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A F A L Ê N C IA D O S D E U S E S

Traduzido do original em inglês


GODS TH A T FAIL
Copyright © Vinoth Ramachandra, 1996.
Publicado por Paternoster Press, P.O. Box 300
Carlisle, Cumbria CA3 OQS, Inglaterra.

Direitos reservados pela


ABU Editora S/C
Caixa Postal 2216
01060-970 - São Paulo SP
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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a


permissão escrita da ABU Editora.

Traduzido por: Milton Azevedo Andrade


Revisão: John L. Griffin
Editoração e Fotolito: Spubli
Capa: David Moreno Sperling

O texto bíblico utilizado neste livro é da Edição Revista e Atualizada


no Brasil, 2a. Edição, da Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando
outra versão é indicada:

BJ: Bíblia de Jerusalém - Edições Paulinas.


IBB: Almeida, Revisada, da Imprensa Bíblica do Brasil.
SBTB: Almeida, Edição Corrigida e Revisada, Fiel ao Texto
Original, da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.
TLH : Tradução na Linguagem de Hoje, da Sociedade Bíblica
do Brasil.

la. Edição: 2000.

C a t a lo g a ç ã o n a F o n te do D e p a rta m e n to N a c io n a l do L iv ro

R165f
Ramachandra, Vinoth
A falência dos deuses: a idolatria moderna e a missão cristã; Itraduzido
por: Milton Azevedo Andradel. — São Paulo: ABU, 2000.
286p.; 21 cm.

ISBN 85-7055-025-1
Tradução de: Gods That Fail.
Inclui índice.

1. Apologética. 2. Idolatria. 3. Filosofia moderna — Séc. XX.


6. Missões — Teoria. I. Título.
CDD-261

P
Reconhecimentos

Este livro teve um longo período de gestação. Foi gerado há


quatro anos, mas depois ficou inativo durante o tempo em
que voltei a minha atenção para um livro totalm ente
diferente, sobre missão, que abordava o desafio teológico
provindo da própria Igreja Cristã. Parte do material do
presente livro nasceu prim eiro como palestras dadas a
estudantes, cristãos e não-cristãos, em vários países
asiáticos. Sou grato a meus amigos Nishan De Mel, Dilani
Peter, Prabo Mihindukulasooriya e Shehan Williams, que
examinaram os prim eiros rascunhos de alguns dos capí­
tulos e avaliaram quanto ao interesse despertado em sua
leitura.
Dessa forma, dediquei este livro aos estudantes, aos
graduados e aos assessores da CIEE (Comunidade In ter­
nacional de Estudantes Evangélicos) da Ásia, os quais
com partilharam e enriqueceram a m inha jornada de fé.
Que, ao adentrarem eles o desafiante e novo mundo do
próxim o m ilênio, busquem e se apeguem firm em en te
àquelas velhas virtudes da verdade, da simplicidade e da
retidão.

5
C on teúdo

1. Introdução: Modernidade e ídolos 9


Fim da Modernidade?
A M odernidade como um Paradoxo
M odernidade e Fragm entação
A M odernidade e o Sentido
Um M útuo Desafio

2. Religião e ídolos 42
O Legado H egeliano
Críticas Secularistas
U m a Crítica Bíblica
Falsos Evangelhos
Virando as Mesas
Além da Experiência
De V olta para o Futuro

3. O Mundo como Criação 79


A H istória do Gênesis
A Linguagem da Criação, a Ciência e o Mundo
Questões Sobre as Origens
O “ Deus das Lacunas”
Posições Evolutivas Que Desviam a nossa Atenção
Celebração

4. J ó e o Silêncio de Deus 121


A Angústia de Jó
A Absolvição de Jó
Epílogo

5. A Violência dos ídolos 138


Formação de ídolos
Os N ovos Demônios
O Desenvolvim ento como Ideologia
U m Caos Pelas Águas: Gênesis 6 - 9
A T o rre Inacabada: Gênesis 11
6. Ciência e Anticiência 176
A Fé na Ciência
Pesquisa e Responsabilidade
O Assalto à Objetividade
Em Direção a uma Resposta Cristã
Ciência Reducionista
Epílogo

7. ídolos da Razão e do Irracional 223


Construindo sobre A reia M ovediça
A Perspectiva P osterior a Kuhnian
Conhecim ento Pessoal
Implicações Missionárias
M entes Alienadas

8. A Cruz e os ídolos 250


Confrontações de Poder
O Deus da Cruz
A Cruz E ntre as Nações
Conclusão

índice Remissivo 285


“ Quase chego a pensar que todos nós somos fantasmas, todos
nós mesmo, Pastor Manders. N ão é apenas o que herdamos de
nosso pai e de nossa mãe que permanece em nós. É toda sorte
de idéias mortas, e toda sorte de crenças antigas e obsoletas.
Essas coisas não estão vivas em nós; mas alojam-se em nós e
nunca conseguimos nos ver livres delas... Tem de haver fantasmas
por toda a extensão do país, tão densos como as areias do mar.
E assim encontram o-nos nós, tanto individualm ente como
coletivam ente, com um com ovente tem or da luz.”
- Sra. Alving, na peça Fantasmas , de H enrik Ibsen

“ Aqueles que acreditam que crêem em Deus, mas sem paixão


em seu coração, sem angústia m ental, sem incertezas, sem
dúvidas, e às vezes até mesmo sem desespero, crêem apenas
na idéia de Deus, mas não no próprio Deus.”
- M iguel de Unam uno (1864r-1937),
The Tragic Sense o f Life in Men and Nations
(O Sentido Trágico da Vida nos Hom ens e nas Nações)

“ C erta vez você disse ‘ Deus’ ao contem plar m ares distantes;


mas agora lhe ensinei a dizer ‘ Superm an’ .”
- Friedrich N ietzsche (1844-1900),
Thus Spoke Zarathustra (Assim Falou Zaratustra)
1

Introdução: M odernidade e ídolos

“ Constante processo de revolução na produção, distúrbios


ininterruptos em todas as condições sociais, uma permanente
incerteza e agitação distinguem a época burguesa de todas as
anteriores. Todas as relações fixas e definidas, com sua sucessão
de antigos e veneráveis preconceitos e opiniões, são totalmente
eliminadas; todas as recém-formadas tornam-se antiquadas, antes
de poderem ossificar. Tudo que é sólido transforma-se em ar,
tudo que é sagrado é profanado...”
- K. Marx e F. Engels, The Communist Manifesto
(O Manifesto Comunista), 18481

Estas famosas palavras, escritas há um século e meio, ainda


constituem uma descrição apropriada das mudanças sociais
que estão acontecendo em todo o mundo. A m odernidade
veio para circundar o globo, seus efeitos sendo sentidos nos
mais rem otos rincões e não apenas nos câmpus u n iversi­
tários, nos shoppings e nos processos burocráticos g o v e r­
namentais. N ão é simplesmente uma civilização entre tantas
outras, mas a p rim eira civilização verdad eiram en te global
a em ergir na história humana. P ara M arx, as condições
chamadas “ m odernas” eram aquelas criadas pelo progresso
tecnológico e pelo com ércio entre as nações em constante
crescimento. A produção capitalista foi o nervo central do
m onstro da m odernidade. A n tiga s com unidades foram
desarraigadas e as pessoas foram lançadas à competição,
umas contra as outras, na nova selva de uma ordem social
capitalista. Mas, para M arx, os horrores da m odernidade
continham ainda um a promessa poderosa. O colapso de
“ todas as relações fixas e definidas” libertou os seres huma-

9
A FALÊNCIA DOS DEUSES

nos modernos dos “ antigos e veneráveis preconceitos e


opiniões” da vida tradicional do camponês. Criou-se uma
oportunidade histórica para a humanidade, representada
inicialm ente pela nova classe trabalhadora industrial, de
apoderar-se do controle sobre sua existência por m eio de
uma revolução coletiva e assim pôr um fim a toda a u tori­
dade irracional e arbitrária. O m onstro da m odernidade
não apenas podia ser domado (uma vez que ele era, afinal
de contas, uma criação humana), mas tornar-se-ia um meio
necessário para a libertação humana.
Um a outra bem conhecida imagem do que é sentir-se viver
sob as condições modernas foi dada por M ax W eber (1864-
1920), um dos fundadores da sociologia moderna. Para Weber,
o capitalismo era parte de um fenômeno bem mais amplo
de crescente racionalização, que apareceu pela prim eira vez
no Ocidente no final do século dezesseis e no século dezessete.
Como M arx, W eber acreditava que o capitalismo era uma
forma econômica própria de um momento específico da história,
não uma tendência humana universal. Diferentem ente da
busca de ganho ou de uma exploração impiedosa, comum à
m aioria das culturas humanas, a época moderna do capita­
lismo seria um sistema de comportamento racionalmente
dirigido por regras, organizado em torno de uma motivação
central: a contínua acumulação de lucro como um fim em
si mesmo. A modernidade seria como uma “ gaiola de fe rro ”
apertando cada vez mais um laço de racionalidade impessoal,
abstrata e instrumental em torno de suas vítimas, acabando
com a espontaneidade, com a diversidade e com o mistério,
e contribuindo para o “ desencantamento” do mundo por toda
parte.2 Essa é uma imagem que veio dominar grande parte
da literatura de ficção e sociológica do século vinte. Deu
origem a uma ampla postura de pessimismo e de quase
fatalismo.
(A caracterização de W eber com respeito à racionalidade
burocrática, como sendo essa “ gaiola de ferro” da modernidade,
com sua quase total rigidez, não tem ficado imune a desafios.
De Durkheim em diante, estudos empíricos têm mostrado
que, freqüentemente, organizações de larga escala têm dado

10
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

lugar a uma autonomia e a uma espontaneidade que são


menos alcançáveis no mundo fechado de grupos sociais
menores.)
Um a imagem alternativa tanto a M arx como a W eber é
oferecid a nos escritos recentes do em in en te sociólogo
britânico Anthony Giddens. E le compara a vida no mundo
moderno com estar sobre uma “jam anta instável... muito
mais do que estar num bem controlado e bem dirigid o
au tom óvel” .3 A palavra “jam anta” em inglês (juggernaut)
provém do título hindu dado ao deus Krishna, ou seja,
Jagannath. U m a enorm e carruagem era usada para levar
um ídolo da divindade quando saía do seu tem plo em Orissa
uma vez por ano, e, ao rodar pelas ruas, devotos atiravam-
se diante de suas rodas e eram m ortos esmagados. A jam anta
moderna é um veículo de grande potência que, “ em conjunto,
como seres humanos, podemos dirigir até um certo ponto,
mas que também ameaça escapar do nosso controle e frag-
mentar-se totalm ente” .4 N ela a corrida de form a alguma é
desagradável. Andar na jam anta da modernidade muitas
vezes é divertido e recompensador, mas às vezes ela perde
a direção e desvia-se violentam ente, de m aneira im previsível
e incontrolável. E la esm aga tanto os seus devotos como
todos aqueles que estiverem no caminho.
G iddens recusa-se a id en tifica r o ca p ita lis m o com
modernidade, vendo-o simplesmente como um (um “ nexo
institucional” ) em meio a muitos m ovimentos que constituem
essa complexidade a que chamamos de vida moderna. Os
outros m ovimentos mais importantes são a industrialização
(a transformação da natureza em “ ambientes criados” por
meio da ciência e da tecnologia), e o crescimento da nação-
estado (com o seu controle sobre a informação, com a super­
visão da população, e com o monopólio dos meios de violência).
Se é que então, como alguns alegam, nós (ou, pelo menos,
a Am érica do N orte e a Europa ocidental) já passamos para
uma nova era de “ pós-modernidade” , isso tão somente pode
significar que a trajetória do desenvolvimento social levou-
nos para além das instituições modernas, para um tipo novo
e diferente de ordem social.

11
A FALÊNCIA DOS DEUSES

G id d en s é c é tic o q u a n to a te rm o s u ltrap assad o a


“ m odernidade” para um “ universo social pós-m oderno” ,
mas reconhece haver “ alguns vislum bres do surgim ento
de modos de vida e de formas de organização social que são
divergentes em relação àqueles nutridos pelas instituições
modernas” .5 Em vez de em pregar o term o pós-modernidade,
o que assim pode dar margem a erro, ele prefere falar de
“ radicalização” das conseqüências da m odernidade no fim
do século vinte, admitindo que estamos vivendo um período
“ final” da modernidade, ou um período da “ alta” modernidade.
Quanto ao term o correlato “ pós-modernismo” , também em
voga hoje em dia, ele é “ mais adequado para referências a
estilos ou m ovimentos dentro da literatura, da pintura, das
artes plásticas e da arquitetura. Ele diz respeito a aspectos
de uma crítica estética sobre a natureza da m odernidade” .6

Fim da Modernidade?
Sociólogos ocidentais não estão de acordo quanto a como
descrever as transformações da modernidade que têm se
avolumado nos últimos anos. Para aqueles que aceitam uma
das versões da diferença existente entre modernismo e pós-
modernismo, mais uma vez parece que “ tudo o que é sólido
transforma-se em a r” . Dando seguimento à m etáfora da
jam anta feita por Giddens, a “ pós-modernização” é melhor
com preendida como uma continuação dos processos da
modernização, mas com crescente intensidade e amplitude;
mas o resultado dessa intensificação tem sido o de m inar a
estabilidade da modernidade e lançá-la numa certa confusão.
N ão mais sujeita ao controle e à previsão, seus efeitos cul­
turais e institucionais podem até mesmo se reverterem .
Indubitavelm ente aspectos do “ pré-m oderno” , do “ m o­
derno” e do “ pós-moderno” coexistirão muito bem no século
vinte e um, em sociedades ricas e pobres, mas em configu-
raçõesdiversificad as e desconcertantes. A legações quanto
à “ m orte da m odern idade” são prem aturas e, p arafra­
seando M ark Twain, um tanto exageradas.
Além dos pós-modernistas, o cenário intelectual nos últi­
mos anos tem sido acrescido de pós-estruturalistas, pós-
m arxistas, p ós-in d u strialistas, p ós-F ordista s e ou tros

12
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

apóstolos de uma nova dispensaçáo. Teólogos cristãos, es­


pecialmente nos Estados Unidos, não se têm retardado em
se lançarem na onda, declarando o advento de uma nova
ordem teológica “ pós-liberal” e “ pós-evangelical” . Com fre-
qüência se tem chamado a atenção quanto à ironia existente
em que aqueles que vêem que ocorreu uma transição
fundam ental global nas últim as décadas com a “ pós-moder-
n id a d e ” , s u p lan tan d o a m od ern id a d e, esses m esm os
tenham invocado precisamente o que eles declararam ser
impossível sob as “ condições pós-modernas” , ou seja, o fato
de se dar à história uma coerência intrínseca, e de p oder­
mos nos localizar dentro de seu m ovim en to incessante.
Pois uma das ênfases que caracterizam a têm pera in te­
lectual pós-m odernista (dom inan te m ais nas humanidades
do que nas ciências) é que todas as teorias universais, todas
as verdades declaradas e todos os estudos teleológicos da
história - “ m etanarrativas to talizan tes” , como se diz agora
- estão tornando-se obsoletos. Os escritores que falam de
uma nova época pós-m odernista ainda estão em pregando
uma n a rrativa universal para celebrar o desaparecim ento
de todas as narrativas universais. Eles ainda operam dentro
da mesma postura intelectual, uma vez que a subversão
cética das n a rrativas tradicionais tem sido tan to parte do
mundo da m odernidade com o o é a criação de explicações
abrangentes.
Muitas vezes se tem ressaltado que o homem moderno tem
muito pouco senso do que é a história. Todos estamos pre­
dispostos a considerar a nossa geração como algo especial,
inigualável tanto na profundidade de suas crises como nas
suas conquistas. Assim somos tomados com alguma surpresa
ao sermos lembrados de que muitos dos temas que dom i­
naram a segunda metade do século vinte prim eiram ente
foram concebidos na “ crise cultural” européia dos anos da
década de 1890. Em meio à glória declinante de Hapsburg
Vienna, por exemplo, surgiu o estudo do subconsciente e do
seu papel nas irracionalidades da vida diária, a noção de
nacionalidade como base para a identidade política, e a
preocupação com a linguagem e o seu efeito na “ construção”
da realidade... A década também viu o surgim ento da socio­

13
A FALÊNCIA DOS DEUSES

logia como disciplina eientificam ente organizada, com suas


pesquisas na cultura urbana, na racionalização e na buro­
cracia, no suicídio e na anomia. P or mais im portantes que
tenham sido as mudanças sócio-econôm ieas recentes, es­
pecialm ente nas duas últimas décadas, elas não devem ser
exageradas. Pois, como até mesmo aquele guru da nova
“ sociedade do conhecim ento” , Daniel Bell, adm itiu numa
nota de rodapé do seu fam oso livro The Corning o f Post-
Industrial Society (A Vinda da Sociedade Pós-M oderna),
“ N o que se refere à vida diária das pessoas, mais mudanças
deram-se entre 1850 e 1940 - quando estradas de ferro, navios
a vapor, telégrafo, eletricidade, telefone, automóveis, rádio
e aviões passaram a fazer parte dela - do que no período desde
então, em que o futuro é tido como acelerado. De fato, além
da televisão, não houve uma inovação de maior amplitude
que tenha afetado a vida diária das pessoas tanto como os
itens citados.” 7
Os que subscrevem o credo pós-modernista mais radical
também asseguram que as distinções por tanto tempo ad­
mitidas entre a realidade e a aparência, entre a verdade e
a falsidade, entre o raciocínio válido e o inválido, entre
princípios éticos e convenções sociais são vestígios de uma
herança platônica, cristã, e do Ilum inism o (de Kant, de M arx
e de ou tros) no ocidente, agora já descartados. O a rgu ­
m ento às vezes tem seu início na premissa de que verdades
declaradas freqüentem ente acompanharam a idéia do acesso
privilegiado que uma elite tinha, usando sua autoridade
intelectual e seu poder político para impor a sua versão da
verdade aos outros. Term ina com variações no tem a de
Nietzsche de que a “ verdade” nada mais é do que o produto
de um determinado discurso humano, com a vida pós-mo-
derna sendo um tardio reconhecim ento e celebração de
discursos múltiplos e conflitantes.
Daí a animada recomendação do pragm atista americano
Richard R orty a seus companheiros filósofos no sentido de
que se unissem aos teólogos no reconhecimento de que era
uma ilusão pensar que podiam resolver questões de v e r ­
dade finai, e que se voltassem ao diálogo cultural da hum a­
nidade, em iguais condições com sociólogos, com os críticos

14
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

literários, com os novelistas e com outros que nunca deram


margem a taispretensões arrogantes. Deveríam os substituir
“ solidariedade” por “ objetividade” , a percepção de valores
e crenças baseados no consenso pela tentativa de explicar
tudo a p artir de um ponto de vista crítico. Falar de “ verdade”
agora nada mais é do que uma ferram en ta retórica, um
rótulo de con ven iên cia atado às idéias que encontram
p re s e n te m e n te um a am pla ap rovação. E la pode ser
redefinida para todo e qualquer propósito prático como
“ boa no que diz respeito ao que se deva crer” .8
T ais recomendações têm um aspecto perigoso quando
consideramos quão facilm ente a opinião pública pode ser
manipulada e valores de consenso podem ser engenhosa­
m ente montados de form a a servir a algumas formas não
liberais de comportamento político. As versões da crença
pragm ática e pós-m odernista que têm preconceitos em
relação às idéias “ ultrapassadas” , tais como verdade, crítica
e responsabilidade ética, sim plesm ente não podem distin­
guir um verdadeiro consenso, alcançado m ediante livres
discussões e debates, de um falso consenso que se baseia
apenas em preconceitos coletivos, em distorções causadas
pela mídia e pela força maior imposta pela propaganda. T al
como aqueles slogans da moda que proclamam o “ fim da
história” e o “ fim da ideologia” , elas acabam servindo para
legitim ar os cínicos interesses do “ realpolitik ” americano.
Assim, Francis Fukuyama, com o apoio da empresa Rand,
tornou-se da noite para o dia uma celebridade no circuito
de conferencistas dos Estados Unidos naqueles anos de
eu foria entre a queda do M uro de Berlim e o início da Guerra
do Golfo, ao pronunciar, com plena confiança, “ o fim da
história” .9 Como o mundo todo - ou o mundo que realmente
pesava na balança - tinha agora abraçado o capitalismo da
livre concorrência e da democracia liberal, o conflito ideo­
lógico agora era uma coisa do passado e a história efetiva­
mente havia chegado a um fim . C ertam ente haveria por
todo o mundo aqueles incômodos “ pontos de perturbação”
que se recusariam a aceitar a N ova Ordem Mundial, e in te­
lectuais críticos por toda parte, que ainda se dariam a gestos
Canuteanos para se defenderem das ondas da mudança, mas

15
A FALÊNCIA DOS DEUSES

arquicapitalista , e assim por diante), uma celebração da


fragmentação e da perda da profundidade que, como veremos,
caracterizam os últimos tempos do mundo moderno.
Tendo rejeitado tanto a teologia bíblica da criação como
o discurso humanista de uma “ natureza humana universal” ,
escritores tais como R orty têm grande dificuldade em encon­
trar uma estrutura moral dentro da qual podemos localizar
um sentido de lugar e de “ solidariedade” humana. R orty pode
apenas recorrer com um apelo pragm atista ao sentimento
nacionalista como base para a política. Assim é que ele
observa “ a atitude de liberais americanos contemporâneos
diante da permanente falta de esperança e miséria dos jovens
de cor das cidades americanas. Será que dizemos que essa
gente tem que ser ajudada por serem seres humanos como
nós? Podemos dizer isso, mas é muito mais persuasivo, tanto
m oralmente como politicamente, descrevê-los como sendo
seres americanos como nós - insistindo em que é ultrajante
um americano viver sem esperança” .12 Quanto a tal apelo ser
persuasivo aos habitantes dos Iraques e R uritânias de
Fukuyama - os quais agora estão sendo atraídos para os
benefícios da democracia liberal e para o respeito aos “ direitos
humanos” - isso dá margem a uma séria dúvida. E paradoxal
que assim como o discurso da “ verdade” historicamente tem
sido usado para consolidar poder pela divisão das pessoas em
“ nós” e “ eles” (ponto que é enfatizado repetidam ente por
críticos pós-modernistas da modernidade), aqui até mesmo
a linguagem de “ solidariedade” serve apenas para cimentar
estreitos interesses sectaristas...

A M odernidade como um P aradoxo


O renomado filósofo checo, novelista e estadista Vaclav Havei,
identificou a característica mais distintiva da vida moderna
como sendo a “ perda de coordenadas” . Ele escreve: “ Creio
que com a perda de Deus, o homem perdeu como que um
sistema universal de coordenadas absolutas, ao qual ele podia
sempre relacionar qualquer coisa, principalm ente ele mesmo.
Seu mundo e sua personalidade gradualmente começaram
a fragm entar-se em partes separadas, incoerentes, corres­
pondendo a coordenadas diferentes, relativas...” 13

18
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

Havei estava refletindo acerca da inerente fraqueza das


sociedades ocidentais modernas, precisamente o modelo que
o seu país recentem ente independente se achava persuadido
a seguir. Ele considerou a cultura consumista do Ocidente
tão opressiva ao espírito humano como a repressão que a
Europa oriental havia sofrido durante a m aior parte do século
vinte. A recente história da Europa oriental, ele crê, exibe
ao O cidente um espelho convexo, dando uma grotesca ima­
gem aum entada das próprias tendências ocidentais. A
modernidade tinha liberado forças que produziram confor­
midade, uma cultura de rebanhos, tanto na form a aberta de
regim es totalitários como na form a velada de pressões
homogeneizadoras de consumismo. As banais liberdades de
escolha, representadas pela propaganda da Coca-Cola exis­
tente em toda parte, pelos shoppings centers, e pela rede de
lanchonetes M cD onald’s (que se tornaram símbolos univer­
sais da modernidade), ocultam a perda da liberdade num grau
mais profundo, maior. Para cada realização da modernidade
há também um lado inferior demoníaco. O capitalismo liberal
e o marxismo foram realm ente aspectos gêmeos do mesmo
fenômeno, gerado pela perda de coordenadas no mundo
moderno. Eles seguiram o “ ím peto irracional do anonimato,
do impessoal e do poder desumano, o poder das ideologias,
dos sistemas, da burocracia, das linguagens artificiais e dos
slogans políticos” .14
Todo o raciocínio matemático de Havei é instrutivo. Coorde­
nadas expressam a m aneira pela qual as coisas se relacionam
umas com as outras. Elas fornecem um ponto de referência,
uma escala pela qual grandezas podem ser medidas e vistas
em suas verdadeiras proporções, um mapa que nos ajuda a
situar-nos e conhecer melhor a realidade. A crença em Deus
tinha sido tradicionalmente o foco de união em tal sistema
de coordenadas na cultura ocidental. Assim, sob uma im por­
tante perspectiva, a condição moderna é caracterizada por
uma deslocação de Deus daquela posição focal. N ão se trata
de Deus ter sido explicitam ente apagado, removido, da cons­
ciência m oderna (em bora isso tenha sido vigorosam ente
tentado, por exemplo, pela versão francesa do Ilum inism o15
do século dezoito e também pelos seus sucessores marxistas,

19
A FALÊNCIA DOS DEUSES

no século vinte), mas sim que Deus foi empurrado para os


lim ites do estado da consciência, e sua função foi assumida
por divindades substitutas (por exemplo, pela Natureza, pela
Posteridade, pelo Estado, pelo Mercado, e assim por diante).
As origens históricas da cultura secular m oderna ainda são
objeto de debate acadêmico, e não me proponho a aventurar
nesse complexo terreno. O que se tem tornado cada vez mais
claro, entretanto, é que a popular auto-imagem da m oderni­
dade - especialmente na condição de ser um rompimento
radical com a visão cristã do mundo e a emancipação da razão
humana em relação à opressiva prisão dos interesses ecle­
siásticos - carece de uma plausibilidade histórica. Parece ter
havido mais liberdade intelectual nos últimos anos do período
medieval na Europa do que no apogeu do Iluminismo francês;
mais cidadania participativa nas “ cidades livres” medievais
da Europa e nas “ santas comunidades” da N ova Inglaterra
Puritana do que em muitas das hoje chamadas “ democracias
avançadas” . As raízes da própria modernidade foram nutri­
das tanto pela teologia cristã quanto pelas filosofias pré-
cristãs da Grécia e de Roma. A famosa tese de M ax W eber
- de que a racionalidade e a piedade puritanas forneceram
a formação do carácter necessário para o surgim ento da
economia capitalista - agora é reconhecida como tendo sido
grandem ente exagerada, mas serviu para chamar a nossa
atenção para o clima intelectual singular, no qual a m oderni­
dade surgiu.16 Isso se v ê especialmente com o surgim ento da
ciência natural experimental, que permanece como o aspecto
mais proeminente e influenciador na sociedade moderna. N ão
apenas os valores cristãos foram incorporados na prática
científica, mas a atividade científica em si baseou-se numa
determinada compreensão de Deus, dos seres humanos, e do
mundo, que se originou da teologia da Reform a.17
Além disso, o filósofo político Charles T aylor recentemente
enfatizou o que ele denomina a “ afirmação da vida com um ”
a que foi dada um novo e inédito significado no começo da
era moderna. Isso, como crê Taylor, também se tornou “ uma
das mais poderosas idéias da civilização m oderna” .18 Com
“ afirmação da vida comum” ele refere-se ao pensamento
bíblico, redescoberto na Reforma, de que a vida diária da

20
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

produção e da reprodução humanas, do trabalho e da família,


é o foco principal da boa vida, e carrega em si dignidade e
valor. Taylor salienta que, “ de acordo com a ética aristotélica
tradicional, isso tem apenas uma influência infra-estrutural.
A ‘vid a’ tinha importância em ser o am biente necessário e
o suporte para ‘a boa vida’ da contemplação e para a ação
individual como cidadão. Com a Reforma, encontramos um
senso moderno, inspirado pelo Cristianismo, de que a vida
comum era, ao contrário, o verdadeiro centro da boa vida.
A questão crucial era como ser levada, se em adoração e no
tem or de Deus, ou não. Mas a vida dos tem entes a Deus era
vivida em todos os seus dias no casamento e no seu chamado.
As formas precedentes ‘ mais elevadas’ de vida foram destro­
nadas, por assim dizer. E com isso freqüentem ente houve
um ataque, velado ou às claras, sobre as elites que tinham
feito dessas formas sua esfera de ação. ” 19O que T aylor afirm a
aqui com respeito à ética aristotélica é também válido para
as tradições religiosas monásticas das sociedades asiáticas.
Entretanto, há um outro aspecto da modernidade que por
fim submergiu todo caminho cristão que tenha sido usado
para alcançá-la. As conseqüências políticas indiretas e não
previstas da Reform a - alcançando um clímax nas guerras
religiosas de grande animosidade travadas no final do século
dezesseis e no início do século dezessete - propiciaram a força
que impulsionou os estados europeus para uma ordem social
e política baseada na “ religião natural” mais do que em
qualquer credo confessional em particular. N o seu extenso
trabalho The Authority o f the Bible and the Rise o f the Modem
World,20 H enning G ra f R eventlow explorou a tão difundida
influência de antigas fontes gregas, em especial do estoicismo,
nos pensadores do início da era moderna, e a form a pela qual
a Bíblia, enquanto ainda uma autoridade não contestada nas
questões políticas e éticas, passou cada vez mais a ser lida
dentro de uma estrutura de posturas racionalistas e estran­
geiras. O Deus da Bíblia tornou-se a divindade abstrata e
não histórica do teísmo filosófico.
O Deus que é desalojado do centro coordenador do pen­
sam ento humano não desaparece sem mais nem menos.
Deus pode deixar de ser o Outro transcendente, por cima

21
A FALÊNCIA DOS DEUSES

e acima do mundo humano, mas ele reaparece com o disfarce


do Eu humano. René Descartes (1596-1650) é considerado
o fundador do conceito moderno de conhecimento: conheci­
mento que toma a certeza m atemática como o seu ideal,
independente da autoridade do passado, alicerçada na indi­
vidualidade humana. Um a linha reta poderia ser traçada
na história das idéias desta abordagem até a posição de
Feuerbach (1804-1872), profundam ente influente na tra­
dição marxista, de que todos os atributos de um Deus trans­
cendente referem-se, na realidade, à consciência humana
coletiva. A teologia agora foi traduzida para a antropologia.
A linha reta estende-se natural e inexoravelm ente ao que
hoje, com freqüência, é referido como o “ Fim do Ilum inism o”
ou como a “ alta m odernidade” , na term inologia menos
dramática de Giddens: uma postura mental que é isenta de
noções centrais do Iluminismo, tais como objetividade, v e r­
dade, crítica, razão correta e “ progresso” . A té mesmo a
realidade do ser humano unificado é agora negada. N as
fases iniciais da modernidade, a ameaçadora experiência de
“ tudo o que é sólido transforma-se em a r” era contrariada
por se encontrar ordem e significado no autônom o eu
humano (pensando, querendo e julgando); mas agora aquele
eu semidivino estilhaçou-se e dissolveu-se em numerosas
“ posições” , cada uma posta para fora por algum discurso
humano específico e contextuai. O eu humano é simples­
mente o ponto de interação de miríades de forças sociais e
culturais. Usando uma famosa m etáfora do escritor francês
M ichel Foucault, ele está escrito na areia à beira do mar,
para ser em breve apagado com a próxima maré.
Aqui parece que o pós-modernismo é simplesmente o mo­
dernismo enfrentando as conseqüências de seus próprios
atos. Um m ovim ento que procurou fazer com que a objeti­
vidade da verdade se preservasse em relação à “ in te r­
ferên cia” teológica acabou por duvidar do próprio conceito
da verdade. U m m ovimento que se gloriou na razão e que
a exaltou acima da revelação divina veio a desprezar o
racional em cada uma das áreas da vida. U m m ovim ento
que começou com a divinização do eu acabou por chegar à
perda exatamente daquele eu.

22
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

E stes são apenas alguns dos m uitos paradoxos da


modernidade. Um a era que começou com uma vigorosa
defesa da individualidade humana procriou, nas regiões do
mundo mais influenciadas pela modernidade, ou estados
totalitários m ais dom inadores do que os da antigüidade,
ou então uma igualmente opressiva conformidade, promo­
tora do consumismo. A crença no progresso humano através
da conquista da natureza desencadeou forças que agora
ameaçam de extinção a própria espécie humana. A insta­
lação do Hom em como Criador de todo sentido e valor, numa
tentativa de elim inar o peso morto do passado e “ começar
tudo de novo” , deu como resultado a negação de qualquer
sentido ao mundo e à humanidade. E stilos de vid a m oder­
nos prometem a liberdade, mas levam a modismos que são
servilm ente seguidos e também a novas e poderosas depen­
dências. Os relacionamentos modernos dão um alto prêmio
à intim idade e à autenticidade, mas são propensos a ter
medo da manipulação e da arte de quem se impõe como
melhor do que os outros. A marginalização da religião por
si mesma gerou numerosos m ovim entos religiosos novos,
de form a que alguns dos estados mais secularizados do
mundo estão passando por um florescer do interesse “ reli­
gioso” . N os câmpus universitários do ocidente, trabalhos
sobre astrologia, misticismo e shamanismo evidentem ente
são bem mais populares do que os trabalhos de Hum e ou
de Locke.
As pessoas do mundo ocidental moderno (e as classes
médias de culturas não ocidentais) são melhor alimentadas,
têm melhores moradias, desfrutam de uma melhor assis­
tência médica do que as pessoas que viveram em qualquer
época anterior da história humana. Mas, paradoxalmente,
hoje essas pessoas parecem ser as mais temerosas, as mais
divididas, as mais solitárias, as mais supersticiosas e pare­
cem ser ainda a geração mais entediada da história humana.
Todos os aparelhos domésticos da moderna tecnologia o que
fizeram foi aumentar o estresse humano, e a vida moderna
caracteriza-se por um m ovim ento sem cessar de um lugar
a outro, de uma “ experiência” para outra, num remoinho
frenético de atividades sem propósito.

23
A FALÊNCIA DOS DEUSES

M odernidade e Fragm entação


A perda de coordenadas com que Havei se preocupou tem
acarretado in evitavelm en te a fragm entação do conheci­
mento e da vida, uma característica tão proeminente da
sociedade moderna. M ary M idgley, uma filósofa lingüística
britânica, lamenta o modo pelo qual o conhecimento veio a
ser identificado com o recolhim ento e o arm azenam ento de
informações. “ Agora se tem dito - escreve ela - e é admitido
por alguns como um sinal do progresso, que o conhecimento
humano está duplicando-se exponencialmente a cada sete
anos, num processo que teria começado no final da década
de 60. O que sustenta tal afirmação é que o número de
documentos científicos publicados no mundo tem crescido
a essa taxa. Será que alguém acredita que o tem po disponível
para a leitura tem crescido dessa m esma forma, de modo
que todo esse m aterial possa ser lido e digerido? Todos os
departam entos acadêmicos agora estão sendo bom bardea­
dos com enxurradas de novos artigos, dos quais apenas uma
m ínim a porcentagem tem como ser lida, mesmo que as
pessoas nada mais fizessem ... O principal efeito dessa
enxurrada de papéis (além de acabar com as reservas flo­
restais do mundo) portanto só pode ser o de empilhar artigos
que, uma vez publicados, não são lidos por ninguém, ab­
solutam ente.” 21 Nenhum a bibliografia está atualizada. A
quantidade enorm e de livros e de ensaios críticos, de dis­
sertações e artigos acadêmicos produzidos diariam ente na
Europa e nos Estados Unidos tem o peso enorm e e o caráter
de uma avalanche.
Tal “ processam ento de inform ações” , dividido em tantas
disciplinas e subdisciplinas, não mais constitui o que se
chama de conhecimento, no sentido tradicional. A té agora,
o conhecimento tem sido visto envolvendo a compreensão,
a habilidade de relacionar m iríades de componentes da
inform ação num todo com significado. Para todos os grandes
filósofos do passado, tanto cristãos como não-cristãos, o
conhecimento era um aspecto da sabedoria: fazia parte da
compreensão da vida como um todo, o que propiciaria o senso

24
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

do que realm ente te ria im portância, do que realm ente valeria


a pena buscar por alcançar na vida. Sim plesm ente dispor
de inform ações como algo que se possua, mas que não produz
qualquer efeito, e transm iti-las como um bocado de comida
a discípulos, isso traria desprezo em qualquer outra época.
Num nível acadêmico, M idgley acredita que as coisas m elho­
rariam enorm em ente se a prioridade em livros e jornais fosse
a qualidade do raciocínio, e não m eram ente o núm ero de
páginas publicadas - “ um número que, no que se refere à
avaliação do m érito, tem bem pouca im portância a mais do
que o núm ero dos fios de cabelo do escritor” .22 E la ainda
destaca que o que é necessário não é sim plesm ente que
diferentes especialidades tenham que ser relacionadas entre
si, mas que todas elas se relacionem com o pensar e o sentir
de cada dia, e que por isso sejam responsabilizadas. Assim
como uma música gravada numa fita e arquivada para
sempre, sem nunca ser ouvida, é uma música perdida, o que
se conta com o conhecimento hoje é sem elhantem ente inútil.
M as a música tam bém é perdida quando ou vida por quem
não pode v e r o que ela qu er com unicar. Da m esm a form a
acontece com o conhecim ento.
Isto não quer dizer que todos os eruditos deveriam esforçar-
se por ser politécnicos, e m uito menos tentar assenhorear-
se de todos os detalhes de seus próprios campos limitados.
Isso teria sido im possível em qualquer época. O que é ne­
cessário, diz M idgley, é que “ todos deveriam ter em m ente
como que um mapa geral de referência para todo o seu ram o
de conhecimento, como um contexto para a sua especialidade,
integrando essa visão mais am pla com a sua atitude prática
e emocional para com a vida. Todos deveriam ter condições
de poder localizar a sua pequena área no mapa do mundo,
e tam bém sair dela com liberdade quando fosse necessário.”23
Mas esse “ mapa geral de referên cia” é precisam ente o que
a m odernidade deixou de te r ao perder as coordenadas
cognitivase morais. É de Im m anuel K an t (1724-1804), talvez
o filósofo mais influente do Ilum inism o, uma síntese da razão
e da experiência sensorial em que as esferas da verdade, da
bondade e da beleza se acham radical e perm anentem ente
fragmentadas. O ser humano individualm ente se fragm entou

25
A FALÊNCIA DOS DEUSES

em faculdades abstratas e não-comunicativas da razão, da


vontade e das emoções. A razão científica propiciava a
verdade objetiva, a vontade - que, em bora racional, alojava
um nível diferente de realidade - centrada na moralidade.
A emoção tornou-se o canal para a percepção estética.
Assim o mundo de “ fatos” foi separado do de “ valores” , o
conhecimento afastou-se da fé, e a estética tornou-se uma
questão de puro julgam ento subjetivo. O legado de Kant,
que divorcia a ciência, a ética e a arte, cada uma das demais,
ainda é visível em todo câmpus universitário.
W eber reforçou essas separações com a doutrina de
“ esferas diferenciadas” na sociedade moderna. De acordo
com ele, a lei, a religião, a adm inistração, a ciência, a arte,
a ética, a econom ia, etc., cada uma dessas coisas v iv ia numa
“ esfera autônom a” em que o seu único e próprio sistem a
de norm as e de racionalidade prevalecia. N ão havia possi­
bilidade algum a de comunicação entre as diversas esferas.
Assim, por exem plo, não era perm itido levar um critério
estético para a ciência, ou julgam entos éticos para discus­
sões sobre a economia. A form a mais pura de racionalidade
era praticada na ciência, e essa “ razão instrum ental” in­
vadia outras esferas à m edida que a m odernidade avançava.
Mas cada esfera ocupava um espaço autônomo, embora
lim itado, na sociedade. W eb er acreditava estar descre­
vendo o que tinha acontecido às sociedades sob o impacto
do capitalismo e da tecnologia científica, mas suas descrições
foram influenciadas pela sua própria estrutura de pensa­
m ento kantiano. Assim , logo em seguida à sua avaliação
deprim ente da modernidade em termos de uma “ gaiola de
fe rro ” , ele observa: “ N inguém sabe quem é que vai v iver
nessa prisão no futuro, ou se ao fim desse trem endo desen­
volvim en to profetas inteiram ente novos surgirão, ou se
haverá um grande ressurgim ento de velhas idéias e antigos
ideais ou, se nada disso, uma petrificação m ecanizada...
P ois do últim o estágio deste d esen volvim ento cultural bem
que se poderia verdadeiram ente dizer: ‘ E specialistas sem
espírito, sensualistas sem coração../ Mas isso nos traz ao
mundo de julgamentos de valor e de fé, com o qual não se
deve sobrecarregar esta discussão puramente histórica...”'24

26
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

Nas últim as décadas muitos trabalhos sociológicos têm


focalizado a erosáo da vid a pública sob as condições m o­
dernas, a sua transform ação numa situação em que o povo
se sente passivo e desamparado, e a elevação do domínio
dos relacionamentos pessoais a um refúgio do mundo social
tão austero e a uma arena para auto-realização. O consumo
em massa de mercadorias tem acelerado esse processo. Poder-
se-ia dizer que enquanto a literatura do modernismo (por
exemplo, a poesia de T. S. E liot) considera a fragm entação
como uma perda, os heróis do pós-m odernism o (com o por
exem plo o novelista M ilan K u nd era) celebram -na.

A M odernidade e o Sentido
Num a fascinante discussão sobre a perda de sentido na
modernidade, o em inente crítico literário George Steiner
argumenta persuasivamente que “ todo relato coerente sobre
a capacidade da linguagem humana de poder comunicar
algum sentido e sentim ento leva, no fundo, a suposição de
que Deus está presente” .25 Steiner acredita que um levan­
tamento histórico de tudo o que foi convincente na literatura,
na arte e na música demonstraria ter havido uma inspiração
e uma referência da religião nesse todo:

A referência e a referência de si mesmo a uma dimensão


transcendente, ao que é tido como residente ... fora do alcance
imanente e puramente secular, subscreve formas criadas, desde
Homer e a Oresteia até Os Irmãos Karamazov e Kafka ... A
música tem se tornado inseparável do sentimento religioso e da
metafísica (no sentido original desse termo).26

O que Steiner está expressando aqui é a sua intuição quanto


a que numa cultura em que a presença de Deus não seja mais
considerada uma posição sustentável, e em que a ausência
de Deus não seja sentida como uma perda irreparável, certas
dimensões do pensamento e da criatividade não mais são
possíveis. A indiferença ao que é metafísico e teológico leva
a um rom pim ento radical com a criação e com a percepção
de algo estético. Toda poesia agora está na era da “ pós-
Palavra” , em que “ o contrato entre a Palavra e o mundo” ,

27
A FALÊNCIA DOS DEUSES

a base d e todo sign ificado e de toda criatividade, foi rom pido.


S tein e r escreve: “ C re io que este c on tra to rom peu-se pela
p rim e ira v e z - na acepção com p leta e con seqü en te da p a la vra
- na c u ltu ra e na con sciência esp ecu lativa da E u rop a, da
E u rop a C en tra l e da Rússia, d u ra n te as décadas de 1870
a 1930. E esse rom pim ento de contrato entre a palavra e o
m undo que constitui uma das poucas, porém genuínas,
revoluções do espírito na história ocidental, e que define a
p ró p ria m odernidade.>i21
O vácuo criado pela perda da criação a rtística e da exp e­
riên cia respon siva é p reench ido u ltim am en te no m undo m o­
d ern o pelo que S tein e r sarcasticam ente cham a de “ a lou cu ra
de um discurso secundário de um m a n d a rim ” . O secundário
torn ou-se o nosso narcótico.

A humanidade alfabetizada é assolada diariam ente por m i­


lhões de palavras impressas, transmitidas pelo rádio e vistas
nas telas de T V com respeito a livros que ela nunca vai abrir,
sobre músicas que não vai ouvir, sobre obras de arte que nunca
vai contemplar. Um zumbido perpétuo de comentários esté­
ticos, de julgam entos precipitados, de expressões pomposas
pré-fabricadas preenche todo o ar. Presum ivelm ente, a maior
parte de toda fala artística ou reportagem literária, de rese­
nhas musicais ou de críticas de espetáculos de balé é apenas
lida por alto e não propriamente lida, é ouvida, mas sem se
prestar a atenção... Como sonâmbulos, somos guardados pelo
sussurro entorpecente do jornalístico, do teórico, em relação
ao freqüentem ente estridente e im perioso fulgor de uma
completa presença.29

O jo rn a lism o introdu z-se em todo recan to da nossa cons­


ciência. P o r toda parte do m undo m odern o, som os b om b ar­
deados p or um a quantidade enorm e de “ in fo rm a ções” na
im pren sa e na tela da T V , im agen s de refu giad os fu gin d o na
R u a n d a e na B ósn ia c o lid in d o com im a ge n s d e rico s e
fam osos, e disputando a nossa aten ção com a ú ltim a fofoca
de um d eslize sexual en volven d o o p resid en te am erican o ou
a m on arqu ia b ritânica. F u teb ol e política, n ovelas e religião,
concursos de b eleza e calam idades ecológicas, todas essas
coisas têm m ais ou m enos a m esm a im portân cia e - com

28
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

exceção das novelas - não despertam interesse mais do que


um dia. T al torrente de informações instantâneas tem um
efeito entorpecente, freqü en tem en te retardando a edu­
cação por nos roubar a capacidade de sentir o que vemos.
O fluxo de informações que nos atinge pela Super-Estrada
Global não carrega consigo nenhuma estrutura de valor que
nos ajude a distinguir o significativo do trivial; tal estrutura
de valor tem que ser gerada de fora, e, numa sociedade
pluralista, que carece de um consenso moral, são os donos
da imprensa e de outros meios de comunicação que deter­
minam o que deve ser considerado notícia.
Os meios de comunicação são muito mais do que um
em preendim ento comercial. O jornalism o m oderno articula
o que Stein er acuradam ente chama de “ epistem ologia e ética
de tem poralidade espúria” . As am bigüidades da vida são
evitadas em favor do que é simples e direto, argumentos
são substituídos por chavões, narrativas dão lugar a novi­
dades. A beleza mais im ponente e o mais inexprim ível dos
horrores ao lado do vulgar e do banal, tudo isso é esmiuçado
ao fim do dia. Paralelam ente, o conteúdo, o possível signi­
ficado da m atéria que o jornalism o comunica, fica como
“ resto” no dia seguinte. ...Ficamos íntegros de novo, na
expectativa, prontos para a edição da m anhã.” 30
Não são apenas eruditos tais como Steiner que deploram
a perda de profundidade e de discrim inação na m ídia
moderna. O veterano jornalista do Washington Post, Cari
Bernstein (que fez nome no caso W atergate) é ainda bem
mais mordaz na sua crítica quanto ao que ele chama de “ esta
nova cultura de um jornalism o titilan te” . Através de sua
obsessão pelo que é trivial, ( “ o sensacional e o surpreen­
dente” ), o jornalism o moderno procura agradar seus leitores
e espectadores, e evita seu dever de desafiar as pessoas.
Assim ele contribui para criar “ o que merece ser chamado
de cultura imbecil. N ão uma subcultura imbecil, que toda
sociedade tem , borbulhando por baixo da superfície e que
pode proporcionar um d ivertim en to inconseqüente, mas
sim a cultura propriam ente dita. P ela prim eira vez, a
esquisitice, a estupidez e a grosseria estão tornando-se a
nossa norm a cultural, até mesmo a nossa própria situação
cultural...” 31

29
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Janice H irota , em sua an álise das condições m en tais e


dos estilos de trabalho de diretores e produtores de m ateriais
de publicidade (refe rid o s com o atu antes na “ cria çã o” ),
ob serva que tais pessoas são “ especialistas na c o m er­
cialização de sím b olos” , as quais têm de “ prescin d ir da
noção trad icion al do que seja a ‘v e rd a d e ’ , em pregan do em
seu lu gar uma noção de “ enredo” , um a postura m ental que
se tem ao c ria r a propaganda de um d etergen te, ou de um
candidato à presidência do país, ou da im agem institu cion al
de um a organização, ou de uma cam panha em prol da
segurança p ú blica.” 32 E la conclui suas observações com
esta cuidadosa avaliação:

A permanente narração, promoção, dramatização e manipulação


de símbolos que permeia a estrutura da publicidade dissemina
também no público em geral as características intrínsecas do
trabalho de publicidade. Como sói acontecer, tais características
exaltam a fabricação de uma imagem, a habilidosa armação de
perspectivas e matérias, e o estilo de apresentação - ou seja, como
contar uma história - muito mais do que exaltam o conteúdo
de uma narrativa, a essência de uma matéria ou, mesmo, a
realidade da experiência.33

E stá p atente aos olhos de todo aqu ele que tem fa m ilia ri­
dade com o cenário e van gélico atual que tal m en talidade
tem fe ito incursões na igreja m oderna. Sob a influ ên cia
da televisã o e da propaganda, as reu niões cristãs em
sociedades aflu en tes têm passado por grandes mudanças,
da P a la v ra para a Im agem , da paixão pela verd ad e e pela
ju stiça para o cultivo da intim idade e dos “ bons sen ti­
m en tos” , da exposição para o entreten im en to, da in teg ri­
dade para a inovação, da ação para o espetáculo. A redução
do conhecim ento à inform ação, e o crescim ento de uma
“ classe de con hecim ento” especializada, reservada, que
M id geley e outros deploram , são evidentes em sem inários
teológicos e faculdades de teologia. M uitos dos form ados
em sem inários agora saem m uito bem preparados em téc­
nicas de adm inistração, em técnicas de aconselham ento, e
até m esm o em m etodologias para a im plantação de igrejas,
mas d eficien tes num a visão teológica que p ro m o v a a

30
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

integração. A té mesmo missão veio a ser uma disciplina


especializada de estudo profissionalizante - “ m issioiogia” -
um item à escolha do consumidor e sujeito a todos os macetes
do computador da moda e à quantificação estatística tão ao
gosto dos novos mandarins. Que todo o estudo e toda a vida
do cristão teriam que ser m otivados e orientados por um
sentido de missão, isso parece ser um pensamento por demais
radical para um seminário moderno.

