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Nº 152 - Outubro 2018 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

MARIA JÚLIA MOREIRA

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO | CIDINHA DA SILVA | SILVINA OCAMPO | JOÃO SILVÉRIO TREVISAN
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

E
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
m dezembro, o AI-5 completa 50 anos. e ampliado Devassos no paraíso, que resgata a história da
No mês passado, o Museu Nacional população LGBTQ+ no Brasil. Vice-governador
Raul Henry
é consumido pelo fogo. Parece que Também na seara da memória se insere resenha
o momento exige que exercitemos a da biografia de Silvina Ocampo, lançada em língua Secretário da Casa Civil
André Wilson de Queiroz Campos
memória, lugar no qual reside boa parte espanhola pela escritora Mariana Enriquez. Mas de
das nossas questões enquanto povo forma diferente: Silvina sempre fora ofuscada por COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
e manancial para nossas discussões. Nesta edição, figuras próximas (Bioy Casares, Victoria Ocampo, e Presidente
Ricardo Lísias percorre os caminhos da prosa brasileira Jorge Luis Borges) e a biografia atualiza sua imagem ao Ricardo Leitão
feita sobre e sob a ditadura. Um panorama que aborda mostrar sua importância e autonomia. Diretor de Produção e Edição
nossa produção por meio de suas estratégias narrativas Noutra via, abordamos Machado de Assis – falecido Ricardo Melo
e contribuições ao debate público. A violência que o há 110 anos – em dois momentos: na entrevista com os Diretor Administrativo e Financeiro
regime militar pautou na nossa sociedade ainda não tradutores da recente edição dos seus contos completos Bráulio Meneses
acabou e Lísias nos mostra isso por meio do entrelace no exterior; e na resenha de Machado de Assis, criminalista,
de literatura, pesquisa e memória. Ainda nos deixa um que aborda o lado jurídico da obra de Machado.
relato pessoal de um parente torturado pela ditadura Além de diversos textos sobre obras de Cidinha da
apenas por ter alimentado, de forma inocente, Silva, Felipe Charbel, Raquel Salas Rivera e outros,
Uma publicação da Cepe Editora
um perseguido político. nesta edição o leitor ganha um livro de ficções curtas Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Alinhado com esse movimento, um perfil de escrito por Hermilo Borba Filho com ilustrações de Zé Pernambuco – CEP: 50100-140
Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da USP. Cláudio. Um diálogo entre texto e imagem a partir da Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
Ela comenta seus atuais projetos – todos vinculados à experiência de estar e de pertencer a um lugar, com
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
resistência em um país marcado pela proximidade com o seus vocabulários e ritmos próprios. Luiz Arrais
autoritarismo. No mesmo esteio, João Silvério Trevisan
EDITOR
fala do esforço e intenções por trás do agora reeditado Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Hana Luzia, Janio Santos, Luísa Vasconcelos
e Maria Júlia Moreira
Flora Thomson- Mariana Sanchez, Ricardo Lísias, TRATAMENTO DE IMAGEM
DeVeaux, tradutora, tradutora e jornalista escritor e Agelson Soares
escritora e doutoranda pesquisador, autor REVISÃO
na Brown University de A vista particular Maria Helena Pôrto
COLUNISTAS
Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Adelaide Ivánova, poeta, tradutora e fotógrafa, autora de O martelo; Bernardo Brayner, escritor, autor de Nunca vi as margens e Sóstenes Fernandes
do rio Ybbs; Fabio Seixo, fotógrafo e videomaker; Ismar Tirelli Neto, jornalista e tradutor; João Silvério Trevisan, escritor MARKETING E VENDAS
e pesquisador, autor de Pai, pai; Laura Erber, poeta, professora (Unirio) e artista visual, autora de A retornada; Leonardo Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
Nascimento, jornalista e mestrando em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ); Priscila Pasko, jornalista, escritora e editora do E-mail: marketing@cepe.com.br
blog Veredas (nonada.com.br/category/veredas) Telefone: (81) 3183.2756
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BASTIDORES

Viagem aos
HANA LUZIA

subterrâneos
eróticos do país
O Brasil é o país que mais
mata pessoas LGBTQ+.
A reedição ampliada de
Devassos no paraíso permite
ver a trajetória histórica de
desejos tão marginalizados

no tecido mesmo da experiência humana, vertida


João Silvério Trevisan em mitologias religiosas ou não.
Se não existe o paraíso, tampouco existe a de-
Agora que acaba de sair a 4ª edição de Devassos no vassidão como conceito fechado em si: ele nasce
paraíso, muita gente ainda me pergunta por que e se desdobra carregado de significados morais,
lhe dei esse nome, ao abordar práticas sexuais frequentemente condenatórios. O Marquês de Sade
dissidentes no Brasil, desde a colônia até os dias de era devasso sem questionamentos. Utilizava sua
hoje. Durante as pesquisas iniciais, eu me deparei obra literária mais para embasar a crítica à moral e à
com essa expressão num livrinho sobre viajantes sociedade do que para tentar se pautar por ela. Um
estrangeiros no Brasil, cujo autor de cunho con- autêntico devasso como Sade não perderia tempo
servador e tom indignado tachava os índios no em se definir – e, por extensão, definir a sua “de-
período colonial de “devassos no paraíso”. Segun- vassidão” para determinar o que é permitido ou não.
do ele, essa seria a percepção dos colonizadores Mas, também aqui, há uma quimera impressa nessa
e missionários cristãos ao se espantarem com a “totalidade” que a devassidão pressupõe. Afinal, a
falta de pudor dos “gentios”. Não apenas o fato de atualização absoluta da devassidão seria a morte.
homens e mulheres andarem nus, mas sobretudo O que de fato se pode acompanhar em Devassos no
suas práticas sexuais – inclusive entre homens – na paraíso é a trajetória histórica do desejo à margem tal
contramãos das severas restrições do cristianismo como tem vicejado no Brasil. Ou seja, está se falando
europeu. Tomados de escândalo, teriam juntado daquele tipo de desejo renegado e escondido. Não
num paradoxo esses dois componentes inconci- por acaso, ao se referir a ele nossa língua criou os
liáveis: a devassidão da carne e o pleno paraíso – mais diversos vocábulos pejorativos, que habitam
no caso, terrestre. Ao me apropriar e ressignificar o dia a dia, sempre que se quer ofender ou menos-
essa expressão, entrevi nela um aspecto irônico prezar alguém. Para atravessar o obscuro território
(ou mesmo transgressor) que poderia ser aplicado das margens do desejo foi preciso meter a mão na
a qualquer população que divergisse da norma massa daquela sombra que habita a alma brasileira.
heterossexual, como no caso de LGBTs. O nome Estrangeiros, que por aqui experienciaram a prática
me parece adequado ainda hoje: o tal escândalo homossexual em suas mais diversas dimensões,
continua ativado no entorno social e moral desses deixaram testemunhos eloquentes dessa sombra.
“desviantes sexuais”. Do mesmo modo, mantém- Basta lembrar Tulio Carella, em solo pernambu-
-se atual o paradoxo que ainda escandaliza quem cano, que parecia viver eroticamente enfeitiçado
se pauta pela heteronormatividade e classifica pelos negros. Ou evocar Roger Casement (novidade
as dissidências como desregramentos da ordem nesta 4ª edição) que percorreu o território brasileiro
moral que lhes parece natural, apesar de imposta anotando dimensões precisas do órgão genital de
e mantida a todo custo. Persistem as calúnias, a seus jovens parceiros. Tanto num caso como no
perseguição e a violência. Assim o comprovam os outro a sombra nacional casou-se com os demô-
sermões condenatórios de muitos líderes religiosos nios interiores desses personagens e decretou seus
e também as estatísticas de ataques e assassinatos destinos trágicos. Carella foi torturado e expulso do
cotidianos de pessoas LGBTs. Brasil, num exemplo de confusão entre subversão
Antes de tudo, duas perguntas se impõem sobre política e sexual. No caso de Casement, seu enfor-
o que seria devassidão e o que seria paraíso, como camento como espião irlandês foi catapultado pelas
componentes do “paradoxo moral” apontado. As evidências de sua devassidão brasileira. Ambos
respostas não podem prescindir do sentido irôni- exemplificam aquilo que Devassos no paraíso busca
co aí implicado. O paraíso é uma quimera criada revelar: a narrativa do desejo que a historiografia
pelo imaginário para barrar sua angústia perante oficial brasileira nunca ousou contar, pelo simples
a morte, ou seja, o Nada que se segue à vida e a fato de ignorar os mais legítimos demônios que
contamina retroativamente. Nesse caso, haveria habitam os subterrâneos da nação.
uma salvação totalmente atualizada, eternizando
a esperança e, consequentemente, a fé que a pres-
supõe. No entanto, o sonho do paraíso – que eu O LIVRO
chamei de quimera – precisa se manter enquanto Devassos no paraíso
utopia para que a esperança e a fé persistam. Se Editora Objetiva
existisse o paraíso real não seria necessária a espe- Páginas 744
rança, que mantêm viva a fé. Afinal, seriam ambas Preço R$ 74,90
dispensáveis se a eternidade existisse na perfeição
paradisíaca. Em resumo, convém manter viva a
quimera, até o ponto de instilar a crença paradisíaca
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RESENHA

Uma escritora Escondida nos galhos de um cedro do quintal en-


quanto a família dorme a sesta, encafurnada nas
dependências dos empregados, oculta detrás de um

disfarçada
par de óculos de gatinho, frequentemente tampando
o rosto com as mãos nas fotografias. Difícil desvendar
um personagem tão esfíngico e brumoso como a
escritora argentina Silvina Ocampo, desafio que sua
conterrânea Mariana Enríquez – do livro de contos As

de si mesma
coisas que perdemos no fogo (Intrínseca, 2017) – encarou
em La hermana menor: un retrato de Silvina Ocampo. Publi-
cado em 2014 pela editora da universidade chilena
Diego Portales, o livro acaba de ser reeditado pela
Anagrama e é a primeira obra biográfica sobre esta
Livro traça um poliédrico que é considerada pela crítica e a academia a maior
contista argentina de todos os tempos, a despeito de

retrato da insondável autora seu quase total desconhecimento no Brasil.


“Vejo uma pessoa disfarçada de si mesma”, escre-

argentina Silvina Ocampo


vera Victoria Ocampo na revista Sur em 1937, rese-
nhando o livro de estreia de sua irmã, Viaje olvidado.
“Sempre brinquei de ser o que não sou”, diz a autora
em seu último livro, Cornelia frente al espejo. Silvina era
Mariana Sanchez um palimpsesto de máscaras. Diante da inviabilidade
de obter um único rosto verdadeiro, Mariana – que
além de escritora é jornalista e subeditora do jornal
Página/12 – recorre a uma multiplicidade de fontes,
testemunhos escritos e de pessoas vivas para escrever
este perfil, que ela prefere chamar de retrato. “Uma
biografia tem certa pretensão de história definitiva,
e é impossível conhecer alguém completamente,
menos ainda Silvina, que tinha a intenção mani-
festa de permanecer misteriosa. Eu queria oferecer
justamente um retrato da autora, vozes contradi-
tórias, uma aproximação poliédrica. Com certeza
me escaparam muitas questões, mas acho que isso
é parte de sua personalidade: era elusiva. Fazer um
perfil elusivo parece-me uma maneira de ser fiel a
ela”, explica.

A ETCETERA DA FAMÍLIA
Sexta filha de Ramona Aguirre e Manuel Ocampo,
aristocrática família portenha, Silvina Inocencia
Ocampo nasceu e morreu em Buenos Aires (1903-
1993). Sendo a caçula – “la hermana menor” do título
–, cresceu sentindo-se a “etcetera da família”, como
costumava dizer, mas também com maior liberdade
que sua irmã mais velha Victoria (1890-1979). E
aqui entra uma das três figuras que, indiretamente,
acabaram por ensombrar Silvina. Victoria Ocampo
foi, junto com Eva Perón, uma das mulheres-cha-
ve da cultura e sociedade argentina do século XX,
diretora do Teatro Colón, fundadora das lendárias
revista e editora Sur e a única de seu país a assistir
ao Julgamento de Nuremberg. Victoria era popular,
midiática, política. Silvina era tímida, antissocial,
reclusa, tinha fobia de sua imagem e preferia circular
em rodas íntimas. Na infância, é educada em casa,
por preceptoras inglesas. Aos 26 anos, viaja a Paris,
onde aluga um studio na rive gauche e se torna aluna
de Giorgio De Chirico, precursor do Surrealismo, e
de Fernand Léger, mestre do Cubismo. Conta seu
grupinho de amigos – entre eles Xul Solar e Antonio
Berni – que era comum ela desaparecer por dias
pelas ruas parisienses sem dar notícias. Segundo o
pintor Horacio Butler, Silvina tinha “aquele encanto
misterioso, quase reticente, das mulheres debruçadas
sobre si próprias, ensimesmadas na descoberta de
sua própria natureza”.
Em 1940, casa-se com Adolfo Bioy Casares, 11
anos mais jovem e com quem já vivia há cinco. Eis a
segunda figura que a ofuscaria. A terceira seria Jorge
Luis Borges, amigo de uma vida toda e que, por sua
vez, também acabaria ofuscando Bioy. Apesar de sua
patente misoginia – dizia que “nem Virginia Woolf se
salvava” –, Borges admirava Silvina como escritora e
dedicou a ela um de seus textos fundamentais, Pierre
Menard, autor do Quixote.
Estar no centro da intelectualidade argentina e,
ao mesmo tempo, ocupar o espaço periférico que
sempre ocupou é um dos contrassensos que mar-
caram a trajetória de Silvina. Para Mariana Enríquez,
porém, esta posição talvez tenha sido mais complexa.
“Quem a admirava decreta que foi ela quem escolheu
este segundo plano. Seus contos são profundamente
estranhos, contemporâneos, difíceis de se rotular
– alguns experimentam com gênero, como aquele
em que o narrador é um trapo que se transforma em
‘trapa’. Acho que o lugar secreto em que ela ficou, e
onde certamente estava confortável, permitiu a ela
essa liberdade de escrever contos radicais”. No livro
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REPRODUÇÃO

Rodeada por móveis lascados, baratas pelas paredes, quartos


fechados. Às visitas que pediam para adoçar o café,
Silvina dizia que as formigas haviam comido todo

nomes famosos, o açúcar. Vivia em outro mundo. E só uma coisa,


além de Bioy, realmente lhe importava: escrever.

Silvina talvez tenha ENFANT TERRIBLE


Em La hermana menor, Mariana Enríquez analisa a

escolhido ficar em
produção literária de Silvina Ocampo, do primeiro
livro, Viaje olvidado (1937) ao último, Cornelia frente al
espejo (1988). Abundam contos sobre infanticídios,

segundo plano para


incestos, violações. A casa aparece como refúgio e
como o mais perigoso dos territórios, há situações
realistas que enveredam para o grotesco fantástico,

escrever seus enfants terribles que escandalizam pela crueldade de suas


travessuras – como a própria Silvina criança, que se
escondia debaixo da mesa de passar roupa e agarrava

contos radicais os pés da empregada cega, deixando-a atordoada.


“Seus contos são puro risco, totalmente loucos.
Li quando era menina e não entendi muito, mas me
de Mariana há diversos depoimentos que corroboram inquietaram profundamente. Li de novo, já adulta,
essa espécie de opacidade voluntária de Silvina, seja e me assombraram seu humor obscuro, como se
por pudor, seja pela astúcia de preservar a liberdade divertia com suas perversidades”, conta Enríquez.
de sua vida íntima e criativa. Para ela, Silvina é a maior de todos os grandes con-
tistas argentinos, “ninguém chegou mais longe”.
“ADOLFITO, POR FAVOR, MENOS” Por outro lado, avalia, sua poesia é tão diferente dos
La hermana menor também escrutina certos rumores em contos que parece ditada por outra personalidade,
torno de Silvina. Um deles, francamente escandaloso, “proveniente de uma mulher que é mais ordenada,
é sobre Silvina ter sido amante de Marta Casares, de menos despenteada, estranha porém correta”, diz.
quem fora amiga antes de ser nora. “Você precisa Autobiografía de Irene distancia-se formalmente de
conhecer a mais inteligente dos Ocampo”, teria dito seu livro de estreia, mais livre e insano, e embora
ao apresentá-la ao filho Bioy. O boato é ventilado em carregue algumas de suas obsessões – o tema do
Historia secreta de los homosexuales en Buenos Aires, ensaio duplo, a crueldade, a premonição –, traz contos
do sociólogo Juan José Sebreli. A lesbianidade de acabados e cerebrais, fortemente influenciado pelo
Silvina também é conjecturada por sua amizade modelo narrativo borgeano. Em 1959 sai La furia,
com Alejandra Pizarnik, a quem dedicou seu livro “mais ocampiano de seus livros de contos”, na opi-
Ejércitos de la oscuridad. Em 31 de janeiro de 1972, meses nião de Mariana Enríquez. A coleção inclui histórias
antes de suicidar-se, Pizarnik lhe escreve em carta: emblemáticas, como La casa de azúcar, o preferido
“Queria que estivesses nua, ao meu lado, lendo seus de Cortázar, sobre a influência sinistra que a antiga
poemas em viva voz. (...) Te beijo como sei e à ma- dona de uma casa exerce, metafisicamente, na nova
neira russa (com variações francesas e da Córsega). inquilina; Mimoso, sobre o ciúme do marido quando a
(...) Silvina, cure-me, não faça com que eu tenha esposa decide embalsamar seu adorado cão morto,
de morrer já”. As fontes entrevistadas por Mariana conto que Borges detestava; La boda, em que uma
dão versões desencontradas sobre o romance: para criança envenena a vizinha colocando uma aranha
a maioria, Alejandra nutria pela amiga um insistente em seu coque no dia de seu casamento; Las fotografías,
amor romântico não correspondido, mas para o poeta que descreve, numa chave kitsch e cruel, uma sessão
Fernando Noy, que naquele tempo era um grude com de fotos na festa de aniversário de uma adolescente
Alejandra, a aventura não só foi real como Pizarnik paralítica; e Voz en el teléfono, em que um menino
teria se matado por amor. Impossível comprová-lo. pirômano castiga sua mãe enquanto ela fofoca sobre
Outro rumor: em viagem com Bioy em 1949, Sil- lingerie com as amigas na sala de estar.
vina levara sua sobrinha Genca, com quem teriam Silvina, Borges e Bioy jantaram juntos quase todas
vivido um trio amoroso. Genca – que fora aman- as noites de suas vidas, discutiram literatura com pai-
te de Bioy por décadas – era a sobrinha preferida xão, leram-se e influenciaram-se mutuamente, mas,
de Victoria, que teria achado aquilo um desaforo e ao contrário deles, ela tinha melhor ouvido e soube
rompido com a irmã. O caso é ficcionalizado no ro- como poucos emular a fala coloquial rio-platense,
mance Testimonio sobre Mariana, de Elena Garro, esposa gerando um efeito de oralidade que contrastava com
de Octavio Paz e outra das numerosas amantes de a estranheza sintática de suas “frases com torcicolo”,
Bioy. Elena, aliás, protagoniza uma anedota contada como apontou Victoria Ocampo. “Onde se metia
por Mariana: antes de viajar à França, a mexicana essa mulher, com quem falava para dominar com
despachou seus quatro gatos num voo a Buenos tanta ironia e precisão os lugares comuns, a conversa
Aires para que Bioy os cuidasse. Silvina, que amava irreflexiva, a fala de uma classe social que não era
cães mas detestava gatos, mandou todos a um lar de sua e com a qual pouco convivia na vida cotidiana?”,
animais, para desespero de Elena. pergunta-se Enríquez. Na definição de J. R. Wilcock,
Há muitas passagens sobre a intimidade do casal. com quem Silvina escreveu a peça Los traidores em
Certa vez, ao entrar no quarto de Bioy, Silvina o flagra 1956, “Borges representava o gênio total, ocioso e
aos beijos com uma mulher e diz apenas: “Adolfito, preguiçoso; Bioy, a inteligência ativa; Silvina era
por favor, menos”. Embora tivessem um casamento entre eles a sibila, a maga que lhes recordava, em
aberto – a única filha do casal, por exemplo, foi ge- cada movimento e em cada palavra, a singularidade
rada por uma amante –, ele sempre explicitou seus e o mistério do mundo”.
casos, enquanto ela era discreta. Ao contrário de O interesse da crítica e do público veio tarde,
Adolfo, Silvina nunca manteve um diário, o que torna após sua morte, com a reedição de seus livros pela
ainda mais difícil penetrar em seu mundo singular. editora Emecé. Para além do machismo da época
“Sou como os animais, escondo o que mais gosto”, que suplantou tantos projetos literários de escri-
dizia. Mariana Enríquez confronta versões, como a toras, Noemí Ulla, autora de Encuentros con Silvina
de Jovita Iglesias, governanta da família por meio Ocampo, atribui seu ofuscamento a certo precon-
século e autora do livro Los Bioy, que via a infideli- ceito ideológico, pois até meados da década de
dade de Casares como algo perverso, e a de Ernesto 1980 na faculdade de letras só se lia ou estudava
Montequin, responsável pelo arquivo de Silvina, ‘literatura comprometida, em termos sartrianos’.
para quem é injusto considerá-la vítima. “Ela teve “Nem Silvina nem Borges eram lidos. Era preciso
uma vida amorosa bastante plena, eles tinham uma ser muito corajoso para ler autores da ‘oligarquia’ e
relação muito complexa e Silvina a transformou em antiperonistas, sendo a estudante progressista que
literatura. A relação com Bioy podia fazê-la sofrer eu era”, lembra.
mas também a inspirava”. No Brasil, o nome de Silvina Ocampo é conheci-
Silvina era excêntrica. Apesar de sua condição do quase que unicamente pela Antologia da literatura
aristocrática, era austera, comia mal e usava al- fantástica, que organizou com Borges e Bioy (Cosac
pargatas vermelhas furadas no dedão, remendadas Naify, 2013). No ano que vem, por fim, La furia de-
com band-aid. O apartamento onde viveu com Bioy verá ser editado pela Companhia das Letras. Já era
na Rua Posadas, com seus 22 cômodos e 900 metros hora dessa endemoniada irmã caçula deixar de se
quadrados na Recoleta, tinha manchas de umidade, esconder de nós.
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RESENHA

