Professional Documents
Culture Documents
2
3
4
5
8
Resumo
A presente investigação busca a reflexão sobre o papel dos designers na sociedade a partir do espaço
público como cenário e objeto de trabalho, em transformação dinâmica constante num mundo fluido e
complexo. Adentra a desmaterialização e expansão da disciplina, explora metodologias participativas,
passando pelo Design para a Inovação Social e aproximando-se do emergente campo híbrido Design
Anthropology. Com projeto de pesquisa localizado num bairro do Rio de Janeiro, envolve as pessoas no
processo como potência de imaginação coletiva, atuando de forma engajada e em correspondência
às interações sociais existentes. Pretende-se como um sistema aberto de experimentação colaborativa
e aprendizado contínuo, em que ferramentas visuais estimulam o diálogo acerca das questões locais
e a busca de visões compartilhadas para o futuro. Dessa forma, a designer atua como mediadora
através de abordagem estratégica e tática, integra elementos que influenciam o devir, conecta agentes
e iniciativas, resultando em um metaprojeto que pode direcionar outras ações locais.
Palavras-chave: Design Anthropology, Design para Inovação Social, espaço público, Participatory
Design, imaginação coletiva.
9
Abstract
This research seeks a reflection about the role of designers in society with public space as backdrop
and object work, in constant dynamic change in a fluid and complex world. It enters the dematerialization
and expansion of the discipline, explores participatory methodologies, passing by Design for Social
Innovation and in approach to the emerging hybrid field of Design Anthropology. The research project is
located in a neighborhood of Rio de Janeiro, and involves people in the process as potency of collective
imagination, acting in a committed way and in correspondence to existing social interactions. It intends
to be an open system of collaborative experimentation and continuous learning, in which visual tools
stimulate dialogue about local issues and the search for shared visions for the future. Thus, the designer
acts as a mediator through strategic and tactical approach, integrates elements that influence becoming,
connects agents and initiatives, resulting in a meta-project that can orient other local actions.
Keywords: Design Anthropology, Design for Social Innovation, public space, Participatory Design,
colective imagination.
10
Índice
55 4. “Rio Comprido em nós”: metaprojeto para a construção do público por meio do design
4.1 Breve histórico
4.2 Caracterização e mapeamento
4.3 Mapeamento participado
4.4 Espaço público online
4.5 Análise de dados
4.6 Ativos, passivos e possibilidades
4.7 Cenários futuros
4.8 Publicação
85 5. Considerações finais
88 6. Bibliografia
Fotografia tirada em campo -
Rio Comprido, Rio de Janeiro (2015).
12
1. Trajetória, lugar e metodologia
“De perto do mundo, de longe de casa”
A relação com o lugar de onde parte este estudo nasce ainda antes de mim,
quando o bisavô português de Póvoa de Varzim vai para o Brasil em busca de
melhores oportunidades, acabando por se instalar no Rio de Janeiro, no bairro do
Rio Comprido. No prédio que ergueu, construiu-se a história da família e se criaram
muitas estórias, vivências, memórias e afetos. Mais de 70 anos depois, minha 13
vinda para Portugal representaria um tipo de retorno à origem, ou uma das raízes
geradoras de imensuráveis combinações possíveis que nos faz brasileiros.
1
Magnani, José Guilherme Cantor. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.” Revista Brasileira de
Ciências Sociais 17.49: 11-29, 2002.
moradores do local. Ou seja, foi necessário me afastar para me perceber, mas
também para perceber o outro. Era preciso “estranhar o familiar” (Velho, 1987)2,
confrontar intelectual e emocionalmente diferentes olhares e interpretações, sem
cair em julgamentos apressados e preconceituosos (Velho, 1987) advindos da
minha posição no sistema sociocultural.
Voltando o olhar para o Rio Comprido, depara-se com essas diferentes perspectivas
sobre o bairro, que se localiza na zona central do Rio de Janeiro, para “além-túnel”
(Rebouças), sob uma perspectiva da zona sul; confundido por muitos com Tijuca,
Estácio ou Catumbi; conceituado como o “terror da zona norte”; espremido entre
morros (que se transformaram em favelas ao longo do processo de ocupação);
e brutalmente marcado por um enorme viaduto que o transformou em local de
passagem. Passou por diversas transformações territoriais históricas, vive um
abandono por parte do poder público e questões sociais complexas, de intensa
desigualdade e concentração de pobreza.
Fotografias tiradas em campo - Rio Comprido, Rio de Janeiro (2015).
14
2
Velho, Gilberto. “Observando o familiar” in Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
Entretanto, percebe-se uma tentativa recente de renascimento, provocada pela
dinamização decorrente dos eventos internacionais (Copa do Mundo e Olimpíadas),
que acaba por gerar um movimento de convivência conflitante mas também
interessante pela riqueza de sua diversidade, entre a crise de uns e a ascensão de
outros, entre a esperança e o medo. Com o histórico de bairro “nobre” e a existência
de muitas residências de grande porte, observam-se famílias de segmentos sociais
médios que ali estão há muitas gerações e não saem pelo apego afetivo ou falta
de condição financeira; casas adquiridas por empresas (predominantemente de
segurança), outras com investimentos de novos negócios locais; antigos moradores
das favelas passando a viver no “asfalto” e muitos expulsos da zona sul pela
supervalorização imobiliária; proliferação de bares e restaurantes que atraem grande
quantidade de pessoas da região; obras de escala desproporcional e atentados ao
patrimônio histórico do bairro; etc.
Em alternância focal para o nível pessoal, encontro uma relação contraditória, narrada
por situações diversas que geraram memórias afetivas e grande carinho, mas também
indignação com a precariedade e desejo permanente de saída. As vivências pessoais
dos últimos anos determinaram uma nova percepção mais consciente e crítica sobre
a realidade local, transformando a percepção do problema em oportunidade, e
refletindo sobre a responsabilidade cidadã na construção do espaço público, assim
como nas possibilidades de atuação profissional para estimular esse processo, num
sentido contrário à inércia habitual de contestação sem ação.
3
Arantes, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: EDUSP, 1998.
Já em Portugal, com chegada recente à cidade do Porto e em processo de
descoberta de muitas novidades em uma cidade até então desconhecida, realizou-
se uma imersão durante o workshop de abordagens espaciais, ampliando o contato
com as múltiplas dimensões e diferentes perspectivas do espaço escolhido.
Paralelamente aos trabalhos realizados para a disciplina de Desenho e Levantamento
do Lugar, individual e coletivamente, a experiência contribuiu para revelar camadas
ocultas, conhecer novos pontos de vista, me colocar no lugar do outro, questionar
interpretações habituais, explorar múltiplas sensações, entender configurações e
necessidades, imaginar possibilidades futuras.
