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RIO DE JANEIRO
MARÇO 2007
GILBERTO GONÇALVES GARCIA
RIO DE JANEIRO
MARÇO 2007
2
CDD – 189
149.5
3
Esta tese foi julgada adequada para a obtenção do título de Doutor em Filosofia, e aprovada
em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ.
TECENDO A MANHÃ
RESUMO
ZUSAMMENFASSUNG
Garcia, Gilberto Gonçalves. Die Freiheitsidee und die relationelle Anschauung bei
Meister Eckhart: Eine Phänomenologie der Schöpfung in Gedankengut von Meister
Eckhart. 2007. 182p. These (Doktorat in Philosophie) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Das Hauptthema diese Arbeit „Freiheit: Eine Phänomenologie der Schöpfung in Gedankengut
von Meister Eckhart" hat als Ausgangspunkt ein Vorverdacht, dass in der Basis der mystisch-
spekulativen Denkweise eine Art Erörterung des Seinsbegriffes ausreift, die zwar anders als
die Idee des Seins der mittelalterischen Ontologie ist, jedoch auf sie aufbaut. Eckhart denkt das
Sein von der Bewegung aus. Seine Lehre fasst eine Theologie zusammen, die eine
ontologische Möglichkeit zu entdecken versucht, die gleichzeitig die Identität und den
absoluten Unterschied in der Beziehung zwischen Gott und Geschöpft bewahrt. Um dies zu
beschreiben, entwickelt Meister Eckhart ein relationelles Verständnis der Welt, in dem die
Geschöpften als andauerndern Selbstverwircklichung gedacht werden und diese
Selbstverwircklichung ist ein ständlicher Prozess der inneren Wandlung in den Seienden. In
seiner „Ontologie der Relationalität" besteht das Ganze nur in der Beziehung mit dem
Einzelnen und das Einzelne hat seine Wircklichtkeit nur in der Verknüpfung mit dem Ganzen.
Es ist nicht möglich, beide als getrennte Wirklichkeit zu denken. Die Relationalität ergibt sich
von dem Anderen aus und von dem Anderen als Ganze, der seinerseits auch nicht als
„vollkommen" gesehen wird. In der Eckharts-Denkweise wird die Beziehung des Ganzen mit
dem Einzelnen jedoch zu einem Prinzip. Der erste Entwurf seines Relationalitätsgedankes
erscheint bei seiner Schöpfungslehre mit dem Begriff der „Abgeschiedenheit", und dies hundert
Jahre vor der relata-Lehre von Nikolaus von Cusa, der eingentlich das Relationalitätsgedanke
systematisierte. Meister Eckhart entwickelt so eine „Ontologie der Relationen" nach dem
Modell der Ontologie der Endlichkeit. In dieser erscheint das Paradox, dass das Endliche,
gerade weil es sein muss, sich jedesmal (in seiner stricke Endlichkeit) in dem Ausdruck und in
dem Inhalt des Ganzen verwandelt. Auch die kleinste Endlichkeit, wenn sie in Beziehung zum
Ganzen steht, ist dasselbe mit dem Ganzen. Wenn es keine Unterschied zwischen dem
Absolut und dem Beziehungsbedignten mehr besteht, kann dann die Frage nach der
Unterscheidung zwischen Schöpfer und Geschöpft andersartig ausgelegt werden. Von diesem
Grundverständnis ausgehend erfindet Meister Eckhart andere Begriffe in seiner Homiletik, in
denen das dialetische Gadanke der Relationalität zum Ausdruck kommen. Diese Begriffe
bilden dann die Grundkategorien seiner spekulativen Mystik. Die vorliegende Studie wird sich
einige diese Begriffe wenden, mit dem Ziel von der Ontologie der Relationen zu einer
möglichen „Ontologie der Freiheit" bei Eckhart zu finden. Das Interesse dieser Forschung ist
teilweise darzustellen, wie sich Meister Eckhart von der theologischen Hauptfrage der
Scholastik „befreit" und dabei einen neuen Weg zu einer bedeutenten Wandlung in dem
mittelalterischen Seinsontologie in Richung einer Ontologie der Freiheit erschliesst. Vielleicht
war sogar die Mystik in seiner Hochbedeutung der Ausgangspunkt eines relationellen Denken;
ein erster formeller Vorwurf des Seinsverständnis als Freiheit.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9
DA REALIZAÇÃO".................................................................................................. 45
1 INTRODUÇÃO
de pensar: aquele que reflete a ordem do mundo como uma doutrina e aquele que
falta é o que justifica, ao mesmo tempo, sua riqueza e seu fracasso. Pois, em
geral, todo impulso filosófico essencial cria seu nexo histórico, o qual só se torna
método próprio, claramente explicitado. Não foi à toa que a aurora da modernidade
determiná-las a partir destes nexos. Em todo caso, elas não podem ser descritas
significação deve corresponder um sentido próprio, enquanto aquilo que pode ser
articulado no momento do discurso. Este, por sua vez, sempre atende à possibilidade
1
ROMBACH, Heinrich. Strukturontologie. Eine ontologie der freiheit. Freiburg/München: Karl
Alber Verlag, 1971. p.15.
11
prévia de uma compreensão. Este fato não pode evitar que o aclaramento da
linguagem mística se faça com muitos equívocos. Não há outro modo. Também, para
o exercício concreto da pesquisa, não se pode buscar recurso num possível discurso
ambiente escolar das universidades, no clima das disputas, dos comentários e das
outros supostos blocos de divisão: o das obras formais (as acadêmicas) e o das
sermões e os opúsculos. Uma conclusão conseguinte, por fim, nos diria: obras
Já, aqui, torna-se inevitável esclarecer que, para o propósito de uma boa
da mística, para este não vale o atributo comparativo de uma literatura de gênero
inferior, em contraponto a uma literatura maior. Deve-se muito menos esperar que
Eckhart, que os distingue dos textos alemães, não diminui nos sermões a
média, não deve ser confundido com sermão em nosso senso usual, sermão
como Rede, Predigt ou, como o próprio latim, Sermo. Sermo, para a academia
(disputatio)2 escolar. Esta nada mais era que a ampliação da questão (quaestio) e
da lição (lectio). A lectio era a leitura pública de textos. Uma forma de leitura, que,
disputa podia ser verbal ou escrita e tinha natureza litigiosa, doutrinal ou dialética.
dialética do pensar. Quando, pois, se diz que o "sermão" era para a mística uma
expressão livre da disputa, se quer dizer que o "sermão", na idade média, mais que
2
TOMÁS DE AQUINO, citado por LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na idade média. São
Paulo: Brasiliense, 1988. p.78.
3
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Aristotelis librum de anima. In: An Aquinas Reader. Selections
from the writings. M. T. Clark (Org.). 2.ed. New York: Fordham Un. Press, 1988. p.236.
13
ontologia da liberdade
ontologia medieval. O lugar no qual esta conjectura pode ser observada com mais
clareza se acha no corpo doutrinário dos sermões alemães. Se for oportuno, cabe
afirmar que a "ontologia" mística medieval traz, em sua doutrina elementar, uma
compreensão dinâmica do ser muito mais sutil que a encontrada na tese geral do
ser a partir de um movimento. Ela pensa o ente como potência. Nela o ente "quer"
constantemente ser. O ser, para o pensar místico, deve ser compreendido somente
semelhança entre Deus e a humanidade, "de tal modo que todas as categorias do
distinções reais de Deus. Há que se levar em conta que a tese das distinções (que
4
ROMBACH, Heinrich. Strukturanthropologie. Der menschlische mensch. Freiburg/München:
Karl Alber Verlag, 1987. p.34.
15
ontológica5. Para a ontologia medieval, nem essência nem existência são como tais
um "ente". Ambas compõem, pelo contrário, aquilo que constitui a estrutura do ser
criação como um todo, não são outra coisa do que ser e entidade. A essência é um
nível (um grau), que o ser cada vez assume segundo a forma respectiva e o modo
de realização da entidade.
como propósito desta pesquisa. Alguns argumentos são antecipados apenas para
liberdade? E liberdade, ela mesma, como deve ser interpretada nesta compreensão
5
Diferença ontológica é um conceito extraído da analítica fenomenológica e se refere à diferença
do sentido do ser entre ente e ser. Como fenômeno indica a possibilidade de se agenciar a
passagem do tratamento ôntico do ente, para a tematização ontológica do ser se no sentido
geral indica a diferença entre ser e ente, num sentido derivado também indica a diferença entre
ontologia fundamental e ontologia ôntico-ontológica. Cf. HEIDEGGER. Martin. The basic
problems of phenomenology. Bloomington: Indiana Press, 1982. p.78.
16
6
ROMBACH, Heinrich. Substanz system struktur. Die ontologie des funktionalismus und der
philosophischen hintergrund der modernen wissenschsft. 2.ed. Freiburg/München: Verlarg Karl
Alber, 1965/1966, 1981. p.15. v. I e II.
7
Idem.
17
numa grande questão para toda a escolástica medieval. O acervo doutrinário tanto
8
Cf. HEIDEGGER, Martin. The basic problems of phenomenology. Tradução do alemão por
Albert Hofstader. Bloomington: Indiana University Press, 1982. p.78.
18
descrito: Se Deus chama algo à existência, que não seja ele próprio, que tem um
ser "autônomo", então há além (fora) do ser divino ainda um outro. Como será,
portanto, ainda possível se afirmar que todo ser é uno e que todo ser finito participa
nesse uno? A criatura singular portanto não pode ser nada 'fora' de Deus. Mas
também não pode perfazer uma 'parte' 'em' Deus, visto que Deus é o simples e
não conhece partes em si. Como descobrir uma possibilidade ontológica que, na
relação entre Deus e criatura, preserve a identidade absoluta ao mesmo tempo que
criador-criatura.
nossa terminologia. Ele desenvolve assim uma ontologia das relações aos moldes
ter de ser, cada vez (sua estrita finitude), se converte na expressão e no conteúdo
relacional não está às voltas com o todo, mas com a diferença recíproca dos
Eckhart parece ter aberto este caminho, o qual fora, mais adiante, retomado por
como num jogo de sentidos. Vamos encontrar no tratado "Do Homem Nobre" (Vom
Edlen Mensch) uma das mais claras articulações em seu pensamento onde se
alguns destes termos é que irá se debruçar este estudo, com vistas a saltar de uma
20
dita. Ela será apenas ocasião para a articulação sobre o modo de colocação da
O pensar relacional faz com que a realidade seja descoberta como auto-
regulação em seu desdobramento. Por isso ele só existe como "práxis" e se recusa
como teoria. Este princípio está na raiz da instrução homilética de Mestre Eckhart. Sua
linguagem filosófica. O discurso místico pode ser uma dessas possibilidades. Neste
sentido a mística especulativa pode estar muito mais próxima da ciência moderna que
a própria metafísica. Pois, para as ciências modernas, resultados finais como certeza
ou erro, sucesso ou fracasso são os critérios que orientam o curso das investigações
em seu desenvolvimento. A característica principal delas é que elas abrem seu próprio
9
HEIDEGGER, Martin. The basic problems..., op. cit., p.91.
10
ROMBACH, Heinrich. Substanz, system, struktur..., op cit., p.18.
21
sermões de Eckhart.
finito (criatura). Esta difícil relação foi cunhada pela filosofia escolástica como analogia
entis. A teologia mística de Mestre Eckhart, por exemplo, não pode se tornar acessível
sem antes se tomar a sério o abismo que se abre na questão da analogia do ser.
mística pela análise dos fenômenos por ela descritos. Uma ontologia da liberdade
22
como ontologia das relações pretende ser, pois, o último estágio de uma ontologia
referência a uma ontologia da liberdade só terá valor quando entrar em jogo uma
liberdade nos sermões de Eckhart. Estas imagens, uma vez interpretadas, serão
poderá abrir caminho para essa possibilidade, quando interpreta o "mundo" como a
liberdade próprio: uma "irrupção", como dizem os místicos. Mestre Eckhart sustentará
produto do pensar da liberdade. A criação poderá ser vista, então, como um jogo
sentido do ser finito como parte do ser uno que vale a pena conhecer na mística, à
11
Cf. ROMBACH, Heinrich. Strukturontologie…, op. cit., p.83-84.
25
Agora, um mestre diz que uma força se estende acima do olho, mais
vasta do que o mundo inteiro, mais vasta do que o céu. Essa força toma
tudo que é trazido pelos olhos, e os leva para cima, para dentro da alma.
Ao que se opõe um outro mestre e diz: Não, isso, irmão, não é assim.
Tudo que através dos sentidos é levado para dentro daquela força não
chega a alcançar a alma; antes, se purifica, prepara e dispõe a alma para
que, de modo puro, possa receber a luz dos anjos e a luz divina. Assim
ele diz: "Tudo está, pois, preparado".12
RELAÇÕES
12
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006. 2v. 1v. sermão 22b. p.145.
13
Cf. MIETH, Dietmar. Die Einheit von vita activa und vita contemplativa. Regensburg:
Friedrich Putest, 1969. p.126.
26
Aqui Deus é Uno com o espírito e isto é a mais autêntica pobreza que se
possa encontrar. Quem não compreender estas palavras, não aflija o seu
coração. Pois enquanto o homem não se igualar a esta verdade, não
poderá entender estas palavras. Pois esta é uma verdade desvelada que
aqui veio imediatamente do coração de Deus.14
teologia sistemática da idade média, da qual ele deriva. O pensar relacional está
emerge da tentativa de se haver com uma grande questão ontológica, legada pelos
Há, com efeito, três maneiras de as substâncias terem essência. [...] Algo
há, como Deus, cuja essência é o próprio ser. [...] Conforme o segundo
modo, há essência nas substâncias criadas intelectuais, nas quais o ser é
outra coisa que essência, embora tal essência seja sem matéria. [...]
Conforme o terceiro modo, há essência nas substâncias compostas de
14
Cf. ECKHART, Mestre. In: O Livro da divina consolação e outros textos seletos. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 1991. Sermão 21. p.195.
27
15
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. O ente e a essência, n.61-62, 70. Rio de Janeiro: Presença,
1981. p.83-86.
16
Cf. ARISTÓTELES. Metaphisics. New York City: Columbia University Press, 1952. p.98. Book V.7.
17
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. O ente e a essência..., op. cit., cap. I. p.63.
28
ser. Santo Tomás objetiva aquele ente que jaz como fundamento, com o ente que
que a tradição tem em mente com o ente e com a essência e de que modo esta
conteúdo junto com o ente, mas aponta para aquilo que dá o ser "interno", com o
qual uma coisa se mantém de pé por si. Temos de admitir que aquilo que faz uma
coisa ser aquilo que ela é, própria e constantemente, é a sua essência. Toda e
seu "quê". E não somente a coisa, mas também suas propriedades e tudo mais que
pode ser dito dela. Na determinação da essência da coisa tem de ser determinado
não somente aquilo que ela tem em comum com outras, mas também aquilo que lhe
a que ela deve a sua primazia de ser como essência, e essa primazia de ser é
buscada seguindo o fato de que ela seja autônoma e própria nela mesma.
18
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. O ente e a essência..., op. cit., p.64.
30
tempo revela o que dela provém. O juízo não é formado no espírito. O juízo é formado
no interior da conjuntura por adequação. Através da adequação ele faz aparecer o
espírito e o sentido do ser que este carrega em contraposição. A doutrina do ser e da
essência descreve o mistério da co-pertinência e da distinção do desenvolvimento de
algo que, ao se desdobrar, manifesta algo que ele próprio não é. O "é" da cópula,
antes de assinalar um juízo, aponta para o desvelamento de um estado de coisas:
uma conjuntura, que, por sua vez, não é uma coisa. A essência mesma não é ser
(ente), mas "projeta" de dentro de si, "para fora", o ser. A essência não "é", mas ela
abre a possibilidade para que algo seja como aquilo que é, como ente. Por todo modo
que se "mexa" na questão da essência, o sentido de essencialidade se move na
direção de algo que se desdobra por si à maneira de uma conjuntura. Ela é tomada
como abertura prévia de uma dimensão "dentro" da qual se abre "sentido" e se torna
possível diferenciar o particular do geral. O ponto decisivo é que a essência é
assumida como lugar de origem e de partida do ser.
19
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 13a. p.110.
