
lhe parece?

Chartier: A imagem é um exemplo magnífico para pensar o que


dissemos, pois não é uma prática disseminada, é silenciosa, não é sequer
um texto. Creio que querer analisá-la como texto é uma perspectiva
teoricamente equivocada, porque a lógica de construção da imagem ou de
decifração da imagem não é a mesma do texto. Parece-me que a lógica
gráfica e a lógica textual não se identificam.

A lógica textual é necessariamente uma lógica linear, a escrita se


descreve através de ordem seqüencial. E a leitura, inclusive quando se
vai de um fragmento a outro, é uma leitura seqüencial. A observação de
um quadro não está organizada segundo esta ordem seqüencial. É algo
com uma lógica própria e que não se identifica com a lógica textual. Há
uma questão de diferentes planos, de diferentes entradas.

Para restituir a lógica na decifração da imagem, o historiador


necessariamente deve manejar a ordem seqüencial ou linear da escrita. O
resultado desse esforço é uma tensão. O que não significa ser essa uma
tarefa impossível, mas que é preciso estar consciente de suas
dificuldades. Meu amigo Louis Marin, cuja obra admiro, construiu uma
argumentação a propósito de como fazer textos com imagens. Ele cita
como exemplo “Os salões”, artigo em que Diderot transforma um quadro
em texto para criticá-lo. E toda a crítica estética supõe essa operação de
fazer textos com imagens.

O contrário disto, fazer imagens a partir de textos, é o princípio de toda a


iconografia cristã. Textos se transformam em imagens, e vice-versa, mas
nunca são idênticos entre si, pois há toda uma série de interpretações,
mediações, apropriações. É possível utilizar a metáfora da imagem como
texto, ou da observação como leitura. Porém deve-se ter consciência de
que é apenas uma forma de falar, que não há uma adequação lógico-
teórica entre os dois documentos e que nunca se dissolve a
irredutibilidade da diferença.

Uma demonstração perfeita desta irredutibilidade verificou-se quando


alguns poetas tentaram romper com essa lógica linear e seqüencial e
apresentaram o texto escrito como se fosse um grafismo, com uma forma
em que se podia entrar no texto de maneira diversa, sem a imposição da
ordem linear da escrita. Foi um esforço para fazer com que a escrita
fosse mais identificada pela sua forma gráfica do que por seu conteúdo
semântico. A meu ver as questões relativas a imagens estarão sempre
trafegando entre o espaço que vai da crítica textual à crítica estética.

Uma outra questão é a do estilo, da retórica no texto de história.


Por exemplo, o tratamento irônico do problema, tal como você
identificou em Hayden White.

Chartier: Quando Hayden White descreve as quatro figuras retóricas que


seriam sempre utilizadas pelos historiadores, inclui, ao lado da metáfora,
da sinédoque e da metonímia, a ironia como uma forma de escrita
histórica que se pode utilizar inclusive para temas que não tem a ironia
como objeto. Não conheço muitos historiadores que tenham empregado
esse recurso para escrever textos de história, talvez por causa da tensão
que o uso da ironia provoca no texto.

Creio que fazer rir era a idéia de Darnton em “O grande massacre dos
gatos”, ao divulgar o texto sobre aqueles artesãos para os quais era
muito divertido matar gatos. Em todas essas obras verificamos que
estamos diante de uma descontinuidade. Os dispositivos, os temas, as
formas, os gêneros que, em um dado momento, provocam o riso ou o
sorriso são historicamente definidos.

Ao mesmo tempo, se podemos entender porque esse fato fazia rir à gente
do Renascimento é porque há continuidade suficiente para que os outros
aspectos sejam percebidos, entendidos e compreendidos. E o que mais
temos discutido com o pós-modernismo é sobre a necessidade de
reconhecer as descontinuidades históricas sem cair no relativismo que
estabelece que não há relação possível através de uma distância profunda
e que assim é impossível qualquer compreensão do outro.

Ultimamente, aqui no Brasil, têm circulado na internet textos


falsamente atribuídos a escritores e jornalistas célebres. São
textos que têm uma certa identidade com o estilo do suposto
autor, mas que são renegados com indignação. Já houve também
casos de textos atribuídos a Jorge Luís Borges e a Gabriel García
Márquez, que, depois de muito terem rodado na rede, os
especialistas negaram ser deles. Que outros problemas para a
questão da autoria a internet provoca?

Chartier: Trata-se de uma atitude inversa à do plágio, que é roubar um


trabalho e assiná-lo, enquanto aqui se rouba o nome de alguém para por
no seu próprio texto. Mas este não é um fenômeno diretamente vinculado
à internet. Esta apenas modificou a forma de circulação dessas
falsificações.

Lope de Vega, por exemplo, em pleno século 16, se queixava que outros
dramaturgos utilizavam seu nome para vender comédias muito ruins que
ele nunca havia escrito. Para se proteger, ele divulgou uma lista com
todas as suas obras, que eram muitas, cerca de 450, pois ele era muito
prolífico.