16
17
Parte do trabalho executado durante o Mestrado: “Projecto Espacial Performativo”.
19
Em paralelo às experimentações e reflexões, revisitou-se o interesse inicial de
ação no Rio Comprido, reavaliando objetivos e abordagens, buscando maior
conhecimento do local e suas questões, assim como um exercício mais consciente
e responsável da atividade projetual. Foi explorada a relação entre o design
e a antropologia como via para uma investigação-ação, incursões no terreno,
observação participante e entrevistas, para aprofundar a relação com os atores
sociais, criar empatia e estabelecer laços que permitissem a criação colaborativa.
No contexto do projeto, uma iniciativa no bairro deveria conter a preocupação de
acolher, assumir e preservar sua heterogeneidade cultural, estudar suas dinâmicas
sociais e prever mecanismos de inclusão. O objetivo do projecto de pesquisa é
gerar um espaço de pertencimento e criação coletiva; testar a capacidade do
design em ativar as pessoas e promover a reflexão; experimentar dinâmicas de
interação que promovam o envolvimento comunitário; num processo aberto que
explore suas histórias, memórias e vivências enquanto ativos para a co-criação de
cenários futuros e incentivo à imaginação coletiva.
4
Reyes, Paulo. Construção de cenários em design: o papel da imagem e do tempo. Artigo apresentado no 9o
Congresso de Pesquisa e Desenvolvimento em Design (P&D Design). São Paulo, 2010.
21
Diagrama de conteúdos da
investigação;
Post its com conteúdos;
Esboço do diagrama.
A dissertação está estruturada em três blocos após esta primeira parte introdutória,
sendo o segundo capítulo contextual aos interesses relativos ao espaço público, o
terceiro referente às abordagens teóricas e metodológicas da diciplina de design
relevantes para esta investigação, na busca de se construir um método próprio de
atuação no espaço público por meio do design. O quarto capítulo narra as atividades
práticas do projecto de pesquisa realizado no bairro do Rio Comprido, na cidade do
Rio de Janeiro (Brasil).
Portanto, o capítulo que segue vai buscar melhor compreensão das dinâmicas
envolvidas na construção e reinvenção dos espaços públicos e será analisado o
contexto de recorte para esta investigação. Assume-se relevante a vivência num
mundo complexo, conectado e fluido, que atravessa um momento de “interregno”
(Bauman, 2015)5 em que as certezas e práticas de outrora foram diluídas e se
busca construir novas formas de organizar a vida humana, num movimento de
mudança de paradigma e reencantamento (Maffesolli, 2014)6. Sobre a “produção
capitalista do espaço urbano” (Harvey, 2014)7 será examinado o processo de
expansão desordenada do espaço público relacionado à acumulação de capital e a
consequente organização desigual e excludente sobre o “direito à cidade” (Lefebvre,
22 2008)8. Vai então relacionar a reivindicação proposta por David Harvey por “algum
tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização” (Harvey, 2014: 30),
à emergente valorização das micropráticas urbanas como uma nova possibilidade
de urbanismo de baixo para cima (Rosa, 2011)9.
5
Bauman, Zygmunt. “Talvez estejamos em plena revolução”. Outras Palavras (2015).
http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/bauman-talvez-estejamos-em-plena-revolucao/
(último acesso em 28/04/2015).
6
Maffesoli, Michel. Conferência: Cibercultura e Remitologização Pós-Moderna. Universidade Lusófona do Porto
(01/12/2014).
7
Harvey, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
8
Lefebvre, Henri. O direito à cidade. Centauro Editora, 2008.
9
Rosa, Marcos; ed. Microplanejamento de práticas urbanas criativas; São Paulo: Microplanning urban creative
practices; São Paulo. Ed. De Cultura, 2011.
10
Manzini, Ezio. “Design para a inovação social e sustentabilidade.” Cadernos do Grupo de Altos Estudos, Programa
de Engenharia de Produção da Coppe/UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.
transformação participativa (Anastassakis, 2013; Ingold, 2013)11,12. Com interesse
na abordagem participativa, serão ainda analisadas algumas metodologias e
ferramentas de codesign que buscam reunir pessoas e estimular o diálogo em
torno dos assuntos de interesse, através de estratégias e táticas utilizadas para
mediar questões e comunicar visões (Binder, 2011; DiSalvo, 2009)13, 14,.
No quarto capítulo será relatada a experiência prática, que consta nesta investigação
em modalidade de trabalho de projeto. Com presença no terreno e relação
engajada com a comunidade envolvente, buscou-se criar um ambiente dialógico em
construção permanente, sem resultados previamente determinados, com objetivo
de estimular a imaginação coletiva sobre as questões do bairro, passando pelo
resgate da memória como elemento de ativação do sentimento de pertencimento
em direção à construção compartilhada do público.
11
Anastassakis, Zoy. “Laboratório de Design e Antropologia: preâmbulos teóricos e práticos”. In: Arcos Design. Rio
de Janeiro: PPD ESDI UERJ. Volume 7 Número 1. pp. 178-193. Junho, 2013.
12
Ingold, Tim. Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture. Abingdon: Routledge, 2013.
13
Binder, Thomas, Giorgio De Michelis, Pelle Ehn, Giulio Jacucci, Per Linde e Ina Wagner. Design Things. The MIT
Press, 2011.
14
DiSalvo, Carl. “Design and the Construction of Publics.” Design issues 25.1 : 48-63, 2009.
Fotografia tirada em campo -
Rio Comprido, Rio de Janeiro (2015).
24
2. O espaço público no mundo complexo
2.1 Fluidez e conexão, rumo a um novo paradigma
Para o sociólogo Michel Maffesoli, nossa civilização vive uma mudança de paradigma
que demanda um pensamento para além da lógica cartesiana, a partir da saturação
do mito moderno de progresso que provocou um “desencantamento do mundo”.
Acredita na necessidade de criação de uma “nova dinâmica social” através da reflexão
sobre o cotidiano e da “sensibilidade pós-moderna”, metamorfose já em curso com
o surgimento de “tribos” que deverão se conectar em uma rede complexa regida não
mais pela economia capitalista, mas pela união do conhecimento com a ecologia
(“ecosofia”), por meio da tecnologia (“tecnomagia”), em um pacto emocional que
inclui o sonho e o mito, o pertencimento e a identificação” (Maffesoli, 2014).
De acordo com o filósofo John Holloway, será possível “mudar o mundo sem tomar o
poder” (Holloway, 2013), a partir de fissuras no sistema que representem uma recusa
15
“Nós queremos romper. Nós queremos criar um mundo diferente. Agora. Nada mais comum, nada mais óbvio. Nada
mais simples. Nada mais difícil.” (Tradução própria) Holloway, John. Fissurar o capitalismo. São Paulo: Publisher
Brasil, 2013.
