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Virgínia Woolf pareciam presos à sua realidade inescapável.

O
(Inglaterra, 1882-1941) contraste era estranho — aqui, tudo em mutação, lá
tudo em calmaria. Impossível deixar de olhar deum
A mulher no espelho para o outro.
Nesse ínterim, estando as portas e janelas todas
abertas por causa do calor, ouvia-se um perpétuo som
As pessoas não deviam deixar espelhos de suspiro e suspensão, a voz do transitório e do
pendurados nas salas, nem talonários de cheques perecível, parece, indo e vindo semelhante à respiração
abertos ou cartas confessando algum crime odioso. humana, enquanto no espelho as coisas haviam
Impossível as pessoas deixarem de se olhar, naquela cessado de respirar e quietas jaziam no transe da
tarde de verão, no longo espelho que pendia no salão. imortalidade.
O acaso o pusera ali. Das profundezas do sofá na sala Meia hora atrás a dona da casa, Isabela Tyson,
de visitas a pessoa via refletida no espelho italiano não descera o caminho relvado, num leve vestido de verão,
somente a mesa de tampo de mármore em frente, levando um cesto, e desaparecera, suprimida pela
como também um pedaço do jardim. Via-se um longo moldura dourada do espelho. Provavelmente fora para
caminho relvado avançando entre barreiras de flores a parte baixa do jardim colher flores; ou, como parecia
altas, até que, formando um ângulo, a borda dourada mais natural supor, colher alguma coisa leve e
do espelho o suprimia. fantástica e folhada e trepadora, a clematite, ou um
A casa estava vazia, e a pessoa se sentiria, se desses elegantes ramos de convólvulos que serpeiam
fosse a única na sala de visitas, como um daqueles em feias paredes e irrompem aqui e ali em florações
naturalistas que, recoberto de ervas e de folhas, fica brancas e violetas. Ela recomendava as
observando as mais tímidas das criaturas — texugos, convolvulvoláceas fantásticas e trêmulas em lugar da
lontras, martins-pescadores — andarem à vontade, áster vertical, da zínia rija ou de suas próprias rosas
também eles invisíveis. Naquela tarde a sala estava ardentes acesas como lâmpadas nas estacas verticais
cheia desses animais assustadiços, de luzes e de das roseiras. A comparação mostrava o pouco que se
sombras, cortinas enfunadas, pétalas caindo — coisas sabia a seu respeito, depois de tantos anos; pois é
que nunca aconteciam, ao que parece, se alguém impossível que uma mulher de carne e osso, de 55 ou
estivesse olhando. A tranqüila sala do velho lar com 60 anos, fosse realmente uma grinalda ou uma
seus tapetes e chaminé de pedra, suas estantes baixas e gavinha. Tais comparações são muito sem sentido e
armários laqueados de vermelho e de dourado, enchia- superficiais — até cruéis, pois que chegam, como os
sede tais criaturas noturnas. Elas chegavam piruetando convólvulos, tremendo entre os olhos de alguém e a
no chão, pisando macio com os pés altos, e esses verdade. Deve haver verdade; deve haver um muro.
pormenores, mais as caudas desdobradas e os Contudo, era estranho que, após conhecê-la durante
famintos bicos alusivos, os assemelhavam a um grupo aqueles anos todos, não se pudesse dizer qual a
de elefantes ou bando de flamingos cuja cor vermelho- verdade acerca de Isabela; ainda eram formuladas
pálida houvesse desbotado, ou de perus cujas caudas frases como aquela sobre os convólvulos e a clematite.
estivessem cobertas de prata. Havia também obscuros Quanto aos fatos, ela era solteira; rica; comprara a casa
rubores e sombreamentos, como se uma tivesse de e acumulara pelas próprias mãos — muitas vezes nos
repente banhado o ar de púrpura; e as paixões, ódios, cantos mais ignotos do mundo e correndo grande risco
invejas e tristezas avançavam sobre a sala e a de picadas venenosas e doenças orientais — os tapetes,
envolviam como um ser humano. Nada permaneceu as cadeiras, os armários que agora viviam sua vida
igual durante dois segundos. noturna perante o olhar de qualquer um. Às vezes
No entanto, de fora, o espelho refletia a mesa do parecia que eles sabiam mais a respeito de Isabella do
salão, os girassóis, as flores batidas de sol, o caminho que nós, que neles nos sentávamos, neles escrevíamos,
do jardim, de forma tão exata e tão estável que eles neles andávamos com muito cuidado, viríamos a
saber. Em cada um daqueles armários havia muitas fantasiaou não, pareciam ter se transformado não
gavetas pequenas, e todas, quase com certeza tinham apenas num punhado de cartas ocasionais, mas em
cartas atadascom laços de fitas, perfumadas com chapas gravadas com a verdade eterna — se fosse
ramos de lavanda ou pétalas de rosa. Pois também era possível lê-las saber-se-ia tudo que houvesse saber
outro fato — se fatos era o que se pedia — que Isabela acerca de Isabela, sim, e da vida também.
