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O sujeito do bullying

Fonte: Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Autoridade e violência. Porto Alegre, APPOA, 2011. 288p.
Autor: Gerson Smiech Pinho - Psicanalista; Membro da APPOA; Membro da equipe do Centro Lydia Coriat; Mestre em
Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

A noção de bullying tem ganhado cada vez mais destaque nas páginas dos jornais e nas manchetes de notícias
como referência para interpretar diversos acontecimentos. Um exemplo claro disso foi o assassinato em massa de doze
adolescentes, cometido por um ex-aluno de uma escola do Realengo, no Rio de Janeiro, em março de 2011. Entre as
suposições levantadas para a motivação de tal evento, foi apontado que o atirador teria sido vítima de bullying quando
era estudante. Apesar de não ter sido considerada pela maioria das pessoas como uma hipótese suficiente para
produção de tal ato, a associação com a prática do bullying foi bastante explorada quando esse evento foi veiculado pela
mídia.
O termo parece ter entrado de forma definitiva para o vocabulário cotidiano e passou a ser empregado de forma
cada vez mais abrangente e habitual. Artistas, jogadores de futebol e modelos divulgam como foram vítimas de bullying
no passado e como fizeram para superar a situação.
A discussão sobre o tema é extensa e tem atravessado diferentes âmbitos, desde o espaço das escolas até o
debate político. Em 2010, no Rio Grande do Sul, foi aprovada a lei que prevê políticas públicas contra o bullying, a partir
da qual as escolas passam a ter que adotar medidas de prevenção e combate ao problema. Além disso, o Senado
Federal recentemente aprovou o projeto que inclui o combate ao bullying na Lei de Diretrizes de Bases da Educação.
Apesar da prática do bullying ser considerada tão antiga quanto a própria escola, o uso e a disseminação do
termo para designá-la são bastante recentes. O emprego de um novo significante convoca a interrogar sobre os
deslocamentos do discurso social que conduziram a seu surgimento. Que recorte do real ele recobre, fazendo com que
se imponha em nossa cultura, de modo tão abrangente, e seja tão largamente veiculado pelos meios de comunicação?
Que contribuições a psicanálise pode trazer para interpretar esse fenômeno? Neste texto, procuro trabalhar essas
questões, bem como os elementos relacionados à constituição psíquica da criança e do adolescente que se associam
ao bullying e propiciam sua produção.
O termo bullying vem da língua inglesa e deriva da palavra bully, que, em sua forma verbal, significa "tiranizar,
oprimir, amedrontar, intimidar, maltratar" [Nota de rodapé: MICHAELIS. Dicionário prático inglês-português, português-
inglês. São Paulo: Melhoramentos, 1987. p 46]. Originalmente, tem sido empregado para designar um modo específico
de violência entre pares no ambiente escolar. Difere de outras formas de agressão por fixar um sujeito ou grupo como
agressor e outro como vítima, estabelecendo lugares que se repetem e se perpetuam com o passar do tempo. Contudo,
por ter se tornado uma palavra de uso cotidiano, não é raro que seja empregada de forma mais abrangente no senso
comum, designando modos de agressão assistemáticos e de menores proporções ou mesmo situações fora do espaço
escolar. Com isso, o leque de acontecimentos que são significados e interpretados tomando esse significante como
referência se torna cada vez mais extenso.
As primeiras pesquisas que tomaram o bullying como objeto de estudo datam da década de 70. Porém, o começo
da mobilização coletiva em torno do assunto se deu no ano de 1982, na Noruega, quando o suicídio de três jovens foi a
ele relacionado. Esse evento, que marca o início da difusão do tema, não é sem importância. Ao longo das três últimas
décadas, ao mesmo tempo em que observamos os crescentes estudos e pesquisas em torno da questão, assistimos
também à ocorrência de uma série de situações trágicas no ambiente escolar, as quais, ao serem divulgadas, são
rapidamente assimiladas à prática do bullying.
