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Maurice Godelier

O enigma do
dom
TRADUÇÃO DE
Eliana Aguiar

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janeiro
2001
C OPYRIG H T €> Librairie Arthème Fayard, 1996.

Título original em francês:


L'énigma du don

CAPA
Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e Jo ã o de Souza Leite

CIP-BRASIL CATALOGAÇÀO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

Godelier, Maurice, 1934-


G 525e O enigma do dom / Maurice Godelier; tradução Eiiana Aguiar.
- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

Tradução de: L'énigma du don


ISBN 85-200-0545-4

1. Mauss, Mareei, 1872-1950. Essai sur le don. 2. Troca


cerimonial. 3. Doações. 4. Antropologia econômica. I. Título.

CDD 306.3
01-0996 CDU 316.334.2

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Impresso no Brasil
2001
Sumário

OAS COISAS QUE SE DEVEM OAR, DAS COISAS QUE SE DEVEM VENDER E DAQUELAS QUE
NÃO SE DEVEM DAR NEM VENDER, MAS GUARDAR 7

CAPÍTULO I

O legado de Mauss 19

CAPÍTULO II
Dos objetos-substitutos dos homens e dos deuses 163

CAPÍTULO III
O sagrado 257

CAPÍTULO IV

O dom des-encantado 301

BIBLIOGRAFIA 319
DAS COISAS QUE SE DEVEM DAR, DAS COISAS QUE SE DEVEM VENDER
E DAQUELAS QUE NÃO SE DEVEM DAR NEM VENDER, MAS GUARDAR

Por que este livro? Por que empreender uma nova análise do dom, de
seu papel na produção e reprodução do laço social, de seu lugar e de
sua importância mutáveis nas diversas formas de sociedade que coe­
xistem nos dias de hoje na superfície desta nossa terra ou que se suce­
deram no decorrer do tempo? Porque o dom existe em todo lugar,
embora não seja o mesmo em toda parte. Mas o parentesco também
existe em todo lugar, assim como a religião, a política. Então, por que
o dom? Por que este livro?
Ele nasceu do encontro, da pressão convergente de dois contex­
tos, um sociológico, uma análise efetiva da sociedade ocidental à qual
pertenço, e um outro que me é pessoal de outra maneira, aquele do
ofício que outrora escolhi exercer na vida, um contexto profissional,
uma situação dos problemas teóricos debatidos hoje em dia pelos an­
tropólogos, entre os quais me incluo.
O contexto sociológico não me é próprio. Ele está presente sob os
olhos de todos, ao redor de cada um e, como muitos, se o partilho, não
o escolhi. De que se trata? E o contexto de uma sociedade ocidental na
qual se multiplicam os excluídos, de um sistema econômico que, para
permanecer dinâmico e competitivo, deve “enxugar” as empresas, re­
duzir os custos, aumentar a produtividade do trabalho e, por isso, di­
minuir o número daqueles que trabalham, jogá-los maciçamente no
desemprego — um desemprego que se espera provisório e que, para

7
MAURICE GODEtIER

muitos, acaba por se mostrar permanente. E à porta de um mercado


de emprego saturado estão todos os jovens que se apresentam para nele
ingressarem, dos quais muitos estão condenados a esperar longo tem­
po e um pequeno número a não entrar jamais. Para estes é, a cada vez,
uma estranha existência social que começa, uma existência de assisti­
dos permanentes, a menos que encontrem meios de ganhar dinheiro
sem trabalhar. E há também todos aqueles que não esperam até chegar
lá e que encontram as zonas escuras da sociedade, as zonas subterrâ­
neas onde se pode trabalhar e ganhar dinheiro sem declará-lo ou ga­
nhar dinheiro sem trabalhar e sem declarar. Pois assim são as coisas em
nossa sociedade.
Enquanto em outros lugares é preciso pertencer a um grupo para
viver, a um clã, a uma comunidade aldeã ou tribal, e que esse grupo o
ajude a viver, em nossa sociedade pertencer a uma família não dá a
cada um, para a vida, as condições de existência, qualquer que seja a
solidariedade existente entre seus membros. Todos precisam de dinheiro
para viver, e para a maioria é preciso trabalhar para ganhá-lo, e é como
indivíduo separado que ele é ganho. Ora, trabalhar em nossa socieda­
de é também, para a maioria, trabalhar para outros, para aqueles que
possuem as empresas que os empregam.
Sem dinheiro, sem recursos, não há existência social nem mesmo,
afinal, qualquer existência, material, física. Esta é a raiz dos proble­
mas. A existência social dos indivíduos depende da economia e os in­
divíduos perdem muito mais do que um emprego quando perdem seu
trabalho ou não encontram um. O paradoxo próprio das sociedades
capitalistas é que a economia é a principal fonte de exclusão dos indi­
víduos, mas esta exclusão não os exclui apenas da economia. Ela os
exclui ou os ameaça a longo prazo de exclusão da sociedade. E, para
aqueles que são excluídos da economia, as chances de serem incluídos
novamente são cada vez menores.
A economia de um país capitalista não depende apenas dela mesma.
Ela faz parte de um sistema que se estende hoje em dia ao mundo in­
teiro e que exerce pressões sobre ela, constrangimentos permanentes

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O ENIGMA DO DOM

que se impõem em todo lugar, a todas as empresas e que significam


para cada uma delas o dever de maximizar seus lucros, esforçando-se
para estar entre as melhores nos mercados concorrenciais, nacionais e
internacionais.
O paradoxo é que a economia que cria excluídos em massa con­
fia à sociedade a tarefa de reincluí-los, não na economia — exceto
em proporções muito pequenas — , mas na sociedade. Nós vivemos
em sociedades cujo “tecido social” está, como se diz, “esgarçado”,
decompõe-se em várias sociedades cada vez mais compartimentadas,
estanques.
E, levando em conta o lugar do Estado nessa sociedade, é ao Esta­
do que cabe a tarefa de recompor a sociedade, de preencher o fosso,
reduzir as fraturas. Ora, o Estado não é suficiente para a tarefa. E este
nó de contradições e impotências que constitui o contexto no qual, hoje,
se faz apelo ao dom de novo e cada vez mais e por toda a parte. Dom
forçado quando o Estado decreta novos impostos ditos de “solidarie­
dade”, obrigando a maioria a partilhar com os mais necessitados para
tentar preencher as brechas que a economia abre, sem cessar, na socie­
dade. Uma economia da qual o Estado decidiu se desobrigar, assim como
decidiu se desobrigar pouco a pouco de outros aspectos da vida social.
Mas o Estado não é uma abstração pura, uma instituição vinda de ou­
tro planeta. O Estado governa, ele é o que aqueles que o governam
fazem dele.
É neste contexto, no qual vimos aparecer na rua, no metrô, cen­
tenas e depois milhares de mendigos, dos quais muitos se tornaram
SDFs, indivíduos “sem domicílio fixo”, que se cristalizou e generali­
zou o apelo a dar, a partilhar. A demanda de dom fez apelo à oferta,
e depois pôs-se a organizá-la. Deu-se o aparecimento de inúmeras
organizações “caritativas”, desde os “restaurantes do coração” até as
solicitações nos supermercados, em que se pede ao doador em po­
tencial, generoso, solidário, que partilhe não diretamente o seu di­
nheiro, mas aquilo que comprou com este dinheiro e que destinava a
seu próprio consumo.

9
MAURICE GODELIER

A caridade está de volta, ela, da qual Mauss escrevia em 1922, em


“Essai sur le don”, que, mesmo depois de séculos de instituições religio­
sas de caridade, “ainda era ofensiva para quem a aceita”1.
Aliás, para muitos dos que estão passando necessidade, ainda hoje
é humilhante estender a mão, pedir ao passante na rua, ao passageiro
no metrô. Eles preferem fazer de conta que ganham suas vidas ven­
dendo jornais impressos especialmente para eles e que raramente se­
rão lidos.
Pois a sociedade laicizou-se e a caridade, se está de volta, não se
apresenta mais como uma virtude teologal, gesto de um fiel, de um
crente. Ela é vivida pela maioria, crentes e não-crentes, como um ges­
to de solidariedade entre seres humanos. Ela, que tinha recuado na
medida em que havia um pouco menos de excluídos e um pouco mais
de justiça social, retorna e volta a ser necessária quando, de novo, exis­
tem cada vez mais excluídos e o Estado já não é capaz de fazer com
que haja menos injustiça, menos solidões abandonadas.
E no entanto, há apenas alguns anos, com a queda do muro de
Berlim e o desaparecimento precipitado dos regimes “socialistas” nas­
cidos no começo do século de uma revolução que sustentava que o povo
iria dirigir ele mesmo o seu destino e que a economia seria posta a ser­
viço do homem e de suas necessidades, uma revolução que em seguida
se transformou em uma mistura insuportável de economia dirigida e
de ditadura disfarçada de “democracia popular”, alguns não procla­
maram que se anunciava o “fim da história”, que iríamos assistir enfim
à expansão, até os limites do mundo, do sistema social ocidental que é
o produto de uma união afinal recente, mesmo na Europa, do capita­
lismo liberal na economia e da democracia parlamentar na política?
Para pessoas razoáveis e espíritos realistas, este sistema surgia não
como o melhor dos mundos, certo, mas como o menos mau, portanto

‘Mareei Mauss, “Essai sur le don. Forme et raison de 1’échange dans les sociétés
archaiques”, UAnnée sociologique, nova série, 1, 1 9 2 5 , in id., Sociologie e
Anthropologie, Paris, PUF, 1950, p. 258.

1 0
O ENIGMA DO DOM

o que apresentava mais probabilidades de se estender até as profundezas


da África, da Oceania, amanhã da China. E de durar. Era isso, o “fim
da história”: se deixássemos a economia de mercado agir e se o Estado
se desligasse o máximo do maior número de domínios, deixando os
indivíduos, os grupos, as empresas se arranjarem entre eles, as coisas e
as sociedades ficariam cada vez melhores. Diante do fracasso das socie­
dades dirigidas não somente pelo Estado, mas por uma casta que havia
se apropriado do Estado, o velho mito do capitalismo liberal, que con­
tinua acreditando na existência de um deus escondido, de uma mão
invisível que dirige o mercado às melhores escolhas para a sociedade,
para uma melhor repartição dos bens entre os membros da sociedade,
ganhou nova juventude e parece triunfar. Depois disso não parou mais
de ser invocado para pregar a paciência e a resistência para esperar,
para deixar agir a economia. Um dia todos serão recompensados. Mas,
enquanto se espera, é preciso viver e é preciso dar para viver.
Estamos distantes de Mareei Mauss e de seu “Essai sur le don” [En­
saio sobre a dádiva], no qual se vê um homem, um socialista que acabara
de perder a metade de seus amigos na primeira guerra do século, levan-
tar-se ao mesmo tempo contra o bolchevismo, afirmando que é preciso
conservar o mercado, e contra o capitalismo liberal, reivindicando que
o Estado intervenha, desejando que os ricos reencontrem a antiga gene­
rosidade dos chefes célticos ou germanos para que a sociedade não se
aprisione na “fria razão do comerciante, do banqueiro e do capitalista2”.
Mauss esboçava antes de seu tempo um programa “social-demo-
crata” que outros transformariam em programa político na França, na
época da Frente Popular e depois da Segunda Guerra Mundial, e, fora
da França, na Grã-Bretanha, na Suécia etc. Ora, Mauss tirava suas con­
clusões não apenas de sua experiência da sociedade francesa e da Eu­
ropa, mas de um vasto périplo empreendido durante anos para analisar
o papel do dom nas sociedades não-ocidentais contemporâneas ou no
passado das sociedades ocidentais germânicas, célticas etc.

í 2Ibid., p. 270.

1 1
MAURICE GODELIER

E é aqui que nossas abordagens se encontram e que aparece o se­


gundo contexto, profissional, que nos levou a reanalisar o dom. Mas
antes de mostrar o que nos orientava neste sentido, também neste
âmbito, ainda duas palavras sobre a pressão exercida sobre cada um de
nós para “dar”, sobre a “demanda” de dons.
Esta demanda se “modernizou”. Seja laica ou confessional, ela tor­
nou-se “mediática” e “burocrática”. Ela utiliza a mídia para sensibili­
zar a opinião, emocionar, tocar, fazer apelo à generosidade de cada um,
à solidariedade que deveria reinar em uma humanidade abstrata, situada
além das diferenças de cultura, de classe ou de casta, de língua, de iden­
tidade. Apelo à generosidade para lutar com mais força e para triunfar
mais rápido sobre a Aids, sobre o câncer. Apelo pelas vítimas da guerra
em Sarajevo etc. Em suma, apelos em favor de todas as vítimas da doen­
ça ou dos conflitos de interesses entre os homens. De alguma maneira,
o Ocidente está presente permanentemente em todas as frentes do mal.
A todos a mídia expõe o espetáculo de todas as exclusões, a dos indi­
víduos e a das nações devastadas pela miséria, pela pobreza, pela guer­
ra civil. Em suma, não é mais apenas o sofrimento dos próximos, é
todo o sofrimento do mundo que solicita nossas dádivas, nossa gene­
rosidade.
E claro que, nessas condições, não é mais questão de dar a alguém
que se conhece e menos ainda de esperar algo mais que um reconheci­
mento que nunca será recebido pessoalmente. O dom tornou-se um ato
que liga sujeitos abstratos, um doador que ama a humanidade e um
donatário que encarna por alguns meses, o tempo de uma campanha de
donativos, a miséria do mundo. Estamos longe do que acontecia ainda
ontem em nossas sociedades industriais e urbanizadas.
Então, o dom estava espremido entre duas potências, a do merca­
do e a do Estado. O mercado — mercado do trabalho, mercado de
bens ou de serviços — é o lugar das relações de interesses, da contabi­
lidade e do cálculo. Do Estado é o espaço das relações interpessoais de
obediência e de respeito à lei. O dom continuava, assim, a ser pratica­
do entre pessoas “próximas”, entre parentes, entre amigos: ao mesmo

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O ENIGMA DO DOM

tempo conseqüência e testemunha das relações que os ligavam e que


impunham obrigações recíprocas que as trocas de dons expressavam,
de dons feitos sem “contar” e, sobretudo, sem esperar um retorno. Pois
aquilo que marcava e continua a marcar o dom entre próximos não é
a ausência de obrigações, é a ausência de “cálculo”.
Eu havia lido “Essai sur le don” pela primeira vez em 1957, assim
como a “Introduction à Poeuvre de Mauss” de Lévi-Strauss, que o pre­
cede. Entretanto, eu ainda não era antropólogo, mas filósofo, e havia
passado mais tempo lendo Aristóteles, Marx, Kant ou Husserl do que
Durkheim ou Mauss, embora um e outro fossem considerados os mes­
tres da sociologia francesa. Mas já então, em Paris, falava-se muito de
uma nova abordagem mais rigorosa dos fatos sociais batizada de “es-
truturalismo”, que pretendia ultrapassar o marxismo e o funcionalis­
mo anglo-saxão. Este “estruturalismo” era o de Lévi-Strauss, que, em
1949, havia publicado sua primeira obra maior, As estruturas elem en­
tares de parentesco, e tinha feito de seu prefácio a Mauss no ano se­
guinte (1950) uma espécie de manifesto da superioridade da análise
estrutural na análise dos fatos sociais. Minhas notas de 1957 testemu­
nham o meu entusiasmo, suscitado por esta dupla leitura.
Diante do “Essai sur le don” eu tive a impressão de desembocar de
chofre na margem de um rio imenso e sereno, carregando uma massa
de fatos, de costumes, retirados de sociedades múltiplas espalhadas das
ilhas do Pacífico à índia, da Colômbia britânica à China etc., surgidas
das épocas mais diversas, da Antiguidade romana arcaica ao presente
mais próximo de Mauss, o da estadia de Boas entre os kwakiutls, antes
da Primeira Guerra, ou de Malinowski nas ilhas Trobriand, durante
esta mesma guerra. E outras referências a outros fatos, outras socieda­
des, amontoavam-se nós pés de página, como se o autor as tivesse co­
locado ali para não esquecê-las e vir buscá-las mais tarde. Todos estes
materiais referiam-se ao dom, suas formas, suas complexidades, e ha­
viam sido trazidos por uma corrente potente que os arrancara de suas
múltiplas margens, carregando-os consigo. Esta corrente era o movi­
mento desencadeado por uma questão em dois tempos, uma dupla

13
MAURICE GODELIER

questão que Mauss havia formulado para tentar decifrar o enigma da


dádiva:

Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atra­


sado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente
restituído?
Que força há na coisa que se dá que faz com que o donatário a restitua?3

Curiosa questão, pois Mauss iria demonstrar em seguida que dar é


encadear três obrigações: de dar, de receber, aceitar e de restituir, uma
vez que aceitou. Hipótese simples, poderosa, que parecia, ao impor a
consideração desses três atos em seu encadeamento, proibir que fos­
sem tratados em separado. Ora, nessas duas questões Mauss ressaltava
somente uma das três obrigações, a de restituir, como se as duas outras
fossem evidentes. A formulação, aliás, da segunda questão já parece
conter a resposta à primeira: Mauss, manifestamente, invocava a exis­
tência de um espírito na coisa que leva aquele que recebe a retribuir.
Em suma, tudo se passava como se a explicação pela existência de uma
regra de direito e de interesse fosse, a seus olhos, insuficiente e fosse
necessário acrescentar uma dimensão “religiosa”.
Foi nessa brecha que Lévi-Strauss se enfiou, criticando Mauss por
não se ter limitado claramente à análise, aplicando aos três momentos
que formam um todo o mesmo método, erro de método que um estru-
turalista jamais teria cometido e que provinha do fato de que Mauss
tinha abaixado a guarda, esquecido por um instante o espírito científi­
co para “deixar-se mistificar” por uma teoria “indígena”4. E coube então
a Lévi-Strauss propor uma explicação do conjunto dos fatos sociais que
fazia do social uma combinação de formas de troca, cuja origem pro­
funda deveria ser buscada nas estruturas inconscientes do espírito, em

3Ibid., p. 148. Grifo nosso.


4Claude Lévi-Strauss, “Introduction à 1’oeuvre de Mauss”, in Sociologie et
Anthropologie, op. cit., p. XXXVIII.

1 4
O ENIGMA DO DOM

sua capacidade de simbolizar. Em vez e no lugar de uma pesquisa socio­


lógica sobre a origem dos símbolos, o leitor via-se confrontado com a
visão grandiosa de uma “origem simbólica da sociedade”. Fácil com­
preender o entusiasmo em mim suscitado por tal vigilância crítica, tal
vivacidade de pensamento, tais perspectivas visionárias sobre o dom,
as trocas, o inconsciente e a origem da sociedade.
Depois dessa primeira leitura do “Essai sur le don”, tornei-me an­
tropólogo e passei muitos anos no trabalho de campo na Melanésia,
uma região do mundo que tinha fornecido a Mauss alguns de seus
materiais mais ricos, mais expressivos, através das obras de Seligman,
de Thurnwald e muitos outros, especialmente Malinowski, que havia
trabalhado na Nova Guiné, nas ilhas Trobriand. Em seguida, eu mes­
mo trabalhei por vários anos em um vale das terras altas do interior da
Nova Guiné, entre os baruyas.
Lá deparei com formas não-ocidentais de dom, contexto novo para
mim e que me levaria a retomar o dossiê do dom e a reavaliar o legado
de Mauss, assim como o de Lévi-Strauss, sobre esta questão e algumas
outras. Eu havia partido para o trabalho de campo com duas idéias na
cabeça. Primeiramente, a de que, se o dom pode ser encontrado em
toda parte, ele não é apenas uma maneira de partilhar o que se tem,
mas também uma maneira de combater com o que se tem; era a idéia
— que eu atribuía a Mauss — de que a lógica dos dons e contradons
culmina com o potlatch*.
A segunda idéia, inspirada em Lévi-Strauss, era a de que a socieda­
de funda-sp sobre a troca e só existe através da combinação de todos
os tipos de trocas — de mulheres (parentesco), de bens (economia), de
representações e de palavras (cultura etc.). E estava também sob a in­
fluência de uma terceira convicção, proveniente igualmente de Lévi-
Strauss: a do primado do simbólico sobre o imaginário e sobre algo

‘ Palavra inglesa originária de uma língua dos índios americanos. Dom de caráter
sagrado que constitui, para quem o recebe, um desafio a dar um presente equiva­
lente (N. daT.).

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MAURICE GODELIER

nomeado por um termo indeciso, o “real”. Pois, para Lévi-Strauss, o


símbolo era, afinal, mais real do que a “realidade” que significava.
A desintegração dessas evidências começou logo, desenvolvendo-
se, porém, lentamente. No trabalho de campo entre os baruyas, pude
observar a prática do dom e do contradom na troca de mulheres, mas
nada de potlatch. Ao contrário, toda a lógica da sociedade excluía que
se pudesse adquirir poder através de dons e contradons de riquezas. O
poder não ia para as mãos de Big Men, que acumulavam mulheres e
riquezas, mas para as mãos de Grandes Homens detentores de pode­
res herdados, presentes nos objetos sagrados e nos saberes secretos
dados a seus ancestrais por potências não-humanas, o Sol, os espíritos
da floresta etc. Em suma, com esses objetos, éramos confrontados a
coisas que os baruyas, não podiam vender ou dar, e que deviam guar­
dar. Ora, os baruyas sabiam o que era vender, já que produziam uma
espécie de “moeda”. Analisei tudo isso em L a Production des Grands
H om m ess, pois voltei-me para um domínio desta vez mais teórico: a
análise dos sistemas e relações de parentesco. Ora, outra vez, pouco a
pouco, parecia-me que a hipótese de que estes sistemas se explicavam
através das diversas maneiras que os homens têm de trocar mulheres
era demasiado redutora, deixava na sombra muitos fatos, mutilava a
realidade.
Foi então que aconteceu o encontro entre os dois contextos, socio­
lógico e teórico, e o estalo, a decisão de escrever um livro sobre o dom,
veio da leitura, em 1994, do livro de Annette Weiner, Inalienable
Possessions: The Paradox o f Keeping-while-Giving?.
Eu tinha lido as publicações anteriores da autora, mas aqui as idéias
tinham sido levadas mais adiante. Especialista das Trobriand, tendo rea­
lizado com Malinowski uma pesquisa sobre os mesmos fatos, a prática

5Maurice Godelier, La production des Grands Hommes, Paris, Fayard, 1982. Nova
edição, 1996.
‘Annette Weiner, Inalienable Possessions: The Paradox o f Keeping-while-Giving,
Berkeley, University of Califórnia Press, 1992.

1 6
O ENIGMA 00 DOM

do kula, Annette Weiner havia descoberto fatos novos que esclareciam


problemas deixados sem resposta por Malinowski e por Mauss. Ela
mostrava, sobretudo, como se podia conservar um objeto e ao mesmo
tempo dá-lo. Era uma parte do enigma do dom que era assim resolvi­
da. Além disso, o interesse de Annette Weiner pelos objetos que não se
podem dar, as coisas sagradas, unia-se ao meu. Foi então que se produ­
ziu o estalo e eu decidi realmente retomar o dossiê do dom à luz desse
fato fundamental de que existem coisas que não se devem dar, e que
também não se devem vender.
Foi desse ângulo que reli Mauss, Lévi-Strauss e vários outros auto­
res. E foi então que me pareceu evidente a seguinte hipótese: não há
sociedade, não há identidade que atravesse o tempo e sirva de base tanto
para os indivíduos quanto para os grupos que compõem uma socieda­
de se não existirem pontos fixos, realidades subtraídas (provisória mas
duravelmente) às trocas de dons ou às trocas mercantis. Quais são es­
tas realidades? Trata-se somente dos objetos sagrados presentes em todas
as religiões? Não haveria uma relação geral entre o poder político e
algo que é chamado de sagrado, e isto até mesmo nas sociedades laicas,
onde o poder não emana dos deuses, mas dos próprios homens que as
fundaram, dando-lhe uma Constituição? Mas o que há em um objeto
sagrado? Quem o “deu”? Enfim, toda a análise deslocou-se das coisas
que se dão para aquelas que se guardam, e nesse movimento vimos
esclarecida a natureza desta coisa tão familiar que parece ameaçar a
prática do dom e penetrar no domínio do sagrado apenas para profaná-
lo e destruí-lo: o dinheiro. Estranho itinerário que nos permitiu remon­
tar até estas coisas recalcadas, cujo recalcamento talvez seja para todos
a condição de uma existência social. A viagem foi difícil. Comecemos,
portanto, por Mauss e tentemos avaliar seu legado.

17
CAPÍTULO I O legado de Mauss
0 BRILHO DE U M A GRANDE OBRA E SUAS SOMBRAS

A razão sim ples d e um a repu tação: um a visão g lo b a l e p od erosa


do d om co m o um en cadeam en to de três obrigações

Em que termos, de que ângulo Mauss se colocou a questão do dom?


Podemos resumir sua abordagem na seguinte fórmula:

O que faz com que em tantas sociedades, em tantas épocas e em con­


textos tão diferentes os indivíduos se sintam obrigados não somente a
dar ou, quando algo lhes é dado, a receber, mas também obrigados,
quando receberam, a restituir o que lhes foi dado e restituir, seja a
mesma coisa (ou seu equivalente), seja algo de mais ou de melhor?

Foi para responder a esta questão que ele reuniu todos aqueles
materiais presentes no livro e que estes, sob o impacto desta questão,
tinham começado a animar-se de um novo sentido. O que mais me
impressionara, como à maioria dos leitores do “Essai sur le don”, fora
ver Mauss apontar a existência, no seio das mais diversas formas de
trocas e prestações, de uma mesma força encarnando-se em três obri­
gações, distantes mas encadeadas, e que precipitava as pessoas e as coisas
em um movimento que, cedo ou tarde, trazia as coisas de volta às pes­
soas e fazia coincidir o ponto de chegada de todos estes dons e con-
tradons com seu ponto de partida.
MAURICE GODELIER

Esta força, Mauss a descrevia possuindo ao mesmo tempo as pessoas


e as coisas, isso no seio de sociedades, é claro, em que nenhuma barreira
absoluta parecia se erguer entre umas e outras e, portanto, não poderia
separá-las radicalmente. As coisas prolongavam as pessoas, e as pessoas
se identificavam com as coisas que possuíam e que trocavam. Mauss
descrevia mundos em que “tudo vai e vem, como se houvesse troca per­
manente de uma matéria espiritual compreendendo coisas e homens,
entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as categorias, os sexos e as
gerações”. Descobríamos que “o vínculo através das coisas é um vínculo
d’alma, pois a própria coisa tem uma alma, é da alma”7. E acreditáva­
mos compreender por que, uma vez dada, a coisa leva com ela algo das
pessoas e “se esforça” para retornar, cedo ou tarde, para aquela que, pela
primeira vez, a tinha cedido. Tudo parecia claro, com a condição de que
o leitor partilhasse ele também este tipo de crença, chegando mesmo a
considerá-lo como uma explicação “científica”. Este era o ponto fraco,
e nele Lévi-Strauss iria concentrar suas críticas.
Iríamos, portanto, retomar o dossiê passo a passo. E, antes de mais
nada, recomeçar do fato de que antes de receber um dom é preciso
que ele tenha sido dado. Ora, mesmo que a existência de um espírito
nas coisas pareça explicar a obrigação de retribuir, ela não explica,
parece, a obrigação de dá-las. O que é, portanto, “dar”?

O d om , um a relação dupla

Para explicar por que se dá, Mauss avançava uma hipótese um pouco
menos “espiritual” e que está explícita em suas análises do potlatch. E
a hipótese de que o que obriga a dar é precisam ente o fa to d e que dar
obriga. Dar é transferir voluntariamente algo que nos pertence a al­
guém de quem pensamos que não pode deixar de aceitar. O doador
pode ser um grupo ou um indivíduo que age sozinho ou em nome do
grupo. Assim como o donatário pode ser um indivíduo ou um grupo
ou uma pessoa que recebe o dom em nome do grupo que representa.

7Marcel Mauss, Sociologie et Anthropologie, op. cit., p. 164 e 160.

22
O ENIGMA DO DOM

Logo, o dom é um ato voluntário, individual ou coletivo, que pode


ou não ter sido solicitado por aquele, aquelas ou aqueles que o rece­
bem. Na cultura ocidental valoriza-se os dons não-solicitados. Mas esta
atitude não é universal. Em muitas sociedades, e ontem mesmo em
certos meios da nossa, quem deseja esposar uma mulher deve pedir
aos representantes de sua família e eventualmente de seu clã. Na Euro­
pa, chama-se isso de pedir oficialmente “a mão” de uma jovem.
Vamos, nesta etapa, fazer abstração de qualquer contexto social
particular que pudesse levar alguns (indivíduos ou grupos) a dar ou a
receber e supor que uns e outros já gozavam, antes do dom, de um
status social equivalente. O que acontece a partir d o m om en to em que
uns doam aos outros?
Dar parece instituir simultaneamente uma relação dupla entre aque­
le que dá e aquele que recebe. Uma relação de solidariedade, pois quem
dá partilha o que tem, quiçá o que é, com aquele a quem dá, e uma
relação de superioridade, pois aquele que recebe o dom e o aceita fica
em dívida para com aquele que deu. Através dessa dívida, ele fica obri­
gado e, portanto, encontra-se até certo ponto sob sua dependência, ao
menos até o momento em que conseguir “restituir” o que lhe foi dado.
Dar parece instaurar assim uma diferença e uma desigualdade de
status entre doador e donatário, desigualdade que em certas circunstân­
cias pode se transformar em hierarquia: se esta já existisse entre eles antes
do dom, ele viria expressá-la e legitimá-la ao mesmo tempo. Portanto,
dois movimentos opostos estariam contidos em um único e mesmo ato.
O dom aproxim a os protagonistas porque é partilha e os afasta social­
mente porque transforma um deles em devedor do outro. Pode-se divi­
sar o formidável campo de manobras e de estratégias possíveis contido
virtualmente na prática do dom e a gama de interesses opostos que ele
pode servir. O dom é, em sua própria essência, uma prática ambivalente
que une ou pode unir paixões e forças contrárias. Ele pode ser, ao mes­
mo tempo ou sucessivamente, ato de generosidade ou ato de violência,
mas nesse caso de uma violência disfarçada de gesto desinteressado, pois
se exerce por meio e sob a forma de uma partilha.

2 3
MAURICE GODELIER

O dom pode se opor à violência direta, à subordinação física, ma­


terial, social, mas também ser um seu substituto. E são mais que abun­
dantes os exemplos de sociedades em que os indivíduos, incapazes de
honrar suas dívidas, se vêem obrigados a se colocar, ou a colocar seus
filhos, como escravos, acabando por se transformar na propriedade,
na “coisa” daqueles que lhes tinham concedido seus dons. Daí fica cla­
ro que dos dois elementos, a partilha e a dívida, dos dois movimentos
contidos e combinados na prática do dom, é o segundo (a colocação à
distância) que corre o risco de ter mais efeitos na vida social, já que
esta última é organizada em torno de diversas formas de competição
para o acesso à riqueza, ao poder, aos safceres ou aos ritos.
Torna-se igualmente fácil compreender que o dom, por sua própria
dualidade e ambivalência, encontra as condições ideais para seu exercício
e seu desenvolvimento no seio das sociedades cujo funcionamento repou­
sa antes de tudo na produção e manutenção das relações pessoais entre
os indivíduos e entre os grupos que a compõem, relações de parentesco,
de produção, de poder etc. Da perspectiva de uma sociologia compara­
da pode-se esperar que estas condições dominem nas sociedades em que
não existam nem castas, nem classes hierarquizadas, nem Estado para
governá-las. A prática do dom se exerce então entre protagonistas cujo
status social, antes do dom, é potencial ou realmente equivalente. E aliás
o que pressupomos no “caso tipo” que acabamos de analisar.
Em compensação, nas sociedades organizadas em categorias, em
castas ou em classes, o dom, também muito praticado, se reveste ne­
cessariamente de formas e significações diferentes se é praticado entre
pessoas da mesma categoria ou da mesma condição (isso nos remete ao
caso precedente) ou entre pessoas de status radicalmente desiguais. Neste
último caso, o dom não teria o mesmo sentido se um inferior dá a um
superior ou se for o inverso. Salientemos aqui, mas voltaremos a isso,
que dar a superiores não implica necessariamente que eles sejam seres
humanos. Em todas as sociedades — sejam ou não divididas em catego­
rias, castas ou classes — vemos os humanos oferecendo dons a seres que
eles consideram seus superiores: potências divinas, os espíritos da natu­

2 4
O ENIGMA DO DOM

reza ou os espíritos dos mortos. A eles dirigem preces, oferendas e às


vezes até “sacrificam” bens ou mesmo uma vida. E a famosa “quarta
obrigação” constitutiva do dom que Mauss mencionou sem desenvolver
completamente e que, em geral, foi esquecida por seus comentaristas.
No entanto, era ali que se articulavam seu “Essai sur le don” (1929) e
seu Essai sur la nature et la fonction du sacrifice (1899), obra redigida e
publicada com Henri Hubert. Estas notas já nos permitem afirmar que a
análise de um dom, qualquer que seja ele, exige sempre que se leve em
consideração a relação entre aquele que dá e aquele que recebe antes
que o primeiro tenha feito um dom ao segundo.
Mas pensem os um pouco mais sobre o fato de que um dom é um
ato “pessoal”. É por esta razão que, qualquer que seja o tipo de socieda­
de considerada, hierarquizada ou não, o dom está presente em todos os
campos da vida social nos quais as relações pessoais continuam a desem­
penhar um papel dominante. O caráter “pessoal” do dom não desapare­
ce necessariamente mesmo quando entre aquele que dá e aquele que
recebe não existe nenhuma relação pessoal direta, nenhum conhecimento
mútuo e mesmo quando há intervenção de intermediários. Assim, neste
fim de século X X , a bandeira da caridade, outrora carregada pelas insti­
tuições das diversas igrejas cristãs, católicas e protestantes, foi retomada
no Ocidente pelas organizações não-governamentais e, às vezes, até
mesmo pelos estados. Campanhas nacionais são lançadas para angariar
os fundos necessários para lutar contra o câncer ou contra a Aids, ou
para enviar um comboio de víveres e medicamentos para a Bósnia.
A caridade laicizou-se e, a partir do momento em que com eçou a
usar a mídia, transformou-se em parte em um jogo televisionado, fe­
nômeno que imprime à coleta de dons algumas das características do
potlatch. Do potlatch, com efeito, reencontramos o apelo a dar cada
vez mais, uma cidade mais que a outra, uma empresa mais que uma
outra, e o desejo de que o total de donativos supere a cada ano aquele
que foi atingido no ano precedente. Como no potlatch, proclama-se
igualmente o nome das pessoas, das cidades, das empresas que se mos­
traram mais generosas.

25
MAURICE GODELIER

Assim, mesmo nas sociedades em que as relações entre os indiví­


duos são cada vez menos pessoais, os dons conservam ainda bem
freqüentemente um caráter “pessoal”, mesmo que este tenha Se torna­
do abstrato; caráter que não está ligado apenas àqueles que são doado­
res, mas também àqueles a quem os dons são destinados. Pois no palco
da televisão temos sempre indivíduos que representam virtualmente
todos aqueles que vão se beneficiar dos dons: crianças afetadas por uma
doença genética, vítimas da Aids que são entrevistadas e que suscitam
a compaixão e o desejo de ajudar, de dar. E ao lado deles estão os re­
presentantes das instituições que assim fazem apelo à generosidade da
população. E estas pessoas se comprometem a agir em nome dos múl­
tiplos doadores, de alguma maneira como seus substitutos.
Hoje, portanto, no seio mesmo das imensas sociedades industriais
e estatais que compõem o coração do mundo — no qual se afirmou
incessantemente o valor pessoal do indivíduo, mas onde, contraditoria-
mente, se exprimem também sem cessar o sentimento e o remorso que
os indivíduos experimentam por terem se submetido a relações impes­
soais que os dominam em toda a parte — , o dom não perdeu nem seu
caráter pessoal, nem seu caráter voluntário. Voltaremos a ver todos estes
pontos, mas desde já podemos considerar como dado o fato de que o
ato de dar, para ser realmente um dom, deve ser um ato voluntário e
pessoal, senão ele se transforma imediatamente em òutra coisa, em
imposto, por exemplo, ou em dom forçado, em exação.
Mas com as sociedades capitalistas modernas estamos no pólo oposto
ao das sociedades que Mauss analisa em seu “Essai sur le don”. Pode-se
dizer sem exagerar que nossas sociedades são marcadas em profundidade
por “uma economia e uma moral de mercado e de lucro” e que, de
maneira oposta, as sociedades que figuram no “Essai sur le don” aparecem
a Mauss como sociedades profundamente marcadas por “uma econo­
mia e uma moral do dom”. Isto não quer dizer que as sociedades carac­
terizadas pelo dom ignoram as trocas mercantis, nem que as sociedades
mercantis de hoje deixaram de praticar o dom. O problema é ver, em
cada caso, qual dos princípios dom ina o outro na sociedade e por quê.

2 e
0 ENIGMA DO DOM

Mauss evidentemente colocou-se a questão de saber por que cer­


tas sociedades são caracterizadas por uma “economia e uma moral do
dom” e sua resposta é que estas sociedades só puderam emergir quan­
do diversas condições se combinaram: a primeira era de que as rela­
ções pessoais desem penhassem um papel im portante, quiçá dom inante,
na produção das relações sociais que constituíam o arcabouço da socie­
dade. Mas esta condição necessária não era suficiente aos olhos de
Mauss. Era preciso também que estas relações fossem tais que os indi­
víduos e os grupos engajados tivessem todo o interesse, para se repro­
duzir e para reproduzi-las, em se m ostrar desinteressados. E o interesse
em dar, em mostrar-se desinteressado residia, finalmente, em um cará­
ter fundamental do dom: o fato de que nestas sociedades o que'obriga
a dar é o fato de que dar obriga. Temos aí os três primeiros elementos
da reconstrução teórica, feita por Mauss, da base sociológica do dom.
Mas o paradoxo é que, para Mauss, ter descoberto essas três con­
dições do dom era suficiente, talvez, para explicar por que se dá, mas
era insuficiente para explicar por que se retribui. Restava portanto um
enigma no dom ou, pelo menos, o dom continuava sendo, todo intei­
ro, um enigma. Foi então que ele começou a pesquisar uma condição
suplementar, necessária, mesmo não sendo suficiente. Esta condição,
ele pensou encontrá-la na crença de que as coisas dadas têm um a alm a
que as leva a voltar para a pessoa que, prim eiramente, as possuiu e deu.

O en igm a d o d om e sua solu ção p o r Mauss

Acabamos de ver que, para Mauss, este enigma consiste no seguinte: se


lhe parece bastante fácil compreender por que é necessário dar, pare­
ce-lhe difícil compreender por que é preciso restituir e mais particularmente
restituir a própria coisa que lhe foi dada. Por que este retorno do mesmo?
Constata-se, portanto, que, com esta maneira de ver as coisas, Mauss trans­
formou o status das três obrigações. Em vez de cada uma ser equivalente
às duas outras, sendo igualmente necessária, uma dentre elas, a terceira,
aquela que “obriga a restituir o presente recebido”, aparece agora como a
mais importante na prática e a mais difícil de compreender na teoria. Mas

2 7
MAURICE GODELIER

o enigma assim criado lhe parece resolvido pelo fato de que há nas coisas
dadas uma força que as leva a circular e a voltar para seu proprietário. A
solução encontra-se na área dos “mecanismos espirituais”, das razões
morais e religiosas, das crenças que emprestam às coisas uma a lm a , um
espírito que as leva a voltar a seu lugar de nascimento:

O mais importante entre os mecanismos espirituais é evidentemente


aquele que obriga a restituir o presente dado. Ora, em nenhum lugar
a razão moral e religiosa dessa obrigação é mais aparente do que na
Polinésia. Basta estudá-la mais particularmente e veremos mais detalha­
damente qual é a força que leva a restituir a coisa recebida8.

Donde as análises de Mauss dos conceitos polinesianos de hau e


m ana e sua gratidão em relação ao sábio maori Tamati Ranaipiri:

A propósito do hau, do espírito das coisas [...] Tamati Ranaipiri [...]


nos dá, completamente por acaso e sem nenhuma prevenção, a chave
doj)roblema (p. 158) [...] aquilo que no presente recebido, trocado,
impõe obrigação é o fato de que a coisa recebida não é inerte. Mesmo
abandonada pelo doador, ela ainda é algo dele. Através dela, ele tem
ascendência sobre o beneficiário [...] (p. 159). No fundo, é o hau que
quer voltar a seu lugar de nascimento, ao santuário da floresta e do clã
e ao proprietário [...] No direito maori, o vínculo de direito, vínculo
através das coisas, é um vínculo d’alma, pois a própria coisa tem uma
alma [...] (p. 160). Animada, muitas vezes individualizada [...] ela ten­
de a voltar a seu “lar de origem” ou a reproduzir, para o clã e para o
solo do qual saiu, um equivalente que a substitui [...]*.