A encruzilhada
como uma
escolha literária
A escrita exúnica de Cidinha
da Silva nas crônicas de
O homem azul do deserto
Priscila Pasko

Quem me introduziu à obra de Cidinha da Silva (fotos) a leitura, aliás, é difícil não fazer uma analogia entre
foi Exu. O Exu Tranca Rua, para ser mais exata. Era a o dito pássaro e o leitor, que, distraído no texto fluido
primeira vez que me deparava com a citação de uma de Cidinha, pode se espatifar a qualquer momento na
entidade que eu conhecia, mas que era mantida fora interpretação perspicaz da autora sobre o cotidiano.
das referências filosóficas – pelo menos das ociden- Vestígio semelhante pode ser identificado na crônica
tais. Dizia a epígrafe de Cada tridente em seu lugar (2006), Iku e o menino que furtava livros. Nesta, o orixá Iku (“mor-
livro de estreia da autora: “Ocê pensa que caminho te”, em iorubá) é a advogada de defesa de um garoto
e estrada é tudo a mesma coisa, mas tá errado, mi- de 19 anos, que está sendo julgado por ter roubado
nha fia. A estrada é uma coisa, o caminho é outra. A livros de uma loja no shopping. A crônica refere-se a
estrada é uma via, uma picada no mato, um cortado um fato ocorrido em 2014, em Salvador. Nos sites de
no chão e é muita. O caminho é quando ocê escolhe notícias é dito que os livros serviriam para o rapaz
uma estrada pra seguir e chegar no seu lugar” (Exu estudar, mas as linhas enfatizam, maledicentes, que o
Tranca Rua). gênero dos títulos era de ficção científica. Argumenta
Oluwatoyin Adepoju, na Oxford encyclopedia or african Iku, no simulado julgamento: “Se alguém rouba um
thought 1, lembra que o “Exu é descrito na literatu- pão francês é porque tem fome, mas se rouba um
ra clássica como a personificação da coexistência chocolate ou sorvete é porque tem febre de riqueza e
das contradições”. Posicionado nas encruzilhadas, luxo? E Iku mesma responde: é que o furto praticado
o Exu seria a integração de contrários, convergência pelos pequenos não pode incluir o sonho e a delícia”.
de caminhos que partem de diversas direções. É o Outro momento em que o gênero se mescla é na
antagônico, mas também o que complementa. Ao crônica, que classifico como afrofuturista, A menina e
passo que fui acompanhando os livros de crônicas a bicicleta. A história se passa no ano de 2114, quando
lançados por Cidinha, percebi o quanto essa linha pai e filha analisam, em um museu, objetos usados
filosófica contrastante se faz presente em sua obra. no passado. Caminham pela seção de diversões até
Nela, a coisa é, mas não apenas. E, na possibilidade chegarem à de tortura, onde a tranca de uma bicicleta
de ser muitas, não se descarta defini-la como única. é exibida. Não compreendem, pai e filha, o que a peça
O gênero literário de O homem azul do deserto (Malê), li- faz na seção. A descrição do objeto, no entanto, explica
vro de crônicas mais recente de Cidinha, o 12° de sua a utilidade, fazendo o leitor, pássaro desavisado, cho-
carreira, é um exemplo dessa reflexão. Nele, crônica e car-se contra o vidro do aparente conforto da leitura.
conto dividem espaço na ficha catalográfica, provocan- O homem azul do deserto nos apresenta a diluição das
do certa desorientação no leitor frente ao hibridismo do fronteiras, a encruzilhada dos sentidos. É o ponto
texto. Nesse sentido, escolho minha vereda e parto em onde a ironia, a delicadeza, o humor e a acidez se
direção à crônica para discorrer sobre o livro. É ela que encontram para logo tomarem direções opostas. Essa
desponta no percurso. Isso porque predominam nos mesma ambiguidade, que pode ser entendida como
textos a observação pessoal, as experiências da autora um dos méritos de Cidinha, é, também, um dos gran-
no cotidiano, o relato de diálogos fisgados ao acaso ou des desafios lançados ao leitor. E, talvez, resida aí o
mesmo a linguagem supostamente descompromissada poder de atração, não apenas de O homem azul, mas do
que nos direciona à reflexão. conjunto da obra de Cidinha: reconhecer na loucura
Mesmo assim, percebe-se que os elementos fic- a lucidez, deixar a certeza em dúvida, construir o
cionais estão inseridos na escrita de Cidinha. Porém, novo – inclusive a linguagem – a partir do passado.
como uma extensão narrativa que não chega a desviar Assim nos mostra Exu, que demonstra a “limitação
de sua origem, porém, permanece no acostamento. cognitiva (do leitor) na percepção dos fenômenos
A janela e o passarinho, que abre o livro, revela essas apenas da perspectiva à qual está exposto, excluindo
características. Acompanhamos a reação e os anseios outras possibilidades”. 2
íntimos de um motoboy ao se deparar com um pássaro É de se lamentar que uma das poucas cronistas –
morto. O animal confunde a janela envidraçada de incluindo homens – que se propõe a refletir e a lançar
um prédio com a extensão do céu e cai desfalecido um olhar contemporâneo dos meios de comunicação,
sobre a calçada. Inicia-se, então, um dilema entre o sob a perspectiva das relações raciais e de gênero,
motoboy e o suposto viúvo da falecida passarinha, in- ainda não seja conhecida do grande público. Basta
consolável com a perda de sua companheira. Durante voltarmos a obras, como Racismo no Brasil e afetos correlatos
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

FOTOS: PÂMELA ÍRIS / DIVULGAÇÃO

(Conversê Edições, 2013), Baú de miudezas, sol e chuva:


crônicas (Mazza Edições, 2014) ou ainda Sobre-viventes!
(Pallas, 2016), para perceber o valioso material que
Cidinha construiu pela escrita da autora. Que o leitor (o leigo, claro)
investigue os significados de peji, bodô, Obaluaê, xirê,
atotô, ronkó, obegê. Que se debata na ausência de nota
Cidinha construiu a respeito do jornalismo, das no-
velas, das séries e programas de entretenimento da
televisão brasileira. O factual é suspenso, enquanto
uma obra rica de rodapé como muleta. Que busque referências para
compreender a analogia entre o cobrador de O homem
que costurava, Hampâté Bâ e Kadja.
os elementos narrativos usados por Cidinha atraem
o leitor para um exame atento daquilo que, de certa de sentidos ao Na concepção de mundo da cronista, os orixás não
apenas vivem em nós, como também interferem

incorporar as
forma, é naturalizado. e geram novas atribuições de sentido. Antes subs-
No tocante ao recorte racial, Cidinha expõe em sua tantivos próprios (Oxum, Exu, Ogum), os nomes
análise cirúrgica as armadilhas da cobertura jornalís- são adjetivados (oxúnico, exúnico, ogúnico), tornando-se

religiosidades de
tica que insiste em reforçar estereótipos das famílias inclusive verbos (exuzilhar). A crônica Ora iê iê ginga!, é
negras. Enquadramentos dramáticos, uma história de um exemplo. No texto, Cidinha faz uma ode à ginga,
superação, algumas lágrimas que possam colaborar movimento da capoeira – referência que pode ser
para o roteiro (sugiro leitura de O dia em que William
Bonner chorou, do livro Sobre-viventes!).
Em O homem azul do deserto, essa crítica aparece no
matriz africana a lida, também, como metáfora da habilidade em lidar
com a vida. Apesar de ser definida por alguns como
exúnica, a autora faz sua defesa e qualifica a ginga
texto O gol de Maurício Mauro, em que uma jornalista vai
à casa da mulher para perguntar sobre o gol feito pelo
filho, um rapaz negro de 19 anos de idade. Quer saber
suas narrativas como oxúnica. Lembra, assim, o mito de que foi a
ginga de Oxum que trouxe Ogum de volta aos seus,
após se exilar na floresta por ter decepado a cabeça
se está emocionada. A mãe responde serena, dizendo roubar a cena? Situação em que a escritora Ana Maria de inocentes. É a estética da ressonância dos mitos
que sim. “Insatisfeita, a entrevistadora tentava extrair Gonçalves, ao contrário do que desejava o mediador, manifestada no texto.
comentários sobre a provável trajetória de labuta e “disse o que quis, o que havia planejado dizer, e não Além da crônica, o ensaio, a poesia, a ficção infan-
dificuldades das famílias negras daquele porte (...) foi nada do que fora discursado pelo mediador” (ele tojuvenil, a dramaturgia e o conto também integram a
um conteúdo de superação vestiria bem a matéria, havia aberto a mesa com a frase de efeito “a carne produção de Cidinha. Mas é na crônica que a mineira
mas a entrevistada não colaborava”. E Cidinha en- mais barata do mercado é a carne negra”, bordão que apresenta um trabalho bastante singular no cenário
cerra, falando da mãe do jogador: “Ela tinha tanto seria repetido mais de uma vez). contemporâneo brasileiro. Mereceria maior atenção.
viço guardado, rizoma espetacular de alegria, que Por outro lado, como é característico nas crônicas De seus trabalhos mais políticos (#Parem de nos matar!/
não haveria lágrima forçada por jornalista formada de Cidinha, a memória e a valorização dos artistas e Ijumaa,2016), às obras de ficção mais poéticas (Os
pelo vício de destacar o sofrimento dos negros capaz pensadores negros estão presentes em O homem azul do nove pentes d’África/Mazza Edições 2009), a autora transita
de macular aquele sorriso”. deserto (Elza Soares, a voz e a máquina, A cadeira de Miss Davis). por muitas searas, sem necessidade de se prender a
O espaço ocupado por mulheres e homens negros Assim como em Ainda Melodia. Para sempre Melodia!: “Que nenhuma delas.
na literatura também não foge do olhar de Cidinha. bom quando um artista se vai e as pessoas reveren- Ao invés dessas marcas aprisionarem Cidinha em
A fala do entrevistador, durante uma mesa na Flip, ciam, lembram-se dele, sabem quem foi. Agostinho um nicho, elas, pelo contrário, expandem a sua in-
que destaca a “necessidade de criação de um câno- dos Santos, Johnny Alf, Antonio Pompeo, Itamar terpretação do mundo, dilatando o que se considera
ne extraoficial, um cânone B” para as autorias não Assumpção não experimentaram essa reverência”, como de autoria negra. Das caixas de papelão que
hegemônicas, está presente na crônica Vozes da biblio- lamenta a escritora, mencionando, em seguida, os revelam o peso do desconhecimento (O homem da
diversidade na Flip e em outras festividades literárias. Aqui, um “esquecidos” da black music Lady Zu, Cláudio Zóli, mudança), das cenas fugazes da rua (One people, one
texto mais opinativo, Cidinha contesta, entre outros Cassiano, Hildon. love), da criatividade linguística do povo (Absurdada),
apontamentos, o lugar destinado – e, por vezes, pré- Para além das questões que abarcam a fusão de Cidinha cria, a seu modo, um microcosmo dentro
determinado – a esses escritores. “Não interessa um gênero literário e os temas abordados, Cidinha cons- de um segundo, no interior de uma ínfima medida
cânone específico para a literatura de autoria negra e truiu no decorrer dos anos uma obra composta por um de tempo que lhe seja ofertada. Pois, como agora já
outras também massacradas”. Para a cronista, inte- rico campo semântico. Essa constelação linguística sabemos, a estrada é uma coisa, o caminho é outra.
ressa, sim, pluralizá-lo. presente nos textos revela, além de sua nítida relação E o caminho, Cidinha parece já ter escolhido o seu.
Textos como esses salientam o desconforto de jor- com as religiões de matriz africana, sua vontade em
nalistas, mediadores e especialistas do ramo ao dividir partilhar do princípio tradicional africano de que a 1. A tradução é informal e foi feita para esta matéria
espaço com quem anda à margem dos grandes círcu- vida espiritual faz parte do dia a dia. Em O homem azul pelo pesquisador Adriano Migliavacca.
los literários. Isso fica evidente no relato contido na do deserto, saudações, nomes de orixás e expressões em 2. Aspas do verbete citado do Oxford encyclopedia or
crônica Pode uma escritora negra falar sem que o mediador tente iorubá desfilam com naturalidade e sem didatismo african thought.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

ENTREVISTA
Margaret Jull Costa e Robin Patterson

As estratégias de
tradução diante do
nosso grande Bruxo
Dois tradutores verteram ao inglês todos os contos
publicados por Machado de Assis em livros. Aqui, eles
comentam os prazeres e percalços desse elogiado trabalho
FOTO: DIVULGAÇÃO

Como foi o primeiro contato de cada um


com Machado e com o Brasil?
Margaret: O meu primeiro contato com
Machado foi na universidade, e foi amor à
primeira vista! Mas tive que esperar mais
de 30 anos para traduzir a sua obra. Só
visitei o Brasil uma vez e há muitos anos,
mas é verdade que o meu amor pela língua
portuguesa começou com Orfeu Negro, que vi
quando tinha 18 anos.
Robin: Meu primeiro contato foi com Dom
Casmurro, que li há 10 anos. Um dos livros
mais maravilhosos que já li. A essa altura, já
conhecia bem o Rio de Janeiro, mas Machado
me abriu os olhos para aspectos do Rio e do
Brasil que ultrapassam a questão visual.

Margaret já traduziu um sem-fim de vozes


lusitanas, e Robin já é íntimo tanto de Lúcio
Cardoso quanto de Luandino Vieira. Como
caracterizariam a experiência de traduzir
Machado em relação aos outros autores?
Margaret: É um enorme privilégio poder
traduzir Machado, mas não faço comparações
entre autores. São todos diferentes e todos
têm os seus prazeres e as suas dificuldades.
Vocês dois têm trajetórias bastante Robin: Senti uma enorme confiança
Entrevista a Flora Thomson-DeVeaux diferentes. Poderiam falar um pouco em relação a Machado. Pode parecer
sobre como chegaram à tradução e como intimidador traduzir uma figura literária tão
O primeiro conto de Machado de Assis publi- tem sido a vivência com a profissão? grande, mas há um certo conforto em saber
cado em língua inglesa veio à luz pelas mãos de Margaret: Estudei espanhol e português na que você simplesmente precisa deixar que
Isaac Goldberg (1887-1938), crítico e professor Universidade de Bristol (Inglaterra). Fiz a ele lhe mostre o caminho.
de Harvard, em 1917. Dezenas de traduções de minha primeira tradução literária em 1984
contos machadianos se sucederam ao longo do – um pequeno ensaio de Gabriel García Miraram em alguma referência da
século, mas focaram sobretudo nas coletâneas Márquez – e, em 1987, fiz a tradução de um literatura anglófona para levar esses
Várias histórias, Páginas recolhidas, e Relíquias da Casa romance do escritor espanhol, Álvaro Pombo. contos para o inglês? 
Velha. Só neste ano, leitores anglófonos puderam A partir de então, não parei de traduzir, e Margaret: Sou leitora da literatura anglófona
degustar a totalidade dos contos publicados tenho tido muita sorte com os autores que de toda a vida, e esta experiência e o amor
em livro (76 de um total de quase 200, a maior me deram para traduzir: Fernando Pessoa, pelo meu idioma materno formam a base
parte publicados de outras formas), graças aos Eça de Queirós, José Saramago, Javier Marías, de todas as minhas traduções. Mas, no caso
tradutores Margaret Jull Costa e Robin Patterson, e, mais recentemente, as poetas Sophia de de Machado, talvez tenha tido em mente
responsáveis pelo volume The collected stories of Mello Breyner Andresen e Ana Luísa Amaral. escritores lúdicos como Laurence Sterne,
Machado de Assis (Liveright Publishing Corpora- Robin: Cheguei um pouco tarde à tradução mas só subconscientemente.
tion). Já que estou terminando minha tradução literária, após uma primeira carreira Robin: Acho que ambos sentimos ecos
anotada das Memórias póstumas de Brás Cubas (a como advogado que me levou a viajar de autores da língua inglesa que nos são
quarta em língua inglesa), não quis perder a frequentemente ao Brasil e aprender a língua. familiares, e claro há momentos quando
oportunidade de interrogar os dois colegas sobre Em 2012, participei de uma masterclass de Machado faz alusões específica a todo tipo
suas estratégias, seus métodos, e sua relação tradução literária ministrada por Margaret e de autores, incluindo aí os autores de língua
com o mestre e com o país. tudo se desenvolveu a partir daí. inglesa – lembro que estava numa releitura
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

Margaret: “Não Robin: “Pode


diria que Machado parecer intimidador
tem armadilhas traduzir uma figura
linguísticas, como Machado,
diria, antes, que mas é preciso
foi um estilista deixar que ele
consumado” mostre o caminho”
de grandes passagens de Paraíso um personagem pergunta para leitura “ultracuidadosa” da tona na resenha da tradução com regiões particulares e
perdido, de Milton, apenas para outro se ele viu um “passarinho tradução revela muitas de de vocês no New York Times. épocas (por exemplo “the
traduzir a referência de um verde”, porque parece feliz. suas armadilhas linguísticas. Lá, o resenhista comenta “his antebellum American South”*),
trecho de Machado. Já que essa expressão não Depois de traduzir Iaiá Garcia, refusal to write more explicitly que seria problemático de
existe no inglês, na tradução Robert Scott-Buccleuch disse about slavery”. Como vocês traduzir. O mesmo ocorre com
Como funcionou o processo de ele pergunta se o outro ganhou que Machado passava para o viram isso no processo o diálogo dos escravos nos
uma tradução em dupla? Além na loteria. Mas em vez de inglês sem muita dificuldade, de traduzir os contos? A contos. Usamos uma gramática
do diálogo entre vocês dois, dizer que o sujeito está “feliz”, graças ao fato de ele ter propósito, adotaram alguma não padronizada que Machado
chegaram a cotejar outras vocês colocaram que ele anda seguido moldes europeus. Mas estratégia conjunta para lidar também usou, mas, ainda
versões dos contos que já chirpy, que é um sinônimo de na apresentação da tradução com termos como “mucama” e assim, tentando resistir a um
tinham tradução em inglês? feliz, oriundo do cantarolar de dele de Dom Casmurro, na “moleque”, e com a linguagem padrão geográfico de discurso.
Margaret: Dividimos as várias um pássaro contente. Podem década seguinte, ele diz que dos personagens escravizados? 
coleções, e depois líamos as falar sobre como contornaram o estilo do Machado é tão Margaret: É curiosa a ausência A tradução de vocês está
traduções de cada um, fazendo outras dessas expressões conciso, tão sintético, que da escravidão na obra de sendo bastante comemorada
sugestões etc., até chegar a uma idiomáticas, e se ficaram fica “virtually impossible Machado (Pai contra mãe e O caso no Brasil como uma
versão final. Agora, nem me particularmente contentes to render satisfactorily da vara são, talvez, exceções), redescoberta de Machado no
lembro muito bem quais são as ou descontentes com alguma in English”. Acham que a mas quando se considera o exterior. A trajetória da obra
minhas traduções e quais as de solução? (Ao cotejar várias diferença é apenas das fases público para quem escreveu dele em tradução para o inglês,
Robin. Preferi não ler as outras traduções, por exemplo, vi que da obra do Machado – entre – a classe média branca e no entanto, parece ser de
versões inglesas que existem. a expressão “caçador de pacas o período de Iaiá Garcia e rica – não surpreende tanto. pequenos booms de interesse
perante o Eterno”, usado para o de Dom Casmurro? Vocês É a mesma coisa na obra de (nos anos 1950, 1970, e no final
Adoraria ouvir histórias de caracterizar um tio do alienista encontraram um Machado Tolstói e Dostoiévski. Ainda dos anos 1990, por exemplo),
termos ou frases que foram Simão Bacamarte, ainda não mais convencional e anglófilo que poucas, há referências nos que depois arrefecem. No Wall
especialmente desafiadores foi traduzida de forma que ou sintético e escorregadio? contos à relação quase familiar Street Journal, Sam Sacks diz
ou curiosos, ou que lhes incluísse as pacas ou o Eterno.) Margaret: Eu não diria que entre donos e escravos. Em A que Machado ocupa um ponto
obrigaram a recorrer a fontes Margaret: Obrigada pelos Machado tem armadilhas mulher de preto, por exemplo, cego na consciência do mundo
inusitadas para decifrá-los. parabéns! Parece que a expressão linguísticas, diria, antes, que surge esta frase: “Morava só; de língua inglesa. Como vocês
Margaret: Suje-se gordo! foi algo “caçador de pacas perante o foi um estilista consumado, e tinha um escravo da mesma encaram isso?
difícil. Tivemos que procurar Eterno” vem de Gênese 10:9, é preciso traduzir as palavras idade que ele, e cria da casa Margaret: Como já disse, o
uma frase em inglês que onde a tradução inglesa é “a com muito cuidado para captar do pai – mais irmão do que mundo anglófono tem certa
comunicasse aquela combinação mighty hunter before the Lord”, o tom de voz e o significado escravo, na dedicação e no resistência aos escritores
de desdém e arrogância. Into portanto sem “pacas”. Depois de implícito (tanto quanto afeto”. Ou, como no conto Um estrangeiros, sobretudo aos
the mire não é uma frase muito muito falar e pensar e consultar possível). Quanto à sua falta homem célebre, existe uma relação escritores de outros séculos,
comum, mas acho que evoca uma amiga machadiana, de repercussão no mundo, tem que oscila entre o íntimo e o mas esperamos que esta nova
ambas as emoções. Quanto a decidimos desistir de qualquer fãs como Susan Sontag, Philip distante entre dono e escravo. tradução dos contos possa
Aurora sem dia, a nossa versão, referência bíblica e optar por Roth, Allen Ginsberg, Harold Robin: Não acho que adotamos servir como uma introdução
Much heat, little light, é também algo que tinha mais a ver com Bloom e Salman Rushdie, e os uma só “estratégia” em relação para os novos leitores às
completamente diferente, mas o personagem no conto: “an contos e romances já foram a “mucama” e a “moleque” maravilhas de Machado.
acho que comunica a futilidade e inveterate meddler in the affairs traduzidos para o inglês várias (já que sempre existirão outros Esperamos também fazer
a esterilidade da vocação poética of others”, que é, achamos, o vezes. Infelizmente, o mundo fatores, como o contexto novas traduções dos romances,
do (personagem) Luís Tinoco significado subjacente. anglófono é notoriamente específico de uma palavra começando com Memórias
muito melhor do que uma resistente aos escritores de ou mesmo a estrutura da póstumas de Brás Cubas. Talvez
tradução literal do português, Machado é muitas vezes visto outras culturas, mas parece-me frase onde ela aparece), mas seja o momento dum novo
e também tem um agradável como excepcionalmente que a situação vai melhorando. tivemos cuidado com termos boom machadiano.
toque proverbial. universal – e por isso relativamente neutros, porém
os brasileiros podem se A presença (ou ausência) da explícitos, como “slave- * Período histórico do Sul dos
Queria parabenizar vocês por decepcionar com a falta escravidão na obra de Machado woman” ou “houseboy”. O uso Estados Unidos, que vai do fim do
um detalhezinho que reparei. de repercussão da obra é discutida há décadas na de expressões mais coloquiais século XVIII ao início da Guerra
No conto Singular ocorrência, dele no exterior –, mas a crítica literária, e voltou à em inglês tende a ser associado Civil, em 1861.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br