Um M útuo Desafio
O famoso novelista G. K. Chesterton certa vez observou que
quando um homem volta as costas para Deus, não é que
ele apenas não crê em nada, mas é que ele crê em tudo.
O mesmo é válido para sociedades inteiras. O assim chamado
mundo secular de homens e mulheres modernos, não menos
do que o mundo tradicionalm ente religioso, acha-se exces­
sivam ente inundado de deuses. O presente livro foi escrito
sob a convicção de que o descarte do Deus da revelação
bíblica, descarte esse que é a característica mais peculiar
da modernidade, tem aberto o caminho para o surgim ento
de novos deuses que, tal como seus antigos equivalentes,
acabam por destruir os seus devotos.
Este livro é dirigido prim eiram ente a estudantes e a outros
cristãos pensantes, que pretendem servir a Deus em meio
a ocupações “ seculares” no mundo moderno. Ele não assume
prim ordialm ente nenhuma fam iliaridade com teologia ou
filosofia acadêmicas. N em ainda tem pretensões de origi­
nalidade, e estou consciente de que até mesmo aqueles
pensam entos que eu possa con siderar serem origin ais
provavelm ente derivem de fontes que utilizei há muito
tem po e das quais me esqueci com pletam ente. Eu mesmo
escrevo como quem tem sido m uito moldado pela cultura
da modernidade, mas sou grato pelo privilégio e pela respon­
sabilidade de ter conhecido outras culturas. Sou grato ainda
pelos grandes benefícios que a modernidade traz às nossas
nações, especialmente por quebrar o pleno dom ínio de tradi­
cionais elites religiosas e políticas, e tam bém de h ierar­
quias sociais (inclusive de sexo). N ão há quem, seja cristão
ou não-cristão, se preocupe com a em ancipação humana,

31
A FALÊNCIA DOS DEUSES

que possa se regozijar com o coro do “ fim da modernidade”


que tem emanado de certos grupos do m undo ocidental.
Mas nós também permanecemos em grande necessidade de
discernimento para que não identifiquem os o “ espírito da
época” como sendo o Espírito Santo, o Espírito de verdade
que é o mediador da realidade do Senhor ressurrecto em meio
a mudanças históricas e a incertezas.
Já se tornou um clichê contrastar o m aterialism o secular
ocidental com a espiritualidade religiosa oriental. Essa ge­
neralização não contribui para nada e é enganosa. De fato,
o m aterialism o como filosofia floresceu na ín d ia m uito
antes do surgim ento da modernidade, e alguns dos pensa­
dores budistas têm procurado interp retar o Budismo com o
sendo essencialm ente uma m aneira de viver secular. O
m aterialism o como culto prestado à aquisição e ao consu-
mismo ostensivo é proem inente tanto em cidades da Ásia
como da Europa. O m otor da modernidade, ao menos em
suas dimensões tecnológicas e econômicas, parece ter se
mudado para a Asia oriental; e com freqüência esquecemo-
nos de que até mesmo a índia, com toda a sua pobreza e
atraso, é a décima potência industrial e possui a segunda
maior população de classe média do mundo. Jovens profissi­
onais, tanto em Bangcoc como em Londres, atuando quer
na m edicina, qu er na aud itoria, testifica m terem sido
“ levados” pela pressão que os fez se conform arem a um
am biente de trabalho em busca do lucro, e a considerarem
a vida e os ensinos de suas igrejas locais como cada vez mais
irrelevantes aos seus interesses.
É a com pleta diversidade da Á sia que torn a gen era li­
zações quanto a uma “ mentalidade asiática” ou quanto a uma
“ teologia asiática” tão falsas. Tudo o que se diga ser verdade
quanto à Ásia, o oposto tam bém pode se revelar ser verda­
deiro. Isso aplica-se tam bém à recente ênfase em “ valores
asiáticos” , popularizados pelo regim e chinês em B eijin g e
por anglicizados políticos do sudeste da Ásia, entre os quais
Lee Kwan Yu da Cingapura e M ahathir Mohammed da
Malásia. Esse palavreado serve para legitim ar formas de
governo paternalistas ou autoritárias na Ásia, e para justi-

32
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

ficar a supressão de liberdades civis, tais como a liberdade


de expressão política e a ação política.
E também algo intrigante observar alguns pontos de con­
vergência entre a modernidade e os sistemas intelectuais e
religiosos dominantes da cultura asiática. Eles tendem a
compartilhar uma compreensão quanto à libertação humana
em termos de autocontrole; uma preocupação com a técnica,
na busca do progresso m aterial (no prim eiro caso) e do poder
espiritual ou psíquico (no segundo); uma crença comum de
que os eventos históricos nunca podem exprim ir verdades
finais, e que a verdade tem de ser diretam ente acessível ao
ser humano individualm ente (num caso por meio da facul­
dade da razão, no outro através de uma percepção mística);
e (especialmente na modernidade mais recente) uma comum
desconfiança em relação à linguagem, a rejeição da distinção
entre o subjetivo e o objetivo, e a posição assumida de que
o mundo de temporalidade, pluralidade e mudança essen­
cialm ente é sem significado...
O diálogo com a m odernidade, portanto, não menos do
que o feito com as fés religiosas tradicionais, põe em e v i­
dência a diferença existente no evangelho bíblico. Mas,
como em todo choque autêntico, ele também nos força a
reexaminar as nossas próprias tradições cristãs. Toda crítica
em relação à modernidade somente pode ser levada a sério
se começar com uma autocrítica. Pois o moderno seeula-
rism o, mesmo tendo apropriado realm ente m uitas das
crenças e conceitos cristãos, também tem sido o mais pode­
roso protesto contra as deficiências de muita teologia cristã
e de muitas práticas morais cristãs.
O jesu íta am ericano M ichael Buckley acredita que a
origem do ateísmo na cultura intelectual do Ocidente acha-
se “ na auto-alienação da própria religião.34 Sua alegação é
que muita da responsabilidade quanto ao descarte de Deus
na m odernidade deve ser atribuída ao modo pelo qual
“ D eus” foi se tornando cada vez mais abstrato e impessoal
na tradição teológica ocidental. A grande síntese m edieval
da fé com a filosofia (o que se chama “ teologia natural” )
A FALÊNCIA DOS DEUSES

e do Espírito Santo, de form a que os cristãos do século


dezessete europeu procuravam defender o Cristianism o sem
apelar a qualquer coisa que fosse caracteristicam ente cristã:
“ A ausência de qualquer consideração da Cristologia é tão
marcante em toda discussão séria que se torna algo natural,
contudo o que é impressionante nisso tudo é que isso levanta
uma questão fundamental com respeito aos modos do pensa­
mento: Como foi que a questão Cristianism o versus ateísmo
se tornou totalm ente filosófica? Parafraseando Tertuliano:
Como é que as únicas armas para defender o tem plo teriam
que ser encontradas nas escolas de filosofia?35
P or se deixar de lado a pessoa e a obra de Jesus Cristo
e a experiência da comunidade cristã, voltando-se então para
apologias filosóficas com o fim de demonstrar sua inerente
“ racionalidade” , a teologia cristã, no começo da era m oder­
na, já tinha se rendido em term os de competência. O que
foi feito para desenvolver as assim chamadas “ teologias
físicas” (que deduziam a existência e a natureza de Deus
a partir da visão do mundo dada pela ciência de N ew ton )
acabou saindo pela culatra, prejudicando a teologia bíblica.
A filosofia, desenvolvendo-se em direção a uma filosofia da
natureza, e daí para a mecânica, esta “ estabeleceu a sua
própria natureza ao negar que sua evidência tivesse qualquer
significado teológico e negando ainda qualquer interesse
teológico” .36 Pelos séculos seguintes, a física, a medicina,
a matemática e outras disciplinas puderam afirmai* a sua
autonomia em relação às teologias físicas apenas negando
terem um carácter teológico. Se se direcionaram para o
ateísmo, Buckley argumenta, isso foi porque a teologia as
tinha tornado a área prim ária de sua evidência e de seu
argum ento. Assim , os teólogos que haviam depositado nelas
toda a sua herança, aos poucos foram se achando to ta l­
m ente falidos...
Assim, há muita coisa que os cristãos de hoje podem
aprender a partir da moderna crítica feita à fé cristã. Minhas
viagens pela Ásia e por muitas partes do mundo ocidental
convenceram-me de que as concepções de Deus do século
dezoito da Europa e da visão platonista/hinduísta estão

34
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

bem vivas, m esmo nos círculos cristãos m ais con serva­


dores! N ã o é de se surpreender, por exem plo, que m uitos
cristãos hoje em dia tenh am red u zido a d ou trin a da criação
a um rela to das origen s tem porais das coisas ( “ com o as
coisas tivera m seu in íc io ” ) e não do rela cion am en to delas
com Deus. E im possível com p reend er a cru cificação e a
ressurreição de C risto com um a teolo gia da criação assim
tão inadequada.
O secularismo moderno, então, pode ser m elhor com ­
preendido com o sendo um a sistem ática heresia cristã,
dando-se a heresia o significado de ser um desenvolvim ento
parcial {sob uma certa visão) de uma im portante verdade
cristã. E assim parasitária na vida e na doutrina cristã (assim
como o pós-modernismo é parasitário nas realizações e em
todo o esquema conceituai da m odernidade). Assim , por
exemplo, o liberalism o político, na m aioria de suas formas,
deriva da crença tradicional protestante de uma inerente
dignidade em cada pessoa e o conseqüente d ireito a te r a
sua própria consciência. M as ao torn ar a pessoa um abso­
luto, ele se transform a numa filosofia da individualidade:
ou seja, o dogm a de que eu posso ser eu mesmo, sem o meu
próximo. Dessa form a, o “ ou tro” pode ser visto apenas como
um a am eaça à m inha liberdade, e a sociedade hum ana
torna-se o con fron to de vontades em com petição, à m edida
que cada um afirm e o seu “ d ireito” em relação ao outro.
Assim , um a pluralidade humana gen u ín a é negada. A
m odernidade recente (ou a “ alta” m odernidade) não é d ife­
rente com respeito a isso. Com o a expressão “ politicam ente
correto” , bem na moda hoje, ilustra m uito bem, a condição
de ser “ um ou tro” é suprim ida em nom e da igualdade. P or
red u zir tudo ao mesmo valor, e não adm itindo distinções
en tre a verdade e a falsidade, en tre o certo e o errado, en tre
o belo e o feio, o tão alardeado individualism o da m oder­
nidade recen te é um h o m o ge n eiza d o r que na rea lid a d e
atua op ressivam ente.
O desafio para nós, cristãos m odernos, é retorn ar às
nossas raízes bíblicas, mas expressar corretam ente aquela
fé bíblica com os padrões de pensam ento que m oldam o

35
A FALÊNCIA DOS DEUSES

mundo de hoje. O presente renascimento da teologia trini-


tariana é um desenvolvim ento dos mais bem-vindos, uma
vez que o secularismo moderno é, em parte, uma rejeição
ju s tific a d a de con cepções in adequ ad as do teísm o. O
M on ism o e a fragm entação parecem ser duas faces da
mesma moeda. Entretanto, se o Deus triuno é a fonte de
todo ser, de todo sentido e de toda verdade, deve ser possível
desenvolver uma teologia que integre as diferentes esferas
do pensamento, da ação e da cultura do homem; e de um
modo que reconheça suas singularidades, ao mesmo tem po
em que descubra as concretas form as que o pecado assume
em todas as áreas do pensam ento e da vida. Tal em preen­
dimento, infelizm ente, vai além do propósito deste livro e
da minha com petência teológica.
O que pretendo, em prim eiro lugar, é deixar a Bíblia falar.
Fiz uso em grande parte de textos do A n tigo Testamento,
principalm ente por terem sido rela tivam en te n eg ligen ­
ciados em nossas igrejas nos dias de hoje. O contexto do
qual escrevo é o de uma sociedade do sul da Ásia que foi
arrastada, tanto para m elhor como para pior, para a marcha
global da ciência, da tecnologia e do capitalism o m u lti­
nacional. De acordo com o caráter introdutório deste livro
- que tem o propósito de “ construir uma pon te” in icial -
optei por não em pregar notas de rodapé (exceto, é claro,
na referência a fontes) e por não citar qualificações inter­
mináveis que necessariamente são de uso numa apresen­
tação m ais acadêmica.
O subtítulo do livro é deliberadam ente ambíguo. A m is­
são cristã envolve em si uma confrontação com “ os ídolos
do nosso te m p o ” ?37 Ou será que a m issão cristã, pelo
m enos em alguns aspectos im portantes, inconscientem ente
dissemina formas de idolatria ao redor do mundo? Ou ainda
será que amplos setores da Igreja Cristã se encontram tão
cheios de idolatria que a sua visão missionária tenha sido
paralisada? A carga que está sobre este livro pode ser
referida de form a sumária dizendo-se que estas três per­
guntas têm uma enfática resposta: “ Sim !...”
N o encontro missionário com o mundo, contamos a história
bíblica diante de todas as outras histórias que o mundo

36
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

oferece em prol de sua final raison d ’etre. Se o evangelho é


verdadeiro, ele tem de ser relevante a cada aspecto da ati­
vidade humana. E n tretan to, nesse encon tro, um processo
de diálogo ocorre. Mesm o que a m entira fundamental do
mundo seja desmascarada pela mensagem do evangelho,
assim também a igreja é desafiada a ter um maior cuidado
e uma m aior obediência diante da plenitude da “ verdade em
Jesus” (E f 4:21). Daí o duplo enfoque que percorre todo o
presente livro, duas posturas que se alternam e se interagem:
uma apologética e didática, outra autocrítica e exortativa...
Embora eu vá tocar numa larga gama de questões, as
abordagens náo têm a pretensão de serem rigorosas nem
exaustivas, mas ilustrações de um tem a no texto. O leitor
não deverá te r a expectativa de te r aqui um com pêndio
sobre ídolos modernos, e m uito menos um compêndio ou
manual apologético, em relação à fé cristã. Meu objetivo é
bem mais modesto: dar a meus companheiros de peregri­
nação, que se acham atraídos, repelidos ou confusos pela
m odernidade, alguns indicadores bíblicos e históricos que
os possam ajudar em sua jorn ada para além da m oderni­
dade, na contracultura do reino de Deus. Tenho plena cons­
ciência de que um livro desta natureza bem pode ser que náo
agrade a gregos e troianos, irritando o le ito r mais acadê­
mico que pode achar que eu esteja pisando no seu campo
de especialidade, e quem sabe superestim ando a capaci­
dade do leitor comum. M as creio que vale a pena assum ir
o risco.
O Capítulo Dois enfoca basicamente uma crítica bíblica
da religião. Para tanto servimo-nos de duas famosas, ainda
influentes, críticas humanistas do C ristianism o. O Capí­
tulo Três procura recuperar a d ou trin a b íb lica da criação,
tirando-a da negligência e do mal uso a que tem se subme­
tid o nas mãos tanto de apologistas cristãos tradicionais
como de em inentes cientistas modernos.
A o se falar de um Criador não se pode deixar de lado o
controvertido problema do sofrimento injusto. O Capítulo
Quatro volta-se para o antiquíssimo livro de Jó, que foi
provavelm ente o prim eiro diálogo escrito sobre a questão
que muitos ainda hoje levantam : como podemos falar de

37
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Deus num mundo tão sofredor? Surpreendentem ente, as


respostas teológicas convencionais dos amigos de Jó de­
m onstram ser idólatras.
O Capítulo Cinco explora o processo da formação de um
ídolo e o seu impacto nas vidas humanas no mundo moderno
(e em processo de modernização). Várias ilustrações são dadas
de diferentes modos de vida, as quais nos fornecem um
cenário para a compreensão de duas histórias, já conhecidas
mas sempre novas, dos prim eiros capítulos de Gênesis.
Os Capítulos Seis e Sete têm uma natureza mais filosó­
fica. O prim eiro aborda as várias ideologias que se apinham
em torno do dom ínio da ciência, que é o mais influen te
dos ídolos m odernos. Algum as das fon tes das quais a
crescente crítica da ciência tem emanado estão descritas,
numa breve pesquisa. São dadas sugestões quanto a uma
possível form a cristã de resposta às mesmas.
O Capítulo Sete pode ser deixado de lado numa prim eira
leitura. E uma extensão do capítulo precedente, explorando
mais as manifestações da idolatria no raciocínio humano, e
a crise epistemológica que muitos críticos crêem ser o coração
da modernidade. A obra de M ichael Polanyi é brevem ente
descrita e recomendada como uma abordagem alternativa
para a formação de uma visão cristã do mundo e para um
compromisso missionário.
Finalmente, o Capítulo Oito volta-se para a Cruz e para
a derrota da idolatria. Mas nenhuma abordagem sobre a Cruz
pode deixar de lado a acusação de que a igreja tem traído
a Cruz em sua história missionária. T a l acusação é consi­
derada com seriedade, inclusive tirando algumas conclusões
com respeito à missão cristã global da atualidade.
Que estamos tratando de questões de vida ou morte, e não
satisfazendo a um árido intelectualismo, isso pode ser ilus­
trado pelo crescente debate por todo o mundo sobre a
questão de ser a vida humana “ sagrada” . A violenta polê­
m ica anticristã do livro de P e te r Singer e H elga Kuhse,
Should the Baby Live? (O Bebê Deve V iv e r? ),38 demonstra
o enorm e abismo que separa a posição cristã da sustentada
pelo humanismo secular no debate da moral. Singer e Kuhse

38
INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E ÍDOLOS

atacam a moralidade cristã tachando-a de uma ideologia


dominadora e restritiva do Ocidente, uma ideologia da qual
teremos de nos libertar se quisermos enfocar questões de
responsabilidade moral, tais como crianças deficientes em
alto grau. Em particular, terem os que nos desvencilhar da
crença de que a vida humana é sagrada de form a especial,
uma crença não mais sustentável num estado m oderno e
pluralista. A distinção entre a vida humana e outras formas
de vida é m oralm ente irrelevante, e isso é apenas um re­
manescente de um passado cristão. Como os cristãos m o­
dernos responderiam à acusação de que “ o princípio tra ­
dicional de que a vida humana é sagrada é o resultado de
um pensam ento ocidental de cerca de dezessete séculos de
dom ínio cristão, princípio esse que racionalm ente não pode
ser sustentado” ?39
Lembremo-nos de que o argumento de Singer e Kuhse não
se refere ao aborto, mas ao infanticídio - a supressão da vida
de bebês recém-nascidos que poderiam viver. Que isso seja
a posição natural decorrente de uma visão do mundo que
rejeita o Deus da revelação bíblica, isso não deveria sur­
preender-nos. Que a perda de coordenadas divinas tem
conseqüências de longo alcance foi visto um século atrás
por aqu ele excêntrico vision á rio anticristão, Fried rich
N ietzsche (1844-1900). Rejeitando o m oralismo de nove­
listas ingleses, tais como George Eliot, ele escreveu: “ Eles
se desfizeram do Deus do Cristianismo, a agora se sentem
obrigados a apegar-se com m uito mais firm eza à m orali­
dade cristã... Quando alguém abandona a fé cristã, tal pessoa
deste modo se priva do d ireito de aceitar a moralidade
cristã... sua origem é transcendental... (a m oralidade cristã)
é verdadeira apenas se Deus é verdadeiro - ela perm anece
ou cai, conform e a crença em Deus...” 40
As opções estão a descoberto. N ão importando em que
modernidades habitemos, tanto a do passado cristão ociden­
tal, como a da posição anticristã oriental, no que sintonizamos
o nosso coração em adoração é o que, por sua vez, dá a forma
da nossa humanidade.

39
A FALÊNCIA DOS DEUSES

N otas
1 K. Marx e F. Engels, O Manifesto Comunista (1848) - Introd. A.J.P.
Taylor, Harmondsworth; Penguin, 1967; p.83.
2 M. Weber, The Protestant Ethic and the Spirit o f Capitalism (A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo) (1904-5) - Nova York; Scribner,
1958; em especial pp. ISOss.
3 A. Giddens, The Consequences o f Modernity (As Conseqüências da
Modernidade) - Cambridge; Polity Press, 1991; p. 53.
* Ibid.; p. 139.
8 Ibid.; p. 52. Veja também pp. 163ss.
6 Ibid.; p. 45 (itálicos no texto).
7 D. Bell, The Corning ofPost-Industrial Society (A Chegada da Sociedade
Pós-Industrial) - Londres; Heinemann, 1974; p. 318, n. 30.
8 R. Rorty, Contingency, Irony, and Solidarity (Contingência, Ironia e
Solidariedade) - Cambridge; Cambridge University Press, 1989.
9 F. Fukuyama, The End o f History and the Last Man (O Fim da História
e o Últim o Hom em) - Londres; Hamish Hamilton, 1992.
10 F. Fukuyama, “ Changed Days for Ruritania’s Dictator” (“ Novos Dias
para o Ditador da Ruritânia” ), The Guardian, Londres, 8 de abril de
1991.
11 R. K. Merton, “ Mass Persuasion: A Technical Problem and a Moral
Dilemma” (A Persuasão das Massas: um Problema Técnico e um
Dilema M oral) em R. Jackall (ed.), Propaganda - Londres; Macmillan,
1995; p. 273; originalm ente publicado em R. K. Merton, Mass
Persuasion: The Social Psychology o f a War Bond Drive (Persuasão
das Massas: A Psicologia Social de uma Campanha de Levantamento
de Fundos para a Guerra) - Nova York e Londres; Harper & Brothers,
1946.
12 Rorty, op. cit.; p. 113.
13 V. Havei, Open Letters. Selected Prose (Cartas Abertas. Prosa Sele­
cionada) - 1965-1990, ed. Paul Wilson; Londres; Faber and Faber,
1991; pp. 94-5.
19 Ibid.; p. 267.
15 O termo “ Huminismo” normalmente é empregado com referência ao
projeto empreendido pelos filósofos da França e da Escócia, no século
X V III, e seus seguidores na Europa setentrional e nos Estados Unidos.
Em seu ponto central acha-se a crença de que a expansão do conheci­
mento científico segundo as linhas inauguradas por Galileu e Newton
daria aos seres humanos (à humanidade, de qualquer forma!) um
controle racional sobre os mundos natural e social. Outras persona­
lidades do século X V II cujo pensamento teve uma duradoura influ­
ência no curso do Iluminismo foram John Locke, René Descartes e
(especialmente na Alemanha) Gottfried Leibniz.

40
IN T R O D U Ç Ã O : M O D E R N ID A D E E ÍD O LO S

16 Veja, por exemplo, L. Ray, “ The Protestant Ethic Debate” (O Debate


Sobre a Ética Protestante) em R. J. Anderson, J. A. Hughes & W.W.
Sharrock (editores), Classic Debates in Sociology (Debates Clássicos
Sobre a Sociologia) - Londres; Allen & Unwin, 1987.
17 Veja os Capítulos Três e Seis deste livro.
18 C. Taylor, Sources o f the Self: the Making o f the Modem Identity
(Fontes do Eu: a Feitura da Moderna Identidade) - Cambridge;
Cambridge University Press, 1989; p. 14.
19 Ibid.; pp. 13*14.
20 H. G. Reventlow, The Authority of the Bible and the Rise of the Modern
World (A Autoridade da Bíblia e o Surgimento do Mundo Moderno)
- trad. para o inglês, J. Bowden, Londres; SCM, 1984.
21 M. Midgley, Wisdom, Information & Wonder (Sabedoria, Informação
& Admiração) - Londres e Nova York; Routledge, 1991; pp. 6-7.
22 Ibid., p. 9.
23 Ibid.; p. 8.
24 Weber, op. cit.; p. 182 (ênfase minha).
25 G. Steiner, Real Presences: Is There Anything in What We Say?
(Presenças Reais: Há Alguma Coisa no Que Dizemos?) - Londres;
Faber e Faber, 1989; p. 3.
26 Ibid.; p. 216.
27 Ibid.; p. 93 (itálicos no texto).
28 Ibid.; p. 26.
29 Ibid.; pp. 24, 49.
30 Ibid.; p. 24.
31 C. Bernstein, Guardian Weekly, 14 de junho de 1992.
32 J. M. Hirota, “Making Product Heroes: Work in Advertising Agencies"
(Fazendo Heróis de Produtos: Trabalho em Agências de Publicidade)
em R. Jackall (ed.), Propaganda, op. cit.; p. 344.
33 Ibid.; pp. 346-7.
34 M. Buckíey, At the Origins o f Modem Atheism (Nas Origens do Ateísmo
Moderno) - New Haven; Yale University Press, 1987; p. 363.
36 Ibid.; p. 33.
36 Ibid.; p. 358.
37 Veja B. Goudzwaard, Idols of Our Time (ídolos de Nosso Tempo) -
Downers Grove, Illinois; InterVarsity Press, 1984.
38 H. Kuhse e P. Singer, Should the Baby Live?: The Problem o f
Handicapped Infants (O Bebê Deve Viver?: O Problema das Crianças
Deficientes) - (Oxford; Oxford University Press, 1985).
39 Ibid.; p.125.
40 F. Nietzsche, Twilight o f the Idols and The Anti-Christ (Crepúsculo
dos ídolos e O Anticristo) - Harmondsworth; Penguin, 1968; pp. 69-70.

41
2
A

R elig iã o e íd olo s

"... a união com Cristo consiste na mais íntima comunicação com


ele, tendo-o diante de nossos olhos e em nosso coração, e sendo
assim tomados pelo mais elevado amor por ele, ao mesmo tempo
em que voltamos o nosso coração aos nossos irmãos, com os quais
ele nos ligou, e por quem ele também se sacrificou...” 1

Estas palavras fa zem p arte de um ensaio escolar escrito por


um estudante de 17 anos em 1835.0 seu nom e era K a rl M arx.
Sim , o m esm o K a rl M a rx cujos livro s e pan fletos m udaram
toda a face deste século e em nom e de quem um nú m ero
incalculável de cristãos e de pessoas de ou tras relig iões foi
m orto. M a rx p ro v eio de um a lon ga lin h agem de rabinos
judeus pelos dois lados de sua fam ília . Seu pai, H e in ric h M arx,
foi um judeu lib eral qu e recebeu o batism o cristão p or razões
de con ven iên cia social. K a rl foi b atiza d o ainda criança e
criado num am b ien te cristão qu e p rofu n d am en te influen ciou
o seu fu tu ro desen volvim en to. M as com o foi qu e esse jo v e m
tão sério, de form ação religiosa, v e io não som en te a reje ita r
a sua fé relig iosa d u ran te os seus dias na u n iversidade, mas
acabou torn ando-se ta lv e z o m ais fam oso ateu da história?
A s razões são com plexas. M as duas que se destacam são:
em p rim e iro lugar, a sua am izade com um grupo de teólogos
“ rad icais” que, sob a in flu ên cia do racionalism o que na A le ­
m anha havia recen tem en te en trad o nos estudos bíblicos,
d eclarou que as n a rra tiv a s do ev a n g e lh o era m lendas qu e
n ã o p o d e ria m m ais s e r v ir com o fo n te p ara a h is tó ria de
Jesus de N a za ré , m as apenas para a h istó ria da ig re ja p ri­
m itiv a . C on q u an to aqu eles te ó lo g o s con tin u a ssem a se
autodenom inar cristã os, cren d o qu e p o d e ria m r e t e r as

42
RELIGIÃO E ÍDOLOS

verdades do C ristianism o ao mesmo tem po em que destru­


íam a sua base histórica, M arx todavia foi aiém deles e viu
as conseqüências das suas teorias: pois se os evangelhos não
dão um quadro confiável de Jesus Cristo, por que então
incomodarmo-nos com ele?
Mas a segunda razão, mais relevan te para nossos p re­
sentes propósitos, tem a ver com a maneira pela qual M arx
via o modo pelo qual as religiões em geral, e o Cristianism o
em particular, eram praticados na sociedade alemã de seus
dias. A religião era usada pelas classes dominantes para
sancionar o status quo. Ela justificava as iniqüidades e os
sofrimentos da presente ordem social, explicando-os como
sendo o árduo trabalho necessário para uma ordem trans­
cendente, eterna. Assim como as doutrinas das castas, do
carma e da reencarnação têm muitas vezes propiciado em
muitas das culturas asiáticas a aceitação passiva, pelas
pessoas, de suas condições m ateriais e sociais, e tam bém
uma indiferença para com qualquer ten tativa de trans­
form ar este mundo, da mesma form a na Europa do século
dezenove as igrejas oficiais aceitaram como verdade que a
“ vontade divin a” refletia-se na presente ordem das coisas,
e, conseqüentemente, rejeitar a presente ordem seria o
equivalente a uma rebelião contra Deus. A compensação
pelos sofrim entos por que se passasse náo seria m ediante
mudanças m ateriais neste mundo, mas ocorreria num outro
mundo depois da morte. Essa postura tão popular acha-se
inserida de form a resum ida num hino inglês bastante
conhecido que ainda é ensinado hoje em dia em algumas
escolas bíblicas dominicais:

O rico em seu castelo, e o pobre em sua guarita,


Deus os fez, nobre e humilde, cada um com sua vida
ide “All Things Bright and Beautiful” -
Todas as Coisas Brilhantes e Belas).

O Legado H egeliano
Um a versão bem mais sofisticada e influente desses senti­
mentos foi expressa pelo poderoso G. W. F. H egel (1770—
1831), considerado o m aior dos filósofos alemães do século

43
A FALÊNCIA DOS DEUSES

dezenove, e cuja influência foi sentida durante uma grande


parte do século vinte. E a H egel que o em inente historiador
de idéias J. N. Findlay atribui o título “ o pai do m odernis­
m o” .2 “ Deus” para H egel não era um ser pessoal, mas um
en volven te processo de pensam ento (d iferen tem en te con­
cebido como Espírito Absoluto, Razão, ou Idéia U niversal),
revelando-se por um processo dialético através das formas
dom inantes das diversas épocas históricas e d esen vo l­
vendo-se em direção a uma autoconsciência cada vez maior
na Arte, na Religião, na Ciência e, finalm ente, na Filosofia.
Apesar de um estilo pesado e da obscuridade de seus
argumentos, H egel era por demais atraente. A atração que
ele tinha provinha do modo singular pelo qual ele procurava
resolver um problema que havia perturbado grandes filóso­
fos, tais como Descartes, H um e e Kant: como é que o ser
humano, racional, pensante, relaciona-se com o mundo
natural, externo? A principal corrente de pensamento da
tradição filosófica ocidental, incluindo-se uma boa parte
da teologia, tin ha sido dualista na concepção das pessoas
e do mundo. Os dom ínios do “ espírito” e da “ natureza”
coexistiam de form a desconfortável em trajetórias para­
lelas. O relacionam ento en tre esses dois dom ínios havia
se tornado ainda mais problemático depois do sucesso da
ciência de N ew ton. A N atureza, concebida como uma grande
máquina em plena ordem, não tinha em si lugar algum para
os seres autônomos, morais, pensadores, que concebem leis
naturais e morais. A razão e a escolha m oral eram tidas
com o portadoras da identidade humana, mas certam ente não
há espaço para as mesmas dentro da Natureza. A razão e
as sensações, os fatos e os valores, o espírito e a matéria, o
indivíduo e a cultura - tudo isso havia sido consignado a um
estado de perpétua segregação por filosofias tão diversas
como as de Descartes, de Hum e e de Kant.
H egel venceu esse dilema com um só golpe. Ele declarou
que o racional e o natural tinham de fato um ponto de
encontro: eles se encontram na história. O seu relacionam en­
to altera-se com o tem po histórico, sendo a história o relato
de uma sempre crescente penetração na ordem social feita
por uma Razão (ou E spírito ou Idéia) impessoal e que

44
RELIGIÃO E ÍDOLOS

im anentem ente se revela: “ Que a história mundial é gover­


nada por um propósito final, que é um processo racional
- cuja racionalidade não é a de um assunto em particular,
mas uma razão absoluta e divina - isto é uma proposição
cuja verdade tem os de assum ir; sua prova jaz no estudo
da própria história mundial, que é a im agem e a validação
da razão.” 3
Aqui a Razão de Hegel, a divindade que guia o curso da
história mundial, combina-se muito bem com a idéia de
Progresso que estava com eçando a seduzir a m ente euro­
péia na virada do século dezoito para o século dezenove.
Progresso era a noção de que a história era a narrativa de
um permanente e sustentado processo de aperfeiçoam ento
humano do qual a Europa era o ponto mais alto. A mudança
histórica era acumulativa e benéfica, conduzindo a huma­
nidade a uma ordem mundial mais racional. A sempre
crescente convergência da Razão com a realidade social era
garantida pela gradual penetração no pensam ento e na
conduta do homem por essa im anente e impessoal Razão.
Essa doutrina de H egel era resumida pelo aforismo de que
inicialm ente apenas um só era livre, então alguns se torn a­
ram livres, e finalm ente, no estado moderno, todos são
livres. “ O Real é o Racional” tornou-se o famoso slogan de
H egel. Isso não im plicava em que a ação do indivíduo
humano era irrelevante. P e lo contrário, toda ação humana,
inclusive os con flitos e tribulações da história, é revestida
de um sign ificado derivado de seu lugar destacado dentro
do esquem a dinâm ico das coisas. A té mesmo as ações ir­
racionais e muitas vezes mesquinhas dos seres humanos,
sem que queiram , servem a um plano m ais elevado. Eles
são “ levados” a fazer isso pelo que H egel veio a chamar de
a Astúcia da Razão.
N o pensamento hegeliano, a dicotomia entre a cultura e
a razão é também transposta. A Cultura perm eia todo
sentim ento humano, todo pensamento e toda ação. Crista­
liza-se em formações sociais e políticas que são geradas e
que se sucedem de m aneira ordenada, assim dando um
significado à vida humana. E la agora pode ser vista como
a agência do Espírito que canaliza todo o esforço humano

45
A FALÊNCIA DOS DEUSES

para o cum prim ento da causa mais elevada, a saber, o


casamento da Razão com a Realidade. Hegel viu esse ca­
samento já ocorrendo no estado da Prússia, do qual ele era
um cidadão, e imaginou-se sendo o oficial da cerim ônia de
casamento. A tarefa da filosofia, como ele a entendeu, era
discernir a racionalidade que cada vez mais se incorpora no
real. Ele viu no surgim ento do novo estado da Prússia "...
A idéia D ivina tal como existe na terra... Tem os portanto
de cultuar o Estado como sendo a manifestação do Divino
sobre a terra... O Estado é a marcha de Deus pelo mundo” .4
O Espírito da Época era a nova divindade, tomando o lugar
das velhas deidades pessoais; ou, mais acuradamente, estas
últimas poderiam ser vistas como diferentes encarnações do
Espírito em eras anteriores. A essas deidades imperfeitas,
e certamente a todo sistema de pensamento humano, a toda
cultura e a toda época tinha sido designado um lugar e um
papel no processo dinâmico da revelação do Espírito/Razão
dentro da história. H egel reinterpretou toda a linguagem
teológica tradicional (p. ex.: da Trindade, da revelação, da
encarnação, da redenção) em categorias não pessoais de sua
nova visão do mundo. O Deus pessoal dos hebreus tornou-
se o term o de um código, um em m eio a m uitos outros
no passar da história, para o altivo Espírito Absoluto da
moderna filosofia européia. A linguagem bíblica sobre Deus
era im perfeita, parabólica e metafórica, aguardando uma
tradução (por H egel) para os conceitos puros da verdade
filosófica abstrata. O Espírito de Hegel ampliou a visão global
da revelação, de seu im perfeito foco na história de Israel e
do mundo m editerrâneo, trazendo a divindade e a salvação
para o seu ponto mais alto na E uropa setentrional. Isso
perm itiu que os teólogos hegelianos continuassem a usar
a linguagem tradicional da piedade e da ortodoxia cristã,
mas de m aneiras que muito pouco sentido teriam para os
seus antecessores.
As idéias de H egel tiveram um grande impacto na teologia
européia do século dezenove, e a influência da sua abor­
dagem no método teológico até mesmo nas décadas finais
do século vinte tem sido considerável. Tam bém é curioso
observar como, historicamente, suas idéias deram forma e

46
RELIGIÀO E ÍDOLOS

deixaram sua marca em duas das mais poderosas religiões


seculares modernas, as quais estiveram em violento con­
fronto, uma contra a outra, por quase todo o presente
século: o Nacionalism o (que culminou no Fascismo) e o
Marxismo. O nacionalismo do século dezenove tinha suas
raízes ideológicas no processo de rom an tizar a cultura e
o imanente Espírito da Época. Suas terríveis, mas bastante
lógicas, conseqüências foram vistas na glorificação n azista
do “ sangue e terra” e na justificação, com base no destino
histórico, de males terríveis.

Críticas Secularistas
M arx inicialm ente foi atraído pela então recente reconci­
liação de “ o que é ” com “ o que deveria ser” feita por Hegel,
mas rapidam ente repugnou essa síntese à luz de sua expe­
riência com o estado da Prússia. Ele asseverou ter posto
H egel de cabeça para baixo ou, mais precisam ente, em pé:
“ Em direto contraste com a filosofia alemã, que desce do
céu à terra, aqui nós ascendemos da terra para o céu...
Partim os de homens reais, ativos, e com base no seu processo
de vida real demonstramos o desenvolvimento dos reflexos
ideológicos... M oralidade, religião, metafísica, todo o restan­
te da ideologia... não mais retêm a aparência de indepen­
dência.” 5 A história não era o desenvolvimento dialético do
pensamento humano em direção ao Espírito Absoluto, mas
o desenvolvimento dialético das técnicas m ateriais de pro­
dução e de sua organização social em direção a uma sociedade
humana sem classes.
M arx viu a religião como criadora de um mundo do “ faz
de conta” , que ocultava dos governados os reais interesses
dos governantes. Essa corrupção da razão por interesses de
classes, sendo consciente ou inconsciente, era o que Marx
denominava ideologia. A religião funcionava como uma
ideologia, dando legitim idade a estruturas sociais e polí­
ticas injustas. Todos os que trabalhavam sem discernim ento
dentro de um sistem a assim eram vítim as de uma falsa
consciência que poderia ser transform ada som ente por
uma ação p olítica em solidariedade com a classe trab a­
lhadora industrial.

47
A FALÊNCIA DOS DEUSES

É nesse contexto que ele fez a sua fam osa referência à


religião com o sendo “ o ópio do p ovo” . A citação com pleta
é bastante com ovente, menos severa do que alguns de seus
outros com entários: “ A religião é o suspiro da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, a alm a das
condições desalmadas. Ela é o ópio do p ovo.” 6 N o tem po em
que a ciência m édica podia oferecer bem poucas curas, o
ópio era am plam ente em pregado com o aliviad or da dor.
Dessa form a, para M a rx a relig iã o era um m odo de en fren tar
a constante dor das condições desumanas. A urbanização
e a industrialização da E uropa do século dezen ove trouxe
m uita m iséria social em seu rastro. Os trabalhadores v en ­
diam-se com o bens de consumo numa sociedade capitalista
e assim ficavam alienados de seu trabalho, dos seus com ­
panheiros trabalhadores e tam bém de si mesmos. A religião
era incapaz de libertá-los das causas do seu sofrim ento. E la
ajudava apenas a d im in uir a dor da existência. A religião
em si não era a causa do sofrim en to mas, por to rn ar tolerável
o que era intolerável, ela m inava a von tade de lutar por uma
d iferen te ordem das coisas.
A essa crítica M arx acrescentou a visão reducionista da
religião desenvolvida por seu contem porâneo am igo Lu d w ig
Feuerbach (1804-1872), que tam bém tinha sido discípulo
de H egel, mas que então era um dos principais críticos do
M estre. P ara Feuerbach, todo palavreado sobre Deus tem
que ser com preendido com o a expressão de desejos humanos
e ideais coletivos (tais como a justiça, a sabedoria, o amor,
etc.). Esses ideais são personificações de aspirações e senti­
m en tos hu m anos. E les são en tã o in c o n s c ie n te m e n te
externados (ou “ objetivados” ) e atribuídos a um objeto não-
humano que se supõe perm anecer sobre a raça humana e
além dela. Dessa m aneira a im aginação religiosa, trabalhan­
do com os sentim entos religiosos, in verte a realidade. A
religião humana nada mais é do que um reflexo da própria
pessoa (enten dida de form a coletiva, entretan to, não in d i­
vidualm en te). A o passo que em H egel o sujeito da dialética
do revelar-se é o Absoluto Espírito/Razão, em Feuerbach
ele se torna a espécie humana. A autoconsciência humana
projeta o seu conteúdo no cosmos. Assim ele escreveu:

48
RE LIG IÃO E ÍDOLOS

A consciência que o homem tem de Deus é a autoconsciência


humana; o conhecimento de Deus é o autoconhecimento humano...
Deus é a natureza interior manifestada, a expressão do ser do
homem; religião, o solene desvendar dos tesouros escondidos de
um homem, a revelação dos seus pensamentos íntimos, a confis­
são aberta de seus segredos amorosos... O progresso histórico
da religião consiste portanto nisto: que o que uma religião
anterior considerou ser objetivo, posteriormente é reconhecido
ser subjetivo; o que anteriorm ente era considerado ser Deus, e
adorado como tal, agora é reconhecido como algo humano. O que
anteriorm ente era religião depois é tido como idolatria: os seres
humanos são vistos como tendo adorado a sua própria natureza.7

D essa form a , p a ra F eu erb a ch a ad oração de um D eus tra n s ­


cen d en te n ecessa ria m en te im p lic a v a na supressão da lib e r ­
dade hum ana. C om o e le expressou , de m a n e ira sucinta: “ P a r a
e n riq u e c e r a D eus, o h om em tem que se to rn a r p ob re; para
que D eus seja tudo, o h om em tem d e ser n ada.” 8
A s s im M a rx , sob a in flu ê n c ia d e F eu erb a c h , v e io a c re r
que a c r ític a à r e lig iã o é o fu n d a m e n to p a ra to d a c rític a
social, u m a v e z qu e as pessoas re lig io s a s são as q u e com
m a io r p ro b a b ilid a d e a qu iescem a q u a lq u e r fo r m a d e in v e r ­
são social e desse m od o ob scu recem a r e a lid a d e social. N ã o
ap en as a r e lig iã o é um jo g o nas m ãos d a q u e le s qu e c o n tro ­
lam , s egu n d o seus p ró p rio s in tere s se s , o m od o c o m o a
s o c ie d a d e fu n c io n a , m as e la a c a le n ta o c r e n te p a r a qu e
tenh a u m a c o n fo rm id a d e social p assiva , d e sv ia n d o a sua
aten çã o das causas rea is da m is é ria e d a opressão. P o r ta n to ,
a r e lig iã o e ra u m a in im ig a da lib e rd a d e . E la te r ia q u e ser
ve n c id a , p a ra o b em d a h u m an id ad e.
N ó s nu nca c om p re e n d e re m os M a r x se não con sid erarm os
q u e e le fo i c ria d o n u m a m b ie n te ju d a ic o -c ris tã o , e q u e isso
in flu i no qu e ele fala. A su a p a ix ã o p o r e x p o r cada fo r m a
de m al social, e p o r lib e r ta r os h o m en s das cad eias da
opressão, é a p aixão de um p ro fe ta do A n tig o T e s ta m e n to .
A sua visão é ética, os seus v a lo re s fre q ü e n te m e n te são,
m esm o de fo rm a in con scien te p ara ele, b íblicos. A ca ra c te ­
rística lin g u a g em de “ a lie n a çã o ” , “ red en çã o h u m a n a ” , “ N o v o
H o m e m ” , e assim p o r d ia n te, é to m a d a d ire ta m e n te da
te o lo g ia cristã. A t é m esm o o p ro te s to c o n tra um D eus que

49
A FALÊNCIA DOS DEUSES

silencia diante do sofrim ento e que parece sancionar injus­


tiça é um eco da literatura de protesto da Bíblia. M arx
acreditava que a sua análise da sociedade capitalista era
estritam ente científica, mas a ciência em suas mãos não era
simplesmente uma ferram enta teórica para compreender o
mundo, mas uma poderosa arma com que mudar o mundo.
Em bora os aspectos “ científicos” do seu trabalho tenham
sido invalidados pelos eventos que se deram após a sua
m orte (por exemplo, as suas previsões quanto ao curso que
tomaria o capitalism o ocidental não se com provaram ser
verdadeiras), seus seguidores em geral ainda se apegaram
à suposta natureza científica do que veio a chamar-se M ar­
xism o, e n e g lige n cia ra m esses aspectos m ais fascin an tes
das raízes morais e espirituais de Marx.
U m a outra em inente figu ra de origem judaica que se
tornou igualm ente um ardente campeão do ateísm o m ili­
tante foi o médico vienense Sigmund Freud (1856-1939),
o fundador do m ovim ento psicanalítico. Freud acreditava
que “ a base da necessidade humana de ter uma religião é
o desamparo infan til” . A religião é assim associada a um
estágio infantil no desenvolvimento de uma pessoa, e Freud
procurou demonstrar também como esse estágio surgiu no
desenvolvimento da espécie humana. Num livro intitulado
Totem e Tabu (publicado em 1913) Freud apresentou algu­
mas bizarras especulações sobre a origem da religião e da
moralidade na pré-história humana. Ela vem de uma culpa
reprimida engendrada por um ato parricida prim itivo: os
machos no grupo fam iliar mataram o chefe, por causa do
ciúme sexual por ele ter o controle sobre todas as mulheres,
e então devoraram o seu corpo. Freud então ressuscitou
uma desacreditada teoria biológica chamada Lamarckismo
para argu m entar que a p ersistente afeição pelo chefe
transm utou-se em sentim entos de culpa que foram her­
dados por sucessivas gerações, assim formando a psiquê
religiosa universal. O falecido pai e chefe tornou-se mais forte
do que quando vivo! A sociedade agora se estabelecia com
a cumplicidade de um crim e comum; a religião estabelecia-
se no sentimento de culpa e de remorso que se lhe apegava;
já a moralidade estabelecia-se em parte nas necessidades

50
RELIGIÃO E ÍDOLOS

dessa sociedade e em parte na penitência exigida pelo sen­


tim ento de culpa.
Essas fantasias antropológicas seguiram-se às suas teo­
rias anteriores quanto às origens das perturbações em o­
cionais das pessoas, as quais tinham vindo até ele para
tratam ento. Freud acreditava ter rem ovido camada após
camada de m otivações inconscientes que tinham provindo
de culpa reprim ida devida a fantasias sexuais da infância
(o que ele chamou de complexo de Édipo, segundo uma
personagem de um antigo drama de Sófocies, que sem querer
cumpriu o seu destino matando o seu pai e casando-se com
a sua mãe). A religião expressava um modo im aturo de
en fren tar esse con flito in terior: projetando uma figu ra
cósmica de um “ p a i” que apazigua os nossos tem ores,
livram o-nos da dor de en fren tar tais con flitos e de te r que
assumir responsabilidade por nossa vida. O com porta­
m ento religioso é então uma negação à realidade. Criam os
deuses a partir do rem oinho de nossos desejos e ansiedades
interiores. Em seu âmago há um processo de realização de
desejos.
Se M arx viu Deus funcionando para os crentes religiosos
como um comprimido enorm e contra a dor (o equivalente
moderno do seu ópio), para Freud ele oscilava entre um
gigante ursinho de pelúcia e um despótico diretor de escola!
Esses dois homens viram -se como protagonistas de uma
nova era de libertação através da ciência, em bora Freud
veio a tornar-se cada vez m ais pessim ista em relação ao
futuro da humanidade, por viver até a Grande Guerra e a
era nazista. Am bos consideraram a religião como um obs­
táculo ao seu programa de libertação humana, porque ela
ocultava as origens das causas das aflições humanas. O
m ilitante ateísmo deles tinha o propósito de dar um fim à
ilusão religiosa, de form a a restaurar a autonomia humana.
O que é notável é que, em cada um dos casos, a tradição
profética da Bíblia parece ter sido a motivação inconsciente
para as tentativas deles de transform ar a consciência hu­
mana. A crença num destino mais elevado para a huma­
nidade, o conceito da alienação humana, a noção (em M arx)
de haver propósito na história e o triunfo final da justiça...

51
A FALÊNCIA DOS DEUSES

tudo isso são reminiscências de uma cultura que, em algum


momento, se achava profundamente influenciada por uma
visão bíblica do mundo, por mais que tal cultura possa ter
negado na prática essa visão. Como Erich From m - um dos
grandes pioneiros da psicologia existencialista - observou
a respeito de Freud, “ sob o disfarce de uma escola científica,
Freud realizou o seu velho sonho, ser o Moisés que mostrou
à humanidade a terra prometida, a conquista do Id (o
inconsciente rem oinho da psiquê) pelo Ego, e como fazer
essa conquista.” 9

Uma Crítica Bíblica


H oje muitos considerariam Freud e M arx como grandes
curiosidades históricas. Suas teorias foram ultrapassadas
por outras, suas soluções foram tentadas mas não deram
certo, seus mais ardorosos seguidores ficaram desapon­
tados. Bem poucos hoje, em comparação, digamos, a trinta
anos atrás, se diriam m arxistas ou freudianos. P o r que,
então, nós que estamos no lim iar de um novo século, quando
os m ovim entos religiosos, longe de desaparecerem , estão
se ramificando por todo o mundo (até mesmo no Ocidente
supostam ente tido com o secular), por que nos incom o­
darmos a observar toda essa sua crítica à religião?
Vou apresentar duas razões. A prim eira é que a visão
que eles tinham da fé cristã é partilhada hoje por muitos
que nunca chegaram a ou vir fa la r de M arx ou de Freud
(ou de qualquer outro influente ateu do século passado).
Sem pre que alguém se refere à fé como uma “ m uleta
em ocional” para aqueles que não conseguem ficar firm es
em seus pés, ou seja, que não conseguem viver sem serem
ajudados, tal pessoa está invocando o fantasma de Freud.
Sem pre que alguém zomba da fé cristã, tachando-a de
“ ideologia burguesa” ou “ a ilusão de uma outra vida” , está
prestando homenagem a Marx. Am bos deixaram um voca­
bulário (p. ex.: ideologia, luta de classes, alienação, repres­
são, libido) que se tornou parte integrante do palavreado
popular da cultura moderna.
A segunda razão, mais im portante, é a seguinte: eles
forçam todos os que se dizem cristãos a reexaminarem suas

52
RELIGIÃO E ÍDOLOS

crenças e práticas à luz da revelação bíblica. Os grandes


profetas de Israel foram, não menos do que o próprio Jesus
Cristo, pessoas perturbadoras e incomodativas. M uito do
que fizeram envolveu um processo de “ arrancar e derrib ar”
acariciadas noções sobre Deus, assim como de “ edificar e
plantar” (Jr 1:10). Será que Deus não poderia estar falando
conosco hoje através desses “ p rofetas secu lares” - da
m esma form a como ele falou ao seu povo de Israel de duro
coração por m eio dos seus inim igos pagãos? Esses ateus
não poderiam, na realidade, ter estado mais perto de com pre­
ender a natureza do reino de Deus, tal como revelada na
Bíblia, do que muitos devotos religiosos, tanto “ cristãos”
como “ m uçulmanos” , ou “ hindus” , ou “ budistas” , ou seja
lá o que for?
Reflitam os por um mom ento sobre a radical adoração
dada a Iahweh, o nome de Deus da aliança, tal como revelado
aos prim itivos hebreus. N o coração dessa revelação havia
uma severa advertência contra qualquer tendência à ido­
latria: “ Eu sou Iahw eh teu Deus... N ão terás outros deuses
diante de mim. N ão farás para ti im agem esculpida de
nada...” (E x 20:2ss - BJ). O que distinguiria Israel como
um povo seria o modo pelo qual seria dado o testemunho
acerca dessa excepcional revelação (do carácter de Deus, de
sua atividade e de seu propósito) entre as nações. É im por­
tante lem brar que Israel não era uma nação preexistente
com que Deus decidiu relacionar-se de uma m aneira espe­
cial, mas sim um heterogêneo grupo de pessoas sem-terra,
dispersos, chamados a ser um povo pela palavra de Iahweh,
e forjados como nação tam bém por tal palavra. Israel era
para ser o meio pelo qual Iahweh veio a desafiar o mal e a
idolatria do mundo, e assim restabelecer o seu reino (o seu
governo) sobre as nações. Esse testemunho tomou a forma
de guardar os termos da aliança. O modo de eles se relaci­
onarem entre si seria prova concreta da singularidade do seu
relacionamento com Iahweh. O seu culto a Deus estava
intimam ente ligado à prática da verdade, da misericórdia e
da justiça entre eles mesmos e para com seus próximos.
Os deuses dos cananeus, como na verdade também todos
os deuses dos povos semíticos e indo-europeus, eram deuses

53
A FALÊNCIA DOS DEUSES

da natureza e da fertilidade. Eles eram os que garantiriam


a estabilidade em meio ao caos e à convulsão social. O seu
culto, num ritual cuidadosamente prescrito, tinha o propósito
de apaziguar a caprichosa ira desses deuses assegurando
assim benefícios materiais para os seus adoradores. Esses
deuses eram essencialm ente am orais; aos hom ens, sua
única exigência relacionava-se com a prática de certas obri­
gações ritualísticas. D iferentem ente dos deuses que pre­
servariam um cosmos imutável, Iahweh, entretanto, era o
portador de mudanças: libertando o seu povo do cativeiro,
dirigindo-o através do deserto, onde o povo aprendeu o sig­
nificado da santidade de Deus, preparando-o para ser um povo
que, em meio a todas as mudanças im previstas e todas as
fases da história humana, expressasse uma esperança para
toda a humanidade. O passado achava-se com um casal
num jardim, alienados entre si, alienados da Criação e de
seu C riador; o futuro tem a ver com “ novos céus e nova
terra, nos quais habita ju stiça” (2 P e 3:13; cf. Is 65:17ss,
Ez 47, Ap 21).
A grande tentação que Israel enfrentava, e à que com
frequência sucumbia, era considerar Iahweh como uma
divindade da natureza e adorá-lo conform e os cultos reli­
giosos dos povos ao seu redor. Portanto a grande ênfase da
m ensagem dos profetas era que a idolatria e a injustiça
social andavam de mãos dadas. Quando a religião passou
a dar suporte à opressão social, ou constituir-se num meio
de se evadir das elevadas exigências da aliança, escapando
para um mundo particular de segurança e falsa paz, então
Iahweh se pôs em oposição à religião. Quando as dádivas
de Iahweh (por exemplo, a terra, o santuário, o sábado)
passaram a tomar o lugar de Iahweh, as pessoas sendo
enganadas a pensar que Iahweh estaria sempre com elas,
não importando como tratassem o fraco e o vulnerável, ou
o que fizessem em seus negócios e nas cortes de justiça, então
o ju ízo de Iahw eh sobre a nação consistia na rem oção
daquelas dádivas. O seu povo foi enviado ao exílio, o san­
tuário foi destruído, o sábado foi profanado por exércitos
estrangeiros (p. ex.: L v 18:26-28; Jr 7:9-15; Lm 2:5ss).

54
RELIGIÃO E ÍDOLOS

0 cuidado de Iahweh para com os pobres é o outro lado


de sua oposição à idolatria. A trágica realidade da pobreza
na terra de Iahweh, que tem tanta abundância, é às vezes
atribuída ao pecado individual (p. ex.: P v 19:15; 24:30-34),
mas com m aior freqüência é m encionada com respeito
àqueles que não são pobres de não viverem segundo os
preceitos da aliança. Quando Israel se estabeleceu na terra
de Canaã, a terra foi dividida entre as fam ílias; e as dispo­
sições sobre o ano sabático e sobre o ano do jubileu (L v 25)
tinham o propósito de assegurar que a terra (que era o
capital, numa sociedade agrária) não se acumulasse nas
mãos de uns poucos em detrim ento da m aioria. N a lei
Mosaica Deus deu provisões especiais para determ inados
grupos de pessoas pobres (p. ex.: Êx 23:2-9; L v 19:9-10; Dt
15:1-18; 24:19-22). A unidade do povo era uma pressupo­
sição básica em tais provisões: eles teriam que se relacionar
entre si de uma maneira que refletisse como eles mesmos
tinham sido tratados em sua história por Iahweh (p. ex.: L v
25:42-43; Ex 23:9). Assim , a pobreza não era objeto do
cuidado apenas das pessoas, individualm ente; as estru ­
turas sociais sacralizadas pela lei objetivavam proteger as
partes vulneráveis da comunidade e ainda revelar às nações
circunvizinhas que Iahw eh era um Deus de compaixão e de
justiça. Prom essas de prosperidade em decorrência da
obediência (p. ex.: Dt 15:4-5) eram dadas a toda a comu­
nidade, não a pessoas, individualm ente.
O povo de Israel não conseguiu conviver com as tensões
psicológicas provocadas por sua singularidade em termos
sociais, políticas e religiosas. Quando exigiram do ju iz e
profeta Samuel que Iahweh lhes desse um rei “ como todas
as nações” , Samuel lhes advertiu quanto às conseqüências:
m ilitarism o e violência, desigualdade econômica e opressão
social (1 Sm 8:10ss). Tendo sido estabelecida a monarquia,
com o esquecimento em larga escala da lei da aliança, a
estratificação social tornou-se in evitável. O ponto mais
baixo da queda deu-se durante o reinado de Acabe quando,
encorajado por Jezabel, sua esposa fenícia, ele procurou
derrubar o culto a Iahweh e substituí-lo pelo culto a Baal,
a divindade centenária das culturas circunvizinhas. O fato

55
A FALÊNCIA DOS DEUSES

de Acabe e Jezabel se apoderarem da vin h a de N a b ote


(1 Reis 21) demonstrou quão depressa as leis anteriores,
que m antinham a propriedade na fam ília, tinham dado
lugar a conceitos estrangeiros de direito de posse estatal.
Os profetas de Iahweh falaram duramente contra as injus­
tiças que havia nessas mudanças (p. ex.: Is 5:8; 10:1; Jr
34:13-17; A m 2:6-8; 3:15; 5:11-12). O pobre e humilde da
terra, que não tinha ninguém de quem depender para a
sua libertação, a não ser de Iahweh, veio a identificar-se
como sendo “ o povo de Iahw eh” de uma maneira singular
(p. ex.: SI 9:9-10; 14:4-6; 37:14-15; Is 3:15). Eles são neces­
sitados economicamente, oprimidos socialmente, mas puse­
ram a sua confiança em Iahweh e não nos deuses das nações
circunvizinhas.
A total proibição de “ im agens” , que encontramos desde
o princípio da história dos israelitas, e o contingente status
de reinado em Israel, são exceções no mundo da a n tigu i­
dade. E não foi por acidente que elas foram o ponto central
da crítica profética. Todos os sistemas religiosos do O riente
P róxim o giravam em torno de imagens locais, mediadoras,
que eram supervisionadas por uma elite real e sacerdotal.
Elas controlavam todo o contato estabelecido pelos seres
humanos com a esfera divina. A o argumentarem tanto que
Israel era uma comunidade “ sacerdotal” , como tam bém que
o divino não poderia ser representado por qualquer form a
que a im aginação humana concebesse (pois assim poderia
haver uma manipulação na sociedade pelos poderosos, para
seus próprios interesses), os escritores bíblicos dão a en­
tender que estão criticando a religião como sendo idolatria.
É interessante lembrarmo-nos de que os cristãos prim itivos
foram chamados de “ ateus” pelos romanos. Eles não parti­
cipavam do culto ao imperador. Eles não tinham nenhum
objeto da parafernália religiosa: não tinham santuários,
nem edifícios sagrados, não tinham centros de p e re g ri­
nação, não tinham uma classe sacerdotal especial, não
tinham “ dias san tos” nem “ dias p ro p ício s” . E les não
ofereciam ao im pério Rom ano uma nova religião para
agregar-se às centenas de religiões já existentes. N em
mesmo ensinavam uma nova filosofia ou um código de

56
RELIGIÃO E ÍDOLOS

ética, em bora a sua mensagem sobre um crim inoso cruci­


ficado que ressuscitara com um novo corpo humano tivesse
enorm es implicações filosóficas e éticas. Os cristãos tinham
a opção de sorrateiram en te m isturarem -se com o m eio
am biente m u ltirreligioso do estado: se tão som ente reconhe­
cessem que Jesus era sim plesm en te um a mais, no m eio
de inúm eras personagens salvadoras que havia no panteão
rom ano. Dessa form a eles teriam sido tolerados como sendo
uma seita religiosa inofen siva e teriam sido deixados em paz
pelas autoridades.
Todos nós sabemos qual foi a opção dos cristãos p rim i­
tivos. N um certo sentido, eles não tinham outra opção, dada
a natureza do que eles criam. Como seria possível crer que,
entre os que haviam sido crucificados pelo estado romano,
um deles era o F ilho do próprio Deus, sem que desse modo
toda a visão sobre política e poder não virasse de cabeça
para baixo? Com o poder-se-ia crer que os guardiães da
tradição religiosa e m oral mais desenvolvida do mundo
teriam rejeitado o Filho de Deus para assim preservar sua
identidade religiosa - e ao m esm o tem po não rev e r o en ten ­
dim ento que se tem sobre religião e religiões? A opção de
servir a Jesus nos dom ingos e a César nos dem ais dias da
semana era como tra ir as próprias Boas N ovas. Pois se o
Jesus crucificado era o Sen hor ressurrecto, então César e
o mundo de César teriam tam bém que se encurvar diante
de Jesus. Dessa form a eles pagaram com a vid a a sua
crença.

