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1. INTRODUÇÃO
Este anteprojeto é uma proposta de investigação acerca dos aspectos da interação
social ocorrentes nas brigas de galos realizadas entre os índios Potiguara situados no
litoral norte da Paraíba. A partir da experiência etnográfica que obtive com essa
população para o trabalho de conclusão de curso de graduação, pude perceber que tais
rinhas1 se constituem como uma prática ritual difundida dentro da área indígena e nos
seus arredores, com participação de índios e não índios.
Tentarei compreender a briga de galos a partir do enfoque dado pela
antropologia da performance (TURNER, 2008, SCHECHNER 2012, GOFFMAN,
1985). Neste sentido, analisarei esse evento ritual como um teatro, um “drama social”
(que consiste num jogo, num esporte de apostas) que ocorre num setting (rinha), com
uma plateia (apostadores e/ou expectadores), no qual atores sociais (galistas2 índios e
não índios) interagem e competem por status social e dinheiro.
O intuito, portanto, será o de perceber a relação entre performatividade e
interação interétnica nos espaços onde estes rituais são organizados. Neste sentido, fica
a questão: como se configura o encontro face a face entre índios e não índios num
cenário social que é marcado (a primeira vista) pelo enfrentamento simbólico?
2. OBJETIVO GERAL
Investigar os aspectos de interação interétnica tendo como perspectiva a análise
performática dos atores sociais inseridos na briga de galos, realizadas na área indígena.
Com isso, pretendo trazer à tona representações intersubjetivas compartilhadas pelos
frequentadores destas rinhas, no intuito de descortinar um quadro de categorias,
símbolos, marcas e signos verbais e não-verbais que me ajudem a traçar um padrão
dinâmico de ações performativas pertencentes a este universo.
1
Nome pelo qual são chamados os locais onde ocorrem brigas entre animais, organizadas para o
entretenimento e aposta.
2
Nome pelo qual são chamados os criadores de galos de briga.
Compreender como as rinhas são organizadas;
Explicitar a lógica das apostas;
Traçar um perfil dos frequentadores;
Mostrar a relação entre performance e gênero;
Fazer um glossário de termos êmicos;
Saber o porquê dos indivíduos praticarem esta atividade ilegal;
3. JUSTIFICATIVA
A briga de galos é considerada por outros segmentos sociais, inclusive o Estado
Brasileiro, como um jogo de azar (devido às apostas) que submete animais a maus
tratos. Por estes motivos estas rinhas são proibidas por lei3. Mesmo assim, alguns atores
deste universo se defendem destas acusações afirmando que esta é uma atividade
“tradicional” e que galos de briga são bem melhor tratados do que outros galos. Para
além dessas querelas judiciais e morais, o importante aqui é ressaltar que:
Se se toma a briga de galos, ou qualquer outra estrutura simbólica
coletivamente, organizada, como meio de “dizer alguma coisa sobre
algo” (para invocar um famoso rótulo aristoteliano), enfrenta-se,
então, um problema não de mecânica social, mas de semântica social.
Para o antropólogo, cuja preocupação é com a formulação de
princípios sociológicos, não com a promoção ou a apreciação de briga
de galos, a questão é: que é que se aprende sobre tais princípios
examinando a cultura como uma reunião de textos? (GEERTZ, 1978,
p. 316).
Neste sentido, quero afirmar que este evento ritual certamente se constitui como
um dos “textos” importantes da cultura deste povo, principalmente no que tange ao
universo masculino. Estudar a briga de galos significa, portanto, trazer à tona um
“texto” da cultura Potiguara que ainda não foi tratado por nenhum pesquisador. Assim,
o que pretendo não é julgar a briga de galos ou dar subsídios para isto, mas sim fazer
um exercício antropológico de tentar compreender uma situação limite, que tem sua
prática inserida na clandestinidade.
4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O método a ser utilizado para emergir no universo composto pela briga de galos
entre os Potiguara será a etnografia, que é por excelência uma forma de conhecimento
antropológica. Esta metodologia, junto com suas possíveis técnicas (observação
3
Art. 32 da Lei de Crimes Ambientais (N° 9.605/98) e Art. 50 da Lei das Contravenções Penais (N°
3.688/4).
participante, entrevistas informais e formais, o olhar e ouvir atento, o diário de campo),
é a maneira que julgo mais adequada para se conhecer uma alteridade. Por basear-se na
troca intersubjetiva entre pesquisador e os sujeitos da pesquisa, essa é a metodologia
que melhor se encaixa aos meus objetivos. Ela propiciará uma convivência, um estar
junto, um compartilhamento entre pesquisador e pesquisados de tal maneira que
permitirá que estes não sejam apenas “objeto” de pesquisa, mas sujeitos que
influenciarão na construção do texto final.