A Violeta Arraes, i.m. Andando pelas ruas de uma cidade inglesa o


passeante para na calçada ao perceber que um
(O POEMA) peixe na vitrine de uma butique o encara.
As escamas já não brilham, Ele sabe:
o mar de antes é apenas eco. mais de 100 milhões de anos o separa daquele
Se os pequenos pontos negros peixe na sua prisão de pedra.

O olho do
sobre a invólucro endurecido Examina cauda, guelras, nadadeiras.
são algas defuntas ou lavas E o olho.
de uma súbita explosão, Sobretudo aquele olho, tão aberto, como as
o que importa? imagens concêntricas das ilustrações do Buraco
Negro, que tudo absorve e torna ínfimo.

peixe preso
O que importa Olho de peixe, fractal reproduzindo, em escala
se a onda desapercebida mínima, o grande acontecimento cósmico.
deixou-o, inerte, no seu universo O passeante aproxima-se da vitrine.
de areia e cinza? Ao lado do fóssil há uma anotação, escrita à

na pedra
Agora ele perscruta mão, indicando sua origem e preço: Chapada do
o som imóvel do último Araripe, 15 libras.
sussurro, É quase certo que aquele peixe deixou de nadar
a fulguração de sua imagem quando a terra foi rachada para se desdobrar em
no vidro da vitrine. continentes e a África disse adeus à América.
Um peixe-memória. As escamas podem ser
Nenhuma arte imitará lidas como um livro de história.
Diante de um fóssil o gesto do nadador
de quando, súbito,
O fóssil da vitrine tem a mesma procedência dos
que foram apanhados, quase dois séculos antes,

marinho, o que se vê é a água


o desconhece.
por George Gardner, médico e botânico escocês.
No livro Viagens ao interior do Brasil, ele descreve

a "verdade da poesia"
Preso no pequeno tripé, sua passagem pelos sertões do Piauí, Pernam-
no escuro de suas escamas buco, Ceará. Enveredou 800 quilômetros litoral
apenas lampeja adentro, num tempo em que não havia estradas,
o recado. malas eram carregadas em lombo de mulas, ata-
HANA LUZIA

BOOKTUBERS
Wellington "É verdade esse bilete"
de Melo
Em agosto, o jornalista e enquanto se r­esenha outros
escritor Ronaldo Bressane de forma “isenta”? O booktuber
vazou a tabela de preços de falaria mal de um livro pelo
uma booktuber para divulgar qual recebeu recursos do
livros em seu canal. A autor ou da editora? Seria
“desinibição comercial” o fim da crítica militante?
da booktuber incomodou Os influenciadores digitais
alguns autores e parte da inventaram o jabá? A prática
crítica. Nas redes, revolta ludibriaria os leitores? Se sim,

MERCADO ou solidariedade, deboche


ou resignação. Vieram as
que tipo de leitor segue esses
influenciadores? Uma última:

EDITORIAL perguntas: não é contraditório


promover alguns livros
os leitores deste Pernambuco
seriam enrolados por um publi
mediante pagamento, disfarçado de resenha?
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
LUÍSA VASCONCELOS
CONSELHO EDITORIAL
O padre é José Martiniano de Alencar, o revolu-
cionário de 1817, ex-presidente da província e então I Os originais de livros submetidos à Companhia
senador do Império. O mais velho dos guris, nos Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
seus sete anos, viria a ser conhecido como o autor Diretoria considera projetos da própria Editora, são
de Iracema, que ainda criança seguiu com os pais analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
para o Rio de Janeiro, mas vários passos de seus partir dos seguintes critérios:
romances são reproduções dos cenários da infância.
George Gardner regressa à Inglaterra e organiza
um herbário monumental, a mais importante co- 1. Contribuição relevante à cultura.
leção de plantas brasileiras do Jardim de Kew, em
Londres. O nome Gardneria batiza um dos gêneros 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
das Loganiaceaes. que privilegia:
O botânico e o escritor José de Alencar não de-
vem ter sabido um do outro. Mas o peixe da vitrine,
na sua condição mineral estava lá, guardião e a) A edição de obras inéditas, escritas ou
testemunha dessas histórias. traduzidas em português, com relevância
Por isso, ao passeante, parece pouco o valor cultural nos vários campos do
estipulado na etiqueta da vitrine para aquisição conhecimento, suscetíveis de serem
da imobilidade perpétua de um indivíduo de mais apreciadas pelo leitor e que preencham os
de 100 milhões de anos.
seguintes requisitos: originalidade,
O peixe por detrás do vidro, continua a observar
com insistência o passeante. Naquele finalzinho adequação da linguagem, coerência
de outono, intrigado, ele, o passeante, segue se e criatividade;
perguntando por que, num mundo de fantasia, de
devaneio consumista e compulsão pela novidade, b) A reedição de obras de qualquer gênero da
há tanta gente interessada em possuir o nadador
criação artística ou área do conhecimento
empedrado? Uma vontade de permanência, tal-
vez uma espécie de ânsia do eterno? Estaria nele científico, consideradas fundamentais para o
contida a metáfora da presença de quem o adquire? patrimônio cultural;
lhos abertos na mataria a golpes de facão. Onça Uma fulguração da passagem de um reino a um
suçuarana campeando livre. Cobras cascavel ou outro reino da Natureza? Aquele que o possui e 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
jararacuçu triscando o chão da caatinga. que volve ao pó, será menos precioso do que um sem as modificações necessárias à edição e que
Durante quase seis meses ele vasculhou as re- bicho enclausurado, a lançar seu olhar que atra-
contemplem a ampliação do universo de leitores,
dondezas do Cariri, catando pedras e plantas e vessa as idades? Seria aquele fóssil a representação
escreveu um poema, que endereçou a um cor- dialética do vivo/eterno transformado em ícone visando à democratização do conhecimento.
respondente de seu país. Nos versos, lamenta os para contemplação.?
amigos não estarem juntos naquele lugar de tantas Num delírio momentâneo, o passeante sonha II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
cores diferentes, tantos cheiros esquisitos. E a o peixe a flutuar na vitrine, como se ressurgisse sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
pergunta, no tom da mesma saudade do sabiá de do fundo de um qualquer oceano. Regressando
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
Casimiro de Abreu, a fechar o poema: Será que a aos socavões de serra de onde saiu arrancado a
violeta e a margarida poderiam crescer em terras fórceps, a nadar. E, na sua navegação, vai encon- sobre a publicação.
como aquelas? trando as figuras com as quais se deparou no curso
Porque na terra dos peixes de pedra tudo é es- de sua história infinita: o botânico escocês ou o III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
tranho ao botânico. autor de Iracema, também aquele desconhecido papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
O pão de trigo, substituído pelo cuscuz de mi- para quem olha agora, parado na calçada de uma Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
lho. O açúcar, por tijolos de rapadura. Em vez de cidade inglesa.
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
morangos ou ameixas de seu país temperado, O passeante se despede do peixe. Ele sabe: aque-
umbus, pequis, buritis. le fóssil oferecido como adereço é registro de um for o caso, índices e bibliografias apresentados
Ali não há ninguém que fale a sua língua e o pro- tempo da Terra, de um lugar que já foi latifúndio conforme as normas técnicas em vigor.
testante George Gardner faz registro da ‘degradação marinho e hoje é sertão a mendigar água.
dos costumes’ naquela terra de caboclos brabos, Talvez tenha sido um dos talismãs do grande IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
que em passado recente abrigou missão de índios místico Antônio Conselheiro, quando ele fazia
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
cariris, os protegidos do frei Martinho de Nantes. ecoar nas vastidões de Jeremoabo:
A moral é tão escassa, escreve ele, que avistou violência e as diversas formas de preconceito.
um padre católico romano, de passagem, acom- “O Sertão vai virar mar, o mar vai virar Sertão!”
panhado da mulher, a prima com quem “vivia V Os originais devem ser encaminhados à
maritalmente”, como se dizia no antigamente. Os Essa a “presença” que o fóssil nos traz: Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
dois seguidos por um magote de oito filhos, dos a imortalidade pressentida no âmago da finitude. seguir, sob registro de correio ou protocolo,
10 que ela lhe dera. A verdade da poesia que se busca no desaparecido.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

BOOKTUBERS 2 CRÍTICA
Companhia Editora de Pernambuco
Eles causam desconforto? Pela readequação de papéis Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Vergonha e moralismo É ilegítimo o autor enviar Agora, talvez haja booktubers e CEP 50100-140
andam juntos. A “impostura o livro a um crítico amigo, booktubers, que não são críticos Recife - Pernambuco
booktuber” parece ter despertado de quem não espera uma stricto sensu, que têm um
a primeira no meio literário, resenha negativa? E evitar papel distinto e, sim, ainda
pela ascensão de um modelo os críticos hostis? Relações nebuloso, na nova dinâmica
transmedia despudorado, que medidas por troca de do mercado.Resenhas pagas
expõe uma prática até então prestígio, influência ou me parecem um instrumento
velada. Daí o desejo pelo convites a eventos são mais pobre de marketing, e
segundo: o necessário limite legítimas que as baseadas deprimente para autores.
entre crítica e publicidade, em remuneração pecuniária? Mas e se não chamamos de
jornalismo e marketing. “Não misture as coisas!” Digo resenha, vale? Em tempo: SECRETARIA
DA CASA CIVIL
Preocupação legítima, mas de outra forma: sempre houve a booktuber Tatiana Feltrin
sempre houve uma névoa em críticos e críticos, autores e divulgou sua tabela de preços
certos segmentos. autores, editoras e editoras. em seu site. Nada de névoa.
12
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

CAPA

“Deve haver alguma


espécie de sentido”
De como a complexa Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog
foi convocado a depor no DOI-CODI de São Paulo.
cana de Direitos Humanos, órgão do qual o Brasil é
Estado Parte e portanto deve satisfações, condenou

fatura da ditadura de 1964 Prudente, avisou a diversas pessoas do que estava


indo fazer naquele sábado de manhã. Mesmo assim,
o Estado brasileiro pela falta de investigações e so-
licitou que elas sejam enfim realizadas. No final do

marca a prosa brasileira


certos de que jamais prestariam contas, os agentes da mesmo mês o Ministério Público Federal anunciou
ditadura o torturaram e mataram. Depois, montaram que tentará esclarecer o que aconteceu com Herzog.
um cenário inverossímil, convocaram um fotógra- Alguns casos de tortura e desaparecimento fi-
fo e divulgaram a imagem de Herzog enforcado, caram famosos, como os sumiços do ex-deputado
Ricardo Lísias alegando que ele havia se suicidado na prisão. A Rubens Paiva, do jovem Stuart Jones e da professora
própria foto, porém, inviabiliza a versão oficial: a de química da USP Ana Rosa Kucinski. O número
altura em que o corpo se encontrava impossibilita a de assassinatos realizados pela repressão, porém,
morte por enforcamento. Desde sempre, a história é desconhecido. A falta de um procedimento jurí-
que o Estado brasileiro conta sobre a ditadura não dico adequado faz com que até hoje não saibamos
se preocupa com qualquer tipo de documentação. a extensão das vítimas, as circunstâncias em que
Em 1978, ainda durante a ditadura, um juiz res- sofreram a violência estatal e também quem são os
pondeu à ação proposta pela família e declarou a responsáveis por ela.
União culpada pelo assassinato de Vladimir Herzog. Uma das principais razões desse vácuo é a au-
Além disso, as autoridades deveriam investigar o que sência de uma justiça de transição que, logo após o
aconteceu. Até hoje, quarenta anos depois, nada foi fim da ditadura, pudesse deixar tudo muito claro.
feito. No início de julho passado, a Corte Interameri- A Comissão Nacional da Verdade, instalada apenas
13
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

35 anos depois do fim oficial do período repressivo, instituições para com a necessidade tão elementar ter havido uma guerra entre dois lados durante a
contou com as dificuldades naturais de sua tarefa e de justiça colabora para que alguns autores estejam ditadura, o que os equivaleria em propósitos e res-
outras decorrentes da demora nas apurações. Uma se voltando para o problema. ponsabilidade. O livro desmonta essa hipótese, ao
delas foi a ausência de colaboração real das Forças A resistência, de Julián Fuks, chama atenção pela mostrar que ela perdura apenas na cabeça de quem
Armadas, que insistem em afirmar que não houve forma como lida com os anos de exceção democráti- conhecia muito bem o poder e fez de tudo, até o ato
nenhum tipo de repressão grave e se recusam a for- ca a partir de um cruzamento sensível e comovente ignóbil da traição, para estar ao lado dele.
necer documentos relativos ao período. As poucas entre questões íntimas e fraturas históricas. Com
e estudadas colaborações confirmam o descaso. um texto lírico e elegante, o livro mostra como ***
A falta de um discurso oficial claro sobre as violên- o descaso jurídico atinge até mesmo relações de Parece que no início dos anos 1980 os ficcionistas
cias cometidas pelo Estado causa também a difusão ordem familiar. escolheram o conto como o gênero de preferência
de hipóteses absurdas sobre o golpe e a resistência Bernardo Kucinski está compondo um conjunto para expressar o desconforto das personagens dian-
à ditadura. Uma delas é a chamada “teoria dos dois forte e eficaz de textos que giram sempre em torno te das instituições, nas cidades agora inchadas e em
demônios”, que afirma ter havido uma guerra entre do desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa, durante grupos sociais que, embora fizessem parte deles,
duas posições contrárias. Outra é a de que a Lei de a ditadura.1 Aqui os laços familiares vão inflando não correspondiam a seus anseios e necessidades
Anistia serve para que nenhum dos dois hipotéti- e enredam toda uma sociedade que, às vezes até e, mais ainda, as repeliam.
cos lados seja julgado. Enfim, quando essa lei foi orgulhosa de sua irresponsabilidade, colaborou com Um dos maiores sucessos da década, Morangos
promulgada, praticamente todos que haviam sido os crimes da ditadura. Em K, o autor descreve como mofados, de Caio Fernando Abreu, foi publicado em
acusados de crime contra o Estado já haviam sido a Universidade de São Paulo colaborou, leniente e 1982 e teve sucessivas edições. O autor já lançara
julgados e condenados. A lei portanto serviu para medrosa, no ocultamento dos crimes. Professora alguns volumes antes. Agora atingia a maturidade
livrar os agentes da ditadura dos crimes que come- do departamento de química, Ana Rosa foi presa com um conjunto de textos curtos, melancólicos e
teram e nada mais. e torturada, junto com o marido, por conta de sua notáveis, descrevendo personagens em forte de-
É possível dizer que, com alguns ajustes e naturais militância na Ação Libertadora Nacional. O livro, sarranjo afetivo e político, enfraquecidos diante de
desarranjos, a literatura brasileira realizada desde lúcido e brilhante, conta os desdobramentos con- uma sociedade que parece ter aceitado a inércia e a
a redemocratização acompanha o mal-estar que temporâneos da busca da família por informações tibieza como espinha dorsal. Qualquer possibilidade
essa situação de impunidade gerou ou, por outro e, quem sabe, o paradeiro do corpo de Ana Rosa. de lirismo, tateante e frágil, logo se torna o peso
lado, alia-se à política oficial que quer ver a “página Na coleção de contos Você vai voltar para mim, Ku- cinzento da opressão: “Deve haver alguma espécie
virada” sem esclarecer o que realmente aconteceu. cinski mostra como a ditadura escorreu para a época de sentido ou o que virá depois? – são coisas assim
alegadamente democrática e, mais ainda, como o que penso pelas tardes, parado aqui nesta janela,
*** aparato repressivo continua atento e organizado. em frente aos intermináveis telhados de zinco onde
Por razões estéticas, a ditadura voltou a ser hoje Ivone Benedetti, no original Cabo de guerra, trabalha às vezes pousam pombas, e dito desse jeito você
discutida pela ficção de forma mais concreta. O com um assunto tabu, muito pouco presente nas logo imagina poéticas pombinhas esvoaçantes,
desinteresse pelas anacrônicas fronteiras entre discussões de qualquer natureza da ditadura: a arrulhantes. São cinzentas, as pombas, e o ruído
ficção e não ficção e a compreensão de que o nome atuação dos “cachorros”, como ficaram conhecidos que fazem é sinistro como o de asas de morcego”.2
que assina uma obra faz parte dela, já que o autor os que traíram os colegas da resistência, muitas Nem a forte presença da música popular, ou mes-
deixou de existir como figura autônoma há décadas, vezes causando a tortura e morte de vários antigos mo de marcas da cultura pop, consegue trazer para
fez com que os anos de exceção deixassem de ser aliados. O livro é escrito em ritmo febril, através de os textos alguma leveza. Ao contrário, ajudam a
apenas insinuados para se tornar questão central. um narrador que tenta expor angústias, mas que na desfazer a esperança de que possa haver algo mais
Evidentemente, a estética não é a única responsável verdade acaba apenas mostrando a fragilidade da solto e colorido no final da ditadura. O sexo é quase
por isso: o próprio estado de absoluto descaso das chamada “Teoria dos dois demônios”, que afirma sempre desconfortável. Muito mais do que apro-
14
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