Falsos Evangelhos
Com pare isso com m uito do que se passa por C ristianism o
hoje em dia. As Boas N ovas são embaladas e divulgadas
(fazendo uso, sem crítica alguma, de todas as técnicas de
propaganda m oderna) com o um produto religioso: o fe re ­
cendo “ paz em sua alm a” , “ como chegar ao céu” , “ saúde e
prosperidade” , “ cura in te rio r” , “ a resposta a seus prob le­
m as” e assim por diante. O que se prom ove como “ fé em
Deus” m uitas vezes acaba sendo, numa análise mais cuida­
dosa, um m eio de se obter segurança emocional ou bênçãos

57
A FALÊNCIA DOS DEUSES

materiais para esta vida e uma apólice de seguro para a


próxima. Esse tipo de pregação deixa o status quo intacto.
N ão levanta questões fundamentais e perturbadoras sobre
as prem issas sobre as quais as pessoas constroem a sua
vida. N ão ameaça os falsos deuses em cujo nome se assumiu
o controle sobre a criação de Deus; de fato na verdade isso
realm ente reforça o dom ínio deles sobre seus adoradores.
Tal tipo de “ evangelho” é essencialmente escapista, descen­
dente direto dos pseudo-evangelhos dos falsos profetas do
A n tigo Testam ento. É sim plesm ente uma im agem religiosa
da cultura de consumo secular em que o homem moderno
vive. E permanece com as portas bem abertas a toda a força
da crítica selvagem de M arx e Freud.
M uitas vezes me ponho a pensar o que há nesse tipo de
pregação que não possa ser oferecido por quaisquer dos
miríades de gurus hindus ou pelas inumeráveis seitas reli­
giosas indianas que cada vez mais se destacam no ambiente,
não menos tradicional, cultural moderno. P or que a seita
Sai Baba, por exemplo, é especialm ente popular entre os
políticos e ricos homens de negócios no subcontinente da
índia? P or que aqueles que ostensivam ente rejeitaram a
ética da sua fé tradicional, contudo persistem tendo classes
de meditação e consultam com freqüência seus astrólogos
pessoais? Parece-m e que a atração reside no oferecim ento
de uma religião sem arrependim ento. Pode-se ter a cura das
enfermidades, a prosperidade para os filhos, a paz na alma
e até mesmo o acesso a poderes sobrenaturais, sem que
ninguém esteja levantando questões perturbadoras quanto
ao uso da violência por poderes políticos, quanto a políticas
de racismo, ou quanto a transações com erciais duvidosas.
N ão há uma exigência m oral de se fazer uma pública con­
fissão e restituição para com todos aqueles que se tenha
defraudado.
O mesmo é verdade em relação a todos os m ovim entos
religiosos da N o v a Era, principalm ente da Am érica do N orte
e da Europa. O seu patrocínio pelos altos escalões da
burguesia social (a assim chamada raça “Y u p pie” ) não é
acidental, pois o que oferecem é uma atrativa síntese entre
o consumismo ocidental com o m istério oriental. N o fundo

58
RELIGIÃO E ÍDOLOS

há uma comum obsessão pelo poder: tan to social como


mística. Form as com ercializadas de religiões da índia,
muitas vezes reduzidas a técnicas de meditação e a novos
hábitos alim entares, já há tem po têm sido populares no
Ocidente entre os mais abastados. Mesm o no últim o século,
a classe média superior européia era a grande patrona da
teosofia, do espiritism o, da Ciência Cristã e de outras es­
púrias form as de prática religiosa. A religião terapêutica,
favorecendo o narcisismo do eu moderno, parece ser o ópio
das classes dominantes.
T a l tipo de religião, seja em formas cristãs ou em outras
formas, é idolatria por definição bíblica. Porque no coração
da idolatria acha-se a tentativa de manipular “ Deus” ou o
“ mundo espiritual” invisível com o objetivo de obter segu­
rança e bem-estar para si e para o seu “ grupo” (tanto podendo
ser a família, a empresa, a comunidade de um local ou uma
nação-estado). A fé bíblica, em contraste a isso, é a total
renúncia de todo o nosso ser em grata confiança e amor
perante o Deus que se revelou na vida, na m orte e na res­
surreição de Jesus Cristo: de form a a tornarmo-nos agentes
voluntários dele, numa impiedosa confrontação contra toda
forma do mal e de sofrim ento injusto do mundo. Essa fé
implica em tomarmos a dor e a confusão dos outros, e em
nos dispormos a viver nós mesmos com incertezas, enquanto
caminhamos para um futuro que já está operando entre nós.
De fato, “ esperança” é uma palavra mais empregada do
que “ fé ” no N ovo Testamento, em suas descrições da vida
cristã. Para o escritor da carta aos Hebreus, pelo menos, fé
e esperança acham-se inextricavelm ente ligadas: “ a fé é a
certeza de coisas que se esperam...” (H b 11:1). A esperança
cristã está bem longe do pensamento positivo. Ancorada na
ressurreição física de Jesus, ela toma este mundo, e espe­
cialm ente a existência histórica dos homens e das mulheres,
com a m aior seriedade, reconhecendo suas am bigüidades
e contradições, mas crendo em sua redenção, que certa­
m ente é uma realidade. Nas palavras de Dietrich Bonhoeffer,
ditas quando se debilitava numa prisão à espera de sua
execução por causa de sua oposição a H itler, “ a diferença
entre a esperança cristã e uma esperança mitológica é que

59
A FALÊNCIA DOS DEUSES

a esperança cristã d evo lve o hom em para a sua vid a na


terra de uma form a totalm ente nova... M itos de salvação
surgem da experiência humana de circunstâncias extremas.
C risto tom a o hom em a p a rtir do cen tro de sua v id a .” 10
Isso é exatam en te o oposto do “ d esejo-realiza çã o” de F reud,
pois esta esperança de red en ção resid e no cam inho da
C ruz; e o cam inho da C ru z não rea liza os desejos naturais
de ninguém ! E ste é um tem a ao qual volta rem os ainda
neste livro.
O abism o que há en tre o C ristian ism o m oderno e a
espiritualidade da Bíblia pode ser visto tam bém no nosso
seletivo uso dos Salmos, que era o hinário do povo de Israel
e da Igreja do N ovo Testam ento. Os salmos não apenas
refletem toda experiência humana (p. ex.: confusão, raiva,
m edo, ansiedade, depressão, a le g ria in con tid a), mas eles
nos forçam a parar de fin gir que tudo esteja bem com o
mundo. Os salmos de lam entação (por exemplo, os salmos
10, 13, 35 e 86) são veem entes queixas diante de Deus em
relação às con tradições existen tes e n tre suas prom essas
e a realidade por que passa o povo. Esses salmos raram ente
são usados no culto cristão hoje em dia. Contudo esses
salmos são atos de uma fé corajosa: corajosa, porque eles
insistem em que tem os que enfrentar o mundo como ele é,
e que tem os que abandonar toda ostentação infantil; mas
tam bém de fé, porque eles partem da convicção de que não
existe assunto proibido, quando se trata de termos uma
con versa com Deus. R e te r daquela conversa com Deus
qu alqu er coisa da exp eriên cia hum ana, inclu sive a escu­
ridão de um a oração não respondida, e os aspectos n ega­
tiv o s da vida, é negar a soberania de Deus sobre toda a
vida. Assim , paradoxalm ente, são aqueles que reprim em
suas dúvidas com uma série de cânticos alegres que bem
podem estar sendo incrédulos: pela recusa de crer que Deus
pode cuidar de toda a raiva que eles têm.
Assim, os salmos de protesto constituem um a poderosa
repreensão ao que passa por fé e lou vor na m aioria dos
grupos cristãos de hoje. O que é irônico é que a vida m oderna
talvez nos exponha a mais confusão e dor do que qualquer
coisa do m undo do salm ista; e contudo ignoram os exatam en-

60
RELIGIÃO E ÍDOLOS

te aquelas orações que vêm de encontro a tal senso de de­


sorientação. N ão é de se adm irar que m uito do ensino atual
quanto à fé não seja diferente do “ pensam ento positivo” dos
gurus m odernos da administração, conquanto vestido com
uma roupagem pseudobíbliea. A fé bíblica, entretanto, é
exatam ente o contrário.
O m esm o é verdade com respeito à pregação de hoje sobre
“ p az” , um a palavra que exprim e um dos mais ricos conceitos
da Bíblia. O vocábulo hebraico shalom (a saudação tra d i­
cional dos judeus, até hoje) tem a idéia de “ bem es ta r” ou
“ ter de tudo que é b om ” e associa-se bem de p erto com os
tem as da reconciliação e da salvação. Ele tem muitas dim en­
sões, sendo que a mais fundam ental é a paz com Deus. Pois
Deus dar paz ao seu povo é sinônim o de voltar a sua face
para eles em m isericórdia e aceitação (N m 6:26). O Messias
prom etido no A n tigo Testam en to é o P ríncipe da P az (Is 9:6),
porque ele vai restaurar a eterna aliança de paz entre Deus
e o seu povo (cf. Ez 37:26). N o N ovo T estam en to “ paz com
Deus” é a prim eira bênção que provém da graça de Deus,
a qual redim e e justifica (Rm 5:1).
M as essa paz tem um a d im en são h o riz o n ta l tam bém :
paz com o nosso com panheiro ou com panheira, especial­
m ente com aqueles de quem nos separamos pelo pecado. As
Boas N ovas são sobre como Deus “ traz a p az” derrubando
os muros da hostilidade e da divisão en tre grupos sociais
(cf. E f 2:14ss). Os profetas deixaram bem claro que tal paz
tinha um preço; ela poderia apenas ser o resultado de
rela cio n am en to s c orreto s: “ O e fe ito da ju s tiç a será paz,
e o fru to da ju stiça, repouso e segurança, para s e m p re ”
(Is 32:1). E ntão há um a paz pessoal, um a profunda sere­
nidade que provém não por se evita r problem as, mas por
con fiar em Deus, m esmo em m eio a problem as (p. ex.: Jo
14:27; 2 T s 3:16). N ão posso en fatizar demais que shalom
é um conceito holístico. N ão deve ser jam ais reduzido, por
um lado, a uma m era ju stiça sócio-econôm ica nem, por
outro, a um narcisístico “ sentir-se b em ” ou a uma pseudo-
espiritualidade à parte da injustiça social e do sofrim en to
físico.

61
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Já com entam os o papel de id olatria exercido pela religião,


tanto em sociedades tradicionais como nas modernas, quando
invocada pelas pessoas na justificação do status quo. Os
privilegiados, que às vezes são pessoas “ religiosas” , norm al­
m ente acham que sua posição social e econômica é de algum a
form a um d ireito solene, básico, dado por Deus. Em m uitos
sistemas legais até o dia de hoje, tem sido defendido (tan to
por legisladores com o por m agistrados) que a propriedade
privada é sagrada, defesa essa que é fe ita com uma in d ig­
nação bem maior do que a defesa da santidade da vida
humana. Com o com enta ironicam ente o econom ista John
K enneth G albraith, “ a suscetibilidade do pobre diante da
injustiça é algo trivial, em com paração com a do rico” . Ele
continua: “ assim era no R egim e A n tigo . Quando a reform a
a p artir de cim a se torna im possível, a revolução a p artir
de baixo torna-se in e v itá v e l” .11Mas, alguém pode contestar,
o que d izer da ordem dada pelo apóstolo P au lo aos cristãos
no sentido de que estivessem contentes com a sua situação
m aterial? (1 T m 6:6ss.) N ã o se trata de um exem plo clássico
de ópio religioso sendo distribuído ao povo?
Não, se atentarm os para o contexto de toda a página em
que estas palavras de P aulo aparecem . Pois, em p rim eiro
lugar, P au lo não está se dirigin d o àqueles que os econom is­
tas m odernos descreveriam com o sendo “ os absolutam ente
pobres” , ou seja, aquelas pessoas hoje em núm ero superior
a m eio bilhão, cujas necessidades básicas de nutrição, de
vestim enta, de saúde e de m oradia ainda não foram satis­
feitas. E le pressupõe (no v. 8) que tais necessidades hum a­
nas prim árias já teriam sido satisfeitas; pois som ente então
é que o contentam ento é possível. O nde tais necessidades
não foram ainda atendidas, geralm en te é porque os recursos
m ateriais não são com partilhados, o que por sua vez resulta
da arrogância do rico e da sua recusa a cum prir suas ob ri­
gações em relação aos pobres (veja vv. 17, 18). Em segundo
lugar, as advertên cias de P a u lo não são d irigid as às le g í­
timas aspirações por parte dos pobres no sentido de se
lib ertarem da exploração e da privação m aterial. M as elas
se dirigem à cobiça humana, ao “ am or do d in h eiro” (v. 10),
ao espírito de consumismo que é enorm e entre “ os ricos do

62
RELIG IÃO E ÍDOLOS

p re s e n te s é cu lo ” e qu e le v a à id o la tria e a u m fa ls o senso
de s egu ra n ça (v . 17; cf. C l 3 :5). É m u ito fá c il qu e a p ro c u ra
d e u m a ju s tiç a e c o n ô m ic a (o q u e D eu s a p r o v a ) d escam b e
n u m a r iv a lid a d e d e s tr u tiv a , m o tiv a d a p o r u m a c o b iç a
o b sessiva (o qu e D eu s r e p r o v a ). Isso é v e rd a d e ta n to p ara
ig re ja s com o p a ra n a ções c o m o é p a ra pessoas, in d iv i­
d u alm en te. A s ad v e rtê n cia s de P a u lo b aseiam -se no p res­
suposto de q u e um m u ndo de g ra n d e d esigu ald ad e m a te ria l
é um m u ndo qu e é d om in ad o p o r falsos deuses, p or fo n te s
v a zia s d e s e gu ra n ça ( w . 7, 17). S e os rico s ob s e rv a s s e m o
seu ensino, eles d e ix a ria m de ser ricos, e os p obres d eixa ria m
d e s e r p ob res.
P o r qu ase to d o o tra n s c u rs o d a h is tó ria , os g ra n d es p e n ­
sad ores e p re g a d o re s da Ig r e ja C ris tã tê m a fir m a d o os
d ire ito s e con ô m ico s dos pob res. N ã o apen as tr o u x e ra m à
le m b ra n ç a a r e la tiv a “ b oa a ç ã o ” do dever da ca rid a d e p ara
com os p ob res, m as ta m b é m in s is tira m n o d ir e ito de acesso,
p elo p ob re, a ad eq u a d o s m eios de su sten to . “ N ã o do qu e
é vosso vó s o u to rg a is aos p ob res, m as v ó s fa z e is r e to r n a r
do q u e é d e le s ” , d isse o b is p o A m b r ó s io (3 3 9 -3 9 7 , e n g e ­
n h e iro c iv il) aos n o b re s d e M ilã o .12 João C ris ó s to m o (c. de
3 7 7 -4 0 7 ) c o ra jo s a m e n te a rg u m e n to u que:

Isso também é roubo, não dar aos outros o que se possui. T alvez
esta afirm ativa soe surpreendente para você, mas não se
surpreenda... Assim como um oficial no tesouro estatal, se ele
negligencia em distribuir para quem lhe tenha sido ordenado,
mas retém para si por sua própria indolência, tem que sofrer
a pena, sendo posto à morte, da mesma form a o rico é como
um mordomo do dinheiro que possui para ser distribuído aos
pobres. Ele é dirigido a distribuí-lo a seus servos que estejam
em necessidade. Desse modo, se ele gastar consigo mesmo mais
do que sejam suas necessidades, ele terá que pagar a mais dura
pena depois. Pois os seus bens não são propriedade sua, mas
pertencem a seus servos... Rogo que você se lem bre disso sem
falta, que não com partilhar os bens com os pobres é roubar os
pobres e privá-los de seu m eio de vida; nós não possuímos nossos
bens, mas sim os deles.13

S e m e lh a n te m e n te o g ra n d e P a i da C apadócia, B a sílio da
C es a ré ia (c. de 329 - c. de 379) rep re en d eu cristãos qu e era m

63
A FALÊNCIA DOS DEUSES

ricos com uma linguagem que é ouvida com m aior freqüência


nos piquetes das fábricas do que em catedrais: “ O pão que
você guarda consigo pertence ao fam into; o agasalho que
você deixa dentro do seu arm ário, ao desnudo; os sapatos
que você possui e que estão apodrecendo, ao que está descalço;
o ouro que você tem muito bem guardado, ao necessitado.
Portanto, todas as vezes em que você teve condições de ajudar
alguém, e recusou-se a isso, você então lhes fez um m al.” 14
Um a idéia bastante difundida, de que o conceito do direito
é um produto do humanismo da época do Iluminismo, his­
toricam ente é incorreta. Embora a palavra “ d ireito” não
tenha, possivelmente, aparecido com muita freqüência entre
os líderes cristãos dos prim eiros séculos, nem entre os da
igreja medieval, entretanto perm eia os seus escritos o pen­
samento de que os pobres na sociedade têm legítimos direitos
diante dos ricos (por causa dos deveres destes para com eles);
e o pensamento de que, em situações de privação material,
causa um dano moral ao pobre reter o que se possui. E
moralmente permissível a uma pessoa extrem am ente pobre
tom ar algo de que necessite, para a sua subsistência, de
alguém que tenha em abundância. Se eu tenho alimentos em
minha casa de que você necessita para a sua subsistência,
mas que não são indispensáveis para a minha, então tais
alimentos por direito pertencem a você. Você tem um direito
moral legítim o sobre eles. Oferecendo-os eu a você, isso não
seria um ato de caridade de minha parte, pois estaria apenas
concedendo os seus direitos diante de Deus.
N a sua famosa obra Summa, o grande e erudito São
Tom ás de Aquino, da Idade Média, argumentou provocan­
tem ente que todas as disposições sobre a propriedade p ri­
vada, que procedem de leis incontestáveis (as leis do estado),
têm de estar sujeitas ao princípio da m ordom ia humana
geral, que é garantida pela lei moral natural:

Em casos de necessidade todas as coisas são de comum proprie­


dade, de forma que não configuraria ser um pecado tomar um
bem que é propriedade de outra pessoa, pois a necessidade
tornou-o um bem comum... Bem, de acordo com a ordem natural
estabelecida pela divina providência, as coisas inferiores são

64
RELIGIÃO E ÍDOLOS

ordenadas com o propósito de socorrer as necessidades humanas


através delas. Portanto a divisão e a apropriação das coisas com
base na lei dos homens não excluem o fato de que as necessidades
humanas têm que ser atendidas por meio dessas mesmas coisas.
Daí decorre que tudo o que se tenha em superabundância destina-
se, pela lei natural, ao propósito de socorrer o pobre.15

Raciocinando a partir do princípio de m ordom ia pelo qual


os bens m ateriais são vistos com o colocados sob custódia
para o bem comum, São Tom ás de A qu in o prosseguiu:
“ Contudo, se a necessidade for patente e prem ente, sendo
eviden te de que a carência presente tem de ser atendida
por quaisquer meios disponíveis (por exem plo, quando al­
guém está num im inente perigo, e não há outra solução
possível), então é de direito tal pessoa atender à sua própria
necessidade fazendo uso do que seja da propriedade de
outrém , tomando-o tanto abertam ente como às escondidas;
nem isso se caracteriza propriam ente como furto ou roubo.”
S. Tom ás não especifica a m elhor m aneira para socorrer
o pobre, nem como assegurar seus direitos econômicos sem
in frin gir os direitos dos outros; mas o ponto que quero
salientar aqui é a sua clara convicção de que todos os seres
humanos têm direito natural a um evidente e ju sto acesso
aos m eios de subsistência. O fato de que tais colocações
possam aparecer ser extraordinárias para m uitos cristãos da
era m oderna é um indicativo de quanto a igreja tem se
desviado de suas tradições bíblicas (que São Tom ás, Crisós­
tom o e outros viram como sendo sim plesm ente in terp re­
tadas e entregues por eles à sua com unidade). M uitas igrejas,
tanto no Ocidente como na Ásia, têm a tendência de ser
confortáveis abrigos em m eio a uma pobreza horrível. Os
cristãos com freqüência têm tacitam ente deixado passar leis
e decisões judiciais que punem o pobre com m aior severidade
do que o rico. A m aioria dos sermões sobre a m ordom ia não
passam de apelos aos m em bros ricos para que contribuam
com o seu “ d ízim o ” para o finan ciam en to de projetos da
igreja locais e do exterior. Raram ente, para não se dizer
“ nunca” , tais serm ões levantam questões perturbadoras
sobre o modo pelo qual os bens são conseguidos, ou sobre
o que é feito com todo o dinheiro que sobra depois de dado

65
A FALÊNCIA DOS DEUSES

o dízim o. M uito menos ainda os cristãos da época m oderna


dispõem-se a exam inar como o seu trabalho profissional possa
na verdade estar colaborando para estruturas de exploração
do mundo, e dessa form a entrando em contradição com a
própria mensagem que eles estão ávidos por proclamar.

Virando as Mesas
O ateísm o m ilitante, do tipo defendido por M arx e Freud,
tem decaído ultim am ente. O ateísm o da nossa época na
realidade não passa de uma preocupação com o consumo
individual e uma postura de in d iferen ça em relação a ques­
tões mais sérias da vida e da m orte. E le esconde por detrás
uma abordagem despreocupada de “ tolerância” que geral­
m ente é um term o respeitável para apatia. M arx e Freud,
pelo menos, acreditavam em verdades absolutas e em juízos
morais. Eles estavam com prom etidos com a posição de a fir­
m ar categoricam ente que certas crenças eram erradas e que
não deveriam ser seguidas. Esse ateísm o anterior, como já
m encionei, era m uito mais um rem anescente da visão teísta
da vida. O ateísm o m oderno está mais propenso a ser relati-
vista em sua postura quanto à vida ( “ todas as crenças e
valores são culturalm ente condicionados e assim igualm en te
válid os” ). Eu pessoalm ente tenho uma adm iração m uito
m aior pelo ateísm o anterior e m ilitante, porque se trata de
uma posição bem mais honrosa de se sustentar, e ainda
incentiva um genuíno debate.
Os cristãos que se engajarem nesse debate descobrirão que
ele os compele a redescobrirem elem entos no coração do
evan gelh o que lhes tin h am passado desapercebidos. A s
críticas de M arx e Freud aplicam-se a muitas formas de
C ristianism o hoje. Desde que a Igreja Cristã deixou de ser
um m ovim ento subversivo dentro do mundo rom ano e to r­
nou-se aliada do poder econômico, social e político, o próprio
discipulado cristão transform ou-se num a subespécie do
g ên ero religião. T em os criado um Deus (e um Jesus) à nossa
próp ria im agem que nos dá o que outras religiões dão a
seus devotos. E m ta l clim a é im possível v e r a sin gularidade
de Jesus C risto e a n atu reza v erd ad eira m en te re v o lu ­
cion ária da lib ertação que ele proclam ou e que realizou.

66
RELIGIÃO E ÍDOLOS

O teólogo sul-africano, Charles V illa-V icencio, lam enta


que “ a menção do Deus cristão dentro da constituição da
Á frica do Sul (sob o apartheid) provavelm en te tenha con­
tribuído mais para alienar os negros da igreja do que
qualquer filosofia secular ou atéia .” 16
À luz daquele evangelho é fácil v er com o os próprios
M arx e Freud são vítim as do mesmo engano de si mesmos,
da idolatria e da realização de desejos que eles atribuem
à religião. M arx simplesmente transferiu a “ utopia” reli­
giosa de uma esfera espiritual para o fim da história (a
“ sociedade sem classes” ). Para M arx a salvação, a ordem
social livre de qualquer tipo de exploração, em que todas
as potencialidades humanas iriam florescer e florescer
totalm ente, com certeza iria despontar na plenitude dos
tempos. Isso se daria pela autocorreção e sistem atização
providencial do processo produtivo. Nisso a sua visão, por
toda a sua pessimista avaliação da sociedade burguesa e de
seus valores, era essencialmente hegeliana em seu otimismo.
A o mesmo tem po em que zom bava da ordem m oral eterna
ensinada pela religião, ele proclamava, com m uito mais
ingenuidade do que o mais simples devoto religioso, a
inexorável marcha das sociedades sob a música das leis
“ cientificam ente estabelecidas” da mudança histórica. A
sua crença de que a luta de classes era a locomotiva do
dinamismo social tinha a sua origem mais em seu próprio
desejo do que em qualquer argum ento histórico. Com o um
verdadeiro burguês intelectual, ele transform ou a classe
trabalhadora industrial num ídolo , vendo nela uma comu­
nidade messiânica que substituía as pretensões da Igreja
Cristã. Assim, em retrospecto, podemos ver como o m ate­
rialism o histórico de M arx osten tava todas as caracterís­
ticas da “ falsa consciência” , que ele atribuía à religião
tradicional. Não é de se adm irar que então o m aterialismo
histórico veio a ser uma religião do século vinte.
Qualquer regim e revolucionário que reivindique assumir
o controle do destino humano - de form a a substituir este
mundo injusto e de um “ Deus m orto” por seu próprio novo
mundo de justiça humana - tem de substituir esse “ Deus”
morto por si mesmo. Tem portanto de criar os seus próprios

67
A FALÊNCIA DOS DliUSES

valores, as suas próprias definições de justiça. Todos os


meios que servem à sua causa são considerados legítimos.
Assim, um sofrimento injusto pode ser infligido pela cúpula
revolucionária sobre as massas da era presente em bene­
fício do bem-estar das futuras. A tirania da nova ordem
silencia o protesto com a mesma eficiência com que “ Deus”
o fez nas monarquias da velha ordem. Toda tentativa de
apagar o passado e de “ começar de novo” com um homem
autônomo, desde a Revolução Francesa ao Camboja de Pol
Pot, têm desencadeado novos deuses feitos à im agem da
cúpula revolucionária. Teologias que ju stificavam o s o fri­
mento humano têm sido substituídas na nossa era moderna
por antropologias que ju stificam até m esmo m aiores s o fri­
m entos para o homem...
E interessante, também, analisar Freud com a análise
freudiana. Ele foi tomado por uma forte ambição de cons­
tituir-se num marco da história, tendo tomado como modelos
os heróis da sua adolescência, Aníbal e Napoleão. Apesar de
ter se revelado em muitos estudos que se dizem ser auto­
biografias suas, ele detestava que outras pessoas investi­
gassem os prim eiros anos da sua vida e as origens das suas
idéias, tendo ido até o extrem o de queim ar todas as suas
cartas e seus prim eiros manuscritos em duas ocasiões. O
que se d iz te r sido o seu com en tário d iante das obras
completas do poeta alem ão Goethe, - “ Tudo isso foi usado
por ele como um meio de se esconder” - poder-se-ia dizer
a seu próprio respeito.17
Foi nos últim os anos da década de 1890 que Freud desen­
volveu a teoria sobre neuroses conhecida como teoria de
Édipo. Ela surgiu depois de um intenso período de auto-
análise após a m orte de seu pai e a rejeição de suas teorias
anteriores pelo mundo acadêmico. A sua exposição, quando
criança, ao vazio do ritual católico por uma severa ama
católica; a sua apaixonada devoção à sua mãe, que o baju­
lava por toda a sua vida; o seu desprezo por um pai que
pouco realizara em vida e que fracassara no aprovisiona­
m ento das necessidades da fam ília; e a sua convicção de
que o anti-sem itism o da V iena católica é que tinha arruinado
suas chances de um reconhecim ento acadêmico; tudo isso

68
R E LIG IÃO E ÍDOLOS

formou o ferven te caldeirão de emoções do qual explodiu


a teoria de Edipo. Em outras palavras, Freud fez da sua
experiência pessoal uma teoria universal de desenvolvi­
m ento emocional e, depois, generalizou isso a uma expla­
nação totalm en te abrangente, de todo aspecto da vida
humana.
P o r localizar toda sensação de culpa e todo com por­
tam ento anormal em algum a experiência da infância, ina­
cessível à m ente consciente, F reu d con ven ien tem en te
evadiu-se de assumir responsabilidade pelos m uitos con­
flitos pessoais na sua vida adulta (brigando acerbam ente
com os seus amigos e colaboradores, com etendo adultério
e incesto com a irm ã de sua mulher, e assim por diante).
Poder-se-ia argum entar que a teoria a que Freud se ligou
em ocionalm ente em toda a sua vida, apesar de suas rasas
pretensões científicas, foi o seu modo de escapar da realidade
de uma objetiva culpa m oral e de apaziguar a sua consci­
ência. Ele fez do m ovim ento da psicanálise a sua própria
religião, acusando a todo aquele que dele discordasse de
ter repressões sexuais inconscientes, de form a que a sua
teoria nunca poderia ser testada, uma vez que todos os
argum entos levantados contra ela vieram a ser considera­
dos por seus praticantes como provas da própria teoria! Ele
passou o m anto de liderança à sua filha depois de ter
excom ungado os heréticos. A p esar de sua em baraçosa
escassez de sucessos terapêuticos, o m ovim en to da psica­
nálise continuou a proclam ar os dogmas supostam ente
científicos de Freud com um fe rv o r religioso.
E tam bém algo fascinante observar que Cari Jung, um
dos prim eiros discípulos de Freud, que posteriorm ente se
tornou um fervoroso oponente dele, e que foi o fundador
de uma escola alternativa de psicologia, acreditava que
Freud tinha fe ito da sexualidade um pseudodeus: “ Eu
tinha uma forte intuição de que para ele a sexualidade era
algo numinoso... era algo a ser observado religiosam ente...
Um a coisa estava clara: Freud, que sem pre deu tan to
destaque à sua irreligiosidade, agora tinha elaborado um
dogma; ou melhor, no lugar de um Deus zeloso, que ele havia

69
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

perdido, eie colocou uma outra im agem convincente, a da


sexualidade.” 18
A doutrina de Freud abriu o caminho para o irraciona-
lismo do século vinte. Ela desafiou diretam ente a imagem
racionalista do homem, predom inante nos dias de Freud,
a imagem de um ser em busca de nobres ideais, ou alter­
nativam ente (na form a mais prosaica de uma filosofia
utilitária), um cuidadoso contabilista do prazer e da dor.
Para os freudianos, tudo isso era bobagem. A s verdadeiras
fontes da m otivação humana fluem das nossas necessidades
instin tivas e dos intensos sentim entos que surgem de
profundas ligações humanas. A razão é distorcida pelas
escuras forças subterrâneas da psiquê. A nossa raciona­
lidade e a nossa m oralidade náo passam de uma fachada,
disposta para o engano e, especial mente, para o auto-en­
gano. Nunca podemos ter certeza de que não são auto-
enganadoras as nossas convicções interiores e as nossas
compulsões. Conseqüentemente, tudo o que podemos fazer
é colocarmo-nos nas mãos hábeis do terapeuta-sacerdote
habilitado, e con fia r no seu vered icto quanto à nossa
condição.
O próprio Freud parece não ter percebido as implicações
da sua doutrina. Pois, se válidas, essas revelações minam o
nosso com prometim ento com a razão. Tranqüilam ente ele
continuou a defender valores racionalistas, e até mesmo a
praticá-los. Como o filósofo da sociologia Ernest Gellner
observa com perspicácia, Freud “ compreendeu e sublinhou
o alto preço psíquico que tinha que ser pago pela tentativa
de restringir as forças das trevas dentro de nós, mas, que­
rendo pagar esse preço, deixou de perceber que ele tinha
destruído a necessidade lógica de fa ze r isso.” 19 G elln er
continua: “ Cremos no que o nosso Inconsciente nos instrui
a crer, e não estam os inteirados de seus m otivos ou razões.
Esta doutrina é aplicada p rim ariam en te a crenças sobre
os nossos próprios estados da m ente, mas, para sermos
mais precisos, eia deveria aplicar-se igualm ente a todas as
nossas crenças, sem distinção.” 20
Dessa form a, a autoridade da Guilda profissional de
intérpretes assume o controle tomando o lugar da autoridade

70
R E LIG IÃ O E ÍDOLOS

da razão e da religião tradicional. N o mundo freudiano,


assim como no m arxista, a hum anidade acha-se dividida
entre uma elite profissional que “ tem conhecimento” (e em
decorrência pode salvar), e o restante, que pode ser salvo
se demonstrar ter uma deferência adequada às interpre­
tações da elite: “ A noção do Inconsciente é o equivalente a
uma doutrina de um tipo de Pecado O riginal cognitivo e
universal. Os que estão em profundo pecado não são aptos
a criticar o seu salvador.” 21 Tem os aqui o surgim ento de
uma nova ortodoxia religiosa ateísta, mais totalitária (por
ser mais velada) do que as suas precedentes.
À parte de Freud e do freudianismo, a orientação psico­
lógica geral para a vida que se popularizou bastante na
cultura secular moderna tende à idolatria de si mesma.
Sem pre que uma pessoa contrapõe a assertiva de que
alguma coisa é verdadeira, feita por alguém, com um comen­
tário tal como “ você crê assim porque aqu ilo lhe propor­
ciona isso e aqu ilo” , tal pessoa está com etendo uma gafe
lógica. O entendim ento dos m otivos de alguém para acre­
ditar na assertiva A, ou não acreditar na assertiva B, não
é base para se saber se qualquer uma dessas assertivas
é falsa ou verdadeira. Isso nos levaria para além da psico­
logia. P or exemplo, podemos descobrir que uma certa pessoa
uniu-se a um grupo revolucionário m arxista por ter sido
carente em ocionalm ente em sua infância e querer identi­
ficar-se com uma causa que lhe dá um ce rto status de sentir-
se im portante. Mas tal descoberta ainda nos deixa com a
questão: o marxismo é verdadeiro no que ele declara quanto
à realidade social? U sar a psicologia desse modo, de form a
a deixar de en fren tar questões m ais profundas com res­
peito à verdade, é esconder-se atrás de um ídolo que às
vezes leva o feio rótulo de psicologismo. M as para demons­
trar a sua futilidade, tudo o que tem os a fa zer é virar a
mesa diante daqueles que o consagram: ou seja, como no
caso de Freud acima, ver se eles se satisfariam com expla­
nações psicológicas de suas próprias explanações psico­
lógicas!
O psicologismo está firm ado na crescente “ cultura tera­
pêutica” que trata de todos os males sociais como se fossem

71
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

simples problem as na psique de uma pessoa. E le portanto


reforça a privatização da vida, dá suporte às avaliações que
a sociedade põe sobre os homens e as mulheres, e acaba
fortalecendo os que se acham no topo da pirâm ide social, a
quem interessa a m anutenção da presen te ordem social.
A cultura terapêutica é o outro lado da abdicação da respon­
sabilidade política - a ren dição do dom ínio público ao
g overn o de “ forças de m ercado” impessoais e do “ progresso
tecnológico” , a que voltarem os mais adiante.
Quando nos voltam os a assertivas de que algo é verd a­
deiro, tanto a teoria da repressão de Freu d como a teoria
m arxista de um a falsa consciência parecem te r a caracte­
rística de fa ze r com que qualquer evidência que lhes seja
contrária faça um giro com pleto e se torne a seu favor! Essa
é uma característica de todos os m odelos terapêuticos e
políticos da liberação humana que funcionam como sistemas
de pensam ento abrangentes. Se as pessoas objetarem que
não se sentem nem psicologicam ente aleijadas nem p o liti­
cam ente oprim idas, esse em baraçoso fa to é usado para
m ostrar quão séria é a situação: a situação é tão ruim que
as pessoas nem sabem que são rep rim id as, exploradas,
oprim idas, e assim por diante! O ra, isso até pode ser uma
verdade, mas por excluírem de antem ão todas as a lte r­
nativas de uma possível crítica, essas teorias tornam -se
im unes à autocorreção. Elas tam bém se tornam in stru ­
m entos de opressão nas mãos de fanáticos.

Além da Experiência
T em os observado que tanto M arx com o Freud foram m uito
afetados pela teoria da projeção da religião de Feuerbach.
É sign ifica tivo que nenhum desses três pensadores levou
a cabo uma investigação séria de qualquer das religiões
históricas a que eles tanto se opuseram. De fato M arx e
Feuerbach gen eralizaram quanto à religião com bem pouco
mais em m ente além da filosofia de H egel sobre a religião.
M arx, apesar de toda a sua ênfase no con texto histórico,
era um historiador bem fraco. N ão é de se surpreender que
ele - e outros cientistas sociais que o seguiram em sua
tradição - não tinham consciência de sua própria sujeição

72
R E L IG IÃ O E ÍDOLOS

à m entalidade que acom panha o processo de m odernização.


T em os que nos lem b rar que a assim cham ada Consciência
Secular M oderna não tem um acesso p rivilegiad o à rea li­
dade. E la é em si um produto das mudanças sociais e
tecnológicas ocorridas nos últim os trezen tos anos, com e­
çando na Europa e espalhando-se por todo o planeta. Se os
seres humanos projetam seus próprios significados para o
cosmos, então essa tendência humana é tam bém um fato
- e um fato que atin ge todas as culturas humanas e épocas
históricas. P od e até ser o único aspecto universal de toda
a existên cia humana. Esse é um fato que em si mesmo
exige um sign ifica d o! O m undo hum ano, in clu in d o todos
os seus sistemas sim bólicos (qu er sejam religiosos, secu­
lares, m odernos ou tradicionais), bem pode ser um sinal,
uma “ pista” , uma intim ação dada por uma outra realidade
u lterior...22
Que as nossas em oções humanas mais profundas nos
indicam uma dimensão de existência além do espaço e do
tempo, isso é um tem a que aparece constantem ente nos
escritos do fam oso crítico lite rá rio inglês, C. S. L ew is
(1898-1963). Todos nós passamos, em determ inados m o­
mentos de nossa vida, por intensos sentim entos de “ anseio
in con solável” , que nada neste m undo, nem exp eriên cia
alguma, pode satisfazer. N um de seus mais bem conhecidos
sermões, pregado na U niversidade de O xford em 8 de junho
de 1941, L e w is falou de “ um d esejo que nen hu m a fe lic i­
dade natural poderá s a tisfazer” , “ um desejo, ainda d iva­
gando e incerto de seu objetivo e ainda com grande dificu l­
dade para v e r tal ob jetivo na direção em que ele realm ente
se encon tra” . Quando esse desejo hum ano se focaliza num
ob jetivo neste mundo, seja numa obra de arte, numa agra­
dável experiên cia ou até m esm o num relacionam ento com
uma outra pessoa, a satisfação do desejo conduz, para­
doxalmente, a apenas um desejo ainda maior. Lew is ilustra
isso com a experiência da beleza:

Os livros ou a música nos quais pensamos estar a beleza nos


trairão se neles confiarmos; ela não estava neles, ela apenas veio
através deles, e o que veio através deles era anseio. Essas coisas

73
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

- a beleza, a memória de nosso próprio passado - sâo boas imagens


do que nós realmente desejamos; mas se elas forem tomadas
erroneamente como se fossem as coisas em si, elas transformam-
se em ídolos mudos, quebrando o coração de seus adoradores.
Pois elas não são propriamente as coisas, são apenas o perfume
de uma flor que não encontramos, o eco de um tom que não
ouvimos ainda, notícias de um país que jamais visitamos.23

Lew is chamou esse anseio, não dirigid o a qualquer objeto


fin ito, de alegria, e argum entou que ele indica a sua origem
e destino em Deus (daí o títu lo da sua fam osa au tobiografia
Surpreendido pela A legria ) . A alegria, de acordo com Lewis,
é “ um desejo nâo s a tisfeito que é por si m esm o mais
d esejável do que qualquer outra satisfação... todo aquele
que a experim entou vai querer tê-la novam en te.” 24 Esse
anseio doce-am argo por algo que nos satisfará nas m aiores
profundezas do nosso ser indica, através desses objetos e
pessoas que pensam os que vão satisfazê-lo, o seu verdadeiro
alvo e a sua verdadeira realização no próprio Deus. H á um
“ d ivino descontentam ento” no âm bito da experiência huma­
na, que nos desperta a questionarm os se há algo - ou alguém
- q u e verdadeiram ente possa v ir de encontro a tal neces­
sidade do coração humano. Sem elhantem ente, Sim one W e il
(1909-1942), um a pensadora francesa profundam ente sensí­
vel, refletin d o sobre o nosso sentim ento humano em relação
à beleza e sobre o anseio que tal b eleza desperta, escreve:
“ O anseio de am ar a b eleza do mundo num ser hum ano é
essencialmente o anseio pela Encarnação. E um erro pensar
que seja qualquer outra coisa. Som ente a Encarnação pode
satisfazê-lo... A beleza é a eternidade aqui em b aixo.” 25
Tu do isso não poderia ser ilusório? Sim , poderia. M as
considere, por um m om ento, todos os nossos demais im pul­
sos. O que desperta a fom e e o que desperta a sede corres­
pondem aos alim entos e às bebidas que existem “ por a í”
neste mundo, e que podem satisfazer àquelas necessidades.
De igual form a, o desejo sexual existe porque o sexo é uma
realidade; o anseio por am or existe porque o am or é uma
realidade (e, como psicólogos de crianças descobriram, é
necessário para o desenvolvim ento humano sadio). Lew is
aborda esse ponto com a sua costum eira clareza:

74
RELIGIÃO E ÍDOLOS

A fom e física de alguém não prova que tal pessoa vai conseguir
alimento; ele pode m orrer de fom e numa balsa no Atlântico.
Mas com certeza a fom e de alguém prova que ele vem de uma
raça que restaura o seu corpo comendo, e que habita num
m undo em que há substâncias para se comer. Da mesma forma,
embora eu não creia (se bem que quisesse crer) que o meu desejo
pelo paraíso prova que irei desfrutá-lo, considero que tal desejo
é uma indicação bem razoável de que tal lugar existe e de que
haverá quem vá desfrutá-lo. Um homem pode amar uma m ulher
e não consegui-la; mas seria demasiadamente estranho se o
fenômeno descrito por “ apaixonar-se” acontecesse num mundo
assexuado.” 26

E m tu d o isso L e w is fa z eco a um te m a tra d ic io n a l do C ris tia ­


n ism o sob re a o rig em e o o b je tiv o da vida. U m a v e z qu e fom os
criados p or D eus e p ara D eus, n a tu ra lm e n te sen tim os um
p ro fu n d o s e n tim e n to de an seio p or ele, qu e ap en as e le pode
s a tis fa ze r. S e g u n d o as fa m osa s p a la v ra s de A g o s tin h o em
sua ob ra Confissões, “ T u nos fiz e s te p ara ti m esm o, e o nosso
coração fic a a g ita d o e n q u a n to não e n c o n tr a r descan so em
t i ” . E m nosso alien a d o e stad o de existên cia, não in te r p re ­
ta m o s c o r r e ta m e n te a n o ssa e x p e r iê n c ia de te r a n se io s -
tanto n egan d o que ten h am q u a lq u er rea liza ç ã o ob jetiva ,
com o tam b ém red irecio n an d o-os (n o rm a lm e n te de fo rm a
in c o n s c ie n te ) p a ra o u tro s o b je tiv o s no â m b ito da e x p e ­
riê n c ia . M as, em to d o o caso, a fé c ris tã não su rge da r e fle x ã o
sob re um a e x p e riê n cia sub jetiva, e m u ito m en os da r e fle x ã o
sob re u m a e s fe ra especial ro tu la d a com o “ e x p e riê n c ia r e li­
g io s a ” , p o r m ais im p o rta n te qu e seja a e x p e riê n c ia pessoal
na v id a cristã. A fé sem p re reivin d ico u e sta r a n c o ra d a em
a c o n te c im e n to s qu e se d e ra m p u b lic a m e n te n a h is tó ria
hu m an a, a cessíveis ao h is to ria d o r secu lar. É e s ta ê n fa s e na
re a lid a d e d e fa to s e em p a r tic u la r id a d e s c o n c re ta s qu e
sem p re con stitu iu o “ escâ n d alo” do C ris tia n ism o no m undo
religioso.

D e Volta p a ra o F uturo
A s s im , a fé c ris tã é b a s ic a m e n te a fé nu m D eu s que fala.
U m D eu s cuja P a la v r a , r e v e la d a n a h is tó ria , tr a z p e rd ã o

75
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

para o passado e esperança para o futuro. Um Deus cuja


Palavra nos destaca do status quo e nos dá o poder para viver
à luz do que está por vir; de form a que o que os homens
e as mulheres chamam de “ realidade” não é aceito como
dado e defin itivo, mas é levado a um sempre crescente
alinham ento com aquela Palavra transformadora. E este
Deus que diferenciou a pregação e a prática do Cristianismo
em relação a todos o monoteísmos, ateísmos, politeísmos e
panteísmos do mundo romano. Foi o surgir do desafio de se
refletir em acontecimentos históricos recentes que forçou
aqueles que por eles passaram a pensar de uma nova maneira
sobre o mundo e a desenvolver um novo tipo de vida no
mesmo. Este é um tem a para ser explorado em capítulos
subseqüentes.
O ateísm o e o teísm o filosófico são sim plesm ente im a­
gens especulares um do outro. Freqüentem ente o protesto
do ateísmo no mundo moderno é dirigido contra um deus
que os cristãos não teriam responsabilidade algum a de
defender, ou seja, um deus concebido em categorias abs­
tratas de Ser, Idéia, Infinitude, Bondade, Onipotência e
assim por diante. T a l tipo de deus é facilm ente seqüestrado
para servir aos interesses de alguma classe, nação ou ins­
tituição, em especial. A fé bíblica reúne o que tanto o teísmo
filosófico como o ateísm o separam: Deus e o ser humano, o
transcendente e o imanente, a unidade e a pluralidade, a
liberdade e a autoridade, a história e a eternidade. E isso
é feito sem a menor queda no panteísmo ( “ Deus nada mais
é do que a soma de tudo o que existe” ), ou no monismo
( “ todas as diferenças não passam de m anifestações tem po­
rais de uma realidade única, não diferenciada e im pessoal” ).
Ela ainda traz à lembrança da igreja de hoje que as exi­
gências de justiça social são intrínsecas ao verdadeiro culto,
e nos m ostra quão idólatra m uito da nossa teologia pode
ser. T em sido uma carga para muitos teólogos em inentes
nos últim os anos o fato de a igreja ter sido vulnerável diante
dos protestos morais do ateísm o moderno, por causa do
abandono de uma teologia trinitarian a pura.27 Mas já foi
dito o suficiente neste capítulo para dar a entender que
deixar de prestar atenção ao tão difam ado Deus das eseri-

76
RELIGIÃO E ÍDOLOS

turas hebraicas bem pode ser o indício principal do que


tenha causado a perda de autoridade espiritual no teste­
munho público cristão de hoje.

N otas
1 K. Marx, “A União dos Crentes com Cristo de Acordo com João 15:1-
14, Mostrando sua Base e Essência, sua Absoluta Necessidade, e
seus Efeitos ” , em Karl M arx & Friedrich Engels, Collected Works
(Obras Selecionadas) - Londres; Lawrence & Wishart, 1975, vol. 1;
pp. 636-9.
2 J. N. Findlay, “Hegel, a Re-Examination” (Hegel, Um Reexam e)-Lon­
dres; AJlen & Unwin, 1958; p.139.
3 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy o f World History (Disser­
tações sobre a Filosofia da História Mundial), 1837 - Cambridge
University Press, 1975.
4 Citado em R. S. Peters, “ Hegel and the Nation-State" (Hegel e a Naçáo
Estado), em David Thomson (ed.), Political Ideas (Idéias Políticas) -
Londres: Penguin, 1966; p.139.
6 K. Marx & F. Engels, The German Ideology (A Ideologia Germânica),
1845 - Londres: Lawrence and Wishart, 1965.
6 K. Marx, HContribution to the Critique o f H egel’$ Philosophy
ofRight: Introduction” (Contribuição à Crítica da Filosofia de Hegel
sobre o Direito: Introdução).
7 L. Feuerbach, The Essence o f C hristianity (A E ssência do
Cristianismo), 1841, 1841 - Cap. 1, reeditado em Philosophers on
Religion: a Historical Reader (Filósofos da Religião: um Texto Histórico),
ed. P. Sherry - Londres: Geoffrey Chapman, 1987.
3 Ibid.
9 E. Fromm, Sigmund Freud’s Mission: An Analysis of His Personality
and Influence (A Missão de Sigmund Freud: Uma Análise de sua
Personalidade e Influência), Nova York: Harper & Bros., 1959; p. 94.
10 D. Bonhoeffer, Letters and Papers from Prison (Cartas e Artigos, da
Prisão) - Londres: Fontana, 1959; pp. 112-3.
11 J. K. Galbraith, The Age o f Uncertainty (A Era da Incerteza) -
Londres: BBC, 1977; p. 22.
12 Citado em C. Avila, Ownership: Early Christian Teaching (Propriedade:
Ensino Cristão Prim itivo) - Maryknoll, NY: Orbis, 1983; p. 50.
18 John Chrysostom, On Wealth and Poverty (Sobre a Riqueza e a Pobreza)
- trad. Catherine Roth (N ova York: St. Vladim ir’s Seminary Press),
1984; pp. 49-55.
14 Citado em Avila, op. cit.; p. 66.
10 Thomas Aquinas, Summa Theologica (Suma Teológica de São Tomás
de Aquino), Pt. II-II, Q66, Art. 7, trad. Fathers o f the English
Dominican Province - Nova York: Benziger Bros., 1948.

77
A FALÊNCIA DOS DEUSES

A Theology o f Reconstruction: Nation -


16 Charles Villa-Vicencio,
building and Hunian Rights (Um a Teologia da Reconstrução: a
Construção de uma Nação e os Direitos Humanos) - Cambridge:
Cambridge University Press, 1992; p. 265.
17 Ver J. N. Isbister, Freud: An Introduction to His Life and Work
(Freud: Uma Introdução à sua Vida e Obra) - Cambridge: Polity
Press, 1985; p. 255.
18 Citado em Ibid.; p. 69.
19 E. Gellner, Reason and Culture (Razão e Cultura) - Oxford: Blackwell,
1992; p. 89.
20 Ibid.; p. 95.
21 Ibid.
22 Ver; p. ex.; P. L. Berger, A Rumor o f Angels: Modern Society
and the Rediscovery o f the Supernatural (Um Rumor de Anjos: A
Sociedade Moderna e a Redescoberta do Sobrenatural) - Nova York:
Anchor Books, 1970.
23 C. S. Lew is, “ Th e W eight o f G lo ry ” (O Peso da G lória), em
Screwtape Proposes a Toast (Um Brinde Proposto por Screwtape) -
Londres: Collins, 1965; pp. 97-8.
24 C. S. Lewis, Surprised by Joy (Surpreendido pela A le g ria ) -
Londres: Collins, 1959; p. 20.
25 S. Weil, Waiting on God (Esperando por Deus) - Londres: Fontana,
1959; p. 127.
26 Lewis, “The Weight o f Glory” (O Peso da Glória), op. cit.; p. 99.
27 Ver; p. ex., J. Moltmann, The Trinity and the Kingdom of God (A
Trindade e o Reino de Deus), trad. ingl., Londres: SCM, 1981;
C. Gunton, The One, the Three and the Many (Um, Três e Muitos)
- Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

78
3

O Mundo como Criação

“O que é que atiça fogo nas equações e faz um universo para


elas descreverem? A abordagem normal da ciência de se construir
um modelo matemático não pode responder a questão de por que
deveria haver um universo descrito por esse modelo. Por que
o universo se dá ao trabalho de existir?”
- Stephen Hawking, A Brief History of Time 1

A linguagem da criação teve um surpreendente retorno nos


anos recentes, e isso se deu nos círculos intelectuais menos
prováveis: no dos físicos e astrônomos, e não no dos teólogos
e evangelistas! O curioso é que, tendo uma geração anterior
de teólogos abandonado a linguagem bíblica por achá-la
incom patível com a ciência moderna, muitos dos cientistas
mais famosos da atualidade usam com liberdade a linguagem
bíblica na especulação das implicações de seus trabalhos. Mas
m uita cautela é requerida. O conceito de criação veio a ter
significados diferentes para diferentes pessoas, tanto p erten­
centes à comunidade cristã como não. P ara solucionarmos
toda essa confusão semântica, tem os que prestar atenção,
antes de mais nada, à linguagem da Bíblia.

A História do Gênesis
“ N o princípio, criou Deus os céus e a terra...” (G n 1:1). Assim
começa a Bíblia hebraica. Essa frase pode ser entendida como
referindo-se ao princípio da ação criadora de Deus, ou como
um título que resum e todo o relato da criação que vem em
seguida. De qualquer modo, o “ princípio” é o início absoluto
de todas as coisas e do próprio tempo. Deus é tanto o sujeito

79
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

como o foco de toda a narrativa. E le é m encionado 34 vezes


em 36 versículos. A verdade prim ária que é proclamada é
do tipo teológica: que o Deus que agiu na história daquele
povo hebreu, e que entrou num relacionam ento de aliança
libertadora com eles, não é nada menos do que o C riador e
o dirigente de todo o universo.
N um a linguagem de majestosa simplicidade, o escritor
pinta a obra criativa de Deus numa série de quadros. O
Espírito de Deus paira sobre o mundo tal como uma ave-mãe
sobre seus filhotes, indicando tanto a transcendência de Deus
sobre a sua criação como tam bém o seu envolvim ento íntim o
para com ela, cuidando dela. Com o se fosse um artesão
humano qualquer, Deus “ fala” e “ v ê ” , “ trabalha” e “ descan­
sa” . A Palavra de Deus, que é com o ele se comunica, é
p ro ferid a ao vazio , e coisas passam a existir. O u n iverso
que Deus cria é ordenado e in teligível, porque tem a sua
origem nessa P alavra que é racional. Usando um a lingua­
gem p osterior, a do C ristian ism o, a a tiv id a d e da criação
d escrita aqui é um a atividade trin itarian a: Deus cria por
m eio da P alavra e do E spírito. A o d izer que o universo foi
criado por Deus, o escritor indica tam bém que o universo
está ab erto a Deus, não é um sistem a fechado; ele está
aberto a novas possibilidades de transform ação. O relacio­
namento de Deus com o seu m undo é um relacionam ento,
por um lado, de intim idade e am or e, por outro, de poder
cria tivo e de comando.
O verb o trad u zid o p or “ c ria r ” ( bara ) tem em si um a força
con sid erável no hebraico. N o A n tig o T esta m en to ele é
usado não com m uita freqü ên cia, e apenas com referên cia
a Deus, não com referên cia a seres hum anos ou a entidades
pagãs. Ele testifica a lib erd ad e e o p oder de Deus: ele não
está preso à necessidade de cria r o que ele cria. Esta
concepção é que deu origem à clássica ênfase do judaísm o
e do C ristian ism o quanto à “ criação ex n ih ilo ” , ou seja,
a p a rtir do nada, criando o ser a p a rtir do não-ser, com o
com clareza é ensinado em passagens tais com o Salm os
148:5, P ro v érb io s 8:22-27, R om anos 4:17, H ebreus 11:3.
E le não é lim itad o (com o na filosofia gre g a p rim itiv a ) pelas
form as racionais e etern as de uma m atéria preexisten te.

80
O MUNDO COMO CRIAÇÃO

Isso s ig n ifica qu e o que o C ria d o r tra z à e x is tê n c ia - um a


criação - tem que ser e n te n d id o em seus p ró p rio s term os.
O qu e c a ra c te riza um a cria çã o é a lg o a s er descoberto, e
não d edu zid o m ed ia n te um a especulação racion a l. C on tu d o
a lib erd ad e d e D eus não é p ara ser in te rp re ta d a com o a
exp ressão de um a v o n ta d e ab stra ta e a rb itrá ria . E le cria
p orqu e d ar de si m esm o é com o e le é; o seu a m o r “ tr a n s ­
borda ” em tr a z e r à exis tê n c ia um m undo qu e pode p a rtic ip a r
da p le n itu d e da com unh ão d ivin a. V a m os e x p lo ra r num
c ap ítu lo p o s te rio r as con seqü ên cias d esta v isã o do m undo
no d e se n vo lv im e n to da ciência.
A estru tu ra lite rá ria da n a rra tiv a nos dá um a p ista para
interp retá-la. N ã o tem os de presum ir, com a nossa m odern a
arrogância, que o escrito r ten h a de respon der as questões
que possam os leva n ta r a p a rtir de nossos interesses c ie n tí­
ficos: questões de quando e com o, com resp eito ao u n iverso
e ao su rgim en to da vida. O prop ósito do escrito r é que tem
que nos gu ia r na com preensão do sentid o do texto. O m odo
pelo qual o escrito r em p rega a lin gu agem nos diz que suas
intenções são outras. E le u tiliza am p lam en te n ú m eros sim ­
bólicos (e n tre os quais, 3, 7, 10, 40): p or exem plo, 10 vezes
“ disse D eu s” (3 com referên cia ao ser hum ano, 7 para o
resta n te da criação); o v e rb o “ fa z e r ” oco rre 10 vezes; o m esm o
com a frase “ segundo a sua espécie” ; o v e rb o “ c ria r” é usado
em 3 lugares na n a rrativa, e 3 vezes na terceira ocorrência;
por 7 v e ze s aparece a frase conclu siva “ e assim se fe z ” ; 7
vezes a frase de ap rovação “ e viu D eus qu e isso e ra b o m ” .
Os nom es de Deus aparecem 70 vezes nos capítulos de 1 a
4 de G ênesis, sendo 40 v e ze s E loh im , 10 v e ze s Ia h w eh (o
nom e da a lia n ç a ) e 20 vezes Ia h w e h E loh im . E v id e n te m e n te
trata-se de um a n a rra tiv a a lta m e n te e s tilizad a, cu id ad o­
sam en te con struída.
A “ s em an a” da criação é ta m b ém con stru íd a em to rn o
de um a e s tru tu ra s im étrica. O qu a dro ab aix o m ostra com o
a segun da m etad e da sem an a é um p a ra le lo da p rim e ira
m etad e, o que é um p ro c ed im e n to com um na lite ra tu ra
h ebraica. A s s im o dia 4 corresp on d e ao dia 1, o d ia 5 ao dia
2, e o dia 6 ao dia 3. O s trê s p rim e iro s refe rem -s e a atos
de separação ou form ação, os ou tro s trê s a atos de enchi-

81
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

mento. Ou então pode-se ver esses dois grupos de três dias,


segundo uma perspectiva terrena, como o mundo todo
organizado em “ espaços” (o p rim eiro grupo de três dias)
e os seus respectivos “ habitantes” (o segundo).

