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Estou num café, a desjejuar-me. Noto uma belíssima filha de Eva sentada à mesa
imediata à minha. Embevece-me qualquer coisa nela. Bebendo seu café, percebo-
lhe uma expressão trivial no rosto. Um relancear de seus olhos descobre-me, e ela
percebe certa nota de embasbacamento em minha expressão. Desvia o olhar e
dissimula o que percebeu. Alguns segundos depois, condescende em olhar-me
outra vez, e agora abre-me um sorriso feminil enquanto me cuida. Desvia
novamente os olhos, mas preservando agora uma expressão como que
intermediária entre o siso e o sorriso ostensivo, um bônomo smirk. Tal gracejo
não me passa despercebido, é óbvio, e sinto-me convidado e encorajado. Tendo de
pronto me resolvido ao que haveria de fazer, já não estou ali senão fazendo hora
para a realização de minha resolução, de modo que não passe por moleque afoito.
E zás!, chega o momento oportuno: exaurida a sua xícara, ela entra a ler qualquer
coisa que trazia na sua bolsa, meio requebrada e acariciando a sua própria nuca:
é sua intimação. Acedo, rumo à sua mesa, abordo-a com qualquer sensaboria
quotidiana, mas numa inflexão insinuante; termino por granjear-lhe o número de
telefone. As próximas cenas dessa peça inferem-se da marcha da humanidade.
[...] uma experiência inicial [...] A fonte e a origem das demais; o ponto de partida
por excelência de todo o empreendimento filosófico.
Gravidade e profundidade: metáforas físicas, uma experiência não tem peso físico
ou profundidade espacial. A metáfora é a seguinte: a fim de existir no universo
físico, a fim de possuir consistência ou substancialidade, precisa-se por força ter
algum peso (gravidade) e alguma profundidade. Logo, a percepção da presença do
ser dá às outras experiências a sua realidade, a sua substancialidade e consistência,
isto é, se destacadas do manancial que é a percepção da presença do ser, as demais
experiências são meros desvarios solipsistas da mente.
Ninguém pode, sem dúvida, consentir nesta experiência elementar, tomando-a
na sua simplicidade mais despojada, sem sentir uma espécie de
estremecimento. Cada qual reconhecerá que é primitiva, ou antes que é
constante, que é a matéria de todos os nossos pensamentos e a origem de todas
as nossas acções, que todas as iniciativas do indivíduo a supõem e a
desenvolvem. — Mas, feita esta constatação, rapidamente é esquecida: de ora
em diante basta que permaneça implícita; e deixamo-nos atrair seguidamente
pelos fins limitados que a curiosidade e o desejo nos propõem. Assim, a nossa
consciência dispersa-se; perde a pouco e pouco a sua força e a sua luz; é
assaltada por demasiados reflexos; não consegue agrupá-los porque se
distanciou do foco que os produz.
“Meu Deus!, isto aqui existe mesmo!... eu existo mesmo!... só pode ser um
milagre!” Mas não há palavra alguma; somente o estremecimento. Esse
“estremecimento” corresponde exatamente à perplexidade da qual nasce a pergunta
de Leibniz: “Por que existe algo, e não antes o nada?”
Cada qual reconhecerá que é primitiva, ou antes que é constante: não é que ela
propriamente anteceda as outras experiências temporalmente, mas que ela é
constante, isto é, que ela fundamenta sempre todas as outras. A experiência da
presença do ser está implicada em todas as demais. Se o objeto de experiência não
está presente como ser, ele não é objeto de experiência.
Eu sei o tempo todo que o ser está presente, mesmo que não reflita a respeito.
e a desenvolvem:
na presença do ser estão previstas as possibilidades e potências que minha
iniciativa desperta e traz à existência.
afinar-lhe a acuidade
Torná-la mais aguda, mais nítida.
... verdades e lições tais como: todas as nossas operações dependem dela,
encontram nela a sua fonte, a sua razão de ser e o princípio da sua potência.
dependem dela,
causa material.
acontecimentos:
A presença do ser não é um acontecimento, mas algo constante. A experiência do
ser é: as demais são acontecimentos.