Não abordaremos agora a questão de saber se é isto que o sábio


Tamati Ranaipiri queria realmente dizer. Há muito tempo, Raymond

“Ibid., p. 153.
’Ibid., p. 161. Grifo nosso. Elsdon Best escreve o nome de seu informante maori
“Tamati Ranapiri”, enquanto Mauss escreve sempre “Ranaipiri”. Decidimos manter
a versão de Mauss porque ela figura em muitas de nossas citações.

28
O ENIGMA 00 DOM

Firth (1929) e depois dele Marshall Sahlins (1976) demonstraram que


Mauss havia isolado as frases de Ranaipiri de seu contexto, ou seja, a
descrição de um ritual praticado por ocasião da caça aos pássaros em
intenção do espírito da floresta. Ao fazê-lo, Mauss provavelmente fez
com que Ranaipiri dissesse algo diverso do que o que ele queria dizer.
Mas este é o fio condutor de sua interpretação e, em um outro con­
texto, quando ele analisa o potlatch, Mauss retoma o mesmo argumento:

Pode-se levar ainda mais longe a análise e provar que nas coisas trocadas
no potlatch há uma virtude que força os dons a circular, a serem da­
dos e a serem restituídos10.

E a respeito dos objetos preciosos em cobre que circulavam nos


potlatch dos índios haidas e kwakiutls, Mauss insiste no fato de que os
tais cobres “têm além disso uma virtude atrativa que chama os outros
cobres, assim como a riqueza chama a riqueza [...] eles vivem, têm um
movimento autônom o e arrastam os outros cobres”. Evidentemente
Mauss recorda que isto só é verdade no quadro de uma visão mitológi­
ca do cosmos e da sociedade:

Muitas vezes o mito os identifica a todos, os espíritos doadores de


cobres (estas planas coisas divinas), os proprietários dos cobres e
os próprios cobres. É impossível discernir o que faz a força de espí­
rito de um e a riqueza do outro: o cobre fala, resmunga; pede para
ser dado; destrói. É ele que é coberto com cobertores para aque­
cer, assim como se cobre o chefe com os cobertores que deve dis­
tribuir11.

Mauss acreditou realmente que estava nas palavras de Tamati


Ranaipiri, o informante maori de Elsdon Best, a resposta para as fa­
mosas questões que abrem o “Essai sur le don” e que relembramos na

10Ibid., p. 214.
nIbid., p. 224 e 225.

2 9
MAURICE GODEIIER

introdução. Mas, como dissemos, sua análise apresentava uma falha e


é nela que Claude Lévi-Strauss iria mergulhar

M auss m istificado p elo s indígenas: a crítica d e Lévi-Strauss

Lévi-Strauss escreveu:

Esta virtude — que força os dons a circular — existe objetivamente


como propriedade física dos bens trocados? Evidentemente não [...]
Logo, é necessário que a virtude seja concebida subjetivamente, mas
então nos vemos diante de uma alternativa: ou esta virtude não é mais
que o ato da troca em si, tal como é representado no pensamento in­
dígena, e nos encontramos em um círculo fechado ou ela é de nature­
za diferente é, em relação a ela, o ato da troca torna-se, portanto, um
fenômeno secundário. O único meio de escapar ao dilema seria perce­
ber que é a troca que constitui o fenômeno primitivo e não as opera­
ções discretas nas quais a vida social a decompõe12.

E Lévi-Strauss prossegue, indicando a via na qual seria necessário


pesquisar:

O hau não é a razão última da troca; é a forma consciente sob a qual


os homens de uma determinada sociedade, em que o problema tenha
uma importância particular, apreenderam uma necessidade inconscien­
te, cuja razão está em outro lugar. Depois de distinguir a concepção
indígena, seria necessário reduzi-la através de uma crítica objetiva que
permitisse atingir a realidade subjacente. Ora, esta tem muito menos
chances de se encontrar em elaborações conscientes do que nas estru­
turas mentais inconscientes que se pode atingir através das institui­
ções e, melhor ainda, na linguagem13.

12Claude Lévi-Strauss, “Introduction à 1’oeuvre de Mauss”, art. cit., p. XXXVIII.


uIbid., p. X X X IX .

3 0
0 ENIGMA DO DOM

Fundamentalmente, Mauss fracassou por ser demasiadamente


empirista e porque, teórico das crenças religiosas e da magia, tinha se
transformado em vítima das mesmas crenças que pretendia teorizar;
repentinamente, estas tinham assumido em seu pensamento o valor de
explicações científicas:

Em “Essai sur le don”, Mauss insiste em reconstruir um todo com suas


partes e, como isto é manifestamente impossível, ele vai precisar acres­
centar à mistura uma quantidade suplementar que lhe dá a ilusão de
estar recuperando o controle. Esta quantidade é o hau [...]• Não esta-
ríamos diante de um daqueles casos, que não são tão raros assim, em
que o etnólogo se deixa mistificar pelo indígena14?

Mauss mistificado! Mauss pego em um erro de método! Mauss


demasiado empirista e, diante dele, um Claude Lévi-Strauss que não
só detectara a falha, como também afirmava poder explicar tanto
aquilo que os conceitos indígenas de hau e de m ana não são, quanto
aquilo que são realmente: “significantes vazios em si mesmos de sen­
tido” e, portanto, “suscetíveis de receber qualquer sentido”15 ou, se­
gundo a fórmula que se tornaria célebre, “significantes flutuantes”,
“símbolo em estado puro”. E tudo isso através de um raciocínio rigo­
roso desembocando em uma visão grandiosa da “origem simbólica
da sociedade”, explicando por que a vida social é fundamentalmente
“troca” e é composta por sistemas simbólicos (as regras matrimoniais,
as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião etc.) dirigidos por
estruturas mentais inconscientes etc.
O leitor há de compreender o entusiasmo que tomou conta do jovem
filósofo que eu era diante de tal vigilância crítica, diante das perspectivas
que abria à pesquisa sobre a origem da sociedade, a troca, o incons­
ciente. Tinha-se a impressão de que Mauss havia perdido a “passagem

"Ibid., p. XXXVIII.
“ Ibid., p. XLIV

3 1
MAURICE GODELIER

decisiva” que faria dele o “Novurn Organum das ciências sociais d o


século XX” e que esta passagem Lévi-Strauss, ele sim, havia superado.
No entanto, este último, com a maior das modéstias, sequer atribuía-
se tal mérito. Ele o creditava à “evolução objetiva que tinha se produ-.
zido nas ciências psicológicas e sociais no curso dos trinta últimos anos”
e chegava mesmo a afirmar que sua concepção era rigorosamente fiel
ao pensamento de Mauss: “De fato, não é mais que o pensamento de
Mauss traduzido de sua expressão original em termos de lógica de clas­
ses para os termos de uma lógica simbólica que resume as leis mais gerais
da linguagem16.”
Não nos demoraremos aqui tentando saber se, ao proclamar-se
continuador fiel da obra de Mauss, Lévi-Strauss agia perfeitamente
de boa-fé ou procurava fazer mergulhar na sombra o fato de que
suas teses rompiam com as de Durkheim e de Mauss. O essencial é
que o texto de Lévi-Strauss, mantendo-se soberbo, foi considerado
na época, e a justo título, como o manifesto de uma nova aborda­
gem, o “estruturalismo”, da qual podemos medir muito melhor hoje
a riqueza e os limites, o sucesso, assim como os fracassos. Com Lévi-
Strauss a vida social se transformava em um movimento de trocas
perpétuas através do qual as palavras, os bens, as mulheres circula­
vam entre os indivíduos e entre os grupos. E nós éramos convida­
dos a procurar a origem desse movimento, bem além do pensamento
consciente e das razões explícitas confessas, no inconsciente do es­
pírito humano.

Retorno à crítica de Mauss por Lévi-Strauss

Recordemos que na época Lévi-Strauss acabara de publicar sua primeira


obra maior, As estruturas elementares de parentesco (1949), na qual,
colocando em prática o postulado de que a vida social é troca e de que
a sociedade é mais bem compreendida se considerada como linguagem

I 16Ibid., p. L.

3 2
O ENIGMA DO DOM

do que a partir de qualquer outro paradigma, ele havia desenvolvido


duas teses que começavam a balançar algumas idéias preconcebidas.
De um lado, que o parentesco é fundamentalmente troca (troca de mu­
lheres entre os homens). De outro, que dos dois componentes do pa­
rentesco, a aliança e a descendência, é a aliança que tem mais peso e
fornece as chaves para colocar ordem na diversidade dos sistemas de
parentesco, dos mais elementares aos mais complexos17. E a época em
que Lévi-Strauss tem a visão grandiosa de uma antropologia social

cada vez mais estreitamente associada à lingüística, para constituir


com ela (um dia) uma vasta ciência da comunicação [...] e [...] poder
se beneficiar das imensas perspectivas abertas à própria lingüística
pela aplicação do raciocínio matemático ao estudo dos fenômenos
de comunicação18.

Hoje não passaria pela cabeça de ninguém negar a fecundidade de


tal aliança entre antropologia, lingüística, matemática e teoria, mas os
resultados produzidos por estes encontros não legitimam retroativa­
mente as teses filosóficas gerais que, aos olhos de Lévi-Strauss, funda­
mentavam sua necessidade. Ora, é a partir dessas teses que, em 1949,
Lévi-Strauss relê Mauss para introduzir sua obra ao público. Lévi-Strauss
opera então um duplo movimento em relação a Mauss. Por um lado,
ele privilegia e retoma todas as fórmulas com as quais Mauss descreve
com muito lirismo a importância dos dons, das trocas na vida social.

17“Em certos domínios essenciais, como aquele do parentesco, a analogia com a


linguagem, tão vigorosamente afirmada por Mauss, permitiu a descoberta das regras
precisas segundo as quais se formam, em qualquer tipo de sociedade, ciclos de
reciprocidade cujas leis mecânicas são agora conhecidas, permitindo o emprego
do raciocínio dedutivo em um campo que parecia submetido à mais completa
arbitrariedade” (ibid., p. XXXV I).
18Ibid., p. XXXV II. Lévi-Strauss faz referência a Norbert Wiener, que acabara de
publicar (1948) sua célebre obra Cybernetics (Nova York, John Wiley), e a Claude
E. Shannon e Warren Weaver, que publicaram em 1949 The Mathematical Theory
o f Communication (Urbana, University of Illinois Press).

3 3
MAURICE GODELIER

Ele não presta, no entanto, nenhuma atenção à distinção claramente


estabelecida por Mauss entre os dois campos que dividem entre si a
vida social: o domínio das coisas trocáveis, alienáveis, e o domínio das
coisas excluídas da troca, inalienáveis, que correspondem cada um a
diferentes tipos de relações sociais e a diferentes momentos da produ-
ção-reprodução da sociedade. Lévi-Strauss, por outro lado, celebra em
Mauss aquele que já teria adquirido “a certeza de ordem lógica de que
a troca [grifado por Lévi-Strauss] é o denominador comum de um gran­
de número de atividades sociais aparentemente heterogêneas entre si19”,
mas sem perceber que “é a troca que constitui o fen ôm en o prim itivo
da vida social20”.
Mas o mesmo movimento que leva Lévi-Strauss a retomar, amplian-
do-as, certas declarações de Mauss sobre a troca o induz a privilegiar e
substituir o simbólico pelo imaginário na explicação dos fatos sociais.
O que tem como conseqüência o esvaziamento na prática da teoria do
sagrado elaborada por Durkheim e Mauss na virada do século X X 21.

19Claude Lévi-Strauss, “Introduction...”, art. cit., p. XXXV II.


20Ibid., p. XXXVIII.
2,Vincent Descombes já havia feito esta demonstração em “L’équivoque du
symbolique”, Confrontations, III, 1980, p. 93: “Ao trocar o sagrado, noção se­
guramente inquietante, pelo simbólico, conceito aparentemente purificado de
todo mistério, a sociologia francesa pensou ter progredido na compreensão de
seu objeto. Mas ela exige desse simbólico serviços que ele é incapaz de prestar.
Seria preciso que ele fosse ao mesmo tempo do domínio da álgebra, isto é, da
manipulação dos símbolos, e do domínio da “eficácia simbólica”, como diz Lévi-
Strauss, ou seja, do domínio dos sacramentos. Os sacrifícios e os sacramentos
têm como efeito a produção do corpo social de onde surgem os algebristas: chega-
se, assim, a sonhar com a autoprodução, com uma álgebra que permitisse mani­
pular o corpo social. Desse modo, a teoria do simbólico está sempre sentada
entre duas cadeiras, meio álgebra algébrica, meio álgebra religiosa. É, portanto,
indispensável renunciar a este prestigioso “simbólico” para poder encarar de
novo, além do estruturalismo, a realidade enigmática do sagrado” (p. 93). Nós
não pensamos nem que seja necessário nem que se possa “renunciar ao simbóli­
co”. O problema é determinar seu lugar real na produção da sociedade, de nos­
so ser social, lugar dominante ou lugar subordinado em relação a outros
componentes da realidade.

3 4
O ENIGMA DO DOM

Ele procede em várias etapas que iremos percorrer com ele. No co­
meço há esta crítica a Mauss que não podemos senão partilhar:

O hau não é a razão última da troca; é a forma consciente sob a qual


os homens de uma determinada sociedade em que o problema tenha
uma importância particular apreenderam uma necessidade inconscien­
te, cuja razão está em outro lugar22.

E cabe a Lévi-Strauss advertir-nos sobre o que aconteceria se deci­


díssemos adotar a abordagem de Mauss:

Correríamos o risco de encaminhar a sociologia para uma via peri­


gosa, que poderia significar a sua perda, se, dando um passo a mais,
reduzíssemos a realidade social à concepção que o homem, mesmo
selvagem, faz dela [...] A etnografia se dissolveria em uma feno-
menologia verbosa, mistura falsamente ingênua onde as obscurida­
des aparentes do pensamento indígena seriam usadas apenas para
cobrir as confusões, sem isso demasiado manifestas, daquelas da
etnografia23.

Sábios comentários que se fazem acompanhar por uma definição


do conhecimento científico, à qual não se pode deixar de aderir, que
formula as tarefas do trabalho científico em termos muito semelhan­
tes aos que Marx havia empregado um século antes quando defron­
tou-se com o mistério do “valor das mercadorias” e demonstrou que,
se o valor das mercadorias é, em sua substância, a quantidade de tra­
balho socialmente necessário dispensado para sua produção e nelas
coagulado, aparentemente é o contrário que parece acontecer. As
mercadorias parecem possuir um valor nelas mesmas, independente­

22Claude Lévi-Strauss, “Introduction...”, art. cit., p. X X X IX .


23Ibid., p. XLVI.

3 5
MAURICE GODELIER

mente do trabalho dispensado para produzi-las24. De fato, Lévi-Strauss


escreveu:

Uma explicação integral do objeto deveria dar conta simultaneamente


de sua estrutura e das representações por intermédio das quais apreen­
demos suas propriedades25.

Na seqüência de seu texto, Lévi-Strauss vai, portanto, tentar separar a


“estrutura mental inconsciente” que estaria atuando por trás das repre­
sentações indígenas e as práticas do dom. Notemos que, do inconsciente,
ele destaca apenas o cenário inconsciente do pensamento, recusando-se a

unir-se a Mauss quando çste vai buscar a origem da noção de mana


em uma ordem de realidades diversa das relações que ela ajuda a cons­
truir: ordem de sentimentos, religiões e crenças que são, do ponto de
vista da explicação sociológica, quer epifenômenos, quer mistérios, mas
em qualquer caso objetos extrínsecos ao campo de investigação26.

24Karl Marx: “É de fato mais fácil encontrar através da análise o conteúdo, o nó


terrestre das nebulosas concepções das religiões, do que desenvolver por um ca­
minho inverso, a partir das relações reais da vida, as formas celestes que a elas
correspondem” (O capital, Livro I, vol. 2). “O valor se apresenta como uma subs­
tância automática dotada de uma vida própria que, mudando incessantemente as
suas formas, muda também de grandeza e, espontaneamente, como valor-mãe, pro­
duz um broto novo, uma mais-valia e, finalmente, cresce por sua própria virtude.
Em uma palavra, o valor parece ter adquirido a propriedade oculta de engendrar
valor, de gerar filhotes ou, pelo menos, de pôr ovos de ouro” (ibid, Livro I, vol.
1). “É a personificação das coisas e a reificação das relações de produção, esta
religião da vida cotidiana” (ibid., Livro III, vol. 4 ). Cf. Maurice Godelier,
“Economie marchande, fétichisme, magie et Science selon M arx dans L e Capital”,
in La Nouvelle Revue de psycbattalyse, n. especial “Objets du fétichisme”, n° 2,
outono de 1970, p. 197-213. Recordemos que era uma idéia fundamental de Hegel
que a lógica (conhecimento da essência) deve fundamentar a fenomenologia (co­
nhecimento das aparências).
“ Claude Lévi-Strauss, “Introduction...”, art. cít., p, XXVII.
“ Ibid., p. XLV.

3 6
0 ENIGMA 00 DOM

O que preocupa Lévi-Strauss é evidentemente explicar como as


pessoas pensam e por que pensam como pensam. Com razão, a nosso
ver, ele se recusa a seguir Lévi-Bruhl, que pretendia que as pessoas
pensam como sentem, e que os primitivos são como as crianças peque­
nas ou como loucos incapazes de distinguir entre o próprio eu e o
mundo, o sujeito e o objeto etc. O que há então no inconsciente das
estruturas mentais (e não no inconsciente do desejo) que esteja na ori­
gem das noções de m ana, de hau etc., e que explique ao mesmo tempo
sua natureza e seu caráter ilusório?

As concepções do tipo mana são tão freqüentes e difusas que seria con­
veniente perguntar se não estamos diante de uma forma de pensamento
universal e permanente que, longe de caracterizar certas civilizações ou
pretensos estados arcaicos ou semi-arcaicos do espírito humano, seria
função de uma certa situação do espírito diante das coisas, devendo
aparecer para nós a cada vez que tal situação se apresenta27.

Confrontado a esta situação, o espírito humano se meteria a pro­


duzir “categorias” inconscientemente, a seguir

itinerários [...] traçados de uma vez por todas na estrutura inata do


espírito humano e na história particular e irreversível dos indivíduos
e dos grupos.

Sua tarefa seria, portanto, dando seqüência a Mauss, atingir esta


espécie de “quarta dimensão do espírito”, um plano no qual se con­
fundiriam as noções de “categoria inconsciente” e de “categoria do
pensamento coletivo28”.
Atingiríamos assim uma parte do ser humano que não somente
escaparia ao tempo, mas também esvaziaria de qualquer conteúdo
a idéia de que a humanidade evoluiu e continua a fazê-lo através da

27Ibid., p. XLIII.
“Ibid., p. XXXI.

a i
MAURICE GODEUER

história irreversível das sociedades particulares que a compõem.


Sobrariam apenas, face a face, o inconsciente do espírito e as histó­
rias particulares das sociedades e dos indivíduos. Mas qual é então
esta situação que o espírito enfrenta e que faz com que ele, a cada
vez, produza categorias inconscientes, das quais os conceitos de hau,
m an a, oren da etc. seriam apenas uma expressão no seio de um pen­
samento coletivo determinado? Esta situação é aquela do espírito
quando, diante de coisas desconhecidas, começa a produzir signifi-
cantes que não correspondem a nenhum significado e permanecem
“vazios de sentido”:

Estes tipos de noções {mana, hau) [...] intervém [...] para representar
um valor indeterminado de significação, vazio em si mesmo de senti­
do e, portanto, suscetível de receber qualquer sentido, cuja única fun­
ção é preencher um espaço entre o significante e o significado29.

A solu ção d o enigm a segundo Lévi-Strauss: os “significantes


flu tu an tes”

Eis, portanto, os conceitos religiosos dos polinésios esvaziados de qual­


quer sentido e reduzidos ao equivalente das palavras “truc” e “m achin”
na língua francesa*:

“O mana [...] é simples forma ou mais exatamente símbolo em estado


puro, portanto suscetível de carregar-se com qualquer conteúdo sim­
bólico. Isso seria simplesmente um valor simbólico zero30.”

Vejamos então mais de perto em que plano Lévi-Strauss se coloca


para transformar as noções de tipo m ana em “significante flutuante,

"Ibid., p. XLIV
‘ Designam qualquer objeto cujo nome não importa, não se sabe ou não se quer
declinar. Equivalente, em português, a troço, treco (N. da T.).
30Ibid., p. L.

3 8
O ENIGMA DO DOM

que é a servidão de qualquer pensamento acabado31”. É o plano do


pensam ento filosófico e mais precisamente de uma variedade materia­
lista e crítica da filosofia. Nele, os conceitos religiosos, as explicações
religiosas do mundo não são explicações falsas do mundo, mas falsas
explicações. Não são mais ou menos verdadeiras ou mais ou menos
falsas como podem ser aquelas estabelecidas no campo das ciências,
experimentais ou deduzidas, no campo das matemáticas; elas estão fora
desse campo. Elas não são conhecimentos falsos, são falsos conheci­
mentos. Por certo, do ponto de vista da prática humana e da história
do homem, essas representações que nada dizem de verdadeiro ou de
falso sobre o mundo dizem m uito sobre os hom ens que as pensam . Elas
estão sempre cheias de significações, e estas não se reduzem à projeção
na natureza ou na sociedade de classificações pescadas em uma para
serem aplicadas a outra e vice-versa. Mas vamos permanecer neste plano
do pensamento filosófico e ver como se mostram, sob o olhar univer­
sal do filósofo e à luz intelectual que toda filosofia traz em si, por pre­
tenderem ter chegado mais perto da origem, dos fundamentos, do real,
as representações coletivas dos polinésios, dos antigos germanos, dos
celtas, dos hindus etc. Todos ilustram em graus diversos

uma situação fundamental e que faz parte da condição humana, ou


seja, que o homem dispõe desde a sua origem de uma integralidade do
significante, cuja alocação a um significado dado como tal sem ser
conhecido muito o embaraça. Há sempre uma inadequação entre os
dois [...] Em seu esforço para compreender o mundo, o homem dis­
põe sempre, portanto, de um excedente de significações que ele re­
parte entre as coisas segundo as leis do pensamento simbólico que cabe
aos etnólogos e aos lingüistas estudar32.

Podemos perfeitamente pensar que, no plano filosófico, os conceitos


religiosos não são conhecimentos falsos, mas falsos conhecimentos —
o que eu também penso — , sem ter que aderir por isso à idéia de que

"Ibid., p. XLIX.
32Ibid., p. XLIX.

3 9
MAURICE GODELIER

“o homem dispõe desde a origem de uma integralidade do significante”.


A fórmula é bela e deixaria qualquer homem orgulhoso, mas continua
sendo obscura. Esta chave, esta tese fundamental, é a idéia da “origem
simbólica da sociedade33”. O termo “simbólico”, aliás, deve ser toma­
do em seu duplo sentido, o de meio de comunicação, de linguagem, e
seu sentido original (em grego: sym bolon) de signo tangível de um
acordo e, por extensão, de um contrato firmado entre as partes. Em
suma, a sociedade é, em sua essência, troca, linguagem, pois tem ori­
gem em um contrato. E Lévi-Strauss nos expõe assim sua “visão” filo­
sófica do big-bang do qual surgiu a sociedade humana:

Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de sua apa­


rição na escala da vida animal, a linguagem só pode ter nascido de re­
pente. As coisas não podem ter começado a significar progressivamente.
Depois de uma transformação, cujo estudo não diz respeito às ciên­
cias sociais, mas à biologia e à psicologia, teve lugar uma passagem de
um estágio em que nada tinha um sentido para um outro em que tudo
tinha sentido [...]. Em outras palavras, no momento em que o univer­
so inteiro, de uma só vez, tornou-se significativo, ele não se tornou,
por isso, mais conhecido, mesmo sendo verdade que a aparição da lin­
guagem iria precipitar o ritmo de desenvolvimento do conhecimento
[...] tudo se passou como se a humanidade tivesse adquirido de repen­
te um domínio imenso e um mapa detalhado desses domínios com a
noção de suas relações recíprocas, mas tivesse levado milênios para
perceber quais símbolos determinados no mapa representavam os di­
ferentes aspectos do domínio34.

E finalmente:

Como a linguagem, o social é uma realidade autônoma, a mesma, aliás,


os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, o significante
precede e determina o significado35.

“ Ibid., p. XXII.
34Ibid., p. XLVII-XLVIII.
3sIbid., p. XXXII.

4 0
O ENIGMA DO DOM

O big-bang d a linguagem e a origem sim bólica d a socied a d e

Não sei se Lévi-Strauss continua concordando com esta análise, mas hoje
em dia eu sei por que não mais concordaria com ela. Primeiramente, para
voltar aos polinésios, aos conceitos de hau e mana, porque mesmo que
estes conceitos indígenas sejam “falsos conhecimentos”, eles têm como
conteúdo as práticas nas quais estão implicados o dom, a criação de obri­
gações duráveis, sagradas, a demarcação de diferenças, de hierarquias etc.
Em suma, mesmo se é evidente que a capacidade de elaborar símbolos e
de comunicar o conteúdo de uma experiência através de símbolos que a
exprimem não é um produto direto do desenvolvimento da sociedade, mas
um produto do desenvolvimento do cérebro, suporte material do espíri­
to, é sempre necessário, não importa o que diga Lévi-Strauss, “elaborar
uma teoria sociológica do simbólico36” usada por uma sociedade determi­
nada e numa época determinada para inventar e exprimir a si própria.
Se é legítimo pensar que o ser do homem não se reduz a seu ser cons­
ciente e que existem, além do consciente, forças e princípios que não
param nunca de agir, talvez seja preciso tomar algumas precauções quan­
do se invoca a ação de estruturas mentais inconscientes para explicar
fatos, comportamentos que não se encontram em todas as sociedades
nem em todas as épocas ou que podem ser encontrados, mas não têm o
mesmo sentido nem a mesma importância. É preciso, portanto, algo mais
que a ação das estruturas inconscientes do espírito para explicar as trans­
formações e os desenvolvimentos dás produções conscientes do homem.
Esta é a dificuldade que o próprio Lévi-Strauss iria encontrar, uma vin­
tena de anos mais tarde, quando invocou “a dormência da semente” para
explicar a aparição, na Grécia antiga, de formas de pensamento (cientí­
ficas e filosóficas) que se distinguiam do discurso religioso e se opunham
à mitologia das antigas cosmogonias. Ali, mas foi também o caso em

3<Claude Lévi-Strauss: “Mauss ainda considera possível elaborar uma teoria socio­
lógica do simbolismo, embora o necessário seja, evidentemente, buscar uma ori­
gem simbólica da sociedade”, ibid., p. XXII.

41
MAURICE GODELIER

outros lugares (na China antiga ou na índia), começou um processo de


acumulação de “conhecimentos” que não desapareceram quando os
deuses e as crenças das civilizações egípcia, mesopotâmica, grega, roma­
na, eclipsaram-se nos abismos da história.
Em seguida, não seria possível afirmar que o pensamento ultrapassa a
linguagem e, ao mesmo tempo, fazer como se ela se confundisse com ele
e com suas estruturas inconscientes. Aliás, quem pode afirmar que a lin­
guagem articulada (pois é ela que está em questão) emergiu de repente,
que antes dela “nada” tinha sentido, e que depois “tudo” começou a ter?
A linguagem articulada é feita de sons abstratos, de fenômenos que são
produzidos e se combinam para comunicar “coisas abstratas”, isto é, pro­
dutos de um pensamento que não somente pensa relações, mas descobre
ou constrói relações entre relações. Esta capacidade de imaginar relações
entre relações acontece na produção de todas as relações que os homens
instauram entre si e com a natureza. O pensamento produz o real social
combinando duas partes dele mesmo, dois poderes distintos que se com­
pletam sem se confundir: a capacidade de representar, de imaginar, e aquela
de simbolizar, de comunicar as coisas reais ou imaginárias.
E mesmo se a linguagem articulada emergiu de repente em um de
nossos ancestrais distantes, o homem de Neandertal ou seja quem for, o
que nosso ancestral ganhou de repente foi apenas a possibilidade de pro­
duzir fonemas. Juntá-los em morfemas, ou seja, em palavras, seria produ­
zir uma língua “natural” determinada que, como toda língua natural,
comporta um número finito, limitado, de palavras (de 60.000 a 100.000
em média) com as quais os indivíduos pertencentes a esta sociedade tenta-
vám comunicar o que tinham a dizer, palavras que não esgotavam neces­
sariamente o seu pensamento. Em compensação, nenhum ser humano,
nem este ancestral nem nenhum de nós, possuiria em si mesmo a totalida­
de do significante, e menos ainda uma totalidade contendo um “mapa
detalhado” dela mesma. Além disso, um significante nunca existe em “es­
tado puro”, vazio de qualquer referência a um ou a vários significados. A
noção de “símbolo” ou de “significante” em estado puro é contraditória
em si mesma. Enfim, todos sabem que se uma criança pode aprender to­

4 2
O ENIGMA DO DOM

das as línguas, ela falará apenas algumas delas e terá no pensamento não
“a totalidade do significante”, mas uma parte, mais ou menos estendida,
dos pensamentos, das “coisas significadas” e portadas por estas línguas.
Em suma, podemos nos perguntar quem é o mais mistificado: Mauss,
que crê no valor explicativo das crenças polinésias, ou Lévi-Strauss, que
acredita no big-bang da aparição da linguagem e na origem simbólica da
sociedade humana. Seria certamente interessante reconstituir o contexto
histórico e subjetivo destas duas visões e destas crenças, mas o que nos
interessa aqui é constatar que em Lévi-Strauss ocorria, assim como em
Lacan e outros pensadores dessa época, uma mudança geral d e perspecti­
va na análise dos fatos sociais, um deslocamento do real e do imaginário
paira o simbólico e a afirmação do princípio de que, entre o imaginário e o
simbólico (que não podem existir separadamente), é o sim bólico que d o­
mina e deve ser, portanto, o ponto de partida de todas as análises.

O p ostu lad o d e Lévi-Strauss: a prim azia d o


sim bó lico sobre o im aginário

Recordemos que alguns anos depois da publicação do texto de Lévi-


Strauss, Jacques Lacan, partindo das mesmas premissas, escrevia que
“aquilo a que chamamos simbólico domina o imaginário37”. E, a partir

J7Jacques Lacan, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 825. Lacan,
em seu esforço constante para “afirmar a autonomia do simbólico” que Freud,
como ele nota com razão, “nunca havia formulado”, é bem menos prudente que
Lévi-Strauss quando este último postula o big-bang da emergência da linguagem.
Para Lacan, de fato, a ordem simbólica “é absolutamente irredutível àquilo.que
comumente denominamos experiência humana” (p. 383) e “não se pode deduzi-
la de nenhuma gênese histórica e psíquica”, um pouco como a idéia de Deus em
Descartes não pode ser produto do pensamento humano, pois, como o entendi­
mento humano é limitado e a idéia de Deus supõe o infinito, somente Deus pode­
ria colocar tal idéia na cabeça dos humanos. Aliás, o próprio Lacan, como sublinha
Jean-Joseph Goux, “multiplica as referências históricas e antropológicas que inci­
tam a destacar certos momentos de emergências sócio-históricas privilegiadas desta
ordem simbólica [...] a troca de mulheres, os hieróglifos, a álgebra, o nome do
pai, as escrituras, a lei, as máquinas”. Jean-Joseph Goux, “Les médiateurs de
l’échange”, intervenção no seminário Psychanalyse et Sciences Sociales, Paris, 1994.

4 3
MAURICE GODELIER

de suas relações com a antropologia e a lingüística estruturais, ele logo


construiria uma teoria na qual a função paterna se divide em três or­
dens — o pai real, o pai imaginário e o pai simbólico, este último con­
fundindo-se com a ordem da linguagem e da lei. Na abordagem de
Lacan, como na de Strauss, assiste-se à mesma supervalorização do sim­
bólico em relação ao imaginário e à mesma tendência a reduzir o pen­
samento e a sociedade à linguagem e ao contrato. Este deslocamento
teórico, bem entendido, ao passar para o primeiro plano a análise sis­
temática das formas e estruturas do pensamento simbólico e da lingua­
gem, produziu uma quantidade impressionante de resultados inovadores
que vieram enriquecer, em um certo nível, os resultados já atingidos
por Mauss e por Freud, pois não existiam até então, entre outras coi­
sas, a análise dos mitos na obra de Mauss e a análise da relação com a
linguagem na de Freud. Portanto, não poderia ser questão, hoje, de um
simples “retorno” a Mauss e/ou a Freud. Mas o ponto crucial não está
aí. Trata-se de saber se os resultados positivos alcançados por Lévi-
Strauss e por Lacan legitimam (continuam a fundamentar) a posteriori
o pressuposto teórico que inspirava suas pesquisas, a saber que, entre
o imaginário e o simbólico, “é o simbólico que domina o imaginário”.
Nós não acreditamos nisso e encontramos a prova em duas con­
clusões fundadas nessa premissa e que constituem verdadeiros impasses
teóricos. Uma é de Lévi-Strauss, que, ao cabo de sua análise dos mitos
dos índios da América, autoriza-se, devido ao fato de que todos os te­
mas destes mitos se respondem e se completam, de que a terra dos mitos
é redonda, a afirmar que tudo acontece como se fossem “os mitos que
se pensassem entre eles38”; a outra é a afirmação de Lacan, na qual os
discípulos do mestre sempre se enredam, assim como a maioria daque­
les que tentaram escapar-lhe, ou seja, que tudo acontece como se o Falo

38Lévi-Strauss: “Nós não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mi­
tos, mas como os mitos se pensam nos homens e à sua revelia. E talvez [...] seja
conveniente ir ainda mais longe, fazendo abstração de qualquer sujeito, para con­
siderar que, de uma certa maneira, os mitos se pensam entre eles” (Le Cru et le
Cuit, Paris, Plon, 1964, p. 20. Grifado por C. Lévi-Strauss).

4 4
O ENIGMA DO DOM

fosse não apenas o objeto do desejo, mas também o significante do


desejo, tanto o das mulheres quanto o dos homens. Duas fórmulas cé­
lebres que não afirmam nada mais que a idéia de que “os símbolos são
mais reais do que aquilo que simbolizam”, mais reais, portanto, do que
o imaginário e que “o real” que re-presentam (para o pensamento).
Tais fórmulas, a despeito de seu poder de fascinação (ou antes por
causa dele), constituem verdadeiros golpes de força teóricos que pre­
cipitam o pensamento em impasses e o aprisionam. A de Lévi-Strauss
desaparece com o papel ativo do conteúdo das relações históricas es­
pecíficas na produção do pensamento mitológico, relações estas que
esclarecem a importância dessa forma de pensamento em referência a
outras formas que coexistem com ela no interior da mesma sociedade,
na mesma época. A mitologia domina o conjunto das formas do pensa­
mento ou está encurralada em certos campos da prática social, desem­
penhando em outros campos apenas um papel subordinado? E difícil
abordar este tipo de problema com a idéia de que tudo se passa como
se os mitos se pensassem entre eles. A História, isto é, a coexistência, o
encadeamento e a sucessão das múltiplas histórias de sociedades parti­
culares no interior das quais esta ou aquela forma de pensamento, este
ou aquele modo de organização da vida social se reproduzem ou não,
a História, portanto, não é somente o desdobrar-se inconsciente e to­
talmente contingente de algumas das possibilidades “em dormência”
nas estruturas profundas do espírito humano, isto é, do nosso cérebro
em fim de contas. Quanto à fórmula de Lacan, ela desaparece, de ma­
neira menos brutal, mais ambígua que a de Freud39, com o papel ativo
do feminino na produção das figuras do desejo e na constituição da
intimidade das pessoas, de um feminino incontornável pois irredutível,
em última análise, ao Falo e sobre o qual nos podemos nos contentar,
como Lacan, em afirmar que existe o ter-mais-gozo na mulher porque

39Freud: “É assim que consideramos a libido como ‘masculina’. De fato, a pulsão


é sempre ativa, mesmo quando seu objetivo é passivo [...]. A justaposição dos ter­
mos ‘libido feminina’ não tem qualquer justificação” (Novas conferências de in­
trodução à psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, 1996, p. 130).

4 5
MAURICE GODEUER

ela não seria “totalmente” sujeito. O desejo não se reduz somente à


oposição, cativa de um só símbolo, o Falo, entre aqueles que o têm e o
serão e aquelas que não o têm e não o serão jamais40.
Não se trata de negar a existência das três funções (o imaginário, o
simbólico e o “real”) dessas três ordens que se combinam para compor
a existência social dos humanos, sua realidade social. O problema é sa­
ber se é possível construir representações mais adequadas a esta realida­
de afirmando que o simbólico domina o imaginário ou supondo o inverso.
A nossos olhos, esta perspectiva inversa é a que se deve adotar. São antes
de tudo as diversas maneiras como os homens imaginam suas relações
entre eles e com aquilo que chamamos de natureza que distinguem as
sociedades, assim como as épocas durante as quais algumas delas conti­
nuam a existir. Mas o imaginário não pode se transformar em social,
fabricar “sociedade”, existindo apenas “idealmente”. Precisa materiali-
zar-se em relações concretas que tomam forma e conteúdo nas instituições
e, claro, nos símbolos que as representam e fazem com que correspondam
entre si, que se comuniquem. “Materializando-se” em relações sociais,
o imaginário torna-se parte da realidade social.
Voltando ao dom, ao m ana e ao espírito das coisas, lembremos
que é do imaginário que nascem as crenças e, com elas, a distinção
entre o sagrado e o profano ou, em suma, o mundo do religioso, do
mágico, um mundo fundado na dupla crença de que existem seres e
forças invisíveis que controlam a ordem da marcha do universo e de
que o homem pode atuar sobre eles, sobre elas, através da prece, do
sacrifício e adequando sua conduta ao que imagina serem seus dese­
jos, suas vontades ou sua lei. Aliás, podemos estar tranqüilos: a dis­
tinção entre as três ordens não esperou sequer a segunda metade do
século X X para ser formulada e devemos a Jean-Joseph Goux a lem­
brança, em um curto mas incisivo artigo sobre Lacan41, de que o dis­

■“ Cf. Michel Tort, “Le différend”, Psychanalystes, n. 33, p. 9-17.


4IJean-Joseph Goux, “A propos des trois ronds”, in Lacan avec les philosophes,
Paris, Albin Michel, 1991, p. 173-178.

4 6
0 ENIGMA DO DOM

curso da economia política, desde os seus grandes fundadores, “já


havia produzido esta distinção a respeito de um objeto muito privile­
giado, do objeto da troca por excelência na sociedade moderna, a
moeda”. E a citação desta surpreendente frase de Marx a respeito do
ouro:

Como medida de valores o ouro é apenas moeda ideal e ouro ideal


[em outra ocasião Marx diz imaginário], como simples meio de circu­
lação ele é moeda simbólica e ouro simbólico; mas na simples forma
de corpo metálico o ouro é moeda ou, ainda, a moeda é ouro real42.

Esta citação merece que nos demoremos mais um pouco sobre


ela. J.-J. Goux comentou-a de modo muito pertinente. Retomarei
suas observações chamando atenção, no entanto, para um ponto
essencial que ele não destacou. J.-J. Goux lembra que M arx escre­
via em uma época na qual o ouro, como metal precioso, assumia as
três funções da moeda, na medida em que esta serve ao mesmo tem­
po como equivalente geral do valor das mercadorias que circulam
nos mercados e como forma primeira da riqueza: a moeda funciona
então como medida do valor das mercadorias, como meio para a
sua troca e, enfim, como reserva.de riqueza, como tesouro. Marx
escrevia igualmente em uma época na qual todos os economistas e
o público partilhavam a idéia de que todas as formas de moeda di­
versas do ouro (o papel, os títulos ou outros signos monetários,
sobretudo bancários) só tinham valor porque representavam o ouro43.
A confiança na moeda repousava no fato de que, em princípio, os
particulares poderiam obter moedas de ouro, sem demora e sem
restrições, em troca de bilhetes de banco ou de outros signos mone­
tários em circulação. Bem entendido, a aplicação deste princípio em

42Karl Marx, Contribution à la critique de Veconomie politique (1857), Paris, Ed.


sociales, 1972, p. 90.
43Encontra-se este dogma expresso já na metade do século X IX e ele só irá desa­
parecer no começo do século X X .