A t o s d e F o rm a ç á o A t o s d e E n c h im e n to

D ia 1 : L u z / T r e v a s D ia 4 : L u z e s d o D ia e d a N o it e

D ia 2 : M a r / C é u i D ia 5 : C r ia tu r a s d o M a r e d o C é u

D ia 3 : T e r r a F é r t il D ia 6 : C r ia tu r a s d a T e r r a

Essa disposição literária põe em destaque o fato de que


o mundo de Deus é uma estrutura organizada (um cosmos),
não um caos sem sentido. Ainda, o uso dessa estru tura de
seis partes para descrever acontecim entos épicos (escritos
em seis tabuletas de barro, o m aterial de escrita mais
comum daquela época) era um estilo lite rá rio convencional
na civilização babilônica-sum eriana da antiga Á sia ociden­
tal. Sabemos tam bém que era uma prática comum inserir
um “ colofão” , o equ ivalente antigo do títu lo de uma página
ou capítulo num liv ro m oderno, na últim a coluna de cada
tábua de escrita. O refrão “ houve tarde e m anhã...” após
cada ato de criação é um exem plo de tal colofão. O estudo
das práticas literárias da antigüidade tem trazid o luz ao
modo com que o texto deve ser com preendido. O valor
histórico de G ênesis tem sido am plam ente confirm ado pela
quantidade enorm e de evidências, dadas por m ais de 20,000
textos escritos que sobreviveram da Babilônia, desde os
dias de Abraão.2
Os “ dias” , então, são períodos normais de vinte e quatro
horas, mas o escritor refere-se a eles como um recurso li­
terário para servirem a um propósito lógico, muito mais do
que cronológico. Além disso, a expressão “ houve tarde e
m anhã” , em bora seja um modo incomum para expressar
um período de vinte e quatro horas, um dia, é a maneira
normal de se descrever o trabalho humano: um dia de tra­
balho term ina ao anoitecer e é retomado com a prim eira luz
do amanhecer (cf. SI 104:23). Tendo optado por descrever
a atividade criadora de Deus empregando a form a de uma

82
O M U ND O CO M O C R IA Ç Ã O

semana de trabalho de um trabalhador, o escritor está em


condições de afirm a r determ inadas verdades sobre os
mútuos relacionamentos de Deus, do mundo e da huma­
nidade - a que voltarem os em breve.
Em bora a m aioria dos eruditos endosse essa in terp re­
tação literária da semana da criação (uma variação dessa
posição é seguir uma tradição judaica de que a narrativa da
criação foi revelada em sete dias a Enoque, de form a que os
dias significam dias de divina revelação, cada revelação
gravada numa tábua de escrita),3 há quem a entenda de
maneira diferente. De acordo com o que se conhece como
interpretação “ conciliatória” , os “ dias da criação” represen­
tam longos períodos de tempo. O uso m etafórico da palavra
dia (como em Gênesis 2:4: “ no dia em que o Senhor Deus
fez a terra e os céus” - SB T B ) e também a perspectiva de
Deus que não leva em conta o tempo (p. ex.: 2 Pedro 3:8)
são argumentos freqüentem ente citados em favor dessa
posição. Os que a defendem argumentam que ela se concilia
com os textos científicos m odernos acerca das origens.
Contudo ela ignora a frase “ tarde e m anhã” , o que é próprio
da palavra “ d ia ” ; e sua harm on ização com a geo log ia e
com a astronom ia é apenas superficial. Pois, tomando-se
a descrição com o sendo cronológica, não im portan d o o
quão longos sejam os períodos envolvidos, então a ordem
da criação é term inantem ente contraditória em relação às
teorias científicas m odernas (p or exem plo, o sol sendo
form ado depois da terra e da vegetação).
Toda interpretação literal de Gênesis 1 (em oposição à
interpretação literária), que sustenta que os acontecimentos
descritos devem ser considerados como tendo ocorrido na
ordem em que aparecem, em sete dias de vin te e quatro
horas, defronta toda sorte de problemas dentro do próprio
texto, para não falar nos conflitos com a geologia e a astro­
nom ia! O sol e a lua são criados três dias depois da luz,
embora os hebreus soubessem, como também nós sabemos,
que luz provém desses corpos celestes (cf. SI 104:19-22).
E como entender a omissão do refrão “ houve tarde e manhã”
no sétim o dia? A razão por que rejeitam os esse en ten di­
m ento literal não se deve a quaisquer considerações cientí­

83
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

ficas da m odernidade. Sem absolutam ente levar em conta a


ciência, sim plesm ente prestam os atenção a certas “ dicas”
dentro do próprio texto, que facilitam a com preensão das
intenções e dos interesses do autor. Esta é uma narrativa
m uito bem construída, com abundantes e complexos toques
artísticos. U m a interpretação literal força o texto e torna a
sua mensagem obscura. O autor não está interessado nos
mecanismos e nos processos da criação, mas sim em nos
revelar o que a criação nos diz quanto à natureza de Deus
e quanto ao seu relacionam ento com a humanidade.
Esta visão é reforçada quando consideramos, como tem os
de fazer, o lugar de 1:1-2:3 (que é a prim eira divisão que
ocorre no texto hebraico) no livro de Gênesis como um todo.
O livro tem dez divisões básicas. Cada uma delas tem um
títu lo que se refere ao que segue (geralm ente na form a de
“ são estes...” ou “ são estas...” . Gênesis 1:1-2:3 é uma exceção
a esta forma. E uma grande “ ab ertura” do livro de Gênesis
como um todo, que delineia o crescim ento trágico do pecado
humano e o plano de Deus para libertação e restauração
através de Abraão e da linha patriarcal. E m bora não tendo
nenhuma im portância no mundo daquela época, Abraão e
os patriarcas foram incorporados no processo redentivo de
Iahweh, que não era um sim ples deus trib al, mas o Deus
de todo o universo. Assim , a interpretação lite rá ria da
“ semana” da criação faz mais justiça à integridade do texto
e ao seu contexto.
Voltando à narrativa que aos poucos vai dando novas
revelações, observe que o mundo é criado com uma d iver­
sidade enorme. O C riador abençoa os seres vivos com uma
sem i-autonom ia, a capacidade de “ p ro c ria r” (v. 22). A
linhagem das criaturas, sua individualidade, sua d iversi­
dade e diferenças, tudo isso é cham ado de “ b om ” pelo
Criador. E le regozija-se com o que fez existir. O Senhor
soberano da criação fala, e a criação responde (p. ex.: v. 24).
A te rra tem de p rod u zir anim ais dom ésticos, rép teis e
feras. As águas têm de dar origem à atividade das criaturas
do mar em quantidades sem medida. Em outras palavras,
o C riador dá condições para que a criação produza coisas
novas, atendendo ao que ele dispôs. O utras passagens

84
O M UND O CO M O C R IA Ç Ã O

bíblicas, tais como o Salmo 104 e Jó 38-41 ampliam o pen­


samento de Gênesis 1, mostrando com uma agradável lin­
guagem figurada Deus brincando com as suas criaturas e
despertando nelas suas habilidades impressionantes.
Todo o universo, então, é distinto de Deus, e contudo é
dependente dele na sua existência e manutenção. Todas as
maravilhosas capacidades de renovação, de adaptação e de
desenvolvim ento no universo foram inseridas pelo Criador,
mas todos esses complexos sistemas e padrões operam de
conformidade com a Palavra divina. Além disso, o fato de
que Deus não apenas cria o tempo, mas cria com o tempo
e a tempo teria tido profundas conseqüências no antigo povo
de Israel, assim como se dá na sociedade moderna de hoje.
Israel aprenderia a dar valor ao tempo como a estrutura da
história em que Deus se envolve. A Redenção, diferentem ente
do que acontece em outras posturas religiosas do mundo
(incluindo-se o pensamento hindu e o budista), vai se dar
dentro do tempo e não como um escape do tempo. O Criador
pessoalmente atua com suas criaturas, em tudo o que fazem,
visando alcançar a condição de ser uma criação perfeita.
Que um propósito polêmico e evangelizante acha-se por
trás da narrativa da criação de Gênesis torna-se claro quando
ela é entendida em contraste com o contexto das crenças
e práticas populares dos vizinhos de Israel. Conquanto
em pregue formas literárias encontradas nos mitos sobre a
criação de outras culturas, o conteúdo da n a rrativa não
dá margem a mitos, conform e veremos. Ele repudia muitas
idéias relig io s a s populares do p rim e iro e do segundo
m ilênios antes de Cristo. Um habitante da Babilônia do
século V II a.C. ou um cananeu da cidade de U garite (dois
centros de grandes civilizações) teriam um sobressalto,
diante do ensino de Gênesis. E le é um poderoso testem unho
à singularidade de Iahweh, o Senhor da criação.
P o r exem plo, observam os os seguintes contrastes, que
são impressionantes:
(a) Teísmo vs. politeísmo. N ão há outros deuses nem cola
boradores na obra da criação, com o acontece em todas
as demais epopéias religiosas sobre o princípio das coisas.
O politeísm o narra o nascim ento de deuses, seus am ores

85
A FA L Ê N C IA DOS DEUSES

e suas batalhas. Ninguém tem o controle supremo sobre o


universo. A sorte das pessoas depende de que entidade
esteja dom inante no momento. Os deuses (tal como na
m itologia hindu) sáo personificações de vários aspectos da
natureza, e a própria natureza é deificada como sendo uma
deusa que alim enta todos os seres vivos e que impinge uma
terrível vingança sobre todos os que deixam de cultuá-la
adequadamente.
Por que o escritor coloca a criação do sol e da lua no quarto
dia, depois da criação da luz, se é óbvio para qualquer
pessoa o fato de que eles são a fonte de luz para a terra?
A razão torna-se óbvia quando nos lembramos que o culto
ao Sol e à Lua era corriqueiro no mundo da época do escritor
de Gênesis (p. ex., a grande cidade de U r dos caldeus, de
onde Abraão veio, era um fam oso centro de adoração à
Lua). Tam bém , tal como hoje, muitos acreditavam que a
vida humana era controlada pelo m ovim ento da lua e dos
planetas. Os sábios da Babilônia m antinham registros
detalhados dos movimentos celestes para a construção de
mapas astrais. Decisões políticas dependiam da precisão
daqueles mapas. N ão é incomum na Á sia encon trar polí­
ticos, homens de negócio e até mesmo professores univer­
sitários para quem os “ horóscopos” e “ os dias favoráveis”
são mais reais do que qualquer outra coisa na cultura
moderna; e suspeita-se de que isso seja também uma verdade
para algumas dessas pessoas no mundo ocidental.
... A narrativa de Gênesis acaba com o absurdo dessa
superstição. Os corpos celestes são sim ples criações de
Deus, lâmpadas dispostas no céu, que não têm poder divino
nenhum em si mesmos. N ão têm de ser tem idos nem cul­
tuados. A natureza é apenas uma criação de Deus, tal como
os seres humanos o são: ambos são dependentes do Criador
apenas, e nutridos somente por ele.
(b) A palavra de Deus vs. ritual cultual. Em muitas so­
ciedades, os poderes do caos e do mal eram repelidos pelos
encantamentos mágicos de certas mantras religiosas (p. ex.,
as populares cerimônias em Sri Lanka e em outras nações
budistas de hoje, conhecidas como pirith). Essas palavras
humanas, acompanhadas às vezes por certas ações, eram

86
O M U N D O CO M O C R IA Ç Ã O

tidas como válidas para sustentar a estabilidade e a fecun­


didade do mundo. Mas o que Gênesis ensina? Que é a Palavra
de Deus, e não palavras humanas, que assegura a estabili­
dade e a perm anência da condição de fertilidade do mundo.
Isso radicalm ente “ desm isticiza” as visões religiosas p reva­
lecentes neste mundo.
(c) Uma boa criação vs. um mundo bizarro, até mesmo
mau. M ais uma vez, a visão contemporânea do mundo teria
entendido a “ salvação” como um escape do mundo empírico,
sensorial, da existência humana. N ão haveria valor ou pro­
pósito nos acontecimentos, no tempo e no espaço, ocorridos
na esfera física. Um sentido teria que ser buscado fora do
mundo exterior, o qual, em todos os casos, seria menos real
do que a esfera “ espiritual” . Esta visão é contestada pela
doutrina da criação, que vê o mundo com um valor intrínseco
e com significado (embora depois corrompido e desfigurado
pelo mal - cf. Gênesis 3) porque ele se origina da vontade
racional de um Criador que é bom e que ama. A própria
existência é declarada abençoada.
(d) Os seres humanos, como coroa da criação, vs. seres
humanos, como um “acidente ”. O ensino sobre a humanidade,
dado no capítulo inicial de Gênesis é totalm ente singular.
Diferentem ente dos mitos religiosos comuns sobre a criação,
que descrevem o homem como uma “ idéia posterior” ou
como um produto “ acidental” dos deuses, toda a narrativa
de Gênesis 1 chega a um clímax no relato da criação do
homem. E ste é um ponto em que há uma drástica mudança
na história, o que o autor evidencia de três modos: (i) a
linguagem altera-se de um rep etitivo “ Haja...” para uma
frase de m aior reflexão “ façamos...” (v. 26); (ii) a deliberação
feita é então seguida de um ato de criação (v. 27), mostrando
talvez um envolvim en to mais profundo de Deus nesse
aspecto da sua obra criativa; (iii) o fato da criação do ser
humano, homem e mulher, ser repetido três vezes na mesma
sentença (v. 27) - um exemplo do paralelismo poético da
cultura hebraica.
Observe também que Deus ordena aos seres humanos para
serem fecundos. Isso se contrapõe nitidam ente aos cultos à

87
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

fertilidade das nações circunvizinhas, nos quais os adora­


dores procuravam persuadir os deuses que lhes dessem fe rti­
lidade. A vida é uma dádiva de Deus. A sua bênção confere
tanto dádivas como tarefas.
(e) Os seres humanos, a Imagem de Deus. O que esse
capítulo ensina sobre o ser humano é surpreendentemente
revolucionário. A imagem de pedra ou de m etal que um rei
p rim itivo construía era o símbolo físico da sua soberania
sobre um território. Ela o representava ao povo que lhe era
sujeito. Mas, aqui, é a hum anidade que constitui a “ im agem
de D eus” ívv. 26-27). São os seres humanos que rep re­
sentam Deus no planeta Terra. Conclui-se daí que, quando
os seres humanos moldam im agens a p artir do mundo
criado e as adoram, eles adoram algo inferior a eles mesmos,
e assim desumanizam-se. Conclui-se ainda que o modo pelo
qual tratamos nossos semelhantes, outros seres humanos,
é um reflexo da nossa atitude perante o Criador. Desprezar
um ser humano é insultai' o Criador (cf. Provérbios 14:31;
T iago 3:9). E não são apenas os reis e os senhores poderosos
da terra que constituem a imagem de Deus, mas todas as
pessoas em toda a parte. Observe ainda que são os homens
e as mulheres, em conjunto, que são criados como “ im agem ”
de Deus, e assim as mulheres são chamadas a governar a
terra, ao lado dos homens. Essa elevada visão com respeito
à mulher era singular entre as culturas daquele tempo, e tem
permanecido singular até a era moderna.
Se concordássemos com os especialistas em A n tigo T e s ­
tam ento, que acham que o livro de Gênesis foi escrito na
sua forma atual durante o exílio dos israelitas na Babilônia,
então o caráter politicam ente subversivo (e portanto liber­
tador) dessa doutrina da humanidade tornar-se-ia parti­
cularm ente aparente. Pois a sociedade babilónica, como
também outras civilizações, tanto da Mesopotâmia como do
Egito, tinha uma estrutura hierárquica. N o ponto mais alto
da pirâmide social achava-se o rei, que era considerado o
representante do poder do mundo divino. Logo abaixo dele
vinham os sacerdotes, que com p artilh avam da função
m ediadora dele, mas com um grau menor. Abaixo deles

88
O M U N D O CO M O C R IA Ç Ã O

estavam os b u rocratas, os m ercad ores e os m ilita res,


en qu an to que a base da pirâm ide era form ada pelos cam­
poneses e pelos escravos. Assim, dava-se uma legitim idade
religiosa à ordem social e política através das m itologias
da criação dessas sociedades. A s classes m ais baixas dos
hom ens eram criadas na condição de escravos dos deuses,
para que os deuses não precisassem envolver-se no trabalho
manual. E como o rei representava os deuses na terra, servir
ao rei era servir aos deuses. C onseqüentem ente, o que
Gênesis coloca em contrário aos m itos existentes faz com
que aquela tão difundida ideologia m onárquica seja sola­
pada. E le como que “ d em ocratiza” a ordem política. Todos
os seres humanos são chamados a represen tar o rein o de
Deus por toda a duração da vid a hum ana na terra. E, com o
verem os depois, o governo de Deus não é o governo m onár­
quico de um déspota, mas é com o o cuidado dispensado na
criação dos filhos por um pai.
Assim os homens e as mulheres, de acordo com a narrativa
de Gênesis, possuem uma dupla natureza. São criaturas ,
pertencendo ao restante do reino animal: criados no sexto
dia, ju n tam en te com todas as outras criaturas da terra, e
(no capítulo segu in te) a seu resp eito é d ito que foram
form ados “ do pó da te rra ” , indicando assim a condição de
term os sido criados (com o que dizendo que nós não caímos
do céu como algum tipo de deus im ortal) e de estarmos
relacionados com a terra. A ciência m oderna ajuda-nos a
com p reend er as ligações que tem os com o resta n te da
criação: nosso corpo é constituído de substâncias quím icas
que foram processadas no in terior de astros m uitíssim os
anos atrás, tem os em comum o nosso D N A com outros
organism os vivos, vivem os com o que exalam as plantas,
e o nosso bem -estar depende da m anutenção de frágeis
equilíbrios na biosfera.
Mas o outro lado da verdade sobre nós é igualm ente claro
e vitalm ente im portante: som ente os seres humanos são
marcados com a im agem do Criador, chamados a um relacio­
namento pessoal com ele, o que caracteriza a vida humana
com o sendo mais do que sim plesm ente biológica. T ã o so­
m ente os seres humanos é que são abordados por Deus. Para

89
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

o Criador, nós existim os não apenas como objetos dele, mas


com o indivíduos. A singularidade do hom em consiste não
no fato de que falam os uns com os outros, mas em que Deus
fala conosco e nos convida a responderm os. E m outras
palavras, somos convidados a fazer parte da conversação que
é a vida divina. A lém disso, assim com o Deus é um a com u­
nhão de Pessoas, da mesma form a o ser humano é constituído
de pessoas (seres que estão relacionados entre si). Da m aneira
como Deus relaciona-se conosco e ao mesm o tem po perm a­
nece sendo um ser independente de nós, tam bém dentro da
comunidade humana somos relacionados numa diversidade.
A liberdade pessoal im plica em que um espaço entre um e
outro tem que ser respeitado, e contudo nós não encontramos
a nossa realização como pessoa separados de Deus e dos
outros. Desse modo, o “ ou tro” , longe de se constituir uma
ameaça à m inha identidade específica, é aquele que sem o
qual eu não teria identidade. E esse fato da personalidade,
estabelecido na criação, que con fere d ign idade e v a lor a
cada vid a humana. N ós, tão som ente, é que som os tratados
como agentes morais, comandados pelo C riador e conside­
rados moral m ente responsáveis por ele em nossas ações. Os
homens ainda são chamados de “ suberiadores” , sob o sobe­
rano Criador, capacitando toda a criação a florescer e alcançar
a realização do que lhe foi determ inado no tempo.
A revolucionária singularidade dessa visão da vida hu­
m ana é sentida m ais em nossas sociedades m odernas.
M encionam os an teriorm en te P e te r S in ger e H elga Kuhse
que atacaram a proibição cristã ao in fan ticíd io de bebês.
P a ra eles os seres humanos são definidos pelo que possuem:
consciência de si mesmos, autocontrole, senso quanto ao
passado e o futuro, e assim por diante. O simples fato de ser
um m em bro da espécie homo sapiens não é suficiente para
torn ar alguém “ hum ano” no sentido de estar sujeito a
obrigações morais. Dessa form a os bebês humanos, e espe­
cialm ente aqueles que têm problem as mentais, não se contam
como pessoas humanas que possam ter uma reivindicação
sobre nós. Eles concluem que “ p erm itir o infanticídio antes
de haver consciência própria... não pode acusar quem quer
que esteja numa posição de se preocupar com isso.” 4 Todo

90
O M U N D O CO M O C R IA Ç Ã O

argum ento que define a condição de ser humano em term os


do que se tem , e não do que se é intrinsecam ente, pode ser
tam bém usado para ju stifica r o ato de m atar qualquer
pessoa adulta que esteja sofrendo pela perda de um a função
relevante.
Deus é m istério, e o hom em à im agem de Deus é um
m istério. Quando estamos diante de uma outra pessoa, por
mais indigente, deficiente ou degradada que seja, estam os
diante de algo que é o veículo do que é divino, o que, segundo
a term in ologia clássica de M artin Buber, é “ A lg u é m ” e não
uma “ coisa” . A qu eles a quem com reverên cia tratam os como
pessoas acabam se tornando conhecidos para nós como
pessoas.5 Podem os reconhecer o processo g rad ativo que se
desen volve até descobrirm o-nos como uma pessoa, afirm an ­
do ao m esm o tem po a realidade de serm os um a pessoa a
p artir do m om ento da concepção. Podem os tratar, é claro,
as pessoas com o se fossem “ coisas” , com o se fossem simples
objetos físicos - com o por exem plo na pornografia, nas teorias
científicas reducionistas (veja o C apítulo 6), através de
exp eriên cia s não terap êu ticas, ou pela m atança in d is­
crim inada na guerra. Isso é fe ito com a perda da nossa
própria humanidade. A m orte de Deus não leva à glorificação
do homem, como acreditava N ietzsche; mas antes retira dos
homens toda reivindicação que possam ter quanto a serem
tratados com reverên cia por seus sem elhantes. A história
do Gênesis prossegue m ostrando que - quando o hom em
e a m ulher quiseram se torn ar deuses, em vez de com
gratid ã o aceitarem sua sin gu lar d ign idade com o im agem
do único Deus - eles perceberam , um ao ou tro, com o sendo
uma ameaça para sua autonom ia e com o um objeto a ser
m anipulado num m undo de coisas m anipuláveis.
Portanto, Gênesis apresenta-nos uma visão alternativa
àquela de Singer, Kuhse e outros que partem do ser humano
e não de Deus. As im plicações m orais dessa visão são m uito
bem expressas nas p alavras do b ió lo go francês, Jean
Rostan: “ De m inha parte creio que não há uma vida tão
degradada, tão rebaixada e tão pobre ao ponto de não
m erecer respeito e de não ser digna de ser defen dida com
zelo e convicção... Tenho a fraqueza de acreditar que é uma

91
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

honra para a nossa sociedade d esejar o luxo dispendioso


de sustentar a vida dos seus m em bros inúteis, incom pe­
tentes e m ortalm ente enfermos. Quase me disporia a medir
o grau de civilização da sociedade pelo total de esforço e
de vigilância que ela impõe a si mesma com base num puro
respeito à vida.” 6
(f) Natureza universal vs. natureza chauvinista de épicos
religiosos. Os épicos sobre a criação das civiliza ç õ e s
circunvizinhas tiveram o propósito de, em grande parte,
explicar por que o deus local de uma cidade ou civilização
achava-se predom inantem ente em alguém que dominava
(como, por exemplo, o triunfo de Marduque, o deus da
Babilônia). Mas não há menção a Israel ou do povo hebreu
no relato da criação do Gênesis. Conquanto possam ter sido
exclusivamente abençoados por terem recebido essa reve­
lação do Criador, eles não são inerentem ente diferentes dos
outros povos. Todos são criaturas feitas à im agem de Deus.
N ão há distinções quanto a linguagem, raça, casta ou classe,
que sejam mencionadas no texto. A única distinção que há
na humanidade é a da condição de macho e fêmea, mas é
uma distinção que se baseia numa igualdade de status.
E a responsabilidade humana de “ sujeitar” a terra (v. 28)?
Algum as pessoas escreveram contra o C ristianism o em
anos recentes, acusando a Bíblia de incentivar a destruição
do m eio am biente. Uns breves com entários sobre essa
questão cabem aqui. D entre os que têm feito tal acusação
destaca-se o falecido A rn o ld T oyn b ee que declarou que
“ o irresponsável e extravagan te consumo dos tesouros
naturais irrecuperáveis, e a poluição daqueles que o homem
ain da não destru iu , estão lig a d os ao su rgim e n to do
monoteísmo... O monoteísmo, tal como foi enunciado no livro
de Gênesis, removeu aquela antiga restrição que atuava na
cobiça humana através do tem or. A instrução dada no
prim eiro capítulo do livro de Gênesis ... mostrou-se ser um
mau conselho, e, com sabedoria, estam os com eçando a
deixar de cumpri-la.” 7
Interpretações imaginosas assim da história, especial­
m ente quando vêm de um historiador da estatura de um

92
O M UNDO CO M O C R IA Ç Ã O

Toynbee, sendo afirmadas dogmaticamente sem um mínimo


de evidência que lhe dê suporte, somente podem ser devidas
a uma prévia antipatia ao Cristianism o bíblico, por outras
razões. Com entários tais como este podem alim entar o
preconceito contra o Cristianismo e a visão rom ântica das
sociedades não cristãs que têm acompanhado a desilusão
em relação à ciência e também a noção de progresso, no
Ocidente pós-cristão. Mas eles soam mal para aqueles de
nós que m oram em culturas não cristãs que não foram
afetadas pelo m onoteísm o de G ênesis e ainda assim so­
frem os efeitos perniciosos do dano ao am biente - a poluição
do ar e das reservas de água, o desaparecim ento das flo ­
restas tropicais, a transformação de áreas em desertos e a
erosão do solo - tanto em decorrência da pobreza, da negli­
gência, da guerra civil, da corrupção política ou de uma
descarada cobiça comercial (sendo que nem todos os casos
assim podem ser atribuídos à responsabilidade de empresas
e governos ocidentais). A poluição e a pilhagem da natu­
reza, seja como resultado da ignorância, da cobiça ou do
egoísmo, tem sido uma característica das culturas por todo
o globo em todos os tempos.
Os monumentais estudos de Joseph Needham sobre o
desenvolvim ento científico e tecnológico chinês8 revelam
como a tecnologia chinesa deu lugar a uma destruição
ecológica em larga escala. A té mesmo os budistas contri­
buíram para a erosão do solo e para o desflorestam ento ao
construírem seus templos por toda a Ásia, e o em inente
microbiologista e defensor do meio am biente René Dubos
observa que “ os clássicos poetas chineses da natureza
escrevem como se tivessem alcançado uma identificação
com o cosmos, mas na realidade a m aioria deles eram buro­
cratas aposentados que viviam em propriedades em que a
natureza era cuidadosamente controlada e adm inistrada
por jardineiros.” 9 O parecer de Dubos é que “ se os homens
são mais destruidores agora do que no passado, é porque
são em m aior número e porque têm a seu comando meios
mais poderosos de destruição, não porque foram influen­
ciados pela Bíblia. De fato, os povos judeu e cristão foram
p rovavelm ente os prim eiros a desenvolverem em larga

93
A FALÊNCIA DOS DEUSES

escala uma abrangente preocupação pelo cuidado da terra


e por uma ética em relação à natureza/’ 10
Dá para aceitar que o Criador, tendo repetidam ente no
texto declarado o seu prazer e a sua satisfação em relação
à sua criação, viesse depois voltar-se à sua obra-prima, que
coroava toda a sua criação, para ordenar a ela que a des­
truísse? A falácia do raciocínio daqueles que culpam o
Gênesis pela crise do m eio am biente é sim plesm ente que
eles não aten tam para o con texto em que a ordem dada
está inserida. Vem os nas palavras “ sujeitai” e “ dom inai” a
nossa falida e egoísta experiência de ação humana, ou seja,
a ação da tirania e da exploração. Mas a humanidade criada
à im agem de Deus é para agir como Deus age; e vemos como
a ação de Deus no cosmos nesse mesmo capítulo é descrita
como sendo uma ação de pôr tudo em ordem, de geração de
vida, de preservação, de serviço e de satisfação pessoal. N o
capítulo seguinte, o hom em é posto num jardim (represen­
tando toda a terra) e lhe é dito para “ o cultivar e o guardar”
(G n 2:15). E le tam bém dá nome aos animais, sendo que no
pensam ento da antigüidade o nome procurava captar a
natureza principal ou a característica da criatura, disso
im plicando ser necessário um con hecim ento detalhado.
Assim , a terra e as suas criaturas são confiadas ao homem,
e tem os um m andato de Deus para estudar, trabalhar e
enriquecer a vida no planeta. N ão somos nem seus p roprie­
tários (p ara fa ze r nela o que qu iserm os) nem m eros hós­
pedes (de form a a usufruir dela, mas não in terv in d o nos
processos naturais). A natureza da nossa ação sobre ela é
defin id a: é a de fa ze r com que a te rra floresça. D esen volver
o potencial da terra e conservar a sua fertilidade são aspectos
paralelos de uma m ordom ia respon sável neste planeta.
Sou tentado aqui a citar o grande reform ador suíço João
C alvino (1509-1564), pois é com freqü ên cia o p rotestan­
tism o de C alvino que é o v ilão nos escritos dos críticos que
jogam a culpa pela crise do m eio am biente e pelos males
do capitalism o sobre a “ ética protestante do trabalho” . Sem
leva r em conta o que alguns de seus seguidores tenham
dito ou feito, observem os os com entários feitos pelo próprio
C alvino acerca de Gênesis 2:15: “ A terra foi dada ao homem,

94
O M U N D O CO M O C R IA Ç Ã O

com a seguinte condição, que ele se ocupasse no seu cultivo...


A custódia do ja rd im fo i atrib u íd a a Adão, para m ostrar
que possuímos as coisas que Deus entregou em nossas mãos,
sob a condição de, m antendo-nos contentes com o uso frugal
e m oderado delas, tomássemos conta do que viesse a sobrar.
Que aquele que possui um campo assim partilhe de seus
frutos anuais, que não faça o solo ser danificado por sua
negligência, mas que se esforce para deixá-lo para a sua
posteridade nas mesmas condições em que o recebeu, ou até
mais bem cultivado. Que assim ele se alim ente com seus
frutos, de form a a não haver desperdícios com uma vida
luxuosa nem fazendo com que o campo se estrague ou se
arru ine por negligência. A lé m disso, que essa econom ia e
essa diligência, com respeito a todas as boas coisas que Deus
nos deu para delas usufruirmos, possam florescer entre nós:
que cada um se considere um m ordom o de Deus em todas
as coisas que possua. Assim não se com portará dissoluta­
m ente, nem corrom perá, pelo abuso, as coisas que Deus
requer que sejam preservadas.” 11
A im agem de Jesus do evangelista Marcos, ao dizer que
ele “ estava com as feras” (M c 1:13) nos dá, como Richard
Bauckham observa num recente ensaio, um símbolo p arti­
cularm ente adequado para a nossa era, que é sensível à
ecologia.12 Isso vem logo em seguida à identificação de Jesus
como sendo o messiânico F ilho de Deus (1:11; cf. SI 2:7) e
à sua vitória sobre Satanás; e deve ser lido tendo em m ente
as esperanças escatológicas do A n tig o Testam en to, tais
como referidas em Isaías 11:6-9 (em seguida à descrição da
vinda do Messias, filho de Davi, nos versículos de 1 a 5), em
Jó 5:22-23 e em O séias 2:18. Em Jesus o rein o m essiânico
despontou, e esse reino inclui a cura da inim izade entre a
humanidade e as feras. O dom ínio do homem, que se p er­
verteu numa dom inação e mútua alienação pelo pecado
humano, será restaurado; e com Jesus estando pacifica-
m ente com as feras tem os um an tegozo dessa restauração
escatológica. Bauckham observa que Jesus nem se ate rro ­
riza nem dom estica as feras. Sim plesm ente está com elas.
E nessa frase rica em conteúdo “ estava com as feras” Marcos
faz com que nos lem brem os do va lor da criação não-humana

95
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

aos olhos de Deus. O dom ínio do homem, restaurado em


Jesus (o novo Adão) faz com que as feras do campo encon­
trem o seu lugar no deserto como criaturas que com par­
tilham conosco do mundo de Deus.
Voltando para a história de Gênesis, a “ sem ana” da
criação encontra o seu alvo final, não na criação da huma­
nidade, mas no “ descanso” de Deus (v. 31). Obviam ente isso
não pode ser entendido literalm en te como sendo o cessar
das ações de Deus, pois se Deus tivesse estado inativo por
um m omento que fosse o universo deixaria de existir!
Quando lhe perguntaram por que ele tinha curado no
dia de descanso do sábado, Jesus respondeu aos líderes
judeus: “ Meu P ai trabalha até agora, e eu trabalho tam bém ”
(João 5:17). Qual é então a intenção teológica por detrás
dessa linguagem? Tendo em m ente o enfoque dado pelo
escritor nos inter-relacionam entos entre Deus, a huma­
nidade e o mundo, podemos sugerir o seguinte:
(i) O relacionam ento de Deus com o mundo não é um
relacionam ento de total absorção. Em bora envolvido com
a sua criação e entrando fundo na sua obra, entretanto ele
não é definido por sua criação (com o na filosofia do pan­
teísmo, que fala de Deus e do mundo como aspectos iguais
e paralelos da mesma e única realidade). A existência de
Deus não se exaure em sua obra. E le pode dar um passo
atrás, por assim dizer, e contem plar a obra de suas mãos
com a alegria do sétim o dia. E a alegria que todos os
subcriadores humanos (fazendo uso do term o popularizado
por C. S. Lew is e J. R. T olk ien ) com partilham quando
trazem os algo belo e de valor a este mundo (seja uma outra
vida humana, uma pintura, uma música, um teorem a da
m atemática, uma teoria científica, um livro, e assim por
d ian te). Dessa forma, a criação desfruta de uma certa medida
de autonomia, enquanto permanece dependente da Palavra
de Deus. Os processos básicos e as estruturas do mundo
foram assim constituídos de form a que, no tem po devido,
eles realizarão as funções pelas quais foram trazidos à
existência. A história, natural e humana, agora começou.
(ii) O trabalho humano também é relativizado. Encontra­
mos a nossa verdadeira identidade não em nosso trabalho

96
O M UND O COM O C R IA Ç Ã O

de dominar a terra, mas em Deus. Somos criados para termos


relacionamentos, prim ariam ente com o nosso Criador. O
trabalho é um aspecto do nosso culto a Deus, mas não é tudo.
Parando para usufruir dos frutos do nosso trabalho com
outros seres humanos, nossos sem elhantes, e para dar
graças a Deus pelas dádivas da vida - é isso que restaura
a verdadeira perspectiva no nosso trabalho. Assim o lazer
é introduzido na ordem criada. Faz parte da ordem dada
por Deus a nós, tanto quanto o trabalho. Essa foi a base,
antigamente, para a lei do sábado em Israel. Sua prim eira
intenção era a de colocar o trabalho humano dentro da
única perspectiva que lhe dá sentido: a saber, o culto a Deus.
E ainda um conceito revolucionário a ser mantido numa era
devotada à frenética e devastadora idolatria ao trabalho.
H á ainda muitos outros tesouros éticos e teológicos que
se poderia explorar nesse capítulo inicial de Gênesis. É uma
das mais notáveis peças de literatura do mundo. Ela afirm a
uma radical postura teísta em face a um vazio sistema reli­
gioso: do politeísmo, da astrologia, das práticas ocultistas,
do panteísmo, do dualismo e do animismo. Ainda hoje o seu
ensino constitui-se num baluarte contra todas essas moder­
nas visões do mundo que escravizam a vida humana: p. ex.:
o naturalismo (que o universo é um sistema fechado de
causas e efeitos, com a m atéria e a energia definindo tudo
o que é real); e o que dele decorre: o relativismo (não há
verdade que seja verdadeira para todos, não há valores
morais que sejam válidos para todos, porque valores uni­
versais sáo decorrentes de um propósito universal e não há
propósito para a vida humana ou para o universo); e subje­
tivismo (não há verdade fora da experiência pessoal de cada
um). H á ricas implicações para o mundo m oderno, em áreas
tais como: direitos humanos, base para a ciência e para a
tecnologia, dignidade do trabalho, preservação do meio am­
biente ou mordomia dos recursos naturais. Alguns desses
pontos serão explorados em seções subseqüentes.
O que quero destacar a esta altura é simplesmente que,
por se fazer perguntas erradas nos capítulos iniciais de
Gênesis, ou seja, perguntas com o objetivo de satisfazer a
nossa curiosidade científica, o que acontece é que assim

97
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

deixamos de ver as verdadeiras questões que o texto nos


apresenta: questões que desafiam nossas visões quanto ao
mundo e o nosso compromisso final nesta vida.

A Linguagem da Criação, a Ciência e o Mundo


A doutrina bíblica da criação declara que todo acontecim ento
em nosso mundo de espaço e tem po deve a sua existência
(ou, na linguagem filosófica, a sua origem ontológica) à
atividade de um C riador transcendente, sábio e soberano,
que tam bém está trab alhand o d en tro desse m undo de
espaço e tem po que ele sustém. A linguagem da criação não
se refere sim plesm en te a um acon tecim ento no passado
distante, seja do universo ou da vida humana, mas sim à
origem prim ária de todos os acontecimentos do passado, do
presente e do futuro. A fonte e o destino do toda a existência
acha-se em Deus. Mas esse Deus não é um ser na acepção
norm al da palavra. E le não existe tal com o uma árvore
existe, ou uma galáxia ou mesmo um ser humano. Quando
norm alm ente afirm am os que algo existe, querem os d ize r
que tal coisa pode ser encontrada no mundo do espaço e do
tem po. M as certam ente Deus não existe desse modo. Ele
não pode ser encontrado como um objeto qualquer dentro
do conteúdo m isterioso e maravilhoso do universo (de igual
modo, até mesmo o universo como um todo, neste sentido
de “ existir” , não existe!). E le precede a todas as coisas que
existem, sendo a condição para a existência delas, de form a
que o seu m odo de existir transcende à existência carac­
terizad a pelos objetos que encontram os no tem po e no
espaço. C ertam ente é significativo que a Bíblia não se inicia
com a declaração de que Deus existe, mas sim dizendo que
ele traz seres à existência: “ H aja...”
Conseqüentem ente, o mundo propriam ente dito não é
eterno; nem é um sistem a auto-existente e auto-suficiente.
E le é p erm an en tem en te depen den te da von tad e c ria tiv a
do seu Criador. “ N a sua mão está a alm a de todo ser viven te
e o espírito de todo o gên ero hu m an o” (Jó 12:10). Isso
resum e o que a linguagem da criação procura transm itir.
Se Deus fosse retirar a sua presença de nós por um instante,
sim plesm ente teríam os um colapso que nos red u ziria a

98
O M U N D O C O M O C R IA Ç Ã O

nada. A nossa existência cessaria. E o que é verdade a nosso


respeito tam bém o é com respeito a todo acontecim ento e
a toda entidade que possamos encontrar no universo. N ão
é que Deus sim plesm ente tenh a dado o disparo inicial,
deixando depois o universo desdobrar-se de acordo com
algum plano impessoal. Essa noção de uma P rim eira Causa
ou de um A gen te Inicial não é bíblica. E la proveio prim ei­
ram ente de Aristóteles, um filósofo grego da antiguidade, e
foi popular na Europa do século dezoito na form a do Deísmo,
uma “ religião n atu ral” que com freqü ên cia d ivisava um
A rq u iteto ou M ecânico D ivin o dando início a todo o processo
a que cham am os de un iverso, mas não a tiv o em outras
áreas. In felizm en te muitos cristãos, assim com o a m aioria
de não-cristãos, consideram hoje a criação nesses term os, e
é isso que leva a tanta confusão.
Tam bém nunca deveríam os considerar a atividade de
Deus com o sendo algum tip o de in tro m etim en to , uma
“ in terferên cia” neste mundo de espaço e tem po. Em bora
tenham os visto que o mundo é dotado de poderes de procri­
ação e de reais capacidades de produzir mudanças e coisas
novas sem a necessidade de um ato direto ou “ especial” de
Deus, tanto a existência do mundo com o a sua capacidade
de atuar são graciosas dádivas do Criador, e elas são perm a­
nentem ente sustentadas por sua vontade e por sua capaci­
tação. A atividade dele é que dá suporte a toda atividade.
Tudo o que acontece neste em aranhado de tem po e espaço
a que chamamos de universo acha-se ligado “ h orizontal­
m en te” a outros acontecim entos d entro do tem po e do
espaço, e “ verticalm en te” à atividade de manutenção desen­
volvida na eternidade pelo Criador. T u d o o que acontece -
seja o nascim ento de um a flor, a m orte de uma estrela, o
vôo de um pássaro ou a descarga de neurônios em meu
cérebro... - tudo deve sua existên cia ao p od er do C riador.
O m undo e xiste em Deus; e ele não “ existe” como um objeto
existe no mundo. É aqui por onde todo o nosso pensamento
tem de começar. Já vim os com o a linguagem figu rada de
G ênesis 1 nos introduz a um Deus que traz ordem ao caos,
de form a que o mundo surge como um cosmos e não como
uma confusão de acontecimentos sem significado.

99
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

Deus ordena ( “ H a ja ...) e as coisas acontecem . A sua palavra


confere ordem ao universo, e declara que é “ b om ” o apare­
cim en to de m udanças e de d iversid ad e, de m atéria v iv a e
não-viva. A sua palavra expressa a satisfação do Criador
quanto a todas as coisas que ele decide trazer à existência.
Assim é com respeito a todos os atos de criação. Pense
num poeta ou novelista. Ele começa com um a idéia, conce­
bida em sua m ente, que então ele dá form a com palavras
escritas ou faladas. Quando ele passa a falar ( “ Que haja isso,
e aquilo...” etc.), acon tecim en tos e p erson agen s vêm à
existên cia. C om o desenrolar da história, a in teligib ilida de
da mesma tem por base a inteligên cia do seu criador. U m a
gran de n o vela até m esm o chega a assum ir um a vid a p ró­
pria. Todos os escritores c ria tivos testifica m que novas
situações (n ã o planejadas) surgem por si mesmas no desen­
rolar do trabalho, às quais eles atendem . De form a sem e­
lhante a Bíblia nos convida a v e r o m undo com o um a novela
épica de Deus, envolvendo personagens humanas, cujas
histórias acham-se ainda no processo de estarem sendo
escritas. É o desenrolar de um dram a cósmico no qual o
C riador envolve-se intim am en te com as suas criaturas.
Essa analogia da criação artística serve para ilustrar a
dinâm ica bíblica da transcendência e da imanência da ha­
bitação de Deus neste mundo. O artista põe algum a coisa
de si mesmo na sua obra, de form a que em bora ele a trans­
cenda por lhe con ferir um a certa independência, ela também
pode ser vista (num certo sentido) como uma extensão do
seu próprio ser. Com o todas as analogias, entretanto, esta
não faz justiça à m aneira pela qual o autor divino humilde­
mente sujeita-se a se deixar ser afetado pelas ações das suas
criaturas e a convidá-las a terem uma parte, juntam ente com
ele, na construção da história da vida de cada uma delas.
Da nossa perspectiva, com o criaturas integrantes deste
dram a cósmico, a história não tem um fim determ inado:
somos agentes com plena liberdade, cujos pensam entos e
ações neste m undo sujeito ao tem po e ao espaço dão form a
ao futuro deste mundo. Feitos à im agem de Deus, a nossa
liberdade não foi retirada pelo C riador, apesar do fa to de
ter sido abusada por nós. O C riador ainda faz uso de nossas

100
O M U ND O COM O C R IA Ç Ã O

ações voluntárias, sejam elas boas ou más, em seus propó­


sitos para com o mundo. N ão temos que ir além do livro de
Gênesis para ver exemplos desse misterioso consórcio da
responsabilidade humana com a soberania divina.
P o r exem plo, considere as n a rrativas da vida de José,
que absorvem a últim a quarta parte do livro. O narrador
liga a adversidade na vida de José a várias e complexas
origens: sua própria arrogância na infância, a preferência de
seu pai, o ciúme de seus irmãos, que os levou a venderem-
no como escravo para a corte do Faraó, a lealdade de José
para com Iahweh e para com seu senhor P otifar, o ju lg a­
mento errado deste últim o ao crer em sua esposa e não em
José, a desconsideração do copeiro-chefe, e assim por diante.
N a prisão de José e na sua posterior glória, Iahweh trabalhou
para a preservação do seu povo de acordo com as promessas
feitas a Abraão, a Isaque e a Jacó (cf. Gn 45:8; 50:19-20).
Somente quando chegamos ao fim da história é que podemos
ver como Iahw eh alcança seus soberanos propósitos através
das complexas e enredadas causalidades da existência hu­
mana. Os irmãos de José não tinham consciência de terem
sido forçados ou manipulados para agirem do modo como
fizeram; na verdade eles reconheceram a sua culpa (50:15ss).
M as José não apenas os perdoou, como tam bém se hum i­
lhou quando percebeu que: “ Vós, na verdade, intentastes o
mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer,
como vedes agora, que se conserve m uita gente em v id a”
(50:20). N ão é que o bem seja inerente ao mal, ou que
proven ha au tom aticam en te do mal (pois isso acabaria
com toda a m oralidade hum ana), mas sim que o soberano
C riad or, que é o Senhor da história, pode fa zer uso das más
ações de suas criaturas para proporcionar o bem.
Deus trabalha, ao mesmo tempo, por meio de nós, inde­
pendentemente de nós, e apesar de nós, em tudo o que
fazemos. Assim, não devemos ser nem idealistas quanto à
história humana (como se todas as ações humanas fossem
manifestações da vontade divina), nem cínicos para com a
história humana (como se todas as ações humanas fossem
obstáculos insuperáveis para a vontade de Deus). Essa con­
fusão quanto aos níveis em que operam a ação humana e a

101
A FALÊNCIA DOS DEUSES

ação divina, bem como por não se conseguir perceber a


am bivalente natureza de todas as realizações humanas -
pois todo ser humano é tan to criado à im agem de Deus
como é também um pecador sujeito a todos os efeitos da
Queda - têm acarretado conflitos sem sentido entre os
cristãos, e também trágicas incompreensões da mensagem
cristã (como, por exem plo, entre marxistas e budistas).
O mal propriam ente dito é deixado sem explicação na
Bíblia, pois talvez a verdadeira razão seja a de que é inex­
plicável. N o momento em que ele for “ explicado” , teremos
relacionado-o com uma estrutura de significados na qual ele
agora “ faça sentido” . Mas a verdade é que o mal não tem
sentido. E le é uma louca e absurda invasão à criação de
Deus. N ão dá para explicá-lo. É por isso que toda tentativa
de explicar o mal - como nas doutrinas hindus e budistas
do dukka , do carma e da reencarnação - acaba apenas por
fazer do mal algo trivial. Quando a categoria do dukka é
empregada para abraçar tudo, desde o sentido da lim itação
humana até o pesar sentido pela perda de uma pessoa
querida, até as brutalidades de Auchw itz ou de P ol P ot no
Camboja, essas coisas são roubadas de todo o seu horror. De
fato, os sentimentos de vergonha, de choque e de revolta que
temos quando vemos ou ouvimos atrocidades tais como essas
(sentimentos esses que, sob uma perspectiva bíblica, indicam
uma reação normal e saudável), são em si mesmos uma parte
do dukka do qual nos dizem que precisamos ser libertos.
Estando a abordar o assunto das explanações budistas
sobre o mal, não posso deixar de pensar que no coração do
budismo ja z uma séria confusão quanto ao conceito de
criação. Parece que Buda entendeu a criação como algo que
acarreta uma atitude fatalista à vida. Lemos, por exemplo,
no Anguttara Nikaya (111:61): “ Assim , então, devido à
criação de uma suprema deidade, os homens têm a perspec­
tiva de se tornarem assassinos, ladrões, impuros, mentirosos,
difamadores, fofoqueiros, cobiçosos, maliciosos e perversos.
Conseqüentemente, para aqueles que recorrem à criação de
deus como sendo a razão essencial, não há desejo, nem esforço,
nem necessidade de se fazer este feito ou abster-se daquele
feito.” É contra a doutrina da criação, tal como ensinada por

102
O M U ND O CO M O C R IA Ç Ã O

algumas escolas hindus de filosofia, que Buda parece estar


reagindo. Desse modo, para salvaguardar a responsabili­
dade humana, pensaram ser necessário prescindir de Deus
totalm ente ou, pelo menos, m anter o palavreado “ de Deus”
no mínimo. Além disso, se “ Deus” é concebido simplesmente
como uma Prim eira Causa, então, como o pensamento budista
postula eternos ciclos de formação e dissolução sem começo,
tal conceito é, na m elhor das hipóteses, redundante, e na pior,
sem sentido. Isso continua sendo o maior obstáculo a que
um budista entenda a linguagem cristã sobre o Criador - e,
infelizm ente, a m aioria dos cristãos não têm contribuído
para superar essa barreira de comunicação, porque eles
mesmos se deixaram prender em seu pensam ento pelas
noções gregas, hindus ou naturalistas quanto à causalidade.

Questões sobre as Origens


Tem os que ter cuidado, então, para não confundir a lingua­
gem da criação, que fala de origens ontológicas, com a lin­
guagem de teorias científicas, tal como a cosmologia do Big-
Bang ou a evolução neodarwiniana, que são tentativas de
desenredar as origens cronológicas e o desenvolvimento do
universo e da vida. A linguagem da criação enfoca questões
diferentes e mais profundas, por ex.: por que há um universo,
e não o nada? H á algum significado ou propósito para todo
este drama cósmico? Como é que a ciência é possível? O que
caracteriza o homem ser homem, e qual o seu significado,
se é que há um significado?...
Isso não pretende negar que as teorias científicas têm
implicações filosóficas. Elas podem também alargar o nosso
entendim ento de como o Criador interage com a sua criação,
e adequar a linguagem que usamos na discussão dessa
interação. Mas não vejo razão, com bases bíblicas, para preferir
a explosão do B ig Bang, ou modelos “ inflacionários” , em lugar
de modelos “ constantes” na cosmologia; ou ainda para re­
jeitar qualquer explicação físico-química das origens da vida
na terra. Podemos criticar tudo isso com bases científicas (e
há uma quantidade enorm e de pontos fracos no paradigma
darwiniano da evolução assim como em todos os modelos

103
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

Quais são as implicações desta visão para a pesquisa


científica? Sim plesm ente, que a estrutura racional do uni­
verso precisa ser descoberta. Ela não pode ser especificada
de antemão. Os racionalistas acreditam que as leis do
universo são logicam en te necessárias; assim elas podem
ser inferidas por puro raciocínio. P or exemplo, os gregos
argum entaram que por ser o círculo a form a geom étrica
perfeita, e Deus, por definição, o Ser perfeito, então os corpos
celestiais que ele cria (os planetas) têm de m over em órbitas
circulares. A observação real, porém, demonstrou que eles
se movem em círculos distorcidos chamados elipses.
N o sistema de Aristóteles, os planetas não poderiam ter
satélites. Quando Galileu, no século dezessete, construiu um
telescópio e descobriu os satélites de Júpiter, sua descoberta
foi denunciada pelos racionalistas do seu tem po (muitos dos
quais eram eminentes autoridades eclesiásticas), que foram
educados com a crença de que isso era impossível, tal como
dois mais dois resultar em cinco.
P or ter a criação de Deus uma ordem contingente, é que
ela tem uma infinita capacidade para surpreender-nos. Tal
ordem é descoberta por uma combinação da imaginação com
a experimentação controlada. As nossas crenças, tanto na
ciência como em outras áreas, estão tendo que ser continua­
mente revisadas. A visão bíblica do mundo incentiva os
homens a estarem abertos a novas evidências, a seguirem
o que os fatos possam direcionar, e a não se esconderem
atrás de sistemas racionalistas fechados. Um outro im por­
tante aspecto da fé de um cientista jaz no significado que
ele dá à pessoa humana. Para entrar numa carreira de
pesquisa científica a pessoa tem que pressupor que a mente
humana é capaz de desvendar os segredos do universo. Você
já parou para pensar como é radical essa pressuposição?
Falando com respeito ao mundo físico, os seres humanos
são partículas microscópicas de pó num simples planeta que
translada em torno de uma estrela de média dimensão num
canto rem oto de uma galáxia que compreende uma centena
de bilhões de estrelas, sendo ela apenas uma em meio a um
número de tal ordem de galáxias. E, se as teorias geológicas
e neodarwinianas concernentes à formação da terra e ao

182
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

surgim ento de vida neste mundo são um quadro confiável


do que aconteceu em nosso planeta, então a vida humana
é m uito recente, dentro de uma escala de tem po universal.
Alguns astrônom os e biólogos gabam-se de que suas desco­
bertas “ puseram o homem no seu devido lugar” e eles fazem
escárnio da ênfase bíblica sobre o valor intrín seco e a d ig ­
nidade do ser humano. Assim , o em in ente cientista astrofí­
sico Chandra W ickram asinghe, numa ten ta tiva de m ostrar
que a astronom ia m oderna com prova a filosofia budista,
escreve: “ A lição da astronom ia que nos faz pensar, uma
lição que ainda continua a se revelar, é que o nosso planeta
e os seres humanos sobre ele são verd ad eiram ente insig­
n ifican tes num a escala cósm ica. Os nossos in teresses
egocêntricos, etnocêntricos e antropoeêntricos certam ente
têm de se desvanecer até a plena insignificância num con­
texto cósm ico.” 9
E ntretanto, os escritores que se deliciam em depreciar a
vida humana não apenas estão com etendo um erro infantil
de confundir tam anho e idade com valor e im portância, mas
tam bém deixam de ver que a astronom ia e a teoria evolueio-
nista em si mesmas são produtos da mesma m ente humana
insignificante! Usar teorias humanas para atacar a im por­
tância humana é destruir a própria base daquelas teorias.
C ertam ente o verd ad eiro sucesso da ciência em si m esmo
dá um eloqü ente testem unho à im portância da vida hum a­
na. Com o Pascal expressou-se no século dezessete: “ A tra vés
do espaço o universo m e tom a e me consom e com o uma
partícula. M as através do pensam ento eu o to m o .” 10
V eja, ainda, o que d iz o te ó lo g o e filó s o fo T h om as
T o rra n c e : “ P o r detrás e perm eando toda a nossa atividade
científica, seja em análise crítica ou em pesquisa, há uma fé
elem entar e preponderante na possibilidade de se poder
entender o mundo real m ediante os nossos conceitos e, acima
de tudo, há a fé na verdade sobre a qual não tem os nenhum
controle, mas a serviço da qual a nossa racionalidade per­
manece ou cai. A fé e uma racionalidade intrínseca são
interligadas uma com a ou tra.” 11
U m outro cientista que falou eloqüentem ente sobre a fé
do cientista e sobre o tem or e o senso de m aravilha que a

183
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

ciência invoca foi o m aior dos físicos do século vinte, A lb ert


Einstein: “ Sem a crença de que é possível enten der a rea li­
dade com as nossas construções teóricas, sem a crença na
harm onia in terior do mundo, não pode haver ciência. Esta
crença tem sido e sem pre será o m otivo básico para toda
criação cien tífica.” 12
O fato de que a ciência é possível é, em si mesmo, um fato
que nos aponta para além da ciência. A té mesmo quando
usam os a m atem ática para d esvendar os segredos do u n i­
verso físico, algo m uito estranho está acontecendo. P ois
esses esquemas m atemáticos são criações humanas abstra­
tas, invocadas pelo pensam ento humano. V ez após vez os
grandes avanços na ciência fundam ental ocorreram porque
alguém decidiu confiar numa teoria simplesmente por causa
de sua elegância e simplicidade a partir de um ponto de vista
m atemático, e então descobriu que ela de fato gera experi­
m entalm ente resultados com sucesso em seu enfoque do
mundo físico ao nosso redor. Essa “ irracional eficácia da
m atem ática” (um a fam osa frase do laureado pelo prêm io
Nobel, Eugene W ign er) desperta uma grande admiração a
muitos m atem áticos e físicos com inclinações filosóficas.
Assim , por exem plo, o físico do estado sólido A. J. L eggett
escreve: “ ... quase tudo o que sabemos, ou que pensamos que
sabemos, sobre o universo e sua história, baseia-se na
extrapolação de leis da física, descobertas em laboratório em
condições m uito diferentes em níveis de grandeza de den­
sidade, de tem peratura, de distância, e assim por diante. Que
possamos desse modo obter um quadro provisório, que ainda
possa ter um a razoável chance de ser consistente em si
mesmo, é de se adm irar.” 13E le prossegue, com uma m odéstia
atípica entre os relatórios populares de físicos modernos:
“ M esm o assim, a lista de coisas fundam entais que desconhe­
cemos sobre o universo é desanimadora. E ntre outras coisas,
não sabemos do que ele é feito (em sua m aior parte), se é
fin ito ou infinito, se realm ente teve um início, e se terá um
fim. Está claro que temos um longo cam inho à nossa fren te.”
O jornalista científico T im o th y F erris conclui o seu ex­
celente trab alh o sobre o crescim en to da ciência m oderna
com a pergunta: “ C om o é que então a ciência funciona?

184
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

A resposta é que ninguém o sabe. É um total m istério - talvez


seja o m istério total - a razão pela qual a m ente humana
pode ser capaz de compreender qualquer coisa sobre o bem
mais amplo universo... T alvez seja porque o nosso cérebro
evoluiu pelo funcionamento da lei natural de form a que de
algum modo ele ressoa com a lei natural... Mas o mistério,
realmente, não é que estamos em unidade com o universo,
mas é que somos, num certo grau, estranhos a ele, d ife ­
rentes dele, e ainda assim podemos entender alguma coisa
a respeito dele. P or que é assim?” 14
Como Ferris observa, a biologia evolucionista não é a
resposta. Pode até ser o caso de que se não tivesse havido
consonância entre o funcionamento das mentes humanas e
o modo pelo qual as coisas são, nós teríam os perecido há um
bom tempo. Mas o que vale para a sobrevivência no mundo
é a experiência de cada dia (da gravidade e da dor, das pedras
e das árvores, por exem plo) e o pensamento de cada dia
(quando muito, de geom etria euclidiana, de aritmética, de
mecânica simples). Mas não estamos falando neste nível
mundano. Estamos tratando aqui do comportamento contrá­
rio ao senso comum de um mundo subatômico e da criação
de vastas galáxias a distâncias que não dá nem para ima­
ginarmos, com estranhas entidades tais como “ buracos
negros” , “ gluons” e “ quarks” , tudo isso previsto com base
em abstratos e sofisticados conceitos matemáticos. Como
podem as teorias de campo tipo gauge e as teorias de corda
ser subprodutos de uma luta evolucionista pela sobrevi­
vência? A té mesmo o sonho de homens tais como Stephen
Hawking, de ter uma “ teoria para tudo” com base mate­
mática, sim plesm ente evita as questões mais profundas.
U m a teoria de todas as coisas, se for para ser uma teoria
de tudo mesmo, tem de incluir em si a questão mais in tri­
gante que estamos discutindo: de onde provém o desejo das
criaturas (que à semelhança de H aw k in g são acidental­
m ente lançados à deriva numa obscura parte do universo),
de onde provém o seu desejo de ter uma explicação de
“ tudo” — e a sua confiança no sucesso dessa explicação?
(D eixo de lado, por enquanto, o outro erro por detrás do

185
A FALÊNCIA DOS DEUSES

sonho de H aw king, ou seja, não considerar que há outros


níveis de explanação cujas categorias não podem ser redu­
zidas a conceitos físicos e matemáticos. Assim , mesmo que
uma teoria física pudesse, em princípio, “ explicar tu d o”
d entro de sua abrangência, ela seria v is ive lm e n te d e fi­
ciente quando vista de um outro nível.)
Bem, se somos criaturas feitas à im agem do Criador, cha­
madas por Deus para uma m ordom ia responsável, não é uma
presunção dos homens terem o propósito de com preender o
mundo do seu Criador. N aturalm ente esperaríamos algum
tipo de correspondência entre a m ente humana e o universo
fís ic o qu e essa m en te ex p lo ra . T a n to a c o n tin g e n te
racionalidade do universo com o a racionalidade do exp lo­
rador baseiam-se na racionalidade final e na fid elid ad e da
vontade do Criador.
Este não é um argum ento irrespondível em prol da crença
num Criador, pois no âm bito de nossos compromissos fu n­
damentais, tanto religiosos como filosóficos, não há argum en­
to algum que logicam ente nos convença a crer ou a não crer.
N ão crer tam bém se baseia em crenças que não podem nunca
ser demonstradas logicam ente, sendo que todo sistema de
lógica baseia-se ele mesmo em axiomas que não podem ser
provados dentro desse sistema! A lém disso a tentativa de se
argum entar quanto à realidade de Deus deste modo corre
o perigo, com o vim os anteriorm ente, de acabar ficando com
um deus-das-lacunas e com um P rojetista deísta.
O meu argum ento é o seguinte: uma vez dadas m uitas
outras bases para a fé num Deus que é o C riador do mundo,
e cujo carácter e cujo relacionam ento com a hum anidade
são dados a conhecer através da revelação bíblica, todo o
em p reen d im en to c ien tífico torna-se p e rfeita m en te ra cio­
nal. Isso tam bém explica a observação h istórica que a
ciência moderna teve seu começo - e foi nutrida - num
am biente cultural profundam ente influenciado por essas
con vicções b íb lica s. F o ra dessas con vicções a p ró p ria
ciência clam a por um significado; e homens tais com o
H a w k in g têm m uita dificuldade em ju stifica r a sua d edi­
cação ao trabalho que eles com freqüência usam (ou melhor,
abusam) para atacar aquelas mesmas convicções bíblicas.