CAPA

ximar corpos cheios de desejo, acaba reforçando


o isolamento dos grupos que não se encaixam no
comportamento padrão e socialmente aceito. Uma
sociedade saturada pela violência de Estado não
iria tentar nenhum tipo de mecanismo que pudesse
diminuir a tensão e quem sabe pacificar a vida.
Durante a redemocratização, o cotidiano conti-
nuaria sendo um enorme risco para quem não se
integrasse, como sempre, à norma: “Veados, a gente
ainda ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar.
(...) Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge,
gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um
espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que
me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos
em volta. Olhando para baixo, vi os olhos dele
muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras
caras. A boca molhada afundando no meio duma
massa escura. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo
com meu corpo, mas sem querer estava sozinho,
correndo pela areia molhada, todos em volta, muito
próximos. Fechando os olhos, como num filme,
conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro
o corpo suado dele, dançando, vindo em minha
direção. Depois as plêiades, feito uma raquete de
tênis, no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta
de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra
o chão em mil pedaços sangrentos”.3
Uma manifestação firme do Estado repudiando
todo tipo de violência teria sido bastante eficaz no
final da ditadura. Ao contrário, o que houve foi o
fortalecimento de uma cultura da violência, através,
por exemplo, da espetacularização dos atos violentos
da polícia. Enquanto isso o governo não dizia nada
ou, pior ainda, estimulava a cultura do comporta-
mento brutal através de seu zelo pela impunidade.
Herbert Daniel também compôs uma obra em
que o corpo aparece como anteparo do desarranjo
que a sociedade impõe aos comportamentos fora
da norma. Em Meu corpo daria um romance, lançado
em 1984, Daniel faz um amplo painel da condição
homossexual em uma sociedade profundamente
conservadora e sem nenhuma perspectiva de mu-
dança. O livro é um caleidoscópio turvo e caudaloso
em que passam a luta contra a ditadura, o exílio e a
estratégia de sobrevivência em meio ao preconceito.
Um autor como esse estar hoje completamente fora
de catálogo mostra bem como a transferência de
interesse do corpo oprimido para o corpo do ban-
dido opressor, como veremos adiante, deu muito
bem certo.4

***
Como Caio Fernando Abreu, os escritores João
Gilberto Noll e Sergio Sant’Anna publicaram seus
primeiros livros de fato relevantes no início dos anos
No início dos anos vê-la, só respondeu a uma das cartas, dizendo-se
apaixonado por sua mulher, embora sem acreditar
em paixões.”8
1980, momento da redemocratização. É possível di-
zer que esses autores ganharam bastante força com
a percepção de que o país encenava um teatro. As
1980, o conto foi A cidade grande, como no caso de Caio Fernan-
do Abreu e Herbert Daniel, serve para reforçar a
impressão de marginalização e isolamento dessas
instituições tentavam fingir alguma mudança para
na verdade garantir que o status quo continuasse no o gênero eleito figuras. Além de ser o palco da solidão das perso-
nagens doentias e deslocadas, abriga também os

para expressar
poder. Com isso trouxeram para a forma artística problemas delas com as autoridades. O termo mar-
não exatamente a simulação desse teatro, e, sim, ginal não serve para qualificar apenas uma posição
a demonstração de sua gratuidade.5 diante do establishment social. Muitas personagens,

o desconforto de
Noll e Sant’Anna denunciaram o jogo de sombras sobretudo de Noll, estão quase ou inteiramente
do Estado. Muitas vezes, por estarem no escuro, suas à margem da lei, o que sempre é mais perigoso
personagens dessa época não têm nome próprio. O no espaço urbano: “Logo ali parou um camburão,
anonimato é uma das principais características do
narrador de A fúria do corpo: “O meu nome não. Vivo
nas ruas de um tempo onde dar nome é fornecer
personagem ante os canas vieram e me pediram documento. Meus
bolsos vazios de tudo que não fosse a sobra do
dinheiro emprestado pelo menino. Me levantei e
suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome
de ninguém não. (...) Não me pergunte pois idade,
estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do
as instituições acompanhei os canas, entrei entregue na traseira
do camburão, despojado de qualquer esperança,
ilusão, entregue como o boi no matadouro, que me
passado, nada, passado não, nome também: não”.6 lágrimas dela, como se não tivesse dito nada mais levassem, que me trucidassem, que me jogassem
Tudo o que resta para essas personagens se iden- que nada. E que, por fim, é capaz de ceder: ‘Eu gosto nas mãos do Esquadrão da Morte”.9
tificarem é o corpo. E ele é frágil, doente e incapaz de você, minha mulherzinha’”.7 Esse conflito gera obviamente um estado de
de encontrar conforto em outros corpos, já que o Observando de um lado uma festa que sabiam grande violência que, segundo o novo tipo de or-
afeto lhes incita violência: “Mas, ah, esses homens ser falsa e que talvez levasse a violências iguais ganização social que o Brasil vinha assumindo, só
cansam, vivendo apenas de sua fatuidade e de seu ou maiores das que o país vivia, são personagens poderia ter lugar na cidade grande, detalhe aliás
esperma ralo. O medo, agora, da mulher, de uma muito solitárias: “Eu me sentia muito só. Eva fora muito bem-notado por Chico Buarque. Infeliz-
gravidez que só pode levá-la ao aborto do nojo. O assassinada pelo motorista que a pegara em flagrante mente, por ter sido hagiográfica demais, a crítica
que se pratica por se saber impossível amar tal filho com o bicheiro, Diana foi transferida para a seção de ainda não instalou seus excelentes romances no
e, sim, o filho do outro, o bruto, o que ama pregui- polícia do jornal e encontrou-se profissionalmente. contexto da literatura brasileira contemporânea.
çosamente, o verdadeiro. Que é capaz de dar nela Desde aí despolitizou-se definitivamente, começou Desde Estorvo, dá para perceber como ele leu muito
um chute carinhoso na bunda muitíssimas vezes a escrever cartas de amor para Miro e a dizer que bem Noll e Sant’Anna.
mais bonito do que aquelas palavras vazias. E que a realidade deveria ser vista como se vê um fato
quando odeia, odeia – e diz: ‘Sua filha da puta’, policial, numa forma friamente descritiva; o estilo ***
quase a lhe dar um soco. E que é também capaz de jornalístico como qualquer pretensão de visão de Em 1988, Elvira Vigna estreou com o romance Sete
dizer: ‘Vou te usar hoje como se usa uma coisa; vou mundo, dizia ela, deve ser soldado com certa des- anos e um dia, que lida justamente com os anos de re-
te comer hoje, minha mulher’. E depois secando as treza e não com sentimentos. Miro, que não quis democratização. O livro já traz a aspereza narrativa
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

Nos anos 1990,


vários romances
abordaram violência
urbana, muitos com
foco na “invasão”
de ambientes ricos
por pessoas pobres
seria decisiva a construção de um imaginário de
ampla violência. Aos poucos, com a colaboração de
diversos discursos (o político, o jurídico, o midiático,
o estatístico e até mesmo o artístico), a ideia de que
as cidades brasileiras, sobretudo as maiores, vivem
um estado de guerra civil, foi sendo naturaliza-
da. No meio literário, colaborou para isso a ficção
voltada para a assim chamada “violência urbana”.
Rubem Fonseca é o principal nome. Sua obra se
encaixa perfeitamente no que o discurso repres-
sivo precisava: é cheia de bandidos que, no geral,
agem sem muita razão; a cidade abriga intelectuais
toscos, os artistas são no mais das vezes pintados
como destrambelhados (para dizer o mínimo) e
a classe baixa está o tempo inteiro ameaçando a
propriedade das pessoas economicamente mais
bem-situadas. Se pensarmos que Fonseca agiu
deliberada e profissionalmente pela fabricação
ideológica das condições que propiciaram o golpe
de 1964, a coerência de sua trajetória é inegável.12
Depois, os anos 1990 assistiriam à proliferação
de romances – com extensão em obras cinemato-
gráficas – que tratariam da violência urbana, em
grande parte se centrando na invasão dos ambientes
das classe alta por pobres. Exceção notável é o livro
Cidade de Deus de Paulo Lins, e o que se convencionou
chamar de “literatura marginal”, por exemplo, no
trabalho de Ferréz. Invertendo o trânsito para algo
mais facilmente perceptível pelas evidências, um
autor contemporâneo fundamental como Allan da
Rosa mostra que na verdade são as classes baixas
que sofrem a violência de Estado, que em proteção
que seria sua marca, aplicada aqui ao olhar agudo não colocou com justiça o lugar decisivo desse ro- aos interesses das classes superiores, invadem os
dirigido a uma sociedade que enxergava todos os mance na passagem que há entre o intelectual que espaços onde os mais pobres vivem. A atual “in-
acontecimentos históricos, por mais importantes pretende se engajar no clássico Quarup, de Antonio tervenção” no estado do Rio de Janeiro, que só
que fossem, com certa frivolidade festiva. O livro Callado, para as memórias que sairiam no final da acontece na prática nas comunidades carentes,
ainda observa bem como o Brasil parecia aneste- ditadura, cheias de desilusão com a resistência, exemplifica às maravilhas o meu argumento.
siado depois dos anos de ditadura, sem conseguir como veremos mais adiante. Lygia apostou no con-
enxergar o próprio estado de torpor. Dali em diante vívio de vozes narrativas díspares para, ainda em ***
Vigna desenvolveria uma obra voltada para a ob- 1973, chamar atenção para a necessidade de que Como é natural nos anos e décadas seguintes a
servação detalhada de indivíduos emparedados o tecido social fosse composto pela diferença. As eventos muito traumáticos, um conjunto de tex-
entre uma sociedade inoperante e a necessidade, meninas além de tudo é um romance voltado para a tos memorialísticos foi publicado por aqui, com
imperiosa e incontornável, de que algo fosse feito. afirmação da democracia. grande variedade de natureza, riqueza estética e
Um pouco antes, Zulmira Ribeiro Tavares havia consequências políticas. Um grupo buscou lidar
lançado o escandaloso e eficaz O nome do bispo, com *** com a experiência do trauma através da tentati-
uma sátira marcante aos assim chamados “quatro- Além da consolidação de um sistema econômico va, difícil e sempre meio fadada ao fracasso, da
centões”. Em comum com Elvira Vigna há a crítica voltado para a manutenção dos privilégios de uma elaboração através da literatura. São textos que
violenta à frivolidade de estratos sociais que não elite historicamente improdutiva e da sensação de compreendem os limites da linguagem, sabem
conseguem enxergar exatamente o lugar de onde impunidade dos crimes cometidos por agentes do que não poderão atingir nenhuma completude
falam e menos ainda o papel que ocupam na vio- Estado, outro legado da ditadura foi a naturalização e muito menos qualquer explicação satisfatória.
lência (não apenas simbólica) com que a sociedade da política de segurança pública voltada à opressão Mesmo assim, tentam obter o máximo que esse
brasileira sempre fundou suas diferenças de classe. e não à garantia dos direitos fundamentais de todos tipo de escrita é capaz de oferecer. Alguns deles
A distinção, menor do que uma primeira olhada aos os cidadãos. Maria Pia Guerra é clara ao observar a tiveram resultado estético notável. O principal
textos pode dar a impressão, está na forma como conexão: “O excesso autorizado contra o inimigo deve ser Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas For-
a crítica é composta. Para a estreante, a contenção (aqui o comunista) acaba por adentrar nas insti- tes, que acaba de ganhar nova edição pela Editora
no riso serve para aprofundar o desprezo; já para tuições, corrompendo a própria ordem. O controle da Unesp. Sem buscar exatamente explicações,
Zulmira, a gargalhada aumenta a zombaria. No das polícias era, assim, esvaziado pelas intenções mas girando conscientemente em torno de um
final, as duas estão expondo a fragilidade de grupos repressivas totalizantes do regime. Justamente, momento histórico que não pode ser explicado em
sociais que ocupam lugares de poder, sejam eles o mal de quem, no dilema da atividade policial, sua inteireza, Salinas Fortes sublinha inclusive o
econômicos, políticos ou mesmo culturais, não por opta pela defesa da ordem ao invés da proteção patético que mostra se aliar a toda situação auto-
seus talentos, mas meramente por conta da família do estado de direito, o mal de quem se apega ao ritária, sempre a fortalecendo através da recusa a
em que nasceram. O Brasil sempre admirou os fi- combate ao crime em detrimento da defesa dos qualquer razoabilidade. O texto é duro, cheio de
lhos de pais famosos: sobrenome é um bem muito direitos fundamentais”.10 É dela ainda a observação cortes e sombras e sem nenhum tipo de intenção
valioso entre nós. de que “o cidadão não é percebido como aquele de colocar o autor em algum lugar político no
De passagem, vale comentar que, antes desses que recebe um serviço público, mas é um suspeito pós-ditadura. Aqui está seu grande acerto polí-
dois livros, Lygia Fagundes Telles já havia exposto de quebrar a ordem político-social, um criminoso tico: uma ditadura é sem nenhuma dúvida uma
as fissuras e fragilidades patéticas da nossa classe em potencial”.11 situação anômala. Não pode ser narrada com uma
cheia de dinheiro (ou que finge ter algum) no co- Para que se justificasse diante da população a linguagem desassombrada. A clareza narrativa
rajoso e impressionante As meninas. A crítica ainda política de repressão que as polícias assumiriam, seria além de tudo um equívoco político.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

CAPA

Parte da prosa
memorialística se
preocupa apenas
com interesses
eleitorais – caso
de O que é isso,
companheiro?
Muito recentemente, Marcelo Rubens Paiva pu-
blicou o notável Ainda estou aqui. De início o leitor é
informado de que acompanhará a convivência da
mãe do autor com o Alzheimer. Aos poucos e sem
muito aviso, a narrativa desliza para a história do
pai, o deputado federal Rubens Paiva. Perseguido e
desaparecido pela ditadura, a família jamais recebeu
qualquer explicação oficial e passou esses anos todos
às voltas com tentativas de que a justiça enfrentasse o
crime do Estado. Temos acesso inclusive à documen-
tação. Autor de um romance interessante publicado
nos últimos anos da ditadura, Feliz ano velho (que tem
clara influência de Caio Fernando Abreu e Herbert
Daniel), Paiva é bastante feliz ao fazer a história de
sua família ser a metonímia da brasileira. Mais agudo
ainda é lançar mão do Alzheimer, em que a memória
vai aos poucos desaparecendo. Uma interpretação
ingênua seria achar que o Brasil estaria sofrendo dessa
enfermidade, típica dos idosos. Não é isso: o livro
compõe uma trajetória, incorporando à narrativa a
falta de memória, mas a aproveitando para reconstruir
a trajetória de um desaparecido político. Trata-se,
portanto, de uma construção em que o esquecimento
faz parte, mas não é dominante. Ainda estou aqui, o título
eloquente, já mostra que o esquecimento será trata-
do, cuidado e auxiliado e a narrativa não terminará
com ele, mas, sim, como as últimas páginas do livro
indicam, apenas com a justiça.

***
Sucesso imediato de público desde os fins dos
anos 1970, outro grupo de textos memorialísti-
cos é formado por livros que, no final das contas,
pretendiam recolocar o autor no ambiente polí-
tico. Se esse tipo de trabalho tem o mérito de, por
um lado, recobrar parte dos laços perdidos pelos
exilados, colocando-os outra vez no tecido social,
por outro, acaba deformando-os por intenções
sobretudo eleitorais.13
O que é isso, companheiro?, por exemplo, colocou
Fernando Gabeira em um lugar político que nem
de muito longe ele ocupava quando entrou para a
clandestinidade, acabou preso e saiu do país. Como
a intenção eleitoral desse tipo de texto é muito clara,
ele precisa ser construído através de uma linguagem
objetiva, sem impasses ou fendas. A trama costuma
mostrar um narrador forte, que enfrentou a ditadura
e retornou para contar tudo o que aconteceu e, mais
ainda, colaborar com a sua lucidez para o esclare-
cimento dos fatos.
No geral os autores tratam a resistência à dita- que estava passando uns dias na casa do meu avô. No precisou de bastante tempo para recobrar uma por-
dura, armada ou não, como um ato inconsequente, caminho, eu e meus irmãos ficamos sabendo que não ção de sanidade e colocar os nervos mais ou menos
disparatado e desorganizado, que não poderia dar deveríamos fazer barulho, correr pela casa e muito no lugar.
mesmo certo. Não faltam também narrativas do menos perguntar alguma coisa. Poderia incomodar. Na verdade, ele nunca se recuperou. Mesmo depois
desbunde, da incoerência e despropósito dos grupos Não sei com quanto cuidado minha mãe nos expli- de muitos anos, costumava desaparecer. A família
que fizeram frente aos militares. Alguns relatos de cou que ele havia sido torturado. Não me lembro de não se assustava mais, pois já sabia onde ele estava:
tom jornalístico, como 1968, o ano que não terminou, nada, apenas da sensação estranha. A recordação dentro da caixa d’água, às vezes chorando, outras
também são assim: todo mundo era meio perdido, mais antiga da minha vida é uma instrução: não é olhando para o infinito. Sempre achei que nessas
sem saber para onde ir e muito menos medir o risco para fazer bagunça, pois ele foi torturado. De resto, ocasiões ele devia estar se lembrando dos afoga-
de enfrentar os militares. não tenho na memória nenhuma imagem, cheiro mentos. Antes de morrer, essa foi a sua última fala:
Publicados enquanto a Lei de Anistia e sobretudo ou qualquer outra sensação. É só esse mal-estar de “– Quem era ele?”
o julgamento dos crimes cometidos pelo Estado uma criança que não entendia nada. Não sei se meu parente tentou pesquisar. A famí-
brasileiro ainda estavam na ordem do dia, esse tipo Meu parente havia sido torturado anos antes, no lia não gosta muito de falar sobre isso até hoje. Há
de texto foi um desserviço, para dizer o mínimo, início da década de 1970. Os agentes do Estado bra- alguns meses, estive no Arquivo Nacional no Rio
para a reconstrução da democracia. sileiro lhe arrancaram as unhas com um alicate, e de Janeiro para uma pesquisa em documentos da
depois passaram algumas horas afogando-o. Por polícia política e, em um intervalo, tentei procurar
*** fim, alguém chegou à porta e avisou que ele devia alguma coisa. Não achei nada.
No final de 1978, eu tinha três anos e meio. Minha estar falando a verdade e que não conhecia “o cara”. Morador de uma cidade minúscula no interior de
mãe avisou que iríamos visitar um parente distante Ainda assim, passou dois anos preso. Quando saiu, São Paulo, ele estava cuidando do jardim quando um
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

“Meu parente jamais


teve interesse em
política, no entanto,
alimentou um
inimigo da ditadura.
Nunca conseguiu ter
uma vida normal”
socorro, que demorou uma eternidade para chegar,
o menino contou à mãe que o amparava que o tiro
partira de um policial. Ele viu bem. Marcus Vinicius
ainda perguntou se não tinham notado que ele es-
tava com o uniforme da escola. Pediu água, como
muitos estudantes faziam enquanto estavam sendo
torturados pela ditadura, e depois morreu.
Entre o dia em que coloco o ponto final nesse
texto e o momento em que você o lê, certamente o
Brasil terá matado um grande número de pessoas.
A ditadura mudou de rosto, mas nunca acabou.

