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O Eu Reconhece a Presença do Ser

Há uma experiência inicial que é implicada em todas as outras e que dá a cada


uma delas a sua gravidade e a sua profundidade: é a experiência da presença
do ser. Reconhecer esta presença, é reconhecer ao mesmo tempo a
participação do eu no ser.

Estou num café, a desjejuar-me. Noto uma belíssima filha de Eva sentada à mesa
imediata à minha. Embevece-me qualquer coisa nela. Bebendo seu café, percebo-
lhe uma expressão trivial no rosto. Um relancear de seus olhos descobre-me, e ela
percebe certa nota de embasbacamento em minha expressão. Desvia o olhar e
dissimula o que percebeu. Alguns segundos depois, condescende em olhar-me
outra vez, e agora abre-me um sorriso feminil enquanto me cuida. Desvia
novamente os olhos, mas preservando agora uma expressão como que
intermediária entre o siso e o sorriso ostensivo, um bônomo smirk. Tal gracejo
não me passa despercebido, é óbvio, e sinto-me convidado e encorajado. Tendo de
pronto me resolvido ao que haveria de fazer, já não estou ali senão fazendo hora
para a realização de minha resolução, de modo que não passe por moleque afoito.
E zás!, chega o momento oportuno: exaurida a sua xícara, ela entra a ler qualquer
coisa que trazia na sua bolsa, meio requebrada e acariciando a sua própria nuca:
é sua intimação. Acedo, rumo à sua mesa, abordo-a com qualquer sensaboria
quotidiana, mas numa inflexão insinuante; termino por granjear-lhe o número de
telefone. As próximas cenas dessa peça inferem-se da marcha da humanidade.

[...] a experiência da presença do ser.


Tão logo a vejo, sei que ela é um ser e que está presente a mim, e que até ali
estivera ausente. Sei que existia mesmo me estando ausente, justamente porque sei
que é um ser. E sei que é um ser porque a percebi com meus olhos. E a percebi
porque naturalmente notei, acertadamente, que ela transcendia o estímulo visual
sensível recebido pelos meus olhos, que ela não se reduzia à imagem que dela me
chegava, mas possuía primeiramente um outro lado que não via, isto é, que era um
ser tridimensional, que possuía um corpo; que possuía também um organismo
interno, uma vida pregressa, faculdades perceptivas, imaginação, psique, intelecto
e alma imortal, enfim, que pertencia à espécie humana, e na condição sexuada de
mulher.

A experiência da presença do ser é a percepção da presença do ser.


Reconhecer esta presença, é reconhecer ao mesmo tempo a participação do eu
no ser.
Ao perceber sua presença de ser, sei que a percebo, sei que sou eu que a percebo;
sei ainda que há um nexo causal entre a sua presença e o meu ato de percebê-la
(tripla intuição fundamental). Esse nexo é a participação do (meu) eu no ser.
Todas as maneiras subseqüentes em que posso participar desse ser (conhecê-la,
beijá-la, casar com ela, engendrar prole com ela) fundamentam-se nessa
participação primordial entre sua presença humana e meu ato de perceber.
Ademais, para que ela esteja presente a mim, eu também preciso estar presente a
ela. Tanto é assim, que ela me percebeu; e, ao fazê-lo, ela me manifestou que eu
também faço parte do ser, que sou um ser no ser (no caso, um ser humano
masculino, e tal, que lhe despertou um interesse romântico), até porque para
participar no ser, precisa-se por força ser também um ser.

[A experiência da presença do ser,] uma experiência inicial que é implicada em


todas as outras e que dá a cada uma delas a sua gravidade e a sua
profundidade [...]

[...] uma experiência inicial [...] A fonte e a origem das demais; o ponto de partida
por excelência de todo o empreendimento filosófico.

[...] implicada em todas as outras [...]