186
CIÊNCIA E ANT1CIÊNCIA

Poder-se-ia levar adiante esta discussão apontando para


recentes desen volvim entos na cosm ologia (o ram o da astro­
nom ia que trata da evolução do un iverso), que parecem
m ostrar um a notável conexão en tre o surgim ento da vida
humana no planeta T e rra e a extensa estru tura do universo.
A teoria mais popular hoje sobre a origem do espaço e do
tem po chama-se cenário do B ig Bang: presum e-se que o
universo começou num estado superdenso, superquente,
que esfriou de m aneira a form a r o universo que vem os hoje.
O processo já ocorre por cerca de qu in ze bilhões de anos.
Os valores num éricos de certas constantes físicas funda­
mentais (por exemplo, a constante gravitacional “ g ” , a carga
elétrica do elétron, a razão en tre as massas do próton e do
n êutron) teriam sido determ inados nos prim eiros micro-
segundos do início do universo. Esses valores são desco­
bertos por processos experim entais e são tidos com o bas­
tan te “ precisos” . E m outras palavras, os cálculos m ostram
que se qu alquer um a dessas constantes tivesse sido d ife ­
ren te na proporção de uma parte para vários milhões, isso
teria resultado num universo totalm en te d iferen te - espe-
cificamente, um universo em que as galáxias não teriam sido
form adas, em que o sistem a solar não teria surgido, em que
a vida na te rra não teria sido possível.
T a l descoberta, que leva o nome de Princípio Antrópico
(usando a palavra grega para humano ), revoluciona a nossa
visão do universo por ligar a física cósmica com a biologia
humana. A versão mais forte do Prin cípio A n trópico a firm a
que as constantes físicas tinham que te r o seu p resente
valor, e que o u n iverso tin h a que te r certas características
em suas fases mais prim itivas de modo que form as de vida
carbônicas, culminando em observadores humanos do uni­
verso, pudessem surgir nesse universo depois de uma con­
siderável extensão de tempo.
Como este princípio parece trazer de volta idéias de “ pro­
pósito” e de “ causas finais” à ciência, ele é vigorosam ente
resistido pelos cientistas que ainda se apegam (por razões
diversas, não científicas) à sua visão da vida humana como
um fenôm eno acidental num universo im pessoal. C om o a
v id a poderia ser especificam ente o alvo para o qual o universo
se m ovia? E sse pensam en to tem im plicações trem endas.

187
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

U m m odo de se e v a d ir de q u a lq u er im p licação te ís ta é
p ostu la r a existên cia de “ m uitos m undos” ou de “ m ú ltip los
u n iversos” , de m odo que cada um dos possíveis v a lores das
con stantes físicas se r e a liza s s e nu m desses h ip o té tic o s
u n iversos. T a is u n iversos form a ria m um con junto m a te ­
m ático in fin ito, e por acaso viv em o s num m em b ro d aquele
conjunto em que as con stantes to m aram os valores que
to rn a ra m p ossível a nossa e x is tê n c ia com o o b servad o res
desse universo. M as com o esses un iversos não podem se
com unicar e n tre si, a te o ria é to tal m en te im possível de ser
testada e, portan to, não é científica. E la fa z com qu e a nossa
cred u lid ad e se esten d a a um p on to de ru p tu ra. M as essa
é a exten sã o qu e h om en s tid os com o racion a is parecem
d ispor-se a p e rc o rre r para ev a d ire m -se de qu a isq u er p os­
síveis im plicações teís ta s qu e estejam p resen tes na desco­
b e rta cien tífica...

Pesquisa e R esponsabilidade
T a lv e z nos ajude se p en sarm os n o c ie n tis ta com o sendo
a q u ele q u e fa z um m apa. H á um m undo rea l de a con teci­
m en tos e en tid a d es cujos rela cio n a m e n to s o c ie n tis ta p ro ­
cura e n te n d e r m ed ia n te con ceitos, m od elos e teorias. O
m apa não p ode s er c o n fu n d id o com a r e a lid a d e em si, m as
con stitu i um bom gu ia para qu e possam os lid ar com a
rea lid a d e. E n tre ta n to , um m apa c ie n tífic o , d ife re n te m e n te
de um m apa de rod ovias ou de estra da s de fe rro , é m ais
do que algo m era m en te descritivo. E le p rocura ob te r exp lan a­
ções e p re v is õ e s de a con tecim en tos. A s leis c ie n tífic a s são
p rescritíveis, não no sentid o de que elas especificam o que
nunca p od e a c o n te c er n o m u n d o, m as sim no s e n tid o de
qu e e la s nos d iz e m q u e e x p e c ta tiv a s r a z o á v e is devemos
ter. U m a te o ria cien tífica con fiá vel diz-nos o que é ra zo á ve l
acharm os qu e v a i a c o n te c er nu m a situ ação qu e d esco­
nhecem os, ten d o com o base o que já e x p e rim e n ta m o s em
ou tras situações. M a s as te o ria s são sem p re fa lív e is , com
falhas, e lim itad as em sua abrangência. E por isso que a
confiança e a hu m ildade ju n tas con stitu em a m arca carac­
terística de to d a boa ciência.

188
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

F azer mapas im plica em ter responsabilidade moral. N o


sentido bíblico de “ conhecer” , o conhecimento e a respon­
sabilidade andam juntos. C onhecer algum a coisa im plica
em responsabilidade. Se eu digo que conheço algum a coisa
e contudo não atuo em conform idade com o que eu disse
conhecer, na verdade eu não a conheço. Conseqüentem ente,
ampliando-se a área do meu mapa, amplia-se tam bém a
minha área de responsabilidade. Campos tais como pesquisa
cerebral, energia nuclear e biologia m olecular trazem com
o seu crescente entendim ento o correspondente aum ento
de responsabilidade humana pelo que se declare saber.
O cientista, diferentem ente da maioria dos profissionais,
é um produtor de conhecimento; e, assim, ele carrega consigo
uma responsabilidade m oral m aior do que a de outros
profissionais. Como ele é o criador de tem íveis potenciali­
dades (para o bem ou para o mal), ele tem que estudar suas
implicações antes que as mesmas se tornem reais. P o r
exemplo, um advogado poderia aceitar fazer a defesa de
H itler por causa da sua crença de que a lei deve ser cumprida
totalm ente para poder funcionar; ou um médico poderia ter
aceito tra ta r H itler, mesmo para salvar a vida dele, por
causa do seu juram ento no sentido de tratar todos os homens
de igual forma, independentem ente da condição m oral dos
mesmos. M as um cien tista que esteja desen volven do,
digamos, uma câmara de gás mais eficiente ou um sistema
mais avançado de lançamento de mísseis para o N azism o,
não pode, ao fim do dia, descartar a sua responsabilidade
pelo que H itle r fez com aquelas coisas. O cientista com ­
partilha da responsabilidade pelo mal.
Um dos efeitos da Queda (Gênesis 3) e do pecado humano
é o divórcio entre o conhecim ento e a responsabilidade.
A separação entre a teoria e a ação é tida como certa, e até
mesmo ufanada, em instituições acadêmicas. Jornais cien­
tíficos, documentos e livros de pesquisa estão lotando as
bibliotecas do mundo a uma taxa impressionante. Contudo
só uma pequena proporção da população mundial beneficia-
se desse “ conhecim ento” . Com o seres humanos centrados
em si mesmos, é mais fácil satisfazer-se com os aspectos
técnicos do nosso ofício do que enfren tar difíceis e desa­

189
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

fiad oras questões que exijam um a m aturidade que nós,


como cientistas, não temos.
E por isso que a ciência se torn a um instrum ento de
grande violência no dia de hoje. Ironicam en te, lado a lado
com seus grandes benefícios, em nome da ciência, mais
violên cia tem sido in fligid a nos seres humanos e em outras
criaturas vivas no século v in te do que em toda a história
da humanidade. A ciência não é m ais buscar a com preensão
das coisas, um a hum ilde satisfação diante da criação de
Deus. E la liga-se ao poder m ilitar e a enorm es interesses
econômicos. A s distorções do pecado humano refletem -se
nas erradas prioridades da pesquisa científica.
Com o escreveu Richard Bube, ex-professor da U n iversi­
dade de Stanford: “ M u ito da pesquisa científica de hoje é
m otivado por duas simples questões: ( l ) a pesquisa tem a
perspectiva de um resultado financeiro no futuro próximo?
(é a ind u strialização da ciên cia); ou (2 ) ela p ropiciará
algum a con tribu ição para o p rogram a m ilitar? (é a m ili­
ta riza çã o da ciência)... Isso quer d izer que a escolha de
tópicos para serem pesquisados e a direção dos esforços das
pesquisas tendem a ser mais ou menos diretam ente influen­
ciadas pelas necessidades m ilitares numa proporção dese­
quilibrada em relação às necessidades humanas.18
Isso é verdade não apenas nos Estados U n idçs e na
Europa, mas tam bém em países pobres com o a ín dia, a
C hina e o Paquistão. A “ n a ta” dos cientistas do T e rc e iro
M undo é retirad a e posta a trabalhar em pesquisas de
interesse m ilitar, tan to nos Estados Unidos com o em seus
próprios países. Estim a-se que há m ais cientistas e en ge­
nheiros vivos nesta geração do que os que viveram em todo
o resto da história da hum anidade - e quase m etade desse
nú m ero está e n v o lv id a em pesquisas ligad as aos in te ­
resses m ilitares. Isto representa um terrível desperdício do
talento humano, para não dizer dos recursos naturais da
terra. A gora nós possuímos a tecnologia do satélite para
esquadrinhar cada m etro quadrado do nosso planeta, mas
ainda somos incapazes de prover às cidades do mundo um
sistema elétrico seguro e confiável, ou um sistema de trans­
porte público não poluente.

190
CIÊNCIA E ANTJCÍÊNC1A

A prática da ciência tem que ser pesada no con texto das


realidades globais de hoje. O iten ta por cento da população
m undial que viv e no h em isfério Sul (o T e rceiro M undo)
consom e apenas v in te por cento da riqu eza m undial.
Som ente os Estados Unidos, com apenas cinco por cento
da população do mundo, usa quase um quarto da energia
m undial, m etade da qual é descartada como calor desper­
diçado. T odo o com bustível usado no h em isfério Sul para
todos os propósitos é apenas ligeiram en te m aior do que
o total de petróleo queim ado no h em isfério N o rte apenas
para m over autom óveis.
O mundo está tornando-se cada vez mais desigual. Hoje,
levando em conta empréstimos, ajudas diretas, e paga­
mentos de juros, as nações pobres enviam cerca de 30 bilhões
de dólares por ano para os países ricos, já descontado o que
deles recebem. Se os preços decrescentes dos bens da agri­
cultura das nações pobres fossem levados em consideração,
o fluxo de capital do Sul para o N o rte estaria lá pelos 60
bilhões de dólares por ano. Mas para obter dados mais
precisos, seria necessário incluir as fortunas de políticos e
de empresários do T erceiro Mundo que são “ exportadas”
para bancos da Europa e da Am érica, e os lucros de empresas
multinacionais que são enviados de volta para a sua base
paternal do N orte. Quantos que vivem no hem isfério N orte
percebem que o seu extravagante padrão de vida está sendo
m antido em grande parte pela receita provinda das nações
mais pobres do mundo?
Toda ajuda que seja dada ao Sul é uma m era gota d ’água
no oceano do que flui do Sul para o N orte, e até isso está
sob condições que beneficiam o que dá, m uito mais do que
o que recebe! E um fato bem conhecido que o governo
am ericano dá ajuda como um instrum ento de política ex­
terior e não em resposta a necessidades humanas p riori­
tárias, tais com o identificadas pelas Nações Unidas. De
toda a assistência para desenvolvim ento que foi oficial-
mente dada pelo N o rte ao Sul em 1992, apenas 7% tinha
por finalidade atender áreas prioritárias. A m aior parte
dos 15 bilhões de dólares dados como “ assistência técnica”
foi para a compra de equipam entos e para o pagam ento de

191
A FALÊNCIA DOS DEUSES

técnicos especialistas das nações emprestadoras. N ão é de


se adm irar que a receita dos 20% mais ricos da população
mundial é 150 vezes a receita dos 20% mais pobres.16
A injusta distribuição da riqueza global tam bém d eter­
mina a natureza de bens que são manufaturados. Um a
grande proporção do P N B das nações ricas é destinada a
bens de consumo e à produção de tecnologias para fabricar
esses bens de consumo. Com o há ainda enorm es dispa­
ridades dentro de cada nação pobre, os mesmos produtos
de consumo de alta tecnologia (autom óveis, computadores,
aparelhos de vídeo, máquinas fotográficas, etc.) são desfru­
tados por elites em países onde as necessidades básicas de
nutrição, de saneam ento básico e de habitação para a grande
m aioria dos cidadãos ainda estão por serem alcançadas.
Assim, apenas uma pequena parte dos recursos mundiais
flui para o processamento de bens básicos requeridos por
metade das pessoas do mundo (e especialm ente pelas suas
crianças) para a sua sobrevivência.
O controle sobre a tecnologia detido pelo hem isfério N orte
tem contribuído para as dificuldades de muitas das nações
pobres. Os países ricos usam as tecnologias industriais e da
agricultura que detêm para a produção de bens excedentes
que eles mesmos não têm como usar. Excedentes de safras,
de cereais e de outros produtos são descarregados a preços
baixos no mercado mundial, causando um colapso nos preços
dos produtos do T erceiro Mundo, e assim reduzindo a receita
e o nível de vida do povo pobre. As receitas de exportação
do Terceiro Mundo estão caindo dramaticamente num tempo
em que eles têm que pagar cada vez mais caro o custeio dos
empréstimos externos. N o final dos anos 80, o débito total
do Terceiro Mundo chegou a um trilhão e trezentos bilhões
de dólares, 90% dos quais devidos diretamente a instituições
das nações ricas, ou indiretam ente através de organizações
internacionais. Este número chega próxim o à metade do P N B
do Terceiro Mundo. Os débitos da Am érica Latina presen­
tem ente são quatro vezes o m ontante de sua exportação
anual. A cada 1% de acréscimo no custo dos juros pagos ao
N orte, é necessário um aumento de 4% nas exportações,

192
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

simplesmente para equilibrar os pagamentos. Para con ti­


nuarem a pagar os juros sobre suas dívidas, as nações têm
de continuar a fazer empréstimos. Parece não haver fim
algum à vista para esse círculo vicioso.17
Um a indústria global que continua a ter grandes lucros,
mesmo em tempos de recessão econômica, é a indústria
farmacêutica . As vendas mundiais das maiores companhias
farmacêuticas excedem o P N B de muitas nações do Terceiro
Mundo. Ela é uma indústria fora do comum, se não única,
no sentido de que ela requer alguém de fora dela para
p rom over seus produtos: não são as “ forças de m ercado” nem
a “ soberania do consumidor” que operam, porque é o médico
que decide qual o medicamento que o consumidor deve
comprar. Dessa forma, a profissão médica tem se tornado no
maior alvo das campanhas de promoção de venda dessas
empresas. Pesquisas médicas, instituições educacionais,
seminários e simpósios são com freqüência patrocinados por
empresas farmacêuticas. Em bora mais de vin te por cento
de suas vendas provenham do T erceiro Mundo, menos do
que um por cento de todo o seu gasto com pesquisas e
desenvolvim ento é destinado a prioridades de saúde do
Terceiro Mundo.
As atividades promocionais das empresas de remédios de­
finem não apenas a direção dada à pesquisa médica no N orte,
mas também os hábitos dos médicos de todo o mundo. A
maioria deles, especialmente nas nações mais pobres, têm
pouco acesso a informações sobre drogas fora da literatura
promocional das empresas farmacêuticas. U m recente estudo
da propaganda feita na principal revista médica de Sri Lanka
demonstrou que 49% das páginas continham anúncios de
drogas (m ais do que o dobro do número de páginas em
revistas equivalentes da Escandinávia); apenas 25% das
drogas anunciadas eram da lista de remédios essenciais,
conform e definidas pelo m inistro da saúde do governo; e
tão som ente 16% delas continham um m ínim o de in fo r­
mação científica do interesse dos m édicos.18 N o currículo
da m aioria das faculdades de m edicina do mundo todo, a
farm acologia é ensinada sem qualquer referência aos custos

193
A FA L Ê N C IA DOS DEUSES

de cada droga. É comum a prática de prescrever drogas


mediante o seu nome comercial (de uma m arca) e não o seu
nome genérico (ou científico). Assim a m edicina torna-se,
sem que o queira, o instrum ento da exploração do pobre.
Em sua m uito bem documentada pesquisa sobre as ope­
rações das companhias farmacêuticas, Pílulas Amargas:
Medicamentos e os Pobres do Terceiro Mundo,® Diana
M elrose destacou (entre outras coisas) o seguinte:

- Aproximadamente 20% do total da venda de drogas a nível


dos fabricantes vai para a promoção, que inclui amostras grátis
aos médicos, o patrocínio de encontros médicos, anúncios em
revistas médicas e a propaganda diretamente dirigida ao público.
- Embora a Organização Mundial de Saúde tenha identificado
aproximadamente 200 drogas em 27 amplos grupos como
“ essenciais, básicas, indispensáveis e necessárias para as
necessidades de saúde de qualquer nação” , muitas dessas drogas
acham-se escassas na maioria dos países do Terceiro Mundo,
enquanto que drogas não essenciais superam aquelas na
proporção de 10 para 1. Chega a ser 70% a porcentagem dos
produtos farmacêuticos no mercado mundial que são da categoria
de não-essenciais ou mesmo indesejáveis.
- A prescrição médica de drogas feita além do que seria neces­
sário e a prescrição de drogas em embalagens atrativas e de
custo elevado, com limitado potencial de cura, têm seriamente
prejudicado os esforços despendidos pelo pessoal da saúde
pública para dar ao povo uma educação quanto à saúde e assim
aliviar a pobreza. Pressões da indústria ainda distorcem a direção
dada à pesquisa farmacêutica.

O mundo entrou agora na tão anunciada Era da Biotecno­


logia. Com a tecnologia recombinante do D N A é agora
possível m anipular o esquema genético de organism os vivos
para satisfazer as nossas aspirações culturais, políticas e
econômicas. Companhias farmacêuticas e agro-industriais
estão agora assegurando para si direitos exclusivos paten­
teados para o uso de m ateriais gen éticos oriundos das
florestas do Terceiro Mundo. Elas estão fazendo um pesado
trabalho de “ lobby” jun to aos governos para que lhes seja
perm itido patentear tudo com referência ao tecido humano,

194
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

animal e vegetal. Isso levanta profundas questões éticas que


vão além da comunidade científica. O uso dessa tecnologia
na reprodução humana e no exame médico genético levanta
as possibilidades de discriminação contra aqueles que con­
sideramos “ sem importância” , ou até “ inúteis” , de acordo
com a nossa deformada escala de valores (este é o verdadeiro
aspecto de “ fazer o papel de Deus” na engenharia genética),
e a exploração de mulheres numa eugenia comercial.
A síntese de novos vírus e bactérias para uso na guerra
biológica pode levar a uma corrida para a obtenção de armas
genéticas em tudo tão terríveis quanto a corrida armamen-
tista nuclear. As transferências genéticas entre espécies vão
muito além da tradicional geração de espécies animais e
vegetais, reduzindo ao status de produtos manufaturados os
animais que passaram pela engenharia genética. Será que
partes do corpo humano e até mesmo estruturas genéticas
humanas em breve se tornarão propriedade patenteada de
alguma companhia privada? Isso sem dúvida seria o auge da
sociedade consumista, tornando-se a herança humana um
bem a ser comercializado.
A indústria da televisão e do entretenim ento agora está
se associando com as maiores empresas de jornais, de tele­
fonia e de computação na tão alardeada via expressa global
da informação. Um pequeno número de enormes conglome­
rados tenta controlar esse vasto império. A rede asiática de
Rupert Murdoch já passa novelas americanas que atingem
os lares de chineses e indianos. Longe de expandir a liberdade
de escolha, ela representa um novo imperialismo econômico
e cultural. Produtores locais de filmes para a televisão não
têm como competir com essas companhias gigantescas. A
implacável concentração do poder da mídia nas mãos de
alguns homens e algumas poucas companhias reduz a escolha
por parte do público. Jornais e editoras que anteriorm ente
eram independentes agora são absorvidos pelos conglome­
rados, levando a uma emulsifieação da televisão, de livros
e de jornais numa massa conservadora sem expressão. A
aliança de políticos conservadores com mega-empresários
serve para pressionar a favor de posições ideológicas de

195
A FALÊNCIA DOS DEUSES

direita. Assim, paradoxalmente, mesmo que os canais de


comunicação se expandam, o real conteúdo da comunicação
diminui.
O problema não está nas tecnologias que empregam sa­
télites e fibras ópticas, mas no contexto humano (econômico,
político, ideológico) em que são desenvolvidas. A pesquisa
científica e tecnológica por si mesma não leva ao enrique­
cimento da vida humana. Tudo depende de quem tem o
controle dos frutos de tal pesquisa. Pesquisas e desenvolvi­
mento que acontecem dentro de uma ordem econômica com
grandes disparidades e/ou uma ordem política repressiva
tenderão apenas a agravar tais iniqüidades e/ou repressões.
Os poderosos consolidam o poder que têm, geralm ente às
custas dos fracos.
Como exemplo dessa tendência, considere a famosa Revo­
lução Verde dos anos 60. Certas sementes de alta produti­
vidade, “ m ilagrosas” , foram desenvolvidas em institutos de
pesquisa agrária do M éxico e das Filipinas, e introduzidas
em outras sociedades agrícolas. Aqui havia uma tecnologia
destinada a aum entar a produção local de alim entos e
assim diminuir a subnutrição e pobreza rural. Entretanto
tais sementes, sendo produzidas artificialm ente, neces­
sitavam altas doses de pesticidas para p roteção con tra
agentes patogênicos; elas também precisavam ter uma boa
irrigação e um grande consumo de fertilizantes. Os países
agrícolas, em sua m aioria, são econom icam ente pobres e
têm que im portar fertilizantes e pesticidas. Eles tiveram
também que depender de especialistas estrangeiros para
orientá-los e também de bancos de sementes pertencentes
a institutos multinacionais. Desse modo os custos das im ­
portações subiram com m aior rapidez do que as exportações
agrícolas. Além disso, a grande m aioria de pequenos agri­
cultores em nível de subsistência não tinha condições de
com prar fertilizan tes e pesticidas, nem ainda tinha meios
de irrigação adequados para suas porções de terra; assim
tiveram que ven d er a te rra que possuíam aos fazendeiros
mais ricos. Isso resultou num m aior número de sem-terras
e no agravamento da pobreza rural. A tão anunciada R evo­
lução Verde falhou.

196
C IÊ N C IA E A N TIC IÊ N C IA

A quem a Revolução V erde proporcionou uma colheita


lucrativa? O escritor indiano Claude A lvares é d ireto em
sua resposta: “ E la foi lucrativa para os que desenvolveram
o projeto, incluindo-se fundações privadas am ericanas,
tais como a Ford e a Rockefeller; para as empresas m ulti­
nacionais que produziram as sementes, os equipam entos
e os nutrientes necessários; para os bancos que forneceram
o crédito, e para algumas categorias de grandes fazen ­
deiros.” 20 Fazendo um retrospecto, vem os que a diminuição
da fom e e da pobreza tem m uito mais a ver com a reform a
agrária, com a participação em cooperativas de tecnologia
e com o poder de compra dos pobres, do que com a elevação
da produtividade agrícola nacional.
A introdução de novas tecnologias em sociedades com
grandes disparidades de rendimento, e tendo por trás agres­
sivas técnicas de m arketing m oderno, serve apenas para
gerar inveja, frustração e violência social. Elas tornam-se,
sem o desejar, instrumentos de exploração humana mais do
que de participação humana e de mordomia. É por isso que,
contrariam ente às crenças de muitos adm inistradores e
tecnocratas do mundo todo, a tecnologia não pode nunca
substituir uma liderança política criativa e corajosa. É so­
mente quando a ciência e a tecnologia são vistas como servas
de uma visão humana mais elevada que elas podem tornar-
se verdadeiros instrumentos de libertação.
Em termos bíblicos, a idolatria da ciência como um fim
em si mesma e a não-aceitação da responsabilidade moral
pelo próprio trabalho são uma negação da mordomia. A
ciência, tal como qualquer outra atividade, participa da
alienação que resulta da rebelião contra o Criador. Os jovens
que entram nos campos da ciência e da engenharia têm de
estar cientes dos contextos social, econôm ico e político
desses campos. A ciência não é uma disciplina autônoma
conduzida num vazio.
Como cristão creio que o empreendimento científico tem
de ser guiado pelo amor: pelo amor a Deus e ao próximo. Onde
o amor está ausente, a ciência torna-se demoníaca. Ela
escraviza mais do que liberta. O amor a Deus inclui respeito
pela verdade. Ele leva à integridade no trabalho, de form a

197
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

que a fama, a reputação e a riqueza (quer pessoal ou nacional)


não sejam os m otivadores da pesquisa. O am or ao próxim o
significa dar prioridade ao ser humano global em vez de a
uma “ auto-realização” pessoal. Significa tam bém que às
vezes as exigências da compaixão humana terão que ignorar
a curiosidade humana. Assim, certas áreas de investigação
têm que estar sob restrições legais porque elas podem ser
facilmente abusadas ou podem diretam ente ameaçar a perso­
nalidade humana: por exemplo, pesquisas não-terapêuticas
em embriões, nos idosos e nos portadores de defeito físico.
Os benefícios que resultam desse tipo de pesquisa precisam
ser buscados por outros meios que não violem a dignidade
humana.
A justificação pela busca do “ conhecimento pelo conheci­
m ento em si” é na realidade sem fundamento, pois o conhe­
cimento envolve a habilidade de relacionar e integrar idéias
entre si por todo o âm bito das disciplinas intelectuais. E o
conhecimento coexiste com outros fins, entre os quais o
desenvolvim ento da justiça e da condição humana, como
quer que tais conceitos se definam . E som ente numa cul­
tura em que o conhecimento tenha degenerado na acumu­
lação de “ fatos” isolados que as pessoas podem argum entar
o “ conhecimento pelo conhecimento em si” . A inabalável
postura de uma au ton om ia c ie n tífic a no O cid en te agora
está dando lugar, com certa hesitação, mas com certeza, a
um reconhecimento das reivindicações da sociedade em relação
à ciência. Nenhum a profissão existe de form a isolada em
relação à comunidade de amplitude m aior dos concidadãos.
A história da ciência desde os anos da década de 1930 tem
demonstrado amplamente, e de form a dolorosa, como a
curiosidade científica tem aos poucos se transformado em
cobiça pelo poder e numa exploração dos im potentes. E, com
o crescim en to da p articipação d em ocrática por todo o
mundo, como se espera que aconteça, a curiosidade cien­
tífica também terá que se sujeitar às normas da sociedade.
O perigo, é claro, é de as norm as da sociedade se to r­
narem mais e mais distorcidas - tal como a própria demo­
cracia com freqüência é subvertida e distorcida pelo poder
de enorm es interesses com erciais. Já o espectro de cien-

198
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

tistas que têm que justificar o seu trabalho em termos de


valores de consumo do mercado, é algo bem presente no
m undo in teiro. N ão é este o tipo de “ resp on sab ilidade”
que estou defendendo. O que se chama de “ pura ciência”
é, como já expus, uma resposta obediente e respeitosa à
inteligibilidade de um mundo que nós como cristãos reco­
nhecemos como tendo vindo das mãos de nosso Pai. Mas
essa ênfase na obediência, com seus concomitantes valores
de amor e de deslumbramento, e respeito pela ordem criada
e pela comunidade humana, muito mais do que uma mera
curiosidade, é que impede que a pura ciência se degenere
numa monomania pela busca do Prêm io Nobel.
A filósofa b ritân ica M ary M id gley, em bora não seja
crente, argumentou persuasivam ente contra essa m ono­
m ania fazendo uso do que pode parecer ser uma estranha
ilustração: a parábola de Jesus com respeito ao mercador
que vendeu tudo o que tinha para adqu irir uma única
pérola de grande valor. P ois o que é com prado não é apenas
estocado (como é tanto “ conhecim ento” hoje em dia, em
bibliotecas e em bancos de dados de computadores). Ela
escreve: “ A menos que o m ercador sim plesm ente queira
aquela pérola para revendê-la, ele pretende fazer algum a
coisa com ela. Ele quer, parece, entrar numa relação com
ela, m aravilhar-se com ela, contem plar a beleza dela. Mas
m aravilhar-se envolve amor. E um elem ento essencial no
m aravilhar-se reconhecer que o que vem os é algo que não
fizemos, que não podemos com preender totalm ente, e que
reconhecemos que contém algo m aior do que nós mesmos...
O conhecimento aqui não é apenas poder; é uma união
amorosa, e o que é amado não pode ser apenas a inform ação
obtida; tem que ser a coisa real a respeito da qual aquela
inform ação nos fala... O estudante aprenderá as leis e
praticará os costumes pertencentes ao reino dos céus ou da
natureza, procurando tornar-se mais adequado para servi-
lo. Mas prim eiro vem a contemplação inicial, a visão que
exprime a essência do todo. Tal visão não é absolutamente
apenas um meio para um envolvim ento prático, mas é em
si um aspecto essencial do objetivo.” 21

199
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Revoluções conceituais precisam ocorrer, se é que a co­


munidade científica tenha que redescobrir as razões para
a sua existência. M idgeley é m uito severa em sua exposição
da pretensão acadêmica: “ A obsessão hipócrita precisa ser
publicam ente desmascarada. P recisa ser esclarecido por
que uma ten ta tiva de com preender a desertificação na
Á frica , com o objetivo de resistir a ela, não é, como tal, num
nível profundo, academicam ente in ferior a um avanço na
teoria física. A lg o precisa ser feito aqui quanto à tendência
corrente de se usar palavras tais como “ básica” e “ funda­
m ental” para descrever qualquer pesquisa que não pretenda
ser útil. Questões triviais são sempre triviais, mesmo quando
suas respostas são inúteis. Sua inutilidade não pode por si
mesma transformá-las em questões fundamentais.” 22

O Assalto à Objetividade
A imagem tradicional da ciência como sendo uma busca de
um conhecimento objetivo e universalmente válido, tem sido
alvo de um pesado ataque nos últimos tempos. M uitas são
as correntezas que têm convergido para esse assalto torren­
cial ao conhecimento objetivo. Um a das primeiras fontes de
crítica veio da própria física, a saber, da mecânica quântica
e da teoria da relatividade, as quais demonstraram a impos­
sibilidade de descrever um conjunto de eventos sem refe­
rência ao sistema de observação. Isto serviu para reacender
filosofias idealísticas que enfatizam o papel da consciência
humana na “ construção da realidade” . Típicos dessa abor­
dagem são os escritos de físicos tais como F ritjo f Capra, um
dos gurus-profetas do m ovim en to da N ova Era. P ara Capra
é um “ fato aceito” en tre m uitos cientistas que “ as estru­
turas básicas do mundo são determ inadas, afinal, pelo
modo com que olham os o mundo; que os padrões da m atéria
observados são reflexos de padrões da m en te.” 23
As críticas mais significativas provieram de desenvolvi­
mentos dentro da filosofia da ciência em si. Contrariam ente
à imagem popular da ciência, um cientista não é um obser­
vador neutro de fatos “ que aí estão” , esperando ser coletados
e inseridos numa teoria do mundo. A té mesmo nossos atos

200
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

mais simples de percepção são interpretações mentais. Por


exemplo, se eu digo que estou observando uma “ cadeira
verm elha” , estou interpretando um conjunto de estímulos
externos dentro de uma estrutura de conceitos teóricos
( “ verm elho” , “ uma cadeira” ) que são construções sociais que
aprendi desde a infância - a linguagem, afinal de contas, é
a suprema construção social. Assim não tem os acesso direto
à realidade física, mas toda realidade é mediada a nós através
de nossos esquemas interpretativos.
A atividade científica pode ser considerada como a percep­
ção numa escala bem mais sofisticada. A realidade física que
os cientistas exploram é colhida apenas através de um es­
quema conceituai. O que o cientista observa tom ará a form a
dada pela teoria (e por modelos da realidade) que ele já
conheça. Enquanto um estudante vê apenas linhas confusas
e quebradas ao olhar para uma fotografia tirada de um
detector de partículas, um físico bem treinado realm ente
verá o registro de eventos subatômicos. São teorias que
decidem o que selecionamos como sendo “ fatos” , e a nossa
interpretação desses fatos também baseia-se em teorias.
Onde quer que um estudante aprenda ciência, ele prim eiro
aprende uma tradição (às vezes chamada de paradigm a) que
lhe é transm itida por aqueles que praticaram naquele campo
anteriorm ente a ele. O paradigma form a a estrutura para
o seu pensamento. Ele define a m atéria que está para ser
investigada, treina-o na interpretação dos dados através dos
“ óculos” da teoria reinante e estabelece a agenda para
futura pesquisa: a saber, o que constitui um “ problem a” , que
questões devem ser legitim am ente levantadas, e quais não,
etc. Assim, todo o aprendizado científico é uma complexa
interação da tradição, da experiência e da crítica. Isso será
explorado com mais detalhes no capítulo seguinte.
Também, uma sociologia da ciência tem se desenvolvido
como um ram o da sociologia geral do conhecim ento (tra ­
tando o “ conhecimento” como um produto social). Isso tem
realçado o modo pelo qual paradigmas científicos têm sido
influenciados pelas formas de pensamento predominantes,
por preconceitos sociais, e até mesmo por planos políticos.
Já observam os como a ciência m oderna tem se sujeitado

201
A FALÊNCIA DOS DEUSES

a enormes interesses comerciais e militares. O tipo de ques­


tões que a ciência considera dignas de investigação refletirá
os valores, as prioridades e a visão do mundo da sociedade
mais ampla na qual a atividade científica se realiza. E a
popularidade das teorias também reflete interesses sociais
mais amplos. Assim, por exemplo, estudos históricos sobre
C harles D arw in e sobre as respostas públicas dadas ao
liv ro de Darwin A Origem das Espécies (1859) têm demons­
trado que a idéia da seleção natural na biologia, com sua
ênfase na com petitividade e na sobrevivência do “ mais
apto” , encontrou um nicho p ronto no sistem a de valores
do capitalism o de laissez faire e nas atitudes vitorian as
para com as raças não brancas que foram consideradas
intelectual e m oralm ente inferiores (um a visão que o pró­
prio Darwin sustentava).
Assim , a ativid ad e cie n tífic a não ocorre num vácuo
cultural. Já vim os que as pressuposições sobre as quais a
ciência se baseia foram deduzidas pelos pioneiros da ciência
a partir de uma visão do mundo judaica-cristã. Tam bém
vim os como D arwin e outros compromissados com uma
visão naturalista do mundo tendem a descrever teorias de
m aneiras que as fazem ser mais conclusivas para aquela
visão do que a ou tra s. S e m e lh a n te m e n te , C h a n d ra
Wickrem asinghe - que com Fred H oyle permanece sendo o
defensor mais apaixonado da Teoria do Estado Constante (a
antiga teoria rival à do Big Bang da cosmologia atual) -
inconscientem ente trai a razão fundam ental pela qual
aceita essa teoria: “ De form a consistente com a crença
budista, o universo, com preendendo incontáveis mundos
- menores, interm ediários e maiores, cada um deles pas­
sando por cíclicas mudanças em si m esm o - tem uma
qualidade que é ilim itada e etern a.” 24
Alguns sociólogos do conhecimento, especialmente os da
mais antiga escola marxista do m aterialism o histórico, têm
visto conexões causais entre os conteúdos das teorias indi­
viduais - e não m eram ente um suporte social para elas -
e as condições econôm icas e sociais prevalecentes. Num
clássico estudo da origem da física quântica na Alem anha
da década de 1920, Forman argumentou que o princípio da

202
C IÊ N C IA E A N TIC IÊ N C IA

incerteza de Heisenberg e a não-causalidade do mundo dos


quanta decorreram dos tran storn os sociais e das in cer­
tezas políticas da república de Weimar. A inexistência de
raízes sociais para os judeus na Europa foi a razão pela
qual os físicos judeus foram os mais proem inentes no
desenvolvim ento das novas idéias.25
Tam bém já vim os como a m etáfora do “ con flito” que
descreve o relacionamento entre a ciência e a teologia foi
desenvolvida por H uxley e outros no contexto de uma luta
pela supremacia social da em ergente classe científica profis­
sional sobre o conservadorism o anglicano. Os cientistas
amadores, muitos dos quais na Inglaterra eram clérigos ou
cavalheiros financeiram ente independentes, eram agora
substituídos por uma nova classe profissional. A ciência
tornou-se uma profissão especializada, bem organizada, de
tem po integral. T a l com o todo novo agrupam ento social,
ela teve que desenvolver para si mesma um nicho distintivo
no am biente intelectual. A s diferenças na m etodologia
entre as diferentes ciências físicas foram reduzidas e todas
foram subsumidas sob um procedim ento abstrato rotulado
como “ o método científico” , o qual foi creditado com o bri­
lhante sucesso da ciência. O crescente prestígio da ciência
significou que outros ramos na árvore do conhecimento
humano sentiram a ameaça de serem podados. Todas essas
outras disciplinas, incluindo-se entre elas a teologia, tiveram
que se rem odelar segundo as linhas do “ método científico”
de forma que seus praticantes não fossem m arginalizados e
talvez até mesmo desempregados.
E ssa v is ã o m ais a n tig a (d o “ P o s it iv is m o ” ou do
“ Em pirism o” ) - que vê os cientistas como pessoas que se
ocupam com um mundo de “ observações puras” , não con­
taminado por “ teorias” e por “ valores subjetivos” (o que
pertence à esfera da religião e da filosofia) - há bastante
tempo tem sido desmascarada como ingênua e como não
correspondendo à verdade. O term o “ positivo” aqui tinha
o sentido do que era dado ou estabelecido, o que tinha que
ser aceito tal como encontrado, e além do que não se poderia
ir; assim ele levava uma advertência contra toda inves­
tigação m etafísica e teológica. Todo conhecimento é dado

203
A FALÊNCIA DOS DEUSES

pelas observações através dos sentidos tão somente, sendo


codificado em leis científicas. Todos os termos teóricos têm
de ser traduzidos em afirmações de observações levantadas
e de relações lógicas; caso contrário seriam (na m elhor das
hipóteses) “ ficções úteis” , ajudas heurísticas que não teriam
com o afirm ar nada em relação ao mundo real. Os p ositi­
vistas sonhavam com uma ciência, construída a p artir de
um conjunto axiom ático de proposições defin idas, que
produziria previsões de sucesso e leis verificáveis experi­
mentalmente. O positivismo andou de mãos dadas com uma
visão otimista dos benefícios que uma extensão do método
cien tífico traria à humanidade. Esse positivism o era a
imagem da ciência que dominava no século dezenove na
Europa e até a metade do século vinte. Infelizm en te, ele
ainda molda a visão da ciência tida por muitos, inclusive
por professores de religião e teologia, que se sentiram
compelidos a ajustar suas disciplinas profissionais para
adequarem-se às rigorosas exigências dessa tradição.
Essa visão restritiva e bizarra do conhecimento encontrou
em Bertrand Russell um de seus mais lúcidos e influentes
porta-vozes. N o capítulo final de seu popular livro Uma
História da Filosofia Ocidental, Russell desdenhosamente
descartou toda filosofia moral e política como sendo um
vazio “ sofism a” . Somente uma análise lógica de proposições
científicas concernentes ao mundo físico deveria ser con­
siderada como real filosofia. Em bora reconhecendo que
“ ainda permanece um vasto campo, tradicional m ente inclu­
ído na filosofia, em que os métodos científicos são inade­
quados” , e que “ a ciência, por si, não prova, por exem plo,
que é um mal ter prazer na crueldade” , ele continuou: “ O
que pode ser conhecido pode ser conhecido por meio da
ciência; mas tudo o que seja legitim am ente uma questão
de sentim entos cai fora de seus dom ínios.” 26
Observe que toda a extensão dos interesses humanos e
todas as questões que possamos form ular e considerar re­
duzem-se ou à “ ciência” , que é identificada com o conhe­
cimento real, ou então não são objetos do conhecimento,
sendo cada uma dessas coisas uma “ questão de sen ti­
m entos” . O que não se enquadra no âmbito de operação da

204
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

“ ciência” é apenas a expressão de um a em oção. Mas, com


certeza, o fato de que os nossos sentim entos atingem os
nossos ju ízos m orais não sign ifica que não haja pensam entos
envolvidos nesses juízos. O exem plo que Russell dá de um
valor m oral é na verdade um exem plo útil: pois o filósofo
alem ão N ietzsch e de fato sustentou que ter prazer na
crueldade é um sentim ento profundo un iversal e p ortan to
aceitável, enquanto há filósofos do behaviorism o que argu­
m entariam que ju ízos m orais não se prendem a estados
m entais mas som ente a ações. Em outras palavras, são
“ sentim entos” que podem ser - e são - discutidos, e que
surgem de visões mais am plas do mundo, as quais podem
ser articuladas e argu m entadas racionaim ente. A razão
pela qual o positivism o é um a doutrin a assim tão estranha
é porque ele levou m uito tem po para que as pessoas vissem
seu caráter autocontraditório. C onsidere o próprio liv ro de
Russell sobre a história, do qual a citação acima foi tomada.
P o r sua p ró p ria recom endação, não d e ve ría m os le v a r
livros de história a sério (ou, pelo menos, os que não pro­
duzem “ leis” científicas), porque caem fora do escopo da
“ ciência” e são sim plesm ente exercícios em ocionais por
parte do autor!
A tendência para identificar a ciência exclusivam ente com
o conhecimento é sem sentido, até m esmo em relação às
cham adas ciências “ exa ta s” . A s pessoas não adquirem
conhecim ento pela prim eira vez quando com eçam a estudar
ciência. H á todo um histórico an terior em suas vidas, que
lhes deu conhecim ento, im plicitam en te aceito, que possibi­
lita o seu estudo. Já vim os que muitas das pressuposições
da ciência física - inclusive a realidade do mundo externo
e de outras mentes, o valor da investigação intelectual, a
confiabilidade de suas m em órias e dos relatórios de outros
colegas tanto do passado com o do presente, e muitas outras
coisas ainda - tudo isso é tido como conhecimento, e é som ente
ao se tratar isso como sendo conhecimento que se torn a
possível fa ze r qu alqu er ciência. A lé m disso, por red u zir o
conhecim ento cien tífico ao estudo de regularidades obser­
váveis e a sua previsão (e assim colocam entre parênteses

205
A FALÊNCIA DOS DEUSES

a questão da Verdade na ciência), a forte tradição do empi­


rismo, paradoxalmente, converge com filosofias idealísticas
na subversão da objetividade da ciência. Pois se conside­
rarmos termos teóricos (p. ex. gene, neutrino, vírus, buraco
negro, etc.) como m eram ente “ ficções úteis” em nossos
esquemas preditivos, e não nos referindo (de maneira in a ­
dequada que seja) a reais entidades e estados existentes
no mundo, deixamos de explicar o sucesso do empreendi­
m ento científico e a convicção por parte da maioria dos
cientistas atuantes quanto a serem seus modelos e teorias
pertinentes a um mundo real que existe independente­
mente de como eles pensam que seja.
Tal positivismo é agora principalmente de um interesse
histórico, mas ele tem o desconcertante hábito de ainda
aparecer em alguns departamentos universitários, espe­
cialm ente fora da Europa. À luz da cam isa-de-força que
ele arbitrariam ente impôs sobre a filosofia e a teologia da
Europa em nome da ciência por quase meio século, é alta­
mente surpreendente que hoje estamos testemunhando uma
violenta mudança em direção a outros extremos de um su­
permercado cognitivo. (De fato, talvez não seja uma mudança
tão grande assim; pois, como indicado acima, é uma ironia
que um forte empirismo tenha realm ente aberto o caminho
para a nova postura intelectual “ an ti-realista” !) A g ora
somos encorajados a ser cépticos em relação a toda reivin­
dicação de que algo é verdadeiro bem como a toda palavra
referen te a uma ordem m oral objetiva. N ão há verdades
nem valores que sejam válidos para todos os seres humanos.
Não há como, dizem-nos, m ostrar que a teoria de alguém
seja m elhor do que qualquer outra, ou que um conjunto de
crenças morais seja superior a um outro - pois todas essas
dem onstrações dependerão de pressupostos que outras
pessoas não aceitarão. As únicas teorias que sobrevivem são
as que têm um poder social a seu lado.
N o que veio a ser chamado de “forte programa” da so­
ciologia do conhecimento, tal como desenvolvida, por exem ­
plo, pela escola de Edimburgo de B arry Barnes e David Bloor,
todas as distinções en tre “ con h ecim en to” e “ cren ça” ,

206
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

“ verd ad e” e “ falsid ad e” são rem ovidas. A atenção é des­


viada das questões epistem ológicas tradicionais, concer­
nentes a como o conhecimento da realidade é possível, à
questão sociológica de como a “ realidade” é socialmente
construída. O conhecimento agora é o que quer que um
grupo social em particular considere ser conhecimento. A
verdade é o que um determ inado grupo considere ser v e r­
dadeiro, seja o que for. A realidade é o que é refletido pelas
crenças de uma sociedade. Qualquer coisa que saibamos/
acreditemos (essa distinção - que se baseava em pressupostos
“ realistas” , que antes havia, de que a realidade era indepen­
dente dos conceitos humanos - agora já desapareceu) é
socialmente condicionada, e explicável totalmente em te r ­
mos das institu ições sociais em que nos achamos. O
am bicioso escopo desse program a pode ser avaliado pelo
fato de que Barnes e Bloor pensam que até as “ verdades”
da lógica e da m atem ática são matérias da convenção social
e dos costumes. Que base há aí para uma autoridade inte­
lectual? Tudo desce ao nível da persuasão social. Eles
escrevem:

Como um corpo de convenções e de condições esotéricas, o


convincente carácter da lógica, tal como é, deriva de certos
propósitos restritos e do uso costumeiro e institucionalizado. Sua
autoridade é moral e social, e como tal é excelente para a
investigação e explanação sociológicas. Em particular, a
credibilidade de convenções lógicas, assim como as práticas do
dia-a-dia que se desviam delas, serão de carácter inteiramente
local.27

Assim, dentro do espaço de uma geração passamos de uma


concepção predom inantem ente empírica da ciência para uma
concepção anti-realista e sociológica da ciência. A ciência
agora é vista simplesmente como uma entre muitas outras
práticas sociais, em nada diferente da astrologia ou da fei­
tiçaria ou das danças para fazer chover, feitas por alguma
tribo prim itiva. Vamos explorar esta mudança dentro da
filosofia da ciência com um pouco mais de detalhe no próximo
capítulo.

207
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

Em Direção a uma Resposta Cristã


Creio que há muitos aspectos nesses argumentos que não
apenas são historicam ente válidos, mas que são também um
eco do ensino bíblico quanto à natureza do pecado humano
e os modos pelos quais o pecado distorce todas as estruturas
humanas do conhecimento e do relacionamento. Todas as
pressuposições do Iluminismo (por exemplo: a razão humana
não é afetada pela cultura; os homens são bons por natureza
e passíveis de serem aperfeiçoados por m eio do conhecimento
e de condições de vida melhores; a moralidade e um mundo
justo podem ser construídos pela autônoma razão humana;
a ciência nos dá um conhecimento direto e certo do mundo;
etc.) eram profundamente anticristãs, e não é de se adm irar
que aqueles que delas tanto beberam não se sintam agora
envenenados! A ironia é que essas mesmas pressuposições
ainda estão sendo inculcadas na m ente dos estudantes de
ciência por todo o Terceiro Mundo por meio de livros e
programas de televisão que difundem essa filosofia ultrapas­
sada, em nome da “ ciência” e da “ modernidade” .
Assim, conquanto dando boas-vindas à mudança anti-
em pirista no pensamento (pós-modernista) com respeito à
ciência e ao atrasado reconhecimento do cativeiro ideológico
da ciência institucional, os estudantes cristãos (quer do
Ocidente ou do Terceiro Mundo) têm, entretanto, de desmas­
carar alguns dos escoramentos ideológicos que assaltam a
ciência. Devido ao carácter introdutório do presente livro,
posso apenas delinear os pontos básicos quanto a como uma
crítica cristã pode ser feita (embora o capítulo seguinte
também vá considerar alguns dos pontos aqui discutidos):
(a) O ceticismo anticiência de alguns tipos de pós-moder-
nism o é simplesmente a conseqüência lógica de se ter feito
ídolos da ciência e da razão, o que tem moldado a sociedade
ocidental desde o século dezoito. A própria ciência, como
vimos, teve como base a visão judaica e cristã do mundo
como sendo uma criação de Deus. Quando essa visão é
perdida, a ciência torna-se sim plesm ente uma busca do
poder. A razão humana, que teve o propósito de funcionar
em humilde resposta à revelação feita por Deus, perde-se
por completo quando se estabelece por sua própria conta.

208
C IÊ N C IA E A N T IC IÊ N C IA

A razão não pode justificar-se a si mesm a pela razão. Se todo


pensam ento é para ser um pensam ento crítico, então mais
cedo ou mais tarde terem os que pensar criticam ente quanto
ao próprio ato de raciocinar. E se estamos sozinhos no uni­
verso, se somos um m ero subproduto acidental de um pro­
cesso físico impessoal, e se todo o nosso raciocínio tem que
se basear em tal pressuposição, então o nosso raciocínio
tam bém se evapora. Daí a tendência atual de atacar a razão
- o que faz parte do cenário acadêmico e cultural do Ocidente
- é algo bastante com preensível de um ponto de vista cristão.

(b ) E o Criador que garante a objetividade do conheci­


mento. Todas as nossas formulações são, na m elhor das
hipóteses, provisórias e aproximadas; e elas estão sob o sábio
ju íz o e escru tín io dele. É assim p e rfe ita m e n te racional
afirm ar ao mesmo tem po duas coisas: que há um a explicação
objetiva e verdadeira do universo, incluindo-se uma expli­
cação quanto a nós mesmos; e que todas as nossas exp li­
cações são parciais e distorcidas - e, em alguns casos, de
form a correta elas variarão de pessoa a pessoa (pois o que
a pessoa A estaria certa em acreditar pode, em alguns casos,
ser d iferen te do que a pessoa B tam bém corretam ente
estaria acreditando, porque esta tem um diferente relacio­
namento com o acontecim ento ou processo; contudo nenhu­
ma das pessoas corretam en te poderia crer em qualquer
coisa, a diferença sendo um fato objetivo em relação ao
Criador que sustém o fluxo de eventos que form a a nossa
experiência com um ). A lé m disso, o grau de objetividade
possível em qualquer situação variará de um campo a outro,
dependendo da natureza da pesquisa. O cristão tem onde
basear-se para ser tanto humilde como confiante em seu
m apeam ento científico. Filosofias atéias da ciência oscilam
entre um arrogante positivism o e uma contra-reação de um
confuso subjetivismo.
(c) O conteúdo de teorias e idéias tem de ser avaliado
quanto ao seu valor em term os da verdade, independente­
mente do processo efetivo de descoberta ou de formulação.
Este pode ser cultural ou psicologicam ente singular. P or
exem plo, a afirm ação “ a gravitação é uma curvatura do

209
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

espaço-tempo” é verdadeira apenas para judeus alemães por


ter sido formulada pela prim eira vez por um judeu alemão
num certo período da história européia? Sem elhantemente,
quai squer que tenham sido as razões para a aceitação popular
da evolução darwiniana na Inglaterra do século dezenove,
nós ainda precisamos perguntar se a teoria explica as va ri­
ações de espécie e os registros de fósseis de m aneira m elhor
do que qualquer outra teoria atualmente disponível.
(d) H á um corpo bem grande de conhecimento científico
confiável que goza da aceitação universal. Os problem as
de m edição no mundo subm icroscópico não invalid am as
expectativas racionais que tem os com base nesse conheci­
mento. Por exemplo, a cada vez que voamos numa aeronave
estamos confiando nossa vida a falíveis teorias de aerodi­
nâmica e da física do estado sólido. Apesar do fato de que
esse conhecimento não é provável por “ cânones universais
de raciocínio” , nós nele confiamos; e a nossa confiança
justifica-se apenas até o ponto em que não argumentemos
que todas as teorias ou visões da ciência são igualmente
válidas.
(e) A té mesmo na Teoria da Relatividade de Einstein,
embora as medições de eventos dentro do espaço e do tempo
dependam do referencial em relação ao observador, as leis
da física que descrevem esses eventos são em si mesmas
invariáveis - ou seja, verdadeiras para todos os observadores
e todos os referenciais. A velocidade da luz é também uma
constante, não variável. N a verdade Einstein foi levado a
desenvolver essa sua teoria especial partindo de um desejo
de fazer com que as leis eletromagnéticas de James Clerk
M axwell tivessem a mesma forma m atemática sob todos os
referenciais (sendo essa a razão por que o nome dado por
Einstein para essa teoria foi T eoria da Não-Variação!). Assim,
qualquer argumento que faça uso da teoria de Einstein para
argumentar contra a noção de uma verdade absoluta ou
contra valores objetivos é simplesmente um jogo de palavras.
(f> De igual modo na física quântica, embora os valores
de variáveis físicas per si não possam ser “ fixados” à parte
do processo de medição, existe uma descrição objetivam ente

210
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

verdadeira do estado do sistema, conhecido m atem ati­


cam ente como sua função ondulatória: assim realmente tem
importância se (ou se não) se proveu da correta função
ondulatória. H á ainda outros m odos de in terp re ta r a
indeterminância que não caem no subjetivismo. De fato, é
errôneo argumentar que os sentidos humanos é que deter­
m inam o resultado exp erim en ta l ob tid o em m edições
quânticas, pois é o aparelho observador (por ex., a chapa
fotográfica) e o fenômeno sob investigação que constituem
um sistema quântico indivisível. Louis de Broglie, um dos
pioneiros, advertiu contra tais interpretações monísticas:
“ [Tem -se dito quej a física quântica reduz ou dim inui a
região que separa o subjetivo do objetivo, mas há ... um mal
uso da linguagem aqui. Pois na realidade o m eio de obser­
vação claramente pertence ao lado objetivo; e o fato de que
suas reações por parte do mundo exterior, as quais nós
desejam os estudar, não podem ser ignoradas na m icrofí-
sica nem podem abolir, ou m esm o dim in u ir, a trad icion al
distinção entre o subjetivo e o objetivo.” 28
(g ) Os valores humanos não são totalm ente subjetivos.
Eles podem ser objeto de argum entação e podem ser com ­
parados uns com os outros. A o cristão, os valores que são
consistentes com o carácter e com a vontade revelada do
Criador são universal mente aplicáveis. A comunidade cien­
tífica com partilha m uitos valores em comum: por exemplo,
dizer a verdade (no trabalho e nos relatórios de resultados),
o direito de livre expressão e acesso à inform ação, o trabalho
em equipe, a paciência, o debate honesto e mútua crítica,
e assim por diante. Sem pre que esses valores tenham sido
desrespeitados (e isso tem acontecido, com o sabe todo
aqu ele que conhece a história da ciência), o mundo científico
fica p rofu ndam ente chocado. A lém disso, aqueles que
criticam a ciência por se deixar p ren der aos interesses
m ilitares e com erciais e, ao mesmo tempo, negam a obje­
tividade de juízos morais, estão simplesmente m inando a
sua própria crítica. Pois estão fazendo uso de uma argu­
mentação com base moral. Ela presume que o uso da ciência
para reprim ir, tortu rar ou explorar é errado - não apenas
para eles, mas para qualquer pessoa em qualquer lugar.

211
A FALÊNCIA DOS DEUSES

(h ) A sociologia do conhecimento é em si mesma uma


prática social com suas próprias regras socialm ente condi­
cionadas e com seus próprios critérios de explanação. P or
suas próprias suposições ela incita uma explanação socio­
lógica: O que está acontecendo com as condições sociais do
mundo ocidental do final do século vin te que faz com que
muitos de seus intelectuais se inclinem a explanações soci­
ológicas, e não filosóficas? Por que alguns sociólogos acham
plausível afirm ar que a ciência não é a busca da verdade,
mas a vontade de se ter poder?
Que vontade de se ter poder acha-se oculta dentro da
sociologia do conhecimento em si, ao menos em sua forte
versão, quando aspira abraçar todas as disciplinas do conhe­
cimento humano com termos puramente sociológicos? Essas
são questões importantes, e elas nos ameaçam prender-nos
num infinito retrocesso. M esm o que viéssemos a dar respos­
tas racionais a essas perguntas, seríamos confrontados com
a pergunta seguinte sobre por que elas nos parecem racionais
agora, uma vez que elas teriam sido consideradas estranhas
por intelectuais de uma geração atrás. Somos absorvidos
por uma sociologia da sociologia da sociologia do conheci­
mento, ad infinitum. Este é um cruel retrocesso para o
sociólogo do conhecimento, uma vez que o mesmo afirma
fornecer explanações totais de por que as crenças são man­
tidas. Mas tais explanações são apenas o que um determ i­
nado grupo social - ou seja, os sociólogos, condicionados a
argumentar de um certo modo tradicional e específico deles
- considera como válido. A razão por que agem assim pode
ser ela mesma “ explicada” , e essa explicação pode também
ser “ explicada” , e assim por diante...
(i) N inguém negaria que contextos sociais exercem uma
poderosa influência em nossas crenças, mas a questão é
quanto a se eles contam toda a história. Se as nossas crenças
realm ente não abrangem nada, somos confrontados com o
bastante conhecido problema da “ reflexividade” . Toda teoria
que negue a objetividade da verdade não pode ser obje­
tivam en te verdadeira. A única m aneira pela qual os não-
sociólogos podem ser persuadidos a aceitar qualquer coisa

212
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

que os sociólogos digam é se estes últim os estiverem


preparados para afirm ar que certas coisas são verdadeiras,
que certas situações sociais existem no nosso mundo e que
são as causas de falsas crenças... M as tais afirm ações
minariam a tentativa de tirar a atenção sobre o que é o caso
para o que as pessoas consideram que o caso é. Se o forte
p rogram a se dem onstrasse ser v erd a d eiro , ele assim
dem onstraria ser falso. Se a sua “verdade” não é diferente
em nada, em sua lógica, de todas as demais crenças huma­
nas, por que alguém que não pertença àquele grupo p arti­
cular deveria aceitá-la?
Contra Barnes e Boor, não pode ser uma questão pura­
m ente convencional ser indesejável para mim afirm ar e
negar uma afirm ativa ao mesmo tempo. Pois eu estaria
retirando exatam ente aquilo que estaria estabelecendo, e
então não estaria dizendo absolutam ente nada. Além disso,
toda negação ao princípio da não-contradição não pode
deixar de invocar o próprio princípio. Assim a desaprovação
linguística que se acha por detrás do princípio baseia-se em
mais coisas do que numa simples restrição m oral ou social:
pois a única alternativa não é um conjunto de costumes
sociais diferentes, mas um total silêncio. A qu i o forte pro­
grama da sociologia do conhecim ento subverteu-se a si
mesmo. Seu uso da linguagem para comunicar aos outros
pressupõe certos “ postulados” , tais como a necessidade de
coerência e de consistência. Sem isso, a argum entação seria
algo impossível.
Com efeito, qualquer pessoa que deseja argumentar uma
certa posição (e não simplesmente afirm á-la) com o fim de
convencer ou persuadir outros a aceitá-la, não pode evitar
de distinguir entre o que é o que não é o caso. Um a vez que
aceitemos esta distinção, tam bém aceitam os a possibilidade
de que muitas de nossas crenças possam estar erradas.
Assim qualquer argum ento pressupõe que nós (e nossas
crenças) somos mais do que as influências sociais que nos
moldam. Ele leva em conta as distinções entre sujeito e
objeto, entre o que uma pessoa crê e a realidade sobre a
qual aquela crença diz respeito.