à lógica do capital e, portanto, uma possibilidade de rompimento com esse sistema,
através da expansão, multiplicação e conexão dessas fendas heterogêneas.
“Alguns teóricos têm usado o termo pós-moderno para descrever a ‘lógica cultural
do capitalismo tardio’ do pós-guerra (...). Essa definição destaca o papel formal das
condições econômicas e políticas incluindo a globalização pós-guerra, o surgimento
da novas tecnologias da informação e a separação do tradicional estado-nação na
emersão dos meios de produção pós-modenos” (Cartwright e Sturken, 2003: 239-240).
26
16
Cartwright, Lisa e Marina Sturken. Practices of looking. Oxford: Oxford University Press. Postmodernism and
Popular Culture, pp. 237-278; 2003.
proposta por Manzini será aprofundada no capítulo 3, mas aqui pode ser associada
aos conceitos de “tribos”, de Maffesolli, e “fissuras”, de Holloway, enquanto
inovações que partem de iniciativas espontâneas de pessoas e grupos e que os
designers profissionais devem incentivar, apoiar, fortalecer e conectar.
17
Sennett, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012.
2.2 Produção capitalista do espaço urbano
Émile Durkheim (2002, apud Silvano, 2010) aborda o espaço como produto do
pensamento coletivo, como uma representação coordenada do heterogêneo para
produção de sentido a partir de valores afetivos de origem social, mas também
enquanto dimensão material. Em contribuição com esse conceito de Morfologia
Social, Marcel Mauss (1974, apud Silvano, 2010) define a vida social como função
de seu substrato material, com o qual varia, e Durkheim complexifica suas ideias
iniciais, assumindo a morfologia (materialidade), as práticas e as representações
18
Silvano, Filomena. Antropologia do espaço. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
como três dimensões mediadas pelo espaço, que se torna um objeto complexo.
Em complementação, Maurice Halbwachs (1968, apud Silvano, 2010) assume o
espaço como suporte das memórias, como garantia da manutenção e transmissão
da memória coletiva, como imagem de permanência e estabilidade.
Claude Lévi-Strauss (1979, apud Silvano, 2010) se inscreve na linha de sucessão dos
autores anteriores, tendo participação fundamental na formação da Antropologia
do Espaço. Relaciona a estrutura do espaço com as identidades coletivas, em
representação complexa da diversidade social através do estudo de dados
etnográficos.
Georg Simmel (1990, apud Silvano, 2010) e Walter Benjamin (1979, apud Silvano,
2010) se aproximam das questões do mundo contemporâneo a partir da observação
sobre a cidade, elencando a mobilidade como fator de organização da cultura e do
espaço da cidade. Sob a figura do estrangeiro (Simmel) e do passeante (Benjamin),
articulam conceitos de proximidade, distanciamento e movimento, de liberdade,
identidade e individualidade, além da multiplicidade de olhares sobre o espaço.
Tiveram grande influência em autores que vieram a integrar a denominada Escola
de Chicago, uma corrente heterogênea de pensamento sociológico acerca dos 29
fenômenos urbanos que gerou um conjunto de trabalhos de pesquisa entre 1925
e 1940. Segundo as palavras de um dos fundadores da Escola, Robert Park (1990,
apud Silvano, 2010), a mobilidade assegura a qualquer indivíduo uma experiência
particular e um ponto de vista independente, adquiridos durante suas aventuras no
espaço, o que o constitui como pessoa.
O termo gentrificação surge para dar nome a esse fenômeno de filtragem social
da cidade, com reforço da segregação sócio-espacial que opera no mercado da
habitação em recomposição à degradação de bairros tradicionalmente populares
e sua substituição para as classes média e alta (Silva, 2012). O investimento em
determinada região acaba por gerar valorização imobiliária e afetar suas dinâmicas
sociais, acarretando aumento de custos de bens e serviços e dificultando a
permanência de antigos moradores. Os processos de gentrificação têm sido
associados aos projetos de intervenção urbana implementados para melhoria e
recuperação de áreas degradadas nas cidades.
19
Vainer, Carlos. “Pátria, empresa e mercadoria - Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico
Urbano.” In A Cidade do Pensamento Único. Editora Vozes, 2000.
20
Arantes, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: EDUSP, 1998.
21
Maricato, Ermínia. “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”, in Otília Arantes; Carlos Vainer & Ermínia
Maricato. A cidade do pensamento único. Petrópolis, Vozes, 2000.
22
Silva, Eugenio. “O Planejamento Estratégico sem plano: uma análise do empreendedorismo urbano no Brasil.”
Revista de Geografia e Ordenamento do Território, n.º 2 (Dezembro). Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento
do Território, 2012.
Segundo Portas, enquanto por intervenção urbana entende-se um conjunto de
programas e projetos que incidem sobre os tecidos urbanizados dos aglomerados
tendo em vista a sua reestruturação ou revitalização funcional, por recuperação ou
reabilitação arquitetônica, ou ainda reapropriação social e cultural, compreende-se
o uso estratégico de recursos culturais tendo por objetivo o desenvolvimento local
(Portas, 1998 apud Pasquotto, 2010)23.
Este assunto assume particular relevância para esta investigação, que pretende
debater formas de intervenção no espaço urbano que atuam na tentativa de recuperar
áreas urbanas em estado de degradação, em associação a um projeto de pesquisa
que busca contribuir para a melhoria local de forma democrática e participativa, com
interesse nas necessidades reais dos habitantes e sua manutenção, na preservação
do patrimônio histórico e cultural, e na possibilidade de criação coletiva e autogestão.
Para tanto, fez-se necessário refletir sobre os termos associados a essas possibilidades
de intervenção, os possíveis processos de gentrificação decorrentes e a busca de
alternativas mais includentes e democráticas de produção do espaço urbano.
23
Pasquotto, Geise. “Renovação, Revitalização e Reabilitação: reflexões sobre as terminologias nas intervenções
urbanas.” Revista Complexus – Instituto Superior de Engenharia Arquitetura E Design – Ceunsp, Salto-Sp, Ano. 1,
N.2, P. 143-149 , Setembro de 2010.
Estudo de caso: Parque do Minhocão (São Paulo, Brasil)
Possui características semelhantes ao terrenos desta investigação, por ter sofrido
intensa degradação a partir da construção de um grande empreendimento público,
no caso o elevado Presidente Costa e Silva, possuir localização estratégica e ter
passado por muitas transformações em sua ocupação social. Sua desativação
gradativa foi estabelecida no Plano Diretor Estratégico e se discute saídas para a
“cicatriz urbana” que representa, desde sua demolição à implantação de um parque
(como o High Line em Nova York). Em meio às complexidades envolvidas nessa
decisão e às críticas diversas ao planejamento urbano corrente, “principalmente
relacionadas a tendência de aumentar a exclusão social, a ausência de participação
popular no processo de planejamento e o controle do processo de desenvolvimento
urbano pelo setor privado” (Barbosa, 2012), o tráfego foi suspenso no período
noturno e aos domingos, com apropriação da população e sua utilização como
palco para atividades culturais e de lazer.