Entre as mais conhecidas, estão a do Instituto Columbine nos Estados Unidos, em 1999, em que 13 pessoas
foram mortas por dois estudantes que depois se suicidaram; o massacre na Universidade de Virgínia Tech, em 2007,
também nos Estados Unidos, em que um estudante matou 32 pessoas, ferindo outras 29 e cometendo suicídio logo a
seguir; e, no Brasil, a matança em uma Escola no Rio de Janeiro, já mencionada no início deste texto. Ao serem
noticiados, todos esses eventos foram, em alguma medida, relacionados ao bullying. Quais caminhos associativos são
percorridos para produzir tal ligação?

Agressividade e constituição do eu
Para dar prosseguimento a essa reflexão e pensar como se organizam os vetores que propiciam o bullying, é
fundamental interrogar o lugar da agressividade na organização do psiquismo, já que o fenômeno em questão implica o
uso sistemático da violência dirigida aos pares. Desde a psicanálise, principalmente a partir das contribuições de
Jacques Lacan, sabemos que as manifestações agressivas encontram uma ligação central com a constituição do eu e
sua relação ao semelhante.
O eu não é uma instância que esteja dada desde o começo da existência. Sua constituição acontece no período
que Lacan [Nota de rodapé: 1949. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.] denominou de estádio do espelho, quando surge a matriz identificatória que lhe dá origem e que
possibilitará todas as identificações posteriores, que irão compor sua estrutura.
O ponto de partida dessa ideia é um fato recorrente na observação de bebês entre seis e dezoito meses de idade:
o júbilo expresso no encontro com a própria imagem refletida no espelho, manifestação do reconhecimento de um eu
diferenciado em relação ao meio circundante. Esse fenômeno é resultante de uma primeira identificação com a imagem
que o Outro primordial oferece ao sujeito, permitindo a este antecipar uma unidade de si numa época em que a
imaturidade e a ineficácia motora são ainda muito significativas. É com base nessa imagem, que o Outro lhe apresenta,
que o pequeno filhote humano irá fabricar a estrutura originária do seu eu.
Outro fenômeno ligado a esse tempo de estruturação é o transitivismo. Segundo Jean Bergès e Gabriel Balbo,
[Nota de rodapé: Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC editora, 2002.]
este foi descrito inicialmente por Wallon como típico do desenvolvimento entre dois e três anos e implica a dificuldade da
criança em distinguir os estados e atos percebidos entre ela e o outro. Como consequência, observamos que o sujeito
reage confundindo sua própria experiência com aquilo que observa em seu semelhante. Por exemplo, quando uma
pequena criança cai e é seu companheiro quem chora. Ou, ainda, quando uma criança bate e depois diz que apanhou.
Essa indiferenciação, que vai da ação à reação entre os pares, em que o eu toma para si aquilo que o outro lhe
apresenta, é testemunho do suporte que a imago do semelhante representa para a constituição do eu.
Mas, para que não percamos de vista o tema que nos interessa: que lugar têm as reações agressivas entre pares
nesse contexto? Como podemos interpretar a tensa disputa por objetos, tão comum de ser observada em crianças
pequenas? Entre tapas e puxões, elas arrancam dos companheiros os mesmos brinquedos diante dos quais eram
absolutamente indiferentes no instante anterior. Por que motivo aquilo que está nas mãos do outro adquire tanto relevo
e passa a ser tão fortemente cobiçado?
Se, nesse momento precoce, a imago do semelhante tem um efeito determinante naquilo que se processa no eu,
todo objeto investido pelo outro adquire potencialmente o estatuto de objeto de desejo para o sujeito. A partir daí,
nascem as manifestações de rivalidade, ciúme e agressividade entre os pares, observáveis de modo tão claro e direto
nesse período. Surge a tríade que enlaça o eu, o outro e o objeto em uma permanente tensão agressiva.
Partindo desses fatos, Lacan [Nota de rodapé: 1948. A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.] afirma que a natureza da agressividade no homem está relacionada com o formalismo de seu eu e
de seus objetos. Segundo ele, a agressividade é uma tendência correlativa à identificação narcísica, que marca o eu
desde sua origem.