31
em pertença mútua e pelo qual os entes alcançam sentido próprio. Essência não fala
mundo em diferentes níveis. Cada coisa "está" na sua essência, desde que
"apreenda" sentido próprio. Ademais, não é a essência que "está" nas coisas, mas
pessoas, não como substratos, mas como momentos do mundo criado, em sua
revela nitidamente como Mestre Eckhart pensa esta relação. A co-pertinência entre
momentos de uma constituição mais ampla que elas mesmas não são. Porém, ao
mesmo tempo, elas são o que são por aquilo que "guardam" na relação. Fora disso
criaturas só podem ser determinadas naquilo que são na relação que mantêm entre si:
"todas as criaturas buscam sempre fora de si mesmas, uma na outra, o que elas
32
mesmas não têm". Possuir "ser" é ter determinidade, mesmo que esta determinidade
não seja ser, como é o caso do ser das privações.20 A determinidade faz com que
cada momento se torne claro na relação, de modo que quanto mais precisa for a
estão constantemente no ponto de fuga. Elas são e não são ao mesmo tempo. Seu
ser é intensificação de sua essência. A intensificação de sua essência, por sua vez, é
determinada pela relação de co-pertinência. É o que Mestre Eckhart diz: "Quanto mais
tem de estar relacionado a outro para ser o que é no "interior" da relação. Por este
modo que o outro nunca pode ser tomado por si a não ser que seu ser "si" seja um
"ser para". Assim ele confirma: "É bem verdade que uma criatura existe antes da outra
ou, pelo menos, uma nasce da outra". Cada criatura "ganha" pela relacionalidade,
especulativa", muito embora esta não tivesse se esboçado como uma ontologia. A
20
Santo Tomás diz em O Ente e a Essência que ente é tudo aquilo de que se pode formar uma
proposição afirmativa, ainda que não se estabeleça na realidade (nihil in re). Por este modo se
diz que as privações e as negações são entes. Cf. O ente e a essência..., op. cit., p.63.
21
Pedro de Eléia (Petrus Heliae) foi mestre em Paris aproximadamente em meados do século XII.
Sua doutrina sobre os modos de significação se encontra em sua Summa super Priscianum.
33
especulativa, estava ligado não somente aos modos de significação como também
aos modi essendi, isto é, aos modos de ser. Função (numa proposição com
para que ambos possam preencher sentido (modo de ser). Função indicava,
portanto, a condição na qual algo tem de estar relacionado a outro para ser o que é
momentos são fixados e "de quebra" lhe advém algo de outro, que ele mesmo não
que elas mesmas não têm." Seguindo o mesmo princípio gramatical da função,
entende-se que uma criatura só "é" enquanto tem seu ser "no outro". O outro, por
isso mesmo, nunca pode ser pensado como separado do primeiro ou como
separado de outros posteriores com os quais se acha remetido. O outro, como tal,
já é um problema ao ser pensado, uma vez que também não pode ser fixado.
Tomado "em si", o outro é, novamente, um momento. Visto a partir de si, se mostra
sentido de se apropriar de si. Ela só pode ser o que é no seu "efeito". Seu efeito é
"ser-para", mesmo que disso não resulte, de fato, nenhum efeito, resulte numa
paralização. É o que ele diz: "o que elas <mesmas> não têm" e, a seguir, "mesmo
assim, uma não dá à outra o seu <próprio> ser". A criatura, pois, só se "põe de pé"
Então ele diz: "Vi um cordeiro em pé". Podemos daqui tirar quatro22 bons
ensinamentos. [...] O segundo: O cordeirinho estava em pé. É tão bom
quando um amigo "está em pé" "junto" de seu amigo. Deus está em pé
junto a nós, e ele permanece em pé junto a nós, constante e imóvel.
E ele diz: Muitos estavam em pé junto dele; cada um deles trazia, inscritos
na fronte, seu nome e o nome de seu Pai. Pelo menos, o nome de Deus
deve estar inscrito em nós.23
mútuo que não tem dimensão limitada nem quantidade prefixada. A efetividade de
cada criatura, assim descoberta, é, simplesmente, "ter que ser" na relação. Cada
projetar para seu efeito. No ser "com" e ser "contra" do condicionamento relacional,
"a" outro. Ela (a criatura) se encontra "presa", simultaneamente, por sua identidade
e por sua diferença. Numa primeira instância ela se experimenta como o "nó" da
"subsiste" pela relação. Mestre Eckhart irá chamar, mais tarde, este "nó" de
ponto fixo, a essência dos seres se acha nas substâncias. As relações são vistas,
22
Eckhart promete quatro bons ensinamentos. Só menciona dois neste sermão. Certamente o
texto não está completo.
23
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 13a. p.110.
35
modos com que expressam é a mesma diversidade que caracteriza o ser."24 Para o
pensar das relações, em Eckhart, isto deve dizer: às diversas formas de relação
correspondem diversos modos de ser e gêneros do ente. Na Metafísica, as
"categorias" têm predominantemente o significado de modos de ser e gêneros do
ente. Logo após a passagem citada, elas aparecem elencadas: ti esti (substância),
aquilo que algo é; "qualidade", constituída de algum modo; "quantidade", de algum
tamanho; "relação", para algo; "ação e paixão", agir e sofrer; "onde", determinação
espacial (onde se pode ainda distinguir lugar e situação); "quando", determinação
temporal. Conta-se, porém, também aquelas que foram elaboradas posteriormente:
ter ou comportar.
Com ente, fica caracterizado tudo que é chamado com esses nomes. A
substância, porém, não é por acaso que vem por primeiro. A ela convém uma
primazia frente a todas as categorias, pois para todas as outras ela é pressuposta.
Porquanto ela é "aquilo que" a coisa "é" e isto a caracteriza mais propriamente do
que o fato de que o ente seja constituído assim...; seja grande assim...; esteja em
relação com outros...; seja ativo ou passivo. É por isso que o ente é designado
para todas as outras categorias como acrescido de fora ou por acaso (acidente). O
"que jaz no fundamento", é chamado com o nome latino de substantia. Para isso,
Aristóteles tem a designação de ousia, um "ente em sentido preferencial". Ora,
ousia é a palavra que Santo Tomás traduz por essentia. Tomás reivindicou como
ente (ao qual lhe convém uma essência), o ente que é classificado em categorias.
Portanto não somente as substâncias, mas também todas as espécies de
acidentes. Todos eles, e não somente as substâncias, têm uma essência.
A mística de Mestre Eckhart entende relação num sentido eminente. Para
ela, a relação é mais que uma categoria do ser. A relação é pensada como uma
forma dinâmica de princípio que determina o ser no seu todo e, ao mesmo tempo,
o faz ser aquilo que "é", como "é", na totalidade. Um sentido, portanto, que inclui,
ao mesmo tempo, os sentidos de essência, existência, substância e acidente. Por
24
Cf. ARISTÓTELES. Metaphisics. New York City: Columbia University Press, 1952. p.98. Book v.7.
36
25
Provavelmente se refere aos baccalaurii theologiae, os que ensinavam os elementos da filosofia, por
exemplo, as categorias de Aristóteles, para os iniciantes na escolástica. [Nota da edição crítica].
26
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., Sermão 9. p.84.
37
mística. "Um", "uno", "deidade", "abnegação", "homem nobre", são algumas arti-
conjuntura não tem partes. Ela só pode ser sempre pensada como totalidade.
Assim é o ver relacional. Isto vale tanto para o pensar místico como para o senso
dos mosteiros, na arquitetura das igrejas, no fundamento das ordens sociais. Está,
um empenho conjuntural.
Como pensar a relação do todo com as partes? A relação das partes com
o todo? E, ademais, a relação das partes entre si, com o todo? Eis a maior das
questões da teologia mística: se Deus chama algo à existência, que não seja ele
próprio, e que tem um ser ‘autônomo’, então há além (fora) do ser divino ainda um
outro. Como será, portanto, ainda possível se afirmar que todo ser é uno e que
todo ser finito participa nesse uno? A criatura singular, portanto, não pode ser nada
'fora' de Deus. Mas também não pode perfazer uma 'parte' 'em' Deus, visto que
27
Cf. ARISTÓTELES. Methaphisics…, op. cit., p.135.
28
Cf. ECKHART. Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 13a. p.110.
29
Ibid., sermão 21. p.148.
39
amplitude relacional). Esta relação pode, por sua vez, se estender a ponto de ser
determinada por outras relações, e assim por diante. É o que pressupõe o olhar do
Mestre. Para ele uma criatura, de algum modo, sempre "contém" aquilo que perfaz
sua vizinhança. O todo, numa certa medida, pode ser apreendido como a
Isto significa que, nos termos da mística, a criatura não pode se dar a não
ser enquanto voltada para outras criaturas. Até mesmo os anjos. Eis uma condição
que não pode ser contornada. Embora o pensamento de Eckhart parta da unidade
ser apenas em seu sentido mais radical, ou seja, no nível da relação entre o
refere a Deus ou a outra totalidade, por ora não é o que importa. Esta é uma
30
Uma compreensão que se aproxima muito da proposição da "distinção formal" entre essência e
existência no ente criado, admitida pelo seu contemporâneo franciscano Duns Scotus. Para
Scotus há uma diferença entre essência e existência no ente criado, que nem está no ente, nem
é resultado de uma operação mental. Esta distinção é formal por distinguir, numa realidade dada,
elementos que são distintos segundo o modo (modulação). Algo está em "outro" formalmente.
40
31
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 47. p.265.
41
Dessa forma, o modo de ser dos entes não é medido com o modo de ser de
Deus, mas é de alguma sorte identificado com o modo de ser de Deus, pois ser é
Deus. A criatura, propriamente falando, não possui ser algum. Ela só "é" à medida que
recebe continuamente o ser. Esta radicalização no modo de compreender a relacio-
nalidade do todo com a parte (Deus e criatura) redimensiona o sentido de analogia.
O pensamento de Mestre Eckhart se move em uma região ontológica própria que não
pode ser reduzida a outras. Aquilo que se lê de aparentemente fático e trivial em
seus sermões, deve ser reconduzido à sua região ontológica própria.
Eckhart reconhece apenas um ser. Seu modo de entender a analogia
começa com a superação do conceito de uma analogia pela similitude precária e
limitada pelo ser: se Deus é o ser, tudo o quanto vive, vive desse único ser. "Fora"
de Deus não existe absolutamente nada.
O que permite falar de ser, em Deus e na criatura, segundo a concepção
escolástica, é uma analogia de proporção (analogia proporcionalitatis). O que se há
de compreender com isso, Santo Tomás explicou detalhadamente:
32
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 12. p.104.
33
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. De veritate q. 2 a 11. In: An Aquinas reader. selections from
the writings of Thomas Aquinas. 2.ed. New York: Fordham University Press, 1988. p.218.
42
Estou tão certo de que não há nada que me é tão "próximo" quanto me é
próximo Deus [...]. Deus está mais próximo de mim do que eu estou de
mim mesmo; meu ser depende de Deus estar próximo de mim e
presente em mim. Ele está próximo também de uma pedra e de um
pedaço de madeira, mas eles não sabem disso. Se a madeira soubesse
de Deus e conhecesse quão próximo dele está, como sabe disso o anjo
mais elevado, então ela seria tão bem-aventurada quanto o anjo mais
elevado. Por isso, o homem é mais bem-aventurado que uma pedra ou
um pedaço de madeira, porque conhece a Deus e sabe quão próximo
dela Deus está. E quanto mais conheço isso, tanto mais bem-aventurado
sou, e quanto menos conheço isso, tanto menos bem-aventurado sou.
Não sou bem-aventurado pelo fato de Deus estar em mim e me ser
próximo e por eu possuí-lo, mas pelo fato de conhecer quão próximo de
mim ele está e de saber de Deus. No saltério o profeta diz: "não deveis
ser ignorantes como uma mula ou um cavalo" (Sl 31,9). Uma outra palavra
é dita pelo Patriarca Jacó: "Deus está nesse lugar e eu não sabia!" (Gn
28,10). Devemos saber de Deus e devemos conhecer que "o reino de
Deus está próximo.34
34
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen und lateinischen werken. Die
deutschen werke. Meister Eckharts Predigten – Dritter Band (Hrgs. und übersetst von Josef
Quint). Stuttgart: W. Kohlhammer. 1973. sermão 68. p.532.
44
criaturas em seus estados mais simples e comuns. Precisão, portanto, está nas
é conhecê-lo em suas múltiplas precisões. Esta é uma verdade que Mestre Eckhart
35
Cf. ECKHART, Meister. Meister Eckhart, die deutschen und lateinischen werken. Die
deutschen werke. Predigten – Vierter Band, Teilband IV,1. Hrsg. und übersetst von Georg Steer.
Stuttgart: Kohlhammer GmbH, 2003, sermão 100. p.275.
45
quanto das ciências. Nele, o conteúdo real do conhecimento está sempre fora de
interesse. Ele não pode ser reduzido a um saber quântico: pretender conhecer
mais cabal desse dado é o fato de que, para a mística, nem mesmo Deus interessa
ser concebido como todo. Para falar de Deus (que não é o todo) Eckhart fala
caminho que passa de parte para parte. O todo é a longa travessia para o mundo,
REALIZAÇÃO"
36
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 6. p.70.
47
precisão. Mestre Eckhart descreve esta experiência, quando salienta: "a alma justa
deve ser igual a Deus e ao seu lado, totalmente igual, nem abaixo, nem acima".
Assim, portanto, "justa", "nem abaixo, nem acima". A condição de identidade com o
todo é, pois, uma "medida" que regula o grau de precisão das criaturas.
sustentar sentido junto ao sentido do todo dos sentidos. Para Eckhart, a identidade
Quem são esses que são, desse modo, iguais? [...] Os que são iguais a
nada, somente esses são iguais a Deus. [...] Às almas que, desse modo,
são iguais a elas o Pai dá de igual a igual e não lhes retém nada. Em
verdade, o que o Pai pode efetivar, Ele o dá a essa alma desse mesmo
modo, desde que ela não se iguale a si mais do que a um outro ser e não
deva estar mais próxima de si do que de outro. Não deve desejar nem
cuidar de sua própria honra, do que lhe é útil e de tudo que é seu mais do
que o de um estranho. Nada do que é de um outro qualquer lhe deve ser
estranho nem distante, seja o que for, mau ou bom.37
37
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 6. p.70.
48
Mas, conclusivamente, nada pode ser estranho entre o "um" e o "outro", no interior
da conjuntura. É como adverte: "nada do que é de um outro qualquer lhe deve ser
estranho nem distante, seja o que for, mau ou bom".
Na imaginativa mística, a criação é um "autodeclarar-se". Em seu
"interior" as criaturas não podem ser interpretadas como elementos em corres-
pondência recíproca, simplesmente. As criaturas são tomadas como concreções
ao modo de significações junto com o todo da criação, de forma que o "sentido" de
ser alcançado pela criatura seja sempre o resultado de sua remissão "para" outra.
A criatura só se realiza quando ela se assume no todo criacional, ou melhor,
quando está decidida a "tomar" seu lugar na criação. Em "sendo" é que ela se
corrige em correspondência com o todo. Eckhart denomina este fenômeno com as
expressões: "junto a" e "igual".
No pensamento místico, ser criatura pressupõe uma decisão, um "salto"
para a vida. A criatura, em sua realidade, é tudo o quanto se pode alcançar no
momento de sua decisão. Dizemos: "Ela está decidida". E o que se decide no
momento do salto é o valor de lugar da criatura na criação. Quando a criatura salta
para a vida, o todo se decide, igualmente, com ela para a vida. Até mesmo Deus,
reafirma Eckhart. Em sua compreensão, decisão do ser não equivale a uma
potência do ser. A decisão é um lance que não pressupõe ação prévia sequer. Ela,
ou já se acha decidida ou simplesmente não existe. Assim se refere:
salto da vida e o modo como este determina seu "lugar" na criação. A transcendência
38
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 52. p.289.
49
de si, da criatura, a partir de si, por ela já estar sempre numa forma decidida de vida. A
identidade do todo. Para Mestre Eckhart, o sentido de "decisão" não vem do todo.