33
Fonte: http://minhocao.org
www.assemblestudio.co.uk
2.3 Microplanejamento de práticas urbanas
Embora o termo seja utilizado desde meados dos anos 90, o pensamento que o
inspira surgiu nos anos 60 com as ideias inovadoras de desenhar as cidades para as
pessoas, seguindo o exemplo de Jane Jacobs. Em 1961, Jacobs faz um ataque aos
fundamentos do planejamento e da reurbanização ora vigentes (Jacobs, 2000)25,
baseados em princípios e objetivos modernos e ortodoxos. Considera as cidades um
imenso laboratório de fracassos e sucessos em termos de construção e desenho,
onde o planejamento urbano deveria aprender, elaborar e testar suas teorias. Mas,
ao invés disso, os especialistas e teóricos ignoram o cotidiano das cidades reais e
seguem teorias prontas que acabam por saquear as cidades, expropriar pessoas
e comunidades, destruir pequenos negócios. Defende a diversidade como meio
24
http://www.pps.org/
25
Jacobs, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Martins Fontes, 2000.
capaz de garantir a vitalidade urbana, a partir de um ponto de vista da prática
cotidiana e da combinação de usos.
Para conceituar o uso dos bairros, Jacobs afirma que a palavra “vizinhança” é
prejudicial ao planejamento urbano enquanto conceito sentimental, pois “dá lugar
a tentativas de transformar a vida urbana num arremedo da vida em cidades de
pequeno porte ou subúrbios” (Jacobs, 2000: 123). Segundo Bauman, “’comunidade’
é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora; é o que sobra
dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com vizinhos melhores, todos
seguindo melhores regras de convívio” (Bauman, 2001: 108). Para Sennett (2002),
a cooperação contribui para a qualidade da vida social e a comunidade parece um
cenário indicado para isso; a questão é saber como desenvolver um sentimento
íntimo de finalidade e propósito através da cooperação comunitária.
26
Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Vozes, 1994.
movimento no campo do outro (Certeau, 1994).
Portanto, os projetos analisados por Rosa representam “táticas” urbanas locais que
pretendem repensar a cidade como um campo de experimentação e reinterpretação
dos espaços de encontro, criando novas conexões e redes estratégicas que podem
ser absorvidas pelo planejamento urbano como forma de lidar com a complexidade.
Propõe então uma “estratégia de práticas urbanas criativas em rede” (Rosa,
2011) como uma nova forma de urbanismo de baixo para cima, em que ações
de resistência e valorização das especificidades locais podem ser conectadas
estrategicamente e integradas ao planejamento urbano tradicional para a criação
de modelos participativos mais democráticos.
36
Domenico Di Siena (2015)27, arquiteto e investigador de processos de inovação
urbana e cívica, parte do conceito de “Cidade Open Source” como um espaço
de “código aberto”, em que os cidadãos têm acesso à informação de sua gestão
e podem adquirir um protagonismo nos processos de criação e transformação
da cidade. Com isso, defende um “Urbanismo Tático”, um conjunto de ações e
micro-ações auto-organizadas pelos próprios cidadãos de forma espontânea com
o objetivo de modificar e/ou melhorar os espaços que habitam. Dessa forma, a
cidade volta a ser entendida como um espaço de produção social (em referência a
Lefebvre) num processo contrário à visão top-down que caracteriza o planejamento
urbano tradicional.
27
Di Siena, Domenico. Innovación Urbana - Territorio, Ciudadanía, Tecnología e Inteligencia Colectiva. 2015
Estudo de caso: Acupuntura Urbana (São Paulo, Brasil)
O “Acupuntura Urbana” é um negócio social que atua na ocupação e transformação
dos espaços públicos através do resgate, valorização e conexão das memórias
e sentimentos sobre um espaço, ativando o sentimento de comunidade para
transformar o espaço em lugar. Utilizam “mapeamentos afetivos”, dinâmicas
de integração e ferramentas de design thinking para realizar ocupaçãoes e
transformações urbanas colaborativas com os moradores locais.
Fonte: http://acupunturaurbana.com.br
Fonte: http://www.urbantactics.org/
http://rmitallchange.weebly.com
Fotografia tirada em campo -
Rio Comprido, Rio de Janeiro
(2015).
38
3. Design para um mundo complexo
3.1 Desmaterialização e campo expandido
28
Cardoso, Rafael. Design para um mundo complexo. Editora Cosac Naify, 2011.
29
Krauss, Rosalind. “A Escultura no Campo Expandido.” In Revista Gávea, R. Janeiro 1, [1979] 2009.
definições ainda muito questionadas e debatidas, em constante processo de
delineamento e transformação, apropria-se de algumas referências teóricas para
sua conceptualização:
“A origem da palavra está na língua inglesa, na qual o substantivo design se refere tanto
à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à de configuração, arranjo, estrutura (...). A
origem mais remota da palavra está no latim designare, verbo que abrange ambos os
sentidos, o de designar e o de desenhar. Percebe-se que, do ponto de vista etimológico,
o termo já contém nas suas origens uma ambiguidade, uma tensão dinâmica, entre um
aspecto abstrato de conceber/projetar/atribuir e outro concreto de registrar/configurar/
formar” (Cardoso, 1999: 16).
O design é uma disciplina que projeta coisas e formas, “visa dar existência concreta
e autônoma a ideias abstratas e subjetivas” (Cardoso, 1998: 19), investindo-lhes
funções e significados simbólicos que dependem de uma dinâmica sociocultural.
Segundo Gui Bonsiepe (2011)30, o designer observa o mundo a partir da projetualidade,
possibilita novas experiências na vida cotidiana numa sociedade, através de um
envolvimento com o contexto e o usuário, constante conexão interdisciplinar com
as áreas envolvidas e incansável pesquisa e experimentação, sempre a partir de
um enfoque integrador desses elementos, com orientação para a concretização de
um futuro. Independente da popularização e banalização do termo, muitas vezes
confundindo a atividade do designer enquanto projetista com a aparência superficial
das coisas, acredita-se que muitos designers perderam o fundamento da sua prática
e se distanciaram “cada vez mais da ideia de ‘solução inteligente de problemas’, se
aproximando do efêmero, da moda, do obsoletismo rápido, do jogo estético-formal,
da glamourização do mundo dos objetos” (Bonsiepe, 2011: 18).
30
Bonsiepe, Gui. Design, cultura e sociedade. São Paulo: Blucher, 2011.