Em um de seus primeiros escritos, sobre a família, Lacan [Nota de rodapé: A família. Lisboa: Assírio & Alvim,
1981.] aborda esse mesmo tema a partir da noção de complexo de intrusão [Nota de rodapé: Com o termo complexo,
Lacan descreve um conjunto de reações de caráter fixo, relacionadas ao Instinto e dependentes da cultura, cujo
elemento fundamental é uma representação inconsciente à qual dá o nome de Imago. Dentre os complexos situados na
base da família humana, o complexo de intrusão sucede ao complexo do desmame e precede o complexo de Édipo].
Este complexo diz respeito à experiência da descoberta dos irmãos, ou seja, quando o sujeito reconhece que um ou
vários semelhantes participam com ele da relação doméstica. Esta descoberta varia em cada cultura e em cada família,
dependendo do modo como os nascimentos estão situados e do lugar que um sujeito venha a ocupar na sucessão dos
mesmos. O ciúme é o sentimento que se vincula de forma mais direta a essa situação.
Para falar do ciúme infantil, Lacan (1981) recorre a uma experiência observável em crianças entre seis meses e
dois anos, quando confrontadas com um semelhante cuja diferença de idade não ultrapasse dois meses e meio. Entre
as reações que se produzem, aparecem provocações e réplicas que nitidamente indicam o reconhecimento do outro
como um rival. A necessidade de as idades serem muito próximas sugere que a imago do semelhante tem uma
estrutura em que a similaridade entre os sujeitos é um pré-requisito fundamental e está ligada à estrutura do corpo
próprio por semelhança objetiva. Através da imago do outro, o sujeito encontra a imagem de si próprio e é por esta via
que as reações de rivalidade irão se produzir. Na situação fraternal primitiva, a agressividade aparece como secundária
a essa identificação.
De resto, a doutrina psicanalítica, caracterizando como sadomasoquista a tendência típica da libido
neste mesmo estádio, sublinha certamente que a agressividade domina então a economia afetiva,
mas também que ela é sempre conjuntamente sofrida e agida, quer dizer sustentada por uma
identificação ao outro, objeto da violência (1981, p. 41).
No drama do ciúme primordial, o eu e o outro se constituem simultaneamente, ao mesmo tempo em que um
objeto emerge enquanto elemento de disputa. A partir daí, duas alternativas se colocam no horizonte: ou o sujeito se
agarra ao objeto e à destruição do outro; ou o objeto passa a ser socializado através de um acordo ou pacto que só
pode ser viabilizado pela introdução da palavra e da dimensão simbólica. A rivalidade e a concorrência só têm um
encaminhamento possível a partir da introdução de um terceiro, de uma alteridade que funcione como ordenadora das
relações, o que viabiliza que os parceiros não necessitem se destruir mutuamente para conviver.
Bergès e Balbo [Nota de rodapé: A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.] situam a diferença
entre o aniquilamento do outro e a rivalidade atravessada pelo simbólico. Nesta última, a figura do terceiro opera de
modo a situar diferença e viabilizar o laço social. Esses autores trabalham a questão a partir de casos de gemelaridade
em que haveria uma total ausência de diferenciação entre os pares, imersos em uma identidade absoluta decorrente do
fracasso da função simbólica em produzir corte. A esse respeito, afirmam que
posso permitir-me ser rival de meu outro, pois existe uma diferença, e essa diferença é até mesmo a
única aposta de nossa rivalidade. Porém, quando não há nenhuma diferença, como no gêmeo, a
rivalidade só pode ser mortal (1997, p. 138).
Ainda, segundo esses autores, é a função simbólica que viabiliza a saída dessa posição aniquilante e
aniquiladora, já que "o significante, ao ser diferença absoluta, questiona a gemelaridade" (1997, p. 135). A partir disso,
podemos diferenciar duas posições estruturais possíveis na organização da tríade eu, outro e objeto.

A escola e o bullying
No caminho trilhado até aqui, percorremos o tema da constituição do eu e da agressividade entre pares.
Observamos como a relação fraterna é normalmente atravessada pela agressividade e pelo ciúme, e de como a função
de um terceiro é fundamental para que as reações agressivas possam encontrar um encaminhamento que garanta o
laço com o outro, em oposição à captura pela violência e pelo aniquilamento.