Não há nenhuma experiência concebível em que a presença do ser enquanto tal não
esteja presente, mesmo que implicitamente, à consciência. Uma tal experiência
seria a negação da consciência e da presença de algo: seria efetivamente o nada.
Mas algo insofismavelmente há. Mesmo o negá-lo seria ao mesmo tempo
confirmá-lo, pois a existência desse mesmo ato de negar seria inegável. Mesmo
aqueles que negam consistência às aparências, afirmam ao mesmo tempo o ser das
aparências e o ser daquilo que lhes subjaz, inacessivelmente.

[...] dá a cada uma delas a sua gravidade e a sua profundidade [...]

Gravidade e profundidade: metáforas físicas, uma experiência não tem peso físico
ou profundidade espacial. A metáfora é a seguinte: a fim de existir no universo
físico, a fim de possuir consistência ou substancialidade, precisa-se por força ter
algum peso (gravidade) e alguma profundidade. Logo, a percepção da presença do
ser dá às outras experiências a sua realidade, a sua substancialidade e consistência,
isto é, se destacadas do manancial que é a percepção da presença do ser, as demais
experiências são meros desvarios solipsistas da mente.
Ninguém pode, sem dúvida, consentir nesta experiência elementar, tomando-a
na sua simplicidade mais despojada, sem sentir uma espécie de
estremecimento. Cada qual reconhecerá que é primitiva, ou antes que é
constante, que é a matéria de todos os nossos pensamentos e a origem de todas
as nossas acções, que todas as iniciativas do indivíduo a supõem e a
desenvolvem. — Mas, feita esta constatação, rapidamente é esquecida: de ora
em diante basta que permaneça implícita; e deixamo-nos atrair seguidamente
pelos fins limitados que a curiosidade e o desejo nos propõem. Assim, a nossa
consciência dispersa-se; perde a pouco e pouco a sua força e a sua luz; é
assaltada por demasiados reflexos; não consegue agrupá-los porque se
distanciou do foco que os produz.

Ninguém pode, sem dúvida, consentir nesta experiência elementar, tomando-a


na sua simplicidade mais despojada, sem sentir uma espécie de
estremecimento.
Essa experiência se me oferece o tempo todo; mas só às vezes consinto em tê-la.
Somem-se minhas preocupações, meus pensamentos, tudo; só resta ali a presença
do ser e a minha própria presença enquanto ser partícipe.

“Meu Deus!, isto aqui existe mesmo!... eu existo mesmo!... só pode ser um
milagre!” Mas não há palavra alguma; somente o estremecimento. Esse
“estremecimento” corresponde exatamente à perplexidade da qual nasce a pergunta
de Leibniz: “Por que existe algo, e não antes o nada?”

Cada qual reconhecerá que é primitiva, ou antes que é constante, que é a


matéria de todos os nossos pensamentos e a origem de todas as nossas acções,
que todas as iniciativas do indivíduo a supõem e a desenvolvem.

Cada qual reconhecerá que é primitiva, ou antes que é constante: não é que ela
propriamente anteceda as outras experiências temporalmente, mas que ela é
constante, isto é, que ela fundamenta sempre todas as outras. A experiência da
presença do ser está implicada em todas as demais. Se o objeto de experiência não
está presente como ser, ele não é objeto de experiência.
Eu sei o tempo todo que o ser está presente, mesmo que não reflita a respeito.

que é a matéria de todos os nossos pensamentos: um pensamento que não se


refira a algo que possa estar presente como ser, não tem substancialidade, não tem
“matéria”, é um mero devaneio subjetivo.

a origem de todas as nossas acções: a causa primeira das nossas ações.


Se abordei aquela mulher, na expectativa de obter-lhe o número de telefone, é
porque primeiro percebei a sua presença enquanto ser.

todas as iniciativas do indivíduo a supõem: se tomo uma iniciativa, tomo-a


sempre em relação a um ser cuja presença percebi;

e a desenvolvem:
na presença do ser estão previstas as possibilidades e potências que minha
iniciativa desperta e traz à existência.