1. Fernanda Reis da Rocha desenvolve na Universidade


Presbiteriana Mackenzie uma tese de doutorado sobre
Bernardo Kucinski e Frei Betto com apoio da Capes.
Sua análise é fina e detalhada e, tendo participado de
sua banca de qualificação, baseio-me nela.
2. Cf. ABREU, Caio Fernando. Luz e sombra. In: Contos
completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
pp. 353-357.
3. ABREU, Caio Fernando. Terça-feira gorda. In: Contos
completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
pp. 344-346.
4. Ainda que os textos fundamentais de Herbert Daniel
estejam todos fora do catálogo das nossas livrarias,
o brasilianista James Green acaba de publicar uma
excelente biografia dele: Revolucionário e gay: a ex-
traordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta
pela democracia, diversidade e inclusão.
5. Sobre a intervenção desses dois autores, publiquei
na revista Artememoria, em inglês, o ensaio “The Voice
of the Weak: Characters and Narrators of ‘Redemocra-
tization’: Transitions from dictatorship to democracy
as read through the work of two Brazilian authors,
Sérgio Sant’Anna and João Gilberto Noll. (Em: http://
artememoria.org/#voice-weak-characters-narrators-
-redemocratization).
6. Cf. NOLL, João Gilberto. A fúria do corpo. Rio de
Janeiro: Record, 2008.
7. Cf. SANT’ANNA, Sérgio. O concerto de João Gil-
berto no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
8. Cf. NOLL, João Gilberto. Idem.
9. Cf. NOLL, João Gilberto. Idem.
10. Cf. GUERRA, Maria Pia. Polícia e ditadura: a ar-
quitetura institucional da segurança pública de 1946
a 1988. Brasília: Ministério da Justiça / Comissão de
Anistia, 2016.
11. Idem.
12. No ensaio “A grande arte de desaparecer”, analisei
homem, aparentemente cansado de tanto andar, política para os mecanismos de segurança pública. o papel que Rubem Fonseca teve no IPES, um dos
pediu-lhe água e quem sabe algo para comer. Como Seria necessário então modificar também o inimigo. principais grupos que criaram a ideologia que apoiou
era de hábito nesses lugares naquela época, ele Sempre fiel ao propósito de defender os interesses o golpe de 1964. (Disponível em http://www.seer.ufu.br/
convidou o homem para almoçar e, sem perguntar da elite econômica, a partir dos anos 1980 o alvo do index.php/artcultura/article/view/41251). Aline Andrade
nada, deu-lhe depois uma sacolinha com um lanche. aparelho repressivo iria dos membros da oposição à Pereira redigiu, com apoio do CNPQ, uma tese brilhante
Algumas horas depois, foi preso e torturado. ditadura às classes mais baixas, sobretudo os jovens sobre toda a trajetória conservadora de Rubem Fonseca
Meu parente jamais teve interesse em política, no negros das periferias das grandes cidades. na Universidade Federal Fluminense. Cf. O verdadeiro
entanto, alimentou um inimigo da ditadura que es- Desde 1986, quando o primeiro civil exerceu Mandrake. Rubem Fonseca e sua onipresença invisível.
tava sendo intensamente procurado. Depois, nunca o poder, agentes a serviço do Estado brasileiro já 13. Analisei esse tipo de publicação no ensaio “O que
mais conseguiu ter uma vida normal. mataram milhares de pessoas, tendo na absoluta os fortes queriam? Uma análise de O que é isso com-
maioria dos casos permanecido impunes. Essa, aliás, panheiro e Os carbonários. (Em: http://www.scielo.br/
*** é uma consequência da Lei da Anistia. Os agentes scielo.php?pid=S2316-40182016000200229&script=sci_
Segundo Edson Teles, “a violência originária de do Estado se veem livres para continuar abusando, abstract&tlng=pt).
determinado contexto político, que no caso da de- torturando e matando, já que seus colegas mais 14. Cf. TELES, Edson. Democracia e estado de exceção
mocracia seriam os traumas vividos na ditadura, antigos não foram punidos. – Transição e memória política no Brasil e na África do
mantém-se nos atos ignóbeis de tortura ainda pra- Em junho passado, durante uma invasão policial Sul. São Paulo: Editora Unifesp, 2015. O livro, que foi
ticados nas delegacias, ou na suspensão dos atos de ao Complexo da Maré no Rio de Janeiro, Marcus publicado com apoio da Fapesp, é resultado da tese
justiça, contida no simbolismo da anistia (...)”.14 Vinicius da Silva, de 14 anos, foi atingido por um tiro de doutorado do autor, que pôde inclusive passar um
Como vimos, a repressão passou das mãos da polícia na barriga enquanto ia para a escola. Aguardando o ano de pesquisas na França com uma bolsa da Capes.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

PERFIL

A guerreira
volta a apontar
suas armas
As relações entre história
vivida e literatura na obra de
Walnice Nogueira Galvão
Schneider Carpeggiani

Durante que estávamos assim fora de marcha em rota, tem- sobre a ambiguidade em Grande sertão: veredas, defendida
po de descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim em 1970. A figura da donzela-guerreira Diadorim,
só falava nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue digamos, “sobrou” no trabalho e ficou sobrevoando
manda sangue sua imaginação. De um lado, as personagens da
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas literatura; de outro, o destino de mulheres como
Iara ao seu redor.
Quando da sua performance na Flip 2017, a poeta “Essas personagens frequentam a literatura, as civilizações,
Adelaide Ivánova fez uma lista descrevendo as culturas, as épocas, a História, a mitologia. Filha de pai sem
algumas imagens de mulheres assassinadas, entre curso de mãe, seu destino é assexuado, não pode ter amante nem
famosas e anônimas, possíveis de se encontrar filho. Interrompe a cadeia das gerações, como se fosse um desvio
online. Iara Iavelberg (1944-1971), guerrilheira e do tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade.
companheira de Carlos Lamarca, era uma delas. Sua potência é para trás, para o pai; enquanto ela for só do pai,
“O corpo de Iara Iavelberg foi fotografado só de calça, não tomará outro homem. Mulher maior, de um lado, acima da
com um pedaço de papel ou pano cobrindo seu torso nu. Iara determinação anatômica; menor, de outro, suspensa de acesso
Iavelberg foi executada em 1971 por agentes do DOI-CODI”, à maturidade, presa ao laço paterno, mutilada nos múltiplos
descreveu Ivánova durante sua fala. papéis que a natureza e sociedade lhe oferecem”, descreve,
Nunca havia visto a foto de Iara assassinada num trecho do livro, o perfil dessas personagens.
até poucos momentos antes de começar a escre- O mito da donzela-guerreira é ligado essencial-
ver esse texto. No entanto, lembrava muito ou- mente à criação de identidades nacionais. Um dos
tro retrato dela, ainda adolescente, com cabelos exemplos definidores do mito podemos encontrar
longos, sorridente, e olhando para o alto, fixando no século V chinês, com a balada de Hua Mulan.
os olhos para algo fora do alcance da lente como Outro, na história de Joana D’Arc. São mulheres
pedia a etiqueta da época. Na busca por imagens que vão à guerra para substituir o pai, sem irmãos.
suas no Google, seu nome é vinculado a categorias Mulheres que fazem o papel de homem na ausência
como “ditadura militar”, “militante”, “Lamarca”, do próprio. Que promovem uma espécie de conci-
“guerrilheira”,“terroristas” e a um inusitado “evi- liação entre o masculino e feminino. Personagens
dências contundentes”. Mas para a crítica literária que precisam assumir guerras geradas por outros.
e professora emérita da USP, Walnice Nogueira Hua Mulan sucedeu ao pai nos campos de batalha.
Galvão, a legenda que melhor se aplicaria a Iara é A donzela-guerreira de Rosa abdicou da identidade
a de “donzela-guerreira”. feminina para vingar a morte do pai, combatendo
É para Iara Iavelberg que foi dedicado A donzela- pelos sertões lado a lado com um bando de jagunços.
-guerreira – um estudo de gênero, uma das obras mais No Brasil, além de Diadorim, há os casos de
importantes de Walnice, que agora completa 20 Iracema, de José de Alencar, sobretudo na cena em
anos. “A Iara era minha amiga. Dediquei o livro a que a índia assume o controle da situação dramática
ela e não disse nada, não fiz alarde. Foi uma época ao drogar o colonizador branco Martim, e também
muito triste, em que perdi muitas amigas, colegas, certas passagens de Senhora, também de Alencar.
alunas, todas com 20 e poucos anos, bonitas. Elas “A personagem de Senhora (Aurélia Camargo) diz
tiveram um destino histórico”, lembra a crítica, algumas das coisas mais fortes que uma persona-
durante uma entrevista em seu apartamento na gem pode dizer na literatura. Ela é impressionante.
capital paulistana em agosto. Segundo diz no livro, As pessoas esquecem desse lado forte do Alencar
há apenas dois destinos possíveis para a donzela- e só pensam nele como um romântico sem força.
-guerreira: morrer, que é o destino perfeito; ou Há também a Dona Severa, de Guerra dos mascates,
casar, o destino imperfeito. ainda que Alencar a trate de forma irônica, como
Publicado apenas em 1998, o estudo começou a uma caricatura”, continua Walnice.
ser gestado no imaginário de Walnice quando da A donzela-guerreira foi lançado num momento em
sua tese de doutoramento, As formas do falso: um estudo que o feminismo, como lembra a crítica, não estava
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

FABIO SEIXO

“infelizmente no centro das discussões”, tal e qual


ocorre hoje num mundo interligado por redes sociais
e por hashtags de denúncias. “Eu acho essa nova onda
Walnice acaba anos 1990, chegou a trabalhar numa edição crítica
de Grande sertão, que acabou ficando incompleta
por falta de recursos para o término da pesquisa.
feminista maravilhosa, porque as mulheres estão
conseguindo coisas que nós nunca imaginávamos. É
claro que existem campos de disputa em meio a esse
de finalizar uma “Tanto o Guimarães Rosa quanto o Euclides, não
podemos negar, tinham uma simpatia enorme
pela oligarquia”, diz Walnice. “Mas o retrato que
feminismo. Há o feminismo da mulher negra, que diz
que o da mulher branca pode prejudicá-lo. E pode seleção de textos de o Guimarães faz da plebe brasileira no romance é
impressionante. E no caso do Euclides, ora, ali tem

Victor Hugo. Agora,


mesmo. Há o feminismo da mulher trans, que tem suas um homem de educação militar que fez uma traves-
questões, que respeito. Ainda que compreenda todas sia, que passou para o lado de lá, quando ninguém
essas divisões, sou mais a favor de alianças”, diz. passava de lado. Quando ele foi enviado para cobrir

organiza os contos
Nos anos 1970, Walnice montou em sua casa um Canudos, ficou dividido. Foi como se um raio caísse
grupo para discussões feministas. “Era muito difícil na cabeça dele. Acho que o Euclides se tornou um
falar sobre feminismo naquela época. Ser feminista desesperado para o resto da vida com o tanto que
era xingamento. Conheci mulheres que passavam a
vida inteira trabalhando com questões de mulheres,
mas diziam ‘não me chame de feminista’. Só que o que
completos de Lygia viveu ali. Ele teve a criação numa escola militar,
que era a melhor que o Brasil dispunha na época em
termos de educação. Na escola militar se ensinava
elas faziam era feminismo. Para mim era tão óbvio.”
“Não se esqueça de que sou fruto da primeira
onda feminista, dos anos 1970. Nessa época, tam-
Fagundes Telles que o ideal da república era o militar. Eles foram para
Canudos para defender a república dos monarquistas
e dos católicos, segundo pregava a imprensa. Mas
bém havia disputas. Havia o feminismo que não 1970, em paralelo com as pesquisas que fazia da Canudos era outra coisa. Canudos era o atraso que
aceitava as lésbicas. E as feministas lésbicas diziam obra de Euclides da Cunha (1866-1909). se precipitava contra a modernidade da república”.
que seu feminismo era mais radical, e era de fato, “A realidade não aparecia nas notícias. Era tudo E arremata: “A república brasileira nasceu de um
que o das mulheres heterossexuais de classe média. manipulado. Ainda hoje é tudo manipulado”, diz. golpe. Um golpe militar, que instaurou uma ditadura.”
Mas, como disse, sou a favor de alianças.” “Todo dia (nos anos 1970) um jornal dizia que um Numa entrevista recente, Walnice chegou a dizer
Chama a atenção em A donzela-guerreira, e mesmo guerrilheiro, que eles chamavam de terrorista, que Euclides hoje “estaria liderando o MST. É a con-
no espectro da crítica feita por Walnice, a ausência havia se jogado na frente de um ônibus, depois de sequência lógica do que ele escreveu. O MST gosta
de Rachel de Queiroz (1919-2003), criadora de ter denunciado um companheiro. Mas eu sabia que muito dele”. E numa sequência de No calor da hora
fortes figuras femininas. Uma ausência justificável, era mentira. Eles estavam torturando e matando as escreveu: “Os sertões funcionou como uma espécie
a partir de uma decisão política. “Dizem que ela foi pessoas. Eu sabia disso porque convivia no meio.” de mea culpa coletiva da elite brasileira, que havia se
amiga dos militares. Ela não era amiga. Ela foi do Walnice ainda evita ler o noticiário da imprensa mantido indiferente às atrocidades cometidas con-
Conselho Federal de Educação durante a ditadura. brasileira. “Não leio nada. Enquanto eu fazia a tra os seguidores de Antonio Conselheiro durante a
Rachel foi um aparelho da ditadura. Eu gostava mui- pesquisa para No calor da hora, vi o trabalho sujo da Guerra de Canudos e que exorcizava seu complexo
to de O quinze, o primeiro livro dela, depois de Cami- imprensa. Os jornais tiveram um papel sórdido, de culpa, passada a guerra, no livro de Euclides da
nhos de pedra, depois me desinteressei completamen- estigmatizaram o povo de Canudos com suas fake Cunha. Qual a posição do intelectual brasileiro hoje
te. Ela ficou louvando muito a oligarquia e isso era news e manipulações. As pessoas tratam o termo em um país que tem a segunda pior distribuição de
um pouco demais, eu não podia suportar uma coisa fake news como uma novidade, mas para mim não renda do mundo?” (e lembrar que essa pergunta foi
dessas. Eu nunca nem quis falar com ela, nunca.”. é. O jornal serve para fazer lavagem cerebral. Não feita lá atrás, ainda nos anos 1970, quando não era
leio mais jornal. Eu não quero isso para mim. É muito aconselhável fazer esse tipo de pergunta...).  
NOTURNO DO BRASIL uma decisão que tomei nos anos 1970.”
A donzela-guerreira não foi o único trabalho de Walnice Grande sertão: veredas e Os sertões são os dois livros DE VOLTA AO CALOR DA HORA
em que a pesquisa literária acabou sendo atraves- que marcaram a carreira de Walnice. Dois grandes “É muito curioso o que a literatura faz com a re-
sada pela vida. Trata-se de uma uma constante. O monumentos de linguagem. E também duas obras alidade. O que ela transfigura da realidade, você
mesmo aconteceu com No calor da hora – A Guerra de que tratam dos conflitos de classe no Brasil. Há pode sempre usar numa outra conjuntura”, afirma
Canudos nos jornais (1973). O livro surgiu do seu pavor dois anos, ela foi responsável pela edição crítica do Walnice diante das provas que pegou para a cor-
diante da manipulação que via nos jornais dos anos clássico de Euclides, lançada pela editora Ubu. Nos reção final do seu novo projeto, a ser lançado este
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

PERFIL

FOTOS: FABIO SEIXO


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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

mês. Desta vez não foi a ditadura dos anos 1960 e

Trechos de A águia e o leão (Victor Hugo)


1970, mas o momento político atual que inspirou
A águia e o leão, seleção de escritos políticos e crítica
social assinados por Victor Hugo.
Quando do processo que levou ao afastamento da
presidenta Dilma Rousseff,  Walnice se viu inquieta, DISCURSO SOBRE O ENSINO PÚBLICO nos é colocado, e que contém, segundo o que
sem conseguir dormir direito. Diagnóstico: estava “Senhores, toda questão tem seu ideal. Para dele soubermos fazer, as catástrofes mais fatais
deprimida diante da possibilidade de uma outra era mim, o ideal nesta questão do ensino, é o se- ou o futuro mais grandioso. (Bravos! à esquerda).
de repressão política no Brasil. “Toda aquela lama guinte. A instrução gratuita e obrigatória. Obri- Somos uma geração predestinada, chega-
que parecia ter desaparecido, foi revolvida nova- gatória apenas no primeiro grau e gratuita em mos a uma crise decisiva, e temos maiores
mente e voltou à superfície”, diz. Pensou até em todos os graus. (Murmúrios à direita; aplausos e mais pesados deveres do que nossos pais
sair do Brasil. Mas para onde num mundo de clara à esquerda). A instrução primária obrigatória é tiveram. Nossos pais só tinham a França para
ascensão fascista? “O que adianta sair do Brasil, o direito da criança (Movimento) que, não se servir; nós temos a França para salvar. Não,
quando está tudo péssimo?”, pergunta, indignada. enganem, é mais sagrado ainda que o direito não temos tempo para nos odiar! (Movimento
Mas foi na leitura dos textos de Victor Hugo que do pai e se confunde com o direito do Estado. prolongado). Eu voto contra o projeto de lei!”
encontrou munição para lidar com a crise atual. “Eu Retomo. Eis aí, portanto, para mim, o ideal da
sempre tenho uma série de projetos ao mesmo tempo, questão. A instrução gratuita e obrigatória na DISCURSO PELO SUFRÁGIO UNIVERSAL
mas parei tudo para me dedicar ao Victor Hugo. Quan- medida que acabo de indicar. Um grandioso “E para que o sufrágio universal possa criar
do você lê as coisas dele (faz cara de espanto), dá até ensino público, dado e regulado pelo Estado, esse ponto fixo, para que possa liberar a vonta-
vontade de rir de como ele é atual, de como ele está partindo da escola de aldeia e subindo de grau de nacional em toda a sua plenitude soberana,
falando de coisas que estamos vivendo agora.” Entre em grau, até o Colégio de França, mais alto é preciso que não tenha nada de contestável. (É
essas “coisas que estamos vivendo agora”, a gratuida- ainda, até o Instituto de França. As portas da verdade! É isso!); é preciso que seja realmente
de do ensino público e os direitos dos trabalhadores. ciência abertas de par em par para todas as o sufrágio universal, vale dizer, que não deixe
“Poucos escritores foram tão solidários com o inteligências. Por toda parte onde houver um ninguém, absolutamente ninguém, fora do
povo quanto Victor Hugo”, atesta Walnice. O escritor campo, em toda parte onde houver um espíri- voto; que ele faça da cidade a coisa de todos,
francês viveu num século de revoluções intermiten- to, que haja um livro. Nem uma comuna sem sem exceção; porquanto, em tal matéria, fa-
tes, que assistiu à ascensão do proletariado industrial escola, nem uma cidade sem colégio, nem uma zer uma exceção é cometer uma usurpação.
e à politização dos artistas. “Victor Hugo tratou de sede de comarca sem faculdade.” (Bravo!). É preciso, numa palavra, que não
‘descer na vida’ ao aliar-se às causas do povo re- deixe a quem quer que seja o direito horrível
petidas vezes, correndo o risco de perder, como de DISCURSO CONTRA A DEPORTAÇÃO DOS de dizer à sociedade: não a conheço! (Movi-
fato perdeu, seus privilégios. Em prosa e verso, em REVOLUCIONÁRIOS DE 1848 mento prolongado).
ficção e poesia, em discursos na Assembleia ou no “Temos uma sociedade nova a fazer sair das Nessas condições, o sufrágio universal pro-
Senado, no jornal e no panfleto, em elogios fúnebres entranhas da sociedade antiga, e, quanto a duz o poder, um poder colossal, um poder
ao pé do túmulo, lá está ele defendendo o povo, mim, sou dos que não querem sacrificar nem a superior a todos os assaltos, mesmo os mais
mostrando-o na paz e na insurreição, nos afazeres criança, nem a mãe. (Movimento). Ah! Não te- terríveis; um poder que poderá ser atacado,
do dia a dia ou nos extremos da miséria, transbor- mos tempo para nos odiar! (Novo movimento). mas que não poderá ser derrubado.”
dando de empatia, pondo seu talento a serviço dele. O ódio gasta a força, e, de todas as manei-
Foi assim que cobriu as convulsões do século XIX”, ras de gastar a força, é a mais daninha. (Muito O LIVRO
aponta no texto de apresentação do livro, que traz bem! Bravo!). Reunamos fraternalmente todos A águia e o leão
tanto fragmentos de discursos parlamentares quanto os nossos esforços, ao contrário, num objetivo Editora Fundação Perseu Abramo e
de obras de ficção (ver box ao lado). comum, o bem do país. Em lugar de fabricar Editora Expressão Popular
Com Victor Hugo encerrado, Walnice tem mais penosamente leis de irritação e de animosidade, Páginas 312
tempo para se dedicar a um novo projeto para leis que caluniam os que as fazem (Movimento),
2019. Desta vez, organiza a reunião completa dos procuremos em conjunto, e cordialmente, a
contos daquela que tantas vezes escreveu no calor solução do temível problema de civilização que
da hora: Lygia Fagundes Telles. A obra sairá pela
Companhia das Letras.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

O INQUISIDOR OS FILHOS DO DESERTO MIRÓ ATÉ AGORA


Ângelo Monteiro COMBATEM NA SOLIDÃO Miró
Lourenço Cazarré
Ângelo Monteiro, um dos expoentes Reúne livros de Miró, em que é possível
da Geração 65, é lembrado como um Cazarré retorna à época da escravidão enxergar o ritmo, a voz e seu gestual
“vulcão”, tal é a efervescência e o calor que no Brasil para contá-la através de um performático: dizCrição, Quase crônico,Tu
emanam de sua obra. Os poemas deste menino, feito prisioneiro na África para tás aonde?, Onde estará Norma?, Pra
livro ganham figuras e formas através do ser vendido a homens brancos no país. não dizer que não falei de flúor, Poemas
pano de fundo do regime militar do Brasil, Mas Kandimba torna-se protegido da para sentir tesão ou não, Quebra a direita,
provando que a alcunha atribuída ao poeta poderosa Dona Joana, uma rica mestiça segue a esquerda e vai em frente, Flagrante
faz todo o sentido. que, além de cuidar dele, vai apresentá- deleito, Ilusão de ética, São Paulo é
lo ao maravilhoso mundo da leitura. fogo e Quem descobriu o azul anil?
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1817 - AMOR E REVOLUÇÃO CURSO DE ESCRITA DE QUEM É ESSA MULHER? - A


Paulo Santos ROMANCE NIVEL 2 ALTERIDADE DO FEMININO
Álvaro Filho NA OBRA MUSICAL DE CHICO
HQ baseada no livro A noiva da Revolução, BUARQUE DE HOLANDA
de Paulo Santos, com roteiro do autor e Vencedor do IV Prêmio Pernambuco de Alberto da Costa Lima
ilustrações de Pedro Zenival. Os fatos Literatura, apresenta um escritor que se
históricos são narrados pelo líder da envolve na narrativa, mesclando ficção e Um mergulho na obra de Chico Buarque,
Revolução Pernambucana, Domingos realidade. Com elementos fantásticos e tido como o grande intérprete da alma
Martins, e sua esposa, a portuguesa Maria muita autoironia, o autor brinca com os feminina e uma das maiores expressões da
Teodora da Costa. O amor dos dois, que clichês dos romances policiais noir, num MPB, que analisa a condição da mulher em
enfrentou preconceitos, acontece durante a jogo metanarrativo com a estrutura do suas músicas e identifica como o discurso ali
primeira revolução republicana do Brasil. gênero, pondo em discussão o processo de presente a aborda como ser humano e social.
criação e os limites entre o real e o ficcional.
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GORDOS, MAGROS E GUENZOS JOSÉ PIMENTEL: ALÉM DAS OUTRO LUGAR


