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Uma breve consideração das teorias emotivas ou afetivas da religião pode fornecer
um exemplo desses esforços probatórios.
Argumentei que a teoria amplamente aceita sobre religião como experiência
pessoal em resposta a algum “outro” transcendente é inválida, pois representa uma
generalização sobre religião baseada nos dados de uma tradição religiosa
particular, a saber, o princípio da Reforma Protestante de que “a salvação é
somente pela fé [individual] confirmada por uma experiência de graça”.⁵ Em seu
contexto cultural americano, essa visão teológica da religião recebeu sua primeira
formulação por Jonathan Edwards em seu "Treatise Regarding Religious Affections"
(Edwards, 1959 [1746]), um trabalho que foi considerado "a mais profunda
exploração da psicologia religiosa em toda a literatura americana" (Miller 1949,
177). Escrito em defesa do "Grande Despertar", a primeira instância de
reavivamento em larga escala que começou na década de 1720 e se espalhou pelas
colônias americanas, Edwards afirmou que "a religião verdadeira consiste tanto nos
afetos, que não pode haver religião verdadeira sem eles” (Edwards 1959, 120). A
principal “base objetiva” para essas experiências, argumentou, “é a
transcendentalmente excelente e amável natureza das coisas divinas, como elas
são em si mesmas” (Edwards 1959, 240). Para Edwards, em outras palavras, a
religião era baseada em uma experiência pessoal, não mediada, em resposta ao e
confirmada pelo sagrado. Essa ênfase na experiência individual relega outras
práticas religiosas
5 O exemplo seguinte é tirado de Martin 1993: 76 – 77, e usado aqui com as devidas
permissões. Ver também Martin 1994: n. 53.
3. Secular Theory and the Academic Study of Religion 37
ii
A teoria da religião com a qual trabalho (atualmente, pelo menos) é que a religião
é (a) um sistema social (b) legitimado por reivindicações à autoridade de algum
poder sobre-humano. Esta formulação teórica oferece uma definição sociológica
provisória ou hipotética a ser testada contra a pesquisa empírica da psicologia
cognitiva, por um lado, e contra a pesquisa comparativa e histórica, por outro. Essa
teoria explica a maior quantidade de dados em termos dessas duas características?
Permanecem exceções significativas? Ou a teoria sobre-determina os dados a
serem selecionados para que as exceções sejam excluídas a priori? A teoria
diferencia o que explica de sistemas funcionalmente semelhantes?
Seres humanos, cientistas sociais e filósofos parecem concordar, são animais
sociais, como argumenta a existência universal da linguagem humana (os meios de
comunicação intersubjetiva). Essa sociabilidade é aparentemente uma
característica inata da espécie, quer as estruturas dessa característica sejam
explicadas como elaborações culturais da biologia (Boyer, 1990, Burkert, 1996) ou
como a consequência de uma competência ligada a domínios específicos da mente
humana (Hirschfeld, 1994). Podemos, em todo caso, concluir que produtos
culturais como a religião são, pelo menos, fatos sociais.
Os seres humanos organizam sistemicamente as suas produções sociais, as quais,
para retomar nossa pista da linguagem, podem ser vistas como o estabelecimento
de conjuntos fechados de relações nas quais o valor dos elementos
interdependentes resulta unicamente da presença simultânea dos outros
(Saussure, 1966, 114). Seguindo o trabalho de W. Robertson Smith, os
antropólogos identificam apenas dois tipos de sistemas sociais: “parentesco” e
“realeza” (W. R. Smith, 1972 [1889], cap. 2). Smith definiu "sociedades de
parentesco" como aquelas em que "todo ser humano, sem escolha de sua parte,
mas simplesmente em virtude de seu nascimento e criação, torna-se um membro"
(WR Smith 1972, 29) - uma noção das “sociedades naturais” que podem ser
traçadas a partir de Aristóteles (Pol. I. 1.4 - 6). Em contraste, Smith define “realeza”
como uma transformação de grupos de parentesco em “uma aristocracia dos
parentes mais poderosos” com uma consequente distribuição desigual da riqueza
(W. R. Smith 1972, 73). A diferença entre esses dois tipos pode ser resumida como
uma diferença na distribuição social do poder. Enquanto o poder nas sociedades de
parentesco é disseminado mais ou menos igualmente em toda a sociedade (W. R.
Smith 1972, 73), os reinados são caracterizados por consolidações de poder (ver
Sagan 1985, 236, 240; Martin 1997a e
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iii
que em nenhum lugar é definido de modo mais claro e franco do que por
Max Weber, que assim deveria estar "a serviço da autoclarificação [o que
eu quis dizer por teoria] e conhecimento de fatos inter-relacionados [o
que eu quis dizer por sistemas]". Weber continua dizendo que deveria
“não [ser concebido como] dom da graça de videntes e profetas
dispensando valores e revelações sagrados, nem participando da
contemplação de sábios e filósofos sobre o significado do universo”
(Weber 1946 [1919], 152). Esta é uma prática religiosa. “Nas salas de
aula da universidade”, concluiu Weber, “não há outra virtude senão a
integridade intelectual simples” (Weber 1946, 156). “Integridade” é um
valor frequentemente invocado, dentro e fora da academia, como uma
virtude nobre, mas esta é desprovida de muita especificidade. Invoco-a
aqui, no espírito de Weber, para indicar o compromisso com o ideal
acadêmico de investigação baseada na teoria, levando a princípios
explicativos apoiados por conclusões intersubjetivas.
Ao contrário de algumas tentativas anteriores de limitar o estudo da
religião a uma compreensão empática dos outros, essa integridade
intelectual na academia exige que este estudo seja também uma disciplina
crítica. Como tal, o papel do estudioso da religião deve finalmente incluir
a responsabilidade de se aventurar julgamentos sobre as religiões. Tal
crítica pode ser de alegações religiosas baseadas no senso comum, por
um lado, ou naquelas nascidas da propaganda, por outro. Vico definiu o
senso comum, uma consequência da natureza social dos seres humanos,
como “julgamento sem reflexão, compartilhado por uma classe inteira,
um povo inteiro, uma nação inteira ou toda a raça humana” (Vico 1970,
21), um exemplo do qual são as visões da religião como experienciais,
discutidas acima. A propaganda, por outro lado, é o desafio ideológico ao
consenso social por grupos de interesse especial (Merton 1968, 160, 563),
quer esses grupos sejam exemplificados por algum novo movimento
religioso interessado em propagar sua própria visão da religião, ou o
estudo de tais grupos a partir de uma perspectiva ideológica particular,
mesmo que no contexto da própria academia. Nem o senso comum nem a
propaganda são necessariamente falsos; nem, entretanto, os pressupostos
comuns nem a defesa fervorosa estabelecem validade. Nascida de estudos
comparativos e especializados, a avaliação crítica das reivindicações
religiosas, bem como das generalizações explicativas sobre as religiões,
constitui finalmente a tarefa pública do estudioso da religião.
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