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Haraway no país do futebol: o caso do exoesqueleto de Nicolelis

Por Wagner Xavier de Camargo

Nada me estranha a pouca atenção dada ao chute cibernético prometido pelo tal
exoesqueleto de Miguel Nicolelis. Afinal, a ênfase no futebol como “fenômeno cultural global”
é oriunda de um esporte marcadamente masculino, viril, branco, cristão e, frise-se neste caso,
eficiente – performado por atletas que têm membros inferiores e superiores, que andam sem
problemas, escutam e enxergam. Para além da tal geringonça, o corpo plugado a ela era de
alguém com deficiência, considerado sempre um “apêndice humano” da maravilha tecnológica!
Portanto, não é de se estranhar os parcos segundos de aparição na TV, a quase (nenhuma)
importância dada pelos narradores esportivos, e a forma discreta que o espetáculo de abertura
da Copa do Mundo de Futebol conferiu ao fato.

Ninguém soube direito o que se passara, muito menos a demonstração foi feita
conforme o prometido pela FIFA. Havia especulações de o chute ser dado por uma pessoa com
deficiência física, a partir de uma veste robótica controlada por atividade cerebral: o envolvido
levantaria de uma cadeira de rodas no meio do gramado, caminharia por cerca de 25 metros e,
logo em seguida, daria início ao campeonato. Entre ficção e realidade, o ‘Robocop do futebol’
abriria a maior e melhor (segundo alguns) de todas as Copas do Mundo.

Em que pese uma exortação ao cientista Nicolelis e ao seu feito, a parafernália


tecnológica e o corpo de Juliano Pinto (paraplégico de 29 anos escolhido para o momento)
trazem à tona algo interessante e enigmático a ser pensado: a figura do ciborgue, que povoou a
literatura de ficção em grande parte do século XX, principalmente nos anos da famosa Guerra
Fria, nos quais Estados Unidos e a ex-União Soviética protagonizaram um redimensionamento
de suas tecnologias, com vistas à (suposta) extinção um do outro. O ciborgue era um humano
melhorado; uma máquina pensante; um amálgama de carne e metal, que prenunciava um
mundo em transformação.

Foi exatamente sobre esse ponto que a bióloga estadunidense Donna Haraway
arquitetou uma pertinente discussão em seu Manifesto Ciborgue. Para ela o mundo é um
conjunto de redes entrelaçadas, que em parte são humanas e em parte são máquinas. Mas
para além dessa aparente separação, o ciborgue arremessa à lata do lixo as oposições natureza
x cultura, e aquilo que sempre é considerado pelas pessoas como “natural” (ou porque o
“mundo sempre foi assim”) é posto em questão. Ele questionaria, inclusive, o lugar de
submissão delegado à mulher (mãe, cuidadora, reprodutora) ao longo da história no Ocidente.
De outro lado, Haraway postularia que tanto homens quanto mulheres não são naturais, mas
construídos, tal como o ciborgue – que, portanto, evoca com sua presença a potencial
reconstrução de nós todos, em via contrária.

Assim, o “exoesqueleto-humano” que fez o chute na abertura da Copa e que quase não
foi visto, não nos coloca o que seremos no futuro, mas nos delega o que somos hoje. Traz-nos à
luz da contemporaneidade como a biotecnologia nos constrói como corpos (ou tecnocorpos),
pois segundo as prerrogativas de Haraway, não conseguimos definir, em nossa vida moderna,
onde acabamos e onde as máquinas começam. As relações colocadas pelas realidades vividas
nos indistinguem; as fronteiras entre corpos e tecnologia são praticamente inexistentes.

Ganhar a Copa Masculina do Mundo de Futebol não tem a ver só com melhores
equipes, melhores atletas. Tem relação direta com uma complexa conexão entre fisiologia do
exercício, dietas elaboradas, controle da ingestão calórica, medição da gordura corporal,
drogas, sono, terapias, tratamentos, equipamentos, psicologia do esporte. Por isso, o ciborgue
não só habitaria nosso imaginário, ou estaria ao nosso redor, mas ele nos incorporaria como
ironia. Em palavras da teórica, ‘somos todos ciborgues e não sabemos’.

Na superfície das coisas, o exoesqueleto de Nicolelis midiatizou algo das experiências


científicas na área de Neuroengenharia, com destaque para as próteses neurológicas e
informática médica, e apresentou uma possibilidade (ainda bruta e impraticável) de locomoção
por parte de pessoas com traumas raquimedulares. De meu ponto de vista, contudo, a
maquinaria tecnológica de Nicolelis e a encenação futebolística da Copa colocam em
perspectiva, inclusive, o obsoleto modelo de esporte em vigor. Dito em outras palavras, Juliano
e o exoesqueleto, o corredor Pistorius e suas próteses, Caster Semenya, Usain Bolt ou qualquer
outro/a atleta testosteronado/a não diferem entre si pelas aparentes singularidades, mas se
aproximam naquilo que têm em comum: tecnocorpos hibridizados, humanos-máquinas,
cibercorpos construídos, ciborgues em atividades. Desde o advento do esporte moderno em
fins do século XIX, nunca fomos tão diferentes. Estamos diante da confusão de fronteiras, de
um mundo pós-corpo, pós-humano e, quiçá, pós-gênero!

Da mesma forma que o mito do ciborgue de Haraway nos coloca a confusão e a


transgressão de fronteiras, bem como potentes fusões e perigosas possibilidades, este
exoesqueleto que veio a público nos incita, no mínimo, a pensar componentes de uma
desconstrução política dos corpos no futebol (e também nos esportes), por meio de um
trabalho micropolítico de redimensionamento de olhares, posturas e considerações. Uma vez
mais o futebol traz questões que não devem ser deixadas de lado, seja pelos especialistas do
métier esportivo, seja pelas/os cientistas de outras áreas do conhecimento.

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