José Almino de Alencar PAIXÕES Luis S. Krausz
Cleodon Coelho
Miscelânea composta de crônicas, reflexões Vencedor do Prêmio Cepe Nacional de
literárias, pequenas narrativas, relatos Perfil do ator, diretor, escritor, poeta, professor Literatura em 2016, o romance de Luís
históricos e memórias de José Almino. e jornalista José Pimentel, memória viva Sérgio Krausz inicia com uma viagem a
Como uma variação do brilho de sua obra do teatro pernambucano desde os anos Nova York, numa narrativa vertiginosa
poética, as crônicas parecem transitar 1950, quando novas concepções cênicas rumo ao desconhecido. O livro é construído
entre poesia e prosa, sem que haja risco conquistaram o respeito do Brasil. Após através de palavras inacreditavelmente
na mudança de gênero, com refinada integrar a Paixão de Cristo de Nova conscientes, torpes, profundas e friamente
sensibilidade aos tipos populares ou Jerusalém por mais de 20 anos, encenou críticas ao homem, que buscam levar seu
elitistas que permeiam sua imaginação. a Paixão de Cristo do Recife, vista por protagonista em uma viagem incerta.
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Primeiro volume da coleção Frevo Livro-reportagem que tenta esclarecer
Memória Viva, o livro focaliza um dos episódios de violência
vida e obra de Ademir Araújo, imposta aos militantes de oposição
o Maestro Formiga, compositor, pela ditadura brasileira, quando seis
instrumentista, arranjador, regente componentes da Vanguarda Popular
e pesquisador que, com espírito Revolucionária foram encontrados com
inovador, muito tem contribuído sinais de execução sumária, entre eles a
para a cultura musical do estado, companheira do agente infiltrado Cabo
o que lhe fez conquistar o título de Anselmo, que teria comandado a trama.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

RESENHA

Reler livros,
HANA LUZIA

ato de amor e
descoberta
Em Janelas irreais, Felipe
Charbel cria narrativas sob
o signo da busca: volta a
diversas obras literárias para
pensar o mundo, e a cada
página acrescenta camadas
de interpretação
nista de O teatro de Sabbath. Poderíamos fazer o mesmo
Bernardo Brayner e perguntar a todo momento o quanto de Mickey
Sabbath e outros personagens ressurgiram depois no
No conto A máquina de pensar em Gladys, de Mario Le- narrador de Janelas irreais.
vrero, o narrador se prepara para dormir e faz um O trecho sobre a paternidade e suas complexas
inventário de tarefas antes do sono: deixar uma janela reaparições em releituras é um dos mais marcantes do
aberta e fechar outra, esvaziar um cinzeiro, dar corda livro. Lemos na entrada de 15 de agosto uma citação
no relógio. Uma das tarefas é verificar a máquina de de Paul Auster: “A exemplo de tudo o mais na vida
pensar em Gladys que “estava ligada e produzia o meu pai, ele só me enxergava através da névoa da
suave ronronar habitual”. Nada se explica sobre essa sua solidão, como que a vários graus de afastamen-
máquina. Mais à frente o narrador: “De madrugada to de si mesmo.” e “…eu havia nascido, me tornei
acordei inquieto, um barulho incomum me causou seu filho, e cresci, como se fosse apenas mais uma
um sobressalto; me enrolei na cama e me cobri com sombra, aparecendo e desaparecendo no reino da
travesseiros, coloquei minhas mãos na parte de trás penumbra da sua consciência”. Aí entra o narrador:
do meu pescoço e esperei o fim de tudo com meus “O ressentimento é um tema frequente na literatura
nervos em tensão: a casa estava desmoronando”. Essa sobre paternidade, o ângulo por excelência a partir
pequena narrativa do escritor uruguaio me parece um do qual filhos e filhas escrevem sobre seus genitores.
trecho possível de Janelas irreais, um diário de releituras, es- Em A invenção da solidão, Auster se coloca numa posição
crito por Felipe Charbel e lançado agora pela Relicário de falta, de quem reivindica alguma coisa”. Uma re-
Edições. O livro de Charbel abre com uma citação de leitura de Patrimônio, outro livro de Philip Roth, serve
Henry James: “A casa da ficção não tem uma, mas para colocar a máquina do narrador em movimento
um milhão de janelas”. e analisar sua própria vida. É quando ele percebe
Trata-se de um livro que combina memória, ensaio que agiu como o próprio Roth e escolheu um novo
e ficção para contar a história do narrador a partir de apartamento para morar em um bairro qualquer sem
suas releituras. Ou melhor, o narrador tenta, através nenhuma razão consciente, mas então descobre que
de suas releituras, reencontrar sua felicidade como o novo endereço é bem perto do cemitério onde o
leitor e talvez entender o que acontece à sua volta: pai está sepultado. Uma das entradas do diário pode
uma viagem malfadada, o fim de um casamento, ser um sonho ou um trecho de um livro imaginado:
seus problemas para perder peso, seu emprego como “Sonhei que estava com a minha avó, a dona Bertha,
professor universitário. Entre as obras relidas pelo no quarto de adolescente da minha irmã. A mãe da
narrador estão principalmente livros de Philip Roth, minha mãe conta histórias antigas sobre a infância da
Roberto Bolaño, Don DeLillo, J.M. Coetzee e Lydia sua mãe, em Trás-os-Montes. Finjo não ter interesse,
Davis. Mas não é só isso: o livro também se serve de mas sinto prazer com o falatório. Dona Bertha tem
trechos de romances abandonados e abundante troca a voz de uma gralha, me nina como se eu fosse um
de e-mails do narrador com algumas mulheres. Em bebê, e do seu colo avisto uma mulher jovem, deitada
um trecho avançado do livro, o narrador escreve em de bruços. Não dá para distinguir seu rosto, mas é a
uma entrada no seu diário: “Nossa fuga é sempre para Hanna, sei que é a Hanna. Ela tem algumas bolhas,
dentro. Só nos abrimos para o mundo através de janelas pequenas feridas na pele. Está com catapora. Digo que
irreais, projeções fantasiosas nas paredes da caverna”. precisamos ir ao médico. Muda a cena e estou num
Logo depois: “Só existem dois desfechos possíveis consultório de dentista. Minha avó (dona Bertha, mãe
para um diário: a desistência ou a morte”. Entrada de da minha mãe) me acompanha na consulta. De pé,
janeiro de 2015: “O meu prédio vai desabar. Olho para atrás da cadeira ergonômica, sem dizer uma palavra,
cima e tento avistar o apartamento onde moro, mas ela me espreita como um fantasma, enquanto a den-
o reflexo do sol nas janelas esfumaçadas me deixa tista me faz perguntas”.
cego”. 9 de março: “Antes de O teatro de Sabbath, meu Estamos obviamente no mundo daqueles que leem
Roth preferido era A marca humana. Até hoje detalhes e releem para interpretar o mundo. Os sentidos vão
da trama me vêm à mente com extrema facilidade, se multiplicando a cada página e ganhando novas
como seu eu tivesse presenciado os eventos, em vez camadas de interpretação. Aqui o leitor vai encontrar
de lê-los numa narrativa inventada”. É interessante alegrias e tristezas, mas acima de tudo descobertas.
notar o jogo de espelhos que se cria quando o narrador Existe um desfecho possível para esta resenha. É um
cita uma releitura do Homem invisível, de Ralph Ellison, trecho citado pelo narrador e que ganha mais um sen-
feita por Philip Roth: “pois aqui também o herói é tido ao ser lido por você, leitor: “George Steiner dizia
deixado com o fato simples e gritante de si mesmo. que a verdadeira crítica é sempre um ato de amor”.
Ele está tão sozinho quanto um homem pode estar. Reler é um ato de amor. Em Janelas irreais, assim como
Não que ele não tenha saído para o mundo, ele saiu, no conto de Mario Levrero, estamos diante de algo
e saiu e saiu – mas no fim escolhe ir para o subsolo, que não pode ser explicado, mas que está sempre em
e lá viver e esperar. E isso tampouco lhe parece um funcionamento, ronronando como um gato enquanto
motivo de celebração”. O narrador pergunta quanto o mundo se despedaça. Podemos chamar isso de
do protagonista de Homem invisível ressurgiu no protago- memória ou ficção.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

INÉDITOS Ismar Tirelli Neto

Acenando
Há cerca de três anos, quando anunciei para os meus Estou dizendo adeus a esta casa. Ao dizê-lo, colho as
amigos que estava abandonando o Rio de Janeiro e me paredes em volta um pouco mais pálidas. Perda de
mudando para Curitiba, todos se mostraram incrédu- azul, uma impessoalidade que se insinua. Meus olhos
los. Por quê? Por quê?, afligiam-se, e meu cardápio de cravam-se em quinas, cantos, teias de aranha, man-
motivos sensatos – qualidade de vida, aluguéis mais chas de café no carpete. Tudo quanto possa trair a
em conta, emprego assegurado na sucursal paranaense presença de seus moradores. Isto não difere em nada
da firma onde eu então trabalhava etc. – não pare- de memorizar um corpo. Uma casca que me serviu,
cia convencê-los de todo. Pus-me então a trabalhar de que começo a me descolar.
num motivo insensato. Adquiri o hábito de responder, Casas, cascas. Pareço ter fracassado em construir
sempre que me perguntavam por que eu estava de uma casca de palavras. Azar.
mudança para Curitiba, justamente para Curitiba, que Estou dizendo adeus. Estou tomando providências. Re-
estava indo para lá “aprender a morrer”. servei passagens de ônibus. Agendei visitas. Escrevi
Isso pareceu serená-los. para nosso senhorio, alertei-lhe de nossos planos,
justifiquei-me muito mais que o razoável. Sobre a
*** mesa, um cardápio de motivos sensatos.
Uma pessoa habitua-se a dizer adeus. Os gestos Mais oportunidades de trabalho, um circuito cultural
voltam. Os do corpo e os da mente. Voltam, por assim vibrante, o vago desejo de pertencer a uma comunidade.
dizer, de forma orgânica. Hasteia-se a mão. Os dedos O nada vago desejo de me desenterrar de uma cidade.
estendem. Amarrado às falanges – proximais, médias, Com isto, com esta operação impossível, não estou
distais –, drapeja o adeus, bandeirola no vento, salga- dizendo “até a próxima”. Dizendo adeus, compenetro-
mos a batatinha com lágrimas. Bastante melancólica, -me de que não haverá “próxima”, compenetro-me
a coisa toda. de que a casa está se encaminhando, não só de volta
Acotovelada pelo “adeus” – e.g.: Adeus, mundo cruel! ao meu senhorio, mas também para o “tempo não
–, a mente passa a computar os rombos. Vai falhan- visitado”. Isto é de um poema do Drummond, um
do o mundo e sua crueldade. Lança-se a uma série poema chamado Maud, uma sua conhecida falecida
de apagamentos estratégicos. Desfaz datas, rostos, num desastre de avião.
detalhes comoventes. Torna inexato. Do tempo não visitado surge Maud
Uma pessoa habitua-se. Não aprende, não razoa. e volta
Habitua-se. Mesmo ao caráter solene e pesadão da para o tempo não visitado.
SOBRE O TEXTO
palavra, habitua-se. Caso raro em que a palavra é tão
Ismar Tirelli Neto é poeta, solene quanto o ato. Há uma equivalência, um bote, ***
roteirista e tradutor, e partamos disso. Os meus mortos, por exemplo. Não são muitos.
recentemente se mudou Estou dizendo adeus. Aceno uma palavra velha, pala- O meu quinhão. Não os convoco com a intenção de
de Curitiba. Aqui, uma ficção vra de antiquário. Aceno uma palavra embolorada. parecer sofrido. Antes para demonstrar que ainda es-
sobre esse processo de Nenhum esforço para torná-la atraente ao público tou buscando uma posição a assumir diante deles, com
despedida – um “conto-vivido”, jovem. Adeus, envelheço com ele, emboloro com ele, relação a eles.
como ele mesmo chama. misturo-me à cacarecada. Posto no mundo para ser Desde que meus mortos começaram a morrer – e
derrubado pelos elefantes. há alguns anos eles não vêm dando trégua – habituei-me
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

HANA LUZIA

a pensar neles como habitantes do “tempo não visita-


do”. Repiso, não aprendi. Não aprendi nada. Impossível
falar com honestidade de um aprendizado. A menos
“Dizendo ‘adeus’, e há muito mais tempo que o “normal”. Sem nenhu-
ma hesitação – as pessoas desprovidas de hesitação
exercem sobre mim um fascínio mórbido –, conta
que possamos falar de um aprendizado dos olhos,
das mãos, das pernas, do peso. Um hábito forma-se,
borda-se na vida pela prática até a irreflexão.
compenetro-me que largou o cigarro há mais de trinta anos, após uma
“situação em sua vida”.
Não demonstro nenhuma intenção de me apro-
Habituei-me também a pensar no tempo, nos
tempos, como regiões. Retiro com palavras o tempo de que a casa está fundar no assunto. Não preciso. Entramos no elevador:
– Um amigo meu, moço também. Começou a ficar

se encaminhando
do informe. Ponho tempo com as palavras que dizem sem fôlego, foi ver, era enfisema. Morreu três meses
lugar, que significam em torno de lugar. Eu não sei por depois. Moço como você.
quê. Me tranquiliza. Agora somos três e não há maneira de desfazê-lo.

para o ‘tempo não


Outro exemplo – bem batido – que me ocorre, volta Eu, este pateta, o amigo do enfisema. Não percebe o
e meia. A primeira frase do romance O mensageiro, de L. peso que nos deu. Penso, repetidamente e cheio de
P. Hartley. “O passado é um país estrangeiro, lá fazem rancor: pateta, pateta, pateta. De fato, vejo semelhança
as coisas de forma diferente”.
Estou dizendo adeus, pragmatizo. Os gestos já são su-
ficientemente melancólicos, não há necessidade de
visitado’ de que fala entre o corretor e o personagem da Disney. A boca.
Lábio de cima projetado sobre o inferior, dentes da
frente separados, um sorriso desses que encharcam
acrescentar nada. Como facilitar a passagem destes
anos, lugares e rostos para a memória? Estes recintos
de permeio, as peças de piso encerado que se colo-
Drummond” a voz, saem pingando.
Um homem que se entusiasma:
– Melhor do que isso, só dois disso!
cam entre presença e ausência, o que são elas? Como aqui para isso. Ato contínuo, ele dispara ladeira acima. Um homem que instrui:
nomeá-las? Luto? Busco emparelhar com ele, mas sua disposição não – Não é bem um terraço, está mais para um solar.
Estou dizendo adeus. Isto não é novo, já faz anos que é páreo para mim. Um homem honesto:
digo adeus. A pessoas que são lugares, a lugares Esta será apenas a primeira de muitas ladeiras que – Este está detonadinho.
que são anos. terei de subir aos trancos e barrancos no dia de hoje. Um homem com uma história para contar:
Sentirei falta daqui, desta casa que deixaremos para Todas bastante reais, embora me golpeiem também – Vinte anos de serviços prestados e me puseram
breve, ela comporta alguns anos decisivos. As caixas com seu potencial metafórico. Fico a alguns passos de na rua, sem mais nem menos. Passei um tempão
não comportam. distância, mas sempre ao alcance da voz: sem saber o que fazer da vida até me aparecer esse
– Circulo mais que notícia ruim por essas bandas, curso de corretagem. Foi o que me salvou. Atuo na
*** não consigo sair dos três dígitos. área há oito anos.
Até onde sei, o Cortázar nunca chegou a escrever O corretor preenche bem sua camisa quadriculada. Salvação. Ora, eis um tema, um motivo a acompa-
umas “Instruções para Despedir-se”. Pançudo como eu, porém muito mais alto. Deve ter nhar. “Sem saber o que fazer da vida”, “foi o que me
uns cinquenta anos. Só de olhar, não há absolutamente salvou”. Que me salvará a mim, Pateta? Será mesmo
*** maneira de saber se foram bem-vividos. tarde demais para recomeçar? Não estarei, por as-
“Comoção de minha vida”. Não, não, muito pou- Agora o Misericordioso nos envia uma rua plana. sim dizer, muito fora de forma? Depois de quatro
co suspiroso. Outra vez. “São Paulo! Comoção de O corretor diminui o passo, aproxima-se da guarita apartamentos inteiramente indiscerníveis entre si, o
minha vida...”. de um edifício. Apresenta-se à porteira, anuncia que corretor conta que tem uma visita agendada em Santa
Pronto. Agora, sim. Podemos começar. Deixamos, está lá para mostrar o apartamento Tal para um cliente. Cecília dentro de uma hora. Pergunta se não quero
eu e o corretor, o edifício da Major Diogo rumo à tarde Enquanto avançamos pelo hall de entrada, agora em acompanhá-lo, dar uma vista de olhos no imóvel
cinzenta e abafada. Ele menciona que há mais três ritmo menos atlético, ele acha por bem deter-se no antes da chegada do outro cliente. Estou exausto e
apartamentos na minha faixa de preço para mostrar fato de que estou bastante fora de forma. Pergunta se deprimido o suficiente para propor irmos de Uber,
nas redondezas. Concordo em vê-los, afinal, estou fumo, respondo que sim – muito mais do que deveria eu pagando. Santa Cecília calha de ser o bairro onde
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

ILUSTRAÇÕES: HANA LUZIA

estou hospedado, em casa de amigos cariocas que já gatos. Mas não posso deixar meu desvairado amor uma vida cabível. Pequena, sim, mas perfeitamente
vivem em São Paulo há uns cinco anos. pela humanidade me distrair agora. funcional. Como sou uma pessoa frágil, prezo mui-
Durante todo o trajeto, o corretor não para de ques- Começo a pensar nos objetos da casa que estamos to estas pequenas vitórias. Pude largar o escritório,
tionar as escolhas do motorista. Disparam-se no- prestes a abandonar como sobras, coisas tocadas e associar-me a uma pequena firma de tradução, re-
mes de ruas de cá para lá, de trás para frente. Estão remiradas por estranhos. Elas, as coisas, não sabem alizei o antigo sonho de trabalhar em casa. Todas as
esgrimindo suas cidades, a cidade de um e a cidade ainda o que são. Nem eu. veleidades de reconhecimento artístico devidamente
do outro. Para não me perder nelas procuro afundar No decorrer dos próximos dias me pegarei pensando jogadas no lixo, fui me tornando com o tempo um
no assento, dessintonizar, me entregar à paisagem, inúmeras vezes se não deveria estar rumando na direção ermitão simpático, um sujeito “chá com bolachas”.
mas o dia está com cara de poucos amigos. Lúgubre contrária. A cada percalço – visitas desmarcadas em Sou um poeta “difícil” num país onde 44 % da po-
como a cidade que queremos deixar. cima da hora, notificações de que os apartamentos pulação simplesmente não lê. Preciso ser realista. Não
Choverá feio durante todos os três dias de visita- encontravam-se indisponíveis minutos depois de os espero mais nada da vida afora talvez um sofá maior.
ção. A essa altura, ainda não sei disso. A essa altura, ter visitado –, ressurgirá com diabólica insistência Realismo. É o que faz com que eu me apresente
espero abstratamente rever estas paisagens sob um a pequena cidade no litoral catarinense onde vivem aos corretores unicamente como tradutor, afetando a
sol brando e claro, a uma outra luz, a alguma luz. meus sogros, os quais acabamos de visitar. máxima respeitabilidade.
Porque eu sou uma pessoa frágil. É o que vivo escu- Não é para a praia que eu deveria estar indo? Para
tando, de ladeiras, de pessoas. Temo inclusive olhar os deques, para o mar? Fora de temporada, vive-se ***
demais. As consequências disso. Demasia de viadutos, bem lá. Verdadeiros casarões a preços acessíveis. Não, Passamos a palavra ao amigo que me está hos-
passarelas, escadarias, ladeiras. Um passo em falso, eu não preciso de cidades. Preciso é desta calmaria. Eu pedando:
danou-se. Como tornar-se legível, linear numa preencheria muito bem esta calmaria. Por que estou – Engraçado, pensando por alto, nenhum amigo
cidade como essa? Onde é fixo? Onde entocar-se? indo para o lado oposto? nosso que veio se estabelecer aqui voltou para o
O apartamento de Santa Cecília é um encanto. Mo- Porque quero. Viver aqui seria, de fato, viver. O vi- lugar de onde veio. Não que não tenham passado
biliado, também. Compreendo melhor os espaços. Há brante, o vário de uma grande metrópole. Seu dina- por maus bocados. Enfim, deve ser a promessa. A
lugar para nossos livros, paredes para nossos quadros. mismo. Seu desvario. O deus ex machina espreitando cidade promete tanto, que as pessoas pensam: “só
O edifício seduz com suas comodidades, lavanderia a cada esquina. mais um pouco, mais alguns meses, quem sabe algo
inclusa na taxa condominial, três cargas por semana, Mas nada me chama afora isso. Um capricho. Que- de extraordinário...”.
“só não fazem cortina e edredom”. rer. Desde quando querer basta para alguma coisa? Nas horas vagas, venho tentando traduzir um ensaio
Vê-se, do solar, a estação de metrô mais próxima. Além do mais, há outras coisas que quero também, da Joan Didion para me exercitar, não na tradução,
O metrô, grande tentatore! Milhões de pessoas ensar- outros desejos que reconheço, que encontro sem mas no adeus. Chama-se Goodbye to all that. Nele, a au-
dinhadas em vagões metálicos, batalhando apoio, muito escavar. Me alhear, por exemplo. Me alhear tora rememora os verdes anos vividos em Nova York.
batalhando um bocado de ar. Meu coração chora completamente. Sumir. Fechar a matraca. Não emigrar “Eu ainda acreditava em possibilidades naquela
por vocês. Por todos vocês que foram lançados do meu roupão. Esquecer capitais e bandeiras. Burlar altura”, diz ela em algum momento, “ainda tinha
sem aviso e sem querer nesta, a mais cruenta das artigos de opinião. Atear fogo à biblioteca. Não ter a sensação, tão peculiar a Nova York, de que algo
Olimpíadas do Faustão. mais que negar, não ter mais que acatar. Não ter que extraordinário iria acontecer a qualquer momento,
Volto-me. participar de coisa alguma nunca mais. Me desobrigar qualquer dia, qualquer mês”.
O proprietário – o inquilino anterior? – deixou para em definitivo de um mundo que está seguramente Eu não acredito mais em possibilidades. O extraor-
trás mais sobras do que seria de esperar. Produtos de indo para o Diabo. dinário já não acontece, já não acontecerá. Eu não sei
higiene bucal, retratos de família no estrangeiro, uma Nenhuma proposta de emprego irrecusável, ne- por que escolho voltar à vida, por que volto a perseguir
pequena biblioteca de tomos jurídicos. Dentro de um nhuma situação. Terei de contar com a bondade de o trio elétrico. A vida não me convenceu de todo.
dos armários, vejo uma caixinha para transporte de estranhos. Para mal ou para bem, forjamos em Curitiba Esta é a verdade.
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É igualmente verdade que estou dizendo adeus