2 13
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Ciência Reducionista
Um a outra fon te da desilusão contem porânea quanto à
ciência tem a ver com o seu notório assalto à dignidade
humana. A mentalidade associada com o positivismo tende
a ser reducionista não apenas na m etodologia (pondo à
parte complexos conjuntos de form a a se poder investigar
os componentes mais simples), mas também na filosofia
(im plícita ou explicitam ente negando que o todo é igual à
soma de suas partes). O protesto de Camus (veja a in tro­
dução ao presente capítulo) pela redução deste “ m ara vi­
lhoso e m ulticolorido universo” a uma história de “ átomos
e elétrons” é uma ilustração do modo pelo qual muitas
pessoas têm receio de que tudo que torna a vida boa para
se viver (por exemplo, o senso de que algo é maravilhoso,
o amor humano, a beleza estética, os juízos m orais) seja
totalm ente “ explicado” (e portanto descartado) pela m eto­
dologia analítica da ciência.
Pode-se ver que há uma ampla justificação para esse
receio, tendo como base m uitos casos no jornalism o cien tí­
fico popular. Um bom exem plo disso acha-se no texto da
contracapa do livro best seller de Richard Dawkins de título
The Selfish Gene (O Gene Egoísta). Somos informados, com
uma certeza impressionante, de que “ os nossos genes é que
nos fizeram . N ós, anim ais, existim os para a sua preser­
vação e não somos nada mais do que suas descartáveis
máquinas de sobrevivência” .29 O erro lógico que há num
raciocínio assim tom a a seguinte form a: “ Como, falando
do ponto de vista científico, X pode ser descrito como Y,
X não é nada diferente de Y ” . M uitas vezes este erro acom­
panha um outro erro lógico que é conhecido historicamente
com o a Falácia G enética, que argum enta: “ Se A proveio
de B, então A não é d iferente de B ” . Já vim os essa form a
de argum entação surgindo m uitas vezes em discussões
sobre a evolução biológica.
Tom em os alguns exemplos menos sofisticados. Um físico
legitim am ente pode “ explicar” uma sinfonia de Beethoven
como sendo “ padrões longitudinais de vibrações moleculares
no a r” , mas isso não tem interesse algum para quem não seja

214
CIÊNCIA E ANTIC1ÈNCIA

físico, e especialm ente para um músico ou para quem seja


um estudante de música. De fato, este ú ltim o ad vertirá o
físico de que ele sim plesm ente não entendeu a obra como
um todo. Isso não é, entretanto, um erro do físico, pois a
apreciação da m úsica está fora do escopo da ciência. O
conceito de sinfonia não se encontra em livro algum de física.
Mas, adm itindo-se que a descrição ao nível da ciência esteja
correta, há um nível mais alto de descrição que requ er novos
conceitos para fa zer ju stiça a tudo o que está acontecendo
no auditório. Se, entretanto, o físico fosse negar a explanação
do estudante de música sim plesm ente tomando por base que
os conceitos m usicais não podem ser expressos em term os
da física, então ele estaria com etendo um erro típico do
reducionismo filosófico, que prim a pelo uso da palavra “ so­
m ente” : “ A sinfonia não existe; é somente uma sucessão de
ondas transm itidas pelo ar.”
Um outro exem plo agora vem dos computadores. U m físico
ou um engenheiro pode explicar o que faz um com putador
em term os de transistores e de outros com ponentes do seu
“hardware ” . O matem ático pode dizer que o com putador está
procedendo de um certo modo por ser controlado por um
program a ( “ softw a re” ) que, vam os supor, esteja calculando
o im posto de renda dos empregados de uma companhia. As
leis do im posto de renda que determ inam o resultado a ser
apresentado pelo com putador não podem ser reduzidas a leis
de eletrom agnetism o, as quais determ inam a sua estrutura
eletrônica. A s duas descrições complementam e não propria­
m ente con tradizem uma à outra. Am bas são necessárias,
mas para diferentes propósitos.
A postura metodológica reducionista de que se vale o
cientista é útil e válida, e muitas vezes é um a abordagem
necessária. E a form a norm al de trabalho de um cientista.
Cada aspecto de um com plexo fenôm eno é analisado sepa­
radamente. M as se o físico prosseguir ao ponto de afirm ar
que o que ele diz em seu próprio nível da física exige que
o músico e o m atem ático neguem a validade do que eles
dizem num nível de ordem mais elevado, isso então seria
algo evidentem ente ridículo. F azer isso o tornaria culpado

215
A FALÊNCIA DOS DEUSES

de um reducionismo metafísico : a saber, deixar de perceber


o carácter hierárquico da realidade que requ er descrições
e entendim ento em diversos níveis de significado. M esm o
dentro da ciência, conquanto possa ser válid o red u zir um
todo com plexo em seus com ponentes com o fim de descobrir
mecanismos básicos causais, norm alm ente o que se dá é que
no todo a coisa é m uito mais do que a soma das partes.
Partindo-se para níveis mais altos de com plexidade, novas
propriedades surgem, as quais requerem novos conceitos
explicativos e novas teorias que náo podem ser reduzidos
às explicações típicas dos níveis inferiores. Assim a socio­
logia humana não pode ser reduzida para aplicar-se na
psicologia, esta não pode ser reduzida para aplicar-se na
biologia, esta por sua v e z não pode ser red u zida para
aplicar-se na quím ica, e a quím ica não pode ser reduzida
para aplicar-se à física quântica.
Já vim os que o que é dito pelo teólogo bíblico é uma
explicação da realidade de um nível mais elevado do que o
do cientista natural ao propor o B ig Bang ou a evolução das
espécies. A razão por que dizemos ser “ de um nível mais
elevado” é sim plesm ente porque, da mesma m aneira como
a análise de um musicista pressupõe que a análise ao nível
da física é verdadeira (não haveria música se não houvesse
as vibrações m oleculares no ar), assim tam bém d izer que
somos pessoas criadas à im agem de Deus pressupõe que as
descrições ao nível da biologia são válidas. A nossa perso­
nalidade incorpora-se em estruturas físicas e biológicas, tal
como a sinfonia de B eeth oven está incorporada em com ple­
xos padrões de ondas sonoras no ar, ou com o um program a
lógico de um com putador incorpora-se num circuito in te­
grado dentro do equipam ento eletrônico.
O que aconteceria se o com putador estivesse danificado
ou se o ar tivesse sido esvaziado de um local? O softw are
poderia ainda estar se processando num outro com putador
e a sinfonia poderia estar sendo tocada num ou tro lugar.
De igual modo, mesm o quando o nosso corpo é destruído
na m orte, o nosso C riador pode reincorporar a nossa perso­
nalidade numa nova estrutura à sua escolha. Ele tem liberda­
de para isso, e isso é a base da nossa esperança cristã.

216
CIÊNCIA E ANTICIÊNCIA

H á um relacionamento estreito entre o reducionismo e a


ideologia. As ideologias de sucesso baseiam-se em torno de
uma única e vívida imagem que capta um dos aspectos de
uma verdade mais ampla, mas pelo m artelar sem parar
naquela verdade isso a amplia a uma explicação totalm ente
abrangente da realidade. Exem plos comuns disso (alguns
dos quais foram mencionados em capítulos anteriores) são:
a imagem da luta de classes no marxismo, o desejo sexual
rep rim id o na psicanálise freudiana, o gene egoísta na
sociologia, o reflexo condicionado no behaviorismo, e o patri-
arcado machista no fem inism o. Os fatos que não estejam
de acordo simplesmente são ignorados. Aqueles que são
hipnotizados por essas imagens ficam sob uma compulsão
para reduzirem tudo o mais a seus term os especiais.
H á ainda uma outra tendência entre os cientistas profis­
sionais, e especialmente entre aqueles que se tornaram o
centro da atenção da mídia, a tendência de adotar tanto uma
atitude pessimista para com o restante do pensamento
humano como uma postura de glória para com o seu próprio
trabalho científico. Assim, o astrofísico Steven W einberg
conclui o seu livro best seller sobre a origem do universo,
The First Three Minutes (O s T rês P rim eiros M inutos) pre­
vendo que toda a vida terrena um dia se tornará extinta,
um fato que lhe parece significar que conseqüentemente
todos os valores a que nos apegamos hoje são inválidos e
ilusórios. Mas a única exceção que ele descobre em toda
essa falta de sentido da vida é a sua própria obra: “ Quanto
mais o universo parece ser compreensível, tanto mais ele
parece não ter sentido. M as se não há consolo nos frutos
da nossa pesquisa, há pelo menos algum consolo neste próprio
trabalho. O ser humano não se contenta em consolar-se com
contos de deuses e gigantes, nem em confinar seus pensa­
m en tos aos cuidados de cada d ia na vid a; ele tam bém
fabrica telescópios, satélites e aceleradores, e senta-se
diante de sua escrivaninha por horas sem fim, elaborando
o significado dos dados que foram obtidos. O esforço para
compreender o universo é uma das poucas coisas que eleva
a vida um pouco acima do nível da farsa e lhe dá um pouco
da graça da tragéd ia.” 30

217
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Quais são os pressupostos por detrás dessa prosa um


tanto pretensiosa? P rim eiro , há a equiparação da tem po­
ralidade com a falta de significado. Isso traz à mente as
antigas doutrinas gnósticas do maniqueísmo relativas ao mal
que, segundo elas, há na existência física, as quais foram
refutadas pela igreja dos prim eiros séculos com a sua cele­
bração da criação, da encarnação e da ressurreição. Um livro
não tem significado, simplesmente porque tem uma página
final? Um a peça musical não tem sentido, porque não dura
para sempre? Há algo paradoxal em um autor afirm ar que
não faz sentido um mundo cuja estrutura racional ele tinha
brilhantem ente elucidado aos seus leitores nas páginas
anteriores. Em segundo lugar, é claro que, para Weinberg,
a tarefa de “ entender o universo” basicamente se refere ao
seu campo de estudo, a astrofísica (daí a referência aos
instrumentos da sua profissão). Apenas isso basta para a
humanidade. Mas como pode ser assim? Precisa ser discu­
tido, mas a discussão é que está faltando. Num mundo
totalm ente desprovido de todo valor e de todo significado,
como apenas a astrofísica poderá te r valor e significado?
Seria bem mais racional que W einberg concluísse que o
próprio astrofísico é que tem valor, conferindo ele portanto
valor ao trabalho que ele fazia. Mas isso, é claro, não foi o
que ele disse. Suas palavras permanecem como um monu­
mento, não à ciência, mas a uma ideologia reducionista da
ciência.
H á um outro fato curioso que vale a pena observarmos,
desta vez nas críticas à ciência reducionista feitas por aqueles
que advogam uma síntese da ciência com a antiga gnosis
das tradições místicas hindu, budista ou taoísta. Tais advo­
gados tam bém argumentam que essas visões gnósticas do
mundo têm sido justificadas pelos resultados da física
subatômica. A “ lógica quântica” que se aplica ao micro-
mundo é considerada mais verdadeira do que a “ lógica
clássica” que opera no mundo do dia-a-dia, porque aquela
parece ser consistente com a filosofia budista. Tam bém os
cam pos de e n ergia físicos da te o ria dos quanta id e n tifi­
cam-se com a energia psíquica ou espiritual (ou com a

218
CIÊNC IA E A N TIC IÊ N C IA

c on sciên cia u n iv e r s a l) a re s p e ito do qu e fa la m os m ísticos.


M a s isso é s im p le s m e n te um re d u c io n is m o m e ta fís ic o da
p io r espécie! C om qu e base p od erem os a fir m a r qu e o m u n d o
dos q u a n ta é “ m ais r e a l” do q u e o m aerom u n d o das e x p e ­
riên cias de to d o dia? N ã o será m ais p ro v á v el, com o v im o s
acim a, qu e qu ando nos m ovem os p ara n íveis m ais com p lexos
da rea lid a d e , n ovas “ e n tid a d e s ” ap a re ce m (ta is co m o a
con sciên cia in d iv id u a l), q u e não p od em ser s im p le s m e n te
d escartad as com o “ m en os r e a l” , e m u ito m en os “ ilu s ó r ia s ” ?
A lé m disso, n en h u m v e rd a d e iro h in du , b u d ista ou ta o ís ta
a c e ita rá ja m a is qu e as p e rc e p çõ e s m ística s q u e são aces sív e is
a p en as aos sábios, aos arahats e rish is (e isso d ep ois d e u m a
v id a in te ir a com u m a rig o ro s a d is c ip lin a ) sejam id ê n tic a s
ao s re s u lta d o s d e in v e s tig a ç õ e s r a c io n a is e e m p ír ic a s .
A d m itir isso seria s u b v e rte r as d ecla rações tran scen d en tes
da m a io r ia das tr a d iç õ e s r e lig io s a s c h in es a s e in d ia n a s !
S eria re d u z ir a e x p e riê n c ia m ística à an á lise m a te m á tic a
e à exp e rim e n ta çã o da física. P a rec e , en tã o, qu e a te n ta tiv a
(te n ta d a p o r C a p ra e o u tro s ) de lig a r as r e lig iõ e s da ín d ia
e da C h in a com as ú ltim a s te o ria s em m od a das ciên cias
físicas p od e ser apen as um tir o pela cu latra, fa ze n d o ap ressar
o ec lip s e d a q u ela s p o r estas.
D e ix o a p a la v r a fin a l com D o n a ld M a c K a y , n e u r o fís ic o
e filó s o fo , q u e te m fe it o m a is d o q u e q u a lq u e r o u tr o c ie n ­
tis ta p a ra r e fu t a r os a b s u rd o s d o r e d u c io n is m o :

Mesmo na ciência é à experiência consciente de outros observa­


dores que apelamos para resolver questões de objetividade e de
realidade. Assim a prática da ciência em si é construída sob o
reconhecimento de que as pessoas têm prioridade ontológica
sobre as coisas: nossos com panheiros cientistas sáo seres
conscientes, são sem dúvida alguma bem mais “ reais” do que
qualquer coisa que coletivam ente possamos crer quanto ao
mundo ao nosso redor. Nada poderia ser mais fraudulento do
que a pretensão de que a ciência requer ou justifica uma
ontologia m aterialista na qual a realidade última recai sobre o
que pode ser pesado ou medido, sendo a consciência humana
reduzida a um “ m ero ep ifen ôm en o” . M esm o à parte de
considerações bíblicas, isto significa ir totalm ente contra a
realidade.31

219
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Epílogo
N a abordagem cristã tradicional de questões de fé e ciência,
a visão científica prevalecente do mundo é adm itida e a
ciência em si é considerada como estando firm ada em fu n­
dações in a tacáveis. A ta re fa do ap olo gis ta seria en tã o
m ostrar que as reivindicações do Cristianism o bíblico são
essencial mente compatíveis com a visão científica das coisas.
N este capítulo eu reverti o padrão tradicional, que creio
ter sérias falhas e ser bastante perigoso. Meu propósito teve
dois aspectos: prim eiro, reforçar o argum ento do Capítulo
3 de que o em preendim ento científico em si mesmo surge
da visão do mundo do teísm o bíblico como uma expressão
natural da obediência a Deus; e, o segundo, argum entar que
quando a ciência está divorciada desta visão bíblica do
mundo, ela ou leva para uma idolatria irracional (o que às
vezes é rotulado de “ cientism o” ou “ positivism o” ) ou então
provoca difam ação e rejeição. Esses dois extrem os são
m uito eviden tes em todas as culturas e têm sido in flu en ­
ciados pela difusão da ciência e da tecnologia modernas; e
creio que sua intensidade está em proporção direta com o
declínio da influência bíblica.
Para os cristãos, tanto para os envolvidos com a pesquisa
cien tífica, quanto para os que buscam com preender e
explorar a revelação bíblica e as tradições de sua fé, há um
poderoso senso de responsabilidade final por tudo o que
fazem , responsabilidade perante o Deus da verdade, da
ju stiça e da com paixão, que nos cham ará para darmos
conta do que fizem os com as obras dele, realizadas por ele
em nosso meio.

Notas
* L . K o la k o w s k i, M o d e rn ity on E ndless T r ia l (M o d e r n id a d e n u m P r o c e s s o
d e J u lg a m e n t o S e m F im ) - C h ic a g o : U n iv e r s it y o f C h ic a g o P r e s s ,
1990; p. 73.
* J. N e e d h a m , S cien ce an d C iv iliz a tio n in C h in a ( A C iê n c ia e a C i v i l i ­
z a ç ã o n a C h in a ) - C a m b r id g e : C a m b r id g e U n i v e r s i t y P r e s s , 1 9 5 4,
vo l. 2; p. 581.
3 V e ja ; p. ex ., R . H o o y k a a s , R e lig io n an d the R ise o f M o d e rn S cience
( A R e lig iã o e a O r ig e m d a C iê n c ia M o d e r n a ) - E d im b u r g o : S c o ttis h

220
CIÊN C IA E A N TIC IÊ N C IA

Academic Press, 1972; S. Jaki, Cosmos and a Creator (O Cosmos e


um Criador) - Edimburgo: Scottish Academic Press, 1980; C. A. Russell,
ed, Science and Religious Belief• a Selection o f Recent Historical
Studies (A Ciência e a Crença Religiosa: uma Seleção de Recentes
Estudos Históricos) - Londres: Open University, 1973.
4 Citado em C. A. Russell, Cross-Currents: Interactions Between Science
and Faith (Correntes Cruzadas: Interações entre a Ciência e a Fé) -
Leicester: InterVarsity Press, 1985; pp. 210, 212.
6 Para maiores detalhes veja; p. ex., Russell, ibid. Cap. 9; O. Chadwick,
The Secularization o f the European M ind in the Nineteenth Century
(A Secularização da M ente Européia no Século Dezenove) - Cambridge
University Press, 1975.
6 Russell, op. cit.; p. 195.
7 A. Camus, The Myth o f Sisyphus (O Mito de Sisyphus) - Londres:
Penguin, 1975; p. 25.
8 D. Smail, Illusion and Reality: The Meaning o f Anxiety (A Ilusão e a
Realidade: O Significado da Ansiedade) - Londres: J. M. Dent & Sons,
1984; p. 108.
6 Prof. C. Wickramasinghe, “An Astronom er’s View o f the Universe and
Buddhist Thought” ( “A Visão do Universo de um Astrônomo e o
Pensamento Budista” ) - Ceylon Daily News, 15 de maio de 1992.
10 B. Pascal, Pensées, trad. A.J. Krailsheimer - Londres: Penguin, 1966,
no. 113.
11 T. F. Torrance, Christian Theology o f Scientific Culture (Teologia
Cristã da Cultura Científica) - Nova York: Oxford University Press,
1981; p. 63.
12 A. Einstein, The Evolution o f Physics (A Evolução da Física) - Nova
York: Simon & Shuster, 1938; p. 313.
!a A. J. Leggett, The Problems o f Physics (Os Problemas da Física) -
Oxford: Oxford University Press, 1987; p. 110.
14 T. Ferris, Corning o f Age in the Milky Way (A Via Láctea Tom a-se
Adulta) - Nova York: William M orrow & Co, 1988; p. 385.
18 R. Bube, “ Crises o f Conscience for Christians in Science” (Crises de
Consciência para Cristãos na Ciência) - em Journal o f the American
Scientific Affiliation, março de 1989.
18 Fonte: Human Development Report 1993 (Relatório do Desenvolvi­
mento Humano, 1993) - Programa de Desenvolvimento das Nações
Unidas, Oxford University Press.
17 Fonte: U N IC E F, State o f the World’s Children: 1990 Report (Estado
das Crianças do Mundo: Relatório de 1990) - Oxford University Press.
18 G. Tomson & K. Weerasuriya, “ Codes and Practice: Information in
drug advertisements - an example from Sri Lanka” ( “ Códigos e
Prática: Informação sobre propagandas de drogas - um exemplo do
Sri Lanka” ) - em Sociology, Science & Medicine (Sociologia, Ciência
e Medicina), vol. 31, no. 7, 1990 pp. 737-47.

221
A F ALÊ N C IA DOS DEUSES

19 D. Melrose, Bitter P ills: Medicines and the Th ird World Poor


(Medicamentos e o Pobre do Terceiro Mundo) - Oxfam, 1982.
20 C. Álvares, Science, Development and Violence (Ciência, Desenvolvi­
mento e Violência) - Delhi: Oxford University Press, 1994; p. 43.
21 M. Midgley, Wisdom, Information & Wonder (Sabedoria, Informação
e Admiração) - Londres e Nova York; Routledge, 1991; p. 41.
22 Ibid.; p. 58.
23 F. Capra, The Tum ing Point (O Ponto de Reversão) - Londres:
Fontana, 1988; p. 85.
24 Wickremasinghe, op. cit.
28 P. Forman, “ W eim ar Culture, Causality and Quantum T h eory
1918-1927...” (Cultura de Weimar, Causalidade e a Teoria Quântica
1918-1927...), Hist. Stud. Phys. Sei. 1971, 3, 1-116, reimpresso em
From Darwin to Einstein: Historical Studies on Science & Belief (De
Darwin a Einstein: Estudos Históricos sobre a Ciência e a Crença),
(ed.) C. Chant e J. Fauvel (Reino Unido: Open University, 1990).
26 B. Russell, A History o f Western Philosophy (U m a H istória da
Filosofia Ocidental), 1946, Londres: Routledge, reimpressão, 1991;
p. 788.
27 D. Bloor e B. Barnes, “ Relativism, Rationalism and the Sociology
o f K n o w led ge” ( “ R elativism o, Racionalism o e a Sociologia do
Conhecimento” ) - em M. Hollis e S. Lukes (eds.), Rationality and
Relativism (R acionalidade e R elativism o) - Oxford: Blackw ell,
1985; p. 45.
28 L. de Broglie, Matter and Light (A Matéria e a Luz) - N ova York:
Dover Books, 1946; p. 252.
29 R. Dawkins, The Selfish Gene (O Gene Egoísta) - 1976, Oxford
University Press, ed. em brochura, 1989 (ênfase minha).
30 S. Weinberg, The First Three Minutes: A Modem View o f the Origins
o f the Universe (Os Três Prim eiros Minutos: uma Visão Moderna da
Origem do Universo) - Londres: Flamingo, 2a. ed., 1983; p. 149.
31 D MacKay, “ Brain Science and Human Responsibility” ( “ A Ciência
In teligen te e a Responsabilidade Hum ana” ) - em Behavioural
Sciences: a Christian Perspective (Ciências do Comportamento: uma
Perspectiva Cristã), ed. M. Jeeves, Leicester: InterVarsity Press, 1984;
p. 57 (ênfase minha).

222
7

ídolos da R azão e do Irracion al

“ ... com respeito a todas as posições de opinião que até agora


já aceitei, o melhor que eu posso fazer é que comprometer-me
a livrar-me delas de uma vez por todas, substituindo-as
posteriormente por outras melhores, ou mesmo pelas mesmas,
uma vez que as tenha aferido com o prumo da razão.”
- René Descartes (1596-1650), Discurso Sobre o Método1

Pode-se considerar que grande parte do que foi escrito até


aqui é um com entário sobre o conceito bíblico de pecado.
U m a das m elh ores d efin ições conhecidas do que seja
pecado, recen tem en te form uladas, é a do teólo go a m e ri­
cano R einhold N ieb u h r: “ Pecado é ... o hom em não qu erer
reconhecer a sua condição de criatura e de dependência de
Deus, esforçando-se para ter a sua vida de form a indepen­
dente e segura. E a vã im aginação pela qual o homem
esconde o carácter condicionado, con tigen te e dependente
da sua existência e procura dar-lhe a aparência de uma
realidade incondicionada.” 2
Pecado é, prim ariam ente, um conceito teológico, m uito
mais do que m oral. R efere-se a não reconhecer a verdade
sobre nós mesmos, e não con fiar no Deus vivo, seja por nos
recusarm os a isso, seja por fracassarm os nesse sentido (cf.
Rm 1:21). E le leva ao vão esforço de estabelecer uma base
independente e segura para a vida (o que cham am os de
“ form ação de ídolos” ). Essa busca ilusória por p arte de uma
geração apenas deixa as gerações seguintes desiludidas.
Estas, como que presas numa armadilha, por estarem em
formações que negam a Deus de form a social, cultural e

223
A FALÊNCIA DOS DEUSES

também intelectual, apenas perpetuam a idolatria de seus


antecessores. Assim o pecado deixa um rastro de mal após si.
Os efeitos do pecado são vistos em todas as áreas da
atividade humana, da religiosa à econômica. Já exploram os
um pouco a respeito disso em capítulos precedentes e
hum ildem ente reconhecemos o desafio que então tem sido
lançado ao discipulado cristão nestes últim os anos. O pecado
atinge todas as culturas humanas, tanto tradicionais como
modernas. Ele corporifica-se em m últiplas form as de ido­
latria, fora e dentro da Igreja Cristã. Mas como o presente
livro tem a ver com os ídolos da m odernidade, pareceu-nos
necessário aprofundarmo-nos um pouco mais na idolatria
da ciência e na reação que tem sido gerada desde os anos
da década de 1960. N este capítulo continuaremos com isso.
Mas, primeiro, para vermos como o pecado tem uma expres­
são filosófica em sua busca por “ uma base independente e
segura” , precisamos de uma rápida orientação histórica.

Construindo sobre Areia Movediça


O movimento conhecido como o Ilum inism o europeu do
século dezoito contribuiu significativam ente para a cons­
ciência do que caracteriza a cultura moderna. E ra complexo,
mas um de seus traços m arcantes foi a ten tativa de em an­
cipar a razão humana da autoridade de toda tradição e de
todo costume. Im m anuel K ant (1724-1804) resum iu o
tema central do Iluminismo em sua famosa frase “ ousar
saber” . Era uma chamada para se te r a coragem de pensar
por si mesmo, para se ousar questionar até mesmo as mais
sagradas tradições. Em seu famoso ensaio, O Que É o
Ilum inism o ?, ele sugeriu a seguinte definição:

O Iluminismo é a libertação humana de sua auto-imposta tutela.


A tutela é a condição humana de não se poder fazer uso do
entendimento sem a direção dada por uma outra pessoa. “ Auto-
imposta” significa que a causa dessa tutela não está na falta de
razão, mas na falta de determinação e de coragem para usá-la
sem o auxílio de ninguém. S a p e r e a u d e ! Tenha a coragem de
fazer uso da sua própria razão! Este é o lema do Iluminismo.3

2 24
ÍDOLOS DA R A Z Ã O E DO IRRACIONAL

Observe a im portante frase “ sem a direção dada por uma


outra pessoa” . Para Kant e outros advogados do Iluminismo,
suas filosofias propunham-se fazer com que houvesse a
libertação humana. O homem individualm ente era autô­
nomo, responsável a ninguém mais exceto aos ditam es da
sua própria razão e da sua própria consciência. Ele pensava
por si mesmo e legislava por si mesmo. T a l objetivo p er­
manece como sendo a atração central da cultura secular
moderna. Toda tentativa de viv er a fé cristã ê de dar um
testemunho m issionário dentro da visão m oderna do mundo
necessariamente tem de enfren tar o questionam ento da
tradição e da autoridade que é feito pelo Iluminismo.
U m dos grandes precursores do Ilum inism o foi o francês
René Descartes. Em bora ele tenha m orrido há mais de um
século antes do apogeu do Ilum inism o francês, sua in flu ­
ência naquela época foi considerável. Descartes acreditava
possuir um N ovo M étodo que, num lance só, varreria todo
o pó acumulado durante vários séculos, e proporcionaria um
novo começo para o pensam ento humano. Interessante foi
que ele foi com pelido a desenvolver e a publicar o seu m étodo
pelas autoridades da Igreja Católica Rom ana de Paris, preo­
cupadas que estavam com a crescente onda de cepticismo
sobre o conhecim ento do mundo físico e com o ateísm o que
vinha ju n to com tal cepticismo. Os dogmas científicos o fi­
ciais da Igreja, que os cépticos contestavam, achavam-se na
física de Aristóteles. Assim Descartes foi arregim entado
como um aliado para com bater a posição anti-Aristolélica
(e, portanto, anticlerieal) da época. Os próprios objetivos
de Descartes perm anecem ainda sob certa controvérsia.
O projeto de Descartes começa com um cepticismo para
com qualquer reivindicação de conhecimento. Ele resolve
tratar como falso qualquer crença passível de ser posta em
dúvida: “ Achei que teria que ... rejeitar como sendo total­
m ente falsa qualquer coisa sobre a qual pairasse a menor
razão para dúvida, de form a a ver se permaneceria, depois
disso, algum a coisa em meu pensam ento inteiram ente à
prova de dúvidas.” 4 Toda a herança social que foi recebida
por nós (o que ele chamou de “ costumes e exem plos” ), inclu­
indo o conhecimento de outras mentes, de Deus e do mundo

225
A FALÊNCIA DOS DEUSES

natural, não pode ser uma base adequada para o verdadeiro


conhecimento, pois tudo isso não está fora do alcance da
dúvida. A única coisa, para a qual não haveria dúvida,
entretanto, é a realidade da pessoa que duvida. O conhe­
cim en to da e x istên cia do p ró p rio ser ou alm a é en tã o a
idéia mais clara e mais fundam ental que temos: “ Penso,
portanto existo” .
A tarefa seguinte é então ligar o ser que duvida, e que é
conhecido, com outros objetos que há no mundo, perm itindo
assim que eles se tornem conhecidos também. “ Prosseguirei
sem pre p or este cam in h o a té qu e en con tre algo para o
qual não haja d úvida, ou, pelo m enos, se nada m ais eu
puder fazer, até que tenha aprendido com certeza que não
há nada im une à dúvida neste mundo.” 6 Dessa m aneira
Descartes passou a dem onstrar, passo a passo, a existência
de Deus (um Ser Supremo, onipotente e perfeitam ente bom )
e, da existência de Deus, a existência de um mundo eterno.
Observe-se que Deus, nesse sistema, fazia o papel de um
avalista, servindo para garantir a legitim idade de outros
passos no proced im en to adotado. T o d a a esperança de
Descartes estava em que, sem elhante à m atem ática, um
sistem a un iversal de con hecim ento à p rova de dúvidas
seria construído com base nas “ idéias claras e específicas”
que eram convincentes por natureza. Assim ele é um típico
racionalista, alguém que acredita que a razão humana é a
prim eira fonte do nosso conhecimento da realidade.
A abordagem do conhecimento feita pelo empirismo que
surgiu no século dezoito na Inglaterra foi um refinam ento
do m odelo cartesiano (palavra esta que se refere a Descartes).
Aqu i as idéias “ claras e específicas” de Descartes, que eram
a base de todo o conhecim ento, vieram a ser substituídas
por entidades novas e estranhas, chamadas “ dados dos
sentidos” , as quais eram tidas como sendo a m atéria-prim a
da experiência. Tod as as idéias humanas são construções
a p artir dos mesm os dados. A experiência sensorial então
tornou-se a base para o conhecimento e, nas formas mais
dogmáticas do empirismo, ela passou a ser o único árbitro
de toda reivindicação quanto a qualquer conhecimento. Mas
isso im ediatam ente caiu numa situação difícil, pois, como

226
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

David H um e logo demonstrou no projeto do Ilum inism o, a


base sobre a qual esses dados dos sentidos eram ajuntados
era em si mesma problem ática, de form a a não se ter de fato
uma base segura para o conhecimento. Os ácidos da dúvida
que Descartes dragou vieram a transform ar-se em solventes
corrosivos de todo sistema erigido para tom ar o lugar das
fontes tradicionais de conhecimento. Mas, a despeito das
advertências de H um e, o ideal persistiu: o conhecim ento
visto como impessoal, separado e livre da dúvida. Fé foi o
de que as pessoas se valeram quando da indisponibilidade
do conhecimento.
Este m odelo de conhecim ento tem se dem onstrado ser
uma busca ilusória e até m esm o con traditória. P o r um lado
ele procurou ex tra ir conhecim ento dos recessos interiores
do ser da próp ria pessoa - seja com o “ dados dos sentidos”
ou com o “ idéias claras e convin cen tes” - e, por outro,
procurou ter esse conhecim ento referindo-se a um mundo
real além do ser pessoal. A im agem do pensador com o um
astronauta solitário numa cabine herm eticam ente fechada,
com unicando-se com o m undo e xterior apenas por m eio de
vários m onitores e controles à sua fren te é, afinal, uma
im agem estéril. Com que base pode-se aceitar o que aparece
nas telas desses m onitores, especialm ente se o astronauta
nunca esteve do lado de fora da cabine para constatar se
de fa to há algo lá?
Logicam ente é im possível duvidar de todas as próprias
idéias ao mesmo tempo. Sem pre que duvidamos de uma
verdade, é com base em outras verdades das quais, naquele
m omento, não estamos duvidando. P or exem plo, o pensa­
m ento que Descartes considerou como básico - a realidade
do “ e u ” que pensa - não é absolutam ente básico. N ão
teríam os conceito algum do “ eu” se não pensássemos a seu
respeito como sendo participante de um mundo em que há
outros. E, como W ittgen stein e outros filósofos linguísticos
posteriores destacaram, tais conceitos pressupõem o uso da
linguagem , e a lin gu agem só pode h aver se há um a socie­
dade. N ão podemos falar “ eu” exceto numa linguagem que
pressupõe a existência de outros que podem comunicar-se
tal como nós mesmos e que vivem num mundo de todos,

227
A FALÊNCIA DOS DEUSES

o qual pode ser referido em nossa fala. A linguagem do


a u tocon h ecim en to faz sen tid o apenas porqu e ela já é
parte do que W ittgenstein chamou de “ uma form a de vida” :
compreendendo práticas sociais, conceitos usuais de conhe­
cimento e o que constitui padrões de uma aceitável “ evidên­
cia” , e assim por diante.
U m outro assalto poderoso (se não por fim tam bém
autodestruidor) ao projeto de Descartes e K ant originou-se
das idéias da escola de psicanálise de Freud, as quais consi­
deramos brevem ente no capítulo dois. Pois, como Ernest
Gellner observa de form a um tanto pungente: “ O conceito
do “ inconsciente” desvaloriza tanto a autonomia individual
e toda compulsão interior racional, como também a autori­
dade da evidência. A pessoa não pode nunca dizer que a sua
convicção interior não é a voz do Enganador, nem pode ter
certeza, por si só, quanto à evidência de um real com porta­
m ento não ser meram ente “ superficial” e um engano inte­
ligente. Somente o Profissional licenciado (na m elhor das
hipóteses) pode-lhe dizer e, ex hypothesi, não há apelo algum
con tra o seu vered icto. N ad a p od eria ser m enos c a rte ­
siano em espírito do que tal auto-rendição e salto de fé .” 6
O erro fundamental, que é a base tanto do empreendimento
cartesiano como do empirismo, veio a ser conhecido como
fundamentalismo. O projeto do fundamentalismo concentra-
se na noção de que existe um corpo de proposições funda­
mentais (ou básicas), as quais são absolutamente certas. A
verdade delas é inquestionável e tem validade própria: o
simples pensar nelas torna sua verdade aparente. (Versões
atuais mais brandas falariam não de uma certeza, mas de
uma “ alta probabilidade intrín seca” .) Proposições mais
complexas (não básicas), entretanto, necessitam de ju stifi­
cação: especificamente, precisam ser inferidas dessas propo­
sições básicas, tanto através do raciocínio dedutivo como do
indutivo.
Esta visão do conhecimento tem se retraído filosofica­
m ente durante a segunda metade do século vinte, e em seu
lugar têm vindo toda espécie de relativism o epistemológico.
As versões radicais deste último, como observamos no capí­
tulo preced en te, tendem a ser au tocon tra d itória s. P a ra

228
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

evitar esses extremos, é im portante notar o que uma crítica


válida, não relativista, do fundamentalismo deixa de dizer.
Ela deixa de dizer que o nosso conhecimento não tem funda­
mentos, que não há base racional para acreditar em qual­
quer coisa, que todos nós estamos aprisionados em nossos
sistemas lingüísticos e culturais, que as verdades mudam o
tempo todo e que diferem de pessoa a pessoa e de sociedade
a sociedade. O que ele realm ente diz é que a im agem do
pensador humano dada pelo m odelo do fundamentalismo é
falsa e desencaminhadora: falsa porque nenhum sistema de
pensamento pode ser validado por princípios que sejam por
si mesmos evidentes; e desencaminhadora porque o pensa­
mento humano não se vale, na realidade, de uma ordenação
de idéias de crescente certeza num tipo de arranjo unidi­
mensional.
A crença do Iluminismo, de que existe um ponto estratégico
neutro e universal, independente da cultura e da tradição,
a partir do qual a racionalidade (ou a não-racionalidade) de
qualquer tradição pode ser avaliada, é uma crença ingênua.
Ela é apenas um pouco menos ingênua do que a visão deles
que tinha como certo que o Ilum inism o em si é que veio
ocupar tal posição primordial. Os pensadores do Iluminismo
deixaram de ver que, tal como todos nós também, eles
mesmos estavam cultural mente condicionados, alcançados
pelo fluxo da existência histórica. Além disso, eles mesmos
não se encontravam unidos em seus projetos como norm al­
mente se supõe. Como Alasdair M aclntyre o expressa:

Tan to os pensadores do Ilum inism o como seus sucessores


demonstraram ser incapazes de entrar em acordo quanto ao que
precisamente seriam aqueles princípios, que não seriam rejeitados
por nenhuma pessoa racional. Um tipo de resposta foi dado pelos
autores da E n c y c lo p e d ie , um outro por Rousseau, um terceiro
por Bentham, um quarto por Kant, um quinto pelos filósofos
escoceses do senso comum e por seus discípulos franceses e
americanos. Nem ainda a história subseqüente diminuiu a
extensão de tais desacordos. Conseqüentemente, o legado do
Iluminismo tem sido a provisão da idéia de uma justificação
racional, a qual demonstrou que é impossível ser atingida.7

229
A FALÊNCIA DOS DEUSES

A Perspectiva Posterior a Kuhn


O sonho fundam entalista reforçou muitas das discussões
filosóficas sobre a fon te da ciência nos anos da m etade do
século vinte. E le ainda sobrevive em enfoques e relatos
populares da ciência, mas recebeu um golpe sério dado por
um livro do am ericano Thom as Kuhn, que discorreu sobre
como ocorreram mudanças na ciência.8 A obra de Kuhn tem
sido a mais influente nas recentes discussões da ciência, e
suas idéias têm provocado poderosas correntes em outros
ramos do ensino acadêmico. Seu trabalho pode ser m elhor
apreciado como sendo um ataque à m itologia individualista
que perm eia a m aioria dos relatos científicos. De acordo com
essa m itologia, o cientista é um herói solitário que ten ta
ob ter algum sign ificado a p a rtir dos dados que en con tra
pela construção de teorias. N o antigo modelo “ indu tivo” , o
inqu iridor p rim eiro reúne os dados e depois extrai dos
mesmos um a teoria. N a escola anti-indutiva de pensam ento
de Popper (associada com o em inente Sir K arl P op p er)9,
parte-se prim eiro de uma teoria, que é um ato da im aginação
criativa, e então ousadam ente se põe à busca de dados
empíricos que a pode detonar por completo. N este últim o
modelo, a ciência é vista não como a geradora de verdades
confiáveis, mas a confiável eliminadora de falsidades.
Isso, porém , com o m uitos críticos então apontaram ,
levou a um a visão da ativid ad e cie n tífic a que corre contra
o m odo p elo qual a ciência de fa to era en ten did a pela
sociedade e tam bém por m uitas com unidades cien tíficas
- ou seja, com o um corpo de crenças rela tiv a m e n te p ró xi­
mas da verdade de m odo a garan tir o risco de vidas e de
gran des fortu n as nacionais. P op p er procurou te r ê x ito
onde D escartes e K a n t tinham falhado: na ju s tific a ç ã o da
racionalidade da ciência, no resgate dela de um a opin ião
pública m eram en te inspirada pela cultura. M as a sua
“ falsificação por exem plos c on trá rio s” tem o irôn ico e fe ito
de su b verter a nossa confiança na aplicação p rática de
idéias cien tíficas bem estabelecidas, pois ta l confiança
agora parece ser irracional.
A lgo mais sério é concernente a ser ele historicam ente
convincente quanto à sua descrição da ciência. Os cientistas

230
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

apegam-se tenazm ente a suas teorias; e se seguissem a


corajosa proposta de Popper de “ conjectura e refutação” e
abandonassem uma teoria que fosse rica em poder explana-
tório simplesmente por ela conflitar com algumas poucas
observações, muitas teorias famosas nunca teriam nem
mesmo nascido. A visão falsifícadora da ciência que Popper
tinha parece ser muito ingênua. Ela deixa de apreciar a
complexidade da relação entre as teorias e a evidência
experim ental. Mas, seja como for, o único ponto que quero
salientar diante de meu presente propósito é que tanto os
partidários do raciocínio indutivo como os partidários de
Popper permaneceram na tradição cartesiana de pressupor
que existe um processo correto, racional e cogn itivo que
leva a um conhecimento confiável quando aplicado indi­
vidualm en te por qualquer pesquisador. O cam inho que
principia na ignorância não jaz nem numa esfera trans­
cendental nem no investigador humano, mas sim na im pla­
cável aplicação de um correto método epistemológieo.
Kuhn demoliu tudo isso. E le destacou que os cientistas
vivem em comunidades. Eles pensam, na m aioria das vezes,
em termos de um conjunto inter-relacionado de conceitos,
modelos e exemplos históricos do que é tido como um “ bom
trabalho” , e de provas que atendem a determinados padrões,
e assim por diante, tudo isso constituindo um paradigma
científico. Tal paradigma é mais im portante do que uma mera
teoria, pois gera programas de pesquisa que podem desen­
v o lv e r a teoria em várias direções. O paradigm a introdu z
uma m edida de ordem no universo de “ dados” que é
m ultiform e, caótico e am bíguo. E le assim torn a possível
um a pesquisa ordenada. Esses paradigm as d esen vo lve­
ram -se h is to ric a m e n te , e um tr e in a m e n to c ie n tífic o
e n volve receber os padrões prevalecentes na sociedade
científica do campo específico em que a pessoa esteja atu­
ando em seu estudo. Sob as condições do que Kuhn chamou
de “ ciência n orm al” , os membros de uma comunidade de
pesquisa não questionam o paradigm a prevalecente. Eles
permanecem em lealdade para com tal paradigma, in ter­
pretam tudo segundo ele, e procuram estendê-lo através da

231
A FALÊNCIA DOS DEUSES

acomodação de um crescente número de dados dentro de


seu poder explanatório.
Mas o paradigma não é imortal. Chega a hora em que ele
sofre uma crise quando mais e mais dados acumulam-se,
por não se enquadrarem dentro do paradigma. Contudo, a
menos que haja um sério rival - isto é, um novo paradigma
- à vista, a ciência continua norm alm ente. “ Revoluções” na
ciência, tais como as que ocorreram com Copérnico, com
Darwin e com Einstein, introduzem novos paradigmas: os
velhos “ fatos” agora são vistos sob uma nova perspectiva e
novos dados surgem como “ fatos” novos: “ O historiador da
ciência pode ser tentado a admirar-se, dizendo que quando
os paradigmas mudam, o mundo em si muda-se com eles.
Conduzidos por um novo paradigma, os cientistas adotam
novos instrumentos e observam em novos locais. Mais im ­
portante, porém, é que durante as revoluções os cientistas
vêem coisas novas e diferentes ao fazerem suas observações,
com instrumentos seus conhecidos, em locais que eles já
haviam examinado antes.” 10
De acordo com o relato de Kuhn, em vez de as observações
determinarem a teoria, a teoria determ ina as observações.
Como não há observações “ neutras em relação a uma
teoria” , ele parece estar avançando um pouco mais do que
simplesmente dizer que um novo paradigma demonstra-nos
coisas que antes não notávamos. O mundo é na verdade
diferente diante de diferentes paradigmas. “ Num sentido
que não sei como explicar” - escreve ele - “ os proponentes
de paradigmas alternativos praticam suas atividades em
mundos d iferen tes.” 11 P o r exem plo, os cientistas antes
acreditavam numa substância chamada flogisto (que era
em itida durante a combustão), mas agora eles não crêem
nela. O conceito de “ massa” na física de N ew ton tem um
significado bastante diferente do conceito de “ massa” na
física de Einstein. Embora a mesma palavra continua a ser
usada, o seu significado é dado pelo paradigma dentro do qual
ela ocorre. Como o mundo é sempre visto apenas segundo
um paradigma, há um problem a em relação a como aqueles
que estão trabalhando segundo d iferen tes paradigm as
poderão discutir en tre si suas idéias, uns com os outros.

232
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

Se as teorias científicas não podem ser medidas contra nada


externo a elas mesmas, elas não podem ser julgadas corretas
ou erradas, verdadeiras ou falsas. N o estágio “ revolucio­
nário” de uma dada disciplina científica, paradigmas em
conflito são estritam en te incomensuráveis. N ão há um
campo neutro de que se possa valer para conciliá-los.
P or que, então, os cientistas têm que mudar o paradigma?
E im portante lem brar que Kuhn não é propriam ente um
cientista nem um filósofo, mas é um historiador da ciência.
Ele reconhece o fato das mudanças que ocorrem na ciência,
mas enfatiza que o seu interesse é principalmente no tipo
de comunidade que surge depois de um tempo de crise. Ele
destaca que um cientista abraça um novo paradigma “ por
muitas razões de todo tipo, e geralm ente por várias razões
de uma v e z” , mas ele se vê impossibilitado de dar uma
explicação racionai dessa mudança. N ão pode ser em virtude
de um apeio à experiência, uma vez que a experiência é
governada pelo paradigma. N em pode ser pela descoberta de
um erro fatal, já que o que se conta como erro é também
controlado pelo paradigma. Ele refere-se a “ idiossincrasias
de autobiografia e de personalidade” e até mesmo à “ na­
cionalidade ou reputação anterior do inovador e de seus
m estres” .12 Aqueles que resistem ao novo paradigm a não
podem ser tachados de incorrerem em erro, e ele diz com
respeito ao historiador da ciência: “ Quando muito, ele pode
querer dizer que quem continua a resistir, depois de toda
a sua profissão se ter mudado, deixou, ipso facto , de ser
cientista.” 13 Um a vez que não há um padrão superior do
que a aprovação fe ita pela com unidade cien tífica,14 ele
argum enta que talvez “ tenhamos de abandonar a noção,
explícita ou implícita, de que as mudanças de paradigma
levam os cientistas e os seus discípulos para estarem cada
vez mais próximos da verdade.” 15
Assim, a filosofia da ciência, que tradicionalmente buscou
dar uma justificação racional à atividade científica e à recons­
trução racional do modo pelo qual as teorias dependem
logicamente umas das outras, agora foi absorvida pela his­
tó ria e pela sociologia. A ciência não é mais aquilo que é
gerado de form a im ponente pela razão humana em inte-

233
A FALÊNCIA DOS DEUSES

raçáo com um a realidade objetiva, mas é sim plesm ente o


que uma determ inada comunidade histórica em particular
passa a fazer. P o r ter o foco na comunidade científica, Kuhn
depreende o modo pelo qual norm as e padrões se fazem
cu m p rir por essa com unidade. Seus p rim e iro s crítico s
foram rápidos em apontar, en tretan to, que em bora ele
tivesse dado uma explicação razoável do desacordo entre os
cientistas, ele não tinha como explicar o constante surgi*
m ento de um consenso na ciência. Pois, se as teorias cien­
tíficas não podem ser com paradas, então com o explicar a
velocidade com que a oposição é vencida diante de um novo
parad igm a? T en d o-se apenas con sid erações e xtraeien -
tíficas, isso não é suficiente para explicar com o a com uni­
dade científica é capaz de resolver seus desacordos de form a
tão rápida.
Em seus últimos escritos, Kuhn distanciou-se do relativism o
livre que outros extraíram da sua posição.16 Ele abrandou
o seu conceito de “ incom ensurabilidade” e repudiou as
acusações de que ele tin h a feito a prática da ciência irra ­
cional. Ele esclareceu a sua posição como sendo uma rejeição
a uma inferência dirigida por regras no que se referia a
escolher en tre paradigm as alternativos. “ N um debate pela
escolha de uma teoria, nenhuma parte tem acesso a um
argum ento que se pareça com uma prova em m atem ática
form al ou em lógica.” 17 O consenso é possível porque há
valores compartilhados e critérios da teoria da escolha, mas
diferentes cientistas darão pesos diferentes aos critérios
utilizados e tam bém d iferirão no modo de in terpretar a
aplicação dos critérios e assim chegarão a diferen tes con­
clusões. A avaliação de teorias é mais como a racionalidade
de juízos de valor em outras áreas da vida do que a racio­
nalidade de regras. Pode-se aceitar isso de coração, e ao
mesmo tem po ainda estar expressando a crítica de que a
tendência de K uhn de falar de d iferentes “ m undos” para
diferen tes paradigm as cai num a incoerência, uma vez que
é d ifícil falar de que há realidades d iferentes sem tornar-
se vuln erável à acusação de que se esteja de algum modo
falando sobre a realidade.

23 4
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

Permanecendo por enquanto com Kuhn, a racionalidade


que ele atribui à ciência é ainda estritam ente limitada. Ele
ainda se acha relutante a usar o conceito de “ verdade” . Assim
nâo podemos falar de uma teoria como mais “ verdadeira”
do que outra, nem podemos dizer que a prática e as teorias
da ciência são mais “ verdadeiras” do que, digamos, as de
um astrólogo ou de um curandeiro. Assim ele é incapaz de
explicar o sucesso da ciência, e o notável poder da ciência
m oderna de prever e m anipular coisas. T od a teoria da
mudança científica com certeza tem de explicar o progresso
científico - por que a comunidade cientifica considera a
Relatividade Especial de Einstein, por exemplo, ser uma
explicação da realidade mais verdadeira do que a mecânica
de N ew ton. Kuhn de algum modo concorda com a firm e
crença nesse progresso, ao mesmo tempo em que permanece
dentro de uma estrutura puramente sociológica de expla­
nação. Quanto a ser isso logicamente defensável, trata-se de
algo que fica, com toda seriedade, aberto a se questionar.
O anti-empirismo de Kuhn enquadrou-se no modismo da
época. Suas tendências anti-realistas encontram a sua
culm inação lógica na obra de Paul Feyeraben d. P ara
Feyerabend, os cientistas são “ vendedores de idéias e de
engenhocas, eles não são juízes da verdade e da falsidade” .18
Ele faz uma abordagem do tipo “ vale tudo” a todas as a fir­
mativas, a todos os procedimentos, inferências e conclusões.
Um a vez que as bases do conhecim ento em pírico tenham
sido postas de lado, e não havendo nada para ocupar o seu
lugar, não mais falamos da realidade, mas das crenças das
pessoas quanto à realidade, passando da verdade para as
coisas que são consideradas verdadeiras. Para Feyerabend,
o que conta como “ realidade” depende da nossa escolha:
“ Adm itim os que nossas atividades epistemológieas possam
ter uma decisiva influência até mesmo sobre a mais sórdida
peça do equipamento cosmológico - elas podem fazer com
que os deuses desapareçam , substituindo-os por m ontes
de átomos num espaço vazio.” 19 Em outro lugar ele escreve:
“ Existe ... uma pluralidade de padrões, assim como há uma
pluralidade de indivíduos. Num a sociedade livre, entretanto,

235
A FALÊNCIA DOS DEUSES

um cidadão usará os padrões aos quais ele pertence: os de


alguma tribo indígena, se a ela pertencer; os padrões da igreja
protestante fundamentalista, se for fundam entalista.” 20
Vim os no capítulo anterior como os ataques relativistas
sobre o conceito da verdade objetiva acabam sendo incoe­
rentes, se não realm ente contraditórios. Feyerabend está
afirmando como verdadeira a proposição de que não há o
que seja a verdade. Ele lançou um ataque vituperioso em
Popper e em todos os defensores do “ conhecimento objetivo” ,
um ataque do qual sua justificação tornou-se duvidosa pelas
próprias declarações de Feyerabend! Mas isso parece que
ele não notou, por estar tão intoxicado por sua recém-des-
coberta liberdade cognitiva, uma liberdade que aparente­
m ente ele nega àqueles que o criticam. Inconsistências
semelhantes são encontradas entre os eruditos literários
que argumentam que “ vale tudo” quando se trata de en­
tender um texto, uma vez que os sentidos são criados pelos
leitores, mas são eles que com fúria acusam os críticos
literários de terem feito “ distorções” quando seus próprios
textos é que foram apreciados!
Um a coisa é dizer que teorias ou paradigmas possam
governar a forma de como se vê e se experim enta o mundo,
mas uma outra coisa bem diferente é tornar impossível que
de agora em diante o pensamento humano e a linguagem se
refiram a um mundo real. U m a coisa é adm itir que a análise
do conceito de verdade tem sido problemática, mas é outra
coisa bem diferente considerá-la como “ ilusória” e descartá-
la de todo como um objetivo humano. Um a coisa é questionar
se a experiência é a única fonte do conhecimento, e outra
afirm ar que o conhecimento e os valores morais são apenas
uma questão de convenção social, tal como ter a mão de
direção do lado direito ou esquerdo da estrada. Um a coisa
é argumentar em favor de uma oportunidade de escolha entre
diferentes tradições e teorias como uma boa estratégia para
a descoberta da verdade, e bem outra é negar que qualquer
visão possa ser melhor do que outra, ou que certas razões
sejam mais válidas do que outras.