Mas aquele que, pelo contrário, já apreendeu, num puro recolhimento e como
o acto mesmo da vida, a solidariedade do ser e do eu, já não pode destacar dela
o seu pensamento: a recordação deste contacto renova-lhe a presença, que não
cessa jamais de fazer vibrar o seu espírito e de o iluminar. Que não se diga
que esta experiência é evidente e deve ser feita, mas que é estéril se não for
superada imediatamente: contém em si tudo o que podemos conhecer. Desde
que é dado, a nossa vida reencontra a sua seriedade essencial, reatando os seus
laços com o coração do real, o nosso pensamento, em vez de, como se crê, se
empobrecer e se esvaziar, adquire a certeza e a eficácia, descobrindo, em cada
um dos seus passos, a identidade do ser que possui e do ser ao qual se aplica.
Que não se diga que esta experiência é evidente e deve ser feita, mas que é
estéril se não for superada imediatamente: contém em si tudo o que podemos
conhecer
Além de ser evidente e de ser mister o fazê-la, não se deve superá-la, mas retornar
sempre a ela, pois que contém em si tudo o que podemos conhecer.
Despojo meu olhar de toda intenção particular, sem fixar este ou aquele ente; o
mesmo faço com a corrente de meus pensamentos. Logo emerge então aquela
intuição da presença pura do ser, e da minha presença nele. Por um instante
imensurável, não me encontro ali, no meu banheiro, na presença das coisas de
banheiro: encontro-me mas é naquele mundo de luz, paz e alegria – é a morada da
verdade. Toda verdade que se desnuda em toda a sua intimidade nos dá acesso a
essa mesma luz, por variadas que sejam as formas sob as quais se nos apresente.
Ou seja, todas as veredas sempre dão nessa mesma fonte, confluindo, o que
significa que ela “contém em si tudo o que podemos conhecer.”
A Vida do Espírito é uma Cumplicidade
com o Ser
Descrever os termos desta primeira experiência pela qual o eu se inscreve a si
mesmo no ser e mostrar a relação que os une, é prosseguir uma acção dialéctica
que, sem nada acrescentar a essa experiência, permite medir-lhe a riqueza e a
fecundidade. As etapas desta investigação não têm apenas um interesse puramente
especulativo, dado que o eu ele mesmo constitui a sua própria natureza no decurso
deste debate permanente que a consciência, para nascer e para se desenvolver,
mantém com o ser absoluto. Se esta iniciativa é bem sucedida, deve sentir-se a
cada momento o carácter necessário das diligências intelectuais que se efectuam:
para que apareçam como necessárias, basta que se possam efectuar, e que, de
antemão, se aceite experimentá-las.
Pois a necessidade que se tem em vista não é nem uma necessidade exterior que
nos constrange sem os satisfazer, nem essa necessidade puramente lógica que,
tendo por objecto o simples acordo das noções, quer dizer, dos possíveis, não é
uma necessidade inerente ao próprio ser e fica sem eco na personalidade, uma vez
que não interessa nem a nossa vontade nem o nosso amor. Estas duas espécies de
necessidade têm um papel limitado e derivado: a primeira supõe o aparecimento da
sensibilidade e a segunda a da razão; baseiam-se numa distinção das faculdades.
Mas a necessidade que encontramos aqui é anterior e mais profunda. Não força a
nossa adesão de fora, seja pela passividade dos sentidos, seja pela disciplina da
razão. Nasce no nosso interior e não implica somente uma coincidência entre o
nosso pensamento e a essência das coisas, mas uma verdadeira cumplicidade entre
o nosso pensamento e as próprias coisas. Tem um valor ontológico porque
acompanha uma operação que é ao mesmo tempo reveladora e formadora do nosso
próprio ser. Atesta, realizando-a, a realidade essencial do ser puro e do nosso ser
participado. O conhecimento mais profundo que possamos adquirir do ser consiste
no nosso próprio consentimento em ser.
Assim, para que a nossa análise possa ser justificada, basta que as operações que
descrevemos sejam operações reais, isto é, que possam ser realizadas: mas é
necessário que o possam; e se o podem, estamos seguros de que nos trarão a
presença constante do ser, e por isso toda a luz e toda a alegria que acompanham a
nossa actividade, consciente da sua essência e da perfeição do seu exercício.