Hoje, o design está em praticamente tudo com que interagimos, é responsável pela
formação da maior parte da cultura material de uma sociedade e tem um papel
fundamental na forma do mundo como percebemos e como queremos construir no
futuro. Entretanto, costuma ter seu trabalho ditado pelas demandas do mercado,
sem a possibilidade de ação autônoma no sistema social. O design sempre esteve
associado ao capitalismo industrial e teve participação fundamental na construção
de suas representações de progresso, como o comércio e a tecnologia. Porém,
segundo Bruno Latour (2014)31, o entendimento sobre o design cresceu da dicotomia
entre função e estética em “compreensão” – com apropriação de todos os aspectos
possíveis de uma coisa – e em “extensão” – aplicável a estruturas cada vez maiores
de produção (Latour, 2014).
31
Latour, Bruno. “Um Prometeu cauteloso?: alguns passos rumo a uma filosofia do design (com especial atenção a
Peter Slotedijk).” Agitprop: revista brasileira de design, São Paulo, v. 6, n. 58, jul./ago. [2008] 2014.
32
Thackara, John. Plano B: o design e as alternativas viáveis em um mundo complexo. São Paulo: Saraiva, 2008.
como o Design Social, para Inovação Social, Design Sustentável, Impact Design
etc. Como abordagem metodológica, dirige seu foco para as pessoas, a partir do
User-centered Design ou Human-centered Design, e através do Design Thinking,
Participatory Design e Co-Design, em que os atores são incluídos no processo como
criadores de alternativas para seus próprios problemas.
Para Latour, “a proliferação do termo design ocorre num momento em que há mais
coisas a fazer, agora que todo o tecido da vida é objeto de interesse devido à crise
ecológica” (Latour, 2014: 8) e “a reconstrução de nossa vida na Terra deve ser
levada a cabo com uma atitude exatamente oposta às atitudes revolucionárias e
modernizantes” (Latour, 2014: 11). Esse seria um ponto de partida para estender as
questões do design à política, tendo como principal desafio o desenvolvimento de
ferramentas para “agrupar através do desenho” as questões de interesse, de modo
a dispor alguma visão sobre as dificuldades envolvidas (Latour, 2014).
33
Binder, Thomas, et al. “Democratic design experiments: between parliament and laboratory.” CoDesign 11.3-4:
152-165, 2015.
34
Vaz-Pinheiro, Gabriela (Ed.). Espaços Relacionais: Um novo campo expandido para a arte e pensamento. i2ads,
FBAUP, Porto: 2008.
3.2 Design para a inovação social
“Nossas motivações para nos ligar ao discurso da inovação social é a crença nos
princípios democráticos e um interesse em como o design pode desempenhar um
papel na exploração de novas possibilidades para criar um mundo mais sustentável,
igual e justo” (Ehn, 2014: 22).35
35
“Our motivations for attaching ourselves to the discourse of social innovation are a belief in democratic principles
and an interest in how design can play a part in exploring new possibilities to create a more sustainable, equal, and
just world” (Tradução própria). Ehn, Pelle, Elisabet Nilsson, and Rrichard Topgaard. Making Futures: Marginal Notes
on Innovation, Design and Democracy. London: The MIT Press, 2014.
35
http://www.desis-network.org/
“Nós definimos inovações sociais como novas ideias (produtos, serviços e modelos)
que atendem simultaneamente as necessidades sociais e criam novas relações ou
colaborações. Em outras palavras, elas são inovações que são tanto boas para a
sociedade como aumentam sua capacidade de ação.” (Murray, 2010:3)36
36
“We define social innovations as new ideas (products, services and models) that simultaneously meet social
needs and create new social relationships or collaborations. In other words, they are innovations that are both good
for society and enhance society’s capacity to act” (Tradução própria). Murray, Robin, Julie Caulier-Grice, and Geoff
Mulgan. The open book of social innovation. National endowment for science, technology and the art - NESTA, 2010.
37
“Infrastructuring is characterized by a continuous process of building relations with diverse actors and by a quite
flexible allotment of time and resources. This more organic approach facilitate the emergence of possibilities along the
way and new design opportunities can evolve through a continuous match-making process” (Per-Anders et al, 2011,
apud Manzini, 2015: 152).
Estudo de caso: Amplifying Creative Communities (Nova York, EUA)
O projeto foi realizado em algumas “comunidades criativas” de Nova York,
proporcionando visibilidade e expansão para iniciativas espontâneas que
desenvolvem estilos de vida e de trabalho mais sustentáveis como solução para
os seus problemas cotidianos, gerando inovação social. Ações articuladas:
mapeamento de iniciativas; desenho de cenários para promover sinergia de ideias
compartilhadas; toolkits para estimular novas iniciativas; comunicação de inovação
social sustentável através de exposições, workshops e website.
Fonte: www.amplifyingcreativecommunities.org/
45
Fonte: http://www.cittadinicreativi.it/
3.3 Design Anthropology
Segundo Ingold (2013), o design tem que corresponder ao mundo, ou seja, “abrir
nossa percepção ao que está acontecendo lá fora, para que, por sua vez, possamos
responder a ela” (Ingold, 2013: 7)38. É seguir as esperanças e sonhos das pessoas,
os fluxos e mudanças. Nesse sentido, sugere-se que o design é um processo de
improvisação, pela perspectiva do movimento, e não de inovação, que seria um
olhar para os resultados. Isso significa “reconhecer que a criatividade do design não
é encontrada na novidade de soluções prefiguradas para os problemas circundantes
percebidos, mas na capacidade dos habitantes em responder com precisão às
sempre mutáveis circunstâncias de suas vidas” (Gatt & Ingold, 2013: 145)38.
38
“(... ) open up our perception to what is going on there so that we, in turn, can respond to it” (Tradução própria).
39
“This is to recognize that the creativity of design is found not in the novelty of prefigured solutions to perceived
environmental problems but in the capacity of inhabitants to respond with precision to the ever-changing circumstances
of their lives.” (Tradução própria).
40
“The task for design anthropology is to integrate and develop these traditional qualities into new modes of research
and collaboration, working toward transformation without sacrificing empathy and depth of understanding.” (Tradução
própria). Gunn, Wendy; Donovan, Jared. (Eds.) Design and Anthropology: Anthropological studies of creativity and
perception. London: Ashgate, 2012.
41
O LaDA é liderado pela professora pesquisadora Zoy Anastassakis, co-orientadora da presente investigação, e
instalado na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ).
3.4 Co-Design: experimentos, ferramentas e metodologias participativas
42
www.codesignresearch.com.
43
Simonsen, Jesper & Robertson, Toni. Routledge International Handbook of Participatory Design. New York: Taylor
& Francis Books, 2013.