conhecera muita gente, tivera muitos amigos; e Os papéis dentro dos envelopes semelhantes a
portanto, se alguém por audácia abrisse uma gaveta e mármore deviam estar pejados de significados. Isabela
lesse suas cartas, encontraria sinais de conflitos, de entraria, pegaria as cartas uma a uma, bem devagar,
encontros marcados, de censuras pelos desencontros, abriria e leria cada uma com cuidado e palavra após
longas cartas de intimidade e afeto, cartas violentas de palavra, e em seguida, soltando um profundo suspiro
ciúme e reprovação, terríveis palavras finais e de de compreensão, como se houvera estado no fundo de
separação— pois todas aquelas entrevistas e encontros tudo, Isabela rasgaria os envelopes em pedacinhos e
amorosos a nada levaram — ou seja, ela jamais casou, ataria as cartas e fecharia a gaveta do armário, disposta
e no entanto, a julgar por uma indiferença em seu que estava a esconder o que não queria que fosse
rosto, semelhante a uma máscara, ela passara 20 vezes descoberto.
mais pela paixão e pela experiência amorosa do que O pensamento serviu como um desafio. Isabela
aqueles amores apregoados para que o mundo não desejava ser conhecida — mas agora não podia
primeiro ouvisse. escapar. Um absurdo, uma monstruosidade. Se ela
Sob a pressão dos pensamentos acerca de ocultava tanto e sabia de tanta coisa, devia-se nesse
Isabela, a sala tornou-se mais escura e mais simbólica; caso forçá-la a arrombar a gaveta com o primeiro
os cantos pareciam ainda mais sombrios, as pernas das instrumento à mão. Devia-se fixar a mente em Isabela
cadeiras e mesas mais delgadas e hieroglíficas. naquele exato instante. Devia-se pressioná-la. Devia-se
De súbito, esses reflexos findaram recusar que continuassem a nos dissuadir com ditos e
violentamente e sem um som sequer. Uma grande feitos, tais como o momento produzia — com jantares
forma preta assomou no espelho; borrou tudo, e visitas e conversas polidas. Devia-se tentar calçar os
derramou na mesa um pacote de placas de mármore sapatos dela. Tomada a frase em seu sentido literal, era
de veios róseos e cinzentos, e desapareceu. Mas o fácil ver os sapatos que ela calçava, no jardim de baixo,
quadro ficou completamente alterado. Por um instante naquele momento. Eram muito estreitos, compridos e
ele esteve irreconhecível, irracional e totalmente fora estavam na moda — feitos com o mais macio e o mais
de foco. Não se podia relacionar aquelas placas a flexível dos couros. A exemplo de tudo o que ela
algum propósito humano. E, aos poucos, algum usava, os sapatos eram finos. E ela estaria em pé,
processo lógico se pôs a atuar sobre eles, começou a embaixo da sebe alta, na parte inferior do jardim,
ordená-los e arranjá-los e os trouxe ao redil da levantando a tesoura atada ao punho para cortar uma
experiência comum. Verificou-se afinal que não flor morta, um ramo excedente. O sol lhe banharia o
passavam de cartas. O agente trouxera a rosto, os olhos; mas não, no momento crítico a
correspondência. mantilha de uma nuvem cobriu o sol, tornando
Lá ficaram, na mesa de tampo de mármore, duvidosa a expressão dos olhos dela — zombeteira ou
todas cheias de luz e de cor, a princípio ostensivas e meiga, vivaz ou embotada? Apenas se distinguia o
impermeáveis. Depois, causou estranheza ver que as esboço indeterminado de rosto belo um tanto pálido e
cartas eram estendidas e dispostas, e juntas faziam que fitava o céu. Ela pensava, talvez, em encomendar
parte do quadro, adquirindo aquela serenidade e uma rede nova para os morangos; que devia mandar
imortalidade concedidas pelo espelho. Lá estavam, flores à viúva de Johnson; que era tempo de sair de
investidas de uma nova realidade e significação, e carro para ver os Hippesley em sua nova casa.