4 7
MAURICE GODELIER

tempos de crise era suspensa pois, se todos os indivíduos convertes­


sem seus bilhetes de banco em ouro, o sistema desmoronaria. Mas
em tempos normais, o ouro não precisava circular para funcionar
como medida de valor. Bastava-lhe estar em reserva nos bancos. A
bem dizer, como afirmava Marx, ele poderia existir somente na ima­
ginação44, ao contrário da moeda em forma de papel ou de outros
signos monetários que, esta sim, circula na troca real de mercadorias
e funciona como substituto, como símbolo.
De fato, J.-J. Goux nos dirige para o caminho que leva a Mauss e
à distinção entre bens alienáveis e bens inalienáveis. Pois aqui, em ple­
na economia mercantil, de moeda universal e de concorrência genera­
lizada, descobrimos que é preciso que algo não circule, que seja retirado
voluntariamente da esfera e do movimento de trocas para que a massa
de trocas mercantis e bancárias se agite, para que tudo que pode ser
vendido ou comprado comece a circular.
O paradoxo é que esta coisa que se encontra assim disjunta, sub­
traída à esfera das trocas, “de certo modo retirada da circulação”,
também é justamente o instrumento dessas trocas, o meio dessa cir­
culação: a moeda. E forçoso concluir, portanto, que não é suficiente
que uma moeda exista para que as trocas comerciais se desenvolvam
e invadam toda a esfera das trocas, é preciso ainda que esta moeda
(qualquer que seja) assuma simultaneamente duas funções, ocupe dois
lugares ao mesmo tempo: um no coração das trocas, onde funciona
como meio de pagamento, outro além ou aquém das trocas, onde
constitui um ponto fixo que serve de referência para medir o valor
do que circula. Assim, a moeda se vê ao mesmo tempo arrastada pelo
movimento de todas as mercadorias e imobilizada em um ponto ao
redor do qual toda esta engrenagem, da qual ela mede o volume e a
velocidade, gira.

■“ “Sendo a expressão do valor das mercadorias em ouro simplesmente ideal, não


há necessidade, para esta operação, senão de um ouro ideal ou que exista apenas
na imaginação”, Karl Marx, O capital, Livro I, vol. 1.

4 8
O ENIGMA DO DOM

Ei-nos, parece, bem longe de Mauss. No entanto, ao descobrir


a existência de realidades que, de alguma maneira, estão afastadas
das trocas e, ao mesmo tempo, permitem que estas se realizem,
estamos bem perto de certas passagens do texto de Mauss que, to­
davia, jamais suscitaram comentários particulares, permanecendo
na sombra. Como é, então, este Mauss esquecido, este Mauss sem
comentários?

O esqu ecim en to da qu arta obrigação


(os don s d os hom en s a o s deuses e a o s h om en s que
representam o s deuses)

Depois de introduzir a noção de “espírito” da coisa dada, o hau, e esbo­


çar uma primeira descrição do potlatch e do kula, Mauss menciona
pela primeira vez uma “quarta obrigação” que desempenha “um papel
nessa economia e nessa moral dos presentes”. É a obrigação de fazer
dons aos deuses, assim como aos homens que representam os deuses.
Ele faz alusão a cerimônias em que homens usam os nomes de espíri­
tos, deuses, animais etc. e trocam bens para incitar seus homônimos a
serem generosos para com os homens. Ele constata que essa prática
aparecia em certos potlatch, mas afirma que ela ultrapassa esta insti­
tuição. De fato, Mauss se refere a cerimônias praticadas pelos esqui­
mós, no curso das quais os xamãs convidam os espíritos a participar
das danças e das trocas de dons. Depois, eles anunciam que os espíri­
tos gostaram de estar entre os homens e que enviarão caça abundante.
E no fim da estação de caça outras cerimônias serão consagradas à ação
de graças aos espíritos que presentearam os homens com a caça. Jo ­
gam-se os restos do festim ao mar, “e eles voltam a seu país de origem
e levam com eles os animais mortos naquele ano, que voltarão no ano
vindouro45”. Portanto, Mauss inclui aqui, na categoria dos dons, as

45Marcel Mauss, art. cit., p. 166.

4 9
MAURICE GODELIER

oferendas feitas aos espíritos e aos deuses, os sacrifícios destinados a


solicitar sua benevolência ou a agradecer-lhes46. Oferendas e sacrifícios
são dons feitos aos mortos, aos espíritos, aos deuses, mas o sacrifício
tem a capacidade, segundo Mauss, de exercer uma coação sobre os
deuses, de fazer com que devolvam, como no potlatch, mais do que
receberam. “A destruição sacrifical tem como objetivo, precisamente,
ser um donativo necessariamente retribuído*1
Mas, por outro lado, Mauss afirma que os espíritos dos mortos e os
deuses “são os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mun­
do. Com eles era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar”. E
acrescenta: “Inversamente, com eles era mais fácil e mais seguro trocar48.”
Ora, os dons dos homens aos deuses se realizam através dos atos
de oferenda e da destruição das coisas oferecidas. Sacrificam-se víti­
mas, faz-se com que se elevem até os deuses o odor do incenso e o
fumo dos sacrifícios, e eventualmente consome-se a carne dos animais
sacrificados. Sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece, e é nisso
que o sacrifício é uma espécie de potlatch e que os dons aòs deuses,
aos espíritos da natureza e aos espíritos dos mortos não apenas perten­
cem ao “mesmo complexo” mas, como escreve Mauss, “elevam ao grau
supremo” a economia e o espírito do dom, pois “estes deuses que dão
e retribuem estão ali para dar uma coisa grande em troca de uma

46Mauss aproxima as oferendas e os sacrifícios à prática da esmola, que participa


do dom na medida em que este contribui para redistribuir a riqueza e em que os
ricos se sentiriam sempre ameaçados se expusessem um excesso de riqueza insu­
portável para os outros. Mas a esmola é também uma parte do sacrifício que os
deuses voluntariamente abandonam para os homens. E Mauss faz a origem da
doutrina da caridade e da esmola, “que deu a volta ao mundo com o cristianismo
e o islã”, remontar à zedaqa hebraica e à sadaka árabe (ibid., p. 170).
47Ibid., p. 167. Mauss escreveu também: “O sacrifício-contrato [...] supõe institui­
ções do gênero daquelas que descrevemos (potlatch, kula etc.) e inversamente ele
as realiza em grau supremo, pois estes deuses que dão e retribuem estão ali para dar
uma coisa grande em troca de uma pequena. Talvez não seja por puro acaso que as
duas fórmulas solenes do contrato — em latim do-ut-des, em sânscrito dadami se
dehi me — foram conservadas também em textos religiosos” (ibid., p. 169).
4*Ibid., p. 167.

5 0
0 ENIGMA 00 DOM

pequena”. Mauss indica aqui, claramente, a articulação entre a prática


do dom e a prática do sacrifício-contrato com os deuses e os espíritos.
E, prolongando o pensamento de Mauss, compreendemos melhor por
que, nesses universos sociais e mentais, os humanos que dão mais do
que lhes foi dado e que dão tanto que jamais será possível restituir-lhes
tanto elevam-se acima dos outros homens e são um pouco como os
deuses ou pelo menos deles se aproximam.
E estranho que Mauss, que leva a sério o fato de que em todas as
sociedades os deuses e os espíritos dos mortos são os verdadeiros pro­
prietários das coisas, restrinja os dons aos deuses ao sacrifício, isto é, à
coação que os homens pretendem exercer sobre os deuses. Ele deveria
levar em conta também o fato de que os deuses têm liberdade para dar
ou não e que os homens abordam os deuses estando já em dívida com
eles, pois foi deles que receberam todas as condições de existência. Falta
a esta análise a consideração de que os deuses e os espíritos são muito
superiores aos homens e que os doadores, que são os homens, são já de
antemão inferiores aos tomadores, que são os deuses.
A nossos olhos, é por esta razão que a dívida dos homens para com
os deuses, os espíritos da natureza e os espíritos dos mortos foi prova­
velmente o ponto de partida, a estrutura imaginária que permitiu a
cristalização, a moldagem e o direcionamento das relações entre cas­
tas e entre classes. Desenvolveremos este tema mais tarde, quando
mostrarmos que é no universo do dom e das dívidas criadas pelo dom
que se esclarece e ganha sentido o processo de formação das castas e
das classes. Afinal, para os antigos egípcios, o faraó não era um ho­
mem, era um deus vivente entre os homens. Nascido de um incesto
gemelar entre ísis e Osíris, ele é a fonte única do kâ, do sopro que dá
existência a todos os seres vivos: os homens, os pássaros, o gado, as
moscas, os peixes etc. É aos deuses, e particularmente ao faraó, que os
egípcios acreditam dever a vida, a fertilidade, a abundância. E nada
poderia anular esta dívida, nem o dom de sua força de trabalho ou dos
produtos de suas mãos, nem sequer o de suas pessoas ou de seus filhos,
“dons em retribuição” pelos benefícios do faraó, que para nós seriam

5 1
MAURICE GODELIER

apenas as diversas formas de dominação-exploração dos camponeses


egípcios pela elite dos padres e dos guerreiros que cercavam o faraó e
que chamaríamos de corvéia, tributo, servidão. Mas nos permitiremos
apenas esta alusão. Poderíamos acrescentar outras centenas de exem­
plos para ilustrar a mesma realidade, o fato de que todo poder contém
“os nós do imaginário” que foram necessários para sua formação e sua
reprodução. Ora, o imaginário só tem força quando é crença, norma
de comportamento, fonte de moral. E logo compreenderemos que é
precisamente esta força da crença no imaginário que Lévi-Strauss ocul­
tou ao afirmar a primazia do simbolismo sobre o imaginário.
Antes de terminar com esta quarta obrigação, é preciso lembrar que,
se Mauss publicara em 1899 outro ensaio célebre, escrito em colaboração
com Henri Hubert, intitulado precisamente Essai sur la nature et la fonction
du sacrifice, ele não acreditou, em 1927, que poderia fazer mais que suge­
rir a existência de um laço íntimo e de uma continuidade entre o dom e o
sacrifício e explicou-se com palavras que merecem que nós a escutemos:
“Não fizemos o estudo geral que seria necessário para ressaltar sua impor­
tância [dos dons feitos aos deuses e à natureza]. De mais a mais, os fatos
de que dispomos não pertencem de forma alguma às áreas às quais nos
limitamos [Melanésia, Polinésia, América do Norte, índia etc.]. Enfim, o
elemento mitológico, que ainda compreendemos mal, é aí forte demais
para que possamos fazer abstração dele49.” Ora, é ao estudo das mitolo­
gias que Lévi-Strauss vai consagrar uma parte de sua vida.

Um Mauss esquecido

Entre as notas preciosas de Mauss sobre os dons dos homens aos deuses,
encontram-se várias alusões ao fato de que nem todas as riquezas se tro­
cam , de que há nas Trobriands, por exemplo, dois ti£>os de objetos pre­
ciosos, de vaygu’a (braceletes e colares): “aqueles do kula e aqueles que
M. Malinowski chama pela primeira vez de ‘vaygu’a permanentes’, que

I 49Ibid„ p. 164.

5 2
O ENIGMA DO DOM

são expostos e oferecidos aos espíritos sobre uma plataforma idêntica à


do chefe. Isso torna seus espíritos bons. Eles levam a sombra das coisas
preciosas ao país dos mortos”. Aqui, Mauss, que colocou tal acento so­
bre a troca e o dom, distingue cuidadosamente duas categorias de obje­
tos: aqueles que se devem e se podem dar ou trocar, que são alienáveis,
aqueles que não se devem dar nem trocar pois são inalienáveis:

Entre os kwakiutls, um certo número de objetos, embora apareçam


no potlatch, não podem ser cedidos. No fundo, estas ‘propriedades’
são sacra, dos quais a família só se desfaz com grande esforço e às vezes
nunca [...] o conjunto destas coisas preciosas constitui o dote mágico
[...] o conjunto destas coisas é sempre, em todas as tribos, de origem
espiritual e de natureza espiritual [...]so.”

E para mostrar o quanto Mauss percebeu claramente a existência


de duas esferas de riquezas, a dos bens alienáveis e a dos bens inalie­
náveis, e que a primeira se abre para o campo imenso e frenético dos
dons, contradons e outras formas de troca, enquanto a segunda segue
os caminhos da transmissão e do enraizamento no tempo, nós o citare­
mos ainda uma vez a propósito dos kwakiutls:

Parece que entre os kwakiutls havia dois tipos de cobres: os mais im­
portantes, que não saem da família, que não se podem quebrar para
refundir, e outros que circulam intactos, de menor valor e que pare­
cem servir de satélites para os primeiros. A posse destes cobres secun­
dários, entre os kwakiutls, corresponde sem dúvida à posse de títulos
nobiliários e de categorias de segunda ordem, com os quais eles via­
jam de chefe em chefe, de família em família, entre as gerações e os
sexos. Parece que os grandes títulos e os grandes cobres permanecem
fixos no interior dos clãs e das tribos. Seria aliás difícil que as coisas
acontecessem de outro modo51.

50Ibid., p. 216-217.
MIbid., p. 224.

53
MAURICE GODELIER

Mas se para Mauss parecia fácil compreender que dificilmente


poderia ser diferente, depois de Lévi-Strauss tornou-se muito difícil
compreender que tinha de ser assim.

D as coisas qu e se p o d em d ar e daqu elas qu e se devem gu ardar


(Annette W einer e o p ara d ox o d o dom )

Isso nos leva a um grande atalho até Annette Weiner e a questão


fundamental da natureza do social, dos componentes essenciais de
qualquer sociedade humana. Annette Weiner, com base em seu pró­
prio conhecimento direto dos mecanismos e das representações da
sociedade das Trobriands, foi capaz de reencontrar em Mauss aqui­
lo que meio século de comentários tinha silenciado52, e em uma série
de publicações, das quais a última foi In alien able Possessions: The
Paradox o f Keeping-while-Giving (1992), ela desenvolveu duas idéias
essenciais.
A primeira nós já conhecemos e já a expusemos à nossa maneira. É
a tese segundo a qual o jogo dos dons e contradons, mesmo em uma
sociedade com “economia e moral do dom”, não invade toda a esfera
do social. Nesta, como em outras esferas, há coisas que é preciso guar­
dar, não dar. Estas coisas guardadas, objetos preciosos, talismãs, sabe-
res, ritos, afirmam em profundidade as identidades e sua continuidade
através dos tempos. Mais ainda, elas afirmam a existência de diferen­
ças de identidade entre os indivíduos, entre os grupos que compõem
uma sociedade ou que querem se situar, uns em relação aos outros, no
seio de um conjunto de sociedades vizinhas conectadas entre si por
diversos tipos de trocas.

s2Mauss: “Parece que entre os kwakiutls havia dois tipos de cobres: os mais im­
portantes que não saem da família [...] outros que circulam intactos, de menor
valor e que parecem servir de satélites aos primeiros.” E a propósito dos objetos
preciosos das Trobriands: “Os dois tipos de vaygu’a, aqueles do kula e aqueles
que M. Malinowski chama pela primeira vez de vaygu’a permanentes, aqueles que
não são objeto de troca obrigatória” (ibid., p. 224).

5 4
O ENIGMA 00 OOM

Mas essas diferenças de indentidade não são neutras, elas consti­


tuem uma hierarquia, e é nesse processo de produção-reprodução de
hierarquias, entre indivíduos, entre grupos, mesmo entre sociedades,
que as duas.estratégias, dar e guardar, desem penham papéis distintos
m as com plem entares. Ampliando a nota de Mauss a respeito dos mais
belos cobres dos kwakiutls, Annette Weiner sugere mesmo que em uma
economia do dom é preciso que sejam excluídos dos dons certos obje­
tos (esteiras, jade etc.) do mesmo tipo daqueles que são dados, porém
mais belos, mais raros, mais preciosos. Donde a sua fórmula keeping-
while-giving. Creio que se pode ir além e que, lembrando o ouro que
permanece nas reservas dos bancos para garantir o valor dos outros
signos monetários que circulam, uma fórmula mais adequada seria
keeping-for-giving, guardar para (poder) dar. De passagem, eu notaria,
embora Annette Weiner não faça a distinção entre o imaginário e o
simbólico, que os bens preciosos, os tesouros, os talismãs que não são
dados, mas conservados, têm todas as chances de ser aqueles que con­
centram em si o maior poder imaginário e, conseqüentemente, o maior
valor simbólico.
A segunda idéia-força de Annette Weiner refere-se à importância
das mulheres e/ou do feminino no exercício do poder, nos mecanis­
mos de legitimação e de redistribuição do poder político-religioso en­
tre os grupos que compõem uma sociedade. Pegando seus exemplos
sobretudo na Polinésia, ela nos leva a admitir que grande parte dos bens
preciosos consagrados como tesouros de um clã, como símbolos de uma
categoria e de um título ou circulando como objetos preciosos nos dons/
contradons associados aos rituais do nascimento, do casamento, da
morte, é de bens fem ininos, bens produzidos pelas mulheres e sobre os
quais elas têm direitos particulares.
Annette Weiner faz reaparecer assim o papel das mulheres e/ou do
feminino na produção e no jogo do poder político, do qual elas pare­
cem excluídas ou parecem ocupar apenas um lugar bastante secundá­
rio. Na Polinésia, a mulher, como irmã, goza de um status superior ao
do homem como irmão, e a irmã, como mulher, é tida como mais pró-

ss
MAURICE GODELIER

xima dos ancestrais e dos deuses, do sagrado. Se a relação com o sa­


grado é, em geral, o que confere a maior das legitimidades a um poder
político, então, por trás das aparências que dissimulam sua importân­
cia, as mulheres e o feminino estariam ativamente presentes no cora­
ção das instituições políticas polinésias, como também, é claro, no
coração das relações íntimas. Annette Weiner declara-se, aliás, em dí­
vida com Mauss por esta idéia, que escreveu a propósito das duas cate­
gorias de objetos preciosos presentes no reino de Samoa, os o lo a e os
leHonga:

Os le’tonga designam as paraphernalia permanentes, em particular as


alcatifas de casamento, as decorações, os talismãs que entram através
da mulher para a família recém-fundada, como retribuição; são, em
|suma, espécies de imóveis por destinação. Os oloa designam em pou­
cas palavras os objetos, na maioria instrumentos, que são especifica­
mente do marido, são essencialmente móveis. Hoje em dia, aplica-se
este termo também às coisas provenientes dos brancos53.

Estas análises do papel das mulheres e da existência de “bens femi­


ninos” indispensáveis à produção e à legitimação do poder político
levaram Annette Weiner a levantar a questão do papel estratégico das
relações irmão-irmã na constituição do social e na instituição do po­
der. Apoiando-se no fato de que nas ilhas Trobriand, onde o sistema de
parentesco é matrilinear, a identidade do clã e sua continuidade pas­
sam exclusivamente pelas mulheres e portanto pelas mulheres como
irmãs, ela nega que, pelo menos nesse caso, a fórmula de Lévi-Strauss
de que o parentesco repousa sobre a “troca” das mulheres entre os
homens tenha fundamento. Avançando um argumento que, a seus olhos,
parece ter um alcance crítico mais geral, ela contesta mesmo que se
possa considerar como equivalentes uma irmã dada como esposa e uma

S3Ibid., p. 156. Cf. Annette Weiner, “Plus précieux que l’or: relations et échanges
entres hommes et femmes dans les sociétés d’Óceanie”, Annales ESC, n° 2 ,1 9 9 2 ,
p. 222-245.
O ENIGMA 00 DOM

esposa recebida no lugar desta irmã, e é finalmente a própria questão


do incesto entre irmão e irmã que fica assim colocada. Ela lembra que
o incesto entre irmão e irmã, acumulando o máximo das forças positi­
vas e negativas, o máximo de poderes sagrados, era, aliás, praticado
pelas grandes famílias nobres e reais de certas sociedades polinésias, o
que testemunha suas origens sobrenaturais.
Não a seguiremos em todos estes terrenos. A propósito das teses de
Lévi-Strauss sobre o parentesco, mostramos em outra ocasião54 que a
proibição do incesto não envolvia necessariamente, como afirmou Lévi-
Strauss, a troca de mulheres entre os homens. A proibição do incesto
desemboca em três possibilidades logicamente equivalentes: os homens
trocam suas irmãs entre eles, as mulheres trocam seus irmãos entre elas,
os grupos trocam homens e mulheres entre eles. Destas três possibilida­
des lógicas, Lévi-Strauss só reteve uma ao colocar a troca de mulheres
entre os homens como a essência mesma do parentesco e, portanto, como
fato universal. Ora, as três possibilidades existem sociologicamente. A
troca de homens entre as mulheres foi atestada entre os tétuns da
Indonésia55, os jorais do Vietnam e algumas outras sociedades56. Em vez
de um bridewealth, os grupos pagam um groomwealth, uma compensa­
ção matrimonial em troca dos serviços do futuro esposo. A terceira pos­
sibilidade lógica, a troca de homens e mulheres pelos grupos familiares,
é evidentemente muito mais freqüente: ela é praticada nas sociedades
européias contemporâneas e em muitas sociedades cognáticas da Poli-
nésia, da Indonésia, das Filipinas etc. De qualquer forma, a troca de
mulheres não é um fato universal, como afirma Lévi-Strauss. É apenas a
forma de troca matrimonial estatisticamente mais freqüente. (A propó­
sito, notemos que o fato de as mulheres trocarem seus irmãos entre os

J4Maurice Godelier, “L’Occident — miroir brisé”, Annales ESC, n° 5, setembro-


outubro 1993, p. 1183-1207.
S5Cf. Georges Francillon, “Un profitable échange chez les Tetum du Sud-Timor
central”, LHom m e, vol. 29, n° 1, 1989, p. 26-43.
S6Cf. Jacques Dournes, Coordonnées-Structures jorat familiales et sociales, Paris,
Instituto de Etnologia, 1972.

5 7
MAURICE GODELIER

jorais não prova que esta sociedade desconhece a dominação masculina.


Ela é bem real, apenas não se exerce neste caso.) Aliás, a teoria de Lévi-
Strauss não peca somente por ter, em um golpe de força, eliminado as
duas possibilidades lógicas de troca de parceiros matrimoniais ao decla­
rar que elas poderiam existir na imaginação, poderiam ser evocadas para
dar satisfação às mulheres, mas não poderiam ser encontradas na reali­
dade; ela peca também por ter “reduzido” o parentesco à troca, à reci­
procidade, ao simbólico. De um só golpe, tudo aquilo que, no parentesco,
ultrapassa a troca, é continuidade (imaginária), enraizamento no tempo,
no sangue, no solo etc. foi silenciado ou diminuído.
Não importa de que ângulo se aborde a questão, retorna-se sem­
pre à mesma constatação sobre a essência do social e, portanto, sobre
a origem da sociedade. O que hoje parece claro é que o social não se
reduz à soma das formas de troca possíveis entre humanos e não pode,
portanto, encontrar na troca, no contrato, no simbólico sua única ori­
gem, seu único fundamento. Além da esfera das trocas existem outros
domínios, uma outra esfera constituída por tudo aquilo que os huma­
nos imaginam que devem excluir da troca, da reciprocidade, da rivali­
dade, e que devem conservar, preservar, quiçá enriquecer.
Mas o social também não é a simples justaposição nem mesmo a
adição destas duas esferas, a alienável e a inalienável, pois a sociedade só
nasce e se mantém pela união, pela interdependência dessas duas esferas
e por sua diferença, sua autonomia relativa. A fórmula do social não é,
portanto, keeping-while-giving, mas keeping-for-giveng-and-giving-for-
keeping. Guardar para (poder) dar, dar para (poder) guardar. Adotar este
duplo ponto de vista permite, a nossos olhos, tomar a verdadeira medi­
da do ser social do homem e das precondições de qualquer sociedade.

D o du plo fu n d am en to d a socied ad e

Se a fórmula do social é dupla, a origem da sociedade não pode ser


simples nem seu fundamento único. A sociedade humana tirou sua
existência de duas fontes, a troca, o contrato de um lado, o não-
contratual, a transmissão do outro. E ela continua a se mover sobre

s 8
0 ENIGMA DO DOM

essas duas pernas, a repousar sobre estas duas bases que lhe são tão
necessárias uma quanto a outra e não podem existir uma sem a outra.
Portanto, há sempre no social humano coisas que escapam ao contra­
to, que não são negociáveis, que se situam além da reciprocidade. Quer
no parentesco, quer na política, há sempre em todas as atividades hu­
manas, para que se constituam, algo que precede a troca e onde a troca
vem se enraizar, algo que a troca altera e conserva alternadamente,
prolonga e renova ao mesmo tempo. Essa antecedência cronológica e
essa prioridade lógica só existem como m om entos de um movimento
perpétuo que tem sua fonte no modo de existência original do homem
como ser que não somente vive em sociedade (como os outros animais
sociais), mas produz sociedade para viver.
E se, para fechar este ponto, fosse preciso citar um filósofo, por que
não Aristóteles, que de um lado' afirmava em Ética a N icôm aco: “Se não
houvesse troca, não haveria vida social”, mas que, na Política, rejeitava a
idéia de que a sociedade humana pudesse ter nascido de um contrato. Na
polis, escreve ele, existe mais que um contrato, uma aliança, que uma
summachia. Senão, diz ele: “Os etruscos e os cartagineses, e todos os po­
vos entre os quais existem sumbola mútuos, seriam todos cidadãos de uma
mesma cidade57.” Logo, não é por acaso que a maioria dos teóricos que
proclamam o primado do simbólico sobre o imaginário funda a origem da
sociedade em um contrato. Antes do símbolo nada havia, em seguida houve
tudo. Antes da emergência da linguagem, antes da proibição do incesto,
antes do contrato social originário, a sociedade não existia ou, se existia,
não tinha sentido. Depois, ela surgiu e se pôs a significar alguma coisa.
Ao chegar a esta questão da existência de uma ou várias origens da
sociedade, vamos nos abster de ir além destas poucas sugestões formu­
ladas a título de uma primeira abordagem. Elas nos permitiram, contu­
do, medir os mecanismos associados à análise do lugar e da importância
do dom no funcionamento e na evolução das sociedades humanas. Este

S7Sumbola ou, em outras palavras, contratos, tratados. Citado por Vincent


Descombes, “Uéquivoque du symbolique”, art. cit., p. 92.

5 9
MAURICE GODELIER

lugar não pode ser definido, esta importância medida se não tivermos
uma visão mais preçisa das relações que existem entre a esfera das coi­
sas sagradas que não se trocam e a dos objetos preciosos ou das moe­
das que entram nas trocas de dons e nas trocas comerciais.
Para levar esta tarefa a cabo, vamos nos dedicar agora a um novo
exame dos materiais etnográficos que conhecemos melhor, o dos baruyas
da Nova Guiné. Há, no entanto, um paradoxo ao fazer tal escolha. En­
tre os baruyas, com efeito, a prática do dom e do contradom das mulhe­
res entre as linhagens é uma forma desgastada de prestação total; e mesmo
tendo uma enorme importância social, não pode ser encontrada em
outros domínios da vida social. Toda a esfera das relações políticas gira
efetivamente em torno da posse e do uso de objetos sagrados que cada
clã guarda preciosamente e não pode dar ou trocar. Aliás, os baruyas
produzem uma “quase-moeda”, o sal, com a qual conseguem toda uma
série de meios de subsistência e de bens preciosos, sem jamais acumulá-
los para utilizar em uma competição pelo poder. O paradoxo é que para
analisar a lógica da sociedades organizadas em torno do potlatch, parti­
remos da análise de uma sociedade sem potlatch. Mas, como veremos,
este método é conforme às indicações de Mauss e permite que nos dote­
mos dos meios para determinar as diferenças, as distâncias significativas
entre as sociedades com dom sem potlatch e as sociedades com potlatch.
Ele permite também que precisemos as transformações sociais e históri­
cas que possibilitaram o nascimento e o desenvolvimento, a partir de
sociedades que praticam o dom sem rivalidade, de sociedades em que
este é praticado sistematicamente dentro de um espírito de rivalidade e
antagonismo, para ter acesso a posições de poder e renome.

C riticar Mauss, m as co m p leta n d o -o e to m a n d o tam bém


ou tros cam in hos

O “Essai sur le don” é consagrado essencialmente à análise do potlatch,


isto é, à análise das formas agonísticas do dom. Mas muitas vezes se
esquece que, para Mauss, o potlatch não é mais que uma “forma

eo
O ENIGMA DO DOM

evoluída” de prestação total, forma em que “domina o princípio da


rivalidade e do antagonismo”58. Logo, se seguirmos suas indicações, é
preciso buscar em outro ponto que não o potlatch o ponto de partida
de toda a sua análise. Aliás, ele próprio afirmou:

“ O p on to de p artid a está em o u tro lugar. Ele está em um a categ o ria


de direitos que d eixam de lado os juristas e os econ om istas que não
se interessarem . É o d om , fen ôm eno co m p lexo , sob retu d o em sua
form a mais antiga, a da p restação to tal, que não estudam os nesta dis­
sertação59. ”

Se o potlatch é uma forma evoluída, transformada, dos dons-pres-


tações totais, é evidente que ele não pode ser analisado completamen­
te se não se tem uma idéia clara do que Mauss entendia por prestação
total. Para tanto, juntamos alguns fragmentos de texto que lhe são con­
sagrados em “Essai sur le don” e em M anuel d ’ethnographie (1947).
“Prestação” provém, como Mauss indica em seu M anuel, de prestare,
“pôr na mão”, e designa “um contrato para prestar uma coisa ou um
serviço60”. Ele distingue entre os “contratos” de prestação total e os
“contratos” em que a prestação é apenas parcial. E distingue duas ca­
tegorias de prestações totais, se os dons e contradons trocados assu­
mem uma forma antagonista ou não. Ele considera que a categoria de
dons/contradons não-antagonistas é a mais antiga e evoluiu no curso
da história em direção a formas cada vez mais competitivas e individua­
listas que culminam no potlatch. E precisamente o conjunto dessas
formas, não-antagonistas e antagonistas, que ele chama de “sistema de
prestações totais61”. Ele toma como modelos das prestações totais não-
antagonistas as trocas praticadas nas sociedades divididas em metades

S8Marcel Mauss, art. cií., p. 151.


59Ibid., p. 199. Grifo nosso.
<0Id., Manuel d ’ethnograpbie, Paris, Payot, 1947, p. 185.
6lId., “Essai sur le don”, art. cit., p. 151.

6 1
MAURICE GODELIER

complementares, como as tribos australianas ou índias da América do


Norte:

O tipo mais puro dessas instituições parece ser representado pela aliança
das duas fratrias nas tribos australianas ou norte-am ericanas em geral,
onde os ritos, os casam entos, as sucessões nos bens, os laços de direito
e de interesses, as categorias militares e sacerdotais, tudo é com p le­
m entar e supõe a colab oração das duas m etades da tribo62.

Ele escreve em outro trecho:

A prestação total se traduz, no caso de dois clãs, pelo fato deles esta­
rem sempre em estado de co n trato perpétuo, cada um devendo tudo a
tod os os outros de seu clã e a tod os aqueles do clã em frente. O cará­
te r perpétuo e coletivo de tal con trato faz dele um verdadeiro tratad o
co m exposição necessária das riquezas em relação à ou tra parte83.

E Mauss precisa que este tipo de prestação não desapareceu de nossa


sociedade:

M uito mais difundida na origem, a prestação total ainda existe entre espo­
sos, a menos que seja especificado o contrário no contrato de casamento64.

Mas voltemos à descrição das características essenciais das presta­


ções totais analisadas em “Essai sur le don”. Primeira característica:

N ão são os indivíduos', são as coletividades que se obrigam m utuam en­


te , tro cam e con tratam : as pessoas presentes no co n trato são pessoas
m orais, clãs, tribos, famílias, que se defrontam e se op õem quer em
grupo, enfrentando-se no local, quer p or interm édio de seu chefe, quer
dos dois m odos ao mesmo tem po65.

“ Ibid.
<3Id., Manuel d ’etbnographie, op. cit., p. 188.
MIbid., p. 185.
65Id., “Essai sur le don”, art. cit., p. 151.

6 2
O ENIGMA DO DOM

Segunda característica:

O que eles tro cam não são exclusivam ente bens e riquezas, [...] coisas
econom icam ente úteis, são sobretudo cortesias, festins, ritos, serviços
m ilitares, m ulheres, crianças, danças, feiras, nos quais o m ercad o é
apenas um m om ento e a circulação de riquezas som ente um dos ter­
mos de um co n trato mais geral e mais perm anente6*.

E enfim:

Estas prestações e contraprestações eram acertadas de uma m aneira antes


voluntária, através de dádivas, presentes, em bora fossem, no fundo, ri­
gorosam ente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública67.

As prestações totais se distinguem entre elas segundo o caráter mais


ou menos evidente da rivalidade e da competição que animam os indi­
víduos e os grupos que trocam dons e contradons. E o potlatch dos
“índios de Vancouver no Alasca” pareceu a Mauss uma forma “típica”,
“evoluída e relativamente rara” das prestações totais agonísticas:

O que é notável nessas tribos é o princípio da rivalidade e do antago­


nism o que dom ina todas essas práticas [...] Chega-se m esm o à destrui­
ção puram ente osten tatória das riquezas acum uladas para eclipsar o
chefe rival e ao m esm o tem po associado [...] E xiste p restação total no
sentido em que é o clã com o um tod o que con trata p or tod os, para
tudo o que possui e por tudo o que faz por interm édio de seu chefe.
M as esta p restação rev este-se, p o r p arte do ch efe, de um ca rá te r
agonístico bastante m arcado [...] Assiste-se, antes de tu do, a um a luta
dos nobres para garantir entre eles um a hierarquia da qual, ulterior-
m ente, seu clã tirará proveito68.

6<Ibid.
67Ibid.
68Ibid., p. 152-153.

6 3
MAURICE GODELIER

Mauss constata que este tipo de dom-contradom agonístico pode ser


encontrado bem além do continente americano e da Melanésia, mas para
designá-lo escolheu o termo potlatch, transformando assim um termo
extraído de uma língua índia particular em uma categoria sociológica geral -

Sugerimos reservar o nom e de potlatch para este gênero de institui­


ção que se poderia, com m en or perigo e m aior precisão, mas de m a­
neira bem mais longa, cham ar de prestações totais do tipo agonístico69.

Em oposição ao potlatch, diz ele, nas prestações totais não-ago-


nísticas, “os elementos da rivalidade, da destruição, das lutas parecem
não existir70.”
Percebe-se que as prestações, antagonistas ou não, são totais no
sentido em que são ao mesmo tempo fenômenos “jurídicos, religiosos,
mitológicos, xamanistas, estéticos” e de “morfologia social”, isto é,
supondo a intervenção dos grupos que dão forma a uma sociedade (fa­
mílias, clãs, tribos etc.). O fenômeno social da troca de dons é total
porque nele combinam-se muitos aspectos da prática social e numero­
sas instituições que caracterizam uma sociedade. Este é o sentido que
Mauss empresta ao termo “total”. Mas há um outro sentido nesta pa­
lavra. Pode-se, com efeito, considerar que fenômenos sociais são “to­
tais” não porque combinam em si múltiplos aspectos da sociedade, mas
porque de certo modo permitem que a sociedade se represente e se
reproduza como um todo. Mauss utiliza raramente o conceito de “to­
talidade” nesse sentido, embora ele corresponda, por exemplo, ao fun­
cionamento das sociedades divididas em metades. Nestas a reprodução
de uma das metades é condição imediata da reprodução da outra, ao
mesmo tempo em que depende dessa outra para sua própria reprodu­
ção; cada uma das partes é ela mesma à medida que engloba a outra e
é, por sua vez, englobada por ela.

6,Ibid., p. 153.
70Ibid., p. 154.

6 4
0 ENIGMA DO DOM

Feitas estas observações, encontramo-nos em uma situação para­


doxal. Mauss indicou-nos um ponto de partida para compreender sua
análise, mas não o desenvolveu em sua obra. Logo, há aqui uma falta
que tentaremos remediar com a análise de um caso de troca não-
agonística de dons e de contradons, um caso que nós mesmos observa­
mos no trabalho de campo na Nova Guiné.
Dez anos depois de ter lido Mauss e Lévi-Strauss, e tendo decidido
nesse ínterim tornar-me antropólogo, cheguei em 1967 para fazer meu
primeiro trabalho de campo entre os baruyas, uma população que ha­
bitava um dos altos vales das montanhas do interior da Nova Guiné.
Eu ignorava então que seria levado a observar uma instituição que tem
enorme impacto sobre o funcionamento da vida coletiva e individual:
a prática do casamento por troca direta de duas mulheres entre dois
homens e duas linhagens, o ginamaré.

Breve an álise d e um ex em p lo de don s e contradon s


n ão-agon ísticos

Foi-nos necessário algum esforço e tempo para compreender que essa


troca recíproca de modo algum cancela a dívida que cada um dos dois
homens havia contratado com o outro quando recebera uma de suas
irmãs co m o esposa. Doravante, durante a vida toda, os dois homens
duplamente aliados irão dividir uma parte dos produtos de suas caça­
das, de seu sal, convidar um ao outro para decifrarem juntos os novos
jardins das florestas. Deverão ser solidários nos feudos entre as aldeias
e, claro, cada um terá que manifestar generosidade e proteção em re­
lação aos filhos de seu cunhado, isto é, de sua irmã. Acontece, é claro,
de um homem dar uma irmã sem receber uma esposa em troca. A dívi­
da é então transmitida a seu filho, que terá o direito de tomar como
esposa, sem compensação, uma das filhas desta mulher, sua tia pater­
na. E o casamento com a prima cruzada patrilateral. O contradom se
realiza, mas uma geração mais tarde. Este tipo de casamento se chama
kourémandjinaveu, expressão que designa o broto de uma bananeira,

65
MAURICE GODELIER

kouré, que cresce a seus pés e, dizem os baruyas, a substitui depois que
a planta deu seus frutos.
Os baruyas conhecem também um outro tipo de casamento cha­
mado apm wétsalairaveumatna, que quer dizer reunir (irata) sal (tsala)
para tomar (m atn a) uma mulher (apm w évo). Trata-se, portanto, de
uma fórmula de casamento que não repousa sobre a troca direta de
mulheres, mas sobre a troca de riquezas contra mulheres. Este tipo
de casamento, os baruyas não praticam jam ais entre si, mas com in­
divíduos e linhagens que pertencem a tribos com as quais eles comer­
ciam. Estas tribos não entram no ciclo de relações de guerra e paz
que caracterizam as relações dos baruyas com seus vizinhos. São tri­
bos estrangeiras mas “amigas para sempre”. Voltaremos aos proble­
mas causados por essa essa coexistência na mesma sociedade de duas
fórmulas distintas de casamento, a troca de mulheres contra mulhe­
res e a troca de mulheres contra riquezas. Isto porque, conforme
demonstraremos, entre os baruyas existe dom e contradom, mas não
existe potlatch. O que já deixa perceber que o desenvolvimento do
potlatch pressupõe que o casamento no interior de uma sociedade
não repouse exclusiva ou principalmente no princípio da troca direta
de mulheres.
O interesse deste exemplo — que é um entre centenas de outros
semelhantes, com a diferença, no entanto, de que o observei pessoal­
mente em campo enquanto que os outros, eu os conheço apenas atra­
vés dos livros de meus colegas — é justamente no fato sociológico de
que o contradom de uma irmã não anula a dívida que cada um dos
homens contraiu em relação ao outro ao receber dele uma esposa. O
dom, bem entendido, assim como a dívida, não envolve apenas os in­
divíduos, neste caso os dois homens e as duas irmãs (reais ou, às vezes,
classificatórias), mas também as duas linhagens às quais eles perten­
cem, linhagens que, entre os baruyas, são grupos de parentesco orga­
nizados segundo um princípio de descendência patrilinear, isto é, de
grupos compostos de homens e mulheres que afirmam descender, atra­
vés dos homens, de um mesmo ancestral. Em suma, a troca de mulheres,

ee
O ENIGMA 00 DOM

o dom de uma mulher seguido do contradom de outra, é um exemplo


destas prestações totais não-agonísticas de que fala Mauss.
Mas o que é igualmente importante ressaltar é que, ao fim dessas
trocas recíprocas, os dois homens e as duas linhagens encontram-se em
uma situação social equivalente. Cada um é, em relação ao outro, cre­
dor e devedor ao mesmo tempo. Cada um é superior ao outro como
doador de mulheres, inferior ao outro como tomador de mulheres.
Portanto, cada linhagem encontra-se, em relação à outra, em duas re­
lações desiguais e opostas. Mas a acumulação dessas duas desigualda­
des invertidas restabelece, de fato, a igualdade de seus status no seio
de sua sociedade (o que supõe a existência de um código comum a todos
os membros da sociedade para julgar seus status). O que quer dizer
que, mesmo quando as trocas (de dons ou de mercadorias) envolvem
apenas dois indivíduos ou dois grupos, elas implicam sempre a presen­
ça de um terceiro — ou antes dos outros como terceiros. Na troca, o
terceiro está sempre incluído.
Compreende-se também por que entre duas linhagens ligadas e
obrigadas por seus dons e contradons circularão a partir daí fluxos de
bens e serviços que irão se reproduzir por toda uma geração. É neste
sentido que os dons e contradons marcam em profundidade a vida
social, tanto a economia quanto a moral. Entre os baruyas essas obri­
gações recíprocas, essas solidariedades começam a se apagar lentamente
na geração seguinte, pois entre eles é proibido ao filho repetir o casa­
mento de seu pai e voltar a trocar uma irmã com o grupo de onde veio
sua mãe. Apenas depois de várias gerações, duas pelo menos, podem
ser trocadas alianças de casamento entre as mesmas linhagens.
Ei-nos, portanto, no coração do universo cultural em que todos os
grupos de parentesco são obrigados, para se manterem vivos, a contrair
dívidas com os outros e, ao mesmo tempo, a endividá-los. Resta resol­
ver o problema essencial, a saber, descobrir por que a dívida assumida
p or um dom não é anulada, cancelada, p or um contradom idêntico. A
resposta é, talvez, difícil de entender quando o pensamento está imerso
na lógica das relações comerciais atuais. Mas no fundo ela é simples.