Alguns autores relacionados ao Participatory Design escandinavo exploram o conceito
de “design things” como uma variação no significado da palavra thing da associação
a objetos materiais para encontros sócio-materiais, ressaltando a importância do
fazer no processo de design. A origem etimológica da palavra thing está relacionada
a assembleia, um lugar onde as pessoas se reúnem para tomar decisões coletivas
sobre o futuro (Koskinen, 2011)44. O termo está, portanto, associado a um lugar
comum para negociar conflitos, discutir ideias e interesses diversos; um espaço com
perspectivas heterogêneas de atores engajados na tentativa de resolver conflitos
e controvérsias, em oposição ao consenso, possibilitando o surgimento de novas
formas de pensar e se comportar, com abertura para interpretações inesperadas.
Esta abordagem do design como um modo de investigação processual cria
estratégias e táticas para serem transformadas através da performance de interação
entre um coletivo de humanos e não humanos (recursos), sem a preocupação de
cumprir etapas pré-definidas. Tem foco no processo de fazer do design, em como
se reunir e colaborar em torno dos assuntos de interesse (Binder, 2011).
“Pensar sobre os artefatos em termos de design significa concebê-los cada vez menos
como objetos modernistas e cada vez mais como “coisas”. Usando minha linguagem: 49
os artefatos estão se tornando concebíveis como conjuntos complexos de questões
contraditórias (lembrando que esse é o sentido etimológico da palavra “thing” em
inglês, bem como em outras línguas europeias). Quando as coisas são consideradas
como bem ou mal elaboradas, elas não se apresentam mais como questões de fato.
Assim, à medida que sua apresentação como questões de fato se enfraquece, seus
lugares entre as muitas questões de interesse são fortalecidos.” (Latour, 2008:6)
Ingold (2012) tem um entendimento ainda mais profundo sobre a “coisa”, que
diferencia do objeto por este ser reconhecido como um fato consumado, fechado e
definido, enquanto que a coisa seria um agregado de fios vitais, um “lugar onde os
aconteceres se entrelaçam” (Ingold, 2012), onde a construção coletiva ocorre em
sintonia com os fluxos da vida.
Portanto, design things são ferramentas e técnicas que agregam as pessoas para
imaginar, discutir e analisar ideias; traduzem interesses em linguagem compartilhada
para mediar questões e comunicar visões, criando espaço para diálogo e discussão;
assumem um papel de mediação de uma investigação com objetivos relacionais
abertos a interpretações (Bjögvinsson, 2012; Koskinen, 2011; Manzini, 2015).
44
Koskinen, Ilpo, Zimmerman, John, Binder, Thomas, Redstrom, Johan, & Wensveen, Stephan “Design things: model
scenarios, prototypes.” in Design research through practice: From the lab, field, and showroom. Elsevier, 2011.
Em articulação às questões do espaço público urbano, ressalta-se a importância
dos argumentos do pesquisador Carl DiSalvo, em “Design and the construction of
publics” (2009), sobre a “construção do público”. Com entendimento pluralista de
um público amplo, inclusivo e múltiplo, os produtos e processos de design devem
contribuir para sua construção, tornando visíveis as questões locais a partir de um
ambiente dialógico e crítico. Assim, o público poderia ser projetável através de
“táticas de design”, em oposição ao conceito de estratégia proposto por De Certeau
(1994) enquanto estruturas de poder que estabelecem modos de ação. As táticas
são os meios desenvolvidos para negociar estratégias que atendam a necessidades
e desejos das pessoas envolvidas em determinado contexto.
45
Gunn, Wendy; Donovan, Jared. (Eds.) Design and Anthropology: Anthropological studies of creativity and perception.
London: Ashgate, 2012.
experimentos de pesquisa e diálogo público no cenário urbano. Articulam o conceito
de dispositivo de Foucault, como um conjunto de estratégias de relações de força que
formam uma rede de conexões entre possibilidades e suas transformações, com o
de conversação, como uma construção compartilhada de discursos possíveis, que
difere da opinião formada por meio da comunicação. Propõem o uso de artefatos
de visualização para construir processos abertos de engajamento e imaginação
coletiva sobre visões possíveis para as questões do espaço urbano, formando
uma estrutura multilateral, horizontal e transversal entre agentes heterogêneos com
diferentes conhecimentos e práticas, em abordagem transdisciplinar.
Outra forma de validar visões, exibir e selecionar ideias, criar entendimento comum
e ouvir novos pontos de vista, é através da realização de exposições públicas com
a participação dos atores locais e outros possíveis interessados. Nesse momento
de encontro, são exibidas as ideias de designers e não designers elaboradas em
momento prévio, através de desenhos, sketches, fotografias, vídeos e cenários,
para serem colocadas em discussão sobre sua validade e consequências futuras,
construindo coletivamente conceitos de design que podem orientar o projeto.
Fonte: http://www.casadovapor.org/
53
Estudo de caso: Coletivo Warehouse (Portugal)
Busca uma prática contemporânea da arquitetura através da experimentação,
construção e desenvolvimento de projetos em colaboração com outros
profissionais, artistas e comunidades. Tem abordagem inclusiva e compartilhada
para construção coletiva, com importância às intervenções e dinâmicas sociais.
Projetos abaixo: Sopa de Pedras, um espaço de debate no Porto (PT); Cozinha
Comunitária, nas Terras da Costa (PT).
Fonte: www.warehouse.pt
54
46
Siqueira, Saulo Aguiar. Rio Comprido: Lugar, memória e identidade. Monografia apresentada ao Instituto de
Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013.
Em consonância com as proposições do Design Anthropology, buscou-se criar um
ambiente exploratório em construção permanente, atuando em correspondência às
dinâmicas locais, se moldando a cada nova ideia, desafio e oportunidade, alterando
a previsão das ações e desdobramentos. Com presença constante no terreno,
misturou-se vida pessoal e pesquisa, com a descoberta de uma diversidade de
olhares e possibilidades, num processo de imersão e ideação em constante resposta
e estímulo. Foram retomadas as entrevistas e conversas informais com moradores,
na busca de perceber os últimos acontecimentos e as principais questões que
interferem no cotidiano das pessoas.
47
Gaudio, Chiara Del. “O tempo do design participativo.” Artigo apresentado no 12o Congresso de Pesquisa e
Desenvolvimento em Design (P&D Design). Gramado (RS), 2014.
4.1 Breve histórico
Em outros tempos, com a ocupação dos portugueses e a fundação da cidade do
Rio de Janeiro em 1565, o Rio Comprido fazia parte de uma região de engenhos
para produção de cana de açúcar (Engenho Velho), abrigando chácaras de famílias
abastadas. Era um vale de clima ameno próximo ao maciço da Tijuca e, portanto
muito procurado pelos estrangeiros (Siqueira, 2013). O nome do bairro é uma
referência ao rio que o corta: Yguasu (ou Iguassú ou Iguaçu), de origem indígena
guarani, significa “água grande”, ou “rio grande”, tendo se popularizado como Rio
Comprido e assim oficializado em 1875 (Silva, 1966, apud Siqueira, 2013).