também de maior peso, como se fosse necessária uma Seguramente eram estas as coisas de que ela falava ao
formação para destacá-las da superfície da mesa. E, jantar. Mas já estavam cansados das coisas de queela
falava ao jantar. Queriam descobrir o seu mais tornava maior, cada vez maior no espelho, cada vez
profundo estado de ser e transformá-lo em palavras, o mais a pessoa em cuja mente se tentava entrar. Isabela
estado que é para a mente o que a respiração é para o era examinada aos poucos — ajustando-se às
corpo, o que se chama felicidade ou infelicidade. À qualidades descobertas neste corpo visível. Havia o
menção dessa palavra, tornou-se óbvio, certamente, vestido verde-acinzentado, os sapatos de bico fino, o
que Isabela devia ser feliz. Era rica; era bem cesto e alguma coisa cintilante na sua garganta. Ela se
relacionada; tinha muitos amigos, viajava — comprava aproximou tão gradualmente que não pareceu
tapetes na Turquia e cântaros azuis no lram. Caminhos desarranjar o contorno no vidro, mas somente trazer
de prazer abriam-se nesta e naquela direção,a partir de um novo elemento que se movia de leve e alterava os
onde ela estivesse com a tesoura erguida para cortar os outros objetos, como quem pede cortesmente espaço
ramos trêmulos enquanto nuvens rendadas lhe para Isabela. E as cartas e a mesa e o caminho relvado
velavam a face. e os girassóis à espera no espelho separaram-se e
Com um rápido movimento da tesoura ela abriram-se de modo a que ela pudesse ser recebida
decepou o ramo da clematite, que caiu no chão. Ao entre eles. Afinal, ei-la, no salão. Deteve-se. Ela parou
cair, seguramente uma luz entrou também, em pé junto à mesa. Ela parou completamente imóvel.
seguramente se pôde penetrar um pouco mais no seu De imediato o espelho começou a verter sobre ela uma
ser. O espírito de Isabela estava cheio de ternura e luz que parecia pregá-la; que parecia um ácido que
remorso... Cortar um ramo enorme entristeceu-a corróio não-essencial e o superficial e deixa apenas a
porque ele havia vivido, e a vida lhe era cara. Sim, e ao verdade. Era um espetáculo encantador. Tudo
mesmo tempo a queda do ramo lhe sugeria como imanava de Isabela — nuvens, vestidos, cesto,
morrer, e toda a futilidade e evanescência das coisas. diamante — tudo o que fora chamado de planta
E, outra vez recolhendo este pensamento, com seu rasteira e convólvulo. Eis a dura parede embaixo. Eis a
bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tratara própria mulher. Ela se erguia nua naquela luz
bem; se tivesse de cair, era para ficar na terra e impiedosa. E nada havia.
docemente fertilizar as raízes das violetas. Continuou a Isabela estava completamente vazia. Não tinha
pensar desse modo. Sem formar um pensamento pensamentos. Não tinha amigos. Não cuidava de
preciso — por ser uma dessas pessoas reticentes ninguém. Quanto às cartas, eram todas contas. E
mantinha os pensamentos enredado sem nuvens de enquanto ali estava, velha e angulosa, jaspeada e
silêncio — ela estava cheia de pensamentos. O espírito coberta de rugas, com o seu nariz arrebitado e o
de Isabela assemelhava-se a sua sala onde luzes pescoço vincado, ela nem sequer se deu ao trabalho de
avançavam e recuavam, chegavam com piruetas e abri-las.
pisavam macio, desdobravam as canelas e ficavam; e As pessoas não deviam dependurar espelhos em
todo o ser de Isabela foi coberto, como a sala suas salas.
novamente, por uma nuvem de algum conhecimento
profundo, algum remorso não mencionado, e ela
encheu-se de gavetas fechadas, entupidas de cartas, tal
e qual seus armários. Falar em “arrombá-la” como se
ela fosse uma ostra, utilizar apenas o mais belo e mais
sutil e mais dócil dos instrumentos contra ela era uma
impiedade, um absurdo. Devia-se imaginar— ei-la no
espelho. Causou sobressalto.
A princípio ela estava tão longe que não se
podia vê-la com clareza. Veio andando vacilante,
endireitando uma rosa aqui, ali, levantando um cravo
para cheirá-lo, mas sem parar; e enquanto isso ela se

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