(mundo, homem e anjos) e do todo não cabe numa interpretação analógica. Seu
visão plenamente dinâmica da criação, as criaturas são percebidas como "dadas" a si,
"naquilo" que elas "guardam" nos valores de lugar que elas ocupam na relação, sendo
que um valor de lugar nem é "algo", nem é definitivo, ele apenas representa a situação
Um mestre grego diz que céu significa um "abrigo do sol". O céu derrama
sua força no sol e nas estrelas, e as estrelas derramam sua força no meio
da terra. Produzem ouro e pedras preciosas de modo que as pedras
preciosas têm a força de produzir efeitos maravilhosos [...]. Toda pedra
preciosa e <toda> erva é um pequeno abrigo das estrelas, que conserva
fechada em si uma força celeste. Assim como o céu derrama sua força
nas estrelas, também as estrelas derramam sua força nas pedras
preciosas, nas ervas e nos animais. A erva é mais nobre do que as pedras
preciosas, pois possui uma vida em crescimento. Ela desdenharia de
crescer sob um céu corpóreo se ali não houvesse uma força espiritual da
qual recebe sua vida. Assim como o ínfimo dos anjos derrama sua força
no céu, movendo-o e fazendo-o girar e operar, assim também o céu
derrama sua força misteriosamente em cada erva e nos animais. Por isso
cada erva possui uma propriedade do céu, atuando ao redor de si, em
ronda como o céu. Os animais, porém <em comparação com as ervas>,
elevam-se ainda mais alto e possuem uma vida animal e sensorial,
permanecendo, porém, presos a tempo e espaço. Já a alma, em sua luz
<cognitiva> natural e no que há nela de mais elevado <na centelha da
alma>, ultrapassando tempo e espaço, adentra a igualdade com a luz do
50
anjo, e atua, conhecendo com essa luz, no céu. Assim pois a alma deve
subir constantemente para o alto, na atuação cognitiva. Onde ela encontra
algo da luz ou da igualdade divinas, ali deve construir um abrigo e não
deve retornar, até que de novo suba adiante. Ela deve elevar-se sempre
mais na luz divina e ultrapassar todos os abrigos, com os anjos do céu na
contemplação límpida e pura de Deus. Por isso ele diz: "Olhou para o céu
e disse: ‘Pai, é chegado o tempo; glorifica teu Filho para que teu Filho te
glorifique’". Sobre como o Pai glorifica o Filho e como o Filho glorifica o
Pai, é melhor calar-se do que falar. Os que devem falar sobre isso
deveriam ser anjos.39
decisão, uma vez que é junto a ele que as singularidades "se realizam". Em Eckhart
forma de "soltura" da criatura. Por ele, a criatura se "distende" e expõe para si uma
39
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 54. p.297.
51
da criatura. Esta elasticidade interna da conjuntura faz com que os valores de lugar
por muito tempo restrita ao pensar místico, que Nicolau de Cusa encontrou o
caminhos são criativos numa conjuntura, nunca se pode ir, de fato, para "fora
40
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 48. p.269.
41
Cf. NICOLAU DE CUSA. A douta ignorância. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. Livro segundo,
p.121ss.
52
fato de não se poder ir "para fora" dela. Na experiência humana, por exemplo,
que Eckhart retoma a compreensão grega de virtude como força, poder, de alguma
e firmemente para a vida. Elas são "qualidades" da alma, segundo Santo Tomás:
"aquilo que faz com que cada ser seja o que é"42, como afirma. Virtude indica, por
isso, um modo como o homem se dispõe para o salto da vida e junto ao qual
pela virtude a criatura se "distende", encontra sua "soltura" na criação e expõe para
42
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica, I-IIa, q. LXII, a 1. In: An Aquinas reader.
selections from the writings of Thomas Aquinas. Garden City, NY: Image Book, 1972. II, 53. p.89.
53
alguma; não quer estar abaixo nem acima; o que ela quer é estar ali por si
mesma. [...] Quer apenas ser, e nada mais. [...] Por isso deixa estar todas
as coisas, sem importuná-las.43
43
Cf. ECKHART, Mestre. In: O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis:
Vozes, 1991. p.148-150.
54
44
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 18. p.131.
45
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Sobre o ente e a essência..., op. cit., p.26.
55
[...] a inteligência é forma e ser, e que recebe este ser do primeiro ente,
que é somente ser. Este ente é a causa primeira, que é Deus. Tudo aquilo
que recebe algo de outro está em potência em relação a este outro, e
esse algo recebido é ato daquele que recebe. Logo, é necessário que a
própria qüididade ou a forma, que é a inteligência, esteja em potência em
relação ao ser que recebe de Deus, e tal ser é recebido como ato. Assim
é que nas inteligências são encontrados potência e ato, mas não forma e
matéria [...] E porque, segundo se disse, a qüididade da inteligência é a
própria inteligência, também a sua qüididade ou essência é aquilo que ela
é, e o seu ser, recebido de Deus, é aquilo pelo qual ela subsiste na
natureza das coisas. E porque há, nas inteligências, potência e ato, não
será difícil concluir daí que exista considerável número de inteligências,
46
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Summa of Christian Teaching. In: An Aquinas reader..., op.
cit., p.57.
56
pois tal seria impossível, se nelas não houvesse potência alguma. Há,
com efeito, distinção entre elas, segundo o grau de potência e ato, de
modo que a inteligência superior, que está mais próxima do ato primo,
possui mais de ato e menos de potência e assim sucessivamente nas que
lhe seguem.47
Santo Tomás distingue no ser dos espíritos puros aquilo que eles são. E o
ser é caracterizado como seu ato. Ele também afirma que "aquilo" que o ser recebe,
estaria "em potência" em relação ao ser de quem ele recebe. Seguindo o sentido
literal de "potência", que significa "poder" ou "ser capaz de", o "estar em potência" é
que "pode ser" não tem o poder, a partir de si, de se transferir para o ser. Por outro
lado, o seu "poder-ser" significa mais do que: "não há nada nele que exclua o ingresso
do ser".
direcionado para o ser, que foi chamado de ato. E, desta forma, já um certo "modo
de ser". Pois, "ser possível" não significa simplesmente "não ser". Se "um ser
possível" já não fosse ele próprio um modo de ser, não teria sentido se falar de
a existência de algo que fosse mais ou menos ato e que estivesse mais próximo ou
passagem de potência para ato ou, como se pode afirmar agora, do ser possível
para o real, é uma passagem de um modo de ser para outro. E, quiçá, de um modo
de ser inferior para um modo de ser superior. Porém, mesmo no âmbito do ser
47
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Do ente da essência..., op. cit., p.82.
57
do ente supremo (Deus). Aquilo, pois, que outrora valia para o ente supremo, vale, em
Eckhart, para a realidade como um todo. Sua "ontologia da realização" não se move
com a idéia de degraus de concreção do inferior até o mais elevado. Ela pressupõe
"realização", o criar deve ser julgado "dentro de si", de modo que o Criador seria um
ser que "fala" (comunica) seu meio, se articulando em si. Com esta auto-articulação
48
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 37. p.220.
49
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 43. p.248.
58
pela "igualdade" entre Deus e ente. Sua doutrina relacional, que emerge da
50
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 75. p.560.
59
real, por conseguinte, é o que se mostra como conjuntura. Pode-se afirmar, a partir
de uma cautelosa perspectiva, que, no pensar teológico de Mestre Eckhart,
essência e existência coincidem na tematização do ente, enquanto tal,
considerando que, em sua doutrina, os seres são necessidades. Os seres não se
acham numa possibilidade prévia de ordenamento. Sua possibilidade já é um
modo de ser. O ser, a "coisa", exige ser, "quer" ser.
A desconceituação da normatividade empreendida pelo pensar místico
sobre o homem e o mundo significa a liberação para uma interpretação conjuntural
da realidade, que deverá apresentar suas medidas próprias, isto é, seu próprio
modo de pensar: uma "teologia da liberdade". Desconceituação corresponde a
uma redução. Para Eckhart, o mundo, as "coisas", requerem ser submetidos à sua
própria medida, assim como Deus não possui medida prévia. Ele diz:
E, dentre todas as criaturas, ele não ama uma mais que a outra; pois na
medida em que cada uma tem amplidão para concebê-lo, nessa mesma
medida ele se derrama nela. Se a minha alma fosse tão vasta e tão ampla
quanto o anjo [da ordem] dos Serafins, que nada tem em si, Deus se
derramaria plenamente em mim como no anjo [da ordem] dos Serafins.
Exatamente como alguém que traçasse um círculo, que a borda ao redor
fosse feita por pequenos pontos e no centro também um ponto: todos os
outros pontos estariam igualmente distantes e próximos a esse ponto; se
um pequeno ponto devesse achegar-se mais perto, deveria deslocar-se
de seu lugar, pois o ponto central permanece [sempre] de maneira igual
no centro. Assim é [também] com o ser divino: não procura nada fora de
si, mas permanece firme em si mesmo.51
"Deve-se tomar a Deus (como) modo sem modo e ser sem ser, pois ele
não possui modo. Por isso, diz São Bernardo: ‘quem quiser conhecer-te a
ti, Deus, deve medir-te sem medida’.
Peçamos a Nosso Senhor para que cheguemos ao conhecimento que ali
é inteiramente sem modo e sem medida. Que Deus nos ajude para isso.
Amém.52
51
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 75. p.560.
52
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 71. p.545.
60
medida própria exige encargo maior que aquele que se submete à normatividade
prévia. Por ser livre, a criatura está em vias de se perder mais facilmente, uma vez
que, em última instância, a medida própria não dispensa norma alguma. A norma
própria, a ser alcançada, é algo que há de ser buscado e assumido, e não está
exterior. O agir ético, para a mística, é o resultado desta interpretação. Mestre Eckhart,
assim como todos os demais místicos renanos, compreendem que a ética perfeita não
se dirige a uma normatividade geral. A ética também pode ser pensada como
ele nunca pode ser reduzido a normas gerais. São as tarefas concretas da vida, em
Discípulo: ‘A mim parece que este (homem nobre) está envolto em muita
atividade e muita diversidade. Como pode ser totalmente puro se há tanta
multiplicidade?’
53
Henrique Suso (séc. XIV), ao lado de Mestre Eckhart e João Tauler, ambos frades dominicanos,
são considerados os maiores expoentes do pensamento místico especulativo.
61
místico. Nesta acepção, o espaço do "mundo" é dado pelo mundo à medida que este
espaço para seus "momentos", de forma que cada mundo encontra sua espacialidade
se distender, conta com a diversidade, pois todo espaço aberto é assumido por ela
interpretado produtivamente. O mais importante, porém, é que ele possui uma relação
54
Cf. SUSO, Henrique, beato. "O Exemplo e dois sermões alemães. In: The classics of western
spirituality. New York: Paulist Press, 1989. p.310, 329-330.
62
(mundo) é, pois, idiossincrática. Não há um mundo entre outros. O que se dá, é, cada
vez, sempre "mundo". A comparação entre mundos não é tema para o pensar místico.
em sua conjuntura própria. Isto basta. Na retomada dessa condição, embora nenhum
Em cada criatura pode estar a concentração do todo das criaturas "em seu momento
preciso". Por isso toda criatura é decisiva "em seu momento", em seu concreto, aqui e
agora. Com essa observação nos deparamos, uma vez mais, com a doutrina da
Há que se admitir que, para se pensar o mundo como ordem (ordo), deve-se
pressupor um princípio ordenador do mundo. Isto é correto. Apenas que este princípio
(criaturas). Mestre Eckhart interpreta o mundo como uma ordem, cuja lei só pode ser
tomada em sentido figurado, pois ela, a lei, tem de ser vista e interpretada enquanto
não pressupõe lei prévia, "acima dela", uma vez que as singularidades nem estão
55
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 71. p.545.
63
singularidade como lei da totalidade. Por isso ela é percebida como "abreviação" do
Este modo de pensar o sentido de ordem (ordo), cuja lei só pode ser
tomada como fluxo ordenador, não, portanto, como uma determinação prévia,
idade média. Vale, aqui, uma ilustração oportuna, desde uma célebre intuição de
Francisco, de Assis. Conta Tomás de Celano, seu primeiro biógrafo, que Francisco
afirmara que tanto a lei quanto o superior geral dos frades deveria ser ninguém
menos que o Espírito Santo. Quis mesmo pôr estas palavras na regra, mas a bula
papal as omitiu.56 Francisco entendia que o Espírito Santo deveria ser o "fluxo"
ordenador do modo de ser dos frades e não uma regra temporal. Ele compreendia
frade frente aos demais confrades, bem como do "portar-se" do frade perante toda
Francisco, nem poderia estar disposta previamente, nem poderia estar do "lado de
fora" do sentido de ser da ordem dos frades, a sua conjuntura. A lei e a obediência
dos frades designam uma totalidade de relações que só poderiam ser auscultadas
e realizadas em cada frade como lei da totalidade. Este todo, para Francisco, era o
mística como mero auxílio interpretativo: ela serve para esclarecer "a quantas anda"
56
Cf. TOMÁS DE CELANO. In: SILVEIRA, Ildefonso; REIS, Orlando (org.). São Francisco de
Assis: escritos e biografias de São Francisco de Assis; crônicas e outros testemunhos do
primeiro século franciscano. Vida II. Petrópolis: Vozes. 1991. p.424.
64
uma realidade perante si mesma. Elas têm valor de oportunidade e são justificáveis
enquanto as relações recíprocas não se tornam mais claras. Para Francisco, o sentido
de ser da ordem dos frades é tão óbvio, que a lei escrita tem pouco ou nenhum
para si uma determinada realidade em sua relação. Quando essa urgência não se
fluxo ordenador próprio: o "Espírito Santo". Quanto mais claras as relações num todo,
medieval. Eckhart deixa entender que uma ordem (ordo) é uma dimensão do ser e
que significa um "conjunto" em seu mundo próprio. Ordem pode indicar, ademais,
uma sociedade, uma corporação... Tudo numa ordem compreende um lugar e valor
deve valer apenas como "aquilo" em que cada coisa possui seu "valor" determinado
subentender como "um campo". Não campo pensado como "espaço aberto" a ser
preenchido pelos seres e as coisas, mas campo pensado como aquilo que o
mundo é capaz de realizar como mundo, cada vez. O ser de mundo criado é
[...] todas as coisas produzem a si mesmas; cada uma gera sua [própria]
natureza. Por que é que a natureza da macieira não produz vinho e por
que é que a videira não produz maçãs? – Porque isso não é sua natureza,
e assim acontece com todas as outras criaturas: o fogo produz fogo; se
ele pudesse transformar em fogo tudo que está próximo dele, ele o faria.
Assim faria também a água; se ela pudesse transformar tudo em água e
impregnar tudo que está próximo dela, ela também o faria. Tamanho é o
amor que a criatura tem a seu próprio ser, que recebeu de Deus. Se
alguém derramasse numa alma todo tormento do inferno, mesmo assim
ela não quereria não ser. Tanto ama uma criatura seu próprio ser, que
recebeu imediatamente de Deus. Se quiser conceber Deus, a alma deve
também morar acima de si mesma; pois embora e por mais que opere
com a força, com a qual apreende tudo que foi criado – se Deus tivesse
criado mil reinos do céu e mil terras, ela apreenderia a todos eles com
essa força –, mesmo assim ela não pode conceber Deus. O Deus
imensurável que está na alma apreende o Deus que é imensurável. Ali [na
alma] Deus apreende a Deus e Deus opera a si mesmo na alma e forma-a
segundo ele.57
57
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 84. p.588.
66
natureza se "dá", ela exclui, em conjunto, tudo que não lhe é próprio: "o fogo
produz fogo; se ele pudesse transformar em fogo tudo que está próximo dele, ele o
faria". À natureza de uma criatura pertence somente seu mundo circundante, pois
ela se estrutura à medida que interpreta seu mundo circundante, tornando-o "seu".
excluir tudo que não lhe pode ser próprio, as ordens incluem tudo o que pertence
ao seu mundo circundante. Em sua natureza tudo fica com a "sua cara":
uma ordem (natureza) jamais pode entrar em relação com algo que não seja a si
mesma. Nunca pode haver uma relação puramente plural entre ordens. A natureza
por ser infinita em si, não pode pensar além se si "um outro" ou "um mais". A
que só pode ser interpretado como multiplicidade exclusiva. Deve ser cada vez
58
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 38. p.225.
67
igualdade de condições com o modo de ser da ordem divina. Há sempre, por isso,
Eckhart discursa:
59
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 38. p.227.