6 7
MAURICE GODELIER

Se o contradom não cancela a dívida é porque a “coisa” dada não foi


realmente separada, afastada completamente daquele que a deu. A coisa
foi dada sem ser realm ente “alien ada” por aquele que a deu.
Assim, a coisa dada leva com ela algo que faz parte do ser, da iden­
tidade daquele que a cede. Mas tem mais, pois aquele que dá não cessa
de ter direitos sobre a coisa depois de tê-la dado. Isto é evidente no
exemplo do ginam aré, a troca de irmãs entre os baruyas. Ao cabo da
troca, cada uma das irmãs tom ou o lugar da outra, mas sem deixar de
pertencer à linhagem de onde provém, por nascimento ou por adoção.
Dar é, aqui, transferir sem alienar ou, para usar uma linguagem jurídi­
ca própria do Ocidente, dar é ceder os direitos de uso sem ceder o di­
reito de propriedade. É por esta razão que dar uma mulher é, ao mesmo
tempo, adquirir certos direitos sobre os filhos aos quais ela dará à luz
e isto não apenas nas sociedades em que o princípio de descendência
passa exclusivamente pelas mulheres, é matrilinear, nos quais os filhos
não pertencem à linhagem de seu pai mas à linhagem de sua mãe.
De fato, acontecem dois fenômenos no curso da troca de irmãs.
Uma pessoa tomou o lugar de uma outra e a substituição de uma pes­
soa p or uma outra constitui ao mesmo tempo a produção d e um a rela­
ção de aliança entre dois homens e dois grupos. E por trás desse duplo
mecanismo é uma coerção social fundamental que se exerce: o fato de
que um homem não pode esposar sua irmã, nem uma mulher esposar
seu irmão. Na origem da troca de mulheres há, portanto, conforme
demonstrou Lévi-Strauss, a ação coercitiva, a intervenção permanente
da proibição do incesto.
Esta lógica da troca de dons é completamente distinta, como foi
notavelmente demonstrado por Christopher Gregory71, da lógica das
trocas comerciais. Quando se trocam mercadorias ou quando elas são
compradas com dinheiro, depois da transação os parceiros tornam-se
proprietários daquilo que compraram ou trocaram. Enquanto antes da

71Christopher Gregory, Gifts and Commodities, Londres-Nova York, Academic


Press, 1982.

6 8
O ENIGMA DO DOM

troca cada um dependia dos outros para satisfazer suas necessidades,


depois todos tornam-se independentes e sem obrigações uns em rela­
ção aos outros. Pode acontecer, é claro, que o comprador não pague e
que lhe façam crédito. Mas depois que ele reembolsar sua dívida (com
ou sem interesses), ele estará quite. Isso pressupõe que as coisas ou os
serviços que são trocados, vendidos ou comprados sejam inteiramente
alienáveis, destacáveis daqueles que os colocam à venda. Não é esse o
caso em “uma economia e uma moral do dom”, pois a coisa dada não
é alienada e aquele que a cede continua a conservar direitos sobre o
que deu, e a tirar disso, em seguida, uma série de “vantagens”.

T ão log o d ad o, logo restituído


(existem don s absu rdos?)

Em nenhum lugar essa lógica está mais evidente do que quando o dom
de uma coisa é seguido imediatamente por um contradom que devolve
ao doador inicial a mesma coisa que ele tinha acabado de dar. Para um
observador ocidental, esta ida e volta da mesma coisa parece desprovi­
da de sentido, pois, se a coisa é devolvida tão logo foi dada, parece que
foi trocada por nada. É então que o dom se transforma em um “enigma”.
De fato, a ida e volta quase imediata do mesmo objeto é talvez a
mais nítida ilustração da lógica implícita nos dons que criam dívidas
que um contradom não anula. Pois o objeto que retorna a seu proprie­
tário inicial não é “devolvido72-”, ele é “dado de volta”. E no curso de
sua ida e volta o objeto não se deslocou por nada. Muitas coisas se
passaram graças a seu deslocamento. Duas relações sociais idênticas,
mas em sentido inverso, foram produzidas e encadeadas uma à outra,
ligando assim dois indivíduos ou dois grupos em uma dupla relação de
dependência recíproca. O dom e o contradom de um mesmo objeto
talvez sejam o menor deslocamento necessário para que uma presta­
ção “total” se ponha em movimento. Ao cabo desta análise de um

^Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 148.

6 9
MAURICE GODELIER

exemplo de dom-contradom não-agonístico — que para Mauss é a


origem distante do potlatch — , vamos confrontar seus resultados com
as duas questões que inauguram o “Essai sur le don”73.
É evidente, pelo menos no que concerne à logica dos dons e
contradons não-agonísticos, que essas duas questões foram, em parte,
mal colocadas. De um parte porque neste tipo de dom nada é realmen­
te “devolvido”. “Coisas” e pessoas tomam o lugar umas das outras e
estas transferências produzem, entre os indivíduos e grupos que são
seus protagonistas, relações sociais particulares, fontes de um conjun­
to de direitos e obrigações recíprocas. De outra parte, propriamente
falando, não há nada “na” coisa que obrigue a devolvê-la exceto o fato
de que aquele que dá continua presente nela, exercendo através dela
uma pressão sobre o outro, não para que a devolva, mas para que ele,
por sua vez, também dê, que ele dê de volta. Temos aí, portanto, o
efeito de uma regra de direito cuja existência não significa, no entan­
to, como escrevia Mauss, que aqueles que a praticam fazem parte de
uma sociedade “atrasada”, nem mesmo “arcaica”74. Conhecemos mui­
tas sociedades antigas ou modernas em que a terra, por exemplo, é
inalienável e onde se pode ceder seu uso, mas jamais a propriedade.
Esta regra de direito é também uma regra de interesse, pois, ao dar, ao
receber e ao dar de volta, cada um dos parceiros acumula as vantagens
que tal dependência recíproca engendra.
Voltando à segunda questão de Mauss, se existe uma força na coi­
sa, é essencialmente a da relação que continua a ligá-la à pessoa daque­
le que a deu. Ora, esta relação é dupla pois o doador continua a estar
presente na coisa que dá, que não está desligada de sua pessoa (física
e/ou moral), e esta presença é uma força, a força dos direitos que ele
continua a exercer sobre ela e através dela, sobre aquele a quem ela foi
dada e que a aceitou. Aceitar um dom é mais que aceitar uma coisa, é
aceitar que aquele que dá exerça direitos sobre aquele que recebe. Neste

7JVer p. 14 deste livro.


74Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 263.

7 0
O ENIGMA DO DOM

ponto de nossa análise, vemo-nos diante daquilo que tanto fascinou


Mauss: a existência na coisa dada de uma “força” que se exerce sobre
aquele que a recebe, obrigando-o a “restituir”. Vimos que esta força
reside no fato de que a coisa, ou a pessoa, não é alienada quando dada.
Ela continua a fazer parte das realidades que constituem a identidade,
o ser, a essência inalienável de um grupo humano, de uma pessoa moral.
Ela é, poderíamos dizer, um “bem” comum cujo uso pode ser cedido,
mas a propriedade jamais. Coloca-se, portanto, a questão de saber quais
são as razões da inalienabilidade de certas realidades apropriadas por
grupos humanos, quer se trate da terra ou de objetos sagrados, fórmu­
las rituais etc.
Mas é aqui que nos separamos de Mauss. Para ele, as razões dessa
inalienabilidade e dessa “obrigação de retribuir” são essencialmente
“espirituais”, “de essência moral e religiosa”. Elas têm origem no mundo
das crenças, das idéias, das ideologias. Não negamos, de nossa parte, a
existência ou a importância das representações e das crenças religiosas
na atribuição de um caráter inalienável à terra de um clã, de uma famí­
lia ou de uma tribo (herdada dos ancestrais, é na terra que eles são
enterrados e é por ela e por seus descendentes que eles continuam a
velar). Mas parece difícil explicar apenas através das crenças religiosas
por que, no curso da evolução histórica, os grupos humanos se esfor­
çaram para preservar suas condições de existência (materiais ou não,
mas sempre reais a seus olhos), para livrá-las da dispersão, da divisão e
da pulverização, dando-lhes o caráter de um bem a ser conservado para
ser transmitido como tal, indiviso, assegurando a vida, a sobrevivência
das gerações futuras. A religião não é, certamente, a explicação última
do compromisso a que se obrigaram os indivíduos e os grupos de não
se separarem — pelo menos não completamente — de certas “coisas”
necessárias à reprodução de cada um e de todos. Não são apenas ra­
zões “morais” que obrigam a velar para não dispersar ou para não se
afastar — sem substituí-las — de realidades colocadas e vividas como
necessárias para a reprodução de cada um, como de todos. Esta neces­
sidade pode ser material ou ideal, mas em qualquer caso ela é social. O

71
MAURICE GODELIER

que a religião faz não é impor um caráter inalienável às coisas comuns,


mas impor um caráter sagrado à interdição de aliená-las.
É aqui, diante da necessidade de explicar a presença de uma
“força” nas coisas dadas, que a análise de Mauss, em nossa opinião,
desviou e finalmente derrapou, abrindo o flanco à crítica de Lévi-
Strauss. Mauss certamente não ignorava as noções de inalienabi-
lidade de bens e propriedades comuns, mas de maneira bastante
curiosa não permitiu que interviessem em sua explicação do dom.
Talvez por duas razões. Uma é facilmente compreensível: quando
ele fala de coisas inalienáveis, como os grandes títulos e os grandes
cobres entre os kwakiutls, ele constata justamente que essas “coi­
sas” não são dadas. E acrescenta, sem comentários: “Aliás, seria di­
fícil que fosse diferente75.”
Como se, para Mauss, as coisas não pudessem ser dadas pelo sim­
ples fato de que são inalienáveis. A outra razão é menos clara. Mauss
mencionou várias vezes, sem utilizá-la em sua análise do dom, a exis­
tência de direitos comuns sobre a terra e sobre outros bens, dos clãs ou
das famílias. E assim que, fazendo alusão no “Essai” ao direito chinês
dos bens imobiliários, ele escreve:

N ã o levam os devidam ente em conta o seguinte fa to : a venda definiti­


va do solo é, na história humana e na China em particular, algo de
muito recente. Ela estava, até o direito romano e depois outra vez em
nossos antigos direitos germânicos e franceses, cercada de tantas res­
trições, provenientes do comunismo doméstico e da ligação profunda
da família ao solo e do solo à família, que a prova seria fácil dem ais. Já
que a família é o lar e a terra, é normal que a terra escape ao direito e
à economia do capital. D e fato [...] falam os sobretudo d e m óveis76.

É, portanto, interessante constatar que Mauss não tinha nenhuma


dificuldade para aproximar os s a c ra , os objetos sagrados de um clã, da

75Ibid„ p. 224.
7íIbid., p. 256, nota 2.

72
0 ENIGMA DO DOM

terra como propriedade comum do clã e para enxergar neles realidades


inalienáveis do mesmo tipo. Mas parece que ele considerava evidente
que realidades inalienáveis não poderiam ser dadas. De uma certa
maneira, assim que pessoas ou coisas começam a circular através das
trocas, Mauss as considera como “bens móveis”, ocultando assim ou
empurrando para o segundo plano o caráter inalienável das coisas
trocadas.
De fato, sua atenção crítica dirige-se antes de mais nada a um
aspecto fundamental do direito ocidental, que é ter separado as
coisas das pessoas e ter distinguido dois direitos, um aplicado às
coisas, outro às pessoas. Pareceu-lhe necessário, para compreender
o funcionamento do dom nas sociedades não-ocidentais contempo­
râneas, situar-se além desta distinção. Paradoxalmente, porém, ele
não analisou a união da coisa e da pessoa em termos de direito mas,
já se disse, em termos de uma união quase religiosa. É claro que ele
partiu do fato de que a coisa levava consigo algo da pessoa que a
possuía na origem e que a tinha cedido, mas não levou em conta o
fato de que não era apenas uma presença íntima, mas sim direitos
que vinham com a coisa em questão. No lugar da força dos direitos,
ele viu a força de um espírito, de uma alma que habita a coisa e faz
com que volte a seu proprietário original. Finalmente, como nota­
ram vários comentaristas de Mauss77, a coisa dada não é habitada
por uma só força, mas por duas: ela contém, de início permanente­
mente, a presença da pessoa que a deu, mas como neste mundo de
crenças a coisa é uma pessoa, tendo portanto uma alma, ela contém

^Ler sobre este ponto Peter Gathercole, “Hau, Mauri and Utu: A Re-exami-
nation”, Mankind, n. 11, 1978, p. 3 3 4 -3 4 0 ; Grant MacCall, “Association and
Power in Reciprocity and Requital; More on Mauss and the Maori”, Oceania, 52
(4), 1982, p. 3 03-319; Geoffrey MacCormack, “Mauss and the ‘Spirit’ of the Gift”,
Oceania, 5 2 (4), 1982, 2 8 6-293; Luc Racine, “L’obligation de rendre les présents
et l’esprit de la chose donnée: de Mareei Mauss à René Maunier”, Diogène, n. 154,
1991, p. 69-94; Michel Panoff, “Mareei Mauss, the Gift Revisíted”, Man, n. 5 ,1 9 7 0 ,
p. 60-70.

7 3
MAURICE GODELIER

igualmente a força do espírito que lhe é próprio e que a obriga a


retornar para sua origem.
Talvez este pouco interesse em analisar os fatos a partir da noção
de propriedade inalienável se explique em Mauss pelo desejo de sair
do âmbito dos debates, para ele confusos, que depois do fim do século
X IX cercavam as noções de propriedade coletiva e individual, debates
reacesos pela vitória do bolchevismo na Rússia. Não vamos esquecer
que Mauss foi durante toda a vida um antibolchevique intransigente.
Em 1947, ele trata mesmo de reafirmar sua posição:

A grande distinção que dom ina nosso direito en tre d ireito pessoal e
d ireito real é um a distinção arbitrária que em larga m edida é ign ora­
da p o r ou tras sociedades. D epois do d ireito ro m an o , realizam os um
esforço en orm e de síntese e u nificação; m as o d ireito, e p articu lar­
jus utendi et abutendi não p arte
m ente o d ireito de p rop ried ad e, o
de um princípio ú n ico, ele chega até ele [...]Deixaremos completa­
mente de lado a questão de saber se a propriedade é coletiva ou indi­
vidual. Os term os que co lo cam o s sob re as coisas n ão ap resen tam
n enhum a im p ortân cia, p od em os en co n trar p rop ried ad es coletivas
adm inistradas p or um único indivíduo, o p atriarca, em um a família
indivisa etc. e tc .78.

Dá para compreender as razões de seu desinteresse. A noção de


propriedade comum lhe parece frouxa, podendo recobrir realidades
completamente diversas. E que, a seus olhos,

en co n tram o-n os em to d a parte diante de um pluralism o de direitos


de propriedade [...] Propriedades do rei, da trib o , do clã, da aldeia,
d o b airro, da fam ília indivisa podem se su p erp or sobre um m esm o
ob jeto79

^Mareei Maus, Manuel d’ethnographie, op. cit., p. 177.


7,Ibid., p. 177.

74
O ENIGMA DO DOM

E nós vimos anteriormente que, para ele, a propriedade fundiária


comum, enquanto bem inalienável, parece escapar à troça e ao dom
pelo próprio fato de ser inalienável:

A proriedade fundiária [...] intransmissível, ligada à família, ao clã, à


tribo, muito mais que ao indivíduo, não pode sair da família para ser
cedida a um estranho. Pode-se observar resíduos de tal estado de coi­
sas no direito normando, a venda por remissão e o direito de linha­
gem que ainda estão em vigor em Jersey80.

Esta seqüência de citações mostra bem que, antes de tudo, aquilo


que interessa a Mauss na coisa dada não é seu caráter inalienável, mas
o fato de ser uma pessoa e de agir como tal. E a razão de seu entusi­
asmo e de sua gratidão para com Tamati Ranaipiri, que lhe tinha dado
“completamente por acaso [...] a chave do problema [...] no fundo é
o hau que quer voltar a seu local de nascença”. Desde o aparecimen­
to do “Essai sur le don” colocou-se a questão de saber se Mauss não
teria posto na boca de Ranaipiri algo diverso do que ele havia decla­
rado a Best, quando este o interrogou sobre o hau da floresta. Antes
de esclarecer este ponto, seria bom esboçar um primeiro balanço dos
resultados de nossa análise do mecanismo dos dons e contradons não-
agonísticos que Mauss, se não analisou, pelo menos designou como
ponto de partida para se compreender o potlatch.
Nos dons-contradons de tipo não-agonístico:
— A coisa ou a pessoa dada não é alienada. Dar é transferir uma
pessoa ou uma coisa, da qual se cede o “uso” mas não a propriedade.
— Por isto, um dom cria uma dívida que um contradom equiva­
lente não pode anular.
— A dívida obriga a dar de volta, mas dar de volta não é restituir;
é dar por sua vez.
— Dons e contradons criam um estado de endividamento e de de­
pendência mútuos que oferece vantagens para cada uma das partes.

I *"Ibid., p. 179. Grifo nosso.

75
MAURICE GODELIER

Dar é, portanto, partilhar endividando ou, o que dá no mesmo, endivi­


dar partilhando.
— O dom nessas sociedades não é apenas um mecanismo que faz
circular os bens e as pessoas, assegurando assim sua repartição, sua
distribuição entre os grupos que compõem a sociedade. É também, mais
profundamente, a condição da produção e reprodução das relações
sociais que constituem o arcabouço específico de uma sociedade e ca­
racterizam os laços que se tecem entre os indivíduos e os grupos. Se é
preciso dar uma mulher para receber outra, esta troca não é apenas a
substituição de uma mulher por uma outra, é a criação de uma relação
de aliança entre dois grupos, relação esta que abre para cada um a
possibilidade de ter uma descendência e de continuar a existir.
— Se considerarmos as sociedades em que se pratica tais dons ao ní­
vel do funcionamento global, como totalidades que tem de se reproduzir
como tais, as transferências de pessoas e de bens engendradas pela suces­
são e pelo encadeamento de dons e contradons entre os grupos e os indi­
víduos que compõem a sociedade fazem com que, no fim, os recursos
materiais e imateriais disponíveis, necessários para sua reprodução social
e que pertencem à categoria das “coisas” que se tem o direito de dar, en­
contram-se repartidos de maneira relativamente igual no seio da sociedade.
E em um outro universo, feito de rivalidades e desigualdades, que
iremos penetrar em breve ao analisar o potlatch. Mas não esqueçamos
que este novo universo era, aos olhos de Mauss, uma forma transfor­
mada daquele que acabamos de descrever, uma forma que, ao mesmo
tempo em que o prolongava, rompia com ele.

O hau d a co isa é realm ente a chave d o m istério?


(ou co m o M auss leu as palavras d o sáb io Tam ati R anaipiri, d a
tribo d os ngati-raukaw as, recolhidas p elo etn ólog o
E lsdon B est em 1909)

Depois do aparecimento do “Essai sur le don”, a interpretação de


Mauss para as palavras de Ranaipiri foi, portanto, contestada inú­

7 6
O ENIGMA DO DOM

meras vezes. Desde 1929, Raymond Firth, em sua síntese Prim itive
Ecortom ics o f t h e N ew Z ealand M aori81, negava qualquer fundamen­
to na interpretação “excessivamente religiosa” de Mauss para a no­
ção de hau:

Q uando M auss vê na tro ca de dons um a tro ca de personalidades, um


‘laço d’alma’, ele nos entrega sua própria interpretação intelectualizada
de um a cren ça indígena, e não a p róp ria cren ça82.

Firth lembrava que a troca recíproca de bens entre os maoris é


designada por um termo (utu) e que o princípio geral destas trocas é
de que todo dom deve ser retribuído com um contradom de valor
pelo menos igual. Firth cuidou de sublinhar que este princípio não se
limita à esfera das trocas econômicas, mas invade toda a prática social.
Ele não negava o conteúdo religioso da noção de hau, mas recusava
a hipótese principal de Mauss, ou seja, de que é o hau da coisa que a
obriga a voltar à sua origem ou a produzir um equivalente que a subs­
titua. O debate prosseguiu, mas foi a aparição, em 1970, de um arti­
go de Marshall Sahlins (“The Spirit o f the Gift-. uma explicação de
texto”), publicado nas miscelâneas oferecidas a Claude Lévi-Strauss83,
por ocasião de seu sexagésimo aniversário, que marcou uma etapa
decisiva.
Elsdon Best tinha tomado a precaução de publicar, em língua maori,
o texto das afirmações de Tamati Ranaipiri, acrescentando sua própria
tradução e seus comentários. O primeiro passo de Sahlins foi retornar
a estes dois textos e confrontar a tradução francesa de Mauss com a
inglesa de Best, e com a nova tradução para o inglês do texto maori
produzida por um lingüista especializado nesta língua, Bruce Biggs.

8‘Londres, Routledge, 1929.


82Ibid., p. 420, nota A.
S3Echanges et Communications, Leyde, Mouton, 2 vol., 1970, p. 998-1012.

77
MAURICE GODELIER

Reproduzimos abaixo o texto de Mauss e nossa tradução para o fran­


cês do texto de Biggs.
Mauss:

Vou falar-lhe do hau [...]. O hau não é o ven to que sop ra. D e fo rm a
algum a. Faça de co n ta que possui um d eterm in ad o artig o ( taonga) e
que vai d á-lo a m im ; ele m e será dado sem p reço fixo . N ó s n ão ne­
gociam os a tal p rop ósito. O ra, eu dou este artig o a um a te rc e ira pes­
soa que, depois de passado um certo tem p o , decide d ar algum a coisa
em p agam ento ( utu) , d and o-m e de p resente algum a coisa (taonga).
O ra, este taonga que ele m e dá é o espírito (hau) d o taonga que eu
recebi de vo cê e que eu havia dado a ele. O s taonga que recebi p o r
estes taonga (vindos de v o cê), é preciso que eu os restitua. E n ão seria
justo (tika ) de m inha p arte gu ard ar estes taonga p ara m im , sejam eles
desejáveis (ratue) ou desagradáveis (kino). D evo dá-los a vo cê pois
eles são um hau d o taonga que você m e havia d ado. Se eu con servas­
se o segundo taonga p ara m im , algo de ruim p od eria m e acon tecer,
seriam en te, até m esm o a m o rte. Assim é o hau, o hau da p rop ried a­
de pessoal, o hau dos taonga, o hau da floresta. Kati ena (sobre este
assunto, basta).

Tradução do texto em maori de Tamati Ranaipiri (por Bruce Briggs):

A gora, a p ro p ó sito do hau da floresta [e da cerim ô n ia de whangai


hau]. E ste hau não éo hau que sop ra, o ven to. N ã o . Vou exp licar-lh e
com cuidado. E n tão você tem algo de p recioso (um taonga), que me
dá. N ós não tem o s nenhum aco rd o sobre um p agam en to. L o g o , eu o
dou a o u tro alguém e o tem p o passa e passa e este hom em pensa que
tem este objeto de valo r e que m e deve d ar algo em tro c a e assim o
faz. O ra, este taonga que m e é dado é o hau do taonga (ob jeto de
valor) que me tinha sido dado anteriorm ente. Tenho que dá-lo a v ocê.
N ão seria con ven iente gu ard á-lo p ara m im m esm o. Seja ele algo de
m uito bom ou de m au, este taonga, ele deve ser dado p o r m im a você.

7 8
O ENIGMA DO DOM

Porque este taonga é o hau d o ou tro taonga. Se eu guardasse p ara


m im este objeto p recioso, eu ficaria m ate (d oen te ou m o rto ). É isso
o h a u , o hau dos taonga (dos objetos de valor). O h au da floresta. E
sobre isso, b asta.84

Marshall Sahlins notou imediatamente e faz notar que Mauss ha­


via suprimido, na primeira frase, a alusão à cerimônia do whangai hau.
Ora, esta alusão é essencial, pois fornece o contexto que permite esco­
lher, entre todos os sentidos da palavra hau, aquele que parece corres­
ponder melhor às explicações dadas por Ranaipiri.
Em que consiste, portanto, esta cerimônia do whangai hau (literal­
mente do hau nutritivo)? Ranaipiri explica isto também, e da seguinte
maneira. Seu contexto é o da caça aos pássaros. Os sacerdotes maoris
(tohunga), antes da caça, penetram na floresta e aí depositam uma pedra
sagrada chamada mauri, depois com suas preces invocam o hau da flo­
resta que de algum modo aí se aloja. É deste hau, deste mauri e deste
ritual realizado pelos sacerdotes que provém a abundância de caça para
os passarinheiros. Eis o texto que se segue imediatamente àquele que é
consagrado ao dom:

Vou lhe exp licar algum a coisa sobre o hau da floresta. O m a u ri foi
co lo cad o ou im plantado na floresta pelos to hu nga (os sacerd o tes). É
o m a u ri que faz sobejarem as aves nos bosques, a fim de que o h o ­
m em possa m atá-las e tom á-las. Estas aves são propriedade dos m auri,
dos tohunga e da floresta. E les p e rten ce m a eles. Assim , eles são um
equivalente desta coisa im p ortan te, o m au ri, e é p o r isso que se diz
que é preciso fazer oferendas ao hau da floresta. Os to hu nga com em
a oferen da p orq u e o m a u ri (a p edra sagrada) é deles. F o ram eles que
a co lo caram na floresta, que a fizeram ser. P or esta razão algum as

84Ibid., p. 1000. Bruce Biggs, paradoxalmente, cortou, como Mauss, a parte da


primeira frase de Ranaipiri em que ele faz alusão à cerimônia do whangai hau,
que nós reintroduzimos. A propósito, notemos que Mauss, seguindo Best, especi­
fica que os taonga são “propriedade pessoal”, o que não figura no texto em maori.

79
MAURICE GODELIER

das aves assadas n o fogo sagrad o são postas de lad o p ara serem c o ­
m idas pelos sacerd otes e apenas p o r eles, p ara que o h a u dos p rod u ­
tos da floresta e o m au ri voltem ou tra vez à floresta, isto é, ao m au ri.
Sobre isso, basta85.

Para esclarecer este texto é necessário citar vários comentários de


Best sobre o mauri e sobre o hau, extraídos de sua obra Forest L ore o f
the M aori, publicada depois de sua morte, na qual reuniu-se uma série
de escritos consagrados aos métodos de caça e de colheita dos maori e
a seus saberes etnobotânicos, etnozoológicos e cosmológicos:

C hegam os a um a instituição notavelm ente interessante que ilustra


um a fase p articu lar da m entalidade m aori e é con h ecid a p elo nom e
de m au ri. J á vim os que a prosperidade e a fecundidade da floresta,
das árv ores, das aves e tc ., são representadas pelo princípio de vida,
ou m au ri, desta floresta. É um a qualidade im aterial, mas em prega-se
tam b ém um signo m aterial dessa qualidade, que é designada pelo
m esm o n om e. Esse m a u ri m aterial era h abitualm ente um a p ed ra es­
con did a cuidadosam ente na floresta. E la atuava realm ente co m o um
altar ou co m o um a m orad ia p erm anente para os deuses-espíritos que
cuidavam da floresta [...].
O m au ri serve de médium entre as fórm ulas mágicas que são recitadas
e a floresta que devem afetar. O m auri, dizem, p rotege e preserva o
m ana da floresta [...]. Q uando o m auri lança um apelo para que as
aves sejam num erosas na floresta, então as aves tornam -se num erosas
co m certeza, pois essa pedra age co m o um a voz dirigida aos seres es­
pirituais (atua) que con trolam todas as coisas [...].

85Elsdon Best, Forest Lore o f the Maori (1 909), Wellington, E. C. Keating


Government Printer, 1977, p. 439. Logo depois desta passagem, Best cita Ranaipiri
que precisava que havia dois fogos, um para os sacerdotes e o outro para a irmã
do chefe do clã possuidor daquele território de caça, sua presença atestando estes
direitos. Annette Weiner criticou Marshall Sahlins por ter cortado esta passagem,
fazendo assim desaparecer da cena esta mulher e a importância político-religiosa
das mulheres nesta sociedade. (Cf. A. Weiner, “Inalienable Wealth”, American
Ethnologist, 12 (2), 1985, p. 210-227.)

8 0
O ENIGMA DO DOM

Seria necessário exp licar que o princípio de vida da floresta etc. ch a­


mado m auri é definido tam bém pela palavra hau. Segundo o que pude
entender, o hau e o m au ri de um a floresta são um a única e m esm a
coisa, mas certam en te seria preciso distinguir p ara o h om em en tre o
hau e o m a u ri16.

Se compreendemos bem estes textos, os passarinheiros que foram


afortunados na caça devem seu sucesso tanto ao espírito da floresta,
quanto aos sacerdotes que colocaram a pedra sagrada na floresta e atraí­
ram com suas preces o seu hau, sua potência fecundante que nela veio
se alojar. O mauri seria a presença material do hau da floresta. Estamos,
portanto, na presença de três categorias de atores: a floresta, que é uma
entidade sobrenatural, fonte de vida e de abundância; os sacerdotes,
que possuem a pedra mauri e as fórmulas para invocar o espírito da
floresta, e são os mediadores entre esta e os caçadores; os próprios
caçadores, que, depois dos ritos realizados pelos sacerdotes, entraram
na floresta, nela mataram numerosas aves e dispõem-se a partilhá-las.
É a partir desta situação que deve ser entendida a comparação feita
por Ranaipiri com aquela outra que existe entre três atores humanos,
dos quais o primeiro, A, deu ao segundo, B, um objeto de valor, que B
em seguida deu a um terceiro, C, que deu, mais tarde, um dom em
retribuição a B.
Duas idéias estão associadas no exemplo da floresta, dos sacer­
dotes e dos caçadores. A primeira é que a floresta é fonte de vida e de
multiplicação da vida. É ela que, finalmente, faz o dom da caça aos
caçadores. A segunda é que esta caça capturada pelos caçadores não
deixou de pertencer à floresta e aos sacerdotes que possuem tanto o
objeto sagrado quanto a fórmula que o acompanha e permite incitar
a floresta a se mostrar generosa em relação aos humanos. Os dons de
caça que os caçadores fazem então aos sacerdotes, que irão cozinhá-
los no fogo sagrado antes de consumi-los (deixando uma parte para a

I 8<,Ibid., p. 6, 8 e 9. Tradução nossa.

8 1
MAURICE GODELIER

floresta), são oferendas inspiradas pelo reconhecimento e pelo dese­


jo de que a floresta e os sacerdotes continuem a agir em favor dos
caçadores, a alimentá-los. Mas estes dons são também, ao mesmo
tempo, o retorno de uma parte da caça dada pela floresta a seu doa­
dor original.
Transposto para o mundo das trocas de dons entre os humanos, o
exemplo dos caçadores, dos sacerdotes e da floresta esclarece igual­
mente duas outras coisas ao mesmo tempo. De um lado, sublinha o
fato de que o objeto dado pelo primeiro doador, A, começa em segui­
da a circular e não deixa, enquanto circula, de permanecer ligado a seu
proprietário, de pertencer a ele. Por outro lado, esclarece por que os
contradons em série, induzidos pela circulação de um objeto dado,
devem retornar a seu primeiro doador, que permanece sempre como
único proprietário. Em razão disso, ele também exerce direitos sobre
as “coisas boas”, as benfeitorias geradas pela passagem de mão em mão
do objeto que ele deu inicialmente. Se algum daqueles entre os quais o
objeto circula, e que o possui depois de algum tempo, quisesse guardá-
lo unicamente para si, desviar as “coisas boas” (em maori: hau whitia,
o hau desviado) que o fato de, por sua vez, ter dado também acarre­
tou, então ele cairia doente (mate) ou, como escreve Best em outra parte,
“os horrores terríveis do m akutu, da feitiçaria87” cairiam sobre a sua
cabeça.
Marshall Sahlins, que teve o mérito de confrontar estes textos a
outros, conclui, como Firth muito antes dele, que Mauss pegou o
caminho errado ao interpretar o retorno do dom como efeito do
“espírito da coisa” que quer voltar para seu proprietário. Ele acres­
centa, seguindo Firth, que a punição por feitiçaria, que é proferida
como uma ameaça, não pode ser responsabilidade do hau da pró­
pria coisa, mas de pessoas reais que, frustradas por não terem rece­
bido um dom em retribuição, enfeitiçam o culpado. Sahlins afasta,

I 87Ibid., p. 197.

8 2
O ENIGMA DO DOM

portanto, a hipótese da ação do espírito da coisa e o faz em razão


do seguinte:

Para ilustrar a ação de um tal espírito, são necessárias apenas duas


pessoas: você me dá alguma coisa; seu espírito (o ha u), presente nesta
coisa, me obriga a pagar-lhe em retribuição, é simples. A introdução
de um terceiro personagem interessado não poderia senão com plicar
e confundir indevidam ente a história. Todavia, já que não se trata mais
de algum tipo de reciprocidade “espiritual”, nem m esm o de recip roci­
dade simplesmente, mas do simples fato de que o dom de um hom em
não pode se transform ar no capital de um ou tro e p ortan to os frutos
do dom devem retorn ar ao dom inicial, segue-se a necessidade de in­
troduzir um terceiro parceiro cuja intervenção é necessária exatam en ­
te para co lo car em evidência este ben efício líquido [grifado p o r M .
Sahlins]: o dom produziu, o donatário fez dele um uso p roveitoso88.

Finalmente, depois de ter afastado a explicação “animista, espiri­


tual” de Mauss para o retorno da coisa dada, Sahlins ressalta as noções
de “benefício” e de direito do doador inicial sobre os benefícios susci­
tados por seu dom. Mas ele não analisa mais de perto o laço que per­
mite ao doador reivindicar esses “benefícios”. Ele pára no meio do
caminho, contentando-se com fórmulas que não satisfazem nem a ele
próprio. E diz:

Sem dúvida o term o ‘lu cro’ é im próprio, tanto econ ôm ica quanto his­
toricam ente. N o en tanto, aplicado aos m aoris ele trad u z m elhor que
‘espírito’ o sentido do hau em questão89.

Mais ainda porque Sahlins nos lembra que, no caso dos maoris,
estamos tratando com uma sociedade em que “a liberdade de ganhar

88Marshall Sahlins, Àge de pierre, âge d ’abondance, Paris, Gallimard, 1976, p.


211 - 212 .
*9lbid., p. 212. Grifo nosso.

8 3
MAURICE GODELIER

a expensas de outrem não está inscrita nas relações e nas modalidades


de troca90.”
De fato, é preciso recolocar no primeiro plano a idéia essencial men­
cionada por Sahlins, mas sobre a qual ele não se demora, ou seja, de
que o doador original não deixa de ter direitos sobre o objeto que deu,
qualquer que seja o número de pessoas entre as quais este objeto circu­
la. Bem entendido, o fato de que ele circula significa que cada um da­
queles que o recebem, que são seus donatários, torna-se por sua vez
doador. Mas nenhum deles jamais terá sobre o objeto os mesmos di­
reitos que o primeiro dos doadores. Este guarda a propriedade inalie­
nável do objeto, todos os outros gozam de direitos de posse e de uso
dele que são, estes sim, alienáveis e temporários, e que são transferi­
dos de um para o outro.
E o fato essencial da permanência dos direitos do doador originário
sobre a coisa dada que se traduz no plano ideal (ou, dito de outro modo,
das representações-interpretações indígenas desta permanência) através
da idéia de que a pessoa do doador original está presente na coisa dada,
que ela está ligada a ele e o acompanha depois em todas as trocas de mão
e de lugar. Ora, esta presença inextinguível do doador no objeto dado só
é realmente visível quando o objeto circula além da simples troca de dons
entre duas pessoas. São necessários pelo menos três parceiros para que
tudo fique claro. A Mauss, que se mostrou espantado quando Ranaipiri
fez intervir uma terceira pessoa, Sahlins respondeu que era precisamente
a presença de um terceiro que demonstrava estarmos “além de uma reci­
procidade espiritual qualquer e mesmo da simples reciprocidade”.
Mas sobre esse ponto Sahlins se engana. Não estamos além da re­
ciprocidade. E é bastante fácil prová-lo. Vamos partir do fato de que A
é proprietário de um objeto, e que ele o dá a B. B não se torna seu
proprietário, mas nesse meio tempo ele o passa a C. E aqui a corrente
poderia continuar, C daria para D, D para E etc., e poderíamos ter um
número indeterminado de pessoas ocupando uma posição intermediá-

I «“Ibid., p. 214.

8 4
O ENIGMA DO DOM

ria equivalente à de B. Mas três atores são suficientes para nosso exem­
plo e, como Ranaipiri, paramos em C. Ora, o que faz C? Ele, por sua
vez, dá a B um objeto, do qual é o proprietário, em troca do objeto que
provinha de A e do qual A manteve-se proprietário. B não pode senão
restituir a A, em relação ao qual ele está em dívida, o objeto recebido
de C, que vai tomar o lugar do objeto recebido de A. A e C eram “pro­
prietários” do objeto que deram, mas B, como intermediário, nunca
foi proprietário dos objetos que passaram por suas mãos.
Portanto, entre A e C, os dois extremos da corrente, estabeleceu-
se certamente uma reciprocidade, pois a propriedade de um veio to­
mar o lugar daquela do outro. Quanto a B, ele serviu de intermediário
e, na passagem, beneficiou-se ele também com o objeto colocado em
circulação. O que significa que ele também está endividado entre os
dois. E exatamente esta lógica que encontraremos ilustrada pela circu­
lação dos vaygu’a, os braceletes e os colares de conchas que circulam
no kula entre as populações das ilhas do nordeste da Nova Guiné.
Vejamos agora a interpretação de Mauss para as formulações de
Ranaipiri:

Este texto capital merece alguns comentários. Puramente maori, im­


pregnado daquele espírito teológico e jurídico ainda impreciso, as
doutrinas da ‘casa dos segredos’, mas espantosamente claro em certos
momentos, ele apresenta apenas um ponto obscuro: a intervenção de
uma terceira pessoa. Mas para bem compreender o jurista maori basta
dizer: ‘Os taonga e rigorosamente todas as propriedades ditas pessoais
têm um hau, um poder espiritual. Você me dá um taonga, eu o dou a
um terceiro, este me restitui um outro, pois ele é levado a tal pelo hau
de meu presente e eu, eu sou obrigado a dar-lhe alguma coisa porque
é preciso restituir aquilo que, na realidade, é um produto do hau do
seu taonga...' No fundo, é o hau que quer tornar a seu lugar de nas­
cença, ao santuário da floresta e do clã e ao proprietário91.

I ^''Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. c i t., p. 159-160.

8 5
MAURICE GODELIER

Assim Mauss invoca e mistura duas razões para explicar o retomo


do objeto para seu doador original. Primeira razão: a coisa possui em
si mesma um espírito, uma alma, e é este espírito que a leva a voltar
para seu proprietário de origem. Segunda razão: aquele que deu tem
poder sobre aquele que recebeu porque a coisa traz com ela alguma
coisa dele, a qual leva quem a recebeu a restituí-la. Esta alguma coisa é
a alma, é uma presença espiritual. Mauss acentua sobretudo esta pre­
sença espiritual e não o fato de que o doador originário continua a
exercer, em permanência, direitos sobre a coisa que deu. Desta forma,
Mauss mantém em segundo plano uma outra realidade, social desta
vez: o fato de que nessas sociedades os doadores continuam a ser os
proprietários daquilo que dão. Ora, esta realidade social é uma força
presente no objeto, ela o controla e define de antemão os seus usos e
movimentos:

A quilo que ob riga, no p resente receb id o , tro c a d o , é que a co isa re ­


cebid a n ão é in erte. M esm o ab and on ad a [sic] p elo d o ad o r, ela a in ­
da é a lgo q u e lh e p e r t e n c e . A través d ela ele te m p o d e r so b re o
b eneficiário [...]. Pois o taonga é an im ad o pelo h a u de sua flo resta,
de seu te rre iro [ ...]. O h au segue qualquer d eten to r. Segue n ão ap e­
nas o p rim eiro d o n a tá rio , ou m esm o even tu alm en te um te rc e iro ,
m as qualquer indivíduo ao qual o taonga é sim plesm ente tran sm i­
tid o . N o fundo, é o hau que q u er re to rn a r a seu lugar de n ascen ça,
ao san tu ário da flo resta, ao clã e aos p ro p rietário s. E o taonga ou
seu h a u , que aliás é, ele m esm o, um a espécie de in divídu o, que se
une a esta série de usuários até que restituam [...] um equivalente
ou um valo r su p erio r que, p or sua vez, d arão ao d o a d o r au torid ad e
e p o d e r so b re o p rim e iro d o a d o r tra n s fo rm a d o em ú ltim o d o ­
n atário''2.