No mundo da imprensa e da representação teatral essa apropriação do


nome pode ter diversos fins, no caso de Vega servia para vender as
comédias. Pode também servir para pensar em si mesmo como capaz de
escrever um texto de Borges. No caso de Borges, parece um fenômeno
bem-vindo, uma vez que ele escreveu muitas obras assinadas com nomes
que não eram o seu, como se tivessem sido escritas no século 18.
O copyright se baseia na idéia de que o texto é uma criação, uma parte
do indivíduo, expressão de seus sentimentos, de sua linguagem. A
relação entre o texto e a subjetividade, a idéia de que o texto é uma
projeção do indivíduo tendo como conseqüência econômica a propriedade
do texto surge a partir da metade do século 18. O problema da circulação
textual em forma eletrônica, quando não há formas de se fechar o texto,
é que ela criou dificuldades para os direitos de propriedade literária. Cada
texto pode ser alterado pelo leitor e enviado pela internet. Essa
maleabilidade do texto na forma eletrônica tornou difícil proteger o
direito de propriedade literária.

Foucault apresentou na sua conferência inaugural do Collège de France a


idéia de um mundo textual sem apropriações, sem nome, feito de ondas
textuais que se sucediam, onde cada um poderia escrever suas palavras
em um discurso já existente. Era um paradoxo, porque ele apresentava
seu sonho de uma textualidade coletiva, indefinida, a partir da posição
mais individualizada, a mais prestigiosa da universidade francesa. De
certa forma a internet permite aos autores que realizem esse sonho à
medida que deixa o texto aberto às escritas, apropriações e alterações.
Mas há aqueles fiéis ao século 18 que reivindicam a propriedade literária
e a identidade da autoria.

Um tema que vem sendo discutido nos EUA é a forma de impedir que o
texto seja transformado, copiado ou impresso. Trata-se de uma questão
complicada porque a única maneira de solucioná-la é fechando os textos.
E isto é um paradoxo, pois a invenção da internet deu-se justamente para
facilitar o acesso aos textos.

Este foi o problema dos e-books, um texto pelo qual se pagava, mas que
não se podia alterar, copiar ou imprimir. Protegia os direitos do editor ou
do autor, mas não fez sucesso porque o que torna essa nova tecnologia
textual tão atraente é justamente a liberdade, a mobilidade. Todas as
invenções que vêm no sentido de constranger essa liberdade são
consideradas violências contra as novas tecnologias.

A mesma discussão acontece no meio das publicações científicas. Há


revistas eletrônicas que querem proibir o acesso gratuito e a
possibilidade de cópia dos artigos publicados. E há comunidades
investigadoras que afirmam, à maneira de Condorcet no século 18, que o
saber é algo que não pode ser apropriado, pois é útil para o progresso da
humanidade.

Algumas comunidades investigadoras na área de biologia, por exemplo,


tentam criar uma forma de difusão dos resultados fora do controle
econômico das revistas, cuja assinatura pode chegar a US$ 8 mil ou
mesmo a US$ 12 mil. É uma questão que ainda está para ser resolvida: a
internet como uma textualidade livre e móvel ou como forma de
publicação segundo os mesmos critérios jurídicos e estéticos da
publicação impressa.

Um controle difícil de obter, pois a indústria fonográfica está


perdendo essa guerra…
Chartier: Mas a diferença é que a estrutura do livro impresso impõe o
texto ao leitor sem que ele possa modificá-lo. Mesmo que se escreva nas
páginas em branco, há o reconhecimento da autoria e que isto implica em
direitos econômicos e morais. Mas o texto eletrônico é um texto aberto,
no qual é possível interferir. É uma grande diferença.

A outra grande diferença é que no mundo do texto impresso há uma


correspondência entre o tipo de publicação e o tipo de textos que se
publica nela. Uma revista não é um jornal, que não é um livro, que não é
um documento oficial, que não é uma carta. Há uma hierarquia de
objetos que correspondem a uma diferenciação na taxonomia do texto. O
computador quebra isso.

A partir do momento em que o mesmo aparato, na mesma forma, dá a ler


todos os tipos de discursos em termos de gênero, da carta ao livro, ou
em termos de autoridade, é mais difícil para o leitor que não está
preparado fazer a diferenciação imediata -que está muito mais evidente
no material impresso.

Uma vez que todos os gêneros de textos, desde os mais íntimos aos mais
públicos, se dão a ler de uma forma quase idêntica sobre o mesmo
aparato, há uma ruptura muito grande na maneira de entrar ou de
conceber ou de manejar o mundo dos textos. Para o melhor ou para o
pior.

Para o melhor, porque permite esta proximidade entre os textos, porque


há uma circulação textual que não é simplesmente a mobilidade de cada
texto separadamente, senão a mobilidade textual, que seria uma forma
de invenção e renovação. Para o pior, quando pensamos nos que negam a
existência das câmaras de gás.