68
Tomadas em si, elas não têm sentido algum. Na doutrina do ser em Eckhart, todas
fenômeno da determinidade das coisas, segundo o qual todas as "coisas" têm que
ser, que é sua própria necessidade, a realização tem de ser experimentada como o
precisão e da ordenação dos seres. Ela necessita, agora, alcançar sua mobilidade
da liberdade só tem valor quando entra em jogo uma visão dinâmica da constituição
enquanto tal, como uma tarefa enormemente onerosa. Ela precisa constantemente
superar até mesmo a cunhagem categorial para que suas categorias alcancem "valor
Por isso a palavra dos sermões e dos tratados de Mestre Eckhart não fixa
a categoria. A obra textual dos sermões deve ser lida apenas enquanto esboço e
repetição dos esboços que ela mostra sua intenção de apontar para o "novo". A
idéia da liberdade é, em Eckhart, mais "real" que o dado concreto. Seus sermões
mostram que a idéia da liberdade deve brotar da tarefa de inúmeras correções dos
conceitos empregados. Se o viés da liberdade não é linear, seu discurso deve ser
60
Cf. PENIDO, M. Teixeira. A função da analogia em teologia dogmática. Petrópolis: Vozes,
1946. p.31.
61
Ibid., p.41.
62
Ibid., p.42.
63
Ibid., p.43.
64
Ibid., p.45.
71
forma de analogia que se estabelece a base para uma real "comunicação" entre o
criatura, que procede do criador como de sua causa, se apropria dos atributos que
analogia como forma de igualdade proporcional. Mesmo para a analogia do ser, ele
começa com diversos sentidos que o ser convém a Deus e às criaturas. Já Mestre
65
Cf. PENIDO, M. Teixeira. A função da analogia em..., op. cit., p.45.
72
interna da conjuntura faz com que os valores de lugar das criaturas permaneçam
sempre variáveis.
das criaturas? Como entende unidade do ser na diferença da estrutura do ser das
relação ao seu próprio "ser em si". Para ele, a analogia deve pressupor a constituição
proporções futuras, uma vez tomadas, devem retroagir, num movimento próprio em
modo, o valor modificado da nova proporção, pelo efeito da retroação sobre si, deve
para o máximo de uma nova proporção, cada vez. A esse respeito, Eckhart observa:
não seja como o mínimo. Como quando se enxerta um broto nobre num
tronco grosseiro, todo o fruto assume a nobreza do broto e não a
grosseria do tronco. Assim também acontece nesse Espírito. Ali todas as
obras se tornam iguais, pois ali o mínimo se torna como o máximo, não,
porém, o máximo como o mínimo.66
medido com o modo de ser de outro ente. Ele deve, antes, ser identificado, de
não possui ser algum. Ela só "é" à medida que recebe continuamente o ser pelo
torno dos diferentes níveis de relacionalidade dos seres: a relação tomada como
relação da criatura para consigo mesma, a relação apreendida como relação entre
pensado como parte. Seu pensamento começa com a noção de unidade do ser,
ser. Os entes criados são o que são (essência), e o são como são (existência),
o dar-se de seu "ser si próprio" e o dar-se de sua diferença. O "ser outro" é, dessa
mesmo Deus pode ser compreendido como intensificação do "ser próprio". Quando
66
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 59. p.320.
74
pretado como uma vantagem a ser alcançada pelo homem em todas as suas
entre modos de ser, mas aponta para a intensificação do ser compreendido como
um instante único. Nessa visão, tudo na criatura se volta para a unidade: "Os
análogos não são distintos segundo o caráter de coisa, nem através das diferenças
entre as coisas, mas ‘de acordo com os modos [de ser]’ de uma e mesma
singularidade".68
67
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 30. p.191.
68
Cf. ECKHART, Mestre. Comentário ao livro do Eclesiástico (Sirac) n.42. In: Meister Eckhart.
teacher and preacher. The classic of western spirituality. New Jersey: Paulist Press, 1986. p.178.
75
ser do "outro", como também em relação ao ser de seu "si próprio". A proporção do
ser "próprio" em relação ao ser "outro", se constitui, novamente, numa nova proporcio-
nalidade, prevista, desta vez, em relação ao todo das proporções. O pensar de fundo
A alma caminha para Deus com quatro passos. O primeiro passo é aquele
em que o medo e a esperança e o desejo crescem nela. Da outra vez ela
dá um passo à frente; o medo e a esperança e o desejo são inteiramente
quebrados e afastados. Com o terceiro passo, chega a um esquecimento
de todas as coisas temporais. No quarto, caminha para dentro de Deus,
onde permanecerá eternamente, reinando com Deus na eternidade; e
então nunca mais irá pensar em coisas temporais nem em si mesma;
antes, fundiu-se totalmente em Deus e Deus nela. E o que faz então, ela o
faz em Deus.69
vida, não pode deixar de haver a correção do processo vital. Diz Santo Tomás:
69
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 84. p.588.
77
Trata-se de um princípio positivo que "afeta" algo. Ele distingue algumas espécies
70
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Summa contra gentiles IV, 11. In: An aquinas reader...,
op. cit., p.317.
71
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Summa theologica, I-II q. LXXV. 1. In: An aquinas reader…,
op. cit., p.221.
78
acolhe a teoria das causas em Santo Tomás, ao modo de uma combinação sui
matéria e forma.
Nem matéria nem forma são "por si". A matéria não poderia ser se, de
algum modo, não fosse formada. A forma necessita da matéria para se tornar real.
significa, para a ordem dos seres, quanto mais forma, tanto mais ser. O sentido de
combinação: forma como "causa formal", forma como "causa final" e forma como
nas três dimensões pode surgir tanto uma "espécie" (um modo próprio de ser),
Nunca pode deixar de haver correção, se a questão é vida. Mesmo nas criaturas,
proporção do ser deve atuar. A mística vê o processo corretivo do ser atuando até
religioso das tradições ascéticas, que, por sua vez, eram reforçadas pela teologia
Domingo depois de Pentecostes: "A vida de um cristão neste mundo, quando é bem
considerada, não passa de uma guerra contínua [...]. Mas o maior adversário que ele
tem é ele mesmo. Não há nada mais difícil de vencer que sua carne, sua vontade: já
que por sua própria natureza ela é propensa a todos os males"72. O cristianismo
que a projeta para além de si, na forma da mobilidade corretiva. Mas mobilizou as
72
Cf. BEDOUELLE, G.; GIACONE, F. Citado por DELUMEAU, Jean. In: O pecado e o medo (a
culpabilização no ocidente (séculos 13-18) v.1, p.9-10. Bauru/SP: Edusc, 2003.
81
erro que promove a correção, mas a correção que aponta o erro e abre novas
corretivo. Esta é uma visão moral compartilhada pelos místicos renanos, que não
73
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 32. p.201.
82
74
Cf. MIETH, Dietmar. Die einheit von vita activa und contemplativa. Regensburg: Friedrich
Putest, 1969. p.132.
75
MIETH, Dietmar. Die einheit von..., op. cit., p.128.
76
ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die..., op. cit., sermão 69. p.536.
83
aquilo que lhe é dado como ser. Essa é a sua liberdade. Ela lhe foi dada e só
pertence a ele porque seu modo de ser está aberto para ela. Por esta liberdade
primordial o homem também se dispõe na abertura para consigo mesmo, para com
o mundo criado e para com Deus: este é o sentido da liberdade cordial humana,
que coloca o homem na "proximidade" com o mundo e com Deus. Eckhart chama
deve conduzir suas ações no mundo para um sentido sempre mais elevado. Este é
77
Cf. SUSO, Henrique, beato. Do Opúsculo da Verdade. In: The exemplar, with two germans
sermons. The classic of western spirituality. New Jersey: Paulist Press, 1989. p.375.
84
Ah! Pura divindade, vê! Agora devo começar de novo a me largar a mim
mesmo e a todas as coisas. E isto deve ocorrer mil vezes por dia. Tudo
depende disso. Qualquer um pode enfrentar estas coisas [a vida], como a
desejar, mas sem isso nenhum progresso é possível. Ai de mim, Deus
amado. Em que triste estado me encontro! O que haverá de me
acontecer, se devo me encontrar a mim mesmo continuamente? Por certo
devo me abandonar sempre de novo – iterum relinquo mundum – devo
começar de novo.78
Deus investe todo o seu poder em sua geração. Isso pertence ao retorno da
alma para Deus. E, em certo modo, é angustiante que a alma decaia tantas
vezes daquilo em que Deus investe todo o seu poder. Mas isso é preciso
para que a alma torne a viver [...], para que a alma volte a viver, ele expressa
todo o seu poder em sua geração. Num outro modo, porém, é consolador que
a alma seja novamente reconduzida ali para dentro. Nesse nascimento ela se
torna viva. [...] A todas as criaturas é próprio o gerar. Uma criatura que não
conhecesse nenhum gerar também não seria.79
78
Cf. SUSO, Henrique, beato. Do opúsculo da verdade. In: The exemplar, with..., op. cit., p.376.
79
Cf. ECKHART. Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 43. p.249.
85
80
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães…, op. cit., sermão 32. p.201.
86
81
Cf. ECKHART. Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 29. p.186.
88
sentido primaz de "achado", "descoberta". Como tal, ela jamais pode ser percebida
"algo" que se converte, mas junto com ele se converte o todo de uma ordem
transformação do particular.
espaço para a qual se pode apontar para o alto. Céu representa nível de elevação.
Por ser um grau ontológico de elevação é que o céu está onticamente "acima".
A outra palavra é: "Amigo, sobe mais, vem mais para cima". De duas, faço
uma. Quando ele diz "amigo, sobe mais, vem mais para cima", isso é um
diálogo, da alma com Deus [...] Deus <Nosso Senhor> quer dizer: Por
mais alta, por mais pura que seja a vontade, ela deve elevar-se ainda
mais. É uma resposta quando Deus diz: "Amigo, sobe mais adiante para
cima, pois assim a honra te será partilhada" (Lc 14,10). Disse certa vez
em outro lugar: A graça não realiza nenhuma obra. Ela apenas derrama
em cheio todo o adorno na alma. Isso é a plenitude no reino da alma. Eu
digo: A graça não une a alma com Deus, ela é muito mais uma
consumação. Sua obra é levar a alma de volta para Deus. [...] a vontade é
desse modo puxada para o alto. Mas como Deus incide na vontade, ela
deve ir mais alto, para cima. Por isso ele diz: "Um Deus", "amigo, sobe
mais alto, para cima.82
uma compreensão de mundo como contínua "ebulição" das criaturas entre si. Por
outras criaturas. O mundo, como tal, se encorpa. Torna-se denso. A elevação das
criaturas expõe a vitalidade das ordens dos seres, nas quais todos os
82
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 21. p.149.
91
valor da criatura surge de uma mobilidade e nela se mantém, na medida em que sua
mestre nunca é a do tutor. Cabe a ele meramente a tarefa de criar espaços para a
oficina), uma conjunção favorável com outras forças (a relação com o mestre, o
manuseio das ferramentas, por exemplo), então lhe cresce, desde seu tirocínio, o
vigor que o projeta para muito além daquilo que ele poderia atingir sozinho "a partir se
si". No início, o aprendiz deve se aperceber sob a tutela do mestre. Quando, por seu
A percepção da tutela, no entanto, nunca pode ser afastada antes desta "descoberta".
se pode dar pelo trabalho e por um processo de correção que tudo atinge e tudo
Jesus ordenou a seus discípulos subir num pequeno barco e navegar sobre a
fúria (Mt 14,22). Como o mar é fúria? Porque se enfurece e se agita. Ele
"ordenou a seus discípulos subir". Quem quer ouvir "a palavra" e ser discípulo
de Cristo deve subir e elevar [...], deve navegar sobre a "fúria" da inconstância
de coisas transitórias. [...]. Quando o sol derrama seu brilho sobre as coisas
corpóreas, transforma tudo que pode apreender numa fina matéria vaporosa
e a puxa consigo para cima; se o brilho do sol pudesse, a atrairia para cima,
para o fundo de onde ele emanou. [...]. Assim é com o Espírito Santo: Ele
levanta a alma ao alto, levanta-a e a carrega consigo e, se ela fosse
preparada, a atrairia para o fundo de onde ele efluiu. Isso ocorre, quando o
Espírito Santo é na alma: então ela sobe para o alto, pois ele a leva consigo.
[...] É a alma que assim ultrapassou todas as coisas que o Espírito Santo
levanta e a levanta consigo para o fundo.
Agora prestai atenção! São Paulo diz: Contemplando com a face despida
o esplendor e a claridade de Deus, transformamo-nos e a nossa imagem
renovada se formará.83
83
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 23. p.159.
93
mundo criado é disposta pela identidade das criaturas segundo sua ordem de ser.
A criação, como ato, não aponta, para ele, uma outra operação a mais do ser. A
"tornar-se próprio" do mundo, muitas vezes descrito nos sermões como "retornar-
(atuar), e agir em identidade. O princípio da identidade não só faz com que cada
mundo seja "mundo próprio", mas faz com que cada criatura do mundo se
significado emerge de todos. Criação é, pois, surgimento, ou, "irrupção", para usar
irrupção do ser avança, tanto mais preciso ele se torna em sua propriedade.
84
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 60. p.324.
85
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 63. p.517.
95
contínuo sobre si, enquanto uma operação nele mesmo. O mundo é o desempenho
nesse eterno "voltear-se", a experiência de "si" como apropriação. O ser "si próprio" e
básicas do ser: ter que agir (atuar), e agir em identidade. Nessa acepção se pode
afirmar que para Mestre Eckhart todas as singularidades são apreendidas como
"eus" em diferenciação. Da mesma forma como o mundo "tem" seu "eu" e o todo
conjuntural "tem" seu "eu". O "eu" está por todo lado. O "eu", enquanto "pendência" do
"eu" do todo não está em parte alguma e o "eu" das partes é o produto da tensão e da
reconhecer como o todo das particularidades; pode-se descobrir como diferença das
86
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., Sermão 21. p.148.
96
modo da contraposição com o sujeito. A diferença entre sujeito e objeto pode ser
87
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., Sermão 69. p.536.
88
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 22. p.154.
97
propriedade do ser: quanto mais subjetiva é uma criatura, mais essencial ela é, ao
passo que quanto mais objetiva, menos essencial. Da mesma forma que se pode
homem apreendido em seu ser "para fora" ("homem exterior") é menos essencial,
enquanto que apreendido "para dentro" ("homem interior") é mais essencial. O ser
humano, como os demais seres criados, tanto podem ser objetos como sujeitos.
somente atribuído a um único ente: Deus. Deus é ser, no sentido de absoluto, total.
"Fora" de Deus não há propriamente ser. Esse modo absoluto de ser de Deus foi
denominado pela escolástica de a se. Deus é um ens a se, isto é, um ente a partir
outro, pois recebe o seu ser de Deus. A pressuposição ontológica que está no
mesmo. Na criatura, o ser precisa ser trazido à existência. Em Deus (a se) o ente
traz o caráter de atividade com relação ao ser, enquanto a criatura (ab alio) traz o
de dependência dos seres. Quando Eckhart observa que o "eu próprio’" só emerge
98
que, de certa forma, todo ens é a se e ab alio, ao mesmo tempo. O ente "é" a partir
relacional. A diferença entre ens a se e ens ab alio se radicaliza a tal ponto que se
Eckhart, sobre uma nova base. Como tal, remete ao processo de constituição
ajusta no todo, com o todo, de modo que o todo se manifeste nas particularidades.
4 A VISÃO DA LIBERDADE
finitude concebida, porém, não como mero pensar o significado de ser do mundo e
criatura e Deus. Só o olhar relacional abre caminho para essa possibilidade, quando
visão da liberdade segue, pois, o olhar relacional. Por ela, criação é surgimento. O
89
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 44. p.254.
100
outro e cada um surge a partir de todos. Assim concebido, quanto mais o acontecer
determinante avança, tanto mais preciso ele se torna, de modo singular, na criatura. A
do todo. Mestre Eckhart e sua escola subentendem por essência uma tal
"potencialização" do ser. Em sua mística, a criação "se elabora". A criação "se opera"
como processo de retorno para si, ativado desde si. Sua auto-operação consiste num
contínuo voltar-se para si. O conceito de "retorno" irá alcançar um sentido eminente no
pensamento místico.
próprio: uma "irrupção", dizem os místicos. Ela aponta seu próprio lugar quando
desabrocha. Essa criatividade não cria, porém, isso ou aquilo, ela cria ordens e
seja "muito difícil ver fenômenos de liberdade como ontologias puras"90 e embora haja
mobilidade, como panteísmo, Mestre Eckhart assume o risco do olhar relacional com
vistas à construção de uma doutrina criativa do ser. Porque o ser, porém, se "divide"
90
Cf. ROMBACH, Heinrich. Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg/
München: Verlarg Karl Alber, 1971; 2.ed. 1988. p.226.