Mas, feita esta constatação, rapidamente é esquecida: de ora em diante basta


que permaneça implícita:
Cesso de receber diretamente e da presença concreta e actual do ser o alimento dos
meus pensamentos, as inspirações das minhas ações e iniciativas; sua presença
deixa de me ser actual e passa a ser meramente implícita, potencial.

e deixamo-nos atrair seguidamente pelos fins limitados que a curiosidade e o


desejo nos propõem:
Esquecidos da presença do ser, encontramo-nos cindidos da fonte inesgotável de
tudo: nessa condição, os objetos do nosso elã são todos eles limitados, pois
cessaram de receber o influxo do infinito.

Assim, a nossa consciência dispersa-se; perde a pouco e pouco a sua força e a


sua luz; é assaltada por demasiados reflexos; não consegue agrupá-los porque
se distanciou do foco que os produz.
Nossa consciência se dispersa nos reflexos que da presença do ser nos ficaram na
subjetividade. A presença do ser é a única fonte de luz. No ser, todos os “reflexos”
têm sua estruturação, sua ordem, sua vida; destacados daquele, não há como
“agrupá-los”, como restituir-lhes a ordem e estrutura, a essência, a significação, a
vida.
Quando rememoro a face da minha mãe, uma paisagem, minha mente não pode
reconstituir a riqueza concreta delas, não pode agrupar cada traço conforme a sua
ordem real. É só olhando efetivamente a minha mãe, na presença do seu ser, que
posso captar a verdadeira ordem da sua fisionomia.

O que é próprio do pensamento filosófico é vincular-se a esta experiência


essencial, afinar-lhe a acuidade, retê-la quando está prestes a escapar-se,
retornar a ela quando tudo se obscurece e são necessários um marco e uma
pedra de toque; é analisar o seu conteúdo e mostrar que todas as nossas
operações dependem dela, encontram nela a sua fonte, a sua razão de ser e o
princípio da sua potência.

afinar-lhe a acuidade
Torná-la mais aguda, mais nítida.

retornar a ela quando tudo se obscurece:


“obscurece”: se a presença do ser é a fonte de luz, a sua ausência é a escuridão.
Logo: “Olhar de novo quando o ser estiver ausente”.
[Minha rememoração catártica do abraço de Ketlin; a desconfiança de Diogo]

e são necessários um marco e uma pedra de toque:


na ausência do ser, sentimos a necessidade de um meio de verificação daquilo que
pensamos, suspeitamos que nos afastamos da realidade tal como ela é.
Logo: “Olhar de novo quando o ser estiver ausente, quando já sentimos a
necessidade de um meio de verificação daquilo que pensamos, quando suspeitamos
que nos afastamos da realidade tal como ela é.”

[o próprio do pensameto filosófico] é analisar o seu conteúdo [da experiência


da presença do ser] e mostrar que todas as nossas operações dependem dela,
encontram nela a sua fonte, a sua razão de ser e o princípio da sua potência.

analisar o seu conteúdo:


escavar as verdades e lições implícitas, embutidas na experiência da presença do
ser.

... verdades e lições tais como: todas as nossas operações dependem dela,
encontram nela a sua fonte, a sua razão de ser e o princípio da sua potência.

todas as nossas operações


Operação é uma sequência de atos articulados. Investigações de qualquer natureza
são um exemplo.

dependem dela,
causa material.

encontram nela a sua fonte,


Causa eficiente.

a sua razão de ser


Causa final.

e o princípio da sua potência.


Causa formal.

Mas é difícil isolá-la de modo a considerá-la na sua pureza: é necessário para


tal uma certa inocência, um espírito liberto de todo o interesse e mesmo de
toda a preocupação particular. Saber que existe, não é ainda realizar-lhe a
plenitude concreta, não é actualizá-la e possuí-la.

Mas é difícil isolá-la de modo a considerá-la na sua pureza.


Isolar é contemplar o ser enquanto ser. Perceber uma árvore não como árvore, um
gato não como gato, o homem não como homem, mas como ser.

é necessário para tal uma certa inocência, um espírito liberto de todo o


interesse e mesmo de toda a preocupação particular.

Interesse é aqui uma sub-espécie da preocupação particular.