E Mauss acrescenta em uma nota que “os taonga parecem ser d ota­
dos de individualidade mesmo fora d o hau, que lhes confere a relação

I ,2Ibid., p. 159-160.

8 6
O ENIGMA DO DOM

que têm com seu proprietário93”. Este texto confirma nossa interpreta­
ção de que finalmente, para Mauss, coexistem em uma só coisa dois
princípios espirituais: um que é a presença do proprietário na coisa, e
o outro que é a presença do espírito próprio desta coisa, independen­
temente do proprietário. E seria este espírito, antes de tudo, o que le­
varia a coisa a retornar para seu proprietário de origem, igualmente
presente na coisa através de uma parte de seu espírito. Portanto, a ex­
plicação de Mauss destaca sobretudo as crenças e as razões “espirituais”,
ideológicas.
Mas com este exemplo já não estamos mais no universo dos dons e
contradons equivalentes, atravessamos a fronteira que leva ao potlatch94.

O p otlatch , esse d o m qu e fascin ava Mauss

O que fascinava Mauss eram os dons em que predominavam a rivali­


dade, a competição e o antagonismo. O potlatch dos índios kwakiutls
e de seus vizinhos da costa noroeste da América do Norte representa­
va, a seu ver, um exemplo extremo. Porém, depois da descrição que
Malinowski acabara de fazer do kula, praticado pelas sociedades do
nordeste da Nova Guiné (1922), descrição esta posterior à de Turnwald,
que narrava fatos análogos em Buin, nas ilhas Salomão, e de outros
autores, ele concluiu tratar-se de um fenômeno humano largamente
difundido no tempo e no espaço. Portanto, ele fez do potlatch uma
categoria sociológica geral e é sob este selo que os dons agonísticos
tornaram-se conhecidos e foram popularizados.

93Ibid., p. 160, nota 2.


94É preciso lembrar que os discípulos de Mauss, inclusive os mais próximos, não
retomaram a hipótese do mestre sobre a existência na coisa de um espírito que a
levaria em direção a seu ponto de partida. René Maunier, por exemplo, que estu­
dou, a conselho do próprio Mauss, a taoussa da Cabília, isto é, a competição de
dons feitos por ocasião dos diferentes momentos críticos da vida — nascimento,
circuncisão, noivado, casamento, funeral etc. — , não seguiu o mestre neste pon­
to. Ver “Recherches sur les échanges rituels en Afrique du N ord”, VAnnée
sociologique, 1927, p. 12-87.

8 7
MAURICE GODELIER

O princípio do potlatch parece se opor termo a termo àquele que


animava os dons que acabamos de analisar. No potlatch se dá alguma
coisa para “esmagar” o outro com este dom. Por isso se dá mais (do que
se pensa) que ele poderá restituir ou se restitui muito mais do que aquilo
que ele deu. Como com os dons e contradons não-agonísticos, o dom-
potlatch endivida e obriga aquele que o recebe, mas o objetivo visado é
explicitamente tornar muito difícil, se não impossível, o retorno de um
dom equivalente: trata-se de colocar o outro em dívida de modo quase
permanente, de fazer com que perca seu prestígio publicamente, de afir­
mar assim, pelo máximo de tempo possível, a própria superioridade.
Apoiando-se em uma literatura abundante e que não se reduz ape­
nas, como se diz com muita freqüência, aos escritos de Boas95, Mauss
sublinha que o potlatch é antes de tudo “uma luta dos nobres para ga­
rantir uma hierarquia entre eles, da qual seu clã tirará proveito mais
tarde96”. A rivalidade chega até mesmo à “destruição puramente
suntuária das riquezas acumuladas (pelo clã) para eclipsar o chefe rival
e ao mesmo tempo associado97”. Para Mauss, o potlatch, por seu cará­
ter de “rivalidade exasperada” que chega mesmo à destruição osten-
tatória de riquezas, é uma forma evoluída, mas relativamente rara, de
prestação total: “É uma prestação total”, diz ele, “no sentido em que é
justamente o clã como um todo que contrata por todos, por tudo o
que possui e por tudo o que faz por intermédio de seu chefe98.” Mas
entre esta forma exasperada e as formas de “emulação mais modera­
da” encontráveis na Melanésia, existe, segundo ele, um número consi­
derável de formas intermediárias na Polinésia, na Malásia, na América
do Sul etc., na Antiguidade entre os trácios e mais largamente no mun­
do indo-europeu. Atendo-nos ao potlatch dos kwakiutl, eis como Mauss
reconstruiu seu funcionamento.

,5Marcel Mauss tinha conhecimento de autores do século X IX , como Krause e


Jacobsen, e dos trabalhos de contemporâneos de Boas, Sapir, Hill Tont etc.
,6Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 153.
97Ibid., p. 152.
91Ibid., p. 152.

8 8
O ENIGMA DO DOM

O objetivo dessas competições é, de um certo ponto de vista, so­


bretudo “político”:

O status político dos indivíduos nas confrarias e clãs, as categorias de


tod a espécie se obtêm pela guerra de propriedade, com o através da
guerra [...]. Tudo é concebido com o se fosse um a luta de riquezas, o
casam ento dos filhos e as cátedras nas confrarias só são obtidas no curso
de potlatchs trocad os e restitu íd os".

E mais adiante:

O potlatch , a distribuição de bens, é o ato fundam ental do recon h eci­


m ento militar, jurídico, econ ôm ico, religioso^ em tod os os sentidos da
palavra. O chefe ou seu filho é ‘recon h ecid o’ e tod os lhe são ‘reco ­
nhecidos’ 100.

Mauss viu claramente que a competição entre os clãs e entre os


chefes é associada ao desejo seja de validar a transmissão de um títu­
lo ou de uma categoria já adquiridos, seja de adquirir ou de conquis­
tar um novo. E a escalada de dons culmina em atos ostentatórios de
destruição de riquezas, de objetos preciosos, diante de um público
amplo:

E m um determ in ad o núm ero de casos não se tra ta sequer de d ar ou


de restituir, mas de destruir [...] quebram -se os cob res m ais caro s,
que são jogados na água para esm agar, para ‘ab ater o rival’. Assim
progride-se não apenas pessoalm ente, m as faz-se p rog red ir a p róp ria
fam ília na escala social. Eis p o rtan to um sistem a de d ireito e de e co ­
n om ia em que riquezas consideráveis são co n stan tem en te gastas e
tran sferid as101.

«Ibid., p. 201.
'“ Ibid., p. 209-210.
10lIbid., p. 202.

8 9
MAURICE GODELIER

Mauss insiste no fato de que nessas sociedades existe uma relação


direta entre a riqueza e o poder, a autoridade:

O h om em rico é um hom em que tem m ana na Polinésia, autorictas


em R om a e que, nas tribos am erican as, é um hom em ‘gran d e’. E stri­
tam en te, tem os apenas que indicar a relação en tre a n o ção de rique­
za, a de au torid ad e, de d ireito de com an d ar àqueles que receb em
p resentes, e o p otlatch . E sta relação é m uito clara [...]. D o chefe, diz-
se que ‘engole as trib os’ às quais distribuksuas riquezas. Ele ‘v o m ita’
p rop ried ad e etc. e tc .102.

A o b rig ação de d a r é a essên cia d o p o tla tch . U m ch efe deve dar


p otlatch s a si m esm o, seu filho, seu gen ro , sua filha, a seus m o rto s.
E le só con serva sua au torid ad e sob re a trib o [ ...] , só m an tém sua
p osição en tre os chefes, nacional e in tern acion alm en te, se p rov ar que
é visitado e favorecid o pelos espíritos e pela fo rtu n a, que é possuído
p o r ela e a possui. M as ele só pode p rov ar esta fortu n a gastan d o -a,
distribuindo-a, hum ilhando os ou tros, colocan d o -os ‘à som b ra de seu
n o m e’ 103.

E compreende-se que, nesse universo,

abster-se de dar, assim co m o de receb er, é d erro gar, assim co m o abs­


ter-se de retribuir. A ob rigação de retribu ir é todo o po tla tch , na m e­
dida em que ele n ão con siste em p ura d estru ição [...]. P erd e-se o
prestígio para sempre ao não retribuir ou ao não destruir valores equi­
valen tes104.

Retribuir com certeza, mas, como afirma o próprio Mauss um pouco


mais adiante, se o potlatch é uma estratégia obrigatória para conquistar

102Ibid., p. 203.
lMIbid, p. 205-206. Grifo nosso.
I04lbid., p. 211-212. Grifo nosso.

9 0
0 ENIGMA DO DOM

uma posição ou validar um título, é precisamente o ato de dar e de dar


m ais d o que os outros que conta (senão é o fracasso):

E ntre chefes e vassalos, entre vassalos e cavaleiros, a hierarquia se es­


tabelece p or seus dons. D ar é m anifestar sua superioridade, ser mais,
mais alto, m agister, aceitar sem retribuir ou sem retribuir mais é su­
bordinar-se, tornar-se cliente e servidor, apequenar-se, cair mais bai­
x o , m inister'05.

Bem entendido, como vários chefes aspiram ao mesmo tempo ao


mesmo título ou à mesma posição e como nenhum deles quer nem pode
confessar-se imediatamente vencido, cada um tem que se esforçar para
dar mais do que os outros se não quiser “perder seu prestígio”, sua
honra, sua fama. Em toda esta luta, a obrigação que se apresenta sem­
pre em primeiro plano é aquela de dar, mas, paradoxalmente, de dar
com a intenção de rom per a reciprocidade dos dons, de quebrá-la em
proveito próprio — pelo menos é o que cada um espera. Mauss cita
em uma nota, aliás sem insistir, embora esta afirmação enfraqueça a
idéia de que a obrigação de retribuir é todo o potlatch: “O ideal seria
dar um potlatch e que ele não fosse retribuído106.”
A lógica do potlatch é, portanto, totalmente diferente daquela dos
dons e contradons não-agonísticos, pois, ao fim destes, cada um, cada
linhagem por exemplo, terá dado uma parte de seus recursos aos ou­
tros, mas terá recebido o equivalente, uma mulher por uma mulher,
por exemplo.
Vimos como Mauss reconstitui o contexto sociológico da prática
do potlatch. Ainda não examinamos a natureza das riquezas trocadas
que alimentam esta guerra de propriedade. No essencial, são objetos
preciosos, conchas, cobres, objetos esculpidos etc., mas também danças,
ritos etc. Estes bens eram dados publicamente no curso de cerimônias

l05Ibid., p. 269-270.
I(l<lbid., p. 212, nota 2.

9 1
MAURICE GODELIER

acompanhadas de festins, nos quais enormes quantidades de comida eram


distribuídas. Mas para os kwakiutls, observa Máuss depois de Boas, es­
sas “provisões” não eram contadas como realmente constituintes da ri­
queza. O que são esses objetos preciosos, entres os quais figuram na
primeira linha os famosos cobres blasonados? Mauss insiste de novo na
essência espiritual dos objetos preciosos que circulam nas trocas:

Podem os levar mais longe a análise e provar que nas coisas trocadas
no p otlatch há um a virtude que força os dons a circular, a ser dados, a
ser restituídos107.

Os cobres blasonados que figuram na primeira linha dos potlatch

são objeto de crenças im portantes e m esm o de um culto. E m todas


essas tribos há um culto e um m ito do cob re, ser vivente. O cob re,
pelo m enos entre os haidas e os kwakiutls, é identificado ao salm ão,
ele tam bém um objeto de culto [...]. [Entre os tlingits] o cob re, p or ser
verm elho, é identificado ao sol, ao fogo caído do céu [ ...] 108.

Há um ponto essencial (pelo menos a nossos olhos) no texto de


Mauss sobre o qual ele mesmo achou que não deveria demorar-se e
que, em seguida, não mereceu comentário particular nem da parte de
Firth, nem de Lévi-Strauss ou de Sahlins. E esse silêncio perdurou até
as publicações de Annette Weiner. Eis do que se trata. Em uma nota,
fazendo referência a Boas, Mauss assinala a existência de duas catego­
rias de cobres entre os kwakiutls:

O s m ais im po rta ntes, que não saem da fam ília, que não se podem
quebrar para refundir, e os outros, que circulam intactos, de m enor
valor e que parecem servir de satélites para os prim eiros. A posse des­
ses cobres secundários entre os kwakiutls corresp on d e sem dúvida à

lü7Ibid., p. 214.
‘““Ibid., p. 222.

9 2
O ENIGMA DO DOM

posse dos títulos nobiliários e das categorias de segunda ordem com


as quais eles viajam, de chefe em chefe, de família em família, entre as
gerações e os sexos. Parece que os grandes títulos e os gra nd es cobres
p erm a n ecem fixos no interior dos clãs e das tribos, pelo m enos. Aliás,
seria difícil que fosse diferente109.

Além dos cobres, existiam outras coisas preciosas que não saíam
das famílias. “Grandes conchas de madrepérola, os escudos cobertos
com elas [...] as cobertas, elas próprias blasonadas, revestidas de faces,
de olhos e de figuras animais e humanas tecidas, bordadas110.” Cada
uma dessas coisas preciosas “tem, como nas Trobriand, sua individua­
lidade, seu nome, suas qualidades, seu poder111”. Entre as coisas precio­
sas que têm um nome figuram igualmente os títulos dos nobres, homens
e mulheres, e seus privilégios, suas danças etc. Estas coisas sagradas
são transmitidas de geração em geração pelo casamento e por herança.
Elas deixam o clã para retornar a ele, pois os “privilégios” são cedidos
por um sogro a seu genro, que deve transmiti-los a seu filho. Por isso,
o privilégio cedido ao genro retorna com o neto ao clã de origem. Donde
a observação de Mauss:

É inexato falar, no caso deles, de alienação, eles são objeto de em prés­


tim o , mais que de venda ou de verdadeira cessão. E n tre os kwakiutls,
um certo núm ero dentre eles, em bora apareçam no p otlatch , não p o­
dem ser cedidos. N o fundo, estas ‘propriedades’ são sagradas, das quais
a família só se desfaz com grande pena e, às vezes, jam ais112.

O conjunto destas coisas sagradas, preciosas, constitui uma espé­


cie de “dote m ágicon3” para cada família. São estes próprios objetos

l0,Ibid., p. 224, nota 1.


“ °Ibid., p. 220.
"'Ibid., p. 219.
112Ibid., p. 216.
I13lbid., p. 217.

9 3
MAURICE GODELIER

que parecem estar na origem direta das riquezas do clã. Não apenas as
produzem e em abundância, mas atraem outras.

Eles têm um a virtude atrativa, que cham a os outros cobres, assim com o
a riqueza atrai a riqueza, com o as dignidades atraem as honras, a pos­
se dos espíritos e as belas alianças, e inversam ente114.

De onde vem então este poder, esta capacidade de produzir rique­


zas e de atraí-las? A resposta é simples: do fato de que estas coisas são
“divinas”, dons que espíritos ou deuses fizeram aos humanos, e do fato
de que os espíritos ou deuses continuam presentes nelas, atuando so­
bre os humanos que as possuem hoje por tê-las recebido de seus ances­
trais ou do herói fundador do clã, ao qual fora dada por um espírito.
E nos mitos que se afirmam a continuidade e a identidade de uma
presença, de uma essência espiritual entre os deuses ou os espíritos que
foram os doadores originários dos bens sagrados, os próprios bens e os
humanos que hoje os possuem por tê-los recebido de ancestrais mais
ou menos legendários, que teriam sido os primeiros recipiendários, os
primeiros donatários. Os grandes cobres

são as coisas planas divinas da casa. M uitas vezes o m ito os identifica


a tod os: os espíritos doadores dos cobres, os proprietários dos cobres
e os próprios cobres. É impossível discernir o que faz a fo rça de um do
espírito e da riqueza de ou tro : o cobre fala, grunhe, pede p ara ser dado,
destruído, é ele que é envolvido co m cobertas que o p rotegem do frio
etc. e tc .115.

É evidente que o próprio Mauss não acredita que os cobres tenham


sido fabricados pelos deuses. Ele faz referência aos trabalhos de Rivet
sobre a ourivesaria pré-colombiana (publicados em 1923 no Jou rn al
des américanistes), lamentando que ele não tenha tratado aí da indústria

114Ibid., p. 224.
" 5Ibid., p. 225.

9 4
O ENIGMA DO DOM

do cobre no Nordeste americano, que permanece muito mal conheci­


da116. O cobre nativo vinha da Copper River e era fundido em outro
lugar. Mauss sugere que a aristocracia tsimshian e kwakiutl certamen­
te tinha algo a ver com o segredo da fundição e com o controle do
comércio do cobre. Mas ele não levou mais longe sua análise das con­
dições reais da produção e do comércio dos cobres. Aliás, de uma
maneira geral, Mauss não se preocupa com as relações que os homens
estabelecem na produção das coisas, mas apenas com aquelas que eles
mantêm entre si em virtude de sua circulação. Ele se limita a nos dizer
que os mais preciosos dos cobres eram muito raros, considerados como
dons dos deuses e entesourados. Os outros, os mais numerosos, circu­
lavam nos potlatchs e eram considerados, segundo a fórmula muito feliz
de Mauss, como “satélites dos primeiros”.
Finalmente, o mundo que Mauss nos descreve é um mundo encanta­
do (ele emprega a palavra “feérico117”) em que circulavam sem cessar, atra­
vés de múltiplos potlatchs que se respondem e se encadeiam, coisas
preciosas que gravitam em torno de coisas ainda mais preciosas, coisas
sagradas que, estas, permanecem imóveis no interior dos clãs, lá onde os
deuses as teriam deixado, dados. E estes objetos imóveis são espíritos en­
carnados, espíritos que são coisas, coisas que são espíritos. “Eles vivem.
Eles têm um movimento autônomo e eles arrastam os outros cobres118.”
Aqui vemos claramente o efeito das crenças e das representações
religiosas. Elas propõem uma interpretação do mundo e das instituições
humanas tal que, ao fim de nossas explicações das causas e das ori­
gens, as coisas tomaram o lugar dos homens, os objetos tornaram-se
sujeitos, objetos fabricados e trocados por seres humanos transforma­
ram-se em objetos fabricados pelos deuses e dados graciosa e genero­
samente a alguns ancestrais distantes, memorizados e heroificados, dos
humanos que vivem hoje.

“ ‘ Ibid., p. 221, nota 6.


117Ibid., p. 221.
"«Ibid., p. 224.

9 5
MAURICE GODELIER

Sabemos que as crenças religiosas não só fazem parte do mundo,


mas, em parte, fazem este mundo. E o fazem de maneira tal que apa­
gam uma outra parte, substituindo os homens reais por duplos imagi­
nários que vêm tomar seus lugares e agir em seu lugar. Mas sobre isso
Mauss nada diz. Assim como não se deteve na distinção proposta por
ele mesmo entre os tesouros familiares, os sacra imóveis e o resto das
coisas preciosas que, elas, se movem nos potlatchs. Uns, diz ele, são
propriedades comuns de clãs, famílias e, a este título, ele considera
evidente que devem permanecer imóveis, inalienáveis. “Inalienável”
quer dizer, portanto, “não-trocável”. Mas depois de ter oposto estas
duas categorias de bens, Mauss, algumas páginas adiante, parece apa­
gar esta oposição sem nos dar suas razões:

N o fu n d o , quando se consideram ao m esm o tem po os cobres e as ou­


tras form as permanentes de riqueza, que tam bém são objeto d e entesou-
ram ento e de potlatchs alternados, m áscaras, talismãs e tc ., são todos
confu nd idos com seu uso e com seu efeito [...]. Tudo é m antido, se
confunde, as coisas têm uma personalidade e as personalidades são de
alguma maneira coisas perm anentes do clã. Títulos, talism ãs, cobres e
espíritos de chefes são hom ônim os e sinônim os, da m esma natureza e
com a m esm a fu n ção119.

As fórmulas são belas, soberbas mesmo, mas o fato de que os obje­


tos preciosos, entesourados ou circulando nos potlatchs tenham uma
personalidade, uma alma, em nada autoriza a confundi-los ou, sobretu­
do, a confundir as funções que assumem em cada caso. O problema de
explicar por que certas coisas são ainda mais preciosas do que outras,
por que são sagradas e por que, por serem sagradas, são subtraídas ao
potlatch permanece, aliás, intocado. E mesmo se um objeto pode, no
curso de sua existência, passar de uma categoria a outra, ser de início
entesourado e depois figurar no potlatch (ou ao contrário), sempre falta

I 119Ibid., p. 227.

9 6
O ENIGMA DO DOM

explicar, além do destino desse objeto, a existência permanente, na pro


dução-reprodução destas sociedades, da sociedade, de duas funções dis­
tintas, inconfundíveis, a serem assumidas. Duas funções que acarretam
a aparição de duas categorias de objetos preciosos que, enquanto cate­
gorias, são igualmente distintas e o são em permanência. Que um mes­
mo objeto passe, no curso de sua existência, de uma categoria a outra é
um ponto muito interessante que analisaremos mais adiante. Mas o fato
de que fique imóvel ou imobilizado por um tempo quando está em uma
delas e sempre mudando de lugar, movendo-se, quando penetra em outra
é a melhor prova de que as funções que ele assume nos diversos momen­
tos de sua existência não podem ser confundidas.
Parece, portanto, que chegamos aqui ao limite das possibilidades
de Mauss explicar teoricamente os fatos que analisava. Um pouco de­
pois, e a propósito do mesmo problema, a interpretação da natureza
dos vaygu’a, estes objetos preciosos que circulam no kula, o grande
ciclo de trocas intertribais descrito por Malinowski, veremos surgirem
estes mesmos limites. Mas antes de esclarecer sua natureza e suas ra­
zões, podemos afirmar já de início que tais limites em Mauss não são
explicáveis, como criticaram certos autores “marxistas”, pelo fato de
que ele teria retomado as descrições de Boas sem perceber que este
último descrevia a sociedade kwakiutl “à imagem de sua própria socie­
dade, na época em que a ética capitalista encorajava a especulação fi­
nanceira, uma sociedade animada pelo individualismo e pelo lucro120”.
Ainda mais recentemente, convidado a comentar um texto de Marie
Mauzé que é uma tentativa bastante sólida e equilibrada de reavaliar a
obra de Boas, recolocando-a claramente em seu contexto histórico’21,

120Claude Meillassoux, “Potlatch”, Encyclopaedia universalis, Paris, t. 13, 1980,


p. 424.
l2lMarie Mauzé, “Boas, les Kwakiutl e le potlatch: élements pour une réévaluaúon”,
UHomtne, XXV I, n. 4, outubro-dezembro de 1986, p. 21-63. Depois da publica­
ção deste artigo, um livro veio completar nossos conhecimentos sobre o potlatch:
Sergueí Kan, Symbolic Immortality: The Tlingit Potlatch o fth e Nineteenth Century,
Washington DC, Smithsonian Institution Press, 1989.

9 7
MAURICE GODELIER

Meillassoux reincide e volta a atacar Mauss por ter “caucionado Boas


sem prudência” e por ter, com isso, caucionado também “a ideologia
do liberalismo econômico” que o animava e que o teria levado a “en-
ganar-se tão profundamente sobre a interpretação do potlatch”. Por
sua falta de rigor e seus preconceitos, Mauss teria contribuído para “de­
sorientar por muito tempo a pesquisa econômica em antropologia”122.
Essa representação de um Mauss iludido pela ideologia capitalista
liberal é profundamente inexata e constitui uma caricatura daquilo que
deveria ser a análise crítica de uma obra complexa e pujante, que não
pode ser reduzida a algumas citações que confortam a baixos custos os
pressupostos doutrinários do crítico. Com efeito, a atitude de Mauss é
na verdade totalmente contrária àquela que seu crítico lhe empresta.
Apesar da admiração que sente por Boas, e mais ainda por Malinowski,
porque são homens dedicados ao trabalho de campo cujas obras de­
monstram por sua riqueza a superioridade da “sociologia descritiva”,
Mauss acolheu com grande prudência crítica as interpretações que es­
tes dois autores propunham dos fatos que haviam observado direta­
mente. Daremos alguns exemplos.
Se o sistema capitalista é complexo em suas estruturas, ele é sim­
ples em seus princípios que, evidentemente, se distinguem daqueles que
reinam nos sistemas sociais analisados por Mauss (e até mesmo se
opõem). O sistema capitalista se apresenta como o sistema de produ­
ção de mercadorias historicamente mais desenvolvido entre todos os
que existiram. Ele repousa no princípio da propriedade privada dos
meios de produção, dos meios de consumo, do dinheiro, e na compra
e venda da força de trabalho intelectual e/ou manual que intervém no
processo de produção e circulação das mercadorias. Seu estímulo é
simples, é o desejo de fazer dinheiro com dinheiro123, o que implica

l22Claude Meillassoux, “Commentaire à 1’article de Marie Mauzé”, LH om m e,


XXV I, n° 4 , p. 54-55.
123Apenas o dinheiro investido no capital financeiro dá a ilusão de que o dinheiro
engendra dinheiro por si só. Em qualquer outra esfera é preciso que ele seja tro­
cado por meios de produção, meios de consumo, força de trabalho ou serviços
antes de começar a render dinheiro.

9 8
O ENIGMA DO DOM

transformar o dinheiro em capital e investi-lo no processo de produ­


ção e circulação de mercadorias. O valor de uso de uma mercadoria,
seja ela um bem material ou imaterial, sua utilidade, em outras pala­
vras, só importa na medida em que é o suporte indispensável de seu
valor de troca e na medida em que se torna por isso o meio, o instru­
mento da valorização de um capital.
Ora, qual é a atitude de Mauss em relação ao capitalismo? Não
vamos esquecer que o “Essai sur le don” foi escrito apenas alguns
anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial e da vitória da re­
volução bolchevique na Rússia. Não esqueçamos também que Mauss
é socialista, engajado politicamente em uma reforma da sociedade
capitalista e que escrevia regularmente para o jornal L’H um anité,
antes que este passasse para as mãos dos comunistas. Ora, a refor­
ma que ele propõe — voltaremos a isso na conclusão deste livro —
é, bem antes de seu tempo, um programa social-democrata que com­
bina economia de mercado e socialismo de Estado. Ele critica o
comunismo como “tão nocivo à sociedade quanto o egoísmo de
nossos contemporâneos e o individualismo de nossas leis124”. Ele
condena o bolchevismo porque recorre à violência para fazer evo­
luir a sociedade125.

N em é p reciso d izer que n ão p reco n izam o s nenh u m a d estru ição .


O s prin cíp ios de d ireito que regem o m ercad o , a co m p ra e a ven d a,
que são a c o n d içã o indispensável da fo rm ação d o cap ital, d evem e
p od em subsistir ao lado de p rin cíp ios n ovo s e de p rin cíp ios mais
a n tig o s124.

Os princípios antigos aos quais retornaríamos são os dons e as “des­


pesas nobres”, aquelas que fazem os ricos e poderosos em outras socie­

U4Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 263.


u'Marcel Fournier, Mareei Mauss, Paris, Fayard, 1994, p. 4 1 7 ss.
12lSMarcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 261.

9 9
MAURICE GODELIER

dades que não as nossas. Pois “são as sociedades do Ocidente que, muito
recentemente, fizeram do homem um ‘a n im a l e c o n ô m ic o [ . . . ] p o r m u it o
t e m p o o h o m e m f o i o u tr a c o is a ; n ã o fa z m u it o t e m p o q u e e le é u m a
m á q u in a , c o m p lic a d a p o r u m a m á q u in a d e c a l c u l a r ''17
Chega-se a uma situação em que

to d a um a parte do direito, direito dos industriais e dos com ercian tes,


está, nestes tem pos, em conflito com a m oral. Os p recon ceitos eco n ô ­
m icos do povo, aqueles dos produtores são provenientes de sua firme
vontade de seguir a coisa que produziram e da sensação aguda de que
seu trabalho é revendido sem que participem do lu cro 128.

À volta ao antigo princípio da partilha nobre de suas riquezas


pelos ricos, Mauss propõe acrescentar e desenvolver o princípio
novo de um “socialismo de Estado” que se impõe se admitirmos que
a comunidade não pode se sentir desobrigada só porque os traba­
lhadores são pagos por seus serviços. Ela lhes “deve uma certa se­
gurança na vida, contra o desemprego, contra a doença, contra a
velhice, a morte129”. Difícil de qualquer forma acusar Mauss de ter
sido, no começo deste século, um adepto cego do “liberalismo eco­
nômico”...
Voltemos, portanto, ao essencial, que não é apontar apenas as dis­
tâncias que Mauss soube tomar em relação a Boas, mas sobretudo
mostrar que, em seu esforço para interpretar os fatos relatados, ele
chegou mesmo a recolocar em questão os conceitos ocidentais de eco­
nomia e a visão sumária que o Ocidente tem da história econômica da
humanidade.
Basta ler Mauss para constatar que ele tinha uma visão lúcida dos
limites dos materiais acumulados tanto por Boas quanto por seus

127Ibid., p. 272.
12*Ibid., p. 260.
u ,Ibid., p. 260-261.

100
O ENIGMA DO DOM

predecessores e sucessores. “Foi para a civilização material [i.e., os


objetos, as técnicas], para a lingüística e a literatura mitológica que se
voltou a atenção de Boas e de seus colaboradores da Jesup Expedition...
A análise jurídica, econôm ica, e a dem ografia ainda precisam ser, se não
feitas, p elo m enos com pletadas130.” Ele considera que, em matéria de
economia e de direito, os antigos autores russos, alemães, franceses e
ingleses que ele leu e cujas obras remontam a antes de 1870 “ainda são
os melhores e seu tempo lhes confere uma autoridade definitiva131”.
Ele lamenta que se saiba tão pouco sobre a “morfologia social” (nós
diríamos hoje sobre a organização social das sociedades), sobre a natu­
reza dos grupos que a compõem (clãs, sociedades secretas etc.) e afir­
ma que seria necessário investigar “enquanto ainda é tempo”132. Ele
aliás utiliza o termo “classes feudais” para descrever essas aristocracias
tribais, termo eurocentrista que se pode encontrar na pena de quase
todos os autores (antes de Marc Bloch), sejam eles liberais ou marxis­
tas, ocidentais ou orientais, que descreveram sociedades governadas
por diversas formas de aristocracia. Todas eram alegremente batizadas
de “feudais” ou “quase feudais”133. Mauss acrescenta em nota uma “ob­
servação geral” de grande importância a nosso ver, na medida em que
nos mostra um Mauss consciente do fato de que ele próprio não sabia
o suficiente para compreender as relações entre a coisa dada em um

U0Ibid., p. 195. Grifo nosso. Aliás, Mauss acrescenta que “também os trabalhos
de etnógrafos profissionais mais antigos (Krause, Jacobsen) ou mais recentes (Sapir,
Hill Tont etc.) tomam a mesma direção”.
ulIbid., p. 195.
132Ibid.
U3Ibid., p. 20, nota 3. No entanto, ele aproxima os chefes kwakiutls de seus
homólogos celtas, germânicos etc., tais como deveriam ser antes do desenvolvi­
mento do feudalismo no Ocidente. “A civilização germânica”, escreve ele, “res­
tou essencialmente feudal e camponesa. Nela, a noção e mesmo as expressões preço
de compra e de venda parecem ser de origem recente. Anteriormente, ela havia
desenvolvido o sistema do potlatch, mas sobretudo todo o sistema de dons [de
prestações não-agonísticas]” (ibid., p. 251). Mauss cita Tácito como se deve. Depois
de Grimm, não mais se parou de fazê-lo na Europa.

1 0 1
MAURICE GODELIER

potlatch e seu proprietário; ora, este é o ponto nodal de seu trabalho,


o lugar em que se medem sua força e seus limites.

O bservação geral: sabem os m uito bem co m o e p o r que e no curso de


quais cerim ônias, despesas e d estruições os bens são tran sm itidos no
N o rd este am erican o . N o en tan to , ainda estam os m al in form ad os
sobre as form as co m as quais se reveste o ato m esm o da trad ição
[cessão] das coisas, em p articu lar dos cob res. E sta questão deveria
ser ob jeto de um a pesquisa. O p o u co que con h ecem o s é e x tre m a ­
m ente interessante e m arca certam en te a ligação en tre a p ro p ried a d e
e os p rop rietáriosn *.

Todas essas citações nos mostram o quanto Mauss estava consciente


daquilo que faltava à obra de Boas e às outras fontes que havia utiliza­
do, mas elas não tinham atingido ainda o ponto principal de sua pro­
posta, a saber, a crítica da interpretação de Boas para os fatos que
reportava. Ora, é justamente aí que se medem não apenas a prudência
crítica de Mauss, mas seu esforço para construir uma teoria alternati­
va, uma outra interpretação teórica dos fatos reportados por Boas.
Já sobre a própria palavra potlatch, ele observa que “nem a idéia
nem a nomenclatura que presumem o emprego deste termo têm, nas
línguas do Nordeste, o tipo de precisão que lhe é emprestada pelo sabir
anglo-indiano à base de chinook135” (ou seja, a língua utilizada no co­
mércio entre índios e europeus). Ele observa em seguida, depois de ter
examinado os glossários de Boas, que “parece que mesmo as palavras
“troca” e “venda” são estranhas à língua kwakiutl136”. Mas a crítica
maior não está aí. Paradoxalmente, ela acontece na conclusão de uma
longa nota, na qual Mauss teve o trabalho de recopiar a famosa página
em que Boas escreveu: “O sistema econômico dos índios da colônia
britânica é fortemente baseado no crédito, assim como o dos povos

134Ibid., p. 2 25, nota 6.


135Ibid., p. 213.
I3‘ lbid., p. 2 02, nota 3.

1 02
0 ENIGMA DO DOM

civilizados [,..]137.” E Mauss comenta: “Sobre o potlatch, Boas nada


escreveu de melhor.” Mas logo acrescenta:

Corrigindo os term os ‘dívida, pagam ento, reem bolso, em p réstim o’ e


substituindo-os p o r term os com o ‘presentes dados e presentes retri­
buídos’, term os que o sr. Boas acabou, aliás, p or em pregar, tem -se uma
idéia bastante exata da n oção de créd ito no p o tlatch 138.

Mauss dedica-se, portanto, corrigindo e sobretudo substituindo os


termos empregados por Boas, a um verdadeiro trabalho de recentralização
teórica que vai levá-lo não apenas a questionar os conceitos dos econo­
mistas e suas visões simplificadoras da história econômica da humanida­
de, mas também a tomar consciência dos limites que ele próprio não
conseguia transpor, do ponto no qual seu próprio movimento se detém,
em que seu próprio pensamento malogra, ou imobiliza-se, por assim dizer:

Vimos várias vezes o quanto toda esta econom ia de tro ca-d om estava
longe de encaixar-se nos quadros da econom ia dita natural [sem tro ca
e/ou sem m ercado], do utilitarismo [ou seja, limitando-se a tro car coi­
sas m aterialmente úteis]. Todos estes fenôm enos tão consideráveis da
vida econôm ica de todos estes povos [...] e a considerável sobrevivência
de todas estas tradições nas sociedades próxim as de nós ou nos usos
dos nossos escapam aos esquem as dados, de ordinário, pelos raros eco ­
nomistas que tentaram com parar as diversas econom ias conhecidas139.

l,7Ibid., p. 198, nota 2.


13sIbid. Grifo nosso. Que nós saibamos, Jean Lojkine, em seu artigo “Mauss et
L”Essai sur le don’: portée contemporaine d’une étude anthropologique sur une
économie non marchande” (in Cahiers internationaux de sociologie, LXXXV1, n°
1, 1989, p. 141-158), é um dos raros comentaristas a colocar em evidência o es­
forço de descentralização e de recentralização teóricas que Mauss realizou em
relação aos conceitos da economia política. Ele mesmo um marxista, o autor con­
sidera a crítica de Mauss por Meillassoux infundada e deslocada (p. 143).
13,Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 266. Grifo nosso. Mauss faz alu­
são aqui ao artigo publicado por Malinowski no Economic Journal, sob o título
de “The Primitive Economy of the Trobriand Islanders”, vol. 31, n° 121, março
de 1921, p. 1-16.

103
MAURICE GODELIER

E Mauss precisa que une seus esforços aos de Malinowski, que con­
sagrou “todo um trabalho para derrubar as doutrinas correntes sobre a
economia ‘primitiva’140”. Mas Mauss não considerava suficiente o tra­
balho de demolição crítica dessas doutrinas, nem verdadeiramente
satisfatória a análise teórica que ele mesmo desenvolveu como alternativa:

N o en tanto, pode-se ir ainda mais longe do que nós chegam os até aqui:
pode-se dissolver, m esclar, colorir e definir as n oções principais das
quais nos servim os: brinde, presente, dom não são, elas m esm as, p e r­
feita m en te exatas. N ão p u dem os enco n tra r outras, eis tu do. O s co n ­
ce ito s de d ireito e de eco n o m ia , cuja o p o siçã o ta n to n os a p ra z :
liberdade e obrigação, liberalidade, generosidade, luxo — poupança,
interesse, utilidade [...] seria interessante revê-los141.

E Mauss dá como exemplo a interpretação dos vaygu’a, os objetos


preciosos que circulam no kula, entre as ilhas Trobriand e as outras
ilhas do nordeste da Nova Guiné, que analisaremos em um instante.
Finalmente, não é por acaso que todas as dificuldades teóricas se
concentram ao redor da interpretação da natureza dos objetos precio­
sos que circulam nos dons, e cujo modo de circulação, às vezes estra­
nhos aos nossos olhos, deveria ser esclarecido. Estes objetos são, em
sua maioria, coisas materiais cujo valor não reside apenas na raridade
de sua matéria, seja ela o nácar, cobre, ossos, jade ou plumas, nem no
trabalho despendido para fabricá-lo ou embelezá-lo. Pois a escolha da
matéria, o trabalho investido, tudo isto certamente conta bastante, mas
menos do que uma realidade imaterial nele presente. Esta realidade é
imaginária. Tem por conteúdo idéias e símbolos que conferem ao ob­
jeto uma força social, uma força utilizada pelos indivíduos e pelos gru­
pos para agirem uns sobre os outros, quer para estabelecer novas
relações sociais, quer para reproduzir as mais antigas.
O conteúdo imaginário, imaterial das coisas dadas não se reduz em
hipótese nenhuma à simples presença do doador na coisa dada. E, bem

,40Ibid., p. 266.
I41lbid., p. 267. Grifo nosso.

10 4
O ENIGMA DO DOM

entendido, porque as coisas dadas “nunca estão completamente desliga­


das” de seu proprietário, que elas levam consigo alguma coisa de seu ser,
que através delas as pessoas se ligam, se comprometem. São relações
“pessoais” que se estabelecem, pessoas que se comprometem. E a coisa
dada é a garantia de seus compromissos. Entretanto, não podemos nos
contentar em ficar neste nível, no qual aquilo que obriga a dar é o fato
de que dar obriga e isto abre imediatamente um círculo de obrigações
mútuas, pois aceitar receber é obrigar a retribuir, a “restituir” etc. Pois
se cada um pode escolher dar a um e não a outro ou receber de um e não
de outro, ninguém nestas sociedades— se deseja continuar a existir, isto
é, reproduzir-se reproduzindo suas relações com outros — pode deixar
de dar e de receber. Por trás das pessoas e de suas relações existe portan­
to uma outra realidade, social, impessoal, objetiva, que se afirma sobre
todos em todos os momentos e sem jamais se interromper.
Isto foi visto por Mauss, reconhecido e expresso em um de seus ra­
ros textos em que ele busca remontar, mais além dos aspectos imaginá­
rios e simbólicos das coisas dadas, até uma realidade objetiva que não se
reduziria a estas realidades imaginárias, até uma necessidade que não
poderia ser reduzida aos dados da consciência subjetiva e intersubjetiva
e que seria sua fonte, explicaria sua existência. Falando do “regime do
dom” nas sociedades melanésias e polinésias, ele escreve:

A vida material e m oral, a tro ca , funcionam nestas sociedades sob um a


form a desinteressada e ao m esm o tem po obrigatória. Além do mais,
esta obrigação se exprim e de m odo m ítico, im aginário ou , se assim
preferirm os, simbólico e coletivo: ela assume o aspecto do interesse
ligado às coisas trocad as — estas nunca ficam co m p leta m en te desliga­
das daqueles que as tro caram ; a com unhão e a aliança que estabele­
cem são relativamente indissolúveis. N a realidade, este símbolo da vida
social — a perm a nência da influência das coisas trocad as — não faz
senão traduzir bastante diretam ente a m aneira co m o os subgrupos
destas sociedades segmentadas, de tipo arcaico, estão permanentem ente
im bricados uns nos ou tros e sentem tudo dever uns aos o u tro s142.