101
na criação, ele não tem o mesmo sentido estrito em todos os entes, mas tem uma
justamente esta divisão do ser e o sentido do ser finito como parte do ser uno que vale
divino, a criação. Essa divisão não deve ser compreendida ao modo de uma
repartição, como se o ser uno divino se fragmentasse como uma grandeza, estendido
algo consistente. Isso seria dissolver o criador nas criaturas e com isso negá-lo, como
temporalidade? Mesmo que estes conceitos não estejam ainda esclarecidos, cabe,
em todo caso, uma indicação relevante: se a idéia de conjuntura do ser está presa
forma, apontar para o sentido de mobilidade do ser. Não há como conceber a idéia
sentido de mundo, na visão mística, será sempre assumido como operação. Uma
como uma "obra própria". Em Mestre Eckhart, o tempo da conjuntura do ser tem uma
próprio. Por isso também é que, para a conjuntura, sentido e verdade do ser são
criatura simplesmente não "é". Desse modo é que foi, inicialmente, possível para o
pensar relacional representar o sentido das coisas e das pessoas não como
podem ser tomadas como "momentos" de uma constituição mais ampla que elas
uma conjuntura do ser. O ciclo (início e fim) de uma conjuntura é o seu tempo próprio.
Assim admite:
91
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen…, op. cit., sermão 101. p.352.
103
criação se elabora junto com a evidência de que todo ser comporta sua temporalidade
portanto, supor criação, como gênese, sem a noção de intervalo de começo e fim.
Assim é que, no jogo conjuntural, toda criatura pode ser assumida como uma
idéia de Deus como ens a se não pode ser interpretada sem uma forma criativa
dele mesmo. Por admitir todo ser como forma genética é que Eckhart irá trans-
Eckhart, como já foi assinalado, mesmo Deus pode ser compreendido como
92
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 22. p.153.
104
Deus, porém, tem um negar do negar; ele é Um e nega tudo o mais, pois
nada é fora de Deus. Todas as criaturas são em Deus e são a própria
deidade dele, e isso significa a plenitude [...]. Ele é um Pai de toda a
deidade. Digo uma deidade porque lá ainda nada eflui e nada é tocado ou
pensado. Que eu negue de Deus algo – que negue de Deus a bondade,
por exemplo, em verdade não posso negar absolutamente nada de Deus
– pois negando algo de Deus, apreendo algo que ele não é; justamente
isso é o que deve ser evitado. Deus é Um, é um negar do negar.93
93
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 21. p.149.
94
O conceito de princípio geral era distinto do conceito de causa na filosofia medieval. O princípio
era aquilo de que procede algo de algum modo: o principiado. A causa era aquilo de que
procede algo de um modo específico: o causado. Princípio e causa são, ambos, de algum modo
"princípios, mas, enquanto o primeiro o é segundo o intelecto, a segunda o é segundo a coisa
(res). Assim se estabelecia a relação princípio-conseqüência e a relação causa-efeito.
105
95
A causa sui foi um conceito meticulosamente utilizado na filosofia medieval. Originariamente,
causa sui não se referia a Deus. Deus era, antes, principium sui. Causa sui podia se aplicar ao
homem enquanto homem livre, indicando-se, com isso, que ele se determinava a si mesmo
livremente. Dizia-se, contudo, que nada é propriamente causa sui, pois todo ente "é" enquanto
tem uma origem distinta de si mesmo, ou seja, causado.
96
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 16b. p.122.
106
Veja que fome e sede são propriamente desejo, apetite e potência natural
para agir. Em virtude disso todo desejo, apetite e potência para algo finito
nem sempre sente fome ou sede, pois em tendo alcançado sua meta, eles
comem e bebem e não sentem mais fome ou sede. [...] Mas nas coisas cuja
meta é infinita, isto é justamente ao contrário, pois elas sempre sentem fome
ou sede: quanto mais comem, mais avidamente sentem fome.98
97
Cf. ECKHART, Mestre. The essencial sermons, treatises and defense. New Jersey: Paulist
Press, 1981. p.323.
98
Cf. ECKHART, Mestre. Comentário ao livro da sabedoria (Sirac), the essencial sermons,
treatises and defense. New Jersey: Paulist Press, 1981. p.174.
107
na natureza do espelhado, onde ele é de si para si, desde sempre. Assim como o
mais nobre na imagem que a imagem possa ser nele"99. A imagem, quando vem de
Deus, ela vem do "criador", mas quando se forma em Deus, ela se forma em sua
natureza (deidade) como ela é. A imagem toma Deus, assim, "enquanto um ser
dotado de intelecto", e o que é mais nobre na natureza "toma forma nesta imagem
para quem a olha, ela está aí para ele (o espelhado) e se torna ela mesma uma
irrupção. Porém, quando a imagem não se volta mais para o espelhado, mas para
aquele que, por assim dizer, a espelha por primeiro, se pode, então, falar não de
origem, mas de formação (forma). É como se Deus se voltasse para sua natureza
só acontecer. Um instante eterno. Num ela se irrompe, noutro ela se forma. A criação
99
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op.cit., sermão 16 a. p.123.
108
Deus havia nascido no nada. Por isso, ele diz: "ele se levantou do chão e
de olhos abertos nada via". O motivo por que ele nada via: a luz que é
Deus não contém nenhuma mistura; [...] pela luz ele não se refere a outra
coisa a não ser que, de olhos abertos, ele nada via. No fato de nada ver,
ele viu o nada divino. Por isso, diz Santo Agostinho: quando a alma estiver
distanciada de todas as coisas que devieram, necessariamente deverá
dar-se então de Deus nela reluzir e brilhar. A alma nada pode ter a não
ser angústia sem saber de onde esses provêm. Quando a alma não sai
para as coisas exteriores, então retornou ao seu lar e habita em sua luz
simples e límpida. Ali ela já nem possui angústia nem medo.100
100
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen…, op. cit., sermão 71. p.545.
110
Uma obra, enquanto obra, não existe por si só e nem por sua própria
vontade. Também não acontece por si mesma. [...] Pois a obra, na medida
em que se realizou como obra, também imediatamente se aniquilou, como
da mesma forma o tempo em que ela tenha se dado; e a obra nem está
aqui nem ali; pois o espírito nada mais tem a haver com a obra. Deva ele
realizar algo mais, isto terá de se dar com outras obras, como também
num outro tempo.101
101
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart. die deutschen..., op. cit., sermão 105. p.649.
111
102
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 51. p.285.
112
A tarde não pode chegar se antes não tiver havido uma manhã e um
meio-dia. Diz-se que o meio-dia é mais quente do que a tarde. No entanto,
porque a tarde contém em si o meio-dia e porque o calor sobe, ela é mais
quente, pois antes da tarde ali está todo um dia cheio. Ao avançar do ano,
quer dizer, depois do solstício de verão, quando o sol começa a
aproximar-se da terra, a tarde torna-se quente. Jamais pode tornar-se o
meio-dia se a manhã não tiver passado, nem pode tornar-se tarde se o
meio-dia não tiver passado. Isso significa: Quando a luz divina irrompe na
alma, sempre mais e mais até o pleno dia vir a si, então ali não se esvai a
manhã <antes> do meio-dia, nem o meio-dia <antes> da tarde: Juntos se
incluem plenamente em um. Assim, quando tudo o que a alma é se torna
cheio da luz divina, então é o dia todo, cheio na alma."103
Quando o sol se levanta, dá-se a luz da manhã; depois ele brilha mais e mais,
até chegar o meio-dia. De igual modo, a luz divina irrompe na alma, para
iluminar mais e mais as forças até que se torne meio-dia. De modo algum,
faz-se dia espiritualmente na alma se ela não recebeu uma luz divina.104
103
Cf. ECKHART, Mestre. M. E. Sermões alemães..., op. cit., sermão 36a. p.214.
104
Ibid., sermão 20a. p.38.
113
Quem pelo espaço de mil anos perguntasse à vida: "Por que vives?" – se ela
pudesse responder, não diria outra coisa a não ser: "Eu vivo porque vivo".
Isso vem porque a vida vive do seu próprio fundo e emana a partir do seu
próprio. Por isso vive sem porquê, justamente por viver <para> si mesma.
Quem, pois, perguntasse a um homem verdadeiro, que opera a partir do seu
próprio fundo: "Por que operas tuas obras?" – se quisesse responder direito,
não diria outra coisa a não ser: "Eu opero porque opero".105
105
Cf. ECKHART, Mestre. M. E. Sermões alemães..., op. cit., Sermão 5b. p.67.
114
temporalidade própria ele não é coisa alguma. A "coisa em si" da obra humana,
junto à qual o homem opera, não é algo "solto" com uma interioridade oca. O "em
ser do homem em sua propriedade, assim como é, pode ser transferido para dentro
Depois, ele disse: "Lança fora a criada e seu filho, pois ele não deve ter
herança com o filho livre" (Gn 21,10). Toda oração ou jejum corporal e
toda obra exterior não pertencem à herança. E segundo isso: Todas as
obras espirituais, que operam no espírito, pertencem à herança. Por maior
que seja o desejo, "lança fora a criada e seu filho". Mesmo que se colha
grande recompensa e incomensurável recompensa na oração e no jejum
e nas obras espirituais [...].106
106
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão
99. p.258.
116
Deus infinito lhe destinou e o qual como um pensamento divino, de certo modo, é
pela acolhida da existência concreta e finita. O homem não pode explicar sua
tem de buscar e de agir naquilo como ele é. O modo de ser da finitude humana
está preso à tarefa de ter que assumir sempre de novo o seu ser. Ademais, ele
precisa atuar para esse propósito, pois esse "operar" é uma tarefa inalienável. Ela
é cada vez sua. O homem "opera" a partir de um vazio, experimentado como sua
Acontecendo uma boa obra por meio do homem, liberta-se, assim, com
esta obra o homem. E através deste libertar-se ele se iguala e se
aproxima mais de seu princípio (nascimento) do que como anteriormente
se achava, antes que este libertar-se acontecesse, e tão mais se tornou
melhor e mais venturoso do que era, antes de acontecer a libertação. [...]
a obra não possui ser algum, tampouco o tempo em que se tenha dado,
porquanto a obra se dissipa por si mesma. Por isso ela nem é boa, nem
santa, nem venturosa. Antes, porém, é venturoso o homem em quem
permanece o fruto da boa obra – não como tempo, nem como obra, mas
como uma natureza boa, que aí é eterna com o espírito, [...] ela é o
próprio espírito.107
107
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 105. p.643.
117
108
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 45. p.259.
118
o próprio nexo significativo que ela abre. O que emerge, desse modo, como
motiva a indagação de Eckhart: "o que pertence ao homem fazer, como sua obra,
para que alcance e conquiste que esse nascimento aconteça e nele se realize?" E,
homem, liberta-se, assim, com esta obra o homem". "Pois a obra, na medida em
que se realizou [...] também imediatamente se aniquilou" junto com "o tempo em
que ela tenha se dado". Caso deva "realizar algo mais, isto terá de se dar com
outras obras, como também num outro tempo". Da mesma forma como ocorre no
processo da irrupção, não dá para ver como, cada vez, a possibilidade concreta se
manifesta-se um "radical-outro".
Aquilo para o que Eckhart chama a atenção, nos sermões sobre as obras
e o tempo (sermão 105), não é, na verdade, a relevância desta ou daquela obra
humana em particular. Nem a totalidade das obras humanas, em seu desempenho,
lhe interessa. A palavra do sermão quer apenas destacar o sentido de natureza
humana, em sua origem, como uma desenvoltura operativa. Em Eckhart, a
natureza humana possui um percurso próprio para o seu desabrochar. O homem é
visto, em sua essência, como o desempenho de um percurso próprio. Este
percurso é pensado na linguagem mística com o termo "elevação". Pela elevação o
homem se desenvolve para sua liberdade.
119
Nosso Senhor Jesus Cristo entrou em uma pequena cidade; ali foi
recebido por uma mulher chamada Marta; essa tinha uma irmã que se
chamava Maria; ela estava sentada aos pés de Nosso Senhor e escutava
suas palavras; Marta, porém, andava de um lado para outro servindo o
Cristo amado. [...]
Então Marta diz: "Senhor, ordena que ela me ajude!" [...] Prestai atenção!
Ela percebeu que Maria estava tomada pelo contentamento por toda
120
dissesse: "fica sossegada, Marta, ‘ela escolheu a melhor parte’. Isso não lhe
será tirado. O mais sublime que uma criatura pode tornar-se, ela deverá
tornar-se: ela será bem-aventurada como tu [...]".
Então o Cristo diz: "tu te afliges por muitos cuidados". Marta era tão
essencial que seu operar não criava nenhum impedimento; obras e operar
conduziam-na para a bem-aventurança eterna. É verdade que havia algo
mediado; mas são precisos natureza nobre, esforço constante e virtudes,
mencionadas anteriormente. Maria fora primeiro Marta, antes de tornar-se
Maria; pois enquanto estava sentada aos pés de Nosso Senhor, não era
Maria; na verdade, era Maria no nome, mas ainda não no ser; pois estava
assentada pelo prazer e pela doçura e havia recém-ingressado na escola
e aprendia a viver. Marta, porém, estava ali essencialmente, por isso ela
disse: "Senhor, ordena que ela se levante", como se dissesse: "Senhor,
gostaria que ela não ficasse sentada ali pelo prazer; gostaria que ela
aprendesse a viver, para que possua [a vida] de maneira essencial.
‘Ordena que ela se levante’, que se torne completa!" Quando estava
sentada aos pés de Cristo, ela não se chamava Maria. Chamo de Maria a
isso: um corpo bem exercitado, obediente a uma alma sábia. A isso eu
chamo de "obediente": aquilo que o discernimento ordena, que a vontade
seja capaz de fazê-lo.109
experimentada como projeção do todo para uma visão futura modificada de si: "chamo
109
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 86. p.592ss.
122
("algo mediado"). Daí o fato de Marta ser tão essencial "que seu operar não criava
infinito-finito; interior-exterior.
caminho de uma busca identitária: ou bem se realiza como "procura de Deus, com
muito acima de si" ou, finalmente, se consuma como um "‘estar em casa’, isto é,
[como um] contemplar a Deus sem mediações". Por ser o caminho de uma busca
identitária, a elevação é sempre vivida como forma de propriedade. Por isso o elevar-
se da criatura nunca pode ser visto "de fora". Daí a razão porque Marta "desejava que
sua irmã estivesse assentada no mesmo, pois via que aquela ainda não estava
não deve querer se conservar. Um caminho que não se desenvolve como elevação
Sendo esse o caso, tudo aquilo que "antes" se alcançou, "com múltiplo empreen-
dimento e com amor ardente", nem progride, nem se conserva, antes, se aliena e
diante da beatitude de Maria, nisto quando aquela temia que esta "permanecesse
no prazer e não fosse além disso". Mestre Eckhart reforça este entendimento,
123
quando comenta a seguir: "como se dissesse: [...] gostaria que ela aprendesse a
viver, para que possua a vida de maneira essencial". Por não poder se conservar,
sermão. Ademais, em todas as ocupações com o mundo também "devemos ter três
Eckhart, retoma o princípio de busca da perfeição de São Bento, que via no ora et
espiritual, deve-se adentrar; se se o tem em seu aspecto interno, ele desenvolve uma
dinâmica à qual se pode abandonar. Ele desenrola garras e passos, leva consigo o
compreensão de que a obra humana sem elevação se torna uma ação externa, do
mesmo modo que a oração sem empenho é experiência morta. O ora et labora
evoca o começo impossível de todo empenho humano pelo sentido da vida. Ele
110
Cf. ROMBACH, Heinrich. Strukturontologie..., op. cit., p.250.
124
sentido do que afirma nos sermões 105 e 5b, já referidos: "Acontecendo uma obra,
liberta-se, como esta obra, o homem". "A obra não possui ser algum, porquanto se
dissipa por si mesma", ou "eu vivo porque vivo, eu opero porque opero".
trabalho torna possível a existência humana a partir "de baixo". A elevação, quando
a cura. Ela cuida da existência humana em seu sentido pleno: "Marta possuía
plenamente tudo que é bem temporal e eterno e tudo que a criatura deveria possuir".
coisas do mundo ao seu redor. Por isso, em seu modo de possuir tudo plenamente,
Marta se aflige por muitos cuidados. Ela zela pela existência humana ligada ao
111
A "Confissão de Augsburgo" trata-se da confissão de fé que estabelece o princípio do luteranismo.
