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Nada me estranha a pouca atenção dada ao chute cibernético prometido pelo tal
exoesqueleto de Miguel Nicolelis. Afinal, a ênfase no futebol como “fenômeno cultural global”
é oriunda de um esporte marcadamente masculino, viril, branco, cristão e, frise-se neste caso,
eficiente – performado por atletas que têm membros inferiores e superiores, que andam sem
problemas, escutam e enxergam. Para além da tal geringonça, o corpo plugado a ela era de
alguém com deficiência, considerado sempre um “apêndice humano” da maravilha tecnológica!
Portanto, não é de se estranhar os parcos segundos de aparição na TV, a quase (nenhuma)
importância dada pelos narradores esportivos, e a forma discreta que o espetáculo de abertura
da Copa do Mundo de Futebol conferiu ao fato.
Ninguém soube direito o que se passara, muito menos a demonstração foi feita
conforme o prometido pela FIFA. Havia especulações de o chute ser dado por uma pessoa com
deficiência física, a partir de uma veste robótica controlada por atividade cerebral: o envolvido
levantaria de uma cadeira de rodas no meio do gramado, caminharia por cerca de 25 metros e,
logo em seguida, daria início ao campeonato. Entre ficção e realidade, o ‘Robocop do futebol’
abriria a maior e melhor (segundo alguns) de todas as Copas do Mundo.
Foi exatamente sobre esse ponto que a bióloga estadunidense Donna Haraway
arquitetou uma pertinente discussão em seu Manifesto Ciborgue. Para ela o mundo é um
conjunto de redes entrelaçadas, que em parte são humanas e em parte são máquinas. Mas
para além dessa aparente separação, o ciborgue arremessa à lata do lixo as oposições natureza
x cultura, e aquilo que sempre é considerado pelas pessoas como “natural” (ou porque o
“mundo sempre foi assim”) é posto em questão. Ele questionaria, inclusive, o lugar de
submissão delegado à mulher (mãe, cuidadora, reprodutora) ao longo da história no Ocidente.
De outro lado, Haraway postularia que tanto homens quanto mulheres não são naturais, mas
construídos, tal como o ciborgue – que, portanto, evoca com sua presença a potencial
reconstrução de nós todos, em via contrária.
Assim, o “exoesqueleto-humano” que fez o chute na abertura da Copa e que quase não
foi visto, não nos coloca o que seremos no futuro, mas nos delega o que somos hoje. Traz-nos à
luz da contemporaneidade como a biotecnologia nos constrói como corpos (ou tecnocorpos),
pois segundo as prerrogativas de Haraway, não conseguimos definir, em nossa vida moderna,
onde acabamos e onde as máquinas começam. As relações colocadas pelas realidades vividas
nos indistinguem; as fronteiras entre corpos e tecnologia são praticamente inexistentes.
Ganhar a Copa Masculina do Mundo de Futebol não tem a ver só com melhores
equipes, melhores atletas. Tem relação direta com uma complexa conexão entre fisiologia do
exercício, dietas elaboradas, controle da ingestão calórica, medição da gordura corporal,
drogas, sono, terapias, tratamentos, equipamentos, psicologia do esporte. Por isso, o ciborgue
não só habitaria nosso imaginário, ou estaria ao nosso redor, mas ele nos incorporaria como
ironia. Em palavras da teórica, ‘somos todos ciborgues e não sabemos’.