Passemos, agora, a abordar de modo mais direto o contexto escolar, o qual também implica o convívio
sistemático entre pares - "irmãos", em um sentido figurado. Por esse motivo, a escola é um território privilegiado para a
entrada em cena dos investimentos amorosos e identificatórios e também das reações agressivas e de rivalidade em
relação ao semelhante, que abordamos anteriormente.
A agressividade, a rivalidade e a competição estarão sempre presentes no cotidiano entre alunos. São normais e
constituintes do laço fraterno que o convívio diário impõe. Brigas, conflitos e situações de tensão estarão inevitavelmente
presentes no espaço da escola e necessitam encontrar a sustentação necessária para que possam ser elaborados. Por
esse motivo, é fundamental que a instituição escolar possa situar uma instância de alteridade que permita que as
manifestações de agressividade entre os pares possam ser atravessadas pelo campo da palavra, garantindo dessa
forma a preservação do laço social.
O fenômeno do bullying é o exato avesso dessa condição. Sua estrutura organiza lugares em que um elemento
faz uso da violência para se colocar em uma posição de poder que usurpa o lugar da alteridade que poderia regular o
laço entre os pares. Retira de cena a castração, ao propor a positivação do falo no despotismo e no abuso dirigido ao
semelhante. Trata-se de uma formação sintomática na qual o eu e o outro são aprisionados em uma tensão agressiva,
aniquiladora e sem saída, já que a função da palavra é abolida da cena. É efeito do fracasso da função simbólica para
movimentar as posições organizadas dessa forma e situar pontos de referência que viabilizem algum tipo de elaboração
pela via do discurso.
O bullying representa uma montagem perversa, que reduz o outro à condição de objeto de gozo, a ser
desprezado e aniquilado, em um ciclo recorrente, que se perpetua ao longo do tempo. A estrutura sadomasoquista que
aí se constrói não tem resolução possível, pela falta de um elemento terceiro que faça a palavra circular e colocar fim ao
circuito assim construído. O quadro perverso do bullying congela os personagens em um cenário sem narrativa, em que
a palavra perde a eficácia e o valor.
A fixidez desde a qual o outro é situado como objeto de violência no bullying pode ser melhor esclarecida a partir
de alguns elementos trabalhados por Sigmund Freud [Nota de rodapé: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago. FREUD,
S. (1925) A negativa. In: 1980. v. XIX.], em seu texto sobre A negativa. Esse artigo aborda o tema da constituição do eu
a partir da distinção de duas formas de julgamento - o juízo de atribuição, que permite definir a posse ou não de um
determinado atributo, e o juízo de existência, que constata ou contesta a existência de uma representação na realidade.
Para abordar o tema em questão, interessa tomar a primeira delas.
Segundo Freud, o surgimento do juízo de atribuição está ligado a uma primeira delimitação de um fora e de um
dentro no psiquismo, a partir de um eu-prazer. Tudo aquilo que é considerado bom é introjetado, colocado para dentro e
considerado como pertencente ao eu. De modo contrário, tudo o que se julga ruim é expelido, cuspido para fora,
considerado estranho e exterior ao eu. Nessa polarização, movida exclusivamente pelo princípio do prazer, se constrói a
distinção entre os atributos pertencentes ao eu e aqueles considerados como estranhos a ele.
O bullying organiza uma lógica similar à descrita por Freud nesse escrito. A partir dela, o eu situa o outro como
depositário dos aspectos desprazerosos não reconhecidos como pertencentes a si próprio, o que permite manter
distância da castração, com a manutenção da coesão e investimento narcísicos. O outro funciona como uma réplica ou
duplo, portador daquilo que o sujeito necessita manter afastado e eliminar. Por essa via, emergem a agressão e a
violência dirigidas ao semelhante. Trata-se de uma tentativa de afirmação narcísica diante da pouca consistência do
registro simbólico.
Essa estrutura explica o caráter persecutório que o parceiro imaginário adquire no bullying, em uma permanente
oposição em relação ao eu, já que carrega os atributos deste último, que não são reconhecidos como pertencentes a ele.