Cada qual deve intentar colher a natureza do ser verificando a realidade de certos
actos espirituais que ninguém pode realizar em seu lugar. Um autor não pode senão
sugeri-los e facilitá-los, e aquele que cumpre melhor a sua tarefa é aquele que sabe
fazer-se esquecer, desvia de si o pensamento do leitor, deixa este em presença de si
mesmo e lhe permite reconhecer através de uma espécie de descoberta pessoal,
uma verdade que já tinha pressentido muitas vezes e que nunca tinha deixado de
trazer no seu próprio âmago. É que todos os homens contemplam o mesmo ser: a
cada um deles cabe ser desperto por um outro para o pensamento ou acordar, por
sua vez, um terceiro. Não podem comunicar uns com os outros senão através de
uma comunicação de cada um deles com o mesmo objecto.
... reconhecer através de uma espécie de descoberta pessoal, uma verdade que já
tinha pressentido muitas vezes e que nunca tinha deixado de trazer no seu próprio
âmago.
Isto é, reconhecer algo que já se percebera, porém de maneira fugaz e muda. É uma
descoberta pessoal porque você reconhecerá algo que já sabia, uma verdade que já
vivia dentro de si, no seu “âmago”. E toda descoberta pessoal nos abre novos
horizontes de ação (a conversa com o Diogo).
[...] o eu ele mesmo constitui a sua própria natureza no decurso deste debate
permanente que a consciência, para nascer e para se desenvolver, mantém com o
ser absoluto.
É evidente que a presença do ser deve ser objecto de uma intuição e não de uma
dedução: pois não se poderia encontrar um princípio mais alto de onde pudesse ser
derivada. Todas as deduções se apoiam sobre ela, se cumprem nela e encontram
nela a sua verificação. Mas ela é ao mesmo tempo o fim de todos os nossos passos
particulares, de todas as operações do pensamento e da vontade. Pois cada uma
delas não pode bastar-se a si mesma: não tem para nós valor a não ser que, através
da sua mediação, possamos obter uma posse do ser, na qual se resolve e que a
torna, doravante inútil.
Sem dúvida, nunca conseguimos apreender o ser senão numa das suas formas
individuais. Sem dúvida, a consciência nunca nos dá mais do que um dos seus
estados momentâneos. Sem dúvida, ainda, admitindo que a consciência seja capaz
de entrar em relação com o ser, é de tal estado de consciência que é preciso mostrar
a coincidência com tal forma de ser. Mas cada uma destas observações, das quais
não podemos não reconhecer a verdade, implica a solução de um problema mais
vasto e sobre o qual é impossível passar em silêncio: é o problema de saber o que
nos permite dar a seres diferentes o mesmo nome de ser, fazer entrar estados
diferentes numa mesma consciência e, através das relações diferentes entre tal
objecto e tal estado, conceber que entre o que é e o que pensamos possa haver ao
mesmo tempo uma distinção e uma ligação. Por detrás de todas as questões
particulares que podemos pôr-nos, o problema do ser e do eu é o único que nos
interessa profundamente: percorremo-lo em todos os sentidos, acossamo-lo de
todos os lados, esperando encontrar no fim qualquer situação privilegiada na qual,
esquecendo todos os ensaios infrutuosos que preencheram a nossa vida,
encontraremos a sua razão de ser, tomando consciência tanto da sua essência
quanto do seu lugar no universo.
Aparentemente, uma tal busca não pode fazer progresso algum: é que não pode
senão aprofundar-se e alargar-se. Pois é da presença do ser que partimos: mas ela
não é ainda mais do que uma experiência confusa e que devemos analisar; esta
análise comporta uma série de operações, no decurso das quais a nossa
personalidade se vai constituir; e assim que esta descobrir a sua verdadeira
essência, unir-se-á de novo ao ser, mas desta vez num acto inteligível no qual a
experiência inicial encontrará a sua explicação e a sua perfeição.
O indivíduo tem uma tal confiança em si mesmo que, quando se perde, é sempre
porque a fantasia da sua imaginação ou o seu gosto das construções abstractas o
impedem de manter um contacto assaz estreito com a realidade. É então necessário
voltar sem cessar a esta experiência do ser na qual obtemos, ao mesmo tempo,
todos os nossos materiais e todas as nossas provas. Não obstante, é uma
experiência puramente espiritual: consiste em determinadas operações do
pensamento, que devem ser necessariamente adequadas, dado que esgotamos todo
o seu conteúdo no momento em que as realizamos e que podemos, de cada vez,
verificar a sua verdade, quer dizer a sua eficácia. E esta experiência pura é ao
mesmo tempo uma criação, pois a contemplação do ser é indiscernível do
movimento pelo qual o nosso espírito se engendra a si mesmo.
Capítulo IX