A preocupação particular não tenciona contemplar o objeto a fim de usá-lo, como


o tenciona o interesse, mas tão somente contemplá-lo. Porém, tal contemplação
não é integral, é particular, isto é, não contempla o ser enquanto ser, mas os seus
demais aspectos.
Inocência é portanto contemplar o ser enquanto ser, e sem interesse algum.

A maior parte dos homens é arrastada e absorvida pelos acontecimentos. Não


tem o vagar bastante para aprofundar esta ligação imediata do ser e do eu que
funda cada um dos nossos actos e que lhes dá o seu valor: não a sentem, antes
pressentem a sua presença; nunca é para eles objecto de um olhar directo,
nem de uma consciência clara; e se por vezes o seu pensamento acaba por a
aflorar, mais não é do que um contacto passageiro e do qual a lembrança
depressa se apaga.

acontecimentos:
A presença do ser não é um acontecimento, mas algo constante. A experiência do
ser é: as demais são acontecimentos.

Mas aquele que, pelo contrário, já apreendeu, num puro recolhimento e como
o acto mesmo da vida, a solidariedade do ser e do eu, já não pode destacar dela
o seu pensamento: a recordação deste contacto renova-lhe a presença, que não
cessa jamais de fazer vibrar o seu espírito e de o iluminar. Que não se diga
que esta experiência é evidente e deve ser feita, mas que é estéril se não for
superada imediatamente: contém em si tudo o que podemos conhecer. Desde
que é dado, a nossa vida reencontra a sua seriedade essencial, reatando os seus
laços com o coração do real, o nosso pensamento, em vez de, como se crê, se
empobrecer e se esvaziar, adquire a certeza e a eficácia, descobrindo, em cada
um dos seus passos, a identidade do ser que possui e do ser ao qual se aplica.

A solidariedade do ser e do eu [é] o acto mesmo da vida:


viver é fundamentalmente participar do ser.

Que não se diga que esta experiência é evidente e deve ser feita, mas que é
estéril se não for superada imediatamente: contém em si tudo o que podemos
conhecer

Além de ser evidente e de ser mister o fazê-la, não se deve superá-la, mas retornar
sempre a ela, pois que contém em si tudo o que podemos conhecer.

Despojo meu olhar de toda intenção particular, sem fixar este ou aquele ente; o
mesmo faço com a corrente de meus pensamentos. Logo emerge então aquela
intuição da presença pura do ser, e da minha presença nele. Por um instante
imensurável, não me encontro ali, no meu banheiro, na presença das coisas de
banheiro: encontro-me mas é naquele mundo de luz, paz e alegria – é a morada da
verdade. Toda verdade que se desnuda em toda a sua intimidade nos dá acesso a
essa mesma luz, por variadas que sejam as formas sob as quais se nos apresente.
Ou seja, todas as veredas sempre dão nessa mesma fonte, confluindo, o que
significa que ela “contém em si tudo o que podemos conhecer.”
A Vida do Espírito é uma Cumplicidade
com o Ser
Descrever os termos desta primeira experiência pela qual o eu se inscreve a si
mesmo no ser e mostrar a relação que os une, é prosseguir uma acção dialéctica
que, sem nada acrescentar a essa experiência, permite medir-lhe a riqueza e a
fecundidade. As etapas desta investigação não têm apenas um interesse puramente
especulativo, dado que o eu ele mesmo constitui a sua própria natureza no decurso
deste debate permanente que a consciência, para nascer e para se desenvolver,
mantém com o ser absoluto. Se esta iniciativa é bem sucedida, deve sentir-se a
cada momento o carácter necessário das diligências intelectuais que se efectuam:
para que apareçam como necessárias, basta que se possam efectuar, e que, de
antemão, se aceite experimentá-las.