Outra questão importante diz respeito à época da vida em que o bullying surge com maior frequência. Segundo
Abreu [ABREU, A. M. B. de. Bullying: a violência que permeia a escola. Monografia de Especialização em
Psicopedagogia. Facisa, Xaxim, 2009.], a maior incidência acontece entre alunos do 6 º ao 9º ano, com agressores
predominantemente na faixa etária entre 13 e 14 anos e sujeitos agredidos com 11 anos. É interessante observar que as
idades referidas coincidem com o início da puberdade e da adolescência. Nessa época, o sujeito se depara com uma
série de modificações em seu corpo, bem como com mudanças no modo como é interpelado desde o Outro. Por esse
motivo, os processos de identificação da primeira infância entram novamente em jogo - são repetidos, porém agora em
uma nova posição.
O corpo do adolescente excede a imagem de seu eu. As identificações ligadas à infância já não funcionam como
"roupagem" possível para o sujeito. Isso faz com que a rede identificatória construída anteriormente precise se
reposicionar, com o trabalho de apropriação de uma posição sexuada e, ao mesmo tempo, na constituição dos outros
como objetos possíveis de investimento libidinal.
Se, como mencionamos acima, o bullying pode ser compreendido como um fenômeno de afirmação narcísica,
torna-se possível entender o motivo pelo qual vai ter maior prevalência nesse período, em que o sujeito precisa colocar
em questão todo o processo identificatório que estabeleceu no estádio do espelho e no complexo de Édipo.

O bullying no contexto cultural contemporâneo


Como foi apontado no início deste trabalho, o bullying tem ganho cada vez mais extensão e amplitude no contexto
cultural atual. Após termos percorrido as questões que ligam esse fenômeno à constituição psíquica da criança e do
adolescente, passaremos a interrogar os elementos da cultura contemporânea que entram em jogo em sua produção.
O individualismo tem sido apontado como característica fundamental do contexto cultural contemporâneo por
diversos autores. Isso significa que a noção de indivíduo ocupa o ponto de referência central desde o qual o sujeito atual
organiza e orienta sua vida. É o valor máximo da sociedade, em detrimento de outros, ligados às tradições e às
referências transmitidas pelas gerações anteriores. Se, como mencionamos anteriormente, o bullying é efeito da
ancoragem do sujeito no narcisismo, com a consequente retirada de cena das referências simbólicas, uma cultura
individualista como a nossa é um terreno extremamente fértil para sua produção e proliferação. Para situarmos de modo
mais preciso essa questão, vejamos como alguns autores concebem o surgimento do individualismo e seu
estabelecimento.
Segundo Stuart Hall [Nota de rodapé: Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998], é
com a modernidade que nasce a concepção do "sujeito individual", no centro de uma nova e decisiva forma de
individualismo. Para esse autor, nos tempos pré-modernos, a individualidade era vivida e definida de forma diferente.
Não estava sujeita a mudanças fundamentais, pois se apoiava de forma estável nas tradições e nas estruturas
divinamente estabelecidas. A posição social de alguém predominava sobre qualquer sentimento de individualidade.
Foram as transformações ligadas à modernidade que permitiram o nascimento do "indivíduo soberano", entre o
Humanismo renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII (Hall, 1998).
Nessa mesma direção, Louis Dumont [Nota de rodapé: Homo hierarchicus. São Paulo, EDUSP, 1992.] afirma que,
enquanto nas sociedades tradicionais o valor maior era a sociedade como um todo, com o advento da modernidade, a
ideia de "indivíduo" humano adquiriu um caráter quase sagrado e absoluto. Suas exigências encontram-se acima de
qualquer coisa e seus direitos só são limitados pelos direitos idênticos dos outros indivíduos. A sociedade passou a ser
concebida apenas como um meio, no qual a vida individual é o fim maior. Nas sociedades modernas, o ser humano é o
"homem elementar, indivisível, sob sua forma de ser biológico e ao mesmo tempo de sujeito pensante” (Dumont, 1992,
p. 57). Na medida em que cada homem particular representa a humanidade inteira, ele passa a ser a medida de todas as
coisas. É nessa representação que encontramos a origem da necessidade de considerar todos os homens livres e
iguais.