a esta casa porque já me enxergava envelhecendo,
morrendo nela. É igualmente verdade que comecei
“Estou dizendo chegando cheio de sacolas de supermercado e mes-
mo assim deixou fechar a portar do elevador. Estou
dizendo adeus à melancolia bronca de sua gente. Seu
a dizer adeus a esta casa no instante em que percebi
que poderia, de fato, irremissivelmente, passar nela
o resto da minha vida sem que ninguém me impe-
adeus a uma cidade silêncio venenoso, seu amor irracional pelo protocolo.
Estou dizendo adeus a uma cidade que não perdeu
uma oportunidade sequer de me torcer seu arrebi-
disse, sem que ninguém viesse tentar me demover.
que não perdeu tado nariz, de dar a ver que eu não tinha nada que
fazer aqui. Vocês estavam certos. Não tenho mesmo.
***
uma oportunidade
Adeus, burgo cruel! Uma pessoa habitua-se, por fim.
Não aprendi a morrer. Prova disso é que me meto Desenraizar-se de paisagens, de pessoas. Ama-
pela primeira galeria que encontro pela frente para das ou odiadas. Em todo caso, profundamente

sequer de me
escapar ao toró. Caminho a esmo, os chinelos en- vividas. Tão triste quanto possível. É o que nos
sopados, enquanto a chuva não dá trégua. Acabo quer dizer a permanência.
parando diante da vitrine de uma livraria muito Damos ouvidos?
bonita, cheia de velhos livros de arte. Fechada, infe-
lizmente. Surpreendo-me pensando que devo voltar
lá o quanto antes. Assim que estivermos instalados.
torcer seu Os sons improváveis, ligeiramente metálicos que
a vida faz. Seu costume de avançar, cega e ran-
gente, mesmo quando não há nada lá. Eu avancei,
Então compreendo – Já estou aqui. Já estamos aqui.

***
arrebitado nariz” eu avanço. Por halls, portarias, ladeira acima. Sei
que não caí nos rombos deixados pelas pessoas
e paisagens que desapareceram de mim. Sei que
Ninguém pareceu realmente surpreso quando estaríamos interessados em ocupar seu apartamento não estou lá dentro porque tenho olhos aqui fora.
anunciei que estávamos, eu e meu marido, de mu- próximo à Paulista por seis meses a partir de novem- Porque vejo tudo continuando. Porque estas con-
dança para São Paulo. bro, período ao longo do qual estará fora do país por tinuidades neutras, objetais, me lembram que eu
Todos ficaram surpresos com o deus ex machina so- motivos de trabalho. próprio continuo, que tendo a continuar. Por assim
brevindo à altura do Edifício Copan em meu último “Só em São Paulo”, diriam alguns. Só em São dizer, de forma orgânica.
dia de visitações. Paulo uma pessoa pode ser resgatada assim tão Eu não tinha um método para não cair. Eu não
Caminho sob a marquise revolvendo uma imagem. dramaticamente pelas circunstâncias. desenvolvi um método ao longo dos anos. Pode-se
Diante de um anfiteatro lotado, um homem sobre Então, estou dizendo adeus a uma cidade que não dizer que sobrevivi a tudo por milagre. Sim, é um
um palanque ergue a mão direita e começa a acenar nos resgatará nunca. Uma cidade que não é pacata, milagre que um sujeito frágil como eu não tenha caído.
lentamente. Todos no anfiteatro repetem o gesto. apenas triste. Estou dizendo adeus aos dias cinzentos Subo num palanque ao centro deste texto, ao
Vejo o anfiteatro acenando enquanto caminho a perder de vista. Não apenas a esta casa, verdadeira centro deste milagre, e aceno. Quase extático. Ter
sob a marquise. Salto cadáveres e poças d’água nas “comoção de minha vida”, jazigo, suíte nupcial, a despedida nos olhos, nas mãos, não conforma
cercanias do Edifício Copan quando avisto de longe escritório, perpetuação do quarto de menino. Não lição de nada. Uma pessoa habitua-se. Ela não
uma conhecida. apenas aos poucos e fieis amigos que ficam. Não aprende. Ela nunca aprende.
Uma conhecida simpaticíssima. Uma conhecida apenas às estoicas capivaras do Parque Barigui, ao Ela cava mais uma toca em qualquer outra parte
que pergunta o que vim fazer em São Paulo. Café Tiramisu, ao Sebo Fígaro. e torce.
Uma conhecida que, ao saber de nossos planos, Estou dizendo adeus à dona da padaria aqui do lado,
de nossas dificuldades em encontrar uma situação onde, apesar de frequentá-la por três anos, nunca ***
residencial realista na Desvairada, pergunta se não soube se era bem-vindo. A cada vizinho que me viu Eu penso bastante no Rio de Janeiro.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

RESENHAS
PALOMA ALICEA / DIVULGAÇÃO

mas para vantagem meu chefe diz obrigado raquel


pessoal, posicionando-se pelos teus bons desejos
como fantoches, numa eu, tranqui,
indústria dominada por que por pouco fui chefe mata-
brancos”. Assim, é urgente chefe
a proliferação de vozes mas agora antes de nascer
como a de Salas Rivera, sonharam-sonharam-me assim
que tenta reinventar preciosa
não somente o mito
da latinidade, mas que Esse poema tem
também fala, usando um pouco de tudo
poesia, das relações de isso – política, prazer,
classe e de gênero que personalismo, descaso,
mantêm esse mito. sarcasmo, gentileza,
Salas Rivera é uma poeta cansaço. Mas é no
latina e boricua, imigrante estupendo Meu amor, que
não binária vivendo nos aparece o verso mais
EUA, que usa poesia para importante de Desdomínios,
empoderamento político, justamente pelo uso que
seu e nosso – e um montão faz destes contrários; a
de prazer estético. E é por poeta detecta o buraco
isso, portanto, que é de se negro e faz dele seu lugar:
celebrar – e muito –
a publicação da autora 28. amar-me-ás inteira,
em português, pela invisível, boricua?
Douda Correria, com
o lançamento do O uso, na obra, desse
livro Desdomínios. jogo de morde e assopra,
A publicação reúne de um jeito que fica entre o
poemas de quatro obras pop e o barroco, é bastante
anteriores, que aparecem interessante se pensarmos
na ordem cronológica que esta é a linguagem
– o que dá, para essa mesma do neoliberalismo,
pessoa com Mercúrio em que nem nos deixa nem
Virgem que vos escreve, nos proíbe ser quem
um prazer especial: somos – separando vozes
poder acompanhar e os corpos dissidentes,

Um “morde e Boricua é um derivado


da palavra taino boriken
(taino é uma das línguas
dos EUA – 1.600 km – do
que o Recife está de São
Paulo, distantes 2.700 km
o fortalecimento do
vocabulário e do
imaginário de uma poeta,
dividindo o mundo entre
vencedores e perdedores.
Em Desdomínios, Raquel

assopra” entre o
autóctones do Caribe) que uma da outra!). Aguilera, de maneira tão clara, é Salas Rivera nem emula,
a comunidade porto- ela mesma filha de um mesmo uma delícia. Por nem nega o potencial
riquenha, principalmente imigrante equatoriano, causa dessa simplicidade para drama que nos foi

pop e o barroco
a que vive nos EUA, usa salpica por todo texto despretensiosa, página atribuído – ela torce tudo
para nomear si própria, invenções atribuídas à após página a poesia de o sabemos sobre isso, e faz
de maneira positiva. A latinidade, descrevendo Salas Rivera se agiganta. do exagero um lugar de
primeira vez que a ouvi seu objeto de desejo, um Além disso, a autora não reivindicação política

Das forças de Raquel S. Rivera, foi em 2003, na música


Infatuation, de Christina
dançarino porto-riquenho,
como um cara sexy, que
parece ter medo de ser
panfletária – apesar de
e poética.
***
poeta não binária e caribenha Aguilera: “‘eu sou 100%
boricua’, diz a tatuagem no
domina a arte de seduzir,
mas principalmente a de
que você nem nota que
está sendo introduzida
Leitores brasileiros
podem comprar o
que lançou livro em Portugal braço dele”. A segunda
vez que me deparei com a
enganar (“mamãe me
avisa: filha, cuidado com
no vocabulário político
da autora, que é bastante
livro através do email
doudacorreria107@gmail.
palavra foi 14 anos depois, esses latin lovers / entreguei particular; questões com
Adelaide Ivánova no poema brigo com minha a um meu coração e foi de gênero, imigração,
namorada porque os fascistas assim que me tornei Porto Rico, sexualidade: Nota da edição: por
querem me matar, de Raquel sua mãe”). O problema está tudo lá. questões de diagramação,
Salas Rivera: da proliferação desse O motivo, talvez, não foi possível manter
estereótipo específico – para que a gente nem o alinhamento original
brigo com minha namorada a dominação da arte de perceba essa politização, dos versos de Raquel
porque ela se esquece do nome enganar – é que ele não é por causa do prazer Salas Rivera nesta
da minha amiga boricua  somente não faz jus às que emana em cada resenha. Fizemos uma
e porque estou cansada. comunidades boricua e texto (e por favor não adaptação para esta
me automedico com poemas latina (algum estereótipo confundam prazer com página e publicamos o
faz?), como também é simplismo – não é fácil poema com alinhamento
Se no texto de Salas o que ajuda a matar e gozar). Esse prazer se faz correto em nosso site
Rivera o significante encarcerar esses grupos sentir nos neologismos, (suplementopernambuco.
identitário vem nos EUA, onde 32% da na iconoclastia, nas com.br).
para sublinhar uma comunidade carcerária imagens exageradas
tensão política entre a é latina, apesar desta do amor romântico,
invisibilidade de pessoas representar apenas 16% da no humor levemente
latinas nos EUA e a população total em prisões. autodepreciativo;
invisibilidade queer, na É aí que eu queria elementos que aparecem
música de Aguilera, a chegar: a latinidade no texto de Salas
palavra dá materialidade é reduzida a dois Rivera com bastante
a esse corpo, mas por tipos, marcados por naturalidade, até que vem
meio de estereótipos significantes de classe, um ataque surpresa, pela
relacionados à latinidade. ultrassexualizados e via às vezes da porrada,
Na música, a cantora heterocêntricos (o latin às vezes da delicadeza.
descreve seu novo lover pobre e enrolão, e a Num poema chamado
paquerinha como “um milionária sexy tipo Jennifer Que bom! (MEU DEUS QUE
bailarino” (porque, óbvio, Lopez – que amamos, mas TÍTULO), a autora analisa
não dá pra ele ser latino às vezes é foda!). A poeta, relações laborais e/ou
e trabalhar como, sei ensaísta e ativista chicana figuras de autoridade e POESIA
lá, fotógrafo, padeiro, Cherríe Moraga fala disso, termina da forma mais
professor, astronauta), de “uma pequena elite inesperada possível: Desdomínios
“que vem de um país latina que frequentemente Autora - Raquel Salas Rivera
estrangeiro, uma ilha usa sua identidade racial/ soltei meu chefe no rio afoguei Editora - Douda Correria
muito distante” (sendo que cultural não como fonte de meu chefe Páginas - 27
Porto Rico está mais perto empoderamento político, tu conheces a história Preço - € 8
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

Sobre o indócil e delicado corcel PRATELEIRA


Um cavalo é conduzido aqui continuo falando É hora de ir, ele ouve e cavalo se desvencilha de UM BÁRBARO NO JARDIM
por Bruno Schulz, mas a do Cristo sabendo que procura com os olhos imensos Schulz, não há ilustração. O polonês Zbigniew Herbert (1924-1998) foi
certa hora se desvencilha isso é tão estranho quanto mas não encontra nada O recurso possibilita poeta e ensaísta. Neste livro de ensaios, vemos
e continua sua jornada dar asas a um cavalo – a ainda, diz-se a certa que o leitor forme sua uma prosa debruçada sobre a arte e história
em busca de algo que não exemplo do que ocorre altura da narrativa. O própria imagem na europeias: das pinturas rupestres de Lascaux
lembra. Ao fim, chega a no livro ora discutido. desenho que acompanha mente ou mesmo na segue para as culturas francesa e italiana,
um menino, com quem Um possível olhar para o trecho é um close no folha em branco deste continuando até a atualidade. No itinerário:
galopa concentrado. o livro é o de ele ser uma olho do cavalo, um dos salto para a busca. contribuições da Magna Grécia vistas nas ruínas
O objetivo é chegar a alegoria da busca do momentos em que o A fuga do corcel talvez de Paestum, a maravilha das antigas fortalezas,
alguém que os espera autor polonês por essa traço de Marcos Cartum diga que a procura é maior os jardins ingleses da França do Iluminismo,
depois de longínquos infância que, mesmo está mais definido, que seu autor, e parece ser a exuberância do Renascimento italiano.
morros. Mas seria tolo pura, já reconhece a sem forma difusa. possível entender o en-
reduzir o livro Bruno Schulz estranheza ao redor. Enquanto ambientes contro com o garoto tanto
conduz um cavalo, de Leda Schulz comanda o cavalo, e o próprio cavalo se como o contato com a pu-
e Marcos Cartum a isso. mas este se livra e segue definem pela delicada reza de Schulz, quanto um
Schulz (1892-1942) adiante por noites, ganha confusão de traços, convite para o leitor correr
foi escritor e ilustrador asas, cresce e diminui o olho, instrumento com o polonês suas procu-
cujas ficções, grosso para ser achado por uma de busca, surge mais ras (Igor Gomes). Autor: Zbigniew Herbert
modo, são desejosas da criança que desenha delineado e firme. Editora: Âyiné
infância e amargurada homens tristes e criaturas A visitação que o livro Páginas: 370
pela maturidade. O texto estranhas, para depois realiza da obra de Schulz Preço: R$ 68,90
de Leda se pretendia seguirem juntos um parte dos elementos que
uma análise da obra do caminho a uma pessoa ele mesmo lançou em QUERIDA KONBINI
autor, mas terminou desconhecida. Assim, seus desenhos e ficções Jovem escritora renomada no Japão, Sayaka
por virar um conto com esse exercício da procura escritas. Se a intenção de Murata cria neste romance uma trama
ilustrações de Marcos. aqui surge como calvário Leda Cartum era analisar ambientada em uma konbini, uma loja de
A narrativa é dividida sem final – se na Igreja as os trabalhos do polonês, conveniência, para propor uma reflexão sobre
em pequenos parágrafos estações terminam com o gênero “conto” foi os esforços para nos adequarmos às “normas”
acompanhados dos o sepultamento de Cristo, ótima opção porque, das sociedades contemporâneas. A trama é
desenhos. À primeira na obra em questão associado aos desenhos, centrada em uma mulher de 36 anos que nunca
vista pode lembrar algo finda com o surgimento consegue acolher a se relacionou amorosamente e há 18 anos
do cinema mudo (o filme de nova busca. indocilidade do cavalo trabalha em uma konbini. Apesar da pressão para
intercalado com cartelas Como a obra se centra e da procura de Schulz que se case, ela está satisfeita consigo mesma.
de texto), mas depois no quadrúpede, o que sem tentar domesticá- CONTO
remete às estações da o trabalho de Marcos los como ocorre com
via crucis de Cristo, em e Leda pode dizer é: o exercício crítico não Bruno Schulz conduz um cavalo
que o desenho seria a ao encontrarmos as ficcional, ao menos em Autores - Marcos e Leda Cartum
imagem da estação e ficções, centremo- boa parte dos casos. Editora - Relicário
o conto, sua legenda. nos nelas enquanto Destaco um ponto alto Páginas - 64
Schulz era judeu, mas caça, busca, procura. de delicadeza: quando o Preço - R$ 36,90 Autora: Sayaka Murata
Editora: Estação Liberdade
Páginas: 152
Preço: R$ 39

A rainha revisitada O que se excluiu KAFKIANAS


Elvira Vigna (1947-2017) é uma das
escritoras mais importantes do Brasil
Maria Bonita: sexo, violência a ferro e fogo por terem Em um planeta cada emocionada dos eventos contemporâneo. Autora de importantes obras,
e mulheres no cangaço não é cabelos curtos ou vestido vez mais dominado e crimes narrados. O a exemplo de Como se estivéssemos em palimpsesto de
livro que traz novidades acima do joelho. O livro pelos Homo sapiens, os zoológico e o museu são putas, neste livro póstumo ela reconta, de forma
factuais a respeito de coloca Maria ao rés do animais tornaram-se temas importantes nesses ágil, vinte narrativas de Franz Kafka (1883-
Maria Gomes de Oliveira chão (trata-a por "Maria objeto de dominação, contos, são tratados como 1924) – em algumas, traça pontes improváveis
(1910-1938), que ficou de Déa", nome pelo qual de curiosidade e, depois espaços de regulação entre a terra natal do autor (hoje República
conhecida como "Maria era conhecida na época). de domesticados, de do olhar que definem o Tcheca) e o Brasil.
Bonita". A obra, isso sim, Remove as camadas de afeição. Nossa crise modo de se relacionar
reorganiza informações boatos e lendas e consegue civilizatória teria aí suas com a alteridade. Alguns
sobre a companheira de situar a cangaceira de raízes mais remotas, se humanos responde à
Lampião a partir de um forma acessível e humana considerarmos que a demanda implícita que
viés atento às discussões por ser um livro de relação de dominação se coloca hoje para a
feministas. "Reorganiza" História com estética de e assujeitamento do literatura, para as artes
porque enfatiza aspectos reportagem, e por estar em homem pelo homem e para a antropologia: Autora: Elvira Vigna
das culturas urbana e rural diálogo com as discussões passou pela instituição figurar aquilo que a noção Editora: Todavia
acerca do comportamento do presente (I.G.). de uma dinâmica de humanidade negou ou Páginas: 128
da mulher na época, opressora entre sujeitos excluiu (Laura Erber). Preço: R$ 49,90
para mostrar, a partir e objetos. Alguns humanos
da biografada, o lugar defronta-se com essa COPO QUEBRADO
complexo delas no crise, reelaborando-a Neste romance, Alain Mabanckou (escritor
cangaço. Apesar de em 11 contos de ficção convidado da Flip 2018) traz um professor
a divisão de tarefas real. Cada um desses congolês cujo apelido é Copo Quebrado. Este
nos esconderijos ter contos trabalha uma é incumbido de contar, em um caderno, a
discreta diferenciação dimensão da relação vida e as histórias dos frequentadores de seu
por gênero – homens e entre a cultura do bar preferido, batizado de O crédito acabou. A
mulheres costuravam e homem branco e seus partir disso, se constrói uma farsa na qual o
cozinhavam, a caça era outros. Os relatos são sublime se mistura com o grotesco para expor
serviço deles e, por vezes, secos, cadenciados, interessante retrato de uma realidade africana,
os novos cangaceiros eram sinistros, mas nunca incorporando alusões literárias e humor.
recrutados por Maria, que cedem ao mau hábito
também agia como espiã estético de extorquir
do bando –, elas eram HISTÓRIA comoção, culpa ou
tratadas como objetos e sentimentos fáceis. CONTOS
alvo de violências brutais. Maria Bonita: sexo, violência e Deixando intacto o
O mesmo ocorria com mulheres no cangaço enigma da violência, Alguns humanos
outras moças no sertão, Autora - Adriana Negreiros o livro produz um Autor - Gustavo Pacheco Autor: Alain Mabanckou
alvo de estupros (inclusive Editora - Objetiva efeito bem mais Editora - Tinta da China Editora: Malê
coletivos), além de Páginas - 296 inquietante do que uma Páginas - 144 Páginas: 180
algumas serem marcadas Preço - R$ 49,90 denúncia, racional ou Preço - R$ 65 Preço: R$ 42
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