I 142Ibid., p. 194. Grifo nosso.

1 0 5
MAURICE GODELIER

A obrigação objetiva, que estes grupos componentes das sociedades


arcaicas teriam, de trocar entre si para poder subsistir encontraria, por­
tanto, sua expressão “bastante direta”, mas imaginária ou simbólica (o
que, a nosso ver, não é a mesma coisa), no fato de que “as coisas trocadas
nunca ficam completamente separadas” de seus proprietários. Mauss,
porém, nada nos diz sobre as razões pelas quais esta obrigação teria de
assumir uma forma mítica, a não ser afirmar que é o que as pessoas acre­
ditam. Aliás, a obrigação, para os indivíduos e os grupos, de “trocar”
para existir socialmente não é certamente uma característica apenas das
sociedades segmentárias ou, de maneira mais geral, “arcaicas”. E sobre­
tudo, se as coisas trocadas nos dons têm uma alma, elas não são as úni­
cas a possuí-la. Os objetos sagrados também têm uma, e ainda “mais
forte”, pois neles estão presentes, agem pessoas maiores que os huma­
nos: deuses, espíritos, ancestrais ilustres. Ora, estas coisas sagradas, que
se beneficiam de um suplemento de alma em relação aos objetos precio­
sos que se podem dar, não são, em geral, nem dadas nem trocadas.
Mauss deveria, portanto, ter colocado a seguinte questão: por que,
entre todos os objetos que têm uma alma, alguns, os mais numerosos,
podem ser dados e circular entre os indivíduos e os grupos “sem que
nunca, todavia, sejam completamente separáveis” de seus proprietários
de origem, sem que sejam completamente alienáveis, enquanto os ou­
tros, os mais preciosos, os mais sagrados, não circulam e permanecem
imóveis nos tesouros dos clãs e das famílias? E como estas duas catego­
rias de objetos existem nas sociedades “segmentárias” que ele exami­
nou, devemos concluir que a segmentação, a divisão da sociedade em
subgrupos “imbricados uns nos outros” e que “se devem tudo”, não
supõe, de form a alguma, que eles se dêem tudo.
Ele considera evidente que as coisas sagradas não são alienáveis e
reserva todas as suas questões, todos os seus esforços, para tentar com­
preender por que as coisas dadas, trocadas, não o eram completamen­
te. Focalizando sua análise em uma única categoria de objetos (e de
fatos), ele não viu que ela não era independente da outra, que lhe era
complementar e cuja existência mesma lhe era necessária, pressuposta.

1 o 6
O ENIGMA DO DOM

Ao deixar fora de seu campo de análise os objetos sagrados, Mauss ^


acabou criando, sem o desejar, a ilusão de que a troca era o todo da
vida social. Ele abria caminho para Lévi-Strauss que, ele sim, simplifi­
cou mais ainda as coisas na célebre fórmula em que reduzia a socieda­
de a uma tríplice troca, de mulheres, de bens e de palavras.
De fato, conforme tentaremos demonstrar mais adiante, as trocas,
quaisquer que sejam, não esgotam o funcionamento de uma socieda­
de, não bastam para explicar a totalidade do social. Ao lado das “coi­
sas”, dos bens, dos serviços, das pessoas que se trocam, há tudo aquilo
que não se dá ou que não se vende e que é objeto, igualmente, de ins­
tituições e de práticas específicas que são um componente irredutível
da sociedade como totalidade, contribuindo também para explicar seu
funcionamento como um todo.
Isto nos leva a tomar uma certa distância em relação à descrição de _
Mauss para o potlatch como fenômeno social total. Em nada contesta­
mos a importância desta noção que Mauss foi o primeiro a introduzir
no campo das ciências sociais e que lhe valeu, a justo título, a celebri­
dade. Mauss distingue dois graus, duas classes de fatos sociais totais na
medida em que “movimentam, em certos casos, a totalidade da socie­
dade e de suas instituições [potlatch, clãs afrontados, tribos se visitan­
do143 etc.] e, em outros casos, apenas um núm ero m uito grande de
instituições, em particular quando tais trocas e contratos envolvem,
antes, os indivíduos144”.
Que o potlatch possa envolver todos os grupos da sociedade e,
neste sentido, arrastar em seu movimento toda a sociedade, é prová­
vel. Que o potlatch ou o kula sejam, “mais até do que sistemas de
instituições divididos, por exemplo, em religião, direito, economia
etc., ‘marcas’, sistemas sociais inteiros”, é certo, pois a aplicação a
estes fenômenos de tais categorias analíticas as “disseca em regras de

'^Exemplo de “prestações totais” não-agonísticas.


I44lbid., p. 274. Grifo nosso. Sobre a noção de fenômeno social total, ver também
p. 141 e 204.

10 7
MAURICE GODELIER

direito, em mitos, em valores [...]” e corre-se o risco de perder a


unidade, “o movimento do todo”145. Mas nem as sociedades da costa
noroeste da América e menos ainda as sociedades do nordeste da Nova
Guiné se resumem ou se exprimem por inteiro no potlatch ou no kula,
embora eles marquem em profundidade “sua economia e sua moral”.
No entanto, o que Mauss percebeu muito bem é que, uma vez acio­
nada a lógica do potlatch, uma vez estabelecido um sistema de dons e
contradons agonísticos que integre a maioria dos grupos que compõem
uma determinada sociedade, nada parece poder detê-lo. Pouco a pou­
co, tudo se transforma em pretexto para o potlatch: a vida, o casamen­
to, a morte etc. Cada dom supõe e pressupõe outros dons e estes se
sucedem e se encadeiam em um movimento que parece ter um motor
em si mesmo, sem começo nem fim.
E então que, aos olhos dos membros destas sociedades, tanto dos
indivíduos quanto dos grupos que as compõem, colhidos por este moto
perpétuo, sem poder escapar, sair (com exceção, e isto é significativo,
de alguns indivíduos e grupos, cujas funções e cujo status os situam
além de qualquer competição, como por exemplo as famílias dos che­
fes que reclamam para si uma origem divina), tudo se passa como se as
coisas preciosas dadas e recebidas no potlatch (e os próprios potlatchs)
tivessem uma existência autônoma, que faria com que se deslocassem
num movimento sem fim, arrastando com elas os seres humanos que
de sujeitos se transformariam em objetos e se veriam submetidos, do­
minados por esta ronda de riquezas que eles mesmos acionaram.
Tais processos nada têm de excepcional. O mesmo acontece em
nossas sociedades mercantis, capitalistas, nas quais a riqueza consiste
principalmente em signos monetários e nas quais o dinheiro acumula­
do é sempre produto, em última análise, da produção, seguida da venda
e da compra de todos os tipos de mercadorias. Sejam estas mercadorias
materiais ou imateriais, digam respeito aos meios de produção, de con­
sumo ou de destruição, a subsistência ou a força de trabalho das pessoas,
os serviços de um sacerdote ou aqueles de uma prostituta, a realidade

I 145Ibid., p. 275.

10 8
O ENIGMA DO DOM

concreta, particular, de cada mercadoria só têm importância na medi­


da em que seu uso é o suporte de um valor de troca e este valor se
transforme em dinheiro que produz dinheiro, em capital.
Em nossas sociedades também se podem observar, a cada dia, fenô­
menos do mesmo tipo. Na história, uma vez posta em marcha a engre­
nagem que torna possível e necessária a acumulação do capital, a
transformação permanente das mercadorias e do dinheiro em capital e
vice-versa, não é mais possível interromper-se por muito tempo, e ainda
menos definitivamente, a circulação de mercadorias e de dinheiro. O
sistema se reproduz “sozinho”. Tudo se passa, portanto, como se o di­
nheiro circulasse por si só e gerasse capitais e mercadorias que, por sua
vez, produziriam mercadorias e capitais. Estamos, com diz Sraffa, “em
um mundo no qual as mercadorias produzem mercadorias por intermé­
dio de mercadorias146”. Marx escreve coisas definitivas sobre o “tudo se
passa como se”. Mas os dois mundos, aquele dos dons e aquele das
mercadorias, são realmente comparáveis. Ao fetichismo dos objetos dos
dons corresponde o fetichismo das mercadorias, e ao fetichismo dos
objetos sagrados corresponde aquele do dinheiro funcionando como
capital, como valor dotado do poder de gerar valor por si mesmo, como
dinheiro capaz de gerar dinheiro. Eis a mitologia do capital.
Mas devemos levar mais longe a comparação e examinar as diferen­
tes formas de consciência que existem numa economia dominada pela
troca de dons e numa economia dominada pelo mercado, em que a força
de trabalho intelectual e manual é, ela mesma, uma mercadoria147. Nas
sociedades dominadas pela obrigação de dar (e, no caso das sociedades

H'iPietro Sraffa, Production o f Commodities by Means o f Commodities: Prelude to


a Critique ofE conom ic Tbeory, Cambridge, Cambridge University Press, 1960.
147Diversamente de Marilyn Strathern (The Gender o f the Gift, Berkeley, University
of Califórnia Press, 1988), pensamos que as relações comerciais coexistem há séculos
com as trocas de dons nas sociedades analisadas por Mauss e que, inversamente, o
dom continua a ser largamente praticado nas economias de mercado. Não transfor­
mamos as sociedades melanésias, que seriam as sociedades de “dom”, e a sociedade
ocidental, que seria uma sociedade de “mercadorias”, em uma oposição de “essência”.

10 9
MAURICE GODELIER

com potlatch, pela obrigação de entregar-se a uma competição de dons),


são as coisas que, finalmente, parecem ocupar o lugar das pessoas, são
os objetos que se comportam como sujeitos. Nas sociedades domina­
das pela obrigação de vender e de fazer dinheiro, lucro, fazendo con­
corrência na venda de bens e de serviços, são as pessoas que, até um
certo ponto, são tratadas como coisas. Mas nos dois casos ocorreu um
processo idêntico: em cada um deles as relações reais dos homens com
os objetos que eles produzem, que eles trocam (ou guardam para si),
apagaram-se, desapareceram de suas consciências e outras forças, ou­
tros atores — estes imaginários — tomaram seus lugares e substituí­
ram-se aos homens, que são sua origem.
Mesmo se as coisas sagradas, que não podem ser dadas, e os obje­
tos preciosos, que o podem, parecem habitados por um espírito que
faz com que se movam, mesmo se as mercadorias têm um valor de tro­
ca, um preço cujas flutuações escapam à consciência e ao controle da­
queles que as produzem ou consomem, estamos, nos dois casos, diante
de universos produzidos pelo homem, mas que se afastaram dele e se
povoaram de duplos fantasmáticos dele mesmo, duplos estes que mui­
tas vezes são benevolentes e vêm em sua ajuda, e muitas vezes também
o esmagam, mas em qualquer caso o dominam.
Mostramos em outra ocasião148, e voltaremos a isto na conclusão,
que esta produção de seres fantasmáticos dominando os humanos está
na origem distante das classes e das castas, e que é ela que explica por
que as pessoas concordam em trabalhar ou em partilhar os produtos
de seu trabalho com aqueles dentre eles que parecem mais próximos
dos deuses, dos espíritos que trazem abundância ou desgraça, dos sa­
cerdotes, dos chefes amigos ou parentes dos deuses. Nas sociedades
em que dominam as relações pessoais, estas relações não são mais trans­
parentes do que as relações impessoais nas sociedades de mercado ou
burocrático-estatais descritas por Max Weber. Sua opacidade é dife­
rente, pois entre os indivíduos e os grupos se interpõem sem cessar os

I 148Maurice Godelier, UIdéel et le Matériel, Paris, Fayard, 1984.

110
0 ENIGMA DO DOM

seres que povoam suas crenças, os deuses, os espíritos, os ancestrais,


benevolentes ou agressivos, nutridores ou canibais, aos quais é preci­
so, sem cessar, oferecer preces, fazer oferendas, quiçá realizar sacrifí­
cios. É difícil para um antropólogo acreditar que, nas sociedades em
que as relações entre os indivíduos e entre os grupos são de pessoa a
pessoa e em que uma grande parte das trocas não são comerciais, estas
relações sejam menos mistificadoras e mais “transparentes” porque são
pessoais. É, no entanto, o que Marx sugeriu várias vezes em O capi­
tal'*9. Nós não concordamos com ele neste ponto.
Voltaremos ainda uma vez ao conteúdo imaginário e simbólico das
coisas dadas, dos objetos de dom e de contradom. Para que “funcio­
ne”, é preciso que haja na coisa dada mais que um dom de um ao ou­
tro. É preciso que ela contenha algo que apareça para o doador, assim
como para o donatário e para todos aqueles que a receberão em segui­
da, é preciso, então, que ela apareça para todos os membros da socie­
dade — que, portanto, devem partilhar de antemão esta representação
— como um meio cuja posse, mesmo temporária, é necessária para
continuar a existir, a produzir ou reproduzir relações sociais que per­
mitam que os indivíduos, assim como os grupos, clãs, famílias, confra­
rias, sociedades secretas etc. continuem a fazer parte de sua sociedade.
Logo, é necessário — e Mauss o havia pressentido, sugerido sem ana­
lisar mais de perto — que a coisa dada contenha mais que a “perma­
nência de influência”, que a presença daquele que a ofertou. É preciso
que ela contenha a m ais algo que pareça, para todos os membros da

H,Jean Lojkine (“Mauss et l’lEssai sur le don’”, art. cit., p. 153-154) foi também
um dos poucos a sublinhar que a reciprocidade “não comercial” não significava
transparência e que existia um “fetichismo não comercial”, do qual o podatch é
um exemplo perfeito. Jean Lojkine mostra claramente que M arx não viu isso
quando escreveu: “Cada servo sob corvéia sabe muito bem, sem precisar recorrer
a um Adam Smith, que é uma quantidade determinada de sua força de trabalho
pessoal que ele despende a serviço de seu senhor. O dízimo a fornecer ao padre é
mais claro que a bênção do padre.” E cabe a Lojkine acrescentar: “Como explicar
então a força da religião [...] assim como o caráter sagrado do poder real?”

111
MAURICE GODELIER

sociedade, indispensável para sua existência, algo que deve circular entre
eles para que todos e cada um possam continuar a existir.
Ora, este algo mais que os objetos dados devem ter, eles o parti­
lham com os objetos sagrados que, estes, não circulam. Este algo mais,
Mauss o chamou de alma, espírito, fonte de riqueza e de abundância,
de vida. É aqui, portanto, que o problema se complica. Como inter­
pretar os dons preciosos que circulam reconhecendo, ao mesmo tempo,
seu parentesco com os objetos sagrados que não circulam? Desenvol­
veremos mais longamente este ponto na segunda parte da obra; aqui
nos contentaremos em apresentar nossa hipótese.
Os objetos preciosos que circulam nàs trocas de dons só podem
fazê-lo porque são duplos substitutos: substitutos dos objetos sagrados
e substitutos dos seres humanos. Como os primeiros, eles são inalie­
náveis, mas, à diferença dos objetos sagrados que não circulam, eles
circulam. Não apenas nos potlatchs, nas trocas (competitivas) de ri­
quezas contra riquezas, mas igualmente por ocasião dos casamentos,
dos falecimentos, das iniciações, em que funcionam como substitutos
dos seres humanos, dos quais “compensam” a vida (casamento) ou a
morte (de um guerreiro ou mesmo de um inimigo morto no campo de
batalha).
Substitutos das coisas sagradas e dos seres sobrenaturais que nelas
vivem, nelas estão presentes, eles também são substitutos dos seres
humanos, de sua substância, de seus ossos, de sua carne, de seus atri­
butos, de seus títulos, de sua categoria, de suas posses materiais e
imateriais. É por isso que podem tom ar o lugar dos homens e das coi­
sas em todas as circunstâncias em que for necessário desloca-los ou
substituí-los para produzir novas relações sociais de poder, de paren­
tesco, de iniciação etc. entre os indivíduos e entre os grupos ou, mais
simplesmente, para reproduzir as antigas, prolongá-las, conservá-las.
É esta dupla natureza dos objetos preciosos que os torna difíceis de
definir, e logo de pensar, em um mundo em que as coisas são separa­
das das pessoas. É ela também que nos permite compreender por que
esses objetos funcionam como moeda sem sê-lo plenamente e perceber

112
O ENIGMA DO DOM

que já o fizeram muitas vezes despojando-se de uma grande parte de


suas funções e transformando-se em instrumento impessoal do desen­
volvimento de relações comerciais impessoais, instrumento que só cir­
cula estampilhado, marcado pelo selo da instituição que representa a
comunidade como um todo, que é fonte do poder e da lei, o Estado150.
O leitor já deve ter compreendido por que teve de aceitar alguns
desvios para compreender as análises que Mauss dedicou ao potlatch.
Para nós, não se tratava simplesmente de fazer emergir a riqueza pro­
fusa de um texto complexo, carregado de fatos importantes dissimula­
dos em notas e abrindo-se incessantemente para novas questões, mas,
antes, de deixar claro que o potlatch é o fato etnográfico que Mauss
empurrou para o primeiro plano, mais que o kula, outro fato etnográfico
que ele também privilegiou. Foi porque o potlatch pareceu-lhe ser a
forma ao mesmo tempo extrema e suprema de prestação total que
Mauss fez dele o ponto de partida de seu exame do kula e de outros
fatos semelhantes, e que se voltou em seguida para a história antiga,
tentando reinterpretar os direitos e as economias antigos da Europa,

150A moeda é, de certa maneira, um substituto tanto dos objetos sagrados quanto
dos objetos preciosos que originalmente são, eles mesmos, os primeiros, os subs­
titutos dos deuses e os segundos, dos homens. O jogo dos substitutos pode seguir
até bem mais longe. Um exemplo notável é o das moedas de oferenda da religião
chinesa, papéis impressos como moedas e que se queimam em recipientes rituais
no interior da casa, em oferenda às divindades protetoras. As moedas de oferenda
são divididas em moedas de ouro (queimadas para as divindades celestes) e moe­
das de prata (queimadas para os espíritos nefastos e os manes residentes no infer­
no). Estas moedas são utilizadas pelos simples crentes por iniciativa própria. Além
disso, existem as “moedas de tesouraria” e as “moedas para solucionar as crises”.
Seu uso requer especialistas. Estas moedas foram objeto de um notável estudo de
Hou (Ching-Lang) (Monnaies d ’offrande et la notion de trésorerie dans la religion
cbinoise, Paris, PUF-Maisonneuve, 1975). Por trás dessas práticas, está a idéia de
um capital de vida e de felicidade, pelo qual o indivíduo fica em dívida, desde o
seu nascimento, para com a tesouraria, espécie de banco com duas contas — uma
celeste, outra infernal — que gerencia as relações dos humanos com os espíritos e
os deuses. Voltaremos a este tema na conclusão desta obra, quando aludiremos ao
Rig Veda e à noção de divida de vida na índia.

113
MAURICE GODELIER

esforçando-se então para remontar até o “antiqüíssimo direito roma­


no151”, antes que nele aparecesse o princípio da distinção entre direi­
tos pessoais e direitos reais152.
E é pela mesma razão que ele interroga o direito celta e o direito
germânico que, este último, teria permanecido vivo no seio do cam­
pesinato ao longo de toda a época feudal, pois, para Mauss, “a civiliza­
ção germânica [...] havia desenvolvido, bem anteriormente, todo o
sistema do potlatch e sobretudo todo o sistema dos dons153”. Assim
também, ele voltou-se para o antigo direito hindu porque, a seus olhos,
“a índia antiga, imediatamente após a colonização ariana, era dupla­
mente um país de potlatch154”. Duplamente, na medida em que os aria­
nos, segundo Mauss, conheciam o potlatch antes de chegarem à índia,
onde os dois grandes grupos de tribos que formavam o substrato da
população autóctone (as tribos tibeto-birmanesas e as tribos mundas)
também o conheciam.
O potlatch é assim o paradigma central da obra, embora seja tam­
bém o lugar onde se concentraram as dificuldades teóricas. Por conse­
guinte, é aí que poderiam ser mais bem percebidos, trazidos à luz, a
força e os limites da abordagem de Mauss e de seus conceitos. Ora,
pareceu-nos que tudo girava em torno da interpretação da natureza
dos objetos preciosos que circulam nos dons, e o bloqueio deveu-se ao
fato de que Mauss não procurou aproximar os objetos sagrados que
não circulam dos objetos preciosos que circulam para pensá-los em um
mesmo quadro teórico. Esta crítica não tem como objetivo negar uma
obra imensa. Busca apenas desconstruí-la, sem dissolvê-la sob as críti­
cas, para reconstruí-la e completá-la, seja prosseguindo nas mesmas
direções, quando for possível, seja deslocando os problemas para abrir
novas vias e continuar avançando.

151Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 238.


m Ibid., p. 229.
15iIbid., p. 251.
I5,lbid., p. 2 4 1 .

1 14
O ENIGMA DO DOM

No entanto, não podemos deixar o potlatch sem mencionar duas


críticas que foram dirigidas a Mauss. Uma nos parece fundada, a outra
um pouco menos. A primeira reprova ao sábio não ter dado atenção à
existência de elementos de exploração nas relações entre a aristocra­
cia, a nobreza dos clãs e a massa das pessoas comuns. Ele emprega o
termo “feudal” para designar este tipo de sociedade. Fala de “prínci­
pes”, de “vassalos”, de “paladinos”155. Em outra ocasião, ele chega a
evocar “classes feudais”, precisando (o que pouco corresponde ao feu­
dalismo ocidental) que elas eram, no entanto, “recortadas pelos clãs e
fratrias”156. Ele fala mesmo de potlatch “de classe a classe”, mas não
diz mais nada. Mauss não era o único a recorrer ao vocabulário da
feudalidade ocidental para descrever sociedades exóticas onde aristo­
cracias reinam. Este eurocentrismo era partilhado por todos os tipos
de autores, tanto os que invocavam o marxismo quanto os que tinham
uma visão mais clássica da história. Mas não é uma questão de vocabu­
lário que se reprova em Mauss, é o fato de que ele nada disse sobre as
antecipações pagas em trabalho, em bens de subsistência e em bens
preciosos praticadas pelos chefes de clã contra os membros de linha­
gens não-nobres que eram sua base. Mas de onde vinham estes chefes
e esta aristocracia? Parece que se era chefe ou se era nobre em razão da
posição genealógica da própria linhagem no clã. O chefe pertencia, por
exemplo, à linhagem dos descendentes diretos do filho mais velho do
ancestral fundador do clã. As outras linhagens, apesar de seus laços de
parentesco com a do chefe, compunham a massa das pessoas do povo.
Era o chefe quem dominava o potlatch em nome do clã e quem arreca­
dava tanto os alimentos para os festins, quanto os bens preciosos que
dava aos chefes dos outros clãs convidados.
Mas nestas sociedades, ao lado da massa das pessoas do povo ha­
via também os escravos, dos quais Mauss praticamente não fala. Ele
simplesmente faz várias alusões ao fato de que entre os tlingits o va­

155Ibid., p. 269.
15<Ibid., p. 208, nota 3.

1 1 5
MAURICE GODELIER

lor dos cobres se contava em número de escravos157, que às vezes eram


levados à morte nos potlatchs158 ou, enfim, que se organizavam
potlatchs para readquirir um parente prisioneiro, evitando sua escravi-
zação e restabelecendo o “nome” da família159. Em suma, nestas socie­
dades realmente existiam relações de dominação e de exploração que
foram sublinhadas por vários autores160. Parece-nos que o silêncio de
Mauss ficaria explicado se nos reportássemos à conclusão geral de
seu ensaio.
Mauss, por um lado, confessa que não teve tempo para “tentar per­
ceber o âmago morfológico de todos os fatos indicados161”, o que signi­
fica que ele não conseguiu captar o funcionamento interno dos grupos
que se dedicavam ao potlatch. Mas, por outro lado, ele insiste na idéia
de que a sociedade ocidental do século X X , embora tenha sido obrigada
a adotar princípios novos para se desenvolver, volta a princípios antigos
e, sobretudo, volta aos “costumes das despesas nobres161”. O que signifi­
ca para Mauss a nobreza de uma despesa? E uma despesa feita por no­
bres obedecendo, porém, a uma noção de interesse e utilidade que

não se apresenta do modo como funciona em nosso espírito. Se algum


motivo equivalente anima chefes das Trobriand ou americanos [...] ou
animava outrora generais hindus, nobres germanos ou celtas em seus
dons e gastos, este não era a fria razão do comerciante, do banqueiro
ou do capitalista [...] entesoura-se sim, mas para gastar, para ‘obrigar’,
para ter ‘homens avassalados’. Troca-se, mas sobretudo coisas de luxo
[...] ou coisas imediatamente consumíveis, de festins163.

l,7Ibid., p. 223, nota 3.


ls8Ibid., ESD, p. 167.
*’9Ibid., p. 207, nota 3.
l60Por exemplo, Alain Testart, Les Chasseurs-Cueilleurs ou 1’origtne des inégalités,
Paris, Société d’ethnographie, 1982.
“ 'Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 277.
162Ibid., p. 262. Grifo de Mauss.
1<i3Ibid., p. 270.

116
0 ENIGMA 00 DOM

E compreende-se a intenção de Mauss quando se lê esta sua des­


crição do homem rico ocidental:

Seus gastos em luxo, em arte, em loucuras, em servidores, não fazem


com que se pareça com os nobres de outrora ou com os chefes bárba­
ros, dos quais descrevemos os costumes164?

Para nós, foi o desejo de ver “de novo os ricos voltarem, livre e
também forçosamente, a se considerar como espécies de tesoureiros
de seus concidadãos165” que impediu um exame mais preciso das rela­
ções que existiam entre as “classes feudais” das sociedades do Noroes­
te americano e a massa das pessoas do povo.
A segunda crítica que foi feita a Mauss foi de não ter tido consciência
clara do caráter anormal do potlatch que Boas havia observado no
começo do século, um potlatch “enlouquecido”, cada vez mais agres­
sivo depois dos abalos que a presença e as pressões dos europeus ti­
nham gerado na sociedade índia da costa noroeste.
A hipótese de que o potlatch observado por Boas tenha sido com­
pletamente alterado foi avançada há muito tempo por etnólogos como
Barnett166, antes dele por Curtis, e parece, hoje em dia, confirmada em
todos os pontos.
Vamos resumir brevemente os abalos conhecidos por estas socie­
dades, em particular os kwakiutls. Seus primeiros contatos com os
europeus remontam ao fim do século XVIII, por volta de 1780. Na
época, os kwakiutls eram uma vintena de tribos que viviam da pesca,
da caça e da colheita. Sua economia e sua tecnologia eram caracteriza­
das por um alto grau de produtividade. Cada tribo reunia-se no inver­
no em uma aldeia dividida em bairros, habitados cada um por um
numaym, grupo de parentesco que Boas chamou, com reservas, de “clã”

1<4Ibid., p. 272.
'«Ibid., p. 262.
'“ Homer G. Barnett, “The Nature of the Potlatch”, American Anthropologist, n°
40, 1938, p. 349-358.

1 1 7
MAURICE GODELIER

mas que se assemelha mais ao que Lévy-Strauss chamou em seguida de


“casas”167. Cada numaym era ao mesmo tempo uma unidade resi­
dencial, econômica e política, pois o grupo possuía em comum os di­
reitos sobre os locais de pesca, caça e colheita, e possuía riquezas
imateriais, brasões, categorias etc. No interior do numaym, um certo
número de linhagens eram consideradas nobres e eram elas que repre­
sentavam seu clã nos potlatchs.
No curso do século X IX , três séries de fatos abalaram a estrutura
destas sociedades. A população caiu em 75% depois da introdução de
novas doenças e de epidemias. Passou-se de uma economia de caça e
pesca (que permitia a acumulação de excedentes muito importantes) a
uma economia colonial, de comércio, que levou à importação de gran­
des quantidades de bens manufaturados. Sobre esta base, formou-se
uma classe de novos-ricos que contestaram a posição e o poder dos
chefes tradicionais. Enfim, os europeus impuseram o término das guer­
ras tribais, fizeram cessar as capturas e vendas de escravos, e a socieda­
de viu-se diante de numerosos títulos e posições desocupados e de uma
multiplicação dos novos-ricos que puderam, graças às suas riquezas,
apresentar-se na arena do potlatch, do qual eram tradicionalmente
excluídos.
Antes desses abalos, o potlatch parecia ter como objetivo sobretu­
do a validação da transmissão pública de posições e de privilégios já
adquiridos. Um chefe que quisesse transmitir sua posição a seu filho
convidava os chefes de outros numaym da tribo e procedia a uma dis­
tribuição pública de bens preciosos e de bens de subsistência, cuja acei­
tação pelos outros chefes eqüivalia ao reconhecimento público da
transmissão do título. Com certeza acontecia às vezes uma competição
entre dois ou três candidatos a um mesmo título ou a uma mesma

l67De fato, um autor como Kirchoff já havia esboçado um modelo deste tipo de
organização social, aproximando-o dos grupos de parentesco dos reinos polinésios,
os kainga. O artigo de Marie Mauzé “Boas, les Kwakiutl et le potlatch: éléments
pour une réévaluation”, LHom m e, XXVI, n° 4, outubro-dezembro de 1986, re­
sume com clareza o que sabemos sobre sua organização social.

118
O ENIGMA DO DOM

função, e os potlatchs de dons e contradons tornavam-se então o meio


para escolher entre os candidatos. Mas o potlatch tinha um caráter bem
menos antagonista, e parece mesmo que as posições de maior prestí­
gio da época pré-colonial eram transmitidas fora do potlatch (o que
Mauss, aliás, observou).
Foi no fim do século X IX que estas estruturas se abalaram e os
potlatchs, em lugar de servirem principalmente para validar posições
adquiridas, transformaram-se em um modo sistemático de acesso a
novas posições. Isto em um contexto de grande número de posições
vagas e de aumento do poderio dos novos-ricos. Segundo Marie Mauzé,
estas alterações do potlatch tomaram duas direções. Primeiro uma
individualização cada vez mais marcada, com os novos-ricos, ajudados
por sua famílias e por alguns devedores, lançando-se no potlatch, ao
passo que outrora isto cabia a um chefe apoiado por todo o seu clã,
nobres e gente do povo. E, por outro lado, uma radicalização da com­
petição, envolvendo tribos inteiras num contexto em que as guerras
eram proibidas. Impôs-se entre as tribos uma nova hierarquia baseada
na riqueza, ao mesmo tempo em que era criada uma nova sociedade,
dita “da ordem das águias”, que reunia “aqueles que seriam servidos
em primeiro lugar” e onde se encontraram, juntos, os antigos chefes e
os novos-ricos.
Foi neste contexto que o potlatch se exaltou, enlouqueceu (aliás,
foi justamente esta loucura que tanto fascinou Georges Bataille no
potlatch'68). Os europeus, missionários, agentes do governo, logo
sentiram-se constrangidos por estas competições de dons, que con­
sideravam excessivas, dilapidações descontroladas. Em 1884, o
potlatch foi proibido por uma lei que fora apresentada como emen­
da ao Indian Act de 1 8 7 6 169. E foi neste contexto de críticas e acu­
sações contra o potlatch trazidas pelos europeus que Boas, para

“ "Georges Bataille, La Part maudite, Paris, Ed. de Minuit, 1967.


‘‘‘'Marie Mauzé, “La loi anti-potlatch chez les Kwagul”, Buletin de VAtnérique
indienne, n° 29, 1983, p. 3-5, 9-11, 30-31.

1 19
MAURICE GODELIER

convencê-los de que o potlatch não era um costume irracional, es­


creveu seu célebre texto, citado e emendado por Mauss para expli­
car que os índios faziam como os brancos e investiam seu capital
para que frutificasse, assegurando assim o futuro de seus filhos.
Tratava-se de travestir, por bons motivos, o funcionamento do
potlatch. Na língua kwakiutl havia, parece, dois termos diferentes
para designar os dons. O termo yaqw a designava as trocas de dons
praticamente equivalentes e o termo p ’asa significava algo como
“dar, mas achatando, esmagando o nome de um rival, do donatário”.
Os abalos do século X IX teriam levado progressivamente à multi­
plicação dos dons p ’asa em relação aos yaqw a.
Em suas análises do potlatch, Mauss não teria considerado todo
este contexto histórico. E destacando o caráter agonístico do potlatch,
teria privilegiado uma forma historicamente tardia e patológica desta
instituição. Entretanto, Mauss não ignorava a irrupção maciça de bens
europeus nos potlatchs. Podemos vê-lo dando-se ao trabalho de copiar
meticulosamente o valor do famoso cobre lesaxalayo, pertencente ao
“príncipe” Laqwagila, e de acrescentar simplesmente como comentá­
rio que Boas havia “percebido bem o m odo com o cada cobre aum enta
seu valor com a série de potlatchs”, mas sem espantar-se com a enorme
quantidade de bens manufaturados europeus (fonógrafos, máquinas de
costura, cobertores de lã) que figuram nestas listas e, conseqüentemente,
com o valor que representam em dólares170.
Parece, com efeito, que Mauss mostrou-se sensível não às trans­
formações brutais acumuladas no século X IX , mas antes à continuida­
de do potlatch, com o fato de que depois de dois séculos de contato
com os europeus as transferências de riquezas entre os índios não passa­

170Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 223, nota 3: “O sr. Boas estudou
bem o modo como cada cobre aumenta seu valor com a série de potlatchs; assim,
o valor atual do cobre lesaxalayo era, por volta de 1906-1910, de 9.0 0 0 coberto­
res de lã, valor de 4 dólares cada um, 50 canoas, 6.0 0 0 mantas com botões, 260
braceletes de prata, 60 braceletes de ouro, 70 brincos de ouro, 4 0 máquinas de
costura, 25 fonógrafos, 50 máscaras.”

120
0 ENIGMA DO DOM

vam pelo mercado, mas continuavam a dar-se “nas form as solenes do


p otla tch 17'”. Aliás, Mauss insiste repetidas vezes no fato de que os
documentos mais antigos ainda são os mais preciosos para reconstituir
a lógica do potlatch, o que significa plena concordância com os co­
mentaristas de hoje. E ele chegou mesmo a sugerir que o potlatch, em
suas formas antigas, era provavelmente menos agonístico e mais pró­
ximo da lógica das prestações totais, isto é, de uma troca de dons equi­
valentes, que no tempo de Boas172. Esta nota escapou, evidentemente,
à maioria dos analistas que, ao contrário, criticam Mauss por ter
aceitado com muita facilidade a interpretação de Boas para o potlatch.
São os mesmos problemas que iremos encontrar na análise do se­
gundo exemplo etnográfico de potlatch privilegiado por Mauss, o kula
praticado nas sociedades do nordeste de Papua-Nova Guiné.

O ku la (um ex em p lo m elan ésio de p otla tch , segundo Mauss)

Examinemos agora, bem mais rapidamente porém, o segundo grande


exemplo etnográfico sobre o qual Mauss construiu sua teoria: o kula
melanésio. “O k u la ”, escreveu Mauss, “é uma espécie de grande
potlatch173”, um “sistema de comércio intertribal e intratribal174” que
associa um grande número de sociedades das ilhas do nordeste da Nova

171Ibid., p. 194: “Mesmo depois de um longo contato com os europeus — com os


russos desde o século XVIII e com os caçadores canadenses franceses desde o sé­
culo X IX — , não me parece que nenhuma das consideráveis transferências de ri­
quezas que aí se operam constantemente se faça de maneira diversa das formas
solenes do potlatch.”
172Ibid., p. 2 13: “Pelo menos em regiões de fratrias [...] entre os haidas e tlingits,
restam importantes vestígios da antiga prestação total [...] presentes são trocados
a propósito de tudo, de cada serviço, e tudo é retribuído ulteriormente ou mesmo
na hora, para ser redistribuído imediatamente [...] os velhos autores não descre­
vem o potlatch em outros termos, de tal forma que podemos nos perguntar se ele
constitui uma instituição distinta.”
I73Ibid., p. 176.
174Ibid., p. 175.

12 1
MAURICE GODELIER

Guiné. Em 1925, Mauss tinha conhecimento há vários anos das pri­


meiras publicações de Malinowski, mas ele se apoiava sobretudo na
primeira grande obra deste último, Argonauts o f the Western Pacific,
que fora publicada em 1922, em Londres. Mauss a tinha lido imedia­
tamente e não disfarça, no “Essai”, a sua admiração pelo autor. Este
livro, indiscutivelmente “um dos melhores de sociologia descritiva”,
trata “precisamente do tema que o interessa”175. Mauss não hesita em
escrever que “no estado atual da observação, de nossos conhecimen­
tos históricos, jurídicos e econômicos, seria difícil encontrar uma prá­
tica de dom-troca mais clara, mais completa, mais consciente e, por
outro lado, mais bem compreendida pelo observador que a registra do
que aquela que o sr. Malinowski encontrou nas Trobriand176”. Seu livro
“mostra a superioridade da observação de um verdadeiro sociólogo177”.
Esta admiração pelo trabalho de campo de Malinowski e por seus
esforços no plano teórico mais geral para “derrubar as doutrinas cor­
rentes sobre a economia ‘primitiva’ ‘supostamente natural’”178, isto é,
sem troca comercial, sem moeda etc., não impede Mauss, que há anos
acumulava e comparava dados sobre as trocas de dom em dezenas de
sociedades, exóticas ou antigas, de escrever: “No entanto, o sr. Mali­
nowski exagera a novidade dos fatos que descreve. O kula, no fundo,
não é senão um potlatch intertribal de um tipo bastante comum na
Melanésia179.” Como Mauss interpretou, então, os dados recolhidos e
analisados por Malinowski durante uma permanência de vários anos
em Kiriwina, na ilhas Trobriand?
“Os habitantes das Trobriand”, diz Mauss, “hoje ricos pescadores
de pérolas e, antes da chegada dos europeus, ricos fabricantes de

175Ibid.
17íIbid., p. 185.
177Ibid., p. 185, nota 2. Mauss presta, aliás, a mesma homenagem a Turnwald,
que havia trabalhado com os banaros da Nova Guiné e com os buins das ilhas
Salomão.
178Ibid„ p. 266.
17,Ibid., p. 175.

122
O ENIGMA 00 DOM

cerâmicas, moedas de conchas, machados de pedra e de coisas precio­


sas [...] sempre foram bons comerciantes e ousados navegadores180”.
Mauss tem consciência da antiguidade da instituição do kula, sem ig­
norar as transformações a que foi submetida pela introdução da indús­
tria perlífera dos europeus. Ele também tem consciência de que as trocas
kula coexistem com todo um conjunto de trocas ligadas ao casamento,
às festas dos mortos, às iniciações, cuja “descrição falta em Malinowski”,
conforme constata, o que faz com que, diz ele, sua própria síntese “não
possa ser mais que provisória”181. Veremos mais adiante que nas ilhas
Trobriand o kula funcionava (e ainda funciona) de maneira muito pe­
culiar, separada de fato das trocas de dons e contradons ligadas ao ca­
samento, aos funerais e às iniciações. Portanto, o kula que Malinowski
descreve, e que inspirou Mauss, é antes uma exceção do que uma re­
gra entre as sociedades do kula-ring, do círculo do kula.
Eis como Mauss descreve o kula: “O comércio kula é de ordem
nobre. Parece ser reservado aos chefes” e “é exercido de forma nobre,
em aparência puramente desinteressada e modesta”182. Se lembrar­
mos nossa análise do potlatch, podemos compreender que rapidamen­
te Mauss percebeu semelhanças entre o kula e o potlatch: trocas
praticadas pelos chefes, trocas aparentemente desinteressadas, mas a
serviço do renome dos doadores, trocas em que reina a rivalidade entre
indivíduos sequiosos de receber como dom o mesmo objeto precio­
so, atos de doação que, como no potlatch, “ostentam formas bastan­
te solenes183”.
Mauss ressalta em seguida que o potlatch faz parte de um vasto
sistema de prestações e contraprestações, do qual ele talvez seja tão-
somente “o ponto culminante, um momento, o mais solene184”. Ele

180Ibid., p. 176.
«'Ibid., p. 175.
182Ibid., p. 176.
183Ibid., p. 177.
1S4Ibid., p. 185.