A concepção de sujeito moderno, calcada no conceito de um indivíduo autônomo e racional, tem sua
representação paradigmática no sujeito cartesiano, fundado na ideia de indivíduo e em sua capacidade para raciocinar e
pensar. Segundo essa concepção, o "eu pensante" e indivisível constitui o cerne do espírito do homem.
É com essa roupagem que nasce o indivíduo moderno: o sujeito capaz de raciocínio e consciência, coeso,
inteiro, "indivisível" e autônomo. Se, nos tempos pré-modernos, a tradição e os costumes guiavam o sujeito ao longo de
sua vida, com a modernidade o indivíduo ganha o lugar central.
Mas, que consequências têm a colocação em primeiro plano do indivíduo na composição da subjetividade
contemporânea?
O sujeito atual conta muito pouco com as referências da tradição para orientar sua vida. Se outrora essas
referências permitiam situar e estabelecer um lugar no tecido social, hoje já não têm mais o peso e o relevo necessários
para tanto. A possibilidade de se fazer representar na cultura passou a ser viável através daquilo que o sujeito vai
produzindo e construindo passo a passo, em nome próprio, ao longo de sua existência.
Contardo Calligaris [Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996.] afirma que existem dois
diferentes caminhos na constituição de um sujeito: a identificação aos valores, obrigações e tradições que recebe de sua
cultura; e o esforço por coincidir com a imagem que poderia satisfazer aos outros. Segundo ele, o segundo caminho
equivale àquilo que a psicanálise chama de "narcisismo".
Dos dois caminhos constitutivos da subjetividade, qual prevalece hoje? Para a modernidade, desde o
fim do século XVIII o indivíduo em sua autonomia vale mais do que a comunidade que o abriga, É
provável, então, que ele recuse o patrimônio herdado e que, para ser alguém, lhe reste correr atrás
de imagens. Todo o mundo, aliás, concordará que, em nossa época, diluem-se os valores e as
referências tradicionais, e talvez, momentaneamente, prevaleça a caça às imagens agradáveis (aos
outros) (Calligaris, 1996, p. 51).
Portanto, o valor supremo atribuído ao indivíduo, na modernidade, confere à nossa cultura um caráter "narcísico".
Nesse contexto, a sociedade atual passou a ofertar uma infinita variedade de imagens às quais o sujeito pode aderir
para organizar uma suplência mínima para a representação de si, diante da falta de um lugar transmitido pela tradição.
Nessa situação, o sujeito precisa garantir alguma consistência para a imagem à qual se encontra aderido e que dá
ilusão de valor ao eu. Uma das formas de fazer isso é situar no semelhante todos traços que não se coadunam com tal
imagem, transformando o outro em uma espécie de réplica negativa do eu. Ou seja, para dizer que eu sou é necessário
afirmar e confirmar que o outro não é. Essa lógica, que captura e aprisiona o sujeito no campo imaginário e narcísico, é a
mesma que organiza a estrutura do bullying. Neste, a violência e a agressão sistematicamente dirigidas ao outro têm
como finalidade a construção desse espelho do sujeito, ao avesso. A imagem do semelhante é depositária daquilo que o
sujeito precisa manter afastado de si para manter a unidade e a coesão narcísicas.
Ao definirmos o bullying a partir da necessidade de afirmação narcísica pelo sujeito, torna-se possível dizer que o
fenômeno em questão é efeito da condição individualista que o sujeito moderno experimenta. Trata-se de um sintoma
social relativo ao contexto da cultura atual, já que é efeito do discurso que propõe o indivíduo como bem supremo.
Aqui se coloca um aparente paradoxo. Vivemos era uma cultura que combate o bullying de modo explícito e
permanente. Ao mesmo tempo, cultiva os elementos necessários para a produção desse fenômeno que afirma repudiar
e, com isso, permite e sustenta sua existência.