O intuito da utilização do método etnográfico é uma maneira do antropólogo
tentar estabelecer uma interação com a alteridade que seja “simétrica”, ou seja, onde
nesta interação o máximo de sujeitos pesquisados deixe a categoria de “informantes” e
passem a ser “interlocutores” da pesquisa. Esta diferenciação entre informante e
interlocutor é colocada por Cardoso de Oliveira (1995). Segundo este autor, a categoria
de informante é transposta na medida em que a relação entre observador e observado
torna-se dialógica. Ou seja, é quando, no encontro etnográfico, se instaura uma relação
cognitiva que vai além da mera coleta de informações, quando essa “relação
caracteristicamente marcada como uma via de mão única, passa a ser de mão dupla”
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1995, p. 223).
Neste sentido, a fonte de dados será a experiência pessoal do antropólogo em
campo, aliada as observações direitas e indiretas – estas últimas baseadas na experiência
de outras pessoas, nas observações destas. Para submergir no universo da briga de galos
e compreender a lógica performática do grupo de galistas faz-se necessário uma
observação participante (MALINOWSKI, 1980) para entender e descrever como, na
interação (GOFFMAN, 1985), os atores sociais atribuem sentidos às suas ações e
moldam-nas no tempo e no espaço. De acordo com Jaccoud e Mayer (2010),
“no modelo da interação, que se insere em um procedimento
construtivista, a pesquisa de campo possibilita dar conta de uma
realidade, menos pelo fato de que o pesquisador chega a ‘sentir’ o
meio dos atores presentes, do que por ele interagir enquanto ator
social. Nesta concepção, não só o distanciamento objetivo é
impossível, como a manutenção de uma posição de exterioridade
pelo observador paralisa a pesquisa” (CHAUCHAT, 1985, p. 92
apud JACCOUD, MAYER, 2010).
Nesta forma de abordagem, segundo Berreman (1980), o “controle das
impressões” (GOFFMAN, 1985) é um instrumento metodológico fundamental.
Berreman (1980) vê a pesquisa etnográfica como um sistema de interação entre
etnógrafo e seus sujeitos. No encontro com estes, o pesquisador avalia-os de acordo
com a “quantidade de informações sobre a região interior que lhe revelam, já ele [o
pesquisador] é avaliado por eles à base do seu tato em não intrometer-se
desnecessariamente na região interior” (BERREMAN, 1980, p.142). Neste sentido se
estabelece um jogo no qual o controle das impressões é imprescindível para se
estabelecer uma relação de confiança reveladora.
Tentarei, assim, penetrar no circuito das brigas de galos que acontecem dentro
da área indígena, participando das atividades referentes a esse circuito, como
treinamentos, eventos semanais, torneios, etc., para poder definir a situação de maneira
favorável e com isso conseguir penetrar nas instancias mais profundas das
representações feitas pelos sujeitos da minha pesquisa. Desse modo, procurarei ser
admitido dentro desse circuito de tal forma a não parecer um observador incômodo. A
participação nesses eventos pode ser vista, por alguns mais moralistas, como uma
contravenção, mas não há como pesquisar esse universo clandestino sem dele participar
– pelo menos nos moldes que me proponho. Neste sentido, a subjetividade, ou seja,
minhas emoções e sentidos ao participar desses eventos será um fator preponderante da
pesquisa, por se constituir como uma fonte de dados importante.
A anotação exaustiva dos fatos ocorridos, assim como a capacidade de
memorização aliada à observação atenta em campo, são outras técnicas de pesquisa que
exercerão um papel central para que se possa construir um quadro interpretativo e
passível de análise. As anotações de campo, seguindo a orientação de Schatzman e
Strauss (1955, apud JACCOUD & Mayer, 2010), serão feitas de maneira sistemática e
separadas nas seguintes modalidades: metodológicas, teóricas e descritivas.
Por fim, o uso de outras metodologias, inclusive quantitativas, pode ser acionado
de acordo com a receptividade dos sujeitos e o encaminhamento da pesquisa. Assim,
não excluirei a possibilidade de trabalhar com o uso de câmeras fotográficas e de vídeo,
entrevistas formais e entrevistas semiestruturadas.
4
Terra Indígena.
5
Neste sentido, leituras sobre performance de gênero serão de grande importância, tais como: Gastalo
(2005), que fala sobre a performance masculina em bares, e Gastalo & Braga (2011) que articulam
corporeidade, esporte e identidade masculina.
clássico, o autor analisa esse evento ritual, a partir de uma ótica interpretativa da
cultura, como uma estrutura coletivamente organizada que expressa grande parte da
cultura balinesa, ou seja, como um “microcosmo” que expressa um “macrocosmo”. A
partir de uma descrição densa de como os eventos são organizados e de como se dão as
apostas, Geertz interpreta as rinhas e traça relações entre estas e a estrutura social e de
status em Bali, fazendo associações metafóricas (simbólicas) e concretas entre homens e
galos.
Outro texto importante que servirá de base para minha pesquisa é a dissertação
de Silva (2011), onde o autor fala sobre a briga de galos na região central do Rio Grande
do Sul. Mesmo que este autor não tenha trabalhado com a questão da performance
nestes eventos, o texto fornece elementos importantes que devem ser levados em conta.