RESENHAS
REPRODUÇÃO

sofisticação técnica ter incide em risco constante


sido influenciada pela de profanação da obra
formação na burocracia, literária, uma vez que,
uma vez que, quando nestes casos, a análise
ele avançava no serviço materialista acaba por
público, sua obra ia sendo sempre anteceder a
cada vez mais povoada por preocupação estética.
uma legião de bacharéis, Ainda que Nilo Batista não
juízes, tabeliães, escrivães, deixe de inserir Machado
advogados e afins – além e sua obra em processos
da farta presença de históricos determinados,
conceitos e formulações consegue fazer do autor de
jurídicos. “À procura de Dom Casmurro um escritor
certa palavra em sua obra, ainda maior.
tropeçávamos fascinados Machado de Assis,
no uso impecável dessas criminalista é uma aula sobre
formulações e desses a história do direito penal
conceitos”, escreve Batista. e da criminologia no Brasil
A palavra procurada por do século XIX. Em um dos
ele na obra machadiana momentos mais fortes
era criminologia, já que o da obra, Batista se porta
autor foi contemporâneo como espécie de advogado
do empreendimento de defesa de Capitu,
teórico europeu que demonstrando a fragilidade
consagrou o termo por da sentença condenatória
meio da obra de Raffaele apresentada por Bentinho
Garofalo, nome forte do em Dom Casmurro, por ser
positivismo criminológico. o personagem acusador e
A palavra criminologias juiz a um só tempo. “Por
– assim mesmo, no isso, a intervenção de um
plural – foi encontrada juiz na colheita policial
por Nilo Batista em uma de provas, autorizando
crônica de 1896, poucos medidas cautelares
meses depois de Clóvis (interceptações telefônicas,
Beviláqua publicar o buscas domiciliares,
volume Criminologia e Direito prisões provisórias etc.),
(primeiro livro latino- deveria impedi-lo para
americano a utilizar a o julgamento da causa,

Lições de Direito As liberdades dependem tanto


uma das outras, que o dia da
morte de uma é a véspera da
Partindo de tal
pressuposto, travamos
contato com uma imensa
expressão criminologia em
seu título, como aponta
Rosa Del Omo em A América
que, em certo sentido,
na internalização de seu
empenho e convencimento

Penal com o sr.


morte de outra variedade de contos Latina e sua criminologia). sobre os resultados da
Machado de Assis e crônicas com temas Percebendo que investigação, converte-se
criminais, com romances eram praticamente em 'sua’ causa. Juízes-

Machado de Assis
Se, durante muito tempo, repletos de jargões irrespondíveis as questões investigadores são
Joaquim Maria Machado judiciários e com uma sobre como Machado incapazes de fazer justiça,
de Assis (1839-1908) foi infinidade de personagens compreendeu com e estão condenados a
acusado de ser indiferente forenses, além de termos tamanha argúcia o sentido fazer justiçamento.”
Nilo Batista mostra a verve aos conflitos sociais de seu
tempo, em particular no
acesso às opiniões de
Machado em textos
e a funcionalidade de
certos recursos jurídicos,
Um dos destaques da
análise de Nilo Batista
jurídica e criminológica da obra que toca à questão racial sobre controvérsias coube a Nilo Batista a é deixar evidente a

do autor de Dom Casmurro


e às lutas abolicionistas, jurídico-penais e função de tentar entender relevância e atualidade de
a imensa fortuna crítica tendências criminológicas. os usos dentro de cada algumas questões jurídico-
do autor demonstra quão Nilo defende que uma das obras do escritor. penais trabalhadas pelo
Leonardo Nascimento injusta foi a atribuição do o livro é destinado a Ao longo do livro, fica escritor. Em que pese
“estigma de absenteísmo” “juristas e criminólogos, mais do que evidente o pouco cuidado da
que pairou em torno de professores, estudantes que, se os esforços de produção editorial (com
seu nome. Mas, no caso de e pós-graduandos em Garofalo (e dos demais erros notórios, como o
perdurarem dúvidas a este direito, advogados e juízes, criminólogos positivistas) desencontro entre sumário
respeito, elas se tornam defensores públicos, iam na direção de provar e paginação), a erudição
agora quase insustentáveis promotores de justiça, a existência de um “crime teórica e o fino humor do
com Machado de Assis, delegados de polícia, natural”, Machado, ao pesquisador, confundidos
criminalista, novo livro de escrivães...”. Por isso, contrário, argumentava com o brilhantismo de
Nilo Batista. pede que, se “algum contra o entendimento de Machado de Assis, fazem
A obra do renomado incauto do país das letras uma ontologia do objeto desta uma obra singular
professor de direito tenha curiosidade sobre criminal, atuando na dentro dos estudos sobre
penal, um dos mais este Machado jurista e deslegitimação das penas o escritor.
importantes advogados criminólogo”, tenha-lhe do sistema punitivo.
criminalistas do país, é piedade em caso de ter “O crime existe? Existe;
um desdobramento da sucumbido a possíveis eis tudo. Não existe; eis
pesquisa desenvolvida tentações, devido aos ainda mais” – escrevia ele
por ele desde 2014 “modestos limites de em uma crônica de março
no Programa de Pós- seu ofício”. de 1895. “Em inúmeras
graduação em Direito da Embora não tenha sido passagens de sua opulenta
UERJ. A aposta de Nilo advogado, certamente produção, Machado se
Batista foi a de revisitar Machado estudou as leis (nos) diverte tematizando
uma obra que, segundo do Império e da nascente procedimentos e
ele, transcendeu as República para aprimorar dogmas do cientificismo
fronteiras da literatura e seus escritos. Mas, ainda punitivista”. Assim, Nilo
da invenção estilística, que a própria biblioteca Batista demonstra, por
constituindo-se como do escritor tenha sido meio de impecável análise
“fonte inexaurível objeto de estudo de outros teórica, as formas como
de informações pesquisadores, nada do Machado desvendou os
surpreendentes e que foi encontrado por sentidos históricos do DIREITO
intuições desconcertantes Nilo Batista foi capaz de sadismo de uma sociedade
sobre a formação social elucidar como Machado escravista e patriarcal. Machado de Assis, criminalista
brasileira urbana”. conseguiu adquirir tão Segundo Sidney Autor - Nilo Batista
Machado de Assis nos é refinada bagagem jurídica. Chalhoub, autor de Editora - Revan
apresentado como um Uma das hipóteses Machado de Assis, historiador, Páginas - 254
eminente criminalista. levantadas foi a de sua historicizar a literatura Preço - R$ 52
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

O sólido tríptico: texto, imagem, gesto PRATELEIRA


A origem do livro Mala por meios distintos: a máxima fusão das três apenas no gênero GEORGES BATAILLE: DOCUMENTS
quadrada, cabeça quadrada linguagem pictórica linguagens na última infantojuvenil. Busca Reunião em português dos artigos publicados
partiu de uma experiência e gestual. página, enfatizando assim maior interatividade por Georges Bataille (1897-1962) na revista
da autora do texto, A linguagem pictórica estas três qualidades . Os do que geralmente é francesa Documents. Neles, vemos a virulenta
Patrícia Vasconcellos, refere-se à ilustração autores também são três, reservado aos livros, briga do autor com os surrealistas e o
em uma viagem à abstrata e à tipografia. As cada um responsável por uma experiência para surgimento de noções importantes para sua
Sibéria, na Rússia, em letras modificam-se de uma linguagem: Patrícia qualquer idade. obra posterior. Juntos, esses textos são uma
2004. Em retiro com acordo com as mudanças Vasconcellos (texto), Outros diferenciais espécie de armas de guerra contra o status quo
xamãs siberianos, da narrativa, tornando- Gabriela Araújo (projeto da obra são o formato do pensamento ocidental. O livro conta com
atrapalhou-se ao puxar se mais arredondadas gráfico e diagramação) e triangular e a tradução e posfácio de João Camilo Penna
uma mala quadrada e menos quadradas. A Eduardo Souza (projeto encadernação artesanal, e Marcelo Jacques de Moraes, além de um
enorme. Um xamã disse: ilustração cria um espaço gráfico e ilustração). nos quais é demonstrada prefácio do pesquisador francês Denis Hollier.
“mala quadrada, cabeça próprio, em que se utiliza Além disso, o livro não uma preocupação
quadrada”. A frase ficou do potencial das cores para possui uma exatidão de com a valorização da
em sua cabeça por anos transpassar a consciência, tempo e espaço, uma materialidade do livro,
até ser transformada na afetos, metáforas e alusões. história linear, e sim uma tornando-o único e
história de uma menina Os tons de cinza e cores, transição existencial de necessário. A forma
que vivia em um mundo que não se misturam, uma menina para uma do livro, assim como a
quadrado (metafórica e representam o mundo mulher. O início e o fim personagem, questionam: Autor: Georges Bataille
literalmente), fazendo quadrado, e a fusão e da história coexistem até quando dá para se viver Editora: Cultura e Barbárie
coisas quadradas, quando diluição das mesmas no centro do livro, na uma vida inteira em um Páginas: 272
um grande acontecimento representam o mundo mudança da vida da mundo quadrado? Preço: R$ 62
a torna e a faz viver redondo. A linguagem personagem, como (Hana Luzia)
redonda, momento gestual é induzida por um ciclo interminável, NUVENS DE ALGODÃO
mais importante da meio da diagramação do convidando o leitor a Abbas Kiarostami (1940-2016) foi um
personagem. O centro texto, isto é, a organização reler o livro em busca importante cineasta iraniano, conhecido
de transição desses das palavras provoca a de novos significados e por sua delicadeza e contundência ao abordar
dois mundos, o mundo necessidade de girar-se sentimentos, como imagens sem pressa. Essas “nuvens” de
quadrado e o mundo o livro continuamente, um mantra. poemas dialogam com tal característica:
redondo, é exatamente a partir do manuseio Mala quadrada..., por a brancura do amanhecer, uma paisagem
o meio do livro, onde do leitor. Esta tríade de suas três dimensões e por nevada, os viajantes, um barco sem vela
é visível a costura texto, imagem e gesto é sua narrativa, não apenas e outras imagens repletas de simplicidade
da encadernação. bastante coesa do início se enquadra em um livro INFANTOJUVENIL que, por vezes, alcançam níveis jamais
Porém, a história é ao fim da história, da ilustrado, no sentido possíveis no cinema. A tradução foi feita
narrada não apenas capa à contracapa, desde que combina narrativas Mala quadrada, cabeça quadrada diretamente do persa por Pedro Fonseca.
pelo texto de Patrícia, o formato triangular visuais e verbais (o que Autores - Eduardo Souza, Gabriela
mas também através de do livro — que, quando não é a mesma coisa que Araújo, Patrícia Vasconcellos
outras duas dimensões aberto, torna-se quadrado um livro que contém Editora - Caleidoscópio Edições
que se complementam e quando girado torna- ilustrações), como Páginas - 48
à linguagem verbal se redondo — até à também não se enquadra Preço - R$ 65

Autor: Abbas Kiarostami


Editora: Âyiné

Do que se perdeu Educação e Brasil Páginas: 197


Preço: R$ 59,90

O PAPEL MATA-MOSCAS E OUTROS TEXTOS


Histórias de livros perdidos, rápida apresentação Renato Janine Ribeiro o filósofo promove boas Organizado e traduzido por Marcelo Backes,
do escritor italiano à relevância deles. é filósofo político e foi reflexões sobre Educação este volume traz narrativas de Musil (1880-
Giorgio von Straten, Também discute – de ministro da Educação sem prescindir de sua 1942), autor de Um homem sem qualidades. O livro
se propõe a dar uma forma superficial e do governo Dilma visão sobre a necessidade foi concebido em referência ao desejo do autor
"volta ao mundo" a passional, já que se durante alguns meses. de ligar competição austríaco de organizar uma coletânea com
partir das histórias trata de itinerário Rara oportunidade (liberalismo) à seus próprios trabalhos. Além de reforçar a
de oito livros que se próprio, como o autor para um intelectual cooperação (socialismo). presença de Musil no mercado, o livro tem
perderam no tempo esclarece na introdução que sempre esteve O livro ganha por ótimos projeto gráfico e ilustrações, de Daniel
por diversos motivos – a complicada relação em debates públicos mostrar às claras ao leitor Trench e Regina Silveira, respectivamente.
(destruídos, sumidos entre uma obra e seus vivenciar uma leigo a centralidade da
etc). Os autores, em herdeiros. Estes, em experiência de gestão Educação no processo de
sua maioria canônicos, diversos casos, destroem que dialoga com formação da população e
são apenas dos EUA obras para preservar seu viés acadêmico. de como esta área é uma
e parte da Europa: reputações. É justo Em A pátria educadora das que melhor refletem
Romano Bilenchi, Byron, negar esses trabalhos em colapso, expõe a planejada desigualdade
Hemingway, Bruno à humanidade? (I.G.) os bastidores que que existe no país (I.G.). Autor: Robert Musil
Schulz, Gógol, Malcolm viveu no governo Editora: Carambaia
Lowry, Walter Benjamin e lança algumas Páginas: 180
e Sylvia Plath. Todos têm interpretações sobre Preço: R$ 72,90
história de uma obra que a derrocada da gestão
se perdeu, de uma forma petista. É um livro SUBCIDADANIA BRASILEIRA
ou de outra. O livro é que dialoga com Neste livro, o conhecido sociólogo Jessé
superficial na abordagem o já visto na obra Souza continua a investigar as grandes
dos autores e tem a anterior de Janine, A questões nacionais e as possíveis formas de
problemática presença boa política, lançada no superá-las. Busca na escravidão – e não no
(pontual, é verdade) do ano passado – com a patrimonialismo de herança ibérica, como
termo homossexualismo na diferença de que, desta outros famosos intérpretes – o manancial de
introdução e na seção vez, ele se posiciona perguntas e respostas para entender nossas
sobre Byron – não é politicamente às questões como povo e nação.
claro se essa palavra é do claras, chamando
autor ou se é problema o processo de
de tradução, não existe “golpe”. Se o anterior
uma nota sequer a esse HISTÓRIA busca mostrar as FILOSOFIA
respeito. Ainda assim, possibilidade de a
a obra traz histórias Histórias de livros perdidos filosofia dar conta de A pátria educadora em colapso
interessantes e vale Autor - Giorgio von Straten questões da política Autor - Renato Janine Ribeiro Autor: Jessé Souza
pela possibilidade de Editora - Editora Unesp cotidiana (ou seja, Editora - Três Estrelas Editora: Leya
ser um primeiro contato Páginas - 120 ganhar contornos Páginas - 352 Páginas: 288
com esses autores, uma Preço - R$ 38 pragmáticos), neste Preço - R$ 59,90 Preço: R$ 45
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
LUÍSA VASCONCELOS

A cólera fecunda
Em tempos pastosos, de poucos laços e o melhor de si mesmo”. Para isso, ele precisa comercial – a literatura como mercadoria,
frouxos compromissos, uma experiência se dispor – em um tempo governado pelos escrava dos padrões de sucesso – que faz
fica cada vez mais difícil: a da entrega. Essa protocolos, métodos e prontuários – a se com que o escritor “abdique de ser livre”.
relação débil com o real aparece, também, aventurar em um terreno cada vez mais Mas o escritor que se entrega se mantém em
na literatura em que, se não “escrevem por rejeitado, quando não escarnecido: o da harmonia tácita, constante, implacável com
escrever”, muitos escritores escrevem tão liberdade interior. Na era da técnica avan- a realidade, de quem é filho e, ao mesmo
somente pela brilhar, para lucrar ou pela çada, todos procuram por bulas, ordens tempo, criador. Isso acima de qualquer ideia
mais chula vaidade; ou simplesmente para expressas e normas reguladoras – todos de glória ou lucro. Escreve Osman ainda
submeter-se – cínicos e adestrados – às querem se submeter. A submissão cega, contra os ideais (comerciais) da literatu-
regras e etiquetas do deus mercado. rígida, impulsiva, se torna, assim, um valor. ra como distração, pois “a distração é um
Quem ainda tem a coragem de se entre- Há um medo cada vez maior da liberdade. anestésico”. No meio da grande zoeira, ele
gar? Dar-se por inteiro, sem tirar vantagens Nesses tempos, nos diz Osman, dois mi- encontra um personagem silencioso e abne-
e sem nenhuma garantia? A entrega simples tos cercam a figura frágil do escritor: a do gado: “Eis, porém, que um homem não está
e franca, sem outras intenções? Encontro idealismo e a da glória. Contra elas, no- distraído: escreve”. Eis o escritor.
uma luz para seguir relendo os Problemas in- ções que só o esvaziam, ele propõe que o Lembra também que não são apenas os
culturais brasileiros, livro que o pernambucano escritor faça a defesa da ira e cultive uma livros e as palavras que despertam suspeitas,
Osman Lins lançou em 1977, agora relan- “cólera profunda”. Adverte Osman, sem mas a simples e objetiva presença do escri-
çado pela Editora da Universidade Federal meias palavras: “Mande para o diabo os que tor lutador. Um escritor: isso basta, por mais
de Pernambuco, sob a organização de Fábio exaltarem o seu idealismo, pois eles que- difícil que seja sustentar essa posição. Esse
Andrade. É bom reencontrar Osman, que rem enganá-lo. Escrever é um ofício”. Em escritor que “mesmo assim, em silêncio,
nunca foi um homem de meias palavras, outras palavras ainda mais claras: escrever com a cabeça baixa (como o touro que in-
ao contrário, mesmo nos momentos mais é uma luta. A noção do idealismo, quando veste), ele vai em frente e escreve”. No ruído
adversos, e seguindo contra a corrente, foi associada ao escritor, só o afasta do mun- geral, diz, há um silêncio: a sua presença.
um escritor de palavras firmes e ímpares. do e de si mesmo. O “escritor sonhador” E, ao contrário do que pode parecer, ele
Na bela edição de 426 páginas apresen- não tem compromisso com ninguém, não não está sozinho. Continua, confiante: “Um
tada por Lourival Holanda, amigo querido, se entrega a coisa alguma, não cria laços. número cada vez maior de pessoas procura
que ganhei de presente de outro querido Ruge Osman Lins: “Custa-se a entender ser aquele desconcertante silêncio que se
amigo, Roberto Leite – um grande pesquisa- que o escritor não é um homem destinado faz presente em meio ao rumor”. Propõe,
dor da obra de Hermilo Borba Filho –, fixo- a evadir-se do mundo, e, sim, a mergulhar então, que os escritores deixem tudo o mais
-me em um artigo especialmente precioso, profundamente nele”. O escritor como mer- de lado e mandem, “solenemente, tudo o
que complementa o título da edição original: gulhador; como escavador do real; como que se pareça com a glória para o lixo”. Que
Do ideal e da glória. Um texto composto de desbravador, que caminha à frente de seu o escritor tenha a coragem de apenas ser.
afirmações fortes e definições categóricas, tempo, e, não, medroso e submisso, na re- E que ele não abra mão, nunca, jamais, da
que justificam as palavras de Osman desta- taguarda. Mas o pensamento idealista deseja ideia de entrega. Pois só a entrega abre uma
cadas por Lourival em sua apresentação: “A lhe roubar a potência, lançando seu ofício porta verdadeira para outros homens.
palavra sagra os reis, exorciza os possessos, no campo das amenidades e curiosidades. Em nossos dias turvos e exaltados, ler
efetiva os encantamentos. Capaz de muitos Quer transformar os escritores em “uns Osman Lins nos revitaliza e energiza. Suas
usos, também é a bala dos desarmados e o trânsfugas, uns cegos, uns inocentes, uns palavras nos trazem de volta a coragem.
bicho que descobre as carcaças podres”. jograis submissos e desarmados”. A ideia Coragem para ser. Elas nos apontam cami-
No centro do pensamento de Osman Lins do jogral é importante, pois desmascara a nhos e, assim, abrem fendas na escuridão.
está a questão – hoje tão desprezada e até fantasia de um escritor destinado apenas a Como diz Roberto Leite na gentil dedicatória
ridicularizada – da entrega. A entrega de divertir e relaxar seus leitores. do livro que, em um encontro recente em
quê? Não de um bem material, ou de um Não: o escritor não é um inocente, muito João Pessoa, me presenteou: que os textos de
título de nobreza, ou de uma promessa vã, menos um tolo. Ao tomar para si a palavra, Osman nos ajudem a resistir ao pior do pre-
mas a entrega de si. Escreve Osman: “O que a primeira palavra, ele já sela um compro- sente. Que nos alimente a cólera profunda
o escritor deseja é realizar e entregar, aos misso com o real e nele interfere, com con- que, em vez de ser puro ódio, se transforma
semelhantes, principalmente aos que falam tundência, para que a realidade não o fira. em potência. Que ele nos injete a coragem.
a sua língua, obras às quais haja consagrado Bate-se Osman Lins, aqui, contra a literatura Sim, porque vamos precisar.

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