Em 1530, reuniu-se em Augsburgo, Alemanha, a Dieta Imperial, onde o teólogo reformista
Melanchton, em favor da reforma de Lutero, submeteu à Dieta a confissão de fé que, entre outros
princípios, afirmava a salvação apenas pela graça tornada possível pela redenção efetuada
por Jesus Cristo.
125
plenitude, de qualquer forma, como uma delimitação própria. Em todo caso, Marta
responde por sua delimitação. Toda delimitação própria conhece estranheza e "não
completa de uma possível relação com o mundo, com as coisas e com o "não-
sua estranheza. Marta toca Maria sem a tocar. A desocupação de Maria e seu "não
Mas também pode ser o caso em que o caminho da elevação busque sua
pois, para o perigo da alienação e da perda de Maria: "Marta temia que sua irmã
ficasse presa no prazer e na doçura". Eckhart entende que a alienação é sempre uma
auto-alienação, pois ela perfaz um modo de ser si mesmo. Nessa circunstância, o ser
si mesmo não reside dentro, mas se aloja no que Eckhart denomina de exterior do
exterior. A obra humana perde, então, seu caráter de elevação. Uma obra humana
pode perder seu caráter de elevação, mas a elevação nunca perde o caráter de
trabalho e empenho.
Na preleção sobre a excelência de Marta sobre Maria, Mestre Eckhart
resume a experiência do renascimento pela idéia da elevação, a qual, em outras
passagens de sua homilética, ele denomina de "arrebatamento". A elevação
descreve como o processo do surgimento (irrupção) se constitui como um caminho
de muitas retomadas a serem empreendidas pela criatura. A elevação corresponde
a um processo contínuo de autocorreção e de auto-evidenciação da criatura em
126
112
Cf. ECKHART, Mestre Eckhart. O Tratado do Homem Nobre. In: O livro da divina..., op.
cit., p.92.
113
Idem.
114
Ibid., p.93.
127
115
Cf. ECKHART, Mestre Eckhart. O Tratado do Homem Nobre. In: O livro da divina..., op. cit., p.92.
128
Ele irá explicitar a liberdade como aquilo mesmo que se "revela" junto a uma
ordena, nem se constitui como um ser geral disposto para uma ontologia própria.
ser. Mestre Eckhart traz bem clara esta visão pelo olhar relacional. Liberdade, no
seu entender, é sempre aquilo que cada vez se consuma como realização própria.
sua ordenação. A ordenação da criatura, entretanto, não diz respeito a uma possível
criadas. Para ele, tudo que é, é cada vez singular e conquista sua singularidade na
dependência recíproca daquilo que não é. Eckhart pensa a individuação como aquilo
individuação é que ele concebe a constituição do "cada vez singular" como a sua
própria constituição ontológica, ou seja, cada conjuntura do ser possui sua própria
pode ser reduzido a esta perspectiva: cada campo possui seu próprio
ordenamento, o qual contém, nessa condição, cada vez, o todo. Tendo o todo,
116
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 90. p.62.
129
cada vez, o indivíduo pode, desse modo, determiná-lo segundo sua ordenação;
criatura. Pela elevação, o homem, assim como toda a criação, se desenvolve para
do pensar místico, ela deve ser interpretada como o "sentido de ser" que vê a
E os mestres dizem que a vontade é tão livre que ninguém pode obrigá-la,
a não ser Deus. Deus <porém> não força a vontade, coloca-a <antes> de
117
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 86. p.596.
118
O jesuíta Francisco Suarez (1548-1617), em sua Disputationes Metaphysicae, V, examina as
diversas formas em que se diz que o princípio da individuação é a matéria signata, tal como
Santo Tomás afirma. Ele conclui "que toda substância é singular [por si mesma ou por sua
entidade] e não requer outro princípio de individuação fora de sua entidade ou fora dos
princípios intrínsecos de que consta sua entidade" (Disp. met., V, seções ii-vi). Para ele o
fundamento da unidade não pode ser distinguido da unidade. Ao mesmo tempo, o princípio de
individuação da matéria-prima é para ele "sua própria entidade, tal como está na coisa" (ibid.). O
princípio da individuação da forma substancial também radica nesta por sua própria entidade.
130
tal modo assim na liberdade que ela, a vontade, não quer nada a não ser
o que Deus ele mesmo é e o que a liberdade, ela mesma, é. E o espírito
não pode querer nada a não ser o que Deus quer; Isso não é pois
privação da liberdade. É ao contrário a sua própria liberdade originária.119
"a partir de si", é denominado de "irromper". Não obstante, tanto no modo do "pro"
como do "i" (romper), liberdade carrega, nos sermões, o significado de algo que se
Deus não o satisfaz mais que uma pedra ou uma árvore. Ele jamais
repousa; ele penetra no fundo, ali onde prorrompem bondade e verdade,
e toma-as in principio, no começo, onde iniciam bondade e verdade, antes
de receber qualquer nome, antes de prorromper, [toma-as] em um fundo
muito mais elevado do que onde se encontram bondade e sabedoria. Mas
sua irmã, a vontade, a esta lhe basta Deus, enquanto ele é bom. Mas o
intelecto rompe tudo isso e penetra no interior, irrompendo na raiz,
donde emana o Filho e onde floresce o Espírito Santo.120
119
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 29. p.188.
120
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen…, op. cit., sermão 69. p.537.
121
A doutrina dos transcendentais afirma que o que o intelecto apreende, sobretudo, é o ente – o
ente como ente; portanto, nenhum ente em particular, mas o ente em geral, como a todos os
entes: conceitos de ente. Pode-se, porém, tornar explícito o ente sem lhe agregar nada distinto
do ente. Isso pode ser feito da seguinte maneira: se expressa algo do ente considerado
absolutamente; isso ocorre quando se diz do ente (afirmativamente) que é uma coisa, res, e
quando se diz do ente (negativamente) que é um, unum. Isso ocorre também quando se
131
mística como uma espécie de retorno inconcluso dos seres para si mesmos, em
sua vontade de poder. O retorno dos seres pode ser percebido à base de uma
expressa do ente em relação com a mente, caso em que pode ser a relação com o intelecto, e
então todo ente é conforme com o pensar e é verdadeiro, verum, ou a relação do ente com a
vontade e então todo ente é apetecível e, por conseguinte, bom bonum. Com isso temos a
célebre lista dos transcendentais: unum, verum e bonum. Os transcendentais podiam ser
aplicados a Deus, e podia-se dizer que Deus é ens (Deus uno e trino), unum (o Pai), verum (o
Filho), bonum (o Espírito Santo). Conf. Santo Tomás, De veritate, I, 1.
132
seres, e isso de tal forma inevitável, que liberdade pode ser vista justamente como
Por isso, na espiritualidade medieval, a natureza, tanto no seu todo como nas
Francisco de Assis, até o fim da vida, queria ver o mundo inteiro num
febril e atormentado por ratos, para deixar para a humanidade um dos mais
122
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 15. p.117.
133
o todo da criação. Dessa forma ele atribui, no poema, virtudes humanas aos
maior quanto mais complexa for a conjuntura do ser em jogo. Por isso, a liberdade
criativa não se elabora apenas num nível. Não há liberdade isolada. O homem é
livre quando as demais criaturas e obras são livres também. Uma liberdade
criadora pode abrir outros níveis de liberdade. Tudo vai depender do grau de
123
Cf. SÃO FRANCISCO DE ASSIS. O Cântico do irmão sol. In: SILVEIRA, Ildefonso; REIS,
Orlando (org.). São Francisco de Assis: escritos e biografias..., op. cit., p.70-71.
134
tomada como liberdade do todo dos indivíduos na relação; e, por fim, liberdade do
Agora reparai como Deus se une com as coisas. Ele se une com as
coisas e, no entanto, se mantém como um em si mesmo e mantém todas
as coisas em si como um. Sobre isso, diz o Cristo: vós deveis ser
transformados em mim e não eu em vós. Isso provém de sua
imutabilidade e de sua incomensurabilidade e da pequenez das coisas.
Por isso, diz um profeta que, frente a Deus, todas as coisas são tão
pequenas como uma gota frente ao mar bravio (Sb 11,23). Se
derramássemos uma gota no mar, a gota se transformaria no mar e não o
mar na gota. Assim acontece também à alma: quando Deus a atrai para
si, ela é transformada em Deus, de modo que a alma se torna divina, e
não que Deus se transforma na alma. Então a alma perde seu nome e sua
força, mas não, sua vontade e seu ser. Então a alma permanece em Deus
como Deus permanece em si mesmo.124
criatura se avaliam segundo a amplitude do horizonte que nela se abriu. Tudo vai
Tudo vai depender também dos diferentes níveis de libertação nas diferentes
possíveis em seu interior. O que significa, para a ordem dos seres, que, quanto
elevada será a criatura em sua amplitude de ser. A elevação das criaturas expõe a
vitalidade das ordens dos seres, nas quais todos os comportamentos se justificam,
ser acolhida em diferentes níveis de libertação. Nenhuma medida vinda "de fora"
do horizonte próprio pode avaliar o que se passa numa determinada ordem do ser.
O processo de uma criatura, em seu devir continuado, nem pode ser previsto, nem
pode ser antecipado por medida externa qualquer. O suceder de uma conjuntura
124
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., op. cit., sermão 80. p.575.
135
determinações.
para o possível. Nela se irrompem dimensões para o seu possível. Cada ordem do
possibilidades. Cada grau do ser só pode ser medido segundo o modo de seu
pelo fato de que a conjuntura do ser da criatura se constitui, a cada vez, só com
sua ordem, na qual se desenvolve. Sua evidência se confirma em sua certeza. Sua
chamo de obediente: aquilo que o discernimento ordena, que a vontade seja capaz
de fazê-lo".127
nela incluídos. O começo não está num porvir. A transformação dos momentos
sentido é que Eckhart deixa evidenciar que sempre que Deus nasce, começa a
125
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 15. p.118.
126
Idem.
127
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 86. p.522ss.
136
Deus cria todas as criaturas em um verbo. Mas, para que a alma volte a
viver, ele expressa todo o seu poder em sua geração. Num outro modo,
porém, é consolador que a alma seja novamente reconduzida ali para
dentro. Nesse nascimento ela se torna viva, e Deus gera seu Filho alma
adentro, para que se torne viva. Deus se expressa a si mesmo em seu
Filho. Nesse verbo, em que se expressa a si mesmo em seu Filho, nesse
verbo ele fala <também> alma adentro. A todas as criaturas é próprio o
gerar. Uma criatura que não conhecesse nenhum gerar também não
seria. Por isso diz um mestre: Este é um sinal de que todas as criaturas
foram produzidas pela geração divina.128
‘Gabriel’ recebeu o seu nome da obra, para a qual ele era um mensageiro,
pois "Gabriel" significa "força" (cf. Lc 1,35). Nesse nascimento Deus opera
cheio de força ou opera a força. Em que sentido atua toda a força da
natureza? – No sentido de querer gerar a si mesma. Qual o sentido de
toda natureza que atua na geração? Busca gerar a si mesma.129
128
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 43. p.248.
129
Ibid., sermão 38. p.225.
137
relacional tenderá a buscar unidade de evidência, a mais ampla possível, com vistas a
amarrar tudo à sua luz. Mestre Eckhart irá descrever este fenômeno na categoria
ontológica "plenitude". Ele observa que a plenitude se constitui como uma espécie de
medida que procura reunir de volta todo o curso conjuntural do ser para sua unidade
130
Filipenses 2, 6-8.
131
CF. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 21. p.149.
138
conjunto. Uma tal conclusão significa sempre plenitude. Fora dela "não há nada a
não ser apenas o nada". Com isso, uma medida externa não pode ser plenificada.
"Por isso [Deus] não procura nada fora de si mesmo, mas só na plenitude". Em
Deus não pode haver "aumento". Nele uma ampliação nada acrescenta, mas retira.
como toda criatura se desempenha para sua plenitude. Com certa cautela, se pode
homem em se voltar para "dentro" e fugir do exterior, encontra aqui sua clareza
volta à sua medida própria, de modo que ele possa recorrer a si mesmo em
132
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 11. p.100.
139
como exercício espiritual, teria muito pouco a haver com um tipo de "concentração
espiritual" que buscasse "pensar" em Deus para se desviar a atenção das coisas do
ridade não representa somente opostos desde o ponto de vista ôntico. Descreve,
sentido radical, não indica apenas apegar-se com ânimo e prazer às coisas
Por isso ele destaca na fala do sermão a distinção entre a palavra do profeta:
133
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 41. p.240.
140
‘Deus é o amor’. [...] Deus ama minha alma tanto que sua vida e seu Ser
dependem do fato de ele precisar me amar, goste ou não. Se alguém
privasse Deus de amar a minha alma, estaria tirando-lhe sua deidade. [...]
Tudo que Deus um dia já criou e poderia ter criado, se ele o desse todo à
minha alma junto com ele mesmo, e nisso ficasse fora algo que fosse do
tamanho de um fio de cabelo, isso não satisfaria à minha alma; eu não
seria bem-aventurado. Mas, se sou bem-aventurado todas as coisas estão
em mim junto com Deus. Onde eu estou, ali está Deus; assim [pois] estou
em Deus e onde Deus é, ali eu sou. [...] "Quem permanece no amor, este
permanece em Deus e Deus permanece nele" (1Jo 4,16). Se então eu sou
nele, onde Deus for, ali eu [também] sou, e onde eu estou, ali está Deus,
a não ser que a Sagrada Escritura minta. 134
Três coisas devemos ter em nossas obras. Isto é, que operemos de maneira
ordenada, racional e sábia. Chamo de "ordenado" àquilo que em todos os
pontos corresponde ao mais próximo. Chamo de "racional" àquilo que não se
conhece nada de melhor no tempo. E chamo a algo de "sábio" quando nas
boas obras encontro a verdade viva com [sua] presença alegre.
Também Marta estava movida por três coisas que a faziam andar de um
lado para outro servindo o Cristo amado. A primeira era uma idade
madura e uma base exercitada no que é o mais próximo. Por isso,
parecia-lhe que ninguém seria capaz de realizar tão bem a obra quanto
ela. A segunda era uma compreensão sábia, que sabia executar
retamente a obra exterior do modo mais aproximado que o amor
ordenasse. A terceira era a suma dignidade do hóspede querido. 135
134
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 65. p.522.
135
Cf. ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 86. p.522ss.
142
Nos termos de sua doutrina, Eckhart entende que a plenitude tanto indica
a plenitude das partes como a plenitude do todo das partes. Na linguagem do olhar
afinam entre si, tanto mais se desenvolve uma conjuntura do ser no curso de sua
seu âmbito em si [Eckhart diz: a alma "para além de mim"], e não "ao redor de si",
é criatura plena num sentido estrito. De acordo com essa visão tudo o que
"é", na medida em que "é", simplesmente. Ela nem se deixa apreender, por
antecipação, como algo futuro, nem, como decorrência, como algo pretérito. Futuro
criatura consiste nisto, que em seu interior não se pode pensar nenhum horizonte
que ainda a envolva. Antes, é ela mesma que abre toda possibilidade. Ela é que
143
ordena, ao mesmo tempo reúne e dá sentido àquilo que se configura como "dado"
de seu ordenamento.
se apresenta como o sentido imediato que justifica a rotina de sua vida interior. O
ora et labora. O mosteiro é imagem da criatura concreta, real e plena, na qual suas
ações apenas suportam a si mesmas. Desse modo, ele abarca tudo ao seu redor.
Mas abarcar tudo não se desdobra como uma ação restritiva. O caráter exclusivo
não restringe, mas "destranca" o ser, mesmo que de um modo todo característico.
136
ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 105. p.648 ss.
144
percebida, como obra pretérita, num outro arranjo conjuntural. Vista desde si
própria, aqui e agora, ela nunca poderia ter sido. Por isso, em Deus a criatura
pertence a ele, não pertence mais a seu tempo. Uma outra conseqüência é a de
137
ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., p.649 ss.