Pois a necessidade que se tem em vista não é nem uma necessidade exterior que
nos constrange sem os satisfazer, nem essa necessidade puramente lógica que,
tendo por objecto o simples acordo das noções, quer dizer, dos possíveis, não é
uma necessidade inerente ao próprio ser e fica sem eco na personalidade, uma vez
que não interessa nem a nossa vontade nem o nosso amor. Estas duas espécies de
necessidade têm um papel limitado e derivado: a primeira supõe o aparecimento da
sensibilidade e a segunda a da razão; baseiam-se numa distinção das faculdades.
Mas a necessidade que encontramos aqui é anterior e mais profunda. Não força a
nossa adesão de fora, seja pela passividade dos sentidos, seja pela disciplina da
razão. Nasce no nosso interior e não implica somente uma coincidência entre o
nosso pensamento e a essência das coisas, mas uma verdadeira cumplicidade entre
o nosso pensamento e as próprias coisas. Tem um valor ontológico porque
acompanha uma operação que é ao mesmo tempo reveladora e formadora do nosso
próprio ser. Atesta, realizando-a, a realidade essencial do ser puro e do nosso ser
participado. O conhecimento mais profundo que possamos adquirir do ser consiste
no nosso próprio consentimento em ser.
Assim, para que a nossa análise possa ser justificada, basta que as operações que
descrevemos sejam operações reais, isto é, que possam ser realizadas: mas é
necessário que o possam; e se o podem, estamos seguros de que nos trarão a
presença constante do ser, e por isso toda a luz e toda a alegria que acompanham a
nossa actividade, consciente da sua essência e da perfeição do seu exercício.

Cada qual deve intentar colher a natureza do ser verificando a realidade de certos
actos espirituais que ninguém pode realizar em seu lugar. Um autor não pode senão
sugeri-los e facilitá-los, e aquele que cumpre melhor a sua tarefa é aquele que sabe
fazer-se esquecer, desvia de si o pensamento do leitor, deixa este em presença de si
mesmo e lhe permite reconhecer através de uma espécie de descoberta pessoal,
uma verdade que já tinha pressentido muitas vezes e que nunca tinha deixado de
trazer no seu próprio âmago. É que todos os homens contemplam o mesmo ser: a
cada um deles cabe ser desperto por um outro para o pensamento ou acordar, por
sua vez, um terceiro. Não podem comunicar uns com os outros senão através de
uma comunicação de cada um deles com o mesmo objecto.

Dilgências intelectuais e actos espirituais que redundarão em...

... reconhecer através de uma espécie de descoberta pessoal, uma verdade que já
tinha pressentido muitas vezes e que nunca tinha deixado de trazer no seu próprio
âmago.

Isto é, reconhecer algo que já se percebera, porém de maneira fugaz e muda. É uma
descoberta pessoal porque você reconhecerá algo que já sabia, uma verdade que já
vivia dentro de si, no seu “âmago”. E toda descoberta pessoal nos abre novos
horizontes de ação (a conversa com o Diogo).

[...] o eu ele mesmo constitui a sua própria natureza no decurso deste debate
permanente que a consciência, para nascer e para se desenvolver, mantém com o
ser absoluto.

A consciência nasce (perceber) e se desenvolve (reconhecer).

“o carácter necessário das diligências intelectuais”: necessidade pessoal; a


necessidade que o próprio eu sente de descobrir-se.

“uma verdadeira cumplicidade entre o nosso pensamento e as próprias coisas.”


Cumplicidade é agir conjuntamente, cooperar.
“A identidade essencial do ser puro e do nosso ser participado.” Como pode o
meu eu ser essencialmente idêntico ao Acto? O Acto é ilimitado, e traz à existência
o que quer que queira: isso o define. Eu não posso trazer à existência o que quer
que eu queira, mas a minha capacidade de intelecção de tudo quanto o Acto traz do
seu mistério é efetivamente ilimitada. “A alma é tudo quanto ela conhece.”

A posse do ser é o fim de toda a acção


particular
Quando dizemos que o ser é presente ao eu e que o próprio eu participa no ser,
enunciamos o tema único de toda a meditação humana. É fácil de ver que este tema
é de uma riqueza infinita. É o fundamento de todos os nossos conhecimentos
particulares que nele se encontram antecipadamente envolvidos: mas eles são para
nós apenas meios para realizar, numa espécie de nudez, a confrontação da nossa
própria intimidade com a intimidade mesma do universo.