236
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

Conhecimento Pessoal
O pensamento de Michael Polanyi (1891-1976) sopra como
uma brisa refrescante sobre os pântanos estagnados da fi­
losofia da ciência contemporânea. Polanyi, diferentem ente
de todos os demais filósofos que foram mencionados ante­
riormente, era um pesquisador químico que exercia essa
atividade e ao mesmo tempo era filósofo e historiador da
ciência. Ele procurou compreender a ciência da perspectiva
de um cientista que praticava a ciência, e não a partir do
produto acabado do “ conhecimento científico” . Seu objetivo
foi o de reform ar a base epistemológica da ciência, resolver
o dilema proposto pela separação entre o “ objetivo” e o
“ subjetivo” como dois pólos do conhecimento, que ele acre­
ditava ter deixado uma marca desastrosa na sociedade
moderna. E le chamou sua abordagem de uma “ filosofia
pós-crítica” , porque ela rejeita o falso entendim ento do que
seja a objetividade científica, que tem dominado a cultura
ocidental desde o Iluminismo. Mas ele faz isso de um modo
que resgata a ciência do atoleiro do relativismo.
Polanyi é devedor a outros cientistas, tais como Einstein,
que enfatizaram a lacuna lógica que existe entre idéias
científicas e uma dada experiência. Teorias são criações da
mente humana, são conjecturas muito bem imaginadas que
não podem ser captadas por um determ inado procedimento
sistematicamente aplicado. Embora dados empíricos possam
dar indicações de como uma teoria deveria ser, esta não pode
ser deduzida a partir daqueles. Nisso as idéias dele lembram
a teoria de Popper. Mas não temos de saltar para a conclusão
de que os conceitos e teorias da ciência são puramente entidades
subjetivas na mente humana. Eles derivam da estrutura
verdadeira e racional do mundo real, estrutura essa que eles
também revelam. Eles são formados sob o impacto que o
mundo faz em nossa m ente ao procurarmos humildemente
compreendê-lo e refletir a sua racionalidade. Este é um tema
que discutimos no Capítulo 6. E le nos conduz ao conceito
de Polanyi quanto à objetividade científica, por reconhecer:

... que a descoberta da verdade objetiva consiste em entender


que há uma racionalidade que comanda o nosso respeito e que

237
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

desperta a nossa admiração contemplativa; que tal descoberta,


que usa também a experiência dada pelos nossos sentidos como
indícios, transcende a experiência por abraçar a visão de uma
realidade além da impressão de nossos sentimentos, uma visão
que fala por si mesma ao nos guiar para uma compreensão ainda
mais profunda da realidade...21

P olan yi expressa num linguajar mais sofisticado o que A gos­


tinho afirm ou em credo ut intelligam : creio para que possa
compreender. N ão há conhecim ento sem confiar em algum a
coisa, e a m aneira de se chegar ao conhecim ento é por
confiar. A arte da descoberta científica é uma habilidade igual
às demais habilidades, seja ter percepção, seja aprender uma
língua, seja andar de bicicleta, ou seja usar um a ferram enta.
Assim como as outras habilidades, ela som ente pode ser
adquirida pelo exem plo que vem de geração a geração, sendo
aprendida até um certo ponto por sim ples im itação. Da
m esma form a que outras habilidades, suas prem issas não
podem ser exp licitam ente form uladas. N as palavras de
Polanyi, “ Sabemos mais do que podemos d ize r” . A descoberta
científica tem em comum com todas as outras habilidades
o fato de que as premissas da habilidade não são com pre­
endidas por nós antes de com eçarm os de fato a exercê-la. N ós
aprendemos a habilidade antes, som ente depois é que refle­
tim os sobre a mesma. U m a criança aprende a falar im itando
os adultos. Para fazer isso a criança tem que aceitar em
confiança que as palavras que os adultos usam têm signi­
ficado. Esse é um “ conhecim ento tácito” , que a criança então
expressa em im itação e praticando. N ão há regras explícitas
pelas quais a linguagem é aprendida. P o r toda uma série de
ju lgam en tos tácitos, a criança alcança uma sem elhante
“ vivên cia” na linguagem, como a têm os seus pais, e assim
compreende o sentido das palavras e da linguagem. Da infância
à idade adulta a pessoa tem que confiar antes de poder
entender.
Da mesma form a é tam bém no trabalho científico. A c e i­
tamos que a ciência é uma atividade que faz sentido e que
constitui um válido sistem a de pensam ento. Crem os na
ciência de m odo a poderm os conhecer através da ciência.
E com o não há regras form ais para nos guiar na descoberta

238
ÍDOLOS DA RAZÀO E DO IRRACIONAL

científica, depositamos a nossa confiança em um M estre de


cujos exemplos obtivem os a habilidade. Um a vez que já
exploram os (no capítulo a n terio r) o prim eiro aspecto de
tal “ fé ” , vam os aqui exam inar com um pouco mais de
detalhes este segundo aspecto que Polanyi ressalta: “ A qu ele
que aprende de um m estre por observá-lo tem de confiar
no seu exemplo. Tem de reconhecer como tendo autoridade
a arte que quer aprender e as pessoas das quais ele a quer
aprender.” 22
P olan yi insiste em que a autoridade da ciência é essen­
cialm ente tradicional. A tradição cien tífica nos é passada
m ediante o contato pessoal entre mestres e discípulos. Isso
é verdade desde o nível elem entar até os mais altos níveis
de pesquisas originais. Confiam os na autoridade dos m es­
tres até estarmos numa posição em que podemos por nós
mesmos ver que aquilo que nos é ensinado é verdadeiro. Em
outras palavras, a dúvida não pode ser nunca o prim eiro passo
na estrada do conhecimento. A dúvida crítica é uma atividade
intelectual secundária. Ela é exercitada apenas depois de
termos assimilado totalm ente a tradição científica, tal como
incorporada nos livros e jornais científicos, e na autoridade
pessoal de um praticante capacitado que é reconhecido pela
comunidade científica como um mestre competente.
Somente depois de um longo período em que o estudante
se submeteu à autoridade da tradição é que ele é qualificado
a trabalhar ao lado de um cientista que esteja fazendo
pesquisas originais diante de problemas ainda não resolvi­
dos, e talvez até mesmo somente reconhecidos por esse
cientista, e não pelos demais. A visão do que seja a ciência
é passada para o estudante, e ao mesmo tempo ele aprende
a como agir na pesquisa, em todo o tem po em que observa
o cientista trabalhando, vendo como ele seleciona novas
linhas por onde pesquisar, vendo como ele reage diante de
novos indícios e de dificuldades não previstas, vendo como
ele avalia resultados ambíguos, como discute o trabalho de
outros cientistas, e como fica especulando diante de cente­
nas de possibilidades que talvez nunca venham a dar certo.
N ão há critérios objetivos pelos quais o trabalho do cien ­
tista pode ser julgado; ele, junto com os seus pares, é quem

239
A FALÊNCIA DOS DEUSES

estabelece os padrões e d eterm ina esses critérios; e, ao fazer


isso, aceita os riscos do insucesso bem como a possibilidade
do sucesso. A questão do sucesso e do fracasso pode não ser
resolvida por um longo tempo. A s teorias de Einstein foram ,
depois de m uito debate, aceitas com base em sua beleza
intrínseca e por causa da sua abrangência, mas foi apenas
depois de um bom tem po que houve algum a demonstração
experim ental da sua verdade.
Essa autoridade, que é essencialmente pessoal e inform al
em seu caráter, e à qual o estudante se submete para poder
aprender, é para fazê-lo en trar em contato com um a rea li­
dade m aior do que ele mesmo. T od o o processo de assimilação
da arte e das premissas da ciência é m uito sem elhante à
verdadeira estrutura da descoberta científica em si. A teoria
e as experiências que realizam os, a tradição científica, incor­
porada nos livros que usamos e que tem os como autoridade,
são como os “ indícios” que tacitam ente integram os no mapa
do am biente da pesquisa em nossa m ente e assim nos
intuím os da racionalidade na natureza para a qual eles nos
apontam.
Essa dim ensão tácita do conhecim ento humano é um
aspecto im portante na epistem ologia de Polanyi. Considere
um cirurgião usando uma sonda para explorar uma cavidade
que não pode ser observada diretam ente. Ele não presta
atenção à pressão que a sonda faz em sua mão porque a sua
“ atenção focalizada” está no corpo do paciente. A “ consciência
secundária” do instrum ento em sua mão é tácita. A sonda
é uma extensão de si mesmo, ele está naquela sonda. Mas
quando ele era um estudante e pela prim eira vez tomou
conhecim ento desse instrum ento, sem dúvida ele deu a
atenção central para o mesmo. M as com a experiência ele
passou a confiar no instrum ento. Chega um dia em que ele
sente que aquilo não é mais adequado para a tarefa que tem
em mãos e que precisa ser substituído. M as enquanto estiver
fazendo uso daquele instrum ento, ele tem que confiar nele.
Ele o usa criticam ente. E le não pode, ao mesmo tempo, confiar
no instrum ento e duvidar dele.
É por isso que P olan yi usa o term o “ conhecim ento pes­
soal” : som ente uma pessoa pode relacionar coisas subsi-

24 0
ÍDOLOS DA RAZÃO E DO IRRACIONAL

diárias a um foco e sustentar tal integração. O erro do


racionalism o e do em pirism o (e de seu desdobramento, que
é o positivism o) tem sido que eles tentaram substituir essa
participação pessoal no ato da com preensão por algum pro­
cedim ento explícito e sistemático. M as é isso o que não
podemos fazer. N ão apenas porque m uitos dos indícios e
aspectos secundários não são passíveis de especificação,
mas prim ariam ente porque estamos lidando com um ato de
integração e não de dedução. N ão podemos dar uma expli­
cação explícita a um ato de tácita integração. Assim , não há
uma ju stificativa fundam entalista para a ciência, nem uma
prova rigorosa de qualquer parte da ciência.
Todo cientista em seu trabalho científico absorve a tradição
científica com o um todo, bem como o paradigm a rein ante
em seu campo de pesquisa. Sem esse com promisso com a
tradição a ciência entraria em colapso. Em qualquer m om ento
da história algum a parte da tradição pode estar sob uma
cuidadosa avaliação, mas essa avaliação é possível som ente
se a tradição como um todo é aceita tacitam ente. A autoridade
dessa tradição é m antida pela comunidade científica. Ela é
sustentada pela livre concordância de seus mem bros, e é
exercida na prática por aqueles que determ inam que artigo
será aceito para ser publicado em jorn ais da pesquisa ci­
en tífica e quais artigos serão rejeitados, e é exercida tam bém
por aqueles que estão em cargos de pesquisa e de ensino
em universidades e em outras instituições.
Em seus escritos, Polanyi deu exem plos de m uitas teorias
que foram rejeitadas sem discussão sim plesm ente porque
elas estavam fora da tradição aceita. A menos que a tradição
se protegesse de toda idéia dissidente, a ciência não poderia
desenvolver-se. A o m esmo tempo, se a tradição não desse
lugar ao questionam ento e a um a inovação radical, a ciência
estagnaria. A inovação, en tretan to, pode ser responsa­
velm en te aceita som ente daqueles que já sejam habilidosos
“ portadores” da tradição. E um fato novo, ou m esmo vários
fa to s n o vos, n ã o são s u fic ie n te s p a ra d e s c a rta r um
p arad igm a estab elecid o. Isso pode acon tecer som en te
quando um n ovo paradigm a é oferecido em seu lugar, um
que expresse uma visão alternativa da realidade e que se

241
A FALÊNCIA DOS DEUSES

recomende a si mesmo por sua beleza, por sua racionalidade


e por sua abrangência. A aceitação de tal visão é um ato
pessoal do que a ela se entrega, tendo consciência de estar
num a m in oria e corren do o risco de ser provad o que in co r­
reu em erro. E nvolve um compromisso pessoal com o novo
paradigm a (ou te o ria ) e a disposição de pôr em risco a sua
p róp ria reputação cien tífica.
Mas não é algo que seja m eram ente subjetivo. O cientista
que se dedica a uma nova visão faz isso - como Polan yi se
expressa - com uma “ intenção universal” . E le crê que ela
é ob jetivam en te verd ad eira, e p ortan to ele tudo fa z para
que ela seja am p lam en te dissem inada, in cita discussões
e críticas, e procura persuadir seus com panheiros cientistas
quanto a ser ela um a verd ad eira explicação da realidade.
P od e ser que ele tenha que esperar m uitos anos até que
haja experiências convincentes que atestem a sua visão. Mas
em nenhum dos estágios ela é sim plesm ente uma opinião
sub jetiva. E la é con sid erad a com o tend o um “ alcance
u n ive rs a l” , com o sendo uma verdadeira explicação da rea­
lidade que todas as pessoas d everão aceitar e que será
com provada tanto pela verificação com o tam bém por abrir
o caminho para novas descobertas.
Assim a tradição científica expressa liberdade, mas não
anarquia. A tradição não é infalível, mas sim provê uma firm e
estrutura para a pesquisa. H á normas universais que têm
que ser resp eitad as se não se p reten d e que a pesquisa
ven h a a tornar-se inútil. A especulação é lim itada pelo que
tenh a sido estabelecido com o verdade. Essa República da
Ciência (fra se de P olan yi aplicada à com unidade cien tífica)
é pluralista no sentido de que não está sob o controle de
nenhum centro, e que os cientistas têm a liberdade de divergir
entre si e de argum entar, um perante o outro. M as por
acreditar que há uma realidade ob jetiva a ser conhecida,
as diferenças de opinião não são sim plesm ente deixadas a
coexistir como maravilhosos exem plos de “ tolerância” . Não,
elas são intensam ente debatidas, argüidas, e investigadas
em todos os seus detalhes até que um a visão prevaleça
sobre todas as dem ais com o sendo m ais verd ad eira, ou
então quando surge um novo modo de encarar as coisas de

242
ÍDOLOS DA R A Z Ã O E DO IR R A C IO N A L

form a a fazer com que as outras visões sejam vistas como


apenas vislumbres parciais da mesma verdade. E porque os
cientistas operam dentro das mesmas premissas e valores que
é de todo possível um entendim ento entre eles.
Em resumo, a difundida autoridade da República da
Ciência recai sobre o fato de que cada membro da comunidade
é inform ado por uma mesma tradição, que cada um reco­
nhece o mesmo conjunto de mestres do passado, bem como
a autoridade dos ideais e dos padrões que tacitamente são
passados de geração a geração. Os mestres do passado podem
ser criticados e a tradição melhorada, mas somente porque
a autoridade da tradição é levada em conta em todas as
críticas feitas. N as próprias palavras de Polanyi: “ Podem os
ver aqui o relacionam ento bem mais amplo, sustentando e
transm itindo as premissas da ciência, do qual o relaciona­
mento mestre/discípulo é apenas uma faceta. Ele consiste em
que todo o sistema da vida científica está enraizado numa
tradição comum. E aqui que se encontra a base em que as
premissas da ciência se estabelecem; elas são incorporadas
numa tradição, a tradição da ciência. A perm anente existên­
cia da ciência é uma expressão do fato de que os cientistas
estão concordes em aceitar uma tradição, e que todos con­
fiam uns nos outros quanto a serem inform ados por essa
tradição.” 23

Implicações Missionárias
H á óbvias lições aqui para a educação cristã e para a a ti­
vidade missionária. O próprio Polanyi viu uma analogia
entre a tarefa teológica e a pesquisa científica, mas ficou
para te ó lo go s tais com o T h o m as T o rra n c e e L e s slie
N ew b ig in a missão de sacarem todas as im plicações dessa
epistem ologia para a teologia cristã e para o esforço missi­
onário.H á fortes semelhanças en tre a prática do discipulado
cristão e a prática da pesquisa cien tífica. Am bas são
aprendidas através da submissão a uma tradição recebida.
A tradição cristã, incorporada nos textos bíblicos e na história
de sua in terp reta çã o em d iferen tes épocas e lugares,
expressa e leva adiante - tal como a tradição científica -

243
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

certos modos de olhar para as coisas, certos modelos para


interpretar a experiência. D iferentem ente da ciência ela nos
envolve com questões sobre o significado final e o propósito
das coisas e da vida humana - questões que a ciência
moderna exclui por causa da sua metodologia. Com oN ew bigin
disse, “ Os modelos, conceitos e paradigmas pelos quais a
tradição cristã procura com preender o mundo abraçam
essas questões bem mais amplas. Eles têm os m esmos
pressupostos quanto à racionalidade do cosmos quanto as
ciências naturais, mas é uma racionalidade bem mais
abrangente, baseada na fé de que o autor e sustentador do
cosmos pessoalmente revelou o seu propósito.”24
Tal como o cientista, o crente em Cristo tem que aprender
a ficar na tradição. Isso é o que está envolvido em se desen­
volver “ uma mentalidade cristã” . Nós não estudamos a Bíblia
por estudar, mas sim tendo o propósito de entender o mundo
através da Bíblia. Seus modelos e conceitos são coisas que
não exam inamos sim plesm ente a partir da perspectiva de
um outro conjunto de modelos (tirados, digamos, da tradição
do Iluminismo ou da tradição de Confúcio), mas têm de se
torn ar os m odelos através dos quais com preendem os o
mundo. Tem os que captar em nós esses conceitos e viver
neles. E, como no caso do estudante de física ou biologia, isso
tem que ser a princípio um exercício de fé pessoal. Mas pelo
fato de ser pessoal não significa ser algo subjetivo. N ew bigin
usa a term inologia de Polanyi para argumentar que “ a fé é
sustentada com um enfoque universal. E sustentada não
como “ minha opinião pessoal” , mas como a verdade que é
verdadeira para todos. Portanto ela tem de ser afirmada
publicamente, e aberta para interrogação e debate por todos.
Especificamente, como a ordem de Jesus nos diz, é para se
fazer conhecida a todas as nações, a todas as com unidades
humanas de todas as raças, credos e culturas. E uma
verdade pública.” 25
Esse paralelismo, entretanto, não é completo. “ N o caso da
comunidade científica, a tradição decorre do que o homem
aprende, escreve e faia. N o caso da comunidade cristã, a
tradição é a de testemunhar a ação de Deus na história, ação

244
ÍDOLOS DA R A Z Ã O E DO IR R A C IO N A L

que revela e que im plem enta o propósito do Criador. Essas


ações são elas mesmas a realidade que a fé busca com preen­
der. Assim o entendim ento cristão do mundo não é somente
uma questão de se “ firm ar” numa tradição de como compre­
ender o mundo; é uma questão de se firm ar numa história
da atividade de Deus, atividade essa que ainda está em pro­
cesso. O conhecimento que a fé cristã procura é o conhe­
cimento do Deus que tem atuado e que ainda está atuando.” 26
Um a outra diferença está na distinção entre “ descoberta”
e “ revelação” . O cientista diz: “ Descobri que...” ; o profeta
declara: “ Deus me falou” . Mas será que o uso da palavra
“ revelação” significa que a razão foi deixada de lado? Ob­
viam ente que não. T anto a descoberta científica como a
palavra dita têm Deus como sua fonte final. Em ambos os
casos elas se tornam o ponto inicial de uma nova tradição
de raciocínio em que o significado dessas revelações é explo­
rado, desenvolvido, testado pela experiência, e estendido a
outras áreas. A razão opera na tradição que tem como base
a revelação, com o mesmo rigor que ela opera na tradição
que tem como base as descobertas. Assim, contrapor a razão
em relação à revelação, como é comum em alguns círculos
tanto cristãos como não-cristãos, é um contra-senso. A
razão, como vimos acima, não é uma fonte de informações
independente. Ela abocanha o que ela recebe. Ela está sempre
incorporada na tradição. A diferença entre a tradição cien­
tífica e a tradição bíblica não é que uma conta com a razão
e a outra, com a revelação. “ A diferença está no ponto de
contraste entre os dois modos de expressar a experiência
original: “ Eu descobri” e “ Deus falou” .27

Mentes Alienadas
A idolatria carrega a sua própria reação. A adoração de
qualquer ídolo provoca o surgim ento do seu contra-ídolo
com o passar do tempo. P or falar do conhecimento humano
como sendo sempre um envolvim ento pessoal com a rea li­
dade além do próp rio ser, P olan yi m ostrou um cam inho
além das falsas antíteses (ou idolatrias) do objetivism o e
subjetivism o, razão e cultura, autonom ia e tradição, que

245
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

têm atorm entado o projeto m odernista desde os seus inícios


no Ilum inism o europeu. O conhecim ento está disponível
a todos os que estão desejando pessoalm ente se lançar em
sua busca, assumir responsabilidade pessoal por ele, e
publicamente com partilhar esse conhecimento com outros,
reconhecendo ao m esm o tem po a possibilidade de que
podem estar enganados. N ão podemos fugir de nossa respon­
sabilidade pessoal para com nossas afirmações da verdade.
Essa visão do conhecimento vai de encontro a bases fun­
damentais de muitas epistemologias medievais e modernas.
Não é verdade que se pode aceitar uma crença somente se
ela pode ser inferida de proposições que são válidas por si
mesmas, conhecidas impessoalmente e de form a incontestá­
vel. N ão é verdade que o raciocínio científico é fundamen­
talmente diferente do raciocínio em outras esferas, tais como
na teologia ou no direito, pois a avaliação racional de teorias
científicas é tam bém uma racionalidade do julgam en to
humano e não uma racionalidade de regras. Isso não implica
em que não haja uma realidade estruturada, inteligível, fora
de nossas próprias concepções e crenças, nem em que tenha­
mos que abandonar a verdade como o alvo da pesquisa teórica,
nem ainda que nunca chegaremos a conhecer a verdade.
Embora muitos dos que foram afetados pelas dificuldades do
fundamentalismo tenham se deixado ser atraídos por uma
ou mais dessas outras posições, P olan yi dem onstrou de
form a convincente que todas essas conclusões não são
válidas. A rejeição de uma certeza falsa não implica num
ceticismo quanto à verdade. Antes, é para que reconheçamos
uma racionalidade criada adequada à nossa situação de
falíveis e caídos conhecedores humanos.
A descrição de Polanyi de como a ciência opera é algo
totalm ente diferente da m itologia da ciência expressa por
m uitos filósofos não científicos e por teólogos modernos. P or
exemplo, Don Cuppit, que se autodenomina um teólogo
“ rad ica l” , contrasta o que ele rotu la de “ pensam ento
dogmático tradicional” com o suposto “ pensamento crítico”
da ciência, da seguinte maneira: “ Como vemos com maior
clareza no caso do método científico, o pensamento crítico

246
ÍDOLOS D A R A Z À O E DO IR R A C IO N A L

usa a dúvida metodicamente como um meio de se chegar à


verdade ... Aberto, céptico e puritano, ele é (ou deveria ser)
sistematicamente dedicado à autocrítica. Ele acaba com toda
mitologia, detecta e descarta ilusões com um zelo quase que
obsessivo. Em termos de pensamento dogmático tradicional,
essa postura mental é subversiva, destruidora e niilista.” 28
O que é desconcertante é encontrar esses erros duplicados
na igreja cristã contemporânea. De form a não infreqüente,
em escritos sobre o diálogo entre as religiões, encontramos
a suposição (não reconhecida) de que o escritor tem acesso
a uma posição privilegiada, fora da tradição e da cultura, da
qual ele pode observar todo o mundo de crenças religiosas
e concluir que elas são “ parciais e simbólicas expressões” de
um M istério inefável e universal. Ou então somos informados
de que, à luz do colapso do “ projeto da modernidade” , agora
temos que renunciar a todas as noções de “ universalidade”
e de “ objetividade” e falarmos de nossa tradição cristã como
sendo simplesmente “ uma conversa em meio a muitas ou­
tra s ” . Outras teologias relacionadas patrocinam um crepús­
culo relativista onde não há controles objetivos ( “ vale tudo” )
na interpretação de textos, e a criatividade do leitor reina
de form a suprema. N a outra extremidade do espectro ecle­
siástico encontramos tentativas de “ provar” a verdade do
Cristianismo com base numa “ evidência inquestionável” e
cap tu rar a “ essên cia ” do e va n g elh o num a e stru tu ra
racionalista e independente do contexto.
E aparente que tanto “ liberais” como “ fundam entalistas” ,
cada um dos quais vê o ou tro com o a rqu iin im igo, são
m uito mais profundam ente unidos do que pensam: ambos
são vítim as das oscilações de com portam ento da cultura
ocidental posterior ao Iluminismo. Se é que a igreja deva ser
obediente à sua vocação para confrontar as m ultiformes
idolatrias do mundo moderno, ela tem de começar arrepen­
dendo-se dos modos de pensamento sobre a verdade, sobre
a tradição e sobre a autoridade que deriva de uma postura
mental estranha.
Finalm ente, nunca deveríamos esquecer-nos de que, na
perspectiva bíblica, o “ escurecimento das mentes humanas”

247
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

é afinal enraizado no endurecim ento do coração humano para


com Deus e para com os seres humanos (cf. Rm l:18ss; E f
4:17ss). A decaída razão humana, que é restaurada ao seu
correto funcionam ento por divina revelação e por redenção,
acha desagradável toda fala sobre o pecado. O relativism o
pós-m odernista com partilha com o m odernism o do Ilum i-
nism o uma ingênua crença no poder humano para vencer
o mal. N o prim eiro deles, não por aplicar a razão, de m aneira
sustentada, à vid a humana, mas reconstruindo o nosso
“ m undo” através de um liv re jo g o sem fim de palavras,
pela criação de um “ novo vocabulário” . Assim, “ pecado” e
“ m al” são banidos com uma tacada só. U m a con fron tação
cristã com a m odernidade não pode, portanto, perm anecer
no n ív e l da ep istem olo gia . E la tem de a tin g ir a m isteriosa
p e rv e rs id a d e da v o n ta d e hum ana e sua necessidade de se
rec o n c ilia r e de se lib e rta r.

Notas
1 R. Descartes, D iscou rse O n M e th o d , a n d O th e r W ritin g s (Discurso Sobre
o Método, e Outros Escritos) - trad. F.E. SutclifTe; Harmondsworth;
Penguin, 1968; Discurso 2; p. 37.
2 R. Niebuhr, T h e N a tu re a n d D estiny o f M a n (A Natureza e o Destino
do Homem) - 2 vols.; Nova York, Seribner, 1941-1943; 1: pp. 137-38.
3 Citado em E. Cassirer, K a n f s L if e a n d T h o u g h t (O Pensamento e a Vida
de Kant) - New Haven e Londres: Yale University Press, 1981; pp.
227ss.
4 Op. cit., Discurso 4; p. 53.
6 Ibid., abertura da Meditação 2; p. 102.
fi E. Geüner, Reason a n d C u ltu re (Razão e Cultura) - Oxford: Blackwells,
1992; p. 91.
7 A. Maclntyre, Whose J u s tic e ? W h ich R a tio n a lity ? (Justiça de Quem?
Que Racionalidade?) - Notre Dame: University o f Notre Dame Press,
1988; p. 6.
8 T. S. Kuhn, T h e S tru c tu re o f S c ie n tiftc R e v o lu tio n s (A Estrutura das
Revoluções Científicas) - Chicago: University of Chicago Press, 1962,
2a. edição, ampliada, 1970.
9 P. ex.: K. Popper, T h e L o g ic o f S c ie n tific D is c o ve ry (A Lógica da
Descoberta Científica) - Londres: Hutchinson, 1959.
10 Kuhn, op. cit.; p. 111.
11 Ibid.; p. 150.
12 Ibid.; p. 153.

248
ÍD O L O S D A R A Z Ã O E D O IR R A C IO N A L

13 Ibid.; p. 159.
14 Ibid.; p. 94.
15 Ibid.; p. 170.
16 Veja “Reflections on my Critics” (Reflexões sobre meus Críticos) e
“ Logic of Discovery or Psychology of Research?” (Lógica da Descoberta
ou Psicologia da Pesquisa?) - em Criticism and the Growth o f
Knowledge (A Crítica e o Crescimento do Conhecimento) - eds. I.
Lakatos e A. Musgrave; Cambridge: Cambridge University Press,
1970; “ O b jectivity, Value Judgement, and T h eory Choice”
(Objetividade, Juízo de Valor, e Escolha da Teoria) e “Second Thoughts
on Paradigms” (Pensando Melhor nos Paradigmas) em The Essential
Tension (A Tensão Essencial) - Chicago: University o f Chicago
Press, 1977.
17 T. S. Kuhn, “ Reflections on my Critics” (Reflexões sobre meus Críticos)
- em I. Kakatos e A. Musgrave (eds.), Criticism and the Growth o f
Knowledge (A Crítica e o Crescimento do Conhecimento) - Cambridge:
Cambridge University Press, 1970; p. 260.
18 P. Feyerabend, Philosophical Papers (Escritos Filosóficos) - Vol. II;
Problems o f Empiricism (Problemas do Empirismo) - Cambridge:
Cambridge University Press, 1981; p.31.
19 P. Feyerabend, Science in a Free Society (A Ciência numa Sociedade
Livre) - Londres: New Left Press, 1978; p.70.
20 P. Feyerabend, Philosophical Papers (Escritos Filosóficos) - vol. II, op.
cit. p. 27.
21 M. Polanyi, Scientific Thought and Social Reality (Pensamento
Científico e a Realidade Social) - Oxford University Press, 1977; p.
101. Veja também The Tacit Dimension (A Dimensão Tácita) - Nova
York, Doubleday & Co., 1966; Science, Faith and Society (Ciência,
Fé e Sociedade) - Chicago: University of Chicago Press, 1964.
22 M. Polanyi, Science, Faith and Society (Ciência, Fé e Sociedade) - p. 15.
23 Ibid.; p. 52.
24 L. Newbigin, The Gospel in a Pluralist Society (Grand Rapids:
Eerdmans, 1989) p. 49.
28 Ibid.; p.50.
28 Ibid. pp. 50-1.
27 Ibid.; p. 60.
28 D . Cupitt, The Sea o f Faith (O Oceano da Fé) - BBC Publications,
1984; pp. 252-3.

249
8
A

A C ru z e os íd olo s

“ Então os fariseus e os chefes dos sacerdotes se reuniram com


o Conselho Superior e disseram:
- O que é que vamos fazer? Este homem está fazendo muitos
milagres! Se deixarmos que ele continue assim, todos vão
acreditar nele. Então as autoridades romanas agirão contra
nós e destruirão o Templo e o nosso país.”
- João 11:47-48 (T L H )

A s razões para a cru cificação de Jesus são com plexas. M as


é claro que ao anunciar a vin d a da nova ordem de Deus (o
“ rein o de D eu s” ) e com o seu ensino sobre as bênçãos e as
exigências dessa nova ord em , Jesus estava, desde o in ício do
seu m in istério, en tran d o em d ire to con fron to com as e stru ­
turas de poder deste m undo. A n u n cia r que o Deus de Isra el
era re i não era um a n ova m en sagem em Israel. E ra, afin al
de contas, o p on to cen tral da fé daqu ela nação. A novidade
estava em an u nciar que, no m in istério desse hu m ild e Jesus
de N a za ré , e através desse m in istério, o rei estava r e iv in ­
dicando o seu m undo dos falsos deuses que rein avam em seu
lugar. Isso fo i apresentado com o o cu m prim en to da prom essa
a Ab raão. C erta m en te Jesus con sisten tem en te considerou a
si m esm o não com o sim p lesm en te m ais um p ro fe ta na lin h a
de A b ra ã o e M oisés, m as sim o cu m prim en to de tudo o que
os p ro feta s falaram e esperavam (cf. L c 4:16-21; 10:23-24;
24:25-27; M t 11:2-14; 16:13-17; Jo 5:39-40, 45-47; 8:56).

Confrontações de Poder
O Im p é rio R om ano, no p erío d o do N o v o T e sta m e n to, era
h erd eiro da B abilônia, ta n to no poder m ilita r com o, o que
e ra m ais im p o rta n te ainda, na in co rp oração e s p iritu a l de

250
A CRU Z E OS ÍDOLOS

tudo o que a Babilônia bíblica simbolizava. A cultura greco-


romana desprezava a humildade e a fraqueza física. Seus
deuses pagãos eram deuses de força. Eles ofereciam aos seus
devotos poder, conquistas m ilitares, riquezas fabulosas e a
imortalidade. Com respeito aos judeus do tem po de Jesus,
tal com o acontecera m uitas vezes na história acidentada
do povo judeu, eles tinham perdido a visão da sua vocação
nacional dada pelo seu Deus. Em bora perm anecendo fisi­
cam ente separados e culturalm ente d iferentes de seus
senhores pagãos e de outras nações, eles eram espiritualmen­
te indistinguíveis deles. Eles tinham começado também a
pensar em Iahweh segundo os conceitos pagãos de poder. O
reino de Iahweh havia se tornado para eles sinônimo do
governo universal da nação de Israel e a destruição pública
de seus inimigos. A té mesmo, no início, os discípulos foram
cativados por uma visão de Jesus como um outro Judas
Macabeus (ou, m elhor ainda, como um César judeu), estabe­
lecendo o seu trono em Jerusalém e invocando a ira de Deus
sobre as nações, tendo eles como seus assistentes hono­
rários (cf. Mc 10:32ss). Eles esperavam que Jesus iniciasse
entre os homens o reino de Iahweh de influência e de riqueza,
que excluísse estrangeiros e “ pecadores” (term o que os
religiosos da época empregavam ao se referirem às pessoas
comuns que não guardavam todas as obrigações da Lei
Mosaica), e que vingasse Israel de seus inimigos nacionais.
Que choque eles estavam por receber! Len d o as n arra­
tivas dos Evangelhos, rapidam ente somos inform ados de
quão perturbadora foi a redefinição feita por Jesus acerca
do reino de Deus. Ele pôs abaixo todas as expectativas dos
seus discípulos, para não falar na expectativa dos líderes
nacionais, com respeito à natureza de Deus e à salvação que
ele estava trazendo. Aqueles que haviam sido consignados
como m arginais da sociedade (p. ex. as m ulheres, os le­
prosos, os coletores de im postos, os sam aritanos) de re­
pente viram -se convidados a d esfrutar da vinda do reino
de Deus em seu meio. A vid a com Jesus p arecia ser uma
p erm an en te sé rie de celebrações. E le d eclarou que o
rein o de Deus era uma dádiva a ser recebida, não algo a ser
conquistado. Estava aberto a todos os que estavam prepara-

251
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

dos para ser com o um a “ c ria n c in h a ” (M c 10:15) - em


ou tras palavras, para ser com o um “ Zé n in g u ém ” da
sociedade, com o quem náo tem im portância algum a, como
quem não tem do que se orgulhar, seja de poder político,
de status social, de posses, de m éritos religiosos, de reali­
zações de ordem m oral ou intelectual. Tais pessoas sâo as
menos indicadas para dizer a Deus o que Deus deve e o que
não deve fazer, a quem Deus deve aceitar ou a quem não
deve aceitar. Jesus viu neles os rep resen tan tes do v e rd a ­
d eiro Israel, um novo “ povo de D eus” a ser reconstituído
em torno de si mesmo.
Em nome do rei de Israel, que tam bém era o rei de toda
a criação, Jesus desafiou os líderes de Israel ao cruzar
barreiras sociais e políticas, que faziam separações entre
o povo. E le com freqü ência violou tabus sociais (com o p.
ex. as leis da purificação, que operavam com o um sistema
de castas no judaísm o de seus dias). D iferen tem en te dos
rabinos judeus, ele não apenas se rela cion ava com m u lhe­
res, mas ainda discutia teologia com elas (cf. Jo 4:19ss), e
as convidava, ju n to com os homens, para fazerem parte de
seu grupo de discípulos. A té m esm o os seus “ sin ais” de
cura tinham profundas implicações políticas. Para pessoas
tais com o os leprosos e a m ulher com uma hem orragia (M c
5:24ss), o que eles tinham significava a sua exclusão de sua
m em bresia de Israel. E les não podiam en trar no tem plo,
que era o ponto central da identidade nacional judaica (não
se p erm itia que os leprosos entrassem até m esm o em
Jerusalém ). P o r curar e receber os leprosos, Jesus não
apenas os curou fisicam ente, mas tam bém os restaurou
socialmente. E o poder que ja z no coração do reino de Deus
não era o poder dos govern an tes pagãos, que eles a si
mesmos atribuíam , disse Jesus, mas sim o poder de servir,
a que as pessoas se submetiam. E ra o poder de am ar as
pessoas, até mesmo os inim igos, ao ponto de m orrer por eles.
O Jesus dos evangelhos, diferentem ente do Jesus do sen­
tim entalism o religioso, é ao mesmo tem po gentil e duro,
espirituoso e sério, severo e compassivo. O que as pessoas
que se encontravam com ele não podiam fa ze r era este­
reotipá-lo. E le dem oliu todos os rótulos que lhe deram e

252
A CRUZ E OS ÍDOLOS

todas as expectativas delas, perturbou todas as tentativas


de o descartarem como um profeta, como um operador de
maravilhas, ou como um rabino convencional. Ele foi difa­
mado como sendo “ um glutáo e um beberrão” , foi acusado
de associar-se com prostitutas e outros da “ baixa vida” , as
pessoas se m elindravam por seu mordaz humor, bem como
por sua implacável exposição da presunção religiosa. Assim
Lord Hailsham, um antigo Chanceler do Reino Unido, ma­
ravilha-se em sua autobiografia: “A tragédia da Cruz não foi
que crucificaram uma figura melancólica, cheia de preceitos
morais, asceta e deprimida... Aquele que eles crucificaram
era jovem , vital, cheio de vida e da alegria de viver, o próprio
Senhor da vida ... era alguém tão atrativo que as pessoas o
seguiam pelo simples prazer de o seguirem.” 1
Tam bém a novelista Dorothy Sayers descreveu, com a
mordacidade que lhe é peculiar, o impacto causado por
Jesus: “ Os que crucificaram a Cristo nunca, para fazer-lhes
justiça, o acusaram de ser enfadonho - pelo contrário, consi-
deraram -no dinâm ico demais. As gerações posteriores é
q u e v ie r a m a b a fa r to d a a q u e la sua p e rs o n a lid a d e
perturbadora, cercando-o com um am biente de tédio. Com
m uita eficiência temos aparado as garras do Leão de Judá,
dando-lhe o atestado de “ manso e m eigo” , e apontando-o
como um adequado anim al de estim ação para párocos
doentios e piedosas senhoras idosas. Para aqueles que o
conheceram, entretanto, de form a algum a ele dem onstrava
ser uma pessoa água-com-açúcar; eles se opunham a ele por
ser um perigoso atiçador de conflitos.” 2
Um a das coisas mais perturbadoras com respeito a Jesus,
e que acabou por selar a sua execução, foi a m aneira tão
radical pela qual ele atribuía a si mesmo as prerrogativas
de ser e fazer tudo aquilo para o que o tem plo de Jerusalém
existia. N ão apenas ele curou e reintegrou pessoas de volta
na comunidade social, ele lhes ofereceu de graça o perdão
não merecido dos pecados, declarando assim que as recon­
ciliava com Deus. A o fazer isso ele estava subvertendo por
completo todo o culto de sacrifícios que era realizado no
tem plo. O tem plo era o local para onde todo judeu ia para
ser purificado da impureza e para ser perdoado de seus

253
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

pecados. Os sacrifícios diários e anuais, realizados pelo


sacerdote do templo, faziam lembrar a santidade de Deus e
a custosa natureza do seu am or para o Israel pecador;
expressavam tam bém a resposta de um compromisso de fé
pelo adorador. O tem plo era ainda o lugar em que se acre­
ditava que a glória de Deus habitava: era o símbolo da
presença pessoal de Iahweh em m eio ao povo com quem
tinha aliança. Em resumo, o tem plo representava tudo o
que tornava Israel uma nação sem igual no mundo.
Mas Jesus mudou tudo isso. O perdão do pecado agora
era encontrado nele, não no culto feito no templo. Ele
reivindicou ter autoridade para cancelar o débito do pecado
e para oferecer uma nova vida no Espírito Santo (um dos
dons que se seguiriam com a inauguração da nova ordem
do reino de Deus - cf. Ez 36:25-27; E z 37; Is 32:15ss; J1
2:28). A o expulsar os cambistas do tem plo e ao “ am aldiçoar”
uma figueira a caminho do tem plo (M c ll:1 2 s s ) ele desem­
penhou ao vivo duas parábolas contra o tem plo - e, por
decorrência, contra toda a nação. Ele chorou pela cidade e
pelo templo, e advertiu quanto à sua próxim a destruição
(M t 23:37; 24:2). Em outras palavras, Jesus viu que Israel
tinha falhado em seu chamado para ser o agente de Deus
para a cura das nações. O tem plo havia se tornado um objeto
da idolatria nacional e de ostentação religiosa. Longe de se
postar ao lado dos judeus nacionalistas em sua fanática
violência contra Roma, Jesus viu a presente ocupação romana
e a próxima destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos
como o ju ízo de Deus sobre um povo que havia abandonado
precisamente o Deus cujo nome estava constantemente em
seus lábios. O seu corpo humano é que seria o novo tem plo
(Jo 2:19-22), o lugar de encontro entre Deus e a humanidade.
Era por isso que honrar a ele era o mesmo que honrar a Deus,
e rejeitar a ele era rejeitar a Deus, conhecê-lo era conhecer
a Deus, e até mesmo vê-lo era ver a Deus (cf. Jo 5 :19ss; 14:8ss;
Lc 10:16). Ele mesmo também cumpriria o destino de Israel:
sofreria o ju ízo que era da nação de Israel, nas mãos de
poderes pagãos, dem onstraria a obediência de um filho ao
seu Deus, e revelaria a glória de Deus fazendo expiação pelo
pecado das nações, assim atraindo-as para a sua luz.

254
A CRU Z E OS ÍDOLOS

A m orte de Jesus, então, foi o campo de batalha entre


Deus e os poderes do mal, representados pela idolatria
religiosa e política. Em Jesus vemos o único ser humano
que se recusou a inclinar-se diante do santuário de qualquer
ídolo. Desse modo ele atraiu a m alevolência de todos os que
se beneficiavam da adoração a ídolos, bem como a dos
poderes demoníacos que a idolatria evocava. Toda a nossa
rebelião humana coletiva foi extravasada sobre ele. Assim
a cruz revela a verdadeira natureza da idolatria: Jesus foi
condenado à morte, não pelos sem religião e pelos não c iv i­
lizados, mas pelos m ais ilu stres rep resen tan tes da r e li­
gião judaica e da lei romana, porque suas reivindicações e
o seu estilo de vida minaram tanto a idolatria da realização
pessoal (seja ela religiosa ou secular) como a idolatria do
poder em todos os relacionam entos humanos.

O Deus da Cruz
Entretanto, a cruz revela ainda a resposta de Deus àquela
idolatria. Mesmo no seu sofrim ento e na sua morte, Jesus
resistiu à tentação (que ele enfrentou em todo o seu m inis­
tério público) de lutar com o mal em seus (do m al) próprios
termos. De fato ele perm itiu que o m al o atingisse to ta l­
m ente. Paradoxalm ente, o ponto de aparente derrota to r­
nou-se o m om ento do m aior triunfo. Foi a vitória da fraqueza
divina sobre a força humana; da palavra da verdade sobre
as maquinações de poder; do am or de uma auto-rendição
sobre um ódio que surge do amor próprio. A ressurreição
corporal selou aquela vitória revertendo o veredicto humano
passado para Jesus e mostrando que a idolatria e a m orte
não teriam a últim a palavra na criação de Deus. Mas é
im portante lembrar que os escritores do N ovo Testam ento
viram a vitória realizar-se, não apenas através da ressur­
reição, mas no momento da morte de Jesus. Foi a oferta da
sua vida através da sua m orte que proclamou a glória de
Deus (cf. Jo 12:23ss; 13:31; 1 Co 1:22-25; Cl 2:15). É neste
contexto que a questão sum amente im portante surge: quem
é este que estabelece o seu reino no mundo por m orrer sob
todo o peso do mal que nele há?

255
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

As pessoas deste mundo, inclusive muitos cristãos, presu­


m em saber o que a palavra “ D eus” significa, e então procuram
ver se ela comporta, ou não, Jesus em seu significado. Mas
o testem unho dos escritores do N ovo Testam en to vai numa
outra direção. Eles argum entam que, na realidade, nós não
sabemos quem é o Criador do universo até que olhemos para
Jesus, e especialm ente para Jesus crucificado. Esta é uma
surpreendente afirm ação. A d orar alguém que obviam ente
foi uma criatura humana, como todos nós, parece ser o
cúmulo da idolatria. M as os prim eiros cristãos, que eram
provenientes da mais forte tradição m onoteísta do mundo,
não apenas foram encontrados eles mesmos dirigindo-se a
este Jesus com uma lingu agem que eles trad icion a lm en te
som ente usavam para com o p róp rio Deus, mas fize ra m
disso a plataform a de lançamento da sua campanha contra
toda idolatria!
O teólogo alem ão Eberhard Jungel aborda isso muito bem:

A linguagem tradicional do Cristianismo insiste no fato de que


é necessário que alguém nos diga qual o sentido que a palavra
“ Deus” deve ter. A pressuposição é que em última instância
somente o próprio Deus é quem pode dizer o que deveríamos
entender com a palavra “ Deus” . A teologia compreende toda
essa questão com a categoria da revelação... Portanto, quando
procuramos pensar em Deus como aquele que se comunica e que
se expressa na pessoa de Jesus, então temos sempre de nos
lembrar que esse homem foi crucificado, que foi morto em nome
da lei de Deus. Para um uso cristão responsável da palavra
“ Deus” , o Crucificado é virtualmente a real definição do que
significa a palavra “ Deus” . A teologia cristã é portanto
fundamentalmente a teologia daquele que foi Crucificado.”3

Sem elhantem ente, num livro popular cujo título é Who Was
Jesus? (Q uem Foi Jesus?), o erudito britânico T om W righ t
m ostra que a doutrina cristã da encarnação “ nunca teve a
intenção de elevar um ser humano ao status da divindade.
Isso foi o que, de acordo com alguns rom anos, aconteceu
com os im peradores após a sua morte, ou até mesmo antes.”
W r ig h t continua: “ A d ou trin a c ris tã tem a v e r com um
tipo diferente de Deus , um Deus que era tão diferente em

256
A CRU Z E OS ÍDOLOS

relação à exp ecta tiva normal que ele pôde, de forma com­
pleta e apropriada, tornar-se humano na pessoa do homem
Jesus de Nazaré. D izer que Jesus é de alguma form a Deus
é certam ente fazer uma surpreendente afirm ação sobre
Jesus. É também fazer uma estupenda declaração quanto
a Deus.” 4
Tais declarações, que se encontram no centro no evan­
gelho bíblico, são o que caracterizam a singularidade de
Cristo e da fé cristã. O poeta inglês Edward Shillito, ao
escrever após a selvagem carnificina da P rim eira Guerra
Mundial (1914-1918), quando os homens se mataram uns
aos outros em defesa dos deuses m odernos cujos nomes
eles não podiam nem mesmo citar, apontou para as chagas
de Jesus com o sendo as únicas cred en ciais de Deus para
uma hu m anidade sofred ora:

Outros deuses eram fortes; mas por fraco te fizeste passar;


Ao trono eles se dirigiram em poder; mas tu aos tropeções chegaste;
Mas para as nossas feridas, só as chagas de Deus podem falar,
E deus algum tem chagas, mas tão somente tu é que as tomaste.5

O desconhecido autor da epístola aos Hebreus elabora no


tema de Jesus ter cum prido todos os aspectos da L ei do
A n tigo Testam ento. E le é tanto o sumo sacerdote como o
sacrifício, o altar e o caminho que passa pela cortina para
dentro do Santo dos Santos. Ele é um profeta superior a
Moisés, um sacerdote superior a Arão e a Melquisedeque. Ele
é “ coroado de glória e de honra” (2:9) como o Filho a quem
Deus “ constituiu herdeiro de todas as cousas” (1:2). Ele é
o pioneiro, aquele que, tendo provado “ a m orte por todo
homem ” (2:9) é capaz de libertar “ todos que, pelo pavor da
morte, estavam sujeitos à escravidão” (2 :15), conduzindo-os
à Jerusalém final, a cidade do Deus vivo. Os que o seguem
já estão “ recebendo... um reino inabalável” (12:28). Eles não
têm necessidade de nenhum desem penho religioso adi­
cional, pois por estar nele mesmo a realidade que a Lei
fracamente indicou, Jesus revelou ter sido ela apenas uma
“ sombra dos bens vindouros” (10:1).
A luz dessa realidade, era natural que aqueles que ainda
procuravam preservar o tem plo e a nação (Jo 11:48) levas-

257
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

sem Jesus para fora dos portões da cidade de Jerusalém


para ser judicialm ente executado no lugar em que os corpos
dos animais sacrificados eram queimados (Hb 13:11-12).
N âo foram os “ pecadores” , mas sim os religiosos que o
rejeitaram. Assim, o autor conclui sua exposição quanto ao
que era significante em Jesus com um lógico apelo a seus
companheiros cristãos: “ Saiamos, pois, a ele, fora do arraial,
levando o seu vitupério. N a verdade, não temos aqui cidade
permanente, mas buscamos a que há de v ir ” (13:13-14). Os
discípulos de Jesus são chamados para ir lá onde Jesus já
está: descartado pela religião. Eles têm que com partilhar
da sua “ desgraça” , o escárnio e o ódio que toda comunidade
religiosa antiga dirige àqueles que ousam dizer que a devoção
e a tradição nos podem separar de Deus e que os não religiosos
podem estar mais perto do reino de Deus do que os “justos”
(cf. Rm 4:5; Lc 18:9-14). Esse “ ir para o lado de fo ra ” é
uma figu ra da conversão cristã. M as o escritor não trata
isso como a conversão de uma religião para outra, como se
o que é oferecido no evangelho fosse uma religião superior
(o Cristianism o) para se ter. Não é nada disso, mas é funda­
m entalm ente a conversão de qualquer form a de religio­
sidade para Jesus Cristo.
A qu i a epístola aos Hebreus fecha o ciclo. T odo o argu­
m ento nos leva de volta ao versículo inicial da epístola, o
fundamento a partir do qual esta nova perspectiva surge:
“ Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas
maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos
falou pelo F ilh o... (1:1-2). O apóstolo João expressa-se assim,
quanto a isso: “ Porque a lei foi dada por interm édio de
M oisés; a graça e a verdade vieram por m eio de Jesus
Cristo. Ninguém jam ais viu a Deus; o Deus unigénito, que
está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1:17-18). Jesus
não suplanta a religião (tom ando a “ le i” e os “ profetas”
acima em seu sentido mais amplo) confrontando-a e rejei-
tando-a. Antes, ele leva toda a discussão a um outro nível
totalm ente diferente de realidade: conhecer a Deus é uma
questão de “ graça e verdade” , não de “ le i” , e ele é o único
que pode trazer essas duas coisas à humanidade. Ele as
incorpora em sua própria pessoa. A lei só pode seguir a

258
A C R U Z E OS ÍDOLOS

graça, e todas as nossas visões de Deus, do mundo e de nós


mesmos, agora têm um novo critério de verdade: o Jesus
crucificado e ressurreto. E aqui que o C riad o r do un iverso
(nas palavras de M artin h o L u te ro ) “ nos doa, não o sol ou
a lua, não o céu e a terra, mas o seu p róprio coração e o
seu amado F ilho, e o faz sofrer a ponto de d erram ar o seu
sangue e m orrer a mais vergonhosa de todas as m ortes por
nós, que tem os do que nos en vergon h ar, e que somos
pessoas perversas e in gratas.” 6 A m orte do p róp rio F ilho
de Deus é a única m edida adequada do que Deus pensa
acerca do nosso pecado; e a m orte do seu F ilh o é a única
base adequada pela qual d ele podem os ser perdoados.
O grito de abandono na cruz, “ Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste?” , está no fundo do coração do evan­
gelho. Jesus entra nas profundezas do desespero que o pecado
dispensa e o homem sofre na sua alienação de Deus. Nas
palavras do apóstolo Paulo, “ Aqu ele que não conheceu peca­
do, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos
ju stiça de D eus” (2 C o 5:21). M ed itar sobre o que aconteceu
no G ólgota é, com o Jürgen M oltm an n enfatizou recen­
tem ente, ser levado para além de um m onoteísm o abstrato
e de um ateísm o secular para uma vigorosa compreensão
trin ita rian a da realidade suprema. A cruz revela a verd a­
deira identidade de Deus como o santo e am oroso P ai e como
o am oroso e obed ien te F ilho, que se o ferece no E sp írito
Santo à hum anidade pecadora. V em os a dor do P a i por
entregar o F ilh o à m o rte p or causa do seu am or pelo
m undo, e vem os o Filho sofrendo o abandono do Pai, em
obediência e em am or a ele. A condição do F ilho de ter ficado
sem o P a i é paralela à condição do P a i te r ficad o sem o
Filho. P ai e F ilh o ficam totalm en te separados nesse aban­
dono, ao m esm o tem po em que estão to ta lm e n te unidos
em sua mútua rendição.7 E então no ponto em que (para
o mundo) Deus parecia estar totalm en te ausente, naquele
ponto (aos olhos da fé depois da Páscoa) é que ele estava
sendo mais profundam ente revelado.
E assim que M oltm ann expressa o envolvim ento de Deus
conosco na m orte de Jesus: “ Em Jesus ele não m orre a m orte
natural de um ser finito, mas a m orte violenta de um crim i­

259
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

noso na cruz, a m orte de um com pleto abandono de Deus...


Deus não se torna uma religião, de form a que o homem
p articipe d ele por corresp on der a d eterm inados pensa­
m entos e sentimentos. Deus não se torna uma lei, de form a
que o hom em p articip e dele obedecendo a um a lei. Deus
não se torn a um ideal, de form a que o hom em tenh a
com unhão com ele por um con stante esforço. E le se hu m i­
lha e tom a sobre si a m orte eterna dos ím pios e dos aban­
donados, de m odo que os ím pios e abandonados possam
ter com unhão com ele.8 N ã o há rejeição, degradação ou
solidão que ele não tenha assumido na cruz de Jesus.
A qu i estamos face a face com o supremo desafio da ido­
latria: com o Deus Crucificado (para usar essa frase arrojada
de Lu tero). P o r renunciar os privilégios de um ídolo, por
tornar-se carne e por assumir a nossa fraqueza humana, a
nossa vulnerabilidade, o nosso sofrim ento e a nossa morte,
ele transtorna totalm ente o mundo. Assim ele nos liberta da
busca de ídolos poderosos por tornar-se ele m esm o uma
vítim a da idolatria. V im os como a idolatria desumaniza o
idólatra e tam bém as vítim as. O Deus crucificado, na his­
tórica form a de uma vítim a desumanizada, con verte os
homens desumanizados em verdadeiros seres humanos.
Observam os numa seção an terior o vibran te protesto de
M artinho L u tero diante do “ Deus dos Filósofos” em nome
do “ Deus C rucificado” . Lu tero falou com base em sua expe­
riência pessoal da graça de Deus, que m aravilhosam ente
ilum ina as epístolas de Paulo, que ele tinha começado a
estudar e a ensinar aos alunos da universidade da cidade de
W ittenburg. N a Contestação de H eid elb erg de 1518 ele
contrastou mais a fundo os “ teólogos da g lória” com os
“ teólogos da cru z” . Aqui ele estava se baseando em duas
passagens bíblicas, Êxodo 33:18ss e Rom anos l:20ss. Em
Exodo 33 M oisés pede a Deus: “ Rogo-te que me mostres a
tua glória.” E recebe a resposta: “ N ão me poderás ver a face,
porquanto homem nenhum verá a m inha face e viv erá .” Em
vez disso, Deus coloca M oisés num a fenda da penha e o
cobre com a mão até que a sua g ló ria tenh a passado. E n tão
Deus re tira a m ão e M oisés tem um vislu m b re das costas
de Deus, mas não da sua face cheia de glória.

260
A CR U Z E OS ÍDOLOS

P ara Lutero, os “ teólogos da g lória” procuram conhecer


Deus diretam ente em sua sabedoria, em sua m ajestade e em
seu poder, que são obviam ente divinos. Mas ele inclui isso
dentro da idolatria descrita por Paulo em Rom anos l:20ss.
Os homens fazem mal uso do conhecimento de Deus que é
dado pela criação. Isso produz idolatria e homens cada vez
mais orgulhosos. Assim Deus revela-se de um m odo que
en fren ta a idolatria humana e que d estrói o orgulho hu­
mano. T a l conhecimento de Deus é um conhecim ento que
salva e que traz os hom ens pecadores a um correto rela­
cionam ento com Deus e a uma harm onia com o restante da
criação. Essa é a teologia da cruz. Ela reconhece Deus
precisam ente onde ele “ se escondeu” , em seus sofrim entos
e em tudo o que os teólogos da glória consideram ser fra ­
queza ou tolice.
Deus não pode encontrar-se conosco quando ele está
vestido com sua m ajestade. “ N ão se m isturem com este
Deus” , disse Lutero, “ quem quiser ser salvo deve evitar o
Deus de m ajestade, pois ele e a cria tu ra hum ana são
inim igos entre si.” N esta vida Deus nunca se encontra
conosco desse modo, nem quer que tentem os nos aproxim ar
dele desse modo. O brilho da sua glória seria terrível demais
para que o suportássemos. O Deus de que necessitamos é
o “ Deus que se reveste com suas promessas, o Deus que
está presente em Cristo... N ã o conhecem os nenhum outro
Deus, a não ser o que se reveste com suas promessas. Se
ele fosse falar com igo em sua m ajestade, eu fugiria, assim
com o os judeus fizeram . Entretanto, quando ele se reveste
com a voz de um homem e acomoda-se à nossa capacidade
de compreensão, então eu posso aproxim ar-m e dele.” Em
ou tra parte ele escreveu: “ Assim vocês podem encon trar
Deus em Cristo, mas não podem encontrar Deus fora de
Cristo, mesmo no céu.” 9 O in telectu a lism o relig ioso e o
a tivism o m oralista de igual form a pertencem ao dom ínio
da idolatria. Eles procuram obter por esforço uma área de
autonom ia humana, e livrar-se da dependência da criatura
peran te o C riador. C en tram -se na realização hum ana, e
não no recebim ento da dádiva divina. Recusam-se a “ deixar
Deus ser D eus” . Som ente pela teologia da cruz, que ensina

261
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

a p ensar de Deus e da vida através das chagas de Cristo,


é que nos firm am os na realidade. Pois só assim é que Deus
está livre para ser Deus.
Em tudo isso L u te ro rep etia, com m u ito brilh o, e com
uma linguagem nova e clara, as convicções centrais da
pregação do N ovo Testam ento. P o r exemplo, atente para o
que o próprio apóstolo Paulo disse:

Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste


século? Porventura, não tomou Deus louca a sabedoria do mundo?
Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por
sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que crêem pela
loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como
os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo
crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios;
mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos,
pregam os a C risto, poder de Deus e sabedoria de Deus
(1 Coríntios 20-24).

Em bora o Deus da cruz seja tam bém o Criador da m ente


humana, e em bora todo verdadeiro conhecim ento tem como
base final a sua sabedoria, Deus recusa-se a sujeitar a
m ensagem da cruz ao ju lgam en to da sabedoria humana.
Pois isso seria destroná-lo como Deus e entron izar o homem.
Seria capitular diante do pecado humano, em vez de salvar
a humanidade de seu pecado. Assim, a estratégia de Deus
para a tran sform ação da hum anidade - para salvar o
mundo de sua idolatria tola e autodestrutiva - é centrada
na vergonha da cruz. A cruz, revertendo as nossas noções
de poder e de sabedoria, destrona toda a nossa centralização
em nós mesmos, e humaniza-nos. Ela glorifica a Deus,
perm itindo-nos agora servi-lo em nossa humanidade.
Da perspectiva da sabedoria humana, a cruz é uma louca
aberração, um a piada de m al gosto. E m sua m agistral
pesquisa sob re a c ru cifica çã o na a n tig u id a d e , M a r tin
H e n g e l nos faz lem brar do horror e da aversão que u n iver­
salm ente ela gerava. Som ente escravos rebeldes e a pior
espécie de crim inosos é que eram executados por cru cifi­
cação no Im p é rio Romano. N ão é de se adm irar, portanto,
que “ a essência da m ensagem cristã, que Paulo descreveu

262
A C R U Z E OS ÍDOLOS

com o sendo ‘ a palavra da cru z’ , fosse de encontro a não


apenas todo pensamento político romano, como tam bém a
todo o sistem a de valores da religião da antiguidade e, em
particular, ao conceito que as pessoas cultas tinham quanto
a Deus.” 10 Os prim eiros apologistas cristãos tinham uma
perspicaz consciência do escárn io que a m ensagem da cruz
desp ertava en tre os sofisticados hom ens do m undo greco-
rom ano. D esse m odo Justin M a rtyr (c. de 100-165) observou
que a base para a ofensa causada pela pregação cristã era
a crença no status divino do Jesus crucificado e a sua im ­
portância para a salvação: “ Eles dizem que a nossa loucura
consiste no fato de colocarm os um homem crucificado no
segundo lugar depois de um Deus etern o e im utável, o
Criador do m undo.” 11
O fato de que os p rim eiros seguidores de Jesus viveram
e m orreram por essa louca m ensagem é certam ente a m aior
evidên cia dessa verdade. E p recisam en te o absurdo da
“ palavra da cru z” que é a sua m elh or apologia. P ara um
auditório judeu, a confissão “ C risto (o M essias) m orreu...”
era um escândalo sem precedentes, em con tradição às
expectativas m essiânicas que prevaleciam . H en gel ainda
destaca que, en qu an to e n tre os estóicos, p or exem plo,
uma interpretação ética e sim bólica da crucificação era
possível, “ afirm ar que o próp rio Deus aceitou m orrer n a
fo rm a de um tra b a lh a d o r ju d eu da G a lilé ia , qu e fo i
cru cificad o com a finalidade de quebrar o poder da m orte
e tra ze r salvação a todos os homens, era algo que parecia
uma to lice e um a lou cu ra aos hom ens da antigü idade.
Ainda hoje, toda teologia genuína terá que ser avaliada pelo
teste desse escândalo.” 12
As conseqüências sociais dessa pregação são tam bém evi­
dentes:

Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram


chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos
poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário,
Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os
sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar
as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as
desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que

263
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

sâo; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus


(1 Coríntios 1:26-29).