145
na maioria de seus sermões. Para ele, tempo, assim como espaço, são categorias
do ser que só podem ser esclarecidas pela concepção dinâmica do ente em seu
nunca é o tempo que torna possível o fenômeno, mas é o fenômeno que inclui o
fenômeno. Com outras palavras, para Eckhart, uma conjuntura do ser não aparece
"no" tempo. É o tempo que se mostra "numa" dada conjuntura do ser. Uma
de verdade do ser. Tanto que é possível chamar o tempo próprio das criaturas de
"e quando retornar a graça, tudo que nele estava por natureza, estará nele
forças para se legitimar como verdade. Ela precisará recuar (corrigir-se para
que ela é idêntica com o tempo. Ela está às voltas com um fenômeno que é
idêntico ao próprio tempo. Por isso, a geração eterna de Deus é o tempo idêntico
não pode admitir nem um "antes", nem um "depois", visto que em nenhum tempo
"não é". De certo que num tempo "não é", mas esse tempo não é o tempo
nem antes, nem depois é, assim, eterno. Pensada desde o princípio da mobilidade
Por isso, sou a causa de mim mesmo, segundo meu ser que é eterno,
mas não, segundo meu devir, que é temporal. E por isso sou não nascido
e, segundo o modo de meu ser não nascido, jamais posso morrer.
Segundo o modo de meu ser não nascido, fui eternamente e sou agora e
permanecerei eternamente.138
A eternidade "é", enquanto "é". A criação "é", enquanto "é". A criatura "é",
enquanto "é". Esta conclusão, por mais trivial que pareça, está na raiz da
138
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 52. p.290.
147
ser da mística especulativa, como para toda a ontologia medieval, mesmo que não
sustenta seu ser, enquanto "é", neste mesmo tempo em que ela também não
deveio ou não mais devirá. Esta constatação coloca o problema da essência sob
um novo horizonte, uma vez que o sentido de "tempo próprio" é conhecido como
olhar pode ser tomado como situação estática do ser. Novamente, aqui, a palavra
do sermão 15:
criatura, que nada mais é que o sentido interno de sua "guinada" para o começo. A
unidade é, como tal, experimentada como núcleo [substância]. É ela que assume,
139
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit.,sermão 15. p.117.
148
retorno da criação para seu tempo próprio se torna tão livre de qualquer dimensão
exterior que ele não é percebido não só diante do fim, como também diante do
interpretar a volta para o começo como uma transformação do ser: ele "volta para
casa mais rico". Tal como na liturgia eucarística, a desenvoltura da criação não
processo criativo. Mais que isso, em sua desenvoltura criativa, elas não só conhecem
das ordens dos seres, nas quais todos os comportamentos individuais se justificam,
só pode ser alcançado pela condição da copertinência relacional dos seres na qual as
criatura, de modo intensificante e estruturador. Toda criatura tende, dessa forma, para
relacional que nela está em jogo. O que significa, evidentemente, quando as relações
relações, tanto mais estranheza e vitalidade possui a criatura. Quanto mais vitalidade
ela possui, mais essencial ela é. Mais "rica" se torna: "Havia um homem nobre que
saiu para terra estranha, longe de si mesmo, e voltou para casa mais rico".140 Esta é,
relacionais cada vez mais abrangentes. A escala se torna maior e mais refinada na
medida em que se ascende na ordem das criaturas; e não se pode entrever nenhuma
Deus não tem nenhum nome próprio. [...] É lugar natural de todas as
criaturas. Em sua cadência, para a sua atuação, ele é o lugar e a
localização de todas as coisas corpóreas que estão debaixo dele. O fogo
é o lugar do ar, o ar o lugar da água e da terra. O lugar é o que me
envolve, é onde eu estou. O ar envolve assim a terra e a água. Quanto
mais sutil uma coisa, tanto mais forte. Por isso pode atuar dentro das
coisas mais grosseiras e que estão abaixo dela.141
140
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 15. p.117.
141
Ibid., sermão 36b. p.217.
151
ser. A "visão" dos anjos conhece transições do ser mais diferenciadas. A elevação
sutil". Ela denota que a ordem de referências ganha em densidade, de modo que
uma conjuntura, em particular, pode se tornar sempre cada vez mais abrangente
Diz, por fim, a intensificação do todo com o todo dos momentos da relacionalidade.
Nisto se pode dar que o caráter particular do momento se torne cada vez mais
preciso sem que o desempenho totalizante da conjuntura seja prejudicado: "o anjo
embora ele mesmo não tenha lugar nem medida". A intensificação do ser da
nela implicado. O que também significa dizer que, na visão das conjunturas, quanto
142
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 36b. p.217.
152
si, porém, deve ser apreendida como um imediato indeterminável: "o máximo que
uma conjuntura se torna pouco "sutil" a ponto da parte [parcial] se determinar como
Vede, pois, esse homem habita em uma luz com Deus; por isso, não há nele
nem sofrer nem sucessão de tempo, mas uma igual permanente eternidade.
Em verdade, a esse homem lhe é tirado todo o estranhamento, e todas
as coisas nele estão essencialmente. Por isso, não recebe nada de novo,
seja de coisas futuras, seja de qualquer outro "acaso", pois mora em um
instante novo em todo e qualquer tempo novo, sem cessar. Um tal senhorio
divino está nessa força.144
143
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 36b. p.217.
144
Ibid., sermão 2. p.49.
153
vitalidade gerada pelo movimento, tanto mais imediatez e plenitude de sentido lhe
permanência. Nem mesmo seu "repouso" em Deus, pois o repouso da criatura é seu
repouso como medida de mobilidade do ser. Mesmo para a ordem dos seres
ontologia mística como nível de potência. Por sua aparente estabilidade, os degraus
que forma e matéria não indiquem estados ou situação nas coisas, mas graus de
criação como jogo, o termo grau é, todavia, mais útil que o termo degrau. Ele
"degrau" do ser, como àquela que aparece, por exemplo, na doutrina do homem
utilizada. Eckhart deixa entrever esta característica com muita freqüência nos
não está à altura da recepção da palavra: "Quem não compreende a fala não aflija
com isso o seu coração. Pois enquanto o homem não se iguala a essa verdade,
não compreenderá essa fala. Essa é, sim, uma verdade sem véu, vinda
diretamente do coração de Deus".145 Até mesmo a idéia guia deste estudo, "a visão
nível mais alto é tão grande ou tão pequena quanto a do nível mais baixo. Toda
mais abrangentes. Com efeito, cada grau de ser só pode conhecer a si mesmo e o
que está abaixo de si. Um nível superior inclui, em sua constituição, sempre um
modo de assimilação de um nível inferior. Uma criatura superior não pode ser nem
vista nem compreendida por uma inferior. Partindo deste princípio é que se
145
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 52. p.292.
155
mais elevado. Neste sentido, afirma Eckhart: "e nossos mestres dizem: o que é em
cima ordena e dispõe o que é embaixo. São Tiago diz a respeito: ‘Todos os dons
Disso também resulta que o grau mais elevado do ser se assume como
o nível mais alto se "proporciona" para o mais alto, do mesmo modo que se
tendência no patamar mais alto. No patamar mais baixo tudo parece ser suficiente
O que é lugar de um outro deve ser acima deste. Assim como o céu é o
lugar de todas as coisas, o fogo é o lugar do ar, o ar o lugar da água e da
terra, a água é o lugar da terra, mesmo que só parcialmente, e a terra não
é lugar <para nenhuma outra coisa>. O anjo é o lugar do céu, e todo anjo
que tiver recebido uma gotinha de Deus a mais do que o outro é lugar e
localização para os outros. O anjo supremo é lugar e localização e medida
para todos os outros, sendo ele <mesmo> sem medida. E enquanto é sem
medida, Deus é a sua medida.147
mesmo tempo, pode lhe definir seu patamar e trabalhar a possibilidade de sua
constituição. É o que o anjo faz com o homem. O que o homem faz com o animal.
O que o animal faz com o vegetal. O vegetal com o mineral. Assim, o superior
146
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 35. p.210.
147
Ibid., sermão 36a. p.213.
156
Uma luz arde. Costuma-se dizer que uma luz acende a outra. Para que
isso aconteça, necessariamente o que <já> está queimando deve estar
acima. Como acontece com a chama que tremula para baixo e acende
quando alguém toma uma vela mal apagada, ainda com pavio em brasa e
cinza e intumescente e a levanta de encontro a uma outra. Diz-se que um
fogo acende o outro. A isso contradigo. Um fogo acende a si mesmo. O
que deve acender um outro deve estar necessariamente acima dele como
o céu. [...] Assim também a alma se prepara pelo exercício. Assim a alma
se acende de cima para baixo. Isso acontece pela luz dos anjos.148
O fato de o grau mais elevado só poder se assumir como único, e uma vez
que os níveis inferiores não apreendem os superiores, o decaimento é uma
experiência difícil de ser percebida. O pano de fundo para qualquer interpretação da
realidade, ele mesmo, não é alcançado pela interpretação que a criatura realiza. A
aparente invocação moral descrita nos sermões revela o quanto Eckhart vislumbra a
coercitividade desse fenômeno: a dificuldade de o homem experimentar seu
decaimento. Não importa o quanto decaia, ele nunca percebe que decaiu. A
permissividade se torna, pois, o fenômeno mais característico do decaimento. Nele, a
tolerância para com a experiência vigente não lhe permite perceber a queda como
queda. Ele a julga com base na verdade da luz de sua constituição. A falha para
aquele que cai não é falta alguma. Para ser experimentada como "pecado", a falta
precisa, antes, se tornar, para o pecador, desde fora de si mesmo, manifesta. O
decaimento não tem necessariamente consciência de que decai. Simplesmente se
permite. Por isso, em seu entendimento, Eckhart admite o mistério de que o mais alto
decai de maneira necessária: "E, em certo modo, é angustiante que a alma decaia
tantas vezes daquilo em que Deus investe todo o seu poder. Mas isso é preciso para
que a alma torne a viver".149
148
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 20a. p.139.
149
Ibid., sermão 43. p.250.
157
que o faz decair. De novo, se presta aqui como ilustração o modelo medieval de
pela elevação, seja pelo decaimento, apenas no sentido de uma transformação que
relações colaterais no seio de uma conjuntura do ser, sem que isso projete a unidade
pôr em marcha pelo desempenho da interação do todo com suas relações parciais.
Com isso também se assume que há degraus "dentro" de degraus, ou, melhor, graus
esclarece pelo fato de que uma mudança de grau implica também uma mudança no
decaimento está sempre em jogo uma nova ordem de ser pela relacionalidade. Daí se
poder falar em degraus. No novo critério de medida não há lugar para o "anterior".
158
Quando estava vindo para cá, pensei, no entanto, comigo, que o homem
na sua temporalidade pode chegar a obrigar a Deus. Se eu estivesse aqui
em cima e dissesse a alguém: "Vem cá para cima!", isso seria difícil. Se
dissesse, porém, "senta-te aqui embaixo!", isso seria fácil. Assim faz
Deus. Quando o homem se humilha, Deus, na sua bondade própria, não
pode deixar de baixar-se e derramar-se no homem humilde, partilhando-
se ao máximo e entregando-se por inteiro ao mais ínfimo de todos.150
150
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 22. p.155.
151
Ibid., sermão 14. p.114.
159
Deus é algo que deve ser necessariamente acima do ser. O que possui
ser, tempo ou lugar não toca em Deus. Ele é bem acima. <É verdade
que> Deus é em todas as criaturas enquanto possuem ser, e, no entanto,
152
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 58. p.317.
160
elevado o degrau de criação tanto mais "vulnerável" a criatura se torna para seu
regeneração. Por isso a elevação da criatura nunca pode ser apreendida como um
existência, nenhum "em cima". Naquilo que crê se estabilizar ele já decai de sua
dimensão atual e toda sua ordem se desaba em conjunto. Isto explica, em parte, a
importância que a teologia cristã medieval atribui ao mito do paraíso, para a história
Antes de ter caído, Adão era tão plenamente o próprio de Deus, que a
vontade estava conformada em Deus de tal modo que a deidade brilhava
através da vontade nas forças inferiores, de modo que era necessário não
poderem operar a não ser o que a vontade ordenava. Então Deus
realizava sua própria obra e queria converter-se na alma.154
sua elevação e sua elevação é o pressuposto para sua queda. Essa tensão é uma
153
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 9. p.87.
154
ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 92. p.104.
161
dado notável, uma vez que mostra a montagem da criação como um desempenho
modifica de acordo com o grau de interação do todo com suas partes; de acordo
com o grau de interação do todo das partes com cada parte e de acordo com o
grau de interação das partes entre si. São, pelo menos, sempre três grandes
155
O termo alemão é geschaffenheit. [Nota da edição crítica].
156
Traduzimos entwachsen por crescimento-transmutação. O verbo alemão entwahsen
(entwachsen compõe-se de ent + wachsen. Wachsen significa crescer, aumentar, avolumar,
entumecer. O prefixo ent, entre inúmeros significados, conota surgimento, no sentido de que de
algo nasce, surge, brota um novo ser que uma vez nascido se põe diante do ser, do qual surgiu
como "contra-posto" ou "ante-posto" (antí grego, ante latim) enquanto um ser novo, transmutado.
Assim, o surgir de uma nova vida, de um novo ser que con-cresce, como que irrompendo de
dentro da sua matriz para fora, se diz em alemão entwachsen. [Nota da edição crítica].
162
tem uma mosca sem Deus. [...] Ele diz: Estavam "em cima". O que está
em cima não sofre por causa do que está embaixo. Sofre somente quando
em cima dele tem algo mais alto que ele.157
assumido por todo lado como algo evidente que se justifica por si mesmo. Ademais,
serve de fundamento para outros temas na literatura mística. Em todo modo, a imagem
da criação é sempre vista pela articulação de uma ontologia que tem por base a idéia
157
ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 13, p.110.
158
Ibid., sermão 18, p.131. Eckhart cita literalmente Aristótetes. Cf. Aristóteles, De partibus
animalium, IV c. 5 (Lambda 681 a 12s).
163
Todas as criaturas procuram algo que se iguale a Deus. Quanto mais sem
valor, tanto mais procuram exteriormente, como, por exemplo, ar e água:
Eles se esvaem. O céu, no entanto, que é mais nobre, busca igualação
mais próxima com Deus; o céu gira constantemente em círculos e em seu
percurso produz todas as criaturas: Nisso se iguala mais a Deus. Mas não
é isso que ele intenciona, e sim algo mais elevado. Por outro lado, em seu
percurso ele busca quietude. O céu jamais decai em uma obra, com a
qual serve a alguma criatura que lhe é abaixo.159
visão nova da realidade. Uma visão que se constitui no fato de que o que está "acima"
vê e determina o que está "abaixo": "tudo que os sentidos exteriores apreendem, para
que seja introduzido espiritualmente, vem do alto, do anjo: ele o imprime na parte
superior da alma".160 Se a existência é apreendida não pelos pés no chão, mas pela
montagem da criação; uma perspectiva que se constitui com base no fato de que o
subsistente por si, ou forma separada. A categoria "separada" indica, aqui, um tipo
de forma que não pode ser apreendido no modo da articulação com a matéria. A
159
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 43. p.249.
160
Ibid., sermão 35. p.210.
161
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. De Anima, quaest. un. 9. In: An aquinas reader..., op. cit., p.212.
164
mística denominações como intelecto, alma, mente, razão e espírito. Por isso
aquilo que vem do alto, "do anjo", ele "o imprime na parte superior da alma". O
"homem interior" de Eckhart é o espírito. É uma forma subsistente por si, tomada
pressupõem que sua possibilidade de ser não esteja ainda aberta. É vida plena e
por isso não tem vida no sentido de desenvolvimento, no qual estivesse um dia
num estado menos pleno. Ele não tem a forma de ser da temporalidade, mas da
próprio e privilegiado que participa para baixo, com o olho exterior voltado para as
formas inferiores e que, simultaneamente, com o olho interior, participa para cima
O olho interior da alma é aquele que olha o ser e recebe seu ser
imediatamente de Deus: É a obra que lhe é própria. O olho exterior da alma é
aquele que está voltado para todas as criaturas, apreendendo-as no modo de
imagem e no modo de atuação de uma força. O homem que se encontra,
porém, voltado para dentro em si mesmo, conhecendo a Deus no fundo
propriamente divino, este está liberto de todas as coisas criadas e fechado
em si mesmo sob o verdadeiro fecho da verdade. Como eu disse há um
tempo atrás, no dia da Páscoa, Nosso Senhor veio a seus discípulos, a portas
fechadas; assim também se dá com o homem que está assim liberto de toda
a estranheza e de toda criaturidade. Nesse homem, Deus simplesmente não
entra; <muito mais>, Ele é essencialmente dentro.162
162
ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 10. p.94.