Se alguém busca informações sobre o Holocausto no mundo da cultura


impressa ou se, ao fazer um trabalho para a escola, consulta
enciclopédias, livros de história, revistas reconhecidas, não terá tanto
contato com a propaganda dos negacionistas, que é totalmente
marginalizada. Em muitos países ela está proibida ou só existe em
revistas que não se encontram facilmente. Assim, as informações sobre o
Holocausto serão obtidas em textos mais ou menos controlados.

Um jornalista fez a mesma investigação sobre o Holocausto na internet e


encontrou uma enorme quantidade da propaganda negacionista,
revisionista, apresentada com todas a aparência de texto científico. Se o
leitor não está preparado para estabelecer a diferença que já foi
estabelecida na cultura impressa por meio do formato editorial ou das
comunidades cientificas, há um risco de confusão entre o que é
informação e o que é saber. É informação conhecer toda essa propaganda
revisionista, mas não é saber. É o contrário do saber, é a falsificação da
verdade.

A grande dificuldade é como controlar, como estabelecer critérios


para isto. Quem vai estabelecer?

Chartier: Voltamos ao nosso primeiro tema de discussão. Não se trata de


censura, mas de como reconhecer a autoridade científica. Não autoridade
no sentido canônico, e sim a autoridade que se afirma através da
evidência, da prova. Os textos que descrevem uma realidade histórica
não têm autoridade científica equivalente. É através disto que podemos
reconhecer a diferença entre um texto dos revisionistas que inventaram
que as câmaras de gás nunca existiram, que nunca aconteceu o massacre
de milhões de judeus, e um texto de um historiador que se pode
encontrar em uma enciclopédia, em livros de divulgação e que
estabeleceu uma percepção adequada do acontecimento.

O que digo é que este diferencial de credibilidade científica era


estabelecido no mundo impresso a partir das diferenciações editoriais
entre os tipos de publicações e as formas do discurso. A gente podia dar
mais crédito a um livro publicado por uma editora reconhecida por sua
exigência que a um artigo de periódico ou a uma carta privada. Essa
operação não é impossível com o texto eletrônico. Ela se tornou mais
difícil.

Talvez porque credibilidade é uma coisa que se conquista com o


tempo. É como o prestígio de algumas universidades e o descrédito
de outras. Dentro da internet ainda não houve tempo para criar
portais em que o usuário possa dizer com toda convicção: neste eu
posso confiar.

Chartier: De fato, é preciso dar aos usuários da internet instrumentos


críticos para entender como os textos foram construídos, para avaliar o
grau de seriedade de cada local. Não podemos minimizar o significado da
ruptura de um mundo onde objetos e textos estão vinculados através de
materialidades múltiplas com um mundo em que a mesma superfície
iluminada do monitor dá a ler todos os gêneros textuais. A reflexão sobre
essas transformações muda a percepção dos textos e de suas diferenças.

Há uma descontinuidade com a leitura com que estávamos familiarizados


e isto implica na transformação da relação fundamental com algo que
continua a ser um texto, mesmo que em diferentes formas. A leitura
eletrônica é uma leitura da fragmentação, dos extratos de livro, sem que
se saiba nada sobre a totalidade da qual se extraiu aquele fragmento,
pois o fragmento eletrônico não mantém nenhuma ligação com o texto
que garantia o conhecimento da totalidade. O problema é saber se a
internet pode superar a tendência à fragmentação.

Você já orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo você leu


muito sobre o Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessas
leituras como você vê o Brasil?

Chartier: Acho que há aqui uma circulação entre os campos disciplinares


da antropologia, da história e da sociologia cultural mais forte que em
outros lugares. O campo da educação, por exemplo, que em muitos
países é muito especializado, aqui me parece estar bastante integrado ao
mundo das ciências sociais. A maior parte dos trabalhos que orientei
tratam de uma forma ou de outra do mundo das práticas culturais, da
história da publicação e da circulação dos textos e um pouco também do
mundo social, da história da vida privada, das estruturas sociais do Brasil
colônia.
Há uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigação. O problema
é que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta de
interesse por outros territórios. Todo mundo está muito preso a seu
próprio campo de investigação e não se dá conta de que é possível
aprender muito com estudos sobre temas que não são os seus. Isso
impede que circulem numerosos trabalhos que mereceriam ter um
reconhecimento mais forte.

Para divulgar esses trabalhos que têm uma força metodológica ou teórica
inspiradora, seria preciso fazer com que editoras norte-americanas
traduzissem obras latino-americanas para o público que não lê em
espanhol. Pode-se perceber nas referências bibliográficas de trabalhos
realizados na Europa e nos EUA que muitas obras latino-americanas não
estão em inglês, salvo trabalhos de autores americanos e ingleses sobre
o Brasil.

Tradução de Ana Carolina Delmas

Isabel Lustosa
É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de
Janeiro, e autora de "Insultos Impressos – A Guerra dos Jornalistas na
Independência" (Companhia das Letras, 2000).

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