1 2 3
MAURICE GODELIER

cita, seguindo Malinowski, as trocas de mercadorias (gim w ali), as


permutas entre as tribos que são objeto de “pechincha [...] indigna
do k u la m ”. Menciona também os sagali, grandes distribuições de
alimentos por ocasião do lançamento de uma nova embarcação ou
da construção de uma nova casa. Mas ele não se demora muito tempo
no assunto. Apenas o kula o interessa, e nele, mesmo sabendo que
esta forma de troca faz circular vários tipos de objetos, Mauss li­
gou-se particularmente aos movimentos dos vaygu’a , os braceletes
e colares de conchas, porque, a seus olhos, é “o objeto essencial
dessas trocas-doações186”. Ele resume o princípio que os rege. Os
braceletes (m w ali) circulam de oeste para leste e os colares (sou lava)
de leste para oeste187. A originalidade do jogo é que um bracelete
nunca pode ser trocado por um bracelete, e um colar por um colar.
Um bracelete é trocado por um colar, um colar por um bracelete,
com a condição de que os dois sejam da mesma categoria e de valor
equivalente.
Mauss não utiliza o termo “categoria”, mas sim “valor”. Ora, os
dois termos são necessários para descrever a natureza desses objetos.
Pois — e isso foi deixado à margem tanto da análise de Malinowski
quanto da de Mauss — , no início, o vaygu’a era fabricado e em se­
guida trocado por outros bens (porcos etc.), hoje por dinheiro. Um
bracelete ou um colar tem, no início, um valor de troca. Quando
penetra no ku la, ele toma lugar em uma certa categoria na hierarquia
dos bens kula. No seio dessa hierarquia, os braceletes e os colares,
objetos feitos de conchas, são em geral de uma categoria superior à
dos porcos e das espátulas em bétele esculpidas e os próprios objetos
de conchas são hierarquizados em categorias distintas. Não se podem
trocar dez conchas pequenas por uma grande, e sobretudo por uma

185Ibid., p. 177.
lí6Ibid., p. 178.
1,7Pelo menos na época de Malinowski, parece, pois hoje é o inverso, sem que se
saiba bem quando e por que se produziu tal mudança.

124
O ENIGMA 00 DOM

grande concha que já circulou durante uma geração pelas rotas do


ku la, que tem um nome e está carregada de todas as identidades da­
queles que a possuíram.
Feita esta observação, como Mauss descreve os vaygu'a? Outra
vez, a sombra do potlatch está presente. “Os vaygu’a não são coisas
indiferentes, simples peças de moeda. Cada um, pelo menos os mais
caros e os mais cobiçados [...], tem um nome, uma personalidade,
uma história, mesmo um romance188.” Em outro trecho, Mauss de­
fine que, além disso, tais objetos têm um sexo, sendo os braceletes
do sexo feminino, os colares do sexo masculino. Todo o movimen­
to do ku la se apresenta como a busca, por parte de um objeto
sexuado, de um parceiro do sexo oposto, e seu encontro é repre­
sentado no imaginário dos habitantes das Trobriand como equiva­
lente a um casamento. “Uma expressão simbólica [do kula] é a do
casamento dos m w ali, braceletes, símbolos fem ininos, com os
soulava, colares, símbolos masculinos, que tendem um para o outro,
como o macho para a fêmea189.”
Espera-se, portanto, que os vaygu’a tenham, como os cobres do
potlatch, um espírito, uma alma. “Não apenas os braceletes e colares,
mas todos os bens [...] tudo aquilo que pertence aos parceiros é tão
animado, pelo menos por sentimentos, senão por uma alma pessoal,
que eles próprios participam do contrato190.” Mas Mauss não ousa ir
mais longe e concede que “não é possível dizer que eles são realmente
objeto de um culto, pois a gente das Trobriand é positivista a seu modo.
No entanto, não é possível deixar de reconhecer sua natureza eminen­
te e sagrada191”. Adivinha-se que Mauss bem gostaria que os objetos

188Ibid„ p. 180.
I8,lbid., p. 183. Em outra ocasião, Mauss cita Malinowski, que se referia aos co­
mentários sobre o kula feitos pelos habitantes de Dobu, comparando os bracele­
tes e os colares a cães que “vinham se cheirar” e “brincar, nariz contra nariz”.
'""Ibid., p. 181.
w Ibid.

1 2 5
MAURICE GODELIER

do ku la fossem habitados por um espírito (tal como o hau maori)


que faria com que se movessem para a própria origem. Mas ele con­
fessa:

O sr. Malinowski não encontrou razões míticas ou outras no sentido


dessa circulação [dos vaygu’a]. Seria muito importante estabelecê-las,
pois, se a razão estava em uma orientação qualquer destes objetos
tendendo a voltar a um ponto de origem e seguindo uma via de ori­
gem mítica, tal fato seria então prodigiosamente idêntico ao fato
polinésio, ao hau maori192.

Mauss talvez não tenha encontrado o hau nos objetos do ku la,


mas soube colocar em evidência a existência de vários pontos co­
muns entre a prática do kula e a do potlatch. Antes de mais nada, o
fato de que o objetivo principal dessas trocas de dons não é a
acumulação de riquezas, mâs o aumento da reputação, do prestí­
gio, o engrandecimento do nome do doador. Mas ele viu também
que esses dons traziam um suplemento de riqueza àqueles cuja
estratégia fosse coroada de sucesso, pois, para ter sucesso, é preciso
solicitar parceiros e ser solicitado por outros parceiros. É preciso
saber convencer, seduzir, esperar, fazer esperar, agradecer, e tudo
isso se faz acompanhar de presentes suplementares que se juntam
ao dom do vaygu’a principal lançado nas trocas. Nisso, o ku la se
parece com uma espécie de potlatch. Mas também em razão da
“extraordinária com petição193” que reina entre os parceiros que
cobiçam o mesmo objeto. E esta rivalidade pela reputação ultrapassa
o círculo estreito da aldeia ou da tribo daqueles que se lançam no
ku la. “Todo kula intertribal é apenas o caso exagerado, o mais sole­
ne, o mais dramático, de um sistema mais geral. Ele tira a própria
tribo, por inteiro, do círculo estreito de suas fronteiras, mas no

192Ibid„ p. 179.
I,3Ibid., p. 186.

12 6
O ENIGMA DO DOM

interior, normalmente os clãs, as aldeias são ligados por laços de


mesmo tipo194.”
Mauss sublinhou igualmente o fato de que a circulação dos vaygu'a
no círculo do kula não pode nunca se interromper:

Em princípio, a circulação desses signos de riqueza é incessante e infa­


lível. Não se deve guardá-los por muito tempo, nem ser lento, não se
pode ser duro ao desfazer-se deles, não se deve gratificar outra pessoa
que não os parceiros determinados em um sentido determinado, sen­
tido bracelete, sentido colar195.

E finalmente, Mauss viu-se de novo confrontado com a necessida­


de de definir que tipo de propriedade quem recebe um vaygu’a tem
sobre o objeto que lhe foi dado. Questão crucial que ele já havia en­
frentado ao analisar os objetos do potlatch. Ainda desta vez, ele multi­
plica as fórmulas aproximativas:

É certamente uma propriedade o que se tem sobre o presente rece­


bido. Mas é uma propriedade de um certo tipo. Poderíamos dizer
que ela participa de todos os tipos de princípios de direito que nós,
modernos, mantemos cuidadosamente isolados uns dos outros. É
uma propriedade e uma posse, uma garantia e uma coisa alugada, uma
coisa vendida e comprada e ao mesmo tempo depositada, mandatada
e fideicometida; pois ela só lhe é dada com a condição de que vai
usá-la para um outro ou transmiti-la a um terceiro, parceiro dis­
tante •**.

As pesquisas ulteriores, em particular as descobertas de Annette


Weiner e de Frederick Damon, permitiram responder a esta questão, o

1,4Ibid., p. 187.
m Ibid., p. 180.
I,(ílbid., p. 180.

12 7
MAURICE GODELIER

que não era possível com os dados fornecidos por Malinowski. E Mauss
teve consciência disso, o que é notável:

Sociologicamente, o que se expressa é mais uma vez a mistura de


coisas, valores, contratos e homens. Infelizmente, conhecemos mal
a regra de direito que domina tais transações. Ou bem ela é incons­
ciente e mal formulada pelas pessoas de Kiriwina, informantes do sr.
Malinowski, ou então, sendo ela clara para os habitantes das Tro­
briand, deveria ser objeto de uma nova pesquisa. Nós só dispomos
de detalhes197.

Palavras proféticas, pois foi precisamente o que se passou meio sé­


culo depois: novas pesquisas foram efetivamente realizadas a partir de
1970 e tiveram seqüência depois nas outras sociedades do kula-ring. Elas
permitiram descobrir esta regra tão clara para os habitantes das Trobriand,
mas obscura para o entendimento de Malinowski e de Mauss.
Parece, no entanto, que Mauss aceitou, sem acreditar muito, a
hipotése de que as coisas deveriam ser claras para os habitantes das
Trobriand. Ele os censura por empregarem “uma linguagem jurídica
um pouco pueril [...]. E difícil discernir em que grau todo este vocabu­
lário é complicado por uma estranha inaptidão para dividir e definir e
por estranhos refinamentos de nomenclatura198”. Ora, é a mesma crí­
tica que ele fará ao direito germânico, e que já tinha feito ao direito
dos kwakiutls, criticado pela “incapacidade de abstrair e de dividir seus
conceitos econômicos”. Certamente, há nesta apreciação negativa das
capacidades intelectuais dos melanésios o efeito de uma certa visão da
evolução da humanidade que coloca os povos ocidentais, pelo menos
suas elites, mais adiante na estrada do progresso. De fato, é necessário
precisar que esta visão da superioridade do Ocidente não parece refe­
rir-se aos campesinatos tradicionais da Europa que, aos olhos de Mauss,
levavam, ainda no século X IX , uma vida mais estritamente local, de

l,7Ibid., p. 184.
198Ibid., p. 191.

128
0 ENIGMA DO DOM

trocas econômicas e sociais mais limitadas do que aquelas que se po­


dem observar nas tribos melanésias ou do sul da Ásia199.
Mas Mauss, depois de ter posto em dúvida a capacidade de abstrair
dos melanésios, acrescenta esta estranha fórmula, que atenua (quiçá
contradiz) seu preconceito: “Eles, aliás, não precisavam disso200". En­
tão, por que criticá-los por não se terem dotado de conceitos que lhes
seriam inúteis? Mauss justifica-se avançando uma razão bastante ge­
ral, que demonstra uma visão especulativa e contestável da sociedade:

Nessas sociedades, nem o clã nem a família sabem se dissociar ou


dissociar seus atos; nem os próprios indivíduos, por mais influentes e
conscientes que sejam, conseguem compreender que é necessário que
se oponham uns aos outros e que é preciso que saibam dissociar seus
atos uns dos outros. O chefe se confunde com seu clã e este com ele:
os indivíduos só conseguem agir de um único modo.

O fato de que nessas sociedades o indivíduo seja, por toda a vida,


membro de um grupo de parentesco e que possua em comum com os
outros membros de seu grupo a terra ou outros recursos não significa
necessariamente que ele se confunda com os outros e não consiga

l9,“Em suma, todo o mundo das ilhas, e provavelmente uma parte do mundo da
Ásia meridional que lhe é aparentada, conhece um mesmo [?] sistema de direito e
de economia. A idéia que se deve fazer dessas tribos melanésias, ainda mais ricas
e comerciantes que os polinésios, é portanto muito diferente daquela que se faz
de ordinário. Essa gente tem uma economia extradoméstica e um sistema de tro­
cas muito desenvolvido, com ritmos mais intensos e precipitados, quem sabe, do
que aquele que nossos camponeses e que as aldeias de pescadores em nossas cos­
tas conheciam há talvez menos de cem anos, Eles têm uma extensa vida econômi­
ca que ultrapassa as fronteiras das ilhas e dos dialetos e um comércio considerável.
Ora, eles substituem rigorosamente o sistema de compras e vendas por dons da­
dos e restituídos.” Ibid., p. 192-193, grifo nosso. O que é muito interessante nes­
te texto é o modo como Mauss avança a idéia de que, nessas sociedades, as trocas
de dons são economicamente mais importantes e dinâmicas que as relações co­
merciais, que existem também.
200Ibid., p. 165.

12 9
MAURICE GODELIER

dissociar-se ou opor-se, mas deixemos passar. Enfim, há um último


aspecto do kula que Mauss percebeu mas, como já havia feito a propó­
sito dos grandes cobres dos kwakiutls, não deu maior importância.
Assim, ele escreve que certos vaygu'a são retirados do kula e ofereci­
dos aos deuses, aos espíritos201. Existiriam, portanto,

dois tipos de vaygu’a, os do kula e aqueles que Malinowski foi o pri­


meiro a chamar de vaygu‘a permanentes, aqueles que não são objeto
de trocas obrigatórias, [e que] são expostos e oferecidos aos espíritos
sobre uma plataforma idêntica à do chefe202.

Mauss, mais uma vez, se vê confrontado com a existência de duas


categorias de objetos que, mesmo sendo de igual natureza (conchas),
são, alguns, sagrados, propriedades inalienáveis do clã, da família, e
não circulam; outros, preciosos, são propriedade pessoal de um indi­
víduo e circulam nas trocas cerimoniais. E como já tinha feito com os
cobres dos kwakiutls, Mauss volta a precisar, a propósito das con­
chas que circulam, que a palavra “troca”, assim como a expressão “pa­
gamento em retribuição”, foi utilizada por Malinowski, conforme
confissão deste último, “de forma puramente didática e para se fazer
entender pelos europeus203”. Mauss não pode, portanto, fazer a Mali­
nowski a mesma crítica de etnocentrismo que havia feito a Boas. De
qualquer maneira, mais uma vez o fato de que existiam dois usos di­
ferentes para os mesmos objetos não parece colocar problemas para
Mauss.
Antes de apresentar os resultados das pesquisas mais recentes sobre
o funcionamento do kula, pesquisas que se sucederam, já o dissemos,
desde 1970, tentaremos fazer um breve balanço da análise feita por Mauss

2(MIbid., p. 180.
202Ibid., p. 168. Mauss faz alusão aqui ao artigo de Malinowski publicado em 1917
no Journal o fthe Royal Anthropological Institute (n° 45): “Baloma, the Spirits of
the Dead in the Trobriand Islands”.
20'lbid., p. 176, nota 4.

130
O ENIGMA DO DOM

a partir dos dados de Malinowski. Em relação a este último, Mauss


trouxe uma visão mais ampla. Comparou, com efeito, numerosas socie­
dades separadas no espaço (da América, da África, da Ásia) e no tempo
(Antiguidade greco-latina, civilizações germânicas, índia védica etc.).
E foi com razão, parece-nos, que ele aproximou o kula do potlatch.
Ele percebeu no kula uma forma de dom e contradom animada por
um espírito de rivalidade semelhante ao do potlatch204, cujo objetivo é
a exaltação do indivíduo ou de um grupo através deste indivíduo. Gran­
deza e interesse são, nos dois casos, as duas motivações misturadas dessas
trocas.
Mauss também recolocou o kula e suas rivalidades em um conjun­
to muito mais vasto de trocas, de prestações, no qual não reinava ne­
cessariamente o princípio da rivalidade205. Ainda sobre esse ponto, o
paralelo com o potlatch (que se articula também em dons e contradons
não-antagonistas) era justificado.
Mauss constata, aliás, que os vaygu’a , como os cobres, têm um
nome, uma personalidade, uma história. Por certo ele força um pouco
os fatos para dar-lhes um espírito que os levaria, como o hau dos taonga
maoris, de volta à origem. Ele os vê animados, não propriamente por
uma alma pessoal, mas por “sentimentos”, o que é uma forma menor
de alma, sentimentos que ele descreve como a projeção na própria coisa

204Mauss cita uma fórmula do kula da ilha de Sinaketa que sublinha este espírito
de rivalidade: “Eu vou roubar meu kula, eu vou pilhar meu kula, eu vou fazer
kula até que meu barco afunde [...] minha fama é um trovão. Meu passo, um tre­
mor de terra.” E Mauss acrescenta: “A conclusão da fórmula é interessante, mas
somente do ponto de vista do potlatch. A cláusula tem aparências estranhamente
americanas” (ibid., p. 182).
205Mauss destaca a famosa citação de Malinowski que Lévi-Strauss também reto­
mou: “Toda a vida tribal não é senão um constante 'dar e receber’; toda cerimô­
nia, todo ato legal e de costumes só se realiza com um dom material e um contradom
que o acompanha; a riqueza dada e recebida é um dos principais instrumentos da
organização social, do poder do chefe, dos laços de parentesco de sangue e dos
laços de parentesco por casamento” (Malinowski, Argonauts..., op. cit., p. 167;
Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 188).

13 1
MAURICE GODELIER

das emoções e da personalidade daquele que a possui206. E se Mali­


nowski nunca deixou de achar estranha uma instituição como o kula,
em que objetos inúteis para a vida cotidiana eram trocados com pai­
xão, Mauss pensava justamente o contrário. E também não seguiu
Malinowski quando este recusou-se explicitamente a considerar os
vaygu’a como moeda, pois não serviam como padrão para medir o valor
das coisas trocadas. Foi para responder a Malinowski sobre este ponto
que Mauss escreveu, no “Essai sur le don”, duas páginas notáveis so­
bre o emprego da noção de “moeda” para falar de objetos preciosos
circulantes nas sociedades primitivas e esboçou em alguns parágrafos
uma história das pré-moedas e da moeda207.
Ele também não esquece que os europeus, na época de M ali­
nowski, estavam nas ilhas Trobriand e tinham desenvolvido a indús­
tria perlífera local. Com os europeus tinham chegado também grandes
quantidades de bens manufaturados e a moeda européia208. Mas à di­
ferença do potlatch na época de Boas, o kula observado por Mali­
nowski não tinha sofrido mudanças tão radicais. Foi apenas nos dois
últimos decênios que seu funcionamento começou a se alterar pro­
fundamente. E isto porque, paradoxalmente, alguns europeus tinham
se metido no mecanismo do kula e obtiveram com isso benefícios fi­
nanceiros...

“ ‘ “Possuí-los traz alegria, é reconfortante, tranqüilizante em si. Os proprietários


tocam-nos e olham para eles durante horas, um simples contato transmite suas
virtudes. Os m ygu’a são colocados sobre a fronte, sobre o peito do moribundo
[...]. Eles são seu supremo conforto” (ibid., p. 181).
207Ibid., p. 178-179.
208Mauss assinala, sem no entanto insistir, a existência do trabalho assalariado nas
ilhas Trobriand, onde os europeus recrutavam mão-de-obra para a indústria
perlífera. Mas esses trabalhadores tinham que continuar a honrar seus compro­
missos com as tribos e a pescar para trocar os produtos de sua pesca pelos produ­
tos agrícolas dos grupos do interior. Mauss observa: “A obrigação permanece até
hoje, apesar dos inconvenientes e das perdas sofridas pelos trabalhadores na in­
dústria perlífera, obrigados a pescar e perdendo salários importantes por causa de
uma obrigação puramente social” (ibid., p. 189, nota 2).

132
O ENIGMA DO DOM

De qualquer forma, Mauss e Malinowski devem ser confrontados


hoje aos resultados das pesquisas realizadas depois da Segunda Guerra
Mundial. Vimos surgir, por um lado, uma nova série de pesquisas rea­
lizadas nas ilhas Trobriand (entre as quais a de Annette Weiner209) e,
por outro lado, pesquisas iniciadas em praticamente cada uma das ilhas
associadas no kula, as ilhas de Woodlark (Frederick Damon), Gawa
(Nancy Munn), Vakuta (Shirley Campbell), Kitawa (Giancarlo Scoditti,
Jerry Leach), Normanby (Carl Thune), Tubetube (Martha Maclntyre),
Louisiade (Maria Lepowski), Rossel Island (John Liep)210.
A nosso ver, os resultados dessas pesquisas transformaram em qua­
tro pontos a visão do kula herdada de Malinowski (e que também é,
largamente, a de Mauss). Vamos resumi-los e propor nossa própria
interpretação.
Em primeiro lugar, o que despontou muito rapidamente foi o ca­
ráter muito particular do funcionamento do kula em Kiriwina, a ilha
em que Malinowski fez suas observações. Em Kiriwina, apenas os che­
fes e os homens de posição (guyau) dedicam-se ao kula, enquanto em
todos os outros lugares participam tanto os BigM en quanto os homens
mais comuns, assim como as mulheres211. E, associado a este fato, em
Kiriwina, os vaygu’a não podem ser utilizados fora do kula, embora o
possam no resto da região massim. Nela, de fato, os braceletes e os
colares podem ser retirados do kula e utilizados em outros tipos de
troca e para outros fins, sobretudo para assegurar a reprodução das
relações sociais que mantêm a existência dos grupos locais, relações de
parentesco, iniciações etc., mas também nos rituais destinados a subs­
tituir pessoas desaparecidas ou falecidas por dons de riqueza. Por

209Annette Weiner, Women ofValue, Men ofRenow n: New Perspectives in Trobriand


Exchange, Austin, University of Texas Press, 1976.
210Cf. a obra de síntese The Kula, New Perspectives on Massim Exchange, Jerry e
Edmund Leach (eds.), Cambridge University Press, 1983.
2uEstas, não podendo estar embarcadas por várias semanas em expedição nos
mares, em geral confiam a seus irmãos a gerência de seu kula.

13 3
MAURICE GODELIER

exemplo, com a morte de sua esposa, um homem de Woodlark deve


dar um kitoum a seus aliados. Um kiíoum , conforme veremos, é um
objeto precioso, propriedade pessoal de um indivíduo (ou de um gru­
po) e que, segundo as circunstâncias, seguirá os rumos do kula, trans­
formando-se, se for um bracelete, em m wali e, se for um colar, em
soulava, podendo, entretanto, servir para outros usos.
Constatou-se assim que em todas as sociedades do kula, com exce­
ção de Kiriwina, a esfera do kula é diretam ente articulada à produção
das relações de parentesco e ao acesso ao poder. Em Woodlark, por
exemplo, as pessoas se esforçam para fazer o kula com os aliados pelo
casamento ou para aliar-se aos parceiros kula. Esta inserção das rela­
ções de kula nas relações de aliança tem efeitos igualmente deter­
minantes sobre a identidade dos indivíduos, inclusive seu sexo “social”.
Em Woodlark, um casal recém-casado começa residindo com os pa­
rentes da mulher, mas o marido só é considerado completamente um
homem, e seus filhos como seus, se sua família instituir uma relação de
kula com os parentes da mulher. Caso contrário, a esposa é considera­
da como “o homem” e o marido como “a mulher”. A instituição de
uma relação de kula entre linhagens aliadas permite que um homem
leve sua esposa para residir em sua terra e se aproprie dos próprios
filhos. Mas quando morre a esposa, ele deve dar a seus aliados, para
substituí-la, um kitoum . Em Woodlark, também a hierarquia política
não é fixa. É possível tornar-se um Big Man acumulando riquezas e
redistribuindo-as ou fazendo com que circulem no kula.
Em Kiriwina, ao contrário, as posições políticas são fixas e herda­
das. Elas se apresentam como uma hierarquia de posições entre os clãs
e os subclãs. Os indivíduos ocupam essas posições em virtude de seu
nascimento, de sua posição genealógica nos grupos de descendência
matrilinear. Por isso, a reputação que este ou aquele “nobre” pode
adquirir praticando o kula não modifica seu lugar na hierarquia políti­
ca local. E possível não nascer, mas tornar-se um Big Man, ao passo
que chefe se nasce, sendo impossível tornar-se um. Em Kiriwina, por­
tanto, o kula serve “puramente” para engrandecer o indivíduo que o

1 3 4
O ENIGMA DO DOM

pratica, para exaltar seu “eu”, para aumentar sua reputação bem além
dos limites de sua aldeia, de sua ilha. E como ele é praticado por uma
minoria de homens que já detêm o poder em sua sociedade e que exer­
cem o kula como um privilégio de sua posição, em Kiriwina o kula é
voltado exclusivamente para o exterior, para outras terras, para o além-
mar. Por isso os objetos do kula não são utilizados, como acontece em
outras partes, nas trocas internas necessárias à reprodução da socieda­
de local.
Ora, em Kiriwina, como em outros lugares, essas trocas existem e
marcam o nascimento, o casamento e a morte dos indivíduos. Elas as­
sumem uma dimensão excepcional por ocasião das trocas cerimoniais
(sagalt) que se seguem ao falecimento de um homem e se repetem du­
rante vários anos. As trocas de dons têm por objetivo “substituir” o
defunto, consolidar as relações de aliança fragilizadas pelo falecimen­
to e, sobretudo, providenciar o retorno do corpo do defunto para seu
dala (subclã) de origem, junto com as terras, os nomes e as outras “pro­
priedades” do d ala que ele havia cedido ainda vivo, “dando-as”
{mapula)in a seus filhos (sobretudo a terra dada aos filhos). E o chefe
do dala do defunto e suas irmãs que, em nome do d ala, reclamam a
volta dessas propriedades (inclusive os ossos do morto) para seu pro­
prietário original. Mas o retorno só acontece se, por sua vez, os mem­
bros do dala derem, àqueles que haviam recebido tais propriedades para
seu uso, riquezas que compensem suas perdas. Tudo isso exige muitos
anos e inúmeras trocas cerimoniais funerárias nas quais, para compensar

lnMapula é o dom que Malinowski havia classificado, no Argonauts, na categoria


dos “dons puros”, noção que ele mesmo acabará por abandonar mais tarde em
Crime and Custom in Savage Society (1926), explicando que não tinha examina­
do suficientemente de perto o contexto desses dons e que eles faziam parte de
uma longa cadeia de transações de interesses entre as famílias aliadas. Mauss, desde
a leitura de Argonauts, havia criticado a expressão pure gift, utilizada por
Malinowski (ibid., p. 267-268), dizendo que era “inaplicável”; assim também Firth,
em Elements o f Social Organization (1951). Sahlins retomará, embora sob outra
etiqueta— “reciprocidade generalizada” — , a noção de “puro dom”. Cf. Marshall
Sahlins, Âge de pierre, âge d ’abondance, op. cit., cap. 5.

135
MAURICE GODELIER

as perdas, o dala do defunto oferece os bekui lâminas de pedra polida


e inhames, bens masculinos; saias de fibras e buquês de folhas de bana­
na, bens femininos.
É a Annette Weiner213 que devemos esta descoberta, assim como a
noção de kitom u (ou de kitoum , como são chamados em Woodlark).
Em Kiriwina, portanto, bens masculinos e bens femininos servem para
substituir os humanos e para reproduzir suas relações. Os objetos kula
ficam afastados desse processo. Em todos os outros lugares eles pene­
tram, associam-se ao processo. Lá eles funcionam como o que nós cha­
mamos de “substitutos dos seres humanos”, como equivalentes da vida
de uma mulher ou de um homem. Mas mesmo se em Kiriwina os ob­
jetos kula são dissociados do processo de reprodução das relações de
parentesco e de regeneração dos grupos de parentesco, dos dala e de
seu patrimônio em terras, títulos, nomes, eles não estão desligados dele.
Eles também prolongam as pessoas, unindo-as através de laços pessoais.
Podemos ter uma prova disso no fato de que, no plano que nós
europeus chamamos de simbólico, os mwali e os soulava são sexuados,
machos ou fêmeas. Mais ainda, na fabricação, eles são montados sobre
um suporte que é chamado de “rosto” do m wali ou do soulava214. Logo,
os objetos têm um sexo e um rosto. Esta identificação do objeto à pes­
soa humana está presente também nas canções e nos poemas épicos
que foram recolhidos nesta região.
Um desses poemas, Yaulabuta, conta a história de Kailaga, chefe
de uma aldeia da ilha de Kitava que costumava praticar o kula com a
ilha de Vakuta215. Um dia, Kailaga foi convencido por um boato de que

2,JCf. Annette Weiner, op. cit., caps. 3 e 4 ; “Plus précieux que l’or: relations et
échanges entre hommes et femmes dans les sociétés d’Océanie”, Annales ESC, n° 2,
1992, p. 222-245.
2l4Frederick Damon, “The Kula and Generalized Exchange: Considering some
Unconsidered Aspects of the Elementary Structures of Kinship”, Man, n. 1 5 ,1 9 8 0 ,
p. 284.
215John Kasaipwalova e Ulli Beier, Yaulabuta; An Historical Poem from the Trobriand
Island, Port Moresby, Institute of Papua New Guinea Studies, 1978.

13 6
O ENIGMA DO DOM

um chefe de Kiriwina queria trocar o seu m wali por um magnífico


soulava. Ora, ir a Kiriwina significava desviar de sua rota um bem kula
que deveria circular em outra direção. De fato, o tal boato havia sido
fomentado por inimigos de uma outra aldeia de sua própria ilha. Kailaga
cedeu mesmo assim a seu desejo e partiu então para Kiriwina. No ca­
minho, seu barco foi atacado pelo inimigo e ele foi capturado, amarra­
do ao barco e queimado vivo como um porco. Antes de matá-lo, seus
assassinos despojaram-no de um colar de presas de porco que ele tra­
zia no peito e levaram-no como troféu a seu chefe; quando entrega­
ram o presente, disseram que era um dos m wali mais raros que poderia
existir. Como Andrew Strathern sublinhou, tratar o chefe Kailaga como
um mwali é afirmar explicitamente a equivalência entre uma vítima
humana e um objeto kula116. Mas a equivalência neste caso era dupla­
mente metafórica, pois o colar não era um m w ali, um bracelete de
conchas, mas um colar de presas de porco.
A segunda grande descoberta destes últimos anos foi feita por
Annette Weiner em Kiriwina e quase ao mesmo tempo por Frederick
Damon em Muyuw (Woodlark Island)217. Trata-se da noção de kitoum .
Para compreendê-la, é preciso recomeçar pelo fato de que todos os
objetos que circulam no kula (braceletes, colares) são objetos fabrica­
dos. Primeiro é preciso pescar as várias conchas para poder fabricá-los.
Apenas as conchas de um certo tamanho são escolhidas para serem
polidas, recortadas e montadas sobre um suporte. Tornam-se então um
objeto de valor, propriedade pessoal daquele que o fabricou: é seu
kitoum . E só depois que alguns desses kitoum vão penetrar nas trocas
kula. Portanto, observa-se que todos os objetos do kula incorporam
uma certa quantidade de trabalho inicial. Seu tamanho, a qualidade do
nácar são “valorizados” por este trabalho. E seu tamanho e seu brilho
que garantem sua classificação em uma determinada categoria. Todos

^Andrew Strathern, “The Kula in Comparative Perspective”, in Jerry e Edmund


Leach, The Kula, op. cit., cap. 2, p. 84-85.
2,7Frederick Damon, “The Problem of the Kula on Woodlark Island: Expansion,
Accumulation and Over-Production”, Ethnos, n. 3-4, 1995, p. 176-201.

I 37
MAURICE GODELIER

os objetos kula, efetivamente, são classificados em três posições que


constituem uma hierarquia de três categorias aceita em todas as ilhas.
Mas vejamos mais de perto o que se pode fazer com um kitoum .
Pode-se trocá-lo por uma embarcação, por exemplo. Em Muyuw, por
uma canoa a remo fabricada em Gawa, uma ilha do Oeste, são dados
cinco kitoum de primeira categoria. As pessoas de Kiriwina se abaste­
cem de braceletes (mwali) “comprando-os” (gimwali) nas ilhas vizi­
nhas de Kaleuna, onde os “manufaturam”; por eles dão em troca seja
um beku, seja um ou vários porcos, seja uma grande quantidade de
inhame. Um kitoum pode servir também para “substituir’ um ser hu­
mano quando é preciso, por exemplo, compensar o assassinato de um
inimigo. Hoje pode-se também vendê-los, de preferência a um turista.
Enfim, ele pode ser lançado no kula, onde abre ou junta-se a uma “rota”.
E seu deslocamento de dom em dom, sua circulação de mão em mão,
que irá criar dívidas ou anulá-las, atrair outros dons, animando assim
uma rota do kula.
A terceira grande descoberta depois de Malinowski foi precisamente
esta noção de “rota do kula”, de keda. Suponhamos que o proprietário
de um kitoum , no caso um bracelete de alta categoria que ele mesmo
fabricou ou que trocou por um ou vários porcos, queira se lançar no
kula. Como se trata de um bracelete, ele deve se lançar em uma deter­
minada direção em busca de um parceiro que possua um colar de igual
categoria e que aceite trocá-lo pelo tal bracelete. Não é certo que tal
parceiro exista, havendo, portanto, um risco a correr. Ele é assumido a
partir do momento em que o proprietário do kitoum escolhe um par­
ceiro para dar o seu objeto, enquanto objeto kula e, no caso, enquanto
m wali.
Logo, o objeto é lançado em uma rota e passa de mão em mão até
chegar a alguém que possua um colar de categoria equivalente, um
soulava, e que esteja disposto a trocá-lo por este mwali. O soulava via­
ja então em sentido inverso até que, depois de um certo número de
meses ou anos, chega àquele que tinha dado o primeiro mwali. Nesse
dia, um soulava que era o kitoum de alguém veio ocupar o lugar, en­

138
0 ENIGMA DO DOM

quanto kitoum , do m wali que era propriedade do primeiro doador.


Nesse dia, a rota (keda) do kula aberta pelo kitoum /m wali fecha-se e
desaparece. O antigo proprietário do bracelete, transformado em pro­
prietário de um colar, pode dispor deste último como bem quiser. O
colar tornou-se o seu kitoum . Pode vendê-lo, trocá-lo por uma embar­
cação ou lançá-lo outra vez no kula, mas em outra rota e no sentido
inverso da primeira.
O que se passou, portanto? Suponhamos que a rota do m w ali as­
sociou quatro parceiros: A, que possui o bracelete como kitou m ; B,
que o recebeu de A e passou para C, que o deu a D, proprietário de um
colar, co m o kitoum. Há, portanto, uma grande diferença de status entre
A e D de um lado, B e C de outro. A e D são, os dois, proprietários de
um kitoum , B e C não o são. Quando A dá a B o seu kitoum , este se
torna um objeto kula, um mwali para ele e para B, mas continua sendo
ao mesmo tempo, para ele e somente para ele, um kitoum , um objeto
sobre o qual ele continua a manter seu direito de propriedade. B rece­
beu o objeto como mwali e como tal o dá a C, que o dá a D. Para B, C
e D este objeto não é um kitoum . Eles não têm nenhum direito de pro­
priedade sobre ele, mas têm o direito de dá-lo para criar ou honrar
dívidas.
No entanto, D, à diferença de B e C, quando recebe o m w ali, de­
cide dar em troca, a C, um soulava do qual é proprietário. E o seu
kitoum . Ele guarda então o bracelete que, para ele, se transforma de
m w ali em kitoum.

mw mw mw
k/mw A ------- > B ------- > C ------- > D
A < ------- < -------- < D k/s
s s s

A possui o objeto ao mesmo tempo como kitoum e m wali.


D possui o objeto ao mesmo tempo como kitoum e soulava.
B e C recebem e utilizam esses objetos como m w ali e soulava.

1 3 9
MAURICE GODELIER

O conceito “indígena” de kitoum parece ser, portanto, a resposta ao


problema que Mauss enfrentou sem cessar, a saber, a definição do “tipo
de propriedade” que as pessoas têm sobre as coisas que dão e sobre aque­
las que recebem, um “gênero” que lhe parecia “participar de todos os
tipos de princípios que nós, modernos, mantemos cuidadosamente iso­
lados uns dos outros A resposta de Mauss é aproximativa. Mais do
que definir princípios que operem nesses dons e se articulem sem confu­
são, ela mistura fatos. No entanto, a resposta dos habitantes das Trobriand
é clara sobre esses pontos, embora não seja “simples”.
A lógica dessas trocas repousa na ação combinada de dois princípios:
um direito de propriedade inalienável sobre um objeto — inalienável
pelo menos até o momento em que for substituído por um objeto equi­
valente que se torna, por sua vez, uma propriedade inalienável — e
um direito de posse e uso, que é alienável sob a condição de que o objeto
possuído não saia do quadro do kula, não sirva para outro uso senão o
de dom e contradom. A ação combinada e permanente desses dois prin­
cípios explica a maneira como os objetos circulam ao longo de uma
rota de trocas e a natureza das relações que se estabelecem entre as
pessoas que entram voluntariamente nesse tipo de troca, as táticas e
estratégias que devem empregar, os riscos envolvidos, o sucesso, os
lucros obtidos, as perdas, os fracassos.
Pode-se ver que nem todos os parceiros desta cadeia de dons e
contradons têm os m esmos direitos sobre as coisas dadas. Nas duas
extremidades da cadeia há duas “pessoas” (podem ser dois indivíduos
ou duas pessoas morais, dois grupos) que entram no jogo acumulando
dois direitos, um direito de propriedade inalienável sobre o objeto dado,
pois este é seu kitoum e não deixará de sê-lo durante todo o tempo em
que estiver circulando como objeto de dons e contradons, e um direito
de uso deste objeto como objeto de dom, direito que lhe é cedido, alie­
nado... Assim, para os dois parceiros que se encontram nas extremidades
da rota, duas coisas se produzem simultaneamente quando eles lan­
çam seus objetos nesta rota: o objeto é a o m esm o tem po dado e m anti­
do. O que é mantido é a propriedade do objeto; o que é dado é a posse
(submetida à condição de que o objeto seja utilizado apenas para ou­

1 40
O ENIGMA DO DOM

tros dons). Portanto, nos dois extremos da cadeia temos realmente a


presença e a intervenção, conjuntas, acumuladas, de dois princípios.
Mas entre esses extremos, os dois princípios, apesar de agirem, se se­
param sem cessar. A posse do objeto é transferida de parceiro interme­
diário a parceiro intermediário. Cada um o cede como dom e para uso
como dom, sabendo ou esperando que um objeto venha ocupar o seu
lugar. E nenhuma dessas pessoas intermediárias pode desviar o objeto
para outros usos, tratá-lo como se fosse para ela um kitoum .
É esta presença indelével do proprietário da coisa na coisa que ele
dá que é pensada nessas sociedades como a presença permanente da
pessoa na coisa. Em uma sociedade em que todas as relações são, em
última análise, relações pessoais, em que não há contratos escritos e em
que todos os compromissos são públicos, a propriedade se apresenta
necessariamente como um atributo das próprias pessoas e as relações de
propriedade como relações diretas ou indiretas de pessoa a pessoa.
Voltando à fórmula de Mauss, ela realmente contém a solução do
problema, mas esta não é expressa de maneira clara, limpa, pois Mauss
ainda não havia compreendido completamente o modo como os dois prin­
cípios se articulam. De nada lhe serve empilhar palavras, convocar e fazer
desfilar sob os nossos olhos toda uma série de princípios jurídicos: o me­
canismo do kula e o “gênero de propriedade” do objeto permanecem sem­
pre parcialmente escondidos. Vamos reler a passagem em que Mauss se
esforça para delimitar a relação das pessoas com os objetos que trocam, e
iremos perceber como a maior parte das palavras que aí desfilam, das re­
lações jurídicas sugeridas, é imprópria e não mostra claramente a solução:

É , p ortan to, realm ente uma propriedade o que se tem sobre o presen­
te recebido, mas é uma propriedade de um certo gênero [...] É um a
propriedade e uma posse, um penhor e um a coisa alugada, um a coisa
vendida e com p rad a e ao m esm o tem p o reg istrad a, m an d atad a e
fideicom etida. Pois ela só lhe é dada com a condição de que vai usá-la
para um ou tro ou transm iti-la a um terceiro ‘parceiro distante’.218

21lfMarcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 180.