165
relacional, se elabora pelo olho que vê a liberdade não como um fim, mas como o
"elevado ao máximo". Esse máximo, que se apresenta como o Um [Uno], a partir do
qual o múltiplo aparece em degraus de uma gradualidade: "Deus é o máximo
compartilhamento".163 Para a visão desde um grau inferior, existe uma multiplicidade
de conjunturas do ser. Vista, porém, desde o máximo, existe somente uma conjuntura
do ser. Para Eckhart somente a partir desse ponto as coisas começam a fazer
sentido. Sua mística especulativa expõe uma ontologia da identidade da diferença
[criatura] e da identidade [absoluto]. Nela o sentido de unidade não pode mais
coincidir com unidade tomada substancialmente. A própria compreensão de Uno já é
produto de seu grau respectivo. A ontologia de Eckhart possui a vantagem de assumir
sua impossibilidade de interpretar aquilo que lhe é superior e, assim, interpretá-lo. Um
pensar originário:
Um mestre diz: Todas as coisas têm um porquê, mas Deus não tem
porquê. O homem que pede a Deus por alguma outra coisa do que por
Deus, ele mesmo cria um porquê para Deus. [...] O dom da sabedoria é o
dom mais nobre entre os sete dons <do Espírito Santo>. [...] Mas isso
<tudo> seria insignificante se não o possuíssemos total, igual e
devidamente como Deus o desfruta. [...]. Pois no "Espírito da sabedoria"
ele tudo opera na igual medida, de tal modo que o mínimo torna-se como
o máximo, embora o máximo não seja como o mínimo.164
163
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 9. p.87.
164
Ibid., sermão 59. p.319.
166
está embaixo. Sofre somente quando em cima dele tem algo mais alto que ele".165
Elevação e queda são movimentos constitutivos de identidade, tomadas, aqui, no
sentido de auto-interpretação, pois, em Eckhart, gênese criativa é também
constituição de sentido e de interpretação. Sem sentido, não há existência. Sentido
é, em seu entendimento, aquilo que reúne tudo: "quando falamos de homens,
falamos igualmente do sentido de todas as criaturas, pois o próprio Cristo disse a
seus discípulos: ‘ide e pregai o Evangelho a todas as criaturas’; pois todas as
criaturas estão reunidas no homem".166 O sentido é a base da "doutrina" das
conjunturas. Se deve haver sentido, este deve ser constituído no movimento de
subida e de descida da conjuntura do ser.
Para "ganhar" essência, a existência tem de se transformar continuamente
pelo movimento contínuo de ascensão e queda: "quanto mais elevada acima das
coisas terrenas, tanto mais forte é a alma".167 Esta é sua vida, ou sobrevida. Eckhart
entende o ciclo de ascensão e queda da criatura como o "tempo próprio" da criatura.
Por isso ele emprega com freqüência o conceito de tempo, ao invés do conceito de
plenitude, para designar o desfecho um ciclo criativo da criatura. Toda conjuntura do
ser possui tempo próprio. Toda criatura tem seu tempo. Há um tempo próprio para
todo sentido de ser. Há um tempo próprio para toda identidade.
O Uno [o "elevado ao máximo"] pulsa em todas as diferenças de um
"tempo próprio". Por isso ele é tempo pleno e está em todas as criaturas. Tempo,
como plenitude, se manifesta como o mais interior daquilo que nesse momento se
opera nele próprio. Como efeito, Mestre Eckhart interpreta a determinação
escolástica de criação creatio ex nihilo ao modo de uma incisão que, a cada vez,
se opera no nada. O tempo não é tomado como um ciclo dentro do "nada". Nunca
é, portanto, período, intervalo ou duração. O Uno, assim concebido, não se
mantém "no" tempo. É o tempo que se sustém no Uno.
165
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 10. p.93.
166
ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 75. p.560.
167
ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 9. p.85.
167
conversão humana é um novo tempo e, quiçá, um outro tempo. Todo tempo é, por
Muitas vezes já disse que há uma força na alma, a que não tange nem o
tempo nem a carne; ela flui do espírito e permanece no espírito e é toda
inteiramente espiritual. [...] Se o espírito estivesse unido com Deus, todo o
tempo nessa força, o homem não poderia envelhecer; pois o instante em
que ele criou o primeiro homem, o instante em que há de perecer o último
homem e o instante em que eu estou falando, agora, são iguais em Deus
e nada mais do que um instante. [...] Por isso, não há nele nem sofrer nem
sucessão de tempo, mas uma igual permanente eternidade. Em verdade,
a esse homem lhe é tirado todo o estranhamento, e todas as coisas nele
estão essencialmente. Por isso, não recebe nada de novo, seja de coisas
futuras, seja de qualquer outro "acaso", pois mora em um instante novo
em todo e qualquer tempo novo, sem cessar. Um tal senhorio divino está
nessa força.
aquela descrita por São Paulo na diferenciação dos dons "recebidos" pelo
Espírito.168 Os homens que dão início a um novo tempo estão fora de uma
168
Cf. 1 Coríntios 12, 4-11.
168
[desfecho do ciclo criativo], então a repetição da mesma tarefa leva a uma unidade
longo e moroso: "Se o dia te enfadonha e o tempo te parece longo e moroso, volta-te
para Deus, em quem não há demora tediosa, onde todas as coisas encontram-se em
recolher aqui. Nela se pode ver como a espiritualidade da mística entende o sentido
para ele, deveria ser experiência de recomeço: "Vamos começar tudo novamente,
meus irmãos, porque até agora fizemos pouco ou nada",170 instrui. Francisco entende
que na rotina do trabalho diário o homem deve experimentar seu tempo próprio, sua
plenitude. Para ele, toda repetição deve começar como novidade a fim de não se
consumar como operação estéril, destituída de sentido nela mesma. É o que seu
biógrafo conclui: "Não pensava que já tivesse conseguido dominar-se, mas firme [...]
que nas rotinas humanas ganha ou perde sentido está sempre incluído em seu
tempo próprio. Não há nenhuma tarefa que não esteja inserida no seu tempo. Tudo
Eclesiastes:
169
EKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 29. p.188.
170
Cf. TOMÁS DE CELANO. Primeira vida de São Francisco. In: SILVEIRA, Ildefonso; REIS,
Orlando (org.). São Francisco de Assis: escritos e biografias..., op. cit., p.254.
171
Idem.
169
entanto, não é a montagem que está em jogo na doutrina dos graus em Mestre
existência humana é apenas um caso exemplar. Mas ela não é o único modo real
partir do qual são possíveis novas criações. Nos níveis inferiores da criação, o
exemplo as obras e instituições humanas; o empenho por uma vida melhor etc.
Mas também a luta animal pela sobrevivência; o vigor da vida das plantas e a
inclusive, para todo ser e pensar medieval. Não é de se estranhar que a imagem da
172
Eclesiastes 3, 1-8.
170
média. Ela está no fundamento da doutrina da criação como está na cosmologia dos
propõe a pensar a criação não somente pelo sentido das criaturas em sua
criação se desenrola como uma interpretação total de si. Mas ela pode ser tomada,
isso afirma:
Se Deus deve entrar, essas coisas devem sempre sair, a não ser que tu
as possuísses de uma maneira mais elevada e melhor, de modo que a
multiplicidade tivesse se tornado Um em ti. Então, quanto mais
multiplicidade houver em ti, tanto mais unidade haverá, pois uma se
transformou na outra. [...] Eu disse uma vez: A unidade une toda a
multiplicidade, mas a multiplicidade não une a unidade.173
uma interpretação total de si, segundo sua temporalidade própria. Esta deve
não se cumpre como uma tendência preestabelecida. Desse modo é que os degraus
173
ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 11. p.98.
171
flexibilidade suficientemente larga para que cada degrau se manifeste como novo. O
contém em si as ordens. E visto que toda ordem significa um projeto criativo, ela
deve dispor a criação de uma outra maneira desde si mesma. Esta é uma forma
criação significa: quanto mais inferior a criatura, tanto mais seu ordenamento se
(por exemplo, as pedras só podem ser minerais e todas parecem ser a mesma
dinâmica a faz perceber o tempo próprio como alternante e fugaz: "Um velho
modifica e multiplica".174
Quando se concebe que uma ordem pode se definir como possibilidade
de ordenamentos, se assume, com isso, a experiência da multiplicidade como um
fenômeno possível da unidade de uma ordem. Tomada deste modo, a ordem pode
conter em si múltiplas ordens. Um ordenamento pode, num grau extremo, nada
mais ser que a pura possibilidade do surgimento de multiplicidades. Isto permite
174
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 32. p.201.
172
175
ECKHART, Mestre. Meister Eckhart, die deutschen..., op. cit., sermão 86. p.597.
173
experiência de si mesma percebida como algo "dentro de", para o qual seu mundo
aparece "junto com". Interior e exterior formam sempre uma só construção. Na
criatura eles são a mesma "coisa".
O jogo "interior-exterior", próprio do ordenamento, deverá assumir formas
distintas em todos os níveis do ser, da mesma forma que, em cada nível, também
deverá ser experimentado em diferentes possibilidades de exterioridade e de
interioridade, cada vez. A base do jogo consiste no fato de que a experiência de si
[o interior], elaborada por uma determinada ordem do ser, só poder se constituir
pelo princípio da relacionalidade e pela lei da projeção. Seu interior será sempre o
produto de múltiplas realidades internas relacionadas aos dados projetados de si.
Essa relação deverá constituir, para a criatura, um campo exterior diferenciado
"junto com" sua realidade subjetiva. E isto cada vez de um modo específico.
Logo, são as relações parciais no interior da ordem em constituição que
constroem o sentido do todo da ordem. O todo da ordem só é descoberto nas
relações particulares. Não há outro jeito. Uma ordenação não pode se dar se uma
ordem não possuir uma relacionalidade constituída. A ordem, em seus diferentes
níveis de sentido, só se constitui a partir de indicações da relacionalidade de seus
momentos. Embora não seja visivelmente apurável, realidades internas e externas se
movimentam em conformidade. Aquilo a que se chama de real e realidade é o
resultado de uma relação que se constitui como sentido [essentia]. Se uma ordem não
acompanha as indicações parciais, que vão de uma parte a outra parte, ela não
possui essência. O que não se constitui como relação não possui essência nem
existência. É "vazio". Por isso Deus, como doação, é sempre pensado como presença
do todo na direção do particular. Mas isso de tal modo que este "ir-para" forma, ao
mesmo tempo, o próprio todo [Deus], que se auto-regula pelas parcialidades
[criaturas]. É o que Eckhart observa: "Além disso, Deus também ama a si mesmo em
todas as criaturas. Mas, justamente assim como procura o amor a si mesmo em todas
as criaturas, assim também busca nelas o seu próprio ‘repouso’".176
176
ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 60. p.325.
174
dentro de uma perspectiva: a partir de Deus [quoad Deum]. O todo não existe
como todo [Deus]. A parte não é algo que se mantém imóvel [criatura]: "quem
Uma vez que a realidade só pode existir como parte e a parte, por sua vez, só se
fonte do ser. A perspectiva desde o todo [desde Deus] sempre inclui uma
perspectiva desde a parte [desde a criatura, quoad nos]: "um mestre diz: as
criaturas estão cheias de tudo aquilo que em Deus é o menor, e sua grandeza não
está em nenhum lugar".178 Por isso a idéia de Deus coincide com a idéia de
tudo é dado. O fato de que apenas uma parte se doa, significa exatamente que a
ausência das outras partes também se dá. Com o que se doa, se dá a totalidade
Eckhart permite divisar que algo só é real quando se dá "em conjunto" com o todo
de sua relacionalidade. Todo ser vem num "pacote" com outras realidades. Pelo
diferença, isto é, aquilo que não foi dado. Essência significa, de certo modo,
"verdade das sentenças"179, isto é, como aquilo que é expresso na cópula, no "é" do
177
ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 26. p.173.
178
Ibid., sermão 59. p.321.
179
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. O ente e a essência..., op.cit, cap. I. p.63.
175
real nunca "é". O "é" da cópula dá apenas expressão a uma conjuntura conhecida. O
realidades dadas.
A criatura existe, mas a criatura não "é". Sua realidade depende do fato de que nada
pode, sim, ser apreendida como um sujeito, desde que sujeito expresse apenas a
mantém no todo e no particular. Vale retomar, por fim, a intuição de plenitude, apenas
recolheu justamente naquele sentido aberto por ela como um todo. Paradoxalmente,
pelo "cabresto":
Sobre isso, um mestre grego disse que Deus segura todas as criaturas
como que por uma rédea, para que operem igualmente conforme a ele.
Por isso a natureza opera todo o tempo em vista do mais alto que ela
possa realizar.180
180
ECKHART,Mestre. Sermões alemães..., op. cit., sermão 47. p.265.
176
OBSERVAÇÕES FINAIS
campo visual. Nada, em sua mística, escapa a essa visão. As reflexões conduzidas
até aqui nos permitiram propor a imagem concreta da criação, pela mística, como um
ser". Essa medida serviu como orientação para o propósito bem específico deste
mas do problema como ela é. Também não trata da questão se Deus existe, mas
doutrina permanece, entretanto, aberta a questão: Quem é Deus? Onde está o seu
"eu"? Ele é uma ordem, o todo das ordens, uma conjuntura do ser, o todo das
conjunturas?
Obviamente existe uma diferença entre a pergunta pelo ser de Deus e o "eu"
de Deus [seu "interior"]. O sentido de "interior" pode ser tomado, num determinado
distinção entre interno e externo é uma necessidade. Muitas vezes se pode perguntar
tornar o fundo da própria conjuntura do ser. Este "eu" realista não pode ser
177
apenas distinções realistas. Não há nem um, nem outro. Exterior é a experiência da
cada nível do ser, uma articulação diferencial do "sou". O "sou" aparece como um
"o que sou", se pergunta conjuntamente: "o que não sou". O "sou" é a abertura de
uma conjunção, um cenário. Por isso também pertence ao ser da primeira pessoa
a primeira pessoa dos "outros". Para que se possa ser como um "sou", se ganham,
longa procura. Por isso Deus "é" um todo integrado, uma unidade [Um] e não
"vale" pela soma de dois. Na experiência do "sou" deve-se procurar pelo Um. Esta
181
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 28. p.184.
178
é uma sentença a que não cabe recurso. Ela responde por uma culpa originária,
cuja pena deve ser a procura eterna e a aflição. Este mistério fica nobremente
‘Maria Madalena foi até o túmulo’ procurar Nosso Senhor Jesus Cristo.
‘Chegou perto, e espreitando para dentro, viu dois anjos’ junto ao túmulo, que
"disseram: ‘Mulher, a quem procuras?’" – ‘Jesus de Nazaré’. Poderíamos
agora perguntar por que ela chegou tão perto, uma vez que ela era uma
mulher, e os varões que ali estavam – um que amava Deus <João> e o outro
que fora amado por Deus <Pedro> – temiam fazê-lo. [...]
Um mestre diz: Senhor, o que pretendes com isso que tu pudeste retrair-
te tanto tempo dessa mulher; no que ela é culpada ou o que é que ela
fez? [...]182
Maria Madalena procurava Nosso Senhor no sepulcro. Ela buscava um
morto e encontrou dois vivos, os anjos, e por isso ainda continuou
desconsolada. Os anjos disseram: "Por que te afliges? O que procuras?
Procuras um morto e encontras dois vivos" (Jo 20,11s). Ela então disse
assim: "Pois esta é, justamente, a minha aflição. Busco apenas um mas
encontro dois".183
construção que já de início mostrava seu alcance. Já se podia ter uma compreensão
medieval poderia ter tomado outros rumos. Aquilo que valia outrora para a ontologia
uma doutrina universal do ser que conduzisse a uma metafísica geral com conceitos
XIV, para mais tarde se recolher como possibilidade de pensamento. Mesmo assim, a
182
Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães..., op. cit, sermão 55. p.305 ss.
183
Ibid., sermão 26. p.189.
179
doutrina das relações apareceu, mais tarde, como uma forma fundamental do pensar,
expressões, por não ser o termo mais acertado. Mestre Eckhart "forja" os trechos
bíblicos em seus sermões, para narrar uma história que está a caminho de si
mesmo. Liberdade é seu último sentido. Os fatos bíblicos dos sermões são para
desse olhar.
180
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