Aqui está a igreja dos pobres e para os pobres, que vem a


existir como resultado da pregação do evangelho. Um evan­
gelho tão radical assim não é para ser confundido com a
radical tendência recentem ente em voga nos círculos teo­
lógicos asiáticos de identificar a igreja com os “ povos da
Á s ia ” e a evangelização com ativism o político, este últim o
exibido com categorias semimarxistas. O teólogo coreano
Kim Yong-Bock, por exemplo, dá como certo que “ a afirm a­
ção teológica principal é que os povos da Á sia são os filhos
de Deus... Os pobres, os oprim idos, as m ulheres e os étnica
e culturalm ente alienados da Á sia são o verdadeiro povo
de Deus.” 13 A obra da Igreja Cristã, então, é identificar-se
com os que já são o povo de Deus com o objetivo de fazê-
los se libertarem de se sentirem arruinados, ressentidos,
indefesos e irados - sentimentos esses que potencialmente
podem dar origem a uma fonte revolucionária de energia
psíquica. Ele continua: “ A obra de Deus entre os sofredores
da Ásia é o estabelecimento da regra soberana de justiça por
parte de Deus, pela qual o povo se torna soberano.” 14De igual
modo, um relatório feito por um grupo de teólogos ecu­
mênicos da Ásia afirma: “ Às pessoas do Terceiro Mundo -
os pobres oprimidos, os negros e as m ulheres - que são
vítim as de poderes capitalistas dom inantes contêm tam ­
bém em si mesmos a dinâmica da revolução e da libertação.
O m arxismo talvez seja a m elhor ferram enta para que eles
se libertem e para que revolucionem em direção a uma nova
ordem mundial, justa e humana.” 15
Somos forçados a pensar: é a isso que a sabedoria da cruz
foi reduzida? A visão radical do pecado que a cruz propor­
ciona agora foi diluída e domesticada num conceito puramen­
te secular de se ter sido injustiçado por outros; não há mais
necessidade “ da graça e da verdade” para sermos libertos
das distorções ideológicas de todas as form as de poder,
bastando apenas transferir o poder de um grupo social para
outro. O escritor parece revelar uma ingênua visão das
pessoas oprimidas. N em Jesus nem Paulo tiveram qualquer

264
A CRUZ E OS ÍDOLOS

ilusão quanto ã opressão humana. Em bora a m ensagem de


salvação para o rico e poderoso venha por meio do pobre (e
depende de sua vontade de se identificar com o pobre), os
pobres p ro p riam en te ditos não são salvos por sua pobreza.
O pecado vai m ais a fundo do que as estru tu ras sócio-
p olíticas nas quais ele com freqü ên cia se incorpora. A s
p ró p rias n a rra tiv a s da cru cificação m ostram -n os que
em b ora Jesus ten h a sido execu tad o com dois crim inosos,
que sofreram a m esm a hum ilhação e degradação, ele
recebeu duas respostas bem d iferen tes. U m deles qu eria
a liberdade como um d ireito seu, e o ou tro lançou-se na
m isericórdia de Jesus, ao m esm o tem po reconhecendo a
sua própria culpa. Foram os dois libertos pela cruz? Temos
que pensar ainda: a redução do evangelho a um apelo para
uma libertação política das “ massas oprim idas” não é em si
mesma uma outra manifestação da idolatria m oderna -
especificamente, a substituição de pessoas humanas por
abstrações coletivas? E isso não contribui para perpetuar
as tendências desumanizantes de tal idolatria no mundo?
Um a abordagem reducionista semelhante é aparente na
e xo rta çã o fe ita pelo ren om ad o je s u íta do Sri Lanka,
Aloysiu s Pieris, à igreja asiática quanto a ser ela “ batizada”
no Jordão da religiosid ad e asiá tica ” e ser “ cru cificad a”
na “ cruz da pobreza asiática” . Já vim os que esse últim o
apelo é com efeito uma consequência da fé naquele que
fo i rejeitado por desafiar as estruturas de poder e a ido­
latria da sua sociedade. Mas o modo pelo qual P ie ris desen­
volve a exortação a n te rio r é m ais duvidoso. E le descreve
o batismo voluntário de Jesus pelas mãos de João Batista
como uma identificação com “ a correnteza de uma antiga
espiritualidade” ,16e tira disso a conclusão de que “ a prim eira
e a últim a palavra sobre a missão da igreja local para os
pobres da Asia é a total identificação... com os monges e
com os camponeses que conservaram para nós, em seu
socialismo religioso, as sem entes da lib erta çã o que a
religião e a pobreza juntas produziram .” 17
Mas isso é com certeza im por ao texto algo que P ie ris
queira dizer! Jesus identificou-se com o m ovim ento de
renovação judeu perm anecendo próxim o de João no deser-

265
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

to da Judéia. Mas João fala de Jesus como alguém que é


“ mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de
le v a r ” , e que batizaria as pessoas não com água mas com
“ o Espírito Santo e com fogo” , tendo ainda procurado deter
Jesus, dizendo: “ Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu
vens a mim?” (M t 3:11-14). P or fim é João que se submete
ao pedido de Jesus! Será que P ie ris está preparado para
dizer que as tradições hindus e budistas de espiritualidade
relacion am -se com Jesus da m esm a m an eira que “ a
correnteza de um a an tiga espiritu alidade” de João? E v i­
dentem ente que não. Podem os com partilhar da preocu­
pação de P ie ris pelos pobres e tam bém do seu apelo à igreja
para ap ren d er das tra d ições relig io s a s asiáticas sem
condescender com essa seletiva exegese bíblica.
Os cristãos do Terceiro Mundo, lutando sob regim es opres­
sores e estruturas econômicas globais, bem fariam se pres­
tassem atenção à sabedoria daquele grande pastor cristão,
teólogo e m ártir sob o regim e nazista, Dietrich Bonhoeffer
(1906-1944). N o capítulo inicial (cujo título é “ Ética como
Formação” ) do seu famoso livro Ética , Bonhoeffer, tendo
lem brado os leitores de que “ som ente por Deus ter execu­
tado ju íz o sobre si m esm o pode h aver paz e n tre ele e o
mundo e entre um homem e outro hom em ” , e de que “ o
que aconteceu com C risto acontece com todo aquele que nele
está” 18, em seguida ele os adverte: “ N em o triunfo do que
tem sucesso nem o ódio que o bem-sucedido desperta no
coração dos que não são bem-sucedidos podem por fim
vencer o mundo. Jesus com certeza não é apologista dos
homens bem sucedidos na história, mas ele tam bém não
lidera a insurreição dos que têm uma vida malograda contra
seus bem sucedidos rivais.” 19 Bonhoeffer continua: “ N a cruz
de Cristo, Deus confronta o homem bem sucedido com a
santificação da dor, do pesar, da humildade, do fracasso, da
pobreza, da solidão e do desespero. Isso não significa que
tudo isso tem um valor em si mesmo, mas que recebe sua
santificação do am or de Deus, o am or que leva tudo isso
sobre si como uma recompensa justa. A aceitação da cruz
por Deus é o seu ju ízo sobre os homens bem sucedidos.
Mas os que não são bem sucedidos têm de reconhecer que

266
A C R U Z E OS ÍDOLOS

o que lhes dá condições para perm anecerem diante de Deus


não é sua falta de sucesso, em si, nem a sua posição como
um m iserável, mas som ente a aceitação da sentença in fli­
gida nele (isto é, infligida em C risto) pelo am or d ivino.” 20
P ara B onhoeffer, apenas a “ form a de Jesus C ris to ” , que
é a form a da cruz em oposição à form a dos planos e p ro­
gram as h u m an os, é q u e v e r d a d e ir a m e n t e se c o n fr o n ta
com o mundo e que o vence. Som ente na cruz de Cristo, ou
seja, na condição de quem suportou a sentença de Deus, é
que reconhecemos e percebem os a nossa verdadeira forma.
N ós fundam entaim ente não transform am os o mundo com
nossas idéias ou com nossos princípios ou com nossas revo­
luções, mas é o Cristo ressurrecto, que carrega em si mesmo
o novo m undo, que tran sform a os hom ens em c o n fo rm i­
dade com o que ele é.

Conformar-se com o encarnado - é isso que é ser um homem


real... A busca pelo super-homem, o esforço de superar o homem
dentro do homem, a busca pelo que é heróico, o culto do semideus,
tudo isso não é o que diz respeito ao homem, por não ser
verdadeiro... Conformar-se com o encarnado é ter o direito de
ser o homem que se é. Agora não há mais desculpa, não mais
hipocrisia, nem violência própria, não mais compulsão para ser
alguma outra coisa, melhor e mais ideal do que se é. Deus ama
o homem real. Deus tornou-se um homem real.21

C ertam en te não há um a m ensagem mais lib erta d o ra do


que esta, para a vítim a e para o agressor! Os seres humanos
podem torn ar-se verd a d eira m en te hum anos porque Deus
tornou-se v erd ad eira m en te humano. É por isso que não
podem os rea liza r a nossa p róp ria transform ação, m as é
Deus, e não nós, que tom a a nossa form a para ser a sua
form a de modo que nos tornem os, não Deus, mas, aos olhos
de Deus, humanos. A igreja não é nada m enos do que o
C risto ressurrecto tomando form a entre as vidas humanas.
A igreja tem , para o bem de todos, a form a que é a form a
con ven ien te para toda a hum anidade. C itan d o novam en te
as palavras de Bonhoeffer, “A igreja é o homem em Cristo,
encarnado, sentenciado, e despertado para uma nova vida.
Em p rim eira instância, portanto, ela não tem nada a ver

267
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

com as assim chamadas funções do homem, mas sim com


o homem integral em sua existência no mundo com todas
as suas implicações. O que im porta na igreja não é a religião,
mas a form a de Cristo, e a form a que ela assume em meio
à companhia dos homens.22
O que une as mais antigas religiões orientais e o moderno
humanismo secular é a busca por técnicas de poder: téc­
nicas que conferirão domínio sobre si mesmo e/ou domínio
sobre a ordem natural. Os deuses dos panteões da índia e
da China são essencialm ente personificações de várias
form as de poder. Devoções e rituais, menos exigentes do
que as rigorosas técnicas con tem p lativas dos m ísticos,
têm com o ob jetivo a lib ertação de toda vulnerabilidade,
sofrim ento e contingência. A fórm ula correta, a postura
devocional correta, a oferta apropriada a ser dada... todas
essas coisas são preocupações do devoto tradicional. N o
moderno mundo tecnocrático, ter o slogan certo para uma
campanha publicitária, ter o método gerencial correto, ou o
estilo político adequado, tudo isso tem vindo dominar a vida
de muitos homens. A manipulação da esfera “ espiritual”
agora vai junto com a manipulação das esferas humana e
m aterial na espiritualidade tecnocrática da N ova Era. A
cruz de Cristo, que nos dirige à condição de im potência e
de sofrim ento de Deus, voluntariam ente assumida, per­
manece como o grande antídoto à obsessão pela técnica,
tanto religiosa quanto secular. Os discípulos de Cristo,
seguros no gracioso am or de Deus, nada têm a oferecer ao
mundo a não ser a sua própria vulnerabilidade.

A Cruz entre as Nações


Retornando ao tema de Jesus crucificado fora dos portões
de Jerusalém, os discípulos de Jesus têm também de estar
onde ele está: rejeitado pelo nacionalismo. Eles têm que
compartilhar do “ vitupério” dele (H b 13:13), o isolam ento
e o ódio que contraím os quando ousamos identificar-nos
com os que são de outras comunidades nacionais e quando
pensamos globalm ente, e não em term os de nossa com u­
nidade. A cruz de Jesus reconciliou judeus e gentios, escra­
vos e livres, homens e mulheres, levando-os todos a um

268
A C R U Z E OS ÍD O L O S

m esm o n ív e l com o filh o s de Deus. U n id o s no pecado, m ais


un idos ain da na g raça (cf. E f 2:11-18; G1 3:26-29). A rec o n ­
ciliação da cru z assim te m um a d im en sã o h o riz o n ta l e um a
v e rtic a l: e la é o que to rn a ta n to o in d iv id u a lis m o com o o
n a cio n alism o um a c a te g ó rica c on tra d ição da m en sagem da
cruz. O e v a n g e lh o é u n ive rs a l em sua essência.
E n tre ta n to , assim com o ser c o n ve rtid o de u m a re lig iã o a
Jesu s não im p lica n a reje iç ã o de tu d o o q u e é bom , v e rd a d e iro
e belo no m undo da relig iã o ; assim ta m b é m p erm an ecen d o
fo r a d o n a c io n a lis m o n ã o s ig n ific a q u e se te n h a q u e d e ­
n e g r ir as cu ltu ras n acionais. D e fa to , é o con trá rio . E som en te
qu an d o ou sam os “ fic a r no lado de fo r a ” da nossa p ró p ria
c u ltu ra (n ã o n ecessa ria m en te de fo rm a física, m as e s fo r­
çando-nos p or v e r as coisas segu n do a ótica do e v a n g e lh o ),
q u e d e s e n v o lv e m o s u m a a p rec ia ç ã o c r ític a d a g ra n d e z a da
nossa p ró p ria n ação e ta m b é m das id o la tria s q u e lh e são
p ecu liares.
V im o s a n te rio rm e n te com o o m o v im e n to cris tã o fo i v is to
p elos rom an os com p e rp le x id a d e e suspeita, em p a rte p orq u e
e le se d is tan ciava das ob servân cias relig ios a s com uns, qu e
n o rm a lm e n te era m associadas com a “ b oa cid a d a n ia ” . U m
a p olo gista do segun do século, ad vogan d o q u e os cristãos
fossem m ais to lera d o s do que rep rim id o s, d escreveu -os d o
s egu in te m odo:

Os cristãos não se distinguem do restante da humanidade em


termos de país, ou língua, ou costumes... Sua doutrina não foi
descoberta por meio de uma faculdade mental, nem através do
pensamento cuidadoso de homens pretensiosos... Vivendo em
cidades tanto gregas como orientais, conforme a sorte de cada
um, e seguindo os costumes do país em vestimentas, alimentação,
e estilo de vida, eles mostram o característico status da sua
cidadania. Eles moram em seu próprio país, mas como que tendo
uma residência temporária. Eles participam de todas as coisas
como cidadãos; eles sofrem todas as coisas como estrangeiros.
Cada país estrangeiro é sua terra natal; todo lugar em que são
nativos é para eles um país estrangeiro...23

M as essa a titu d e de se r e la tiv iz a r a cid ad an ia p o lític a à luz


de rea lid a d es su p erio res não s ig n ific a v a qu e os cristãos fa-

269
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

lhassem em levar a sério o que caracterizava a cultura local.


N a verdade, era exatam ente o oposto. Desde o seu início, a
missão cristã ratificou aspectos culturais, ao mesmo tem po
em que perm anecia com uma característica universal em seu
campo de ação. Os eventos do Pentecostes foram com preen­
didos como reversos ao de Babel. O m iraculoso dom de
“ línguas” foi um símbolo da vocação da igreja, para continuar
o m inistério de Jesus para as nações sob sua perm anente
liderança e com o seu poder. Pentecostes serviu para “ san­
tific a r” linguagens seculares como canais adequados para
acesso à verdade de Deus. Do ponto de vista do evangelho,
nenhum a cultura é ineren tem en te im pura aos olhos de
Deus, nem cultura algum a é a única norm a da verdade. Esse
com prom isso com um pluralism o cristão (que aceitou uma
diversidade lingüística e social) não era uma m era to lerân ­
cia. Era o reconhecim ento de que, no plano de Deus para
a salvação, a herança de todas as nações, purificada de todos
os seus acréscimos de idolatria, por fim servirá o reino de
Deus (cf. Is 60; A p 22:24).
U m a das grandes contribuições do apóstolo Paulo à igreja
prim itiva foi sua vigilância em relação a duas frentes teo­
lógicas: contra a hegem onia cultural judaica, por um lado,
que procurava im por norm as e costumes judaicos a não-
ju d eu s con vertidos; e, por ou tro, con tra as tendências
sincretistas das religiões greco-rom anas, que constituíam
o con texto social em que a m aioria dos cristãos vivia. A
igreja de Jesus C risto era as prim ícias da “ nova criação” ,
que incorporava tudo o que era bom dos mundos judeu e
gentio, e que era p urificado pela m ensagem da cruz de seus
elem entos demoníacos. Características étnicas são então
legitim adas, sem que se torn em absolutas (cf. A t 15:1-2;
G1 2 :lls s ; 3:25-28; E f 2:14-22; 1 Co 10:14-22, 32; Rm 15:8-
16; Cl 2:13-17; Fp 4:8).
Vim os como o evangelho, que originalm ente se pôs contra
o poder da religião e que radicalm ente questionou o modo
religioso de se estar no mundo, foi ele tam bém convertido
numa nova religião sob o patrocínio dos poderes imperiais.
Constantino tornou-se o incontestável im perador de Roma
em 312 d.C., crendo que o C risto dos cristãos havia dado aos

270
A C R U Z E OS ÍDOLOS

seus exércitos vitória na batalha. A genuinidade de sua


“ conversão” ainda vem sendo debatida pelos historiadores:
parece ter sido uma curiosa m istura de superstição, de uma
genuína adm iração pelos cristãos, e de uma percepção po­
lítica. O E dito de M ilão, no ano seguinte, levou a uma tole­
rância legal dos cristãos. Finalm ente, em 380 d.C., o im pe­
rad or T e o d ó s io o fic ia lm e n te tra n s fo rm o u o C ris tia n is m o
na única religião oficial do estado, com todo o potencial para
a idolatria, para a corrupção e para o demonismo, que veio
junto. Que a igreja corroborou, não pouco, para que aquele
potencial se tornasse realidade, é um triste fato da história
que tem os que reconhecer. N ão foi tanto uma questão do
estado assum ir o c o n tro le da ig re ja , m as da ig re ja assum ir
funções do estado: com o im p é rio em d eclín io, a ig re ja
viu-se tom ando conta de um espaço vazio de poder, e passou
a assum ir as p rerrogativas do estado. N u m certo sentido
isso era in evitável, e tornou possível a preservação dos
tesouros culturais da civilização greco-rom ana de sua total
extinção. E ntretanto, a influência da corrupção dos poderes
seculares veio m inar a autoridade espiritual da igreja por
toda parte com mais eficiência do que qualquer decreto
im perial de perseguição jam ais pudesse ter conseguido.
O C ristianism o ainda é identificado com o seu passado
europeu, a despeito do fato de que a m aioria dos cristãos de
hoje acha-se fora da Europa e da A m érica do N orte. A missão
cristã no T erceiro M undo ainda é notada por outras com u­
nidades religiosas como a imposição de uma “ religião oci­
dental” , e como uma im plícita crença na superioridade dos
valores culturais ocidentais. M uitas vezes essa percepção
é baseada na ignorância tanto da fé cristã com o dessa
com plexa entidade a que descuidadamente nos referim os
como “ cultura ocidental” . E la é tam bém freqüentem ente
m otivada por um visível preconceito. Mas, com certeza, os
cristãos - para quem o reconhecim ento de que os homens
erram e que a realidade do perdão está no centro da m en­
sagem que proclamam - deveriam estar sempre dispostos a
con fessar e arrep en d er-se das p erversõ es do eva n g elh o
que foram decorrentes do colonialism o. N ã o somos cham a­
dos a defender as situações por que passou o Cristianism o,

271
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

mas a sermos testemunhas do crucificado e ressurrecto


Jesus Cristo. E Cristo permanece como ju iz da igreja em
seu percurso por toda a história, bem como de todas as
culturas históricas, de todas as crenças e de todas as estru ­
turas de poder.
Dar testemunho de Cristo começa com uma crítica a si
mesmo. Não podemos ignorar as lições da história para que
não acabemos repetindo os mesmos erros do passado. U m
m ovim ento que proclamou a graça e a prática da justiça,
uma fé que tinha como ponto central um homem que foi
crucificado como sendo a esperança da transformação hu­
mana e cósmica, não poderia ter se convertido numa c iv ili­
zação relig iosa com o ou tra qu alqu er sem que houvesse
um sério dano em sua verdadeira essência...
Entretanto, devido às corrupções e aos atos de traição à
fé, necessitamos m ostrar para os nossos críticos da Ásia que
a atividade m issionária da igreja em nossa parte do mundo
não começou com as expedições européias do século dezesseis
e com a subseqüente expansão do poder m ilitar, econômico
e cultural europeu. Os portugueses, ao atin girem a costa
sudoeste da índia, encontraram uma comunidade nativa
indiana de cristãos de 100.000 pessoas, a qual declarava ter
uma ligação direta com o apóstolo Tom é.24 Eles viviam num
relativo isolamento, tendo tido uma vez uma forte conexão
com igrejas de fala siríaca da Ásia ocidental, que tinham
sido enfraquecidas desde o surgim ento do poder islâmico
no século sétimo. A prim eira missão oficial cristã à China
foi de um patriarca persa no m eio do século sétimo: os
cristãos foram se mudando para regiões mais para o O riente,
em evangelização, mesmo quando os árabes muçulmanos
do sul estavam conquistando a P érsia zoroástrica. H á e v i­
dências de comunidades cristãs na China do século oitavo
que, ao lado dos budistas, sofreram perseguição sob a nova
dinastia im perial no século nono e que desapareceram
m isteriosam ente nos três séculos seguintes.25 Cristãos na
Ásia C entral tam bém desapareceram sob a selvagem ação
devastadora dos conquistadores mongóis sob o comando de
T am erlão no século catorze. Som ente no E gito e na Etiópia
é que antigas igrejas não européias sobreviveram bem até
o período moderno.

272
A C R U Z E O S ÍD O L O S

E um sa lu ta r d e sa fio ser lem b ra d o (p o r um destacado


h is to ria d o r a m e ric a n o qu e p esso a lm en te s erviu com o m is­
sion á rio na Á s ia ) de qu e a Ig r e ja C ris tã te v e o seu in íc io na
Á sia: “ Su a h is tó ria m ais a n tiga , seus p rim e iro s cen tro s era m
da Á sia. N a Á s ia é qu e fo i con stru íd o o p rim e iro e d ifíc io qu e
v e io a ser con h ecido com o te m p lo de u m a ig reja ; na Á s ia fo i
fe ita a p rim e ira tra d u ç ã o d o N o v o T e s ta m e n to ; p o s s iv e l­
m en te fo i n ela qu e h o u ve o p rim e iro rei cristão, os p rim e iro s
p oetas cristãos, e até m esm o é p ossível qu e n ela ten h a su rgid o
o p rim e iro estado cristão. O s cristãos da Á s ia su p ortaram
as m a iores p ersegu içõ es. E le s c ria ra m e m p re e n d im e n to s
m issio n ários g lob ais p ara a exp an são do C ris tia n ism o qu e
o O c id e n te não tin h a con d içõ es de r e a liz a r a té d ep ois do
sécu lo tre ze . A t é en tã o a Ig r e ja N e s to ria n a (co m o a m a ioria
das p rim eira s c o m u n id a d e s c ris tã s a s iá tic a s v ie r a m a s e r
c o n h e c id a s ) tin h a e x e rcid o u m a au torid a d e eclesiástica sobre
um te r r itó r io m a io r do qu e o de R om a ou C o n s ta n tin o p la .26
T o d a a h is tó ria das c o m u n id a d es cristã s n a tiva s, qu e
v iv ia m fo r a dos cen tro s de p od er do m undo, a in d a está p ara
ser escrita. M as ela seria um m eio m u ito im p o rta n te p ara
se c o r rig ir a id é ia qu e m u itos não-cristãos tê m acerca da
h is tó ria da exp an são do C ristian ism o. E ssa h is tó ria d e ve ria
ser lida, lado a lado, com as h istó ria s da p ersegu içã o e do
m a r t ír io de c ris tã o s d e n tr o d a a ssim c h a m a d a E u ro p a
“ c r is tã ” , ou seja: o cu stoso te s te m u n h o de cris tã o s qu e
r e n u n c ia r a m o p o d e r , ta is c o m o os fr a n c is c a n o s , os
b e n e d itin o s , os v a ld e n s e s , W y c lif f e e os L o lla r d s , os
a n ab atistas e os m en on itas, os m orávios, o p rim itiv o m o v i­
m en to M e to d is ta e m u itos ou tros. O s cristã os q u e fu g ira m
para o d e se rto am erica n o no século d e zessete fo ra m os qu e
tin h a m sido p e rs e gu id o s p e la Ig r e ja A n g lic a n a . B em p od e
ser o caso de q u e, no p e río d o de 1492 a 1914, q u e v iu o
g ra d u a l d o m ín io dos p o d e re s e u rop eu s p o r to d o o m undo,
m ais cristãos do q u e qu a isq u er ou tros p ovos ten h a m sido
m ortos ou v itim a d o s p o r esses m esm os p od eres europeus.
A e x p e riê n c ia colo n ia l fo i um a h is tó ria com p lexa, va ria n d o
de p e río d o a p e río d o e de país a país. O rela cio n a m e n to de
m ission ários cristã os e das ig reja s eu rop éias com a qu ela
e x p e riê n cia é ain d a m ais com p lexa, e apenas a g o ra está

273
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

começando a ser explorado.27 São som ente aqueles que


nunca tiveram conhecimento da história, que nunca exam i­
naram as complexas interações na malha dos motivos em
todas as comunidades históricas, é que têm a propensão para
sim plificar os quatro últim os séculos de missões cristãs
como sendo um conto pejorativo de “ armas e B íblias” . H á
um outro lado nessa versão que precisa ser escrito em cada
sociedade. Generalizações sem base geralm ente têm um
propósito político. Elas dão suporte a ideologias que, como
vimos, servem para disfarçar a busca de poder ou a conso­
lidação do poder (neste caso, sobre os cristãos do país).
Sem tentar fazer vistas grossas para as atrocidades que
muitas vezes foram cometidas em nome de Cristo, e para
os muitos casos de arrogância e insensibilidade, podemos
contudo citar inúmeros atos de heroísmo, de cortesia e de
auto-sacrifício por parte de m issionários ocidentais em
todos os continentes. Alguns deles estiveram entre os mais
brilhantes jovens intelectuais da Europa e da Am érica.
Muitos morreram ainda jovens, outros foram atingidos por
enferm idades e por uma saúde precária ao trabalharem em
tórridas regiões. E les fizeram com que toda atividade
humana fosse a serviço do evangelho, desde a educação de
mulheres e de párias da sociedade a casas publicadoras e
agricultura. M uitas das melhores instituições médicas e
educacionais ainda atuantes no subcontinente da índia
{como p. ex. V ellore, Luddhiana, Universidade de Seram pore)
foram fundadas por cristãos por sua própria iniciativa,
muitas vezes contra a vontade dos colonizadores europeus
ou de seus próprios governos. De fato, a contribuição
missionária para a saúde pública na Ásia e na Á frica não tem
sido nada menos do que extraordinária: do tratam ento da
lepra e de descobertas pioneiras em epidem iologia até o
desenvolvimento de sistemas de assistência social, e o trei­
namento de trabalhadores para prim eiros socorros e o es­
tabelecimento de instituições educacionais para médicas e
enferm eiras.28
Conquanto toda a atividade de despojo e de opressão feita
pela Espanha e por Portugal, com a cumplicidade da hierar­
quia católica, seja bem conhecida até mesmo em livros

274
A CRU Z E OS ÍDOLOS

didáticos de escolas primárias, poucos dentre nós sabem a


resp eito de hom ens com o A n tô n io de M on tesin os ou
Bartolom eu de Las Casas - ambos m issionários católicos que
foram para a Am érica Latin a no século dezesseis - que
defenderam os d ireitos dos indígenas nativos e que com
vigo r denunciaram as ações feitas pela hierarquia de sua
própria igreja. Ou que dizer dos evangélicos, tais como Van
der K em p, P h ilip e Kibb, na Á fric a do Sul, que foram
odiados pelos colonizadores europeus por terem defendido
as tribos negras; e também que dizer dos esforços seme­
lhantes feitos pelos evangélicos contra o comércio árabe de
escravos na Á frica oriental, no século dezenove.
Tam bém se deu que os interesses de m issionários e
colonizadores, longe de terem um a atuação conjunta,
geralm ente se defrontaram uns com os outros. A té 1833,
por exemplo, missionários britânicos foram barrados de
entrar na índia pela “ East índia Com pany” (um a empresa
britânica, fundada em 1600, que cresceu a ponto de tornar-
se o prim eiro im pério com ercial m ultinacional do mundo
e que se tornou um grande poder na índia até que certas
circunstâncias forçaram a coroa britânica a intervir direta­
mente nesse país em 1858), pois havia o receio de que as
conversões tivessem um efeito negativo no comércio local.
Poucos sabem que o trabalho pioneiro de missionários eru­
ditos cristãos, com antigos livros hindus e budistas, e sua
tradução em línguas européias, foi um fator chave no
reavivam ento dessas religiões no subcontinente indiano nos
séculos dezenove e vinte. M esm o quando os eruditos não
eram missionários cristãos, as editoras cristãs foram muitas
vezes as prim eiras a dissem inar os resultados do trabalho
deles. P o r exemplo, o livro de Rhys David sobre o Budismo,
em 1877, que foi a prim eira obra de nível universitário em
inglês sobre aquela religião, foi publicado pela Sociedade
de Propagação do Conhecimento Cristão. (H averá alguma
obra sobre o Cristianism o publicada por uma editora bu­
dista, hindu ou muçulmana?) Quantos sabem que a época
áurea da atividade m issionária cristã tem sido o século
vinte, e especialmente no período pós-colonial? Há mais
missionários transculturais em ação no mundo de hoje do

275
A FA LÊ N C IA DOS DEUSES

que em qualquer outro período da história humana (e


p rovavelm ente haja mais do que a soma de todos os do
passado). E a estimativa é que na prim eira década do século
vinte e um haverá mais missionários transculturais pro­
testantes enviados dos países do Terceiro Mundo ou para o
T e rc e iro M undo do que os enviados dos países d esen vol­
vidos do Ocidente.29
Um ponto de destaque na estratégia missionária protes­
tante foi sempre a tradução da Bíblia. Para isso muitas vezes
foi necessário criar a linguagem escrita pela prim eira vez,
e a criação de gram áticas e literaturas locais. Isso se deu
tanto na Europa como na Ásia ou na África. A tradução da
B íblia para mais de 2000 línguas tem sido o principal
instrumento para uma renovação cultural indígena em
m uitas partes do mundo. P or acreditar que a verdade da
Bíblia independe da língua em que se incorpore, e que a
linguagem do povo é adequada para a participação do m o­
vimento cristão, os m issionários e tradutores mais sérios
preservaram uma grande variedade de línguas e culturas
da extinção, e trouxeram trib os e grupos étnicos desco­
nhecidos para o curso da história universal.
Ninguém mostrou essa verdade com tanta propriedade
do que o erudito africano ocidental Lam in Sanneh, agora
professor na Yale University. E le escreve: “ Em m uitos
casos importantes, essas línguas receberam o seu prim eiro
sopro de vida através do interesse cristão. Isso é verdade
quer estejamos falando de Calvino e o nascimento do francês
moderno, de Lutero e o alemão, de Tyndale e o inglês, de
Robert de N obili ou W illiam Carey e os vernáculos indianos,
de M iles Brunson e o assamês, de Johannes Christaller e
a língua acã em Gana, de M offat e a língua sichuana na
Botsuana, de A ja y i C row th er e o yorru b a na N ig é ria , e de
K ra p f e o sw ah ili na Á fric a O rien ta l, isso para tirar ao
acaso de uma lista de muitos exemplos... a tradução para
a língua do povo desperta autoconfiança, o que por sua vez
dá alento ao sentim ento nacional.” 30 Sanneh observa que
a visão cristã de que todas as culturas podem servir ao
propósito de Deus, ‘tirou da cultura o perigo da idolatria,
emancipando-a com a força da tradução e do uso’ .31 Trata-

276
A CRU Z E OS ÍDOLOS

se talvez de mais uma das m uitas ironias da história da


igreja que tal renovação na cultura nativa tenha se trans­
form ado num g rito estrid ente antim issionário e poste­
riorm ente em nacionalismo.
Sanneh convida-nos a contrastar essa atitude cultural em
relação à do Hinduísmo ou do Islamismo. Tanto para o
Hinduísmo como para o Islamismo os textos sagrados não
são traduzíveis. O sânscrito e o árabe são as línguas divinas,
e a cultura de origem torna-se o paradigma universal. A té
quase ao fim do século vinte muitos hindus de alta casta
acreditavam que por se aventurarem saindo da índia pode­
riam ficar ritualm ente contaminados. Enquanto o Islamismo
tem praticado um pluralismo social, é “ através da tolerância
mais do que pela substituição da língua árabe pelo verná­
culo” .32 O sucesso missionário do Islamismo é de fato a
universalização do árabe como a linguagem da fé. Todo
muçulmano tem que se firm ar na língua árabe ao entrar na
mesquita para realizar os seus ritos, uma passagem diária
que para muitos alcança o seu clímax na peregrinação anual
a Meca. Quando se considera que três dentre quatro muçul­
manos no mundo não são árabes, fica claro que isso implica
numa degradação da língua m atern a nos atos fu n d a­
m entais de piedade e de devoção. A diversidade cultural é
contemplada, na m elhor das hipóteses, como sendo ir re le ­
vante, ou, na pior, como sendo um im pedimento para a fé.
O historiador Brian Stanley, comentando sobre o fracasso
de m uitos trabalhos m issionários britânicos no século
dezenove, deu como causa não uma falha na motivação, mas
uma falha na santificação: “ Os missionários que tinham
plena consciência da necessidade de serem radicalmente
distintos em seu com portam ento em relação às pessoas
não-cristãs a quem haviam sido enviados, não tinham o
entendim ento de que era igualm ente necessário eles serem
diferentes em relação aos pressupostos raciais e culturais
do seu próprio ambiente social... O erro deles não foi terem
sido indiferentes diante da causa da justiça para com os
oprimidos, mas que suas percepções quanto às exigências
da justiça eram muito facilm ente moldadas para se enqua­
drarem nas ideologias ocidentais prevalecentes.” 33

277
A F A LÊ N C IA DOS DEUSES

A lição para o testemunho cristão de hoje é clara. A própria


natureza do evangelho im plica em que tomemos, com igual
seriedade, tanto a particularidade cultural como a rela ti­
vidade cultural. A igreja que é a portadora do evangelho
para as nações precisa ser criticam ente consciente de sua
própria situação soeiocultural. Ela tem que saber até que
ponto a sua pregação, o seu estilo de vida e as suas m etodo­
logias expressam essa situação, e como a desafiam. Mas a
capacidade para desafiar é possível apenas se a igreja levar
a sério a sua natureza que se caracteriza pela pluralidade
cultural. U m a parceria entre cristãos provenientes de toda
tradição e cultura dentro da igreja mundial, envolvendo
um atento intercâmbio de idéias, é indispensável para um
testemunho unido e fiel a Jesus Cristo.
Infelizm ente, as possibilidades para essa parceria pare­
cem ser desanimadoras no m om ento em que escrevo. O
m ovim ento ecumênico mundial parece ter abandonado seu
propósito original de trazer as várias igrejas a uma visível
e orgânica união entre si. O próprio compromisso básico do
Conselho M u ndial de Igrejas com “ Jesus C risto como
Salvador e Deus, de acordo com as Escrituras” parece ter
caído no esquecimento, deixando de expressar os lim ites
aceitáveis dentro de um pluralismo doutrinário. Embora
muitas de suas declarações públicas e documentos de tra­
balho denotem um forte compromisso para com a auto­
ridade bíblica e para com a evangelização mundial, seus
program as tanto em âm bito nacional como em âm bito
internacional tendem a ser seqüestrados pela última moda
política. Ele tende a m ultiplicar “ cristãos da moda” que
m arginalizam todos os demais que não concordem com a
sua posição teológica ou que se recusem a identificar o
evangelho com uma determinada causa política.
De igual modo, a população evangélica tem se fragm en­
tado em muitas igrejas e organizações independentes, cada
uma com sua program ação particular e com a sua estra­
tégia pela evangelização mundial. Planos para se orques­
trar o que chamam de “ missão global” norm alm ente são
formulados em algum banco de computadores da Califórnia
ou em alguma m egaigreja sul-coreana. Quem quer que

278
A CR U Z E OS ÍDOLOS

levan te questões fundam entais eom resp eito à fa lta de


uma teologia da m issão sim p lesm en te é d escartad o com o
um c rip to -liberal. Um dos muitos paradoxos no cenário
evangélico é que a abundância da tecnologia das comuni­
cações dentro das igrejas tem sido acompanhada, pari
passu, por um declínio inversam ente proporcional na com u­
nicação entre os cristãos!
Parece-me que muitos líderes evangélicos, especialmente
nos Estados Unidos, têm sido enganados pelo m ito da Aldeia
Global. O fato de que posso telefonar para N ova Y ork de
Colombo, no Sri Lanka, com m aior facilidade do que, por
exemplo, para Madras, na índia, não quer dizer que o mundo
está tornando-se menor, e m uito menos que estejamos nos
entendendo melhor, passando por barreiras culturais, sociais
e teológicas. Tudo o que isso reflete é o modo pelo qual a
tecnologia segue as redes distorcidas do poder econômico e
político. Como vimos num capítulo anterior, os que detêm
a tecnologia das comunicações, são os que estabelecem a
ordem do dia, em escala mundial. O que conta como “ notícia” ,
por exemplo, é o que os magnatas da televisão e da imprensa
decidem que é notícia. Como conseqüência da televisão
mundial, a maioria da população do Terceiro Mundo tem uma
imagem bem distorcida da vida das pessoas do Ocidente e
da cultura ocidental, enquanto que provavelm ente a maioria
dos ocidentais de hoje são menos informados quanto a outras
sociedades não-ocidentais (incluindo-se o modo pelo qual os
não-ocidentais as vêem ) do que foi a geração de seus pais.
Ainda, enquanto os cristãos americanos e da Ásia oriental
estiverem cegos quanto ao modo como o seu poder econômico
e político distorce a sua apresentação do evangelho, todos os
seus esforços bem intencionados em prol da “ missão global”
sairão pela culatra nas igrejas do T erceiro Mundo. Um a vez
mais os pobres são expostos a um Cristo tipo Constantino
em vez de ao Cristo da cruz. A aliança do know-how do
mundo dos negócios com em preendim entos m issionários se
mostrará ser desastrosa, como sempre foi na história da
Igreja. M etodologias evangelísticas contemporâneas, com
toda a sua preocupação com técnicas gerenciais e estra té­
gias m ercadológicas, não apenas m inam o im pacto radical

2 79
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

do evangelho como tam bém servem para reforçar a id enti­


ficação da Ig re ja C ristã com as tendências despersona-
lizan tes da m odernidade.

Conclusão
Onde quer que a cruz seja pregada, o estigm a do desprezo
e da vergonha é levado. V im os como a cruz é em si um objeto
de horror, e que a m ensagem que ela incorpora é um es­
cândalo para os ricos, para os orgulhosos, para os poderosos
e para os religiosos de toda época. Ela é a resposta de Deus
à id o la tria do coração humano. M as esta m ensagem tem
sido traída com tanta freqüência pela Igreja C ristã em suas
associações idólatras com a riqueza e com o poder, que o
ridículo que ela agora evoca, en tre pessoas tanto religiosas
como seculares, é de um tipo bem diferente. O seu sentido
tem sido c om p leta m en te ob scu recid o ou en tão red u zid o
em sua im portância. H oje a cruz do Jesus ressurreto poderá,
uma vez mais, ser um evangelho libertador tão som ente se
fo r proclam ado com hum ildade, com arrep en d im en to e
confissão, e com um am or não manipulador. A igreja tem
que encarnar as Boas N ovas como tam bém proclamá-las.
Em outras palavras, a proclam ação que Jesus é o cam inho
verd ad eiro e v iv o para o P ai (cf. Jo 14:6) som ente pode ser
feita por quem esteja andando no cam inho em que Jesus
andou.
Lesslie N ew b ig in , que foi um m ission ário por m uitos
anos no sul da índia, convocou os cristãos, especialm ente
os do Ocidente, a desafiar toda a estrutura de conceitos
segundo a qual a cultura con tem p orân ea opera: “ O que
tem que ser requerido é uma radicai conversão, uma con­
versão da m ente, de form a que as coisas sejam vistas de
m aneira d iferente, e um a conversão da vontade, de modo
que as coisas sejam feitas de m an eira d iferen te. T em -se
que recusar tam bém a te n ta tiv a in ú til de recom endar a
visão bíblica de como as coisas são, procurando ajustá-la aos
pressupostos da nossa cultura.” 34
Os cristãos da Á sia estão expostos a uma m ultidão de
culturas, tanto religiosas com o seculares. A bsorvem os a
cultura da m odernidade predom inante de hoje através do

280
A C R U Z E OS ÍDOLOS

nosso sistema educacional, das profissões e dos meios de


comunicação, enquanto os pressupostos e a orientação das
nossas tradicionais culturas religiosas m oldam as nossas
respostas emotivas, a nossa vida em família, e as nossas
escolhas “ particulares” . Estamos numa singular posição:
querendo abarcar ao m esm o tem po culturas antigas e
modernas, e sendo chamados a fazer delas uma unidade
transform adora em Jesus Cristo.
Mas nós, orientais, tem os feito o que os irmãos do Oci­
dente têm feito com freqüência: temos desviado o foco do
evangelho do domínio da história (o que é público) para o
de uma “ experiência relig iosa” particular nossa; tem os
separado o nosso mundo exterior do interior, o espiritual do
material. Em nome de Cristo, temos abençoado regimes
cruéis, tanto da direita como da esquerda; temos sido indi­
ferentes em relação à exploração econôm ica e à d iscrim i­
nação social; tem os celebrado o socialism o numa geração
e o capitalism o na seguinte, como sendo a manifestação do
reino de Deus; temos incentivado a intolerância e os nacio­
nalismos étnicos; temos tanto denegrido as tradições reli­
giosas como inocentemente saudando-as todas como sendo
“ igualm ente válidos cam inhos para D eus” . Aqu eles em
nosso m eio que têm sido corretam ente sensíveis às distor­
ções da im agem de Jesus produzidas pelo colonialism o e
que ainda florescem em muitas partes da Ásia, têm, por sua
vez, produzido outras distorções: p. ex., Jesus como F eiti­
ceiro, como Mãe, como Trabalhador, como Guerrilheiro...
A ironia é que aqueles que têm sido mais loquazes em
sua desdenhosa destituição do C ristianism o evangélico,
taxando-o de ser uma “ im portação cultural do O cid en te” ,
eles mesmos têm sido seduzidos pela postura mental do
Iluminismo que, como vimos, foi uma forma peculiar de
projeto do Ocidente, e que agora está passando pelas agonias
finais da m orte intelectual. Assim, por exemplo, o destacado
teólogo indiano e líd er ecum ênico, S tan ley Sam artha,
argumentou que as declarações referentes ao senhorio de
Jesus sobre toda a vida têm de se confinar à vida litúrgica
e ao culto prestado pela comunidade cristã, cujo único
chamado é para “ con tribuir para o conjunto de v a lores”

281
A F A L Ê N C IA DOS DEUSES

que vai fundam entar e nu trir o carácter pluralista e secular


do estado da índia.35 Eis aí a velha separação entre fatos e
valores com pletam ente à mostra. Mas como certos valores,
tais como “ju stiça” e “ unidade” podem ser tomados à parte
de determ inadas crenças quanto à n atu reza das coisas?
N ã o é a condição m iserável dos m argin a lizad os na ín d ia
em si mesma a expressão de uma ju sta ordem cósmica -
segundo o Hinduísm o de Brahma? N ão é injusto, com base
na concepção in d iv id u a lis ta q u a n to aos seres hum anos
nos estados liberais ocidentais, in terferir no “ direito a um
consumo ilim itad o” ?
Os valores cristãos têm por base uma visão diferente das
coisas, a qual é dada pela histórica estória de Jesus. Esta
história questiona outras visões do mundo. P edir para a
igreja contribuir com valores tomados daquela estória, mas
sem proclamar aquela estória em si, isso é d izer para a igreja
que ela tem que negar a sua id entidade e a coisa m ais
im portante que lhe foi confiada por causa da sociedade a
que ela pertence. Os cristãos são chamados a trabalhar ao
lado de outros na construção de viáveis estruturas políticas
que assegurem a justiça para todos, e isso é de fato um aspecto
vitalm ente im portante de nosso testemunho, quer no O ci­
dente, quer no O riente. M as separar as palavras das obras;
a proclamação, do serviço; a justiça, da verdade; isso é
tornar-se vítim a dos falsos e perigosos dualismos da cultura
moderna.
Se confessar Jesus como Senhor de toda a vida quer d izer
que se esteja oferecendo uma salvação extra-m undo para
“ alm as” abstratas, divorciadas de sua existência histórica,
e que deixa seus relacionam entos com as estru tu ras de
poder de sua sociedade intocáveis, então estam os apenas
trocando um conjunto de ídolos por um outro. Se, por outro
lado, desafiarm os as estruturas de poder da sociedade com
base em qualquer outro fundam ento que não o da graciosa
proclamação do Jesus crucificado e ressurrecto, e evitando
a vulnerabilidade do cam inho da cruz, de igual form a es­
tarem os confrontando a idolatria com a idolatria. A firm a r
com clareza e com ousadia a verdade do evangelho, o fato
da soberania de Jesus C risto como o único Salvador e Juiz

282
A CRU Z E OS ÍDOLOS

de todo empreendimento humano, e fazer isso de forma


pública, não importando se as pessoas aceitem ou rejeitem,
isso bem pode ser a mais profunda ação política que a igreja
venha a assumir em qualquer sociedade e em qualquer
parte do mundo.
“ Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (1 João 5:21).

Notas
1 Lord Hailsham, The Door Wherein I Went (A Porta pela Qual Eu Entrei)
- Londres: Collins, 1975; p. 54.
2 D. Sayers, Creed or Chãos (Credo ou Caos) - Nova York: Harcourt
Brace & Co., 1949; pp. 5-6.
3 E. Jüngel, God as the Mystery ofthe World (Deus Como o M istério do
Mundo) - Edimburgo: T & T Clark, 1983; p. 13.
4 N. T. Wright, Who Wbs Jesus? (Quem Foi Jesus?) - Londres: SPCK,
1992; p. 52 (itálicos no texto).
5 Citado em W. Temple, Readings in St. John’s Gospel (Leituras do
Evangelho de São João) - 1939 a 1940; reimpr. Macmillan, 1968;
p. 366.
8 Citado em J. Atkinson, Martin Luther: Prophet to the Church Catholic
(M artinho Lutero, Profeta para a Igreja Universal) - Grand Rapids:
Eerdmans/ Exeter: Paternoster, 1983; p. 183.
7 P. ex.: J. M oltmann, The Crucified God (O Deus C rucificado) -
trad. ingl., Londres: SCM, 1966; pp. 240ss.
8 Ibid.; p. 276.
9 Lutero, op. cit.; pp. 20,21.
10 M. Hengel, Crucifixion (Crucificação) - 1977 em The Cross o f the
Son o f God (A Cruz do Filho de Deus) - Londres: SCM, 1986.
11 Apology I (Apologia I) 13.4. citado em Ibid., p. 93.
12 Op. cit.; p. 181.
13 Kim Yong-Bock, “ T he Mission o f God in the Context o f the Suffering
and Struggling Peoples o f Asia” (A Missão de Deus no Contexto dos
Povos Sofredores e Lutadores da Ásia) em Peoples o f Asia, People o f
God - Osaka: Conferência Cristã da Ásia, 1990; p. 12.
14 Ibid.; p. 13.
is Third World Theologies: Papers and Reflections from the Second
General Assembly o f the Ecumenical Association o f Third World
Theologians (Documentos e Reflexões da Segunda Assembléia Geral
da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo) - dezembro,
1986, Oaxtepec, México, ed. KC Abraham (Maryknoll, NY: Orbis, 1990;
p. 20.

283
A FALÊNCIA DOS DEUSES

16 A. Pieris, An Asian Theology ofLiberation (Um a Teologia da Libertação


Asiática) - T & T Clark, 1988; p. 48.
17 Ibid.; p. 45 (itálicos no texto).
18 D. Bonhoeffer, Ethics (Ética) - trad. ingl., Londres: SCM, 1955; p. 13.
19 Ibid.; p. 15.
20 Ibid. pp. 15,16.
21 Ibid. pp. 18,19.
22 Ibid.; p. 21.
23 Epistle to Diognetus (Epístola a Diognetus) - em H. Bettenson (ed.),
The Early Christian Fathers (Os Prim eiros Pais do Cristianismo) -
Oxford: Oxford University Press, 1956.
24 S. Neil, A History o f Christian Missions (Um a História das Missões
Cristãs) - Londres: Penguin, 1964; p. 143. Para ter uma recente e
equilibrada pesquisa da tradição de Tomé, veja SH M offett, A History
o f Christianity in Asia (Um a História da Cristandade na Ásia) - vol.
1: Beginnings to 1500 (D o In ício A té 1500) - São Francisco:
HarperCollins, 1992, Cap. 2.
25 M offett, Ibid. Cap. 15.
26 Ibid.; p. xiii.
27 Ver; p. ex., B. Stanley, The Bible and the Flag (A Bíblia e a Bandeira)
- Leicester: Apollos, 1990.
28 Veja; p. ex., S. G. Browne, F. Davey e W.A.R. Thomson, Heralds o f
Health: The Saga o f Christian Medicai Initiatives (Arautos da Saúde:
A Saga das Iniciativas Médicas Cristãs) - Londres: Christian Medicai
Fellowship, 1985.
29 B. L. Myers, The Changing Shape o f World Mission (A Mutável Forma
da Missão Mundial) - Monrovia, CA: MARC, 1993; p. 18.
30 L. Sanneh, “ Pluralism and Christian Commitment” (Pluralismo e o
Compromisso Cristão) - em Theology Today (Teologia Hoje), vol. 45,
abril 1988; pp. 21-33.
31 Ibid.; p. 27.
32 Ibid.; p. 23.
33 Stanley, op. cit.; pp. 182-184.
34 L. Newbigin, The Òther Side ofNineteen Eighty Four (O Outro Lado
de 1984) - Genebra: WCC Publications, 1983; p. 53.
36 S. J. Samartha, One Christ - Many Religions: Towards a Revised
Christology (U m Cristo - Muitas Religiões: Em Direção a uma
Cristologia Revisada) - Ed. indiana, Bangalore: S A TH R I, 1992.

284
índice Remissivo

Alvares, Claude 197, 222 Foucault, M ichel 22


Aquino, Tom ás de 64, 78 Freud, Sigmund 50-52, 58, 66-72
Ávila, C. 78 Fromm, Eric 52, 77
Atkinson, David 131, 137 Fukuyama, Francis 15, 40

Bauckham, Richard 95, 120, 167, Galbraith, John K. 62, 77


175 Gellner, Ernest 70, 78, 228, 248
Bell, Daniel 14, 40 Giddens, Antony 11, 22, 40
Berger, P. L. 78 Goudzwaard, B. 41
Bernstein, C. 29, 41 Gunton, C. 78
Blocher, H. 175 Gutierrez, Gustavo 129, 134
Bonhoeffer, Dietrich 59, 77, 266,
284 Hailsham, Lord 253, 283
Broglie, Louis de 211, 222 Havei, Vaclav 18, 19, 24, 40
Brunner, Em il 138, 174 H awking, Stephen 79, 104, 108,
Bube, Richard 190, 221 119, 120, 185
Buber, M artin 91 Hegel, G. W. F. 43-47, 67, 77
Buckley, Michael 33, 41 Hengel, M artin 262, 283
Hirota, Janice 30, 41
Calvino, João 94, 120 Hooykaas, R. 220
Camus, Alb ert 179, 214, 221 Hume, David 226
Capra, F ritjo f 200, 222 Huxley, T. H. 178
Cassirer, E. 248
Chadwick, Owen 113, 120 Ibister, J. N. 78
Chesterton, G. K. 31
Crisóstomo, Joáo 63, 77 Jaki, Stanley 110, 120, 221
Conze, E. 175 Jung, Cari 69
Cupitt, Don 246, 249 Jüngel, Eberhard 256, 283
Justin M artyr 263
Darwin, Charles 113, 120, 202
David, Rhys 275 Kant, Immanuel 25, 224
Dawkins, Richard 109-115, 120, Kelvin, Lord 177
202, 214, 222 Kitchen, K. A. 119
Descartes, René 21, 225, 226, 248 Koop, C. E verett 119
Dubos, René 93, 119 Kolakowski, Leszek 176, 220
Kuhn, Thomas 230-235, 248
Einstein, Alb ert 104,184,210,221, Kuhse, H. 38-39, 90, 119
240
Engels, F. 9, 40, 77 Lakatos, I. 115, 120
Laplace, P ierre de 108
Ferris, Tim othy 184, 221 Leggett, A. J. 184, 221
Feuerbach, Ludwig 22, 49, 72, 77 Lewis, C. S. 73, 78, 96, 121, 137
Feyerabend, Paul 235, 249 Livingstone, D. N. 120
Findlay, J. N. 44, 77 Lutero, M artinho 166, 175, 260-
Forman, P. 202, 222 262, 283

285
A FALÊNCIA DOS DEUSES

Macintyre, Alasdair 229, 248 Rostan, Jean 91


MacKay, Donald 219, 222 Russell, Bertrand 204, 222
Marx, Karl 9,10, 40,42,47-51, 58, Russell, C. A. 179, 221
66-72, 77, 142
M axwell, J. C. 177 Samartha, Stanley 281-282, 284
Melrose, Diana 194, 222 Sanneh, Lam in 276, 284
Merton, Robert 17, 40 Sayers, Dorothy 253, 283
M idgley, M ary 24, 25, 30, 41, 199, Schlesinger, Arthur 162, 174
222 Shillito, Edward 257
M offet, S. H. 284 Singer, P. 38, 41, 90, 119
Moltmann, J. 78, 259, 283 Smail, David 181, 221
Monod, Jaques 111, 120 Smith, Adam 143-145, 174
Moore, J. R. 113, 120 Stanley, Brian 277, 284
M uggeridge, M alcolm 137 Steiner, George 27-29, 41,118-120
Myers, B. L. 284
Taylor, Charles 20-21, 41
Nandy, Ashis 151, 174 Tem ple, W. 283
Needham, Joseph 93,119,176,220 Tolkien, J. R. 96
N eil, S. 284 Torrance, Thomas 118, 120, 183,
New bigin, Lesslie 243, 244, 249, 221, 243
280, 284 Toynbee, Arnold 92, 119
New ton, Isaac 108 Traherne, Thomas 118, 120
Niebuhr, R. 223, 248
Nietzsche, Friedrich 39, 91 Villa-Vicencio, Charles 67, 78
Volf, M iroslav 145, 174
0 ’Donovan, O. 119
Orwell, George 171 Weber, Max 10, 20, 40
W eil, Simone 74, 78
Paley, W ílliam 112 Weinberg, Steven 217, 222
Pascal, Blaise 117, 120, 183, 221 W ick ram a sin gh e, C han dra 183,
Pieris, Aloysius 265, 283 202, 222
Polanyi, Michael 38, 237-243, 249 Wiseman, D. 119
Popper, K arl 230, 231, 236, 248 W olterstorff, Nichoías 165, 175
W right, G. F. 114
Ray, L. 41 W right, N. T. 256, 283
Reventlow, H enning G raf 21, 41
Rorty, Richard 14, 18, 40 Yong-Bock, K im 264, 283

286
A FALÊNCIA DOS DEUSES
A Idolatria Moderna e a Missão Cristã

Eis um livro para um mundo - e para a Igreja - que se acham


cravados de idolatria. Falência dos Deuses mostra que o nosso
mundo moderno, tanto o secular como o religioso, acha-se
pesadamente impregnado de falsos deuses. Eles escravizam os
seus devotos e descarregam sofrimento e caos por todo o globo
terrestre. Muitos desses deuses já se infiltraram na vida da Igreja
e interferiram no testemunho que ela tem que dar. Fazendo uso
de uma vívida crítica social, junto com novas abordagens de
textos bíblicos bem conhecidos, este livro foi escrito de uma
perspectiva do Terceiro Mundo de hoje, mas sendo dirigido aos
cristãos de toda a parte, a quantos queiram aprofundar-se nestas
questões.

Vinoth Ramachandra vive em Colombo, no Sri Lanka. Ele é


Secretário Regional para o Sul Asiático da Comunidadelnternacíonal
de Estudantes Evangélicos (CIEE), que é uma associação a nível
mundial de cento e quarenta movimentos nacionais estudantis.

"... com uma percepção que os cristãos ocidentais ... raramente conseguem ter,
Vinoth Ramachandra oferece uma análise intelectual totalmente satisfatória da
bagagem subcristã que acompanha e mina a missão cristã, e dá em resposta um
enfoque em sólidas bases bíblicas da obediência centrada na cruz de Cristo."
Dr. Steve Hayner, da IntvrVarsity Clirisiian 1'cUoYship dos Estados Unidos

"Uma robusta exposição dos fracos fundamentos em que se apoiam os ídolos de


hoje ... teologicamente bem delineada e altamente estimulante."
Coh Keat-Peng, da Fedeiraçào Cristã da Malásia

\ã m it/i
RESPOSTAS PARA HOJE

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