14 1
MAURICE GODELIER

Ora, a coisa dada no kula n ão é nem vendida nem comprada, nem


penhorada, nem alugada. Ela é ao mesmo tempo “propriedade e pos­
se”, mas apenas para os dois parceiros “distantes” situados nos dois
extremos da cadeia e que têm todas as chances de nunca se conhece­
rem pessoalmente. Eles conhecem um do outro apenas o nome. Quan­
to aos parceiros intermediários, a coisa só é recebida com a condição
de que seja transmitida a um terceiro, e todos no kula sabem que a
qualquer momento o doador inicial do objeto poderá reclamá-lo, que­
brando assim uma das rotas do kula. Claro, na opinião dos observado­
res, ninguém o faz e nem tem interesse em fazê-lo. O que interessa às
pessoas não é recuperar rapidamente o seu próprio kitoum , exceto em
circunstâncias excepcionais. Também não é substituí-lo rapidamente
por um kitoum da mesma categoria. E lançá-lo o mais longe possível e
deixá-lo circular o maior tempo possível para que leve com ele o nome
de seu doador original, para que o engrandeça e para que o objeto se
carregue cada vez mais de vida, de “valor”, enriquecendo-se de todos
os dons e de todas as dívidas que sua circulação engendra ou anula.
Isso explica vários aspectos paradoxais, aos olhos de um europeu,
dessas trocas. Frederick Damon mostrou que quando o proprietário
de um kitoum o oferece a seu primeiro parceiro, é o nome do parceiro
que “sobe” e o seu que “desce”. Mas em seguida, quanto mais o objeto
é oferecido e reoferecido, mais ele se afasta de seu proprietário de ori­
gem e mais o nome deste último “cresce”.
Finalmente, vemos que Mauss tinha razão ao aproximar o pot­
latch, o kula e a circulação dos taonga entre os maoris. São realida­
des sociológicas muito diferentes, mas que, todavia, se assemelham
em vários aspectos. No kula, com certeza (e por princípio), não exis­
te retorno do objeto à origem, pois o objetivo desses dons é que um
objeto de igual categoria, mas diferente, venha ocupar o seu lugar.
Aqui, se o objeto não volta à origem, não é porque um espírito, seu
ou de seu proprietário, o impede. O objeto kula não é um taonga
maori. No entanto, como este último, ele permanece ligado a seu
proprietário de origem durante todo o tempo em que circula no kula.

14 2
O ENIGMA DO DOM

É por esta razão, aliás, que o kula exige a presença de pelo menos
três parceiros e que sua natureza só se revela a partir do momento
em que uma “terceira pessoa” intervém como interm ediária. C om
efeito, assim que se introduz um terceiro, a dualidade das relações de
propriedade e de posse que se exercem sobre um objeto kula torna-
se manifesta. E por isso que Ranaipiri escolheu bem o seu exemplo.
Mauss pressentiu que havia uma razão para fazê-lo, mas ela perma­
neceu obscura para ele.
Pois se houvesse apenas dois interessados na troca, face a face,
ambos proprietários de um kitoum que cada um desejaria trocar pelo
kitoum do outro, estaríamos simplesmente diante de uma troca não-
agonística de dons equivalentes. Um kitoum de igual categoria viria
ocupar o lugar de um outro kitoum , assim como uma mulher vem ocu­
par o lugar de uma outra mulher nas trocas de irmãs praticadas entre
os baruyas. Sahlins já havia feito esta observação a propósito do hau.
De fato, o que interessa às pessoas da região massim quando praticam
o kula não é se encontrarem frente a frente para trocar bens equiva­
lentes. O que elas querem é criar dívidas, e dívidas que durem o maior
tempo possível, a fim de acumular prestígio e engrandecer um nome.
Neste sentido, o kula é comparável ao potlatch.
Isto nos permite destacar a grande diferença que existe entre a
prática de dons e contradons não-agonísticos e o kula ou o potlatch.
No kula, quando um objeto de igual categoria e de valor equivalente
vem ocupar o lugar do dom inicial, a dívida é anulada. O contradom
apaga a dívida. Isso é completamente diferente, como vimos, com os
dons não-agonísticos. Nesse caso, os contradons não anulam os dons.
O objeto não é “devolvido”, ele é dado de novo. Os dons criam dívi­
das de longo prazo que, muitas vezes, ultrapassam a duração da vida
dos doadores, e os contradons têm co m o motivo primeiro restaurar o
equilíbrio entre os parceiros, a equivalência de seus status — não a
anulação da dívida. Por outro lado, no potlatch ou no kula, as dívidas,
mesmo que a circulação dos objetos dure vários anos, são relativamen­
te de curta duração. E os contradons equivalentes anulam as dívidas.

14 3
MAURICE GODELIER

Por isso é preciso recomeçar e dar ou devolver mais para criar novas
dívidas, o que é o objetivo dessas trocas.
Compreendemos agora por que dons e contradons não-agonísticos
podem se produzir simultaneamente ou praticamente ao mesmo tem­
po. É porque a dívida não é anulada pelo contradom. Ao contrário, no
potlatch e no kula, porque um contradom equivalente anularia imedia­
tamente a dívida, as trocas são sempre separadas no tempo. Logo, é
necessário deixar o tempo passar para acumular um contradom que
possa criar novas dívidas. Isso explica por que as pessoas das ilhas do
Massim partem em expedição de mãos vazias. Elas sabem que coisas
lhes serão dadas lá aonde estão indo. Mas elas também não levam nada
para dar de volta imediatamente. Um ano mais tarde, voltarão de mãos
cheias para, por sua vez, darem também.
Mas há um quarto aspecto do funcionamento do kula que foi muito
bem destacado por Annette Weiner. O kula é um jogo que implica uma
contradição entre o indivíduo e o sistema global do kula na qual pene­
tra e que é por ele animado. Para que um indivíduo “ganhe” nesse jogo,
é preciso, como vimos, que ele possua um kitoum de grande valor e
que receba um outro equivalente. Mas seu “ganho” não está aí. Está,
antes de tudo, na reputação que ele ganha, mas também nos “presen­
tes”, os “dons” suplementares que sua habilidade ao negociar angaria.
Portanto, ele está também nos suplementos de objetos kula que seu
sucesso lhe garante. Esse suplemento “material” nada mais é que o
“saldo” de todos os dons suplementares que ele teve de fazer para se­
duzir e de todos aqueles que lhe foram presenteados para seduzi-lo, o
que significa que o sucesso de um indivíduo implica o insucesso de
outro. Bem entendido, cada um daqueles que se lançam na empresa
está animado pelo desejo e pela ilusão de que será ele o ganhador. Mas
ganhe ou fracasse um indivíduo, interrompa-se rapidamente ou dure
por muito tempo uma rota do kula, aos olhos dos protagonistas, tudo
se passa como se o kula-ring não fosse afetado por tais acidentes, pois
ele continua a girar por si mesmo, sobre si mesmo, parecendo repro­
duzir-se por si só, como o mercado.

1 44
O ENIGMA DO DOM

Podemos precisar agora o que representa a propriedade de um


kitoum nessa sociedade. Trata-se de uma propriedade individual plena
e inteira, que se parece muito com aquilo que, em nosso sistema, cha­
mamos de “propriedade privada”, pois, como vimos, o indivíduo pode
dispor dela livremente. Ele pode vender tal objeto, trocá-lo por ou­
tros, compensar uma morte, lançá-lo no kula. Age-se sempre, porém,
em um universo em que a sociedade se apresenta como a realidade
primordial, uma totalidade que preexiste a cada um e orienta todos os
gestos do indivíduo, pois ele se reproduz reproduzindo-a. Se o indiví­
duo pode dispor de seu kitoum porque ele é sua propriedade pessoal,
ele não pode dispor da terra do mesmo modo. Esta faz parte de uma
outra categoria de bens inalienáveis, aqueles que são comuns a todos
os membros de um grupo — de parentesco, por exemplo — e são,
portanto, controlados por outros, além dele. A terra faz parte dos bens
comuns inalienáveis que se deve guardar e que não se pode dar. O objeto
kula é um bem pessoal inalienável, do qual se guarda a propriedade
até que um objeto equivalente venha substituí-lo, mas é um bem
inalienável que se pode, ao mesmo tempo, guardar e dar.
Em outras sociedades, a terra é, ela mesma, como objeto kula, um
bem inalienável, do qual se guarda a propriedade (seja o proprietário
um clã, uma comunidade aldeã, uma tribo, o faraó, o Estado...), mas
do qual se pode ceder o uso. Mauss conhecia bem esta “regra de direi­
to e de interesse” que distingue entre propriedade e posse de um bem
e não ignorava que ela pode ser encontrada nos quatro cantos do mun­
do e que permaneceu viva em muitas regiões da Europa ocidental ou
oriental até o fim do século X IX . Mauss, no entanto, descartou-a como
solução demasiado fácil para o enigma do dom dos objetos preciosos,
porque não dava conta das significações religiosas, das forças escondi­
das presentes nos objetos dados, em poucas palavras, do halo das cren­
ças que os penetram e lhes dão sentido.
Mauss tinha e não tinha razão sobre este ponto. Não tinha pois
a distinção entre direito de propriedade e direito de uso basta para
explicar que o proprietário de um objeto precioso está sempre pre­

14 s
MAURICE GODELIER

sente na coisa que dá e que esta, ou um equivalente, deve um dia


voltar a ele para tornar-se outra vez propriedade sua, para reprodu­
zi-la. Tinha razão porque uma regra de direito, qualquer que seja,
não pode explicar a natureza profunda das realidades sobre as quais
se exerce. Ela pressupõe sua existência, não a explica. E não expli­
ca, ela sozinha, por que se exerce aqui sobre a terra e lá sobre con­
chas que circulam, mas não se exerce sobre outras conchas escondidas
nos tesouros dos clãs. Por que sobre os objetos preciosos, mas não
sobre os objetos sagrados e também não sobre os objetos de valor
que são vendidos, alienados definitivamente. Isso o direito não é
capaz de explicar.
Os objetos de dom, os objetos preciosos encontram-se, portan­
to, entre dois princípios: a inalienabilidade dos objetos sagrados e a
alienabilidade dos objetos comerciais. São ao mesmo tempo inalie­
náveis como os primeiros e alienáveis como os segundos. E isso,
como veremos, porque eles funcionam ao mesmo tempo como subs­
titutos dos objetos sagrados e como substitutos das pessoas huma­
nas. São ao mesmo tempo objetos de poder como os primeiros e
riquezas como os segundos. Não é apenas, como disse Mauss, par­
tindo de uma observação de bom senso, porque “nos damos quan­
do os damos”. De fato, o que está presente no objeto , com o
proprietário, é todo o imaginário de uma sociedade, de sua socie­
dade. São todos os duplos imaginários dos seres humanos, aos quais
estas sociedades atribuíram (não se pode dizer que emprestaram,
pois estes duplos nunca podem tomar nada) os poderes de reprodu­
zir a vida, de trazer saúde, prosperidade ou os seus contrários, mor­
te, fome, extinção do grupo.
Se o direito não explica tudo, pois ainda falta explicar por que
ele se exerce sobre aquilo em que se exerce, Mauss de certa forma
acertou ao colocar suas duas questões. Mas para respondê-las, con­
forme vimos, ele produziu duas explicações, duas teorias que, jun­
tas, não formam exatamente um todo. Entre as duas subsiste um
vazio que a palavra de Tamati Ranaipiri, o velho sábio maori, não
preenchera.

1 4 6
O ENIGMA 00 DOM

Encerramos aqui com os dois grandes exemplos etnográficos de


Mauss. Acrescentaremos, no entanto, um outro exemplo de trocas
competitivas no interior da Nova Guiné, descobertas e analisadas por
Andrew Strathern mais de meio século depois de Malinowski e Mauss».
com o objetivo de mostrar o quanto Mauss tinha razão ao supor que o
trabalho dos etnólogos permitiria descobrir muitos outros fatos análo­
gos ao potlatch e ao kula. Trata-se do m oka, um vasto sistema de tro­
cas cerimoniais praticadas por um grande número de tribos da região
de Hagen, no coração das terras altas da Nova Guiné.
Mas antes de deixar o kula, precisemos que a pessoa que, hoje
em dia, controla esta instituição na região do Massim não é mais um
homem da Nova Guiné, mas um europeu, Billy. Há vários anos, Billy
domina e ao mesmo tempo subverte o kula. De fato, este europeu
compra conchas maciçamente no sul da região do Massim, em Rossel
Island, transporta-as de barco até seu ateliê para poli-las, usando mão-
de-obra assalariada, e transformá-las em kitoum . Uma parte desses
kitoum ele vende aos habitantes da ilha e aos turistas, mas alguns ele
lança no kula, beneficiando-se de todos os dons suplementares que
tradicionalmente acompanham a circulação dos braceletes e colares.
Seu objetivo não é de modo algum aquele do kula tradicional, a bus­
ca do renome, mas simplesmente a acumulação de lucro, a obtenção
de riqueza219...

O moka

O m oka é um sistema de trocas cerimoniais, competitivas, que as­


socia e opõe um conjunto de tribos cujos territórios cercam o mon­
te Hagen. A população desses grupos eleva-se a mais de cem mil
pessoas que falam línguas muito próximas. A análise do m oka deve-

2l9Frederick Damon, “Representation and Experience in Kula and Western


Exchange Spheres (Or, Billy)”, Research in Economic Anthropology, n° 14, 1993,
p. 235-254.

14 7
MAURICE GODELIER

se a Andrew Strathern, que, desde 1960, observou-o e seguiu seus


desenvolvimentos recentes. Suas pesquisas foram conduzidas no seio
de três tribos, Kawelka, Kipuka e Minembi, de língua melpa, es­
treitamente ligadas por casamentos recíprocos e por trocas m oka.
Uma tribo é, lá, um conjunto de clãs que partilham a idéia (o mito)
de que todos têm a mesma origem. Trata-se de uma unidade social que
age em comum na guerra e na organização das trocas m oka e das gran­
des distribuições cerimoniais de carne de porco. O efetivo de uma tribo
é de oitocentas a mil pessoas. Os clãs são grupos territoriais submeti­
dos à autoridade dos Big Meti, indivíduos importantes que desempe­
nham um papel eminente nas trocas m oka, nas alianças matrimoniais,
no comércio e, outrora, também nas guerras. A economia repousa na
produção de batatas-doces e de porcos, aos quais junta-se, depois da
chegada dos europeus, toda uma série de culturas comerciais, entre as
quais o café.
Antes da chegada dos europeus, o m oka consistia em dons de por­
cos vivos e grandes conchas (gold-lip pearl-shells) que eram trocadas
por porcos ou outros artigos de troca junto às tribos que viviam ao sul,
na direção da costa do golfo de Papua. Havia alguns m oka que utiliza­
vam apenas conchas e outros que combinavam as duas formas de ri­
queza, porcos e conchas. A diferença entre os porcos e as conchas era
que os primeiros eram produzidos nas unidades domésticas, e as con­
chas era preciso consegui-las trocando por um equivalente, que pode­
ria ser um porco. Antes da chegada dos europeus, um porco valia duas
conchas, em média.
Pode-se distinguir vários tipos de m oka, desde os dons e con­
tradons entre dois parceiros até as prestações em grande escala opondo
um clã a outro. Mas existem formas intermediárias220. Por exemplo,
um Big Man convida, sozinho, um grande número de seus parceiros e
oferece-lhes, publicamente, alguns dons. Ou então vários homens de

220Andrew Strathern, The Rope o f Moka: Big Men and Cerimonial Exchange in
Mount-Hagen, New Guinea, Cambridge University Press, 1971, cap. 5.

14 8
O ENIGMA DO DOM

um mesmo clã convidam, ao mesmo tempo, todos os parceiros que


têm em um determinado número de clãs com os quais fazem m oka.
Ou, ainda, todos os homens de um clã fazem m oka com todos os
homens de um outro clã. Muitas vezes, esse tipo de m oka tinha lugar
entre grupos relativamente hostis, isto é, cujas relações se alternavam
entre a aliança e a guerra. Mas não havia m oka com os inimigos
irredutíveis.
Todas essas formas de m oka , feitas por um indivíduo ou por um
grupo, implicavam também dons feitos para “ajudá-lo” a se lançar
no m oka. Em geral, um homem fazia apelo a seus aliados e a seus
parentes maternais. Mas podia contar também com os homens do
próprio clã e com os amigos que tivesse em outros clãs. Assim, cada
parceiro reunia em suas mãos (antes de dá-los) dois tipos de rique­
za: porcos que sua própria “família” havia produzido e porcos da­
dos para ajudá-lo e que, um dia, ele teria de repor. Andrew Strathern
batizou esses dois métodos “produção” e “finança”, sem dar à pala­
vra “finança” uma conotação capitalista221. Aqui, para acumular o
necessário para se lançar no m oka , conta-se com os outros, já que a
produção própria não seria suficiente. Os B igM en, no entanto, es­
forçam-se sempre para aumentar sua produção, para acumular so­
zinhos uma grande parte de seus dons. Eles o fazem tendo várias
esposas e atraindo homens de status inferior, por exemplo, órfãos
ou refugiados acolhidos por um clã ao fim de uma guerra infeliz
que os expulsou de seu território. Toda esta mão-de-obra é neces­
sária porque a multiplicação dos porcos só é possível aumentando a
produção de batata-doce. Os porcos e os homens estão, assim, em
concorrência pelos mesmos recursos, cuja produção exige um gran­
de dispêndio de trabalho. Portanto, existe nessas sociedades a

221Id., “Finance and Production: Two Strategies in New Guinea Highlands Exchange
Systems”, Oceania, n. 40, 1969, p. 42-67; “Finance and Production Revisited”, in
G. Dalton (ed.), Research in Economic Anthropology, JAI Press, 1978.

149
MAURICE GODELIER

possibilidade de exploração das mulheres pelos homens e dos ho­


mens dependentes pelos Big M en222
Mas três coisas são garantidas a um indivíduo (um homem) pelo
fato de pertencer a um clã. Ele receberá uma ajuda para se casar, ou
seja, os elementos de um bridew ealth; será protegido e vingado por
seu clã em caso de agressão por membros de outros clãs; enfim e
sobretudo, tem direito à terra de seu clã para alimentar a família e de­
senvolver suas iniciativas no m oka e na venda de culturas comerciais
etc. Esses sistemas seriam evidentemente ameaçados por uma expan­
são demográfica demasiado intensa ou um alargamento desmesurado
das culturas comerciais etc.
Mas em que consiste precisamente uma troca m oka223? Tomemos
o exemplo mais simples, uma transação entre dois parceiros apenas, X
e Y, em que as conchas são o principal objeto do dom. Em um primeiro
momento, X dá a Y duas conchas e um porco, este último equivalente
a duas pearl-shells.
As duas primeiras pearl-shells são chamadas “pata dianteira” e “pata
traseira”, o que exprime sua equivalência com um porco. E o próprio
porco é chamado “porco-pássaro”, pois espera-se que este dom vá pro­
vocar um outro dom em retorno, quando os parceiros dançarão no
terreno cerimonial, paramentados com todas as suas plumas de aves-
do-paraíso. Tal dom (que eqüivale, portanto, a quatro pearl-shells) é,
como se diz, o dom “que dá início” ao m oka.
O dom em retorno constitui o m oka, com a condição de que ultra­
passe o dom inicial. Vamos supor que Y, depois do tempo necessário
para juntar oito pearl-shells, envia-as para X em retribuição. Ele pode
mandar também apenas quatro pearl-shells, mas nesse caso diz-se que
ele só pagou suas dívidas e que não houve m oka. O que se passa quando

222Id., “Tambu and Kina: “Profit”, Exploitation and Reciprocity in Two New
Guinea Exchange Systems”, Mankind, n. 11, 1978, p. 253-264.
21,Id., “By Toil or by Guile? The Use of Coils and Crescent by Tolai and Hagen
Big Men ”, Journal de la Société des océanistes, X X X I (49), 1975, p. 363-378.

1 5 0
O ENIGMA DO DOM

acontece o m o k a ? O primeiro parceiro, X , fica “mais rico” de quatro


conchas, mas Y fica “maior” por ter dado oito pearl-shells. Logo, não
se pode ficar por aí. Uma nova seqüência deve começar, na qual Y deve
tomar a iniciativa. Por sua vez, ele envia quatro pearl-shells a X , que
mais tarde lhe fará dom de oito delas. Se considerarmos estas duas se­
qüências em seu termo, X e Y deram e receberam doze pearl-shells. O
que significa que, com o tempo e alternando o sentido a cada presta­
ção, as trocas tenderiam ao equilíbrio.

Primeira seqüência
X ------ > 4 shells -------- > Y
Y > 8 shells -------- > X
Segunda seqüência
Y > 4 shells -------- > X
X ------ > 8 shells -------- > Y

Mas isso não interessa às pessoas, pois o que elas buscam é demons­
trar sua generosidade, ganhar prestígio e ter parceiros, mantê-los pelo
maior tempo possível, de sorte que o sistema encerra uma tendência
interna à expansão. O crescimento dos dons, no entanto, não é expo-
nencial. Pois se a diferença dos dons na prim eira seqüência entre X e Y
é de quatro unidades, recomeça-se a partir dessa diferença, isto é, qua­
tro unidades, às quais acrescenta-se um certo número de outras. Logo,
há freios para a expansão.
De fato, o ápice para um Big Man é dar o máximo possível sem
exigir retorno. Desse ângulo, o m oka é m uito sem elhante a o potlatch:
o motivo dos parceiros do m oka não é fazer “lucro”, mas aumentar
os dons e criar dívidas. Assim, os porcos passam de mão em mão,
criando dividas e reencontrando outras, que eles anulam. Mas esses
porcos que circulam têm duas origens, como vimos: ou provêm “da
família” ou foram dados para ajudar. De maneira que, sobre este
ponto, é fácil para nós comparar o m oka e o kula porque, embora
não se possa identificar um porco da família com um kitoum , é claro

1 5 1
MAURICE GODELIER

que tanto um como o outro são originalmente uma propriedade que


não está sujeita a nenhuma dívida, mas que vai criá-las em sua circu­
lação224.

1 porco da família 1 porco m oka 1 porco m oka


A ------- > B ------- > C ------- > D
A < ------- B < ------- C < ------- D
1 porco m oka 1 porco m oka 1 porco da família

Nas trocas cerimoniais dos melpas, muitas vezes os porcos dados


são classificados em duas categorias. A primeira, alinha os porcos pro­
duzidos pelo grupo doméstico do BigM an; a segunda, todos os porcos
que lhe foram dados em retribuição aos m oka que ele deu, ou então os
que lhe deram para fazer o m oka. Assim, a amplidão de sua rede de
alianças é exposta publicamente. E como no kula (não aquele das
Trobriands), os parceiros no m oka tornam-se aliados pelo casamento e
reciprocamente. As duas esferas do parentesco e do poder são articu­
ladas diretamente uma à outra.
Andrew Strathern seguiu a evolução desse sistema de trocas e
reconstituiu sua história desde o começo do século. A partir de 1933,
com a chegada dos europeus e até 1965, o m oka conheceu uma formi­
dável expansão por várias razões. Primeiramente, os próprios europeus
trouxeram grande número de pearl-shells e delas se serviram como
moeda para pagar os carregadores, comprar víveres, terras etc. Muito
rapidamente, as pearl-shells foram eliminadas pelos melpas de suas tro­
cas m oka e substituídas por dólares australianos, hoje pelo kina, a nova
moeda nacional garantida pelo dólar australiano e que porta justamente
o nome das antigas pearl-shells. Foi assim que a pearl-shell utilizada
nas trocas cerimoniais não-comerciais deu seu nome à moeda nacional
criada depois da independência de Papua-Nova Guiné (em dezembro
de 1975). E foi o próprio Andrew Strathern, consultado por Michael

I 224Id., “Alienating the Inalienable”, Man, n° 17, 1982, p. 548-551.

1 5 2
O ENIGMA DO DOM

Somaré, primeiro primeiro-ministro do novo Estado independente,


quem sugeriu o nome de kina...
Além do aporte maciço e da desvalorização das pearl-shells, a che­
gada dos europeus acarretou a cessação geral das guerras tribais e eli­
minou as maiores ocasiões para se praticar o m oka. Mas, ao mesmo
tempo, a expansão das culturas comerciais, o afluxo relativo dos dólares
e depois da moeda nacional permitiram que muitas pessoas entrassem
no m oka, ainda mais que antes. Com efeito, como o m oka pré-coloni-
al repousava em grande parte na aquisição e troca de pearl-shells, cujas
rotas eram controladas pelos Big Men dos diferentes clãs que o prati- ,
cavam, havia menos gente engajada no m oka e, nesse número, menos
homens jovens lançando-se no empreendimento e menos riquezas cir­
culando globalmente.
Assistiu-se, portanto, a um florescimento do m oka depois da con­
quista colonial. A base, parece, desse florescimento vem do fato de que.'
a terra permaneceu, para os indivíduos engajados no m oka, um bem
comum inalienável que os protegia. É esta permanência, aqui e ali, de
formas de propriedade inalienáveis que explica por que, depois da
chegada dos europeus, a economia do dom e a economia comercial
desenvolveram-se paralelamente. Cada vez mais indivíduos e grupos
acumulavam dinheiro ou mercadorias para utilizá-los como objetos de
dom, ou faziam o inverso, vendendo objetos de dom como mercado- _
ria. E ainda em 1976, Ongka, o Big Man melpa cuja biografia foi escrita
por Andrew Strathern, explicava que as duas economias iam provavel­
mente continuar a se desenvolver juntas por longo tempo. Vinte anos
mais tarde, em 1996, essas previsões foram em parte desmentidas. Não
porque as duas economias tenham deixado de coexistir (embora a eco­
nomia de mercado tenha doravante assumido a dianteira), mas porque
as guerras tribais recomeçaram com maior amplitude, implicando mais
riquezas dadas como “compensação”: ora, para reunir o montante, é
preciso produzir e vender cada vez mais; mas para isso é preciso que a
paz dure pelo menos um certo tempo... Logo, essas sociedades enfren­
tam hoje novas contradições, nascidas da coexistência de poderes tribais

1 5 3
MAURICE GODELIER

locais sempre muito fortes e de um poder nacional, estatal, com muito


pouca capacidade de intervir localmente.
Mas o que permaneceu na base dessas trocas, apesar da inflação e
depois do rápido desaparecimento das pearl-shells, apesar da introdu­
ção maciça da moeda européia e dos bens manufaturados nas trocas
(caminhões Toyota etc.), foi o porco225. Não porque o porco seja a prin­
cipal fonte de proteínas, mas porque ele continua a operar nas trocas
matrimoniais e em todas as outras trocas necessárias à reprodução das
relações sociais locais. O porco continua a ser um substituto das pessoas.
Dão-se porcos em um nascimento, em um casamento ou por ocasião
de um falecimento etc.
No término desta análise do m oka, nós nos veremos confrontados
mais uma vez com o mesmo problema, o da natureza dos objetos pre­
ciosos que circulam nas trocas cerimoniais e competitivas. Sejam eles
os taonga dos maoris, os cobres dos kwakiutls, os vaygu’a dos habitan­
tes das Trobriands, os porcos e conchas dos melpas, todos estes obje­
tos, em graus diversos, são substitutos das pessoas humanas226. Este será
nosso ponto de partida para analisar as coisas que se dão e aquelas que
se guardam, as coisas sagradas que, talvez, longe de serem simples subs­
titutos de pessoas, sejam percebidas elas mesmas como pessoas, porém
sobre-humanas.
Por outro lado, o leitor ficou, sem dúvida, impressionado pela pre­
sença em todos os fatos que reportamos, dos dois princípios que se
combinam para engendrar certas formas de troca: uma regra de direi­
to que afirma a inalienabilidade da propriedade de certos objetos, e
uma outra que autoriza a alienar sua posse, mas para determinados usos.
Vimos assim que os objetos sagrados são objetos inalienáveis que se

“ Id., “Transactional Continuity in Mount Hagen”, in B. Kapferer (ed.), Transaction


and Meaning, Filadélfia, ISHI, 1976, p. 217-287.
“ ‘ Existem vários outros sistemas de troca na Melanésia. Nós nada dissemos das
trocas na Nova Bretanha entre os tolais, analisadas por R. Salisbury e A. Epstein,
nem das trocas entre os kapaukus de Irian Jaya, analisadas por Pospisil. Seria neces­
sário compará-las todas em um vasto quadro de transformações das lógicas do dom

1 54
0 ENIGMA DO DOM

devem guardar, e não dar, enquanto os objetos preciosos são objetos


que se dão e ao mesmo tempo se guardam. Constatamos também que
em todas as sociedades a inalienabilidade se baseia ou se legitima com
a crença na presença, no objeto, de uma força, de um espírito, de uma
realidade espiritual que o liga à pessoa que o dá e o acompanha em
todos os seus deslocamentos. Parece-nos que esta presença não é se­
não a figura assumida pela inalienabilidade em um mundo onde os
homens crêem que as realidades visíveis são habitadas e comandadas
por forças invisíveis, seres que são maiores que os homens mas que se
parecem com eles.
A humanidade não tem sido, desde as origens, ambivalente sobre
este ponto? Ela sabe que os objetos não se deslocam sozinhos e por
nada, mas ao mesmo tempo não faz de tudo para não sabê-lo, para não
vê-lo, para recusá-lo? Mas, por que ignorá-lo?
Concluiremos esta primeira parte retomando por nossa conta a
afirmação de que as coisas não se deslocam por nada e sozinhas. Nossa
posição não é, portanto, a dos “indígenas”. Ela não é também a de Lévi-
Strauss, que vê nas noções de mana e de hau conceitos vazios que re­
metem a operações inconscientes do espírito. Ela é aquela de Mauss,
mas até um certo ponto, pois não pudemos segui-lo até o fim.

As coisas n ão se d eslocam p o r n ada nem sozin has

Vimos que um objeto de dom não se desloca p or nada. Quando ele o


faz por ocasião de dons não-antagonistas, sua dupla transferência é o
meio de instituir uma dupla relação de dependência recíproca, da qual
se sabe que acarreta conseqüências sociais para os protagonistas: obri­
gações, mas também vantagens. E no mesmo movimento, ao fim des­
sas trocas, os dois parceiros se encontram em uma situação de equilíbrio,
pois a igualdade de seus status, se existia antes do dom inicial, é res­
taurada pelo contradom final. O dom e o contradom do mesmo objeto
constituem, portanto, a maneira mais simples, mais direta de produzir
dependência e solidariedade preservando ao mesmo tempo o status das

1 s 5
MAURICE GODELIER

pessoas em um mundo em que a maior parte das relações sociais é pro­


duzida e reproduzida pela instituição de laços de pessoa a pessoa. O
dom seguido do contradom do mesmo objeto constitui assim a molé­
cula elementar de qualquer prática do dom, o deslocamento mínimo
que é preciso efetuar para que esta prática ganhe sentido.
Mas ficou claro também que se a coisa não se desloca por nada,
ela tam bém não se desloca sozinha. Isto vai ao encontro tanto de
Mauss quanto das crenças polinésias. O que a pôs em movimento,
o que traçou antecipadamente o seu caminho, o que a fez ir e de­
pois voltar a seu ponto de partida foi a vontade dos indivíduos e/ou
dos grupos de produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais
que combinem solidariedade e dependência. Podemos estar certos
de que nem tudo é jogo nesse jogo, e de que por trás do jogo há
muitas necessidades enraizadas no social, necessidades sociais. Mas
há no ser social do homem mais do que a soma de suas necessidades
ou desta e daquela necessidade social. Isso tudo simplesmente por­
que os homens não se contentam em viver em sociedade e em re­
produzi-la como os outros animais sociais, mas têm de produzir
sociedade para viver.
Voltemos a essas duas conclusões que, de fato, são apenas as duas
faces de uma mesma realidade. As coisas dadas não se deslocam por
nada e também não se deslocam sozinhas. E evidente que as “coisas”
dadas não são necessariamente coisas, objetos materiais com significa­
ção cultural. A “coisa” pode muito bem ser uma dança, uma mágica,
um nome, um ser humano, um apoio em um conflito ou uma guerra
etc. Em suma, conforme sublinhava Mauss, o domínio do “doável”
ultrapassa largamente o material e diremos que é constituído por tudo
aquilo cuja partilha é possível, faz sentido e pode criar, no outro, obri­
gações, dívidas. Sem dúvida, o fato de o “objeto” dado ser isto ou aquilo
nunca é indiferente, insignificante. Sua natureza testemunha imediata­
mente tanto as intenções daqueles que o dão quanto o contexto no qual
o dão: guerra ou paz, aliança de casamento ou perpetuidade de uma
descendência etc.

1 56
0 ENIGMA DO DOM

As coisas não se deslocam por si mesmas. O que as põe em movi­


mento e as faz circular em um sentido, depois em outro e em outro
ainda etc. é sempre a vontade dos indivíduos e dos grupos de estabele­
cer laços pessoais de solidariedade e/ou dependência entre eles. Ora, a
vontade de estabelecer tais laços pessoais exprime m ais que a vontade
pessoal dos indivíduos e dos grupos, e mais até que o dom ínio da von­
tade, da liberdade das pessoas (individuais ou coletivas). Pois aquilo
que se produz ou se reproduz através do estabelecimento desses laços
pessoais é o conjunto ou uma parte essencial das relações sociais que
constituem a base de sua sociedade e que lhe imprimem uma certa ló­
gica global que é, ao mesmo tempo, fonte da identidade social dos in­
divíduos e grupos membros. Em suma, o que se manifesta através dos
objetivos que perseguem, das decisões que tomam, das ações que rea­
lizam voluntariamente os indivíduos e os grupos que compõem uma
dada sociedade não são apenas as suas vontades pessoais, mas necessi­
dades a-pessoais ou im-pessoais ligadas à natureza de suas relações
sociais e que ressurgem sem cessar da produção-reprodução dessas
relações (quer se trate de relações de parentesco, de poder ou de rela­
ções com os deuses e os espíritos dos mortos etc.).
Logo, as coisas não se deslocam por elas mesmas, são colocadas
em movimento pela vontade dos homens, mas esta vontade é ela mes­
ma animada por forças subjacentes, necessidades involuntárias, impes­
soais, que agem em permanência sobre os indivíduos, sobre aqueles que
tomam decisões como também sobre os que as suportam, porque atra­
vés das ações dos indivíduos e dos grupos são as relações sociais que se
reproduzem e se encadeiam, é a sociedade toda inteira que se re-cria e
o faz n ão im portando a form a e o grau de consciência que os atores
tenham, individual e/ou coletivam ente, dessas necessidades.
Vamos definir a situação. Podem-se explicar as razões que fazem
com que o dom de uma coisa seja seguido de um contradom desta
mesma coisa ou de uma coisa equivalente sem necessidade de fazer
intervir a crença na existência de uma alma nas coisas, de um espírito,
de uma força que as possuiria e levaria a retornar ao ponto de partida.

157
MAURICE GODELIER

Portanto, nos separamos de Mauss neste ponto, abrindo espaço à críti­


ca de Lévi-Strauss. Mas nossa explicação também não apelou para a
intervenção direta das “estruturas mentais inconscientes” que, por
definição, só podem ser universais e atemporais, pois presentes e atuan­
tes em cada um de nós e em cada povo, quaisquer que sejam os concei­
tos, nossos ou deles. Contrariamente a Lévi-Strauss, os mecanismos que
evidenciamos eram sociológicos, as realidades e as forças subjacentes
ao deslocamento das coisas dadas eram sociais. Elas não derivavam,
diríamos, diretamente das estruturas inconscientes e universais do pen­
samento, mas indiretamente, e isso através de estruturas sociais preci­
sas que, portanto, não estão presentes em todas as formas de sociedade.
Não que o social seja separado do mental ou possa existir sem o
pensamento, fora dele de algum modo. Mostramos em outra ocasião227
que uma relação social (de parentesco, de poder etc.) só pode nascer,
desenvolver-se, ser transmitida ou reproduzir-se porque contém, des­
de o seu nascimento, uma parte ideal composta pelos princípios cons­
cientes de seu funcionamento, pelas regras a seguir para sua reprodução,
pelas representações que lhe são necessariamente associadas e que fun­
damentam ou contestam a legitimidade de sua produção-reprodução
aos olhos dos membros da sociedade. Esta parte ideal de uma relação
social só existe no início através do pensamento e no pensamento, in­
dividual e coletivo. Logo, ela é, necessariamente, sujeita às estruturas
inconscientes e conscientes. Pensar é relacionar diversos aspectos do
real e descobrir, inventar, imaginar as relações entre essas relações.
Mas dizer que o social não existe separado do pensamento não é
dizer que a explicação última do social se encontra no “mental” e so­
bretudo nas estruturas inconscientes do “mental”. Também não é di­
zer que o social e o “mental”, consciente e inconsciente, só se explicam
em definitivo através do simbólico, ao qual se pode sempre, no entan­
to, reduzi-los. Pois o ideal, nascido do pensamento e através dele, não
existe apenas no pensamento. Ele está ativamente presente em todas

I 227Maurice Godelier, LIdéel et le Matériel, op. cit., p. 181.

158
O ENIGMA DO DOM

as realidades sociais que faz nascer e que o encarnam, isto é, materia-


lizam-no e o simbolizam ao mesmo tempo. Um sistema de parentesco
não se reduz a seus elementos ideais (princípios de descendência, de
aliança, regras de residência, classificação dos parentes etc.); ele está
presente em todas as instituições, nas cerimônias, nos gestos do corpo,
nos objetos através dos quais começa a existir socialmente, concreta-
mente, e que o “simbolizam”. Mas aqui o simbólico torna visível o sis­
tema, o “comunica”, mas não é sua fonte última, não o fundamenta.
Separamo-nos em parte, portanto, das conclusões de Mauss, sem no
entanto aderir às hipóteses de Lévi-Strauss. E devemos sublinhar que é
completando a análise antropológica de Mauss que pudemos criticar suas
limitações sem ficarmos encurralados no mesmo impasse, sem tomarmos
as representações indígenas de uma realidade como equivalentes àquelas
que são construídas por um pensamento estrangeiro que se quer científico
e crítico e não pode, por princípio, partilhar dessas representações (mes­
mo devendo necessariamente levá-las a sério e, de qualquer forma, voltar
a elas para explicá-las também). De fato, compreende-se facilmente que,
se esta base sociológica se junta e se combina com um sistema de crenças
mágico-religiosas na existência de uma alma, de um espírito, de uma for­
ça que impele a coisa a agir e a se deslocar por si mesma, tudo vai se passar
como se fossem as próprias coisas que arrastassem as pessoas atrás delas,
como se, impelidas por seu espírito, sua força própria, elas se esforçassem
para retomar mais ou menos diretamente, mais ou menos rápido, em dire­
ção à pessoa que primeiro as possuiu e que as deu.
A partir do momento em que, numa sociedade, a maioria das rela­
ções sociais só existe sob a forma e pela instauração de laços, de relações
de pessoa a pessoa; a partir do momento em que o estabelecimento des­
tes laços passa pela troca de dons que, eles mesmos, implicam transfe­
rências e deslocamentos de “realidades” que podem ser de qualquer tipo
(mulher, criança, objetos preciosos, serviços etc.), com a condição de que
possam ser objeto de partilha, todas as relações sociais objetivas que for­
mam a base de uma sociedade (seu tipo de sistema de parentesco, seu
sistema político etc.), assim como as relações pessoais, intersubjetivas

159
MAURICE GODELIER

que as encarnam, podem se exprimir e se “materializar” em dons e


contradons e nos deslocamentos, nos trajetos realizados pelos “objetos”
desses dons.
E pelo fato dé que o dom, como ato de dar, doação, como prática
real, é um elemento essencial da produção-reprodução das relações
sociais objetivas e das relações pessoais, subjetivas e intersubjetivas que
são seu modo concreto de existência, o dom como prática faz parte,
sim ultaneam ente, da forma e do conteúdo dessas relações. E neste
contexto que o dom, como a to mas também como objeto, pode re­
presentar, significar e totalizar o conjunto das relações sociais, do qual
é ao mesmo tempo instrumento e símbolo. E como os dons vêm das
pessoas e os objetos dados são inicialmente ligados, depois desligados
para serem outra vez ligados a pessoas, os dons encarnam tanto as pes­
soas quanto suas relações. E nesse sentido e por essas razões que o dom
— como disse soberbamente Mauss — é um “fato social total”. Justa­
mente porque contém e une ao mesmo tempo algo que vem das pessoas
e algo que está presente em suas relações é que ele os totaliza e simbo­
liza em sua prática e nos objetos que a materializam.
Mas quando a isso junta-se a crença de que as coisas dadas têm
uma alma, são como pessoas e podem agir e se deslocar por si mesmas,
então deve-se esperar toda uma série de transformações, de metamor­
foses da prática do dom e das formas de consciência individual e cole­
tiva que lhe são associadas. Afinal, nesse mundo não existem mais
“coisas”, não há senão pessoas que podem revestir a aparência ora de
seres humanos, ora de coisas. Ao mesmo tempo, o fato de que as rela?
ções sociais humanas (de parentesco, de poder) têm de assumir a for­
ma de relações de pessoa a pessoa, de relações intersubjetivas, é
estendido a todo o universo. A natureza, o universo inteiro não é mais
composto senão de pessoas (humanas e não-humanas) e de relações
entre pessoas. O cosmos torna-se o prolongamento antropomórfico dos
homens e de suas sociedades. O indivíduo encontra-se ligado ao uni­
verso inteiro, que o ultrapassa e que contém e ultrapassa também a sua
sociedade. Mas, ao mesmo tempo e inversamente, o indivíduo contém

1 6 o
0 ENIGMA DO DOM

em si mesmo, de uma certa maneira, toda a sociedade e todo o cos­


mos. O microcosmo do indivíduo contém o macrocosmo que o envol­
ve e é