É evidente que a presença do ser deve ser objecto de uma intuição e não de uma
dedução: pois não se poderia encontrar um princípio mais alto de onde pudesse ser
derivada. Todas as deduções se apoiam sobre ela, se cumprem nela e encontram
nela a sua verificação. Mas ela é ao mesmo tempo o fim de todos os nossos passos
particulares, de todas as operações do pensamento e da vontade. Pois cada uma
delas não pode bastar-se a si mesma: não tem para nós valor a não ser que, através
da sua mediação, possamos obter uma posse do ser, na qual se resolve e que a
torna, doravante inútil.

Sem dúvida, nunca conseguimos apreender o ser senão numa das suas formas
individuais. Sem dúvida, a consciência nunca nos dá mais do que um dos seus
estados momentâneos. Sem dúvida, ainda, admitindo que a consciência seja capaz
de entrar em relação com o ser, é de tal estado de consciência que é preciso mostrar
a coincidência com tal forma de ser. Mas cada uma destas observações, das quais
não podemos não reconhecer a verdade, implica a solução de um problema mais
vasto e sobre o qual é impossível passar em silêncio: é o problema de saber o que
nos permite dar a seres diferentes o mesmo nome de ser, fazer entrar estados
diferentes numa mesma consciência e, através das relações diferentes entre tal
objecto e tal estado, conceber que entre o que é e o que pensamos possa haver ao
mesmo tempo uma distinção e uma ligação. Por detrás de todas as questões
particulares que podemos pôr-nos, o problema do ser e do eu é o único que nos
interessa profundamente: percorremo-lo em todos os sentidos, acossamo-lo de
todos os lados, esperando encontrar no fim qualquer situação privilegiada na qual,
esquecendo todos os ensaios infrutuosos que preencheram a nossa vida,
encontraremos a sua razão de ser, tomando consciência tanto da sua essência
quanto do seu lugar no universo.

Aparentemente, uma tal busca não pode fazer progresso algum: é que não pode
senão aprofundar-se e alargar-se. Pois é da presença do ser que partimos: mas ela
não é ainda mais do que uma experiência confusa e que devemos analisar; esta
análise comporta uma série de operações, no decurso das quais a nossa
personalidade se vai constituir; e assim que esta descobrir a sua verdadeira
essência, unir-se-á de novo ao ser, mas desta vez num acto inteligível no qual a
experiência inicial encontrará a sua explicação e a sua perfeição.

O indivíduo tem uma tal confiança em si mesmo que, quando se perde, é sempre
porque a fantasia da sua imaginação ou o seu gosto das construções abstractas o
impedem de manter um contacto assaz estreito com a realidade. É então necessário
voltar sem cessar a esta experiência do ser na qual obtemos, ao mesmo tempo,
todos os nossos materiais e todas as nossas provas. Não obstante, é uma
experiência puramente espiritual: consiste em determinadas operações do
pensamento, que devem ser necessariamente adequadas, dado que esgotamos todo
o seu conteúdo no momento em que as realizamos e que podemos, de cada vez,
verificar a sua verdade, quer dizer a sua eficácia. E esta experiência pura é ao
mesmo tempo uma criação, pois a contemplação do ser é indiscernível do
movimento pelo qual o nosso espírito se engendra a si mesmo.
Capítulo IX

A Presença do Ser Ilumina a Aparência


mais Humilde

...nela, pelo contrário, todos os objectos participam na mesma dignidade...

É verdade, a qual já provei na minha experiência, que, quando irradiam a luz da


Presença Total, as aparências mais prosaicas possuem precisamente a mesma
glória das mais magníficas. À luz da infinitude, um naco de grama vale mais que a
mais bela das mulheres à luz da terra.

Agora, quanto às aparências eminentemente abjetas, vis ou dolorosas, jamais


provei a sua transfiguração mediante a luz da Presença; talvez só possa constatá-la
na vida dos santos – e do próprio Cristo –, e dos homens de elevadíssima estatura.

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