Neste trabalho, Silva demonstra como se constitui a identidade (masculina) do grupo de
galistas que ele analisa, a forma com que estes se relacionam entre si e entre outras
pessoas do seu circo social, além de enfatizar a questão da antropologia das emoções
nos eventos por eles realizados.
Ritual e Performance
O estudo de rituais é um tema recorrente na antropologia. Desde os clássicos da
antropologia práticas ritualizadas foram colocadas como tema importante e revelador de
aspectos socioculturais de sociedades distantes (temporal e espacialmente), como são os
casos de textos como: As Formas Elementares da Vida Religiosa de Émile Durkheim
(2003), A Prece de Marcel Mauss (1981) e A Eficácia Simbólica e Cláude Lévi-Strauss
(1975). Nestes clássicos, a temática ritual é colocada como uma repetição reprodutora
da coesão grupal. Neste sentido, apesar de falar sobre práticas rituais, estes autores
priorizavam as crenças, os símbolos, o mito. Nunca a prática, o rito, o ato. Nestes casos,
a prática e a experiência individual não tinham lugar, muito menos a noção de processo
e mudança social.
Outros autores adotaram novas perspectivas de analise do rito. Com Van Gennep
(1978), o ritual passou a ser analisado fora do escopo religioso e, de maneira incipiente,
o indivíduo e seu lugar na constituição social (sua experiência no rito de passagem)
passaram a ser abordados. Outro aspecto importante da obra deste autor é a dimensão
temporal que passa a ser incorporada na análise dos ritos de passagem – que são, em
suma, marcadores temporais produzidos coletivamente, mas vividos por indivíduos
específicos – e que têm como etapas constitutivas os momentos de “separação”,
“margem” e “agregação”. Estas etapas são momentos ritualizados que, juntos,
promovem mudanças na dinâmica social a partir do momento em que deslocam
indivíduos de um espaço social para aloca-los em outro, mudando o status social destes.
Victor Turner (2008) em sua analise sobre eventos rituais toma o “drama” como
uma metáfora da vida social. Neste sentido, este autor já faz um ligação entre ritual e
performance, entre antropologia e teatro. Influenciado por Van Gennep, Turner (1982)
fala sobre processos rituais instituindo o conceito de “liminóide”, que será importante
para o meu empreendimento. Este conceito diz respeito a momentos inseridos na
margem da estrutura social de sociedades complexas, onde a anti-estrutura se revela,
havendo um questionamento da estrutura social: o que parece ser o caso da briga de
galos.
Sendo a rinha de galos um jogo de apostas, é importante citar Richard
Schechner (2012), que fala do jogo como performance. Segundo este autor:
quando humanos e animais jogam, eles se excedem e se exibem
como o intuito de impressionar os outros jogadores, assim como os
não jogadores que estejam observando [...] Em algumas formas, o
jogo pode parecer mais com uma forma de ritual e com o teatro. O
jogo é geralmente uma sequencia ordenada de ações realizadas em
lugares específicos por uma duração de tempo conhecida.
(SCHECHNER, 2012, p. 127).
Esther Jean Langdon (2007) fala que “as características mínimas do rito incluem
uma ruptura no fluxo da ação social, um limite temporal e atores sociais que, de alguma
maneira, manifestam simbolicamente valores e ideais de seu mundo” (LANGDON,
2007, p. 05). Neste sentido, os eventos rituais se constituem como momentos
privilegiados de análise. De acordo com a autora, nas análises contemporâneas, o
surgimento da noção de “performance” foi introduzida por alguns autores no intuito de
“expressar a multiplicidade de formas rituais que estrutura e permeia a vida”
(LANGDON, 2007, p. 09) sejam ritos sagrados ou de entretenimento, caso da briga de
galos.
Por fim, um trabalho sobre performance que envolve o contexto de lutas – e que
por isso se aproxima da briga de galos – é o texto de Koike (2012). Neste trabalho, o
autor faz “Uma etnografia do campeonato Sul-Brasileiro de Jui-jítsu de 2008” (título do
texto). Seguindo as abordagens sobre performance, Koike fala sobre este momento
ritual, que quebra como o fluxo temporal da vida social cotidiana e cria um cenário, um
tempo espaço distinto, no qual símbolos são articulados e compartilhados, num rito que
influi na dinâmica de status social dos lutadores.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERREMAN, G. Etnografia e Controle de Impressões em uma Aldeia do Himalaia. In:
GUIMARÃES, A. Z. (org.). Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1980.
BRASIL. Lei nº. 9.605/98. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e da outras providencias.
Promulgada em 12 de fevereiro de 1998. Brasília, 12 de fevereiro de 1998.
GEERTZ, C. Um Jogo Absorvente: notas sobre a briga de galos Balinesa. In: GEERTZ,
C. A Interpretação das Culturas: ensaios selecionados. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978 [1973].