58
No sec. XIX instalou-se a Família Real Portuguesa e o Rio de Janeiro virou capital
do Império, recebendo diversas reformas urbanísticas para sua modernização, com
investimento na área central da cidade. Porém o cenário no fim do século era de
insalubridade, com aumento populacional, precariedade de infraestrutura, água,
saneamento e falta de moradia popular, que começava a se desenvolver nas favelas
e cortiços (Abreu, 1987, apud Siqueira, 2013). A “Reforma Pereira Passos”, de 1903 a
1906, foi a primeira grande reforma urbanística do Rio de Janeiro a impactar o bairro
do Rio Comprido. A “higienização” das ruas e demolição dos cortiços desencadeou
o processo de ocupação efetiva do subúrbio e expansão das favelas (Santana,
2009, apud Siqueira, 2013).
59
Fotografias do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro: construção do Elevado Paulo de Frontin em 1971; Avenida Rio
Comprido (primeira nomeclatura da Av. Paulo de Frontin), inaugurada em 1919; desabamento de trecho do viaduto logo
após sua inauguração, em 1971; um dos bondes que circulavam no bairro, durante o carnaval de 1954.
4.2 Caracterização e mapeamento
Oficialmente o bairro do Rio Comprido faz parte da III Região Administrativa, possui
43.764 habitantes distribuídos em 15.559 domicílios numa área de 3,34 km2 (IBGE,
2010), sendo cerca de 30% moradores das diversas favelas presentes. Dispõe de
localização estratégica e privilegiada, por estar no limite da zona central e ter ligação
direta com bairros da zona sul, centro e norte da cidade.
60
62
Praças/áreas de lazer
Praça Condessa de Frontin
Praça Del Vecchio
Praça Santa Alexandrina
Praça do Querosene
Hospitais/Casas de saúde
Clínica da Família
Hospital Salles Neto
Casa de Portugal
Hospital do Amparo
Hospital da Aeronáutica
Instituições de Ensino
4 escolas públicas
3 escolas privadas
2 universidades particulares
Clubes
Clube Curió
Clube do Alemão
Clube dos Poveiros 63
Clube da Beira
Helênico Atlético Clube
Instituições religiosas
Igreja de São Pedro
Igreja Nossa Senhora das Dores
Igreja de São Francisco
~10 Igrejas Evangélicas
Comércio e serviços
Fotos de campo
64
65
4.3 Mapeamento participado
Com intenção de ultrapassar a visão pessoal do lugar e conhecer outras perspectivas,
estórias, desejos e interesses foi criado um mapa participado com função de
ferramenta visual para alimentar a conversa social com os moradores escolhidos
a partir da rede pessoal e em expansão dinâmica, ou seja, a partir da indicação
dos primeiros entrevistados. Foi desenvolvida uma primeira versão do dispositivo
etestada em algumas entrevistas, depois adaptada para melhorar a recolha de
informações e a visualização de seus resultados.
A seguir serão estraídas algumas frases ouvidas e imagens que visam materializar
a experiência vivida. Outras percepções foram desenvolvidas no livro de projeto,
objeto anexo a esta dissertação.
“Rio Comprido é terra sem lei.”
67
Acima, fotografia as ferramentas utilizadas na construção dos mapas participados, abaixo exemplos de
entrevistas realizadas com o uso do dispositivo; autoria própria.
Na tentativa de abordar a imagem do bairro pelas crianças, foi feita uma experiência
utilizando também o mapa como base para intervenção por meio de desenhos
ou escritas, a partir dos materiais disponibilizados e uma breve conversa sobre
o assunto e as percepções individuais. Os participantes não entenderam bem o
sentido da atividade, nem a linguagem do mapa, portanto acabou por se transformar
num esqueleto para pintura. Foi interessante perceber a reação das crianças diante
68
do material e se considerou realizar outras tentativas adaptadas, mas não foram
levadas adiante por se assumir outras abordagens mais produtivas no curto espaço
de tempo que se dispunha.
Fonte: http://iconoclasistas.net/
4.4 Espaço público online
O mundo hoje possui grande conexão devido ao avanço das tecnologias digitais e
da internet, observam-se maior quantidade e qualidade de interações administradas
por esse sistema e as redes sociais reunem pessoas de todo o mundo em torno de
interesses comuns, facilitando o encontro, fortalecendo laços sociais e permitindo
maior alcance na comunicação de assuntos diversos. O espaço público se expandiu
para o mundo online, em complemento ao meio físico, formando um sistema híbrido
altamente conectado. Tendo em vista a importância da internet e das redes sociais
nos dias de hoje, foi realizada uma experiência no âmbito da investigação, com
o intuito de testar a capacidade de reunião nesse meio acerca dos assuntos de
interesse, com o mínimo de esforço, visto que o foco não era esse.
Foi criada uma página no Facebook com o nome do projeto “Rio Comprido em
Nós”, com a intenção de complementar as informações recolhidas no meio offline,
através de ações em um grupo composto por mais de 4.000 pessoas, moradores
e ex-moradores do bairro, ou pessoas com algum tipo de interesse pelo lugar. Foi
70 aplicado um questionário com perguntas complementares às informações obtidas
até o momento, permitindo novas contribuições por pessoas desconhecidas, o
que antes parecia mais difícil de se atingir. Entretanto, o grau de envolvimento dos
usuários não foi muito alto, acredita-se que por haver pouca atividade. A internet cria
Para lidar com tamanhos dados, analisar os possíveis resultados e refletir sobre
as ações seguintes, foram feitas muitas anotações e esboços de classificações
das informações, que foram se delineando ao longo do processo, através das
interações dinâmicas, das ideias surgidas, das dificuldades e oportunidades.
Posteriormente, foram organizadas em um painel e separadas entre ativos potenciais,
72 passivos prioritários e possibilidades futuras, com o intuito de pensar os cenários
representativos das ideias para o bairro. Optou-se por fazer essa atividade sem a
participação dos atores, devido à grande quantidade de informações levantadas e
curto tempo para seu desenvolvimento, mas poderia ter sido realizado um encontro
em formato de workshop de co-criação, para se discutir as questões sob diferentes
pontos de vista.
Trechos do caderno de campo/projeto com esboços de ideias para os aspectos históricos do bairro: publicação e linha do tempo.
Para tornar visíveis os episódios revelados, foi elaborada uma linha do tempo com
os principais eventos da formação sócio-territorial do bairro, utilizando as imagens
encontradas nos bancos digitais das bibliotecas e websites. Cada evento foi
apresentado em uma peça individual formando um conjunto de acontecimentos
organizados em uma narrativa visual sobre a história do bairro.