Retomemos, agora, as questões que vínhamos trabalhando acerca do contexto cultural contemporâneo e vejamos
que outras interrogações podemos situar. Desde a psicanálise, um elemento fundamental que tem sido apontado em
relação à cultura atual é o "declínio do nome-do-pai". A noção de "nome-do-pai" foi proposta por Lacan (1998),
inicialmente, por ocasião de seu trabalho sobre as psicoses. Esse conceito revela a íntima relação da função paterna
com o registro do simbólico e com o significante: "a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante
puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pa i"
(1998, p. 562).
O declínio do pai simbólico está diretamente relacionado com a ideia de Calligaris (1996), anteriormente
abordada, de que a cultura atual é uma cultura "narcísica". Se, hoje, a identificação aos valores, obrigações e tradições
da cultura está colocada em segundo plano, isso é devido ao declínio do nome-do-pai, já que é essa função que permite
inscrever o sujeito como elo intermediário na cadeia das gerações, bem como é o que possibilita transmitir o
recalcamento e a castração simbólica [CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre. Artes Médicas, 1995].
Essa questão se associa ao modo como diversos outros autores caracterizam o contexto cultural contemporâneo.
Por exemplo, Hannah Arendt [Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.] refere que a crise no mundo
contemporâneo é traduzida pelo "esfacelamento da tradição". Sem a tradição que "seleciona, nomeia, transmite e
preserva, indica onde estão os tesouros e qual o seu valor (Arendt, 1997, p. 31), perdemos a dimensão da continuidade
consciente no tempo: nem passado nem futuro parecem existir, apenas a eterna mudança do mundo, o ciclo biológico
das criaturas que nele vivem.
Na mesma direção, Walter Benjamin [Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1985.] fala do aparecimento de "uma nova forma de miséria" através do "empobrecimento da
experiência", no que diz respeito à possibilidade de transmissão de uma geração a outra. A partir dessa constatação,
esse autor interroga o valor que adquire o nosso patrimônio cultural, na medida em que a experiência não mais o vincula
a nós.
Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos
que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda
miúda do 'atual' (Benjamin, 1985, p. 119).
Assim, o caráter "narcísico" da cultura, o "declínio da função paterna", o "esfacelamento da tradição" e o
"empobrecimento da experiência" são questões que se encontram entrelaçadas no tecido que constitui o contexto
cultural atual e que podem ser referidas como associadas ao bullying, na medida em que este é uma formação
sintomática que implica a abolição da alteridade e da autoridade, em busca de um gozo narcisista diante da violência
dirigida ao outro.
O debate a respeito do tema é, sem dúvida, importante. Porém, a questão é complexa e merece ser tomada com
todo o cuidado.
Um dos riscos importantes das políticas contra o bullying é transformar toda a manifestação agressiva que
aconteça no âmbito da escola em signo desse fenômeno. A consequência disso seria a repressão maciça das mesmas
e a impossibilidade de que elas possam ser experimentadas e simbolizadas desde os referentes éticos de nossa
cultura. Uma das funções genuínas da educação é permitir essa simbolização, dando andamento à transmissão dos
valores de uma geração a outra. Desde uma posição puramente repressora, o risco de retorno da agressividade em
forma de violência pode efetivamente ganhar proporções maiores.
Se a instituição escolar é um espaço privilegiado de transmissão dos valores das gerações anteriores às atuais, o
bullying é sintoma da fragilidade desse processo. Porém, na medida em que o mesmo pode ser lido e interpretado
enquanto produção da cultura atual, torna-se possível retomar essa função de transmissão.

Referências
ABREU, A. M. B. de. Bullying: a violência que permeia a escola. Monografia de Especialização em Psicopedagogia.
Facisa, Xaxim, 2009.
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1985.
BERGÈS, J.; BALBO, G. A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
BERGÈS, J.; BALBO, G. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC
editora, 2002.
CALLIGARIS, C. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996.
CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre. Artes Médicas, 1995.
DUMONT, L. Homo hierarchicus. São Paulo, EDUSP, 1992.
Obras completas. Rio de Janeiro, Imago
FREUD, S. (1925) A negativa. In: 1980. v. XIX.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
LACAN, J. (1948) A agressividade em psicanálise. In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
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