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Assim, a análise das peças procura empreender a tarefa que Antonio Candido menciona

em Crítica e sociologia: “neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia (…)
para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de
arte. Quando isso se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna
interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica”1. Essa transformação
do contexto em texto segue também inspiração de Theodor Adorno que, ao explicar para
uma turma de alunos, já em 1958, a sua polêmica com Walter Benjamin acerca da crítica
dialética, formulou alguns princípios importantes, que pretendem servir de base ao
trabalho que se segue: “talvez possa contar-lhes algo da controvérsia que tive, agora há
quase vinte anos, com Walter Benjamin quando ele estava escrevendo o seu trabalho
sobre Baudelaire. Trata-se de uma primeira parte não publicada desse trabalho sobre
Baudelaire ( A boehmia), da interpretação de um poema de Baudelaire do ciclo “O
vinho”, chamado “ O Vinho dos trapeiros”2.
Adorno conta que, na interpretação desse poema, Benjamin menciona um imposto
urbano ao vinho, que por essa época houve em Paris e que obrigava os trabalhadores a
transladarem-se às portas da cidade, por fora das barreiras alfandegárias, e beber ali o
vinho, caso pudessem pagá-lo mais barato, livre do imposto. Benjamin menciona que
havia escritores franceses daquela época que representavam – não soa muito crível – a
esses trabalhadores bêbados exibindo de regresso, em certa medida altivamente, sua
bebedeira para demonstrar que haviam conseguido, por uma sorte de ato de oposição,
aquilo que materialmente não deviam fazer, isto é, embebedarem-se. E Benjamin
acreditou detectar no ciclo “O vinho” alguns núcleos temáticos deste tipo: “mas se
consideram vocês a ideia de uma dialética materialista, isto é, de uma explicação teórica
dos fatos sociais a partir de condições materiais, então para uma teoria semelhante não
basta recorrer a estes fatos não mediados como o imposto ao vinho, não importa o quão
concreto pareça isto nem quão tentadora seja semelhante concreção”3. Adorno afirma aos
alunos que não importa quão grande tenha sido sempre o entusiasmo do pensamento
crítico em poder unir fatos aparentemente manifestos, sem mediação, com as mais altas
categorias literárias: “naquele momento tratei de dizer-lhe que, para uma interpretação

1
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000, p.7
2
ADORNO, Theodor. Introducción a la dialéctica. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013, p.177
3
Idem, ibid.
dialética do conteúdo de uma poesia, não bastava indicar certos temas pontuais de
contradições materiais e de tensões materiais desse tipo”4.
Para Adorno, a dialética materialista, em qualquer circunstância e sempre, deve
supor que os resultados singulares sobre os que se apoia estão mediados pela totalidade
da sociedade; de modo que as experiências pontuais, ainda que sejam tão chocantes e
ainda que sejam tão palpáveis, em si nunca bastem para sacar consequências teóricas da
sociedade, senão que se deve relacionar esses momentos particulares, por seu lado, à
estrutura da totalidade social, se não queremos nos perder na mera designação de fatos
manifestos: “e então, quando o que nos ocupa é a relação da lírica de Baudelaire com o
auge do capitalismo, e de fato foi esse o primeiro caso, até agora jamais igualado, de uma
lírica arrancada das condições do capitalismo em seu apogeu, então não se pode
contentar-se com apontar alguns núcleos temáticos da realidade capitalista, tal como os
que teve à vista Baudelaire, e invocá-los para explicar seu conteúdo, senão que há que
derivar, por exemplo, o caráter de mercadoria, que de fato em Baudelaire ocupa um lugar
central, a partir da estrutura social inteira e logo intentar perceber de alguma maneira
o reflexo subjetivo da forma da mercadoria nesta lírica, mas não se conformar com
motivações pontuais”[grifo nosso]5.
A importância do que ensinou Adorno reside no fato de que a determinação
materialista dos caracteres culturais só resulta possível mediada pelo processo histórico
inteiro. Assim, além de tentar relacionar o tecido histórico brasileiro com as peças
teatrais, mediando os dois extremos por meio da forma das peças, este trabalho pretende
relacionar os fragmentos da realidade expressos nas obras a um contexto histórico de
longo curso: a peculiar formação da sociedade brasileira.

No entanto, se seguirmos o percurso de Adorno em sua reflexão sobre a mímesis, é


possível identificar outras faces do conceito. Já mencionamos na Introdução uma troca
de cartas entre Adorno e Walter Benjamin, de 1938, a respeito da primeira versão do
ensaio de Benjamin sobre Baudelaire, escrito a pedido da Revista de Pesquisa Social. Em
nome da redação da revista, Adorno recusa o manuscrito e pede uma reformulação do
texto: “a razão [do meu desacordo teórico] está em que julgo infeliz, do ponto de vista do
método, tomar "materialisticamente" alguns traços singulares claramente reconhecíveis

4
Idem, ibid.
5
Idem, ibid.
do âmbito da superestrutura, pondo-os em relação, sem mediação e até mesmo de maneira
causal, com os traços correspondentes da infraestrutura.”. 6
A crítica de Adorno não era simplesmente uma observação metodológica de tipo
acadêmico, mas continha uma suspeita política: a falta de boa teoria, isto é, segundo
Adorno, a ausência de dialética, de mediação por meio do processo global, essa falta
implicaria também uma aceitação acrítica da realidade. Esse "lugar enfeitiçado", no qual,
segundo as palavras de Adorno, aloja-se o trabalho de Benjamin, também seria "o
cruzamento da magia com o positivismo" - e é nesse lugar perigoso que reencontramos o
tema da mímesis no texto de Oswald de Andrade. Com efeito, as objeções de Adorno a
Benjamin retomam várias das observações críticas do primeiro a respeito da mímesis:
pensamento mágico remanescente, falta de distanciamento crítico e identificação com o
existente, impossibilidade de uma visão totalizante e, em lugar dela, um apego
sentimental ao particular, em vez da mediação uma falsa imediaticidade.
A crítica que Adorno faz do texto de Benjamin sobre Baudelaire ignora, a nosso
ver, o sentido amplo que Benjamin deu ao conceito de mímesis. Em sua análise sobre
Baudelaire, encontramos uma lógica não da identidade, mas da semelhança: o que
Adorno critica como uma concepção identitária – sem mediações – entre o sujeito e a
realidade social, pode ser melhor compreendida se considerarmos que Benjamin aponta,
na lírica do poeta francês, movimentos miméticos em que a forma poética tenta
assemelhar-se, aproximar-se do real, alegorizando-o, e não reproduzindo-o. A chave para
a compreensão do método dialético de Benjamin estaria assim em compreender que sua
crítica consiste em assinalar, nas alegorias criadas por Baudelaire, suas semelhanças com
a realidade histórica e não sua reprodução imediata. A decifração da alegoria, para
Benjamin, consiste em aproximar universos distintos justapondo-os, acumulando seus
sentidos diversos, para extrair, dessas aproximações inusitadas, aproximações com o
mundo material
A mesma lógica estaria presente no acúmulo de fragmentos que caracteriza o texto
do Santeiro: “o movimento do pensamento não remete aqui a contradições sucessivas
num processo progressivo, mas muito mais a um fazer e desfazer lúdico e figurativo, ao
movimento da metáfora. A dimensão temporal não consiste tanto na linearidade, mas
mais na contigüidade, não num depois do outro, mas num ao lado do outro”.

6
Theodor W. Adorno to Walter Benjamin, 10 November 1938, in: BENJAMIN, Walter. The Complete
Correspondence, 1928-1940, ed. Henri Lonitz, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999, p.
285.

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