Com o objetivo de valorizar o que o bairro tem de bom e poder divulgar para um
público ampliado, foram elencados alguns lugares de importância histórica e/ou 75
simbólica, então expostos em forma de cartão postal e organizados em um mapa
como um roteiro para percurso exploratório.
4.6.3 Problemas prioritários
76 Sendo um bairro com bastante degradação, observa-se uma grande quantidade de
dificuldades e necessidades, que os moradores não hesitam em enumerar e cobrar
respostas, sem receber significativa importância por parte do poder público. Com
base nas conversas e reivindicações, foram selecionados problemas considerados
prioritários e então elaborados cartazes com o objetivo de denunciar e evidenciar.
4.6.4 Iniciativas locais
77
4.7 Cenários futuros
80
Estudo de caso: Strategic Design Scenarios
É um laboratório de inovação e sustentabilidade especializado em design
estratégico, construção de cenários, co-design com usuários e abordagem
centrada em comunidades. As atividades são baseadas em técnicas projetivas
como storytelling, storyboarding e a co-criação de formas visuais de cenários
futuros. Tem como foco de pesquisa inovação social, modo de vida sustentável,
serviços colaborativos, mudança de comportamento, desenvolvimento local e
planejamento urbano regional através de micro projetos. Atua em vários campos
como uso de energia, cidades sustentáveis, inovação de serviços públicos, usos
emergentes, design de interação, inclusão social e educação.
81
Fonte: www.strategicdesignscenarios.net/
4.8 Publicação
82
84
5. Considerações finais
Os questionamentos pessoais que motivaram esta investigação seguem renovados
nesse momento final do mestrado, tanto no que diz respeito ao lugar de trabalho de
projeto, com todas as descobertas e experimentações, dificuldades, oportunidades
e desafios; como ao que se refere às indagações disciplinares sobre o papel do
designer na sociedade e as novas possibilidades de atuação frente aos problemas
do mundo contemporâneo. Todo o conhecimento adquirido e experiências
vivenciadas foram importantes para alimentar novas questões em um movimento
de busca interminável.
O espaço público no mundo complexo exige esforços combinados que podem ser
trabalhados a partir de táticas locais que reúnam as pessoas para discutir suas
questões e para desenvolver alternativas coerentes com suas necessidades reais
e sonhos possíveis. A produção do espaço através de suas práticas sociais e a
construção do público acerca de assuntos de interesse representam uma combinação
potencial para a atuação profissional na busca por novas dinâmicas direcionadas
a uma sociedade mais sustentável e democrática. A investigação indica que essas 85
ações micropolíticas podem ser incentivadas e articuladas estrategicamente, em
movimento bottom-up, para uma mudança sistêmica em conexão.
Bauman, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
Binder, Thomas, Giorgio De Michelis, Pelle Ehn, Giulio Jacucci, Per Linde e Ina Wagner.
Design Things. The MIT Press, 2011.
Bjögvinsson, Erling, Pelle Ehn, and Per-Anders Hillgren. “Design things and design thinking:
Contemporary participatory design challenges.” Design Issues 28.3: 101-116, 2012.
Cardoso, Rafael. “Design, cultura material e o fetichismo dos objetos.” Revista Arcos 1, 1998.
______________. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgard Blücher, 2004.
Cartwright, Lisa e Marina Sturken. Practices of looking. Oxford: Oxford University Press.
“Postmodernism and Popular Culture”, pp. 237-278; 2003
DiSalvo, Carl. “Design and the Construction of Publics.” Design issues 25.1 : 48-63, 2009.
Ehn, Pelle, Elisabet Nilsson, and Rrichard Topgaard. Making Futures: Marginal Notes on
Innovation, Design and Democracy. London: The MIT Press, 2014.
Gunn, Wendy; Donovan, Jared. (Eds.) Design and Anthropology: Anthropological studies of
creativity and perception. London: Ashgate, 2012.
Harvey, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
Koskinen, Ilpo, Zimmerman, John, Binder, Thomas, Redstrom, Johan, & Wensveen, Stephan
“Design things: model scenarios, prototypes.” in Design research through practice: From the
lab, field, and showroom. Elsevier, 2011.
Krauss, Rosalind. “Sculpture in the expanded field.” In October: 31-44, 1979.
Latour, Bruno. “Um Prometeu cauteloso?: alguns passos rumo a uma filosofia do design
(com especial atenção a Peter Slotedijk).” Agitprop: revista brasileira de design, São Paulo, v.
6, n. 58, jul./ago. [2008] 2014.
Lefebvre, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do
original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos), [1974] 2000.
Magnani, José Guilherme Cantor. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.”
Revista Brasileira de Ciências Sociais 17.49: 11-29, 2002.
Margolin, Victor. Design e Risco de Mudança. Matosinhos: Editora Verso da História, ESAD,
2014.
Maricato, Ermínia. “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”, in Otília Arantes; Carlos
Vainer & Ermínia Maricato. A cidade do pensamento único. Petrópolis, Vozes, 2000.
Murray, Robin, Julie Caulier-Grice, and Geoff Mulgan. The open book of social innovation.
National endowment for science, technology and the art - NESTA, 2010.
Otto, Ton; Smith, Rachel Charlotte. “Design Anthropology: A Distinct Style of Knowing.” In
Design Anthropology Theory and Practice. London/New York: Bloomsbury, 2013.
Papanek, Victor, and R. Buckminster Fuller. Design for the real world. London: Thames and
Hudson, 1972.
____________, and Ute E. Weiland, eds. Handmade urbanism: from community initiatives to
participatory models. Jovis Verlag, 2013.
Siqueira, Saulo Aguiar. Rio Comprido: Lugar, memória e identidade. Monografia apresentada
ao Instituto de Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013.
Vaz-Pinheiro, Gabriela (Ed.). Espaços Relacionais: Um novo campo expandido para a arte e
pensamento. i2ads, FBAUP, Porto: 2008.
Webgrafia
Acupuntura Urbana - http://acupunturaurbana.com.br (último acesso em 15/01/2016).
Harvey, David. O marxista que quer reinventar as cidades. Outras Palavras (2013). http://
outraspalavras.net/posts/o-marxista-que-quer-reinventar-as-cidades/ (último acesso em
92 28/04/2015).
______, David. David Harvey quer além dos protestos um projeto. Outras Palavras (2014).
http://outraspalavras.net/posts/david-harvey-quer-alem-dos-protestos-um-projeto/ (último
acesso em 29/04/2015).
Outros
Maffesoli, Michel. Conferência: Cibercultura e Remitologização Pós-Moderna. Universidade
Lusófona do Porto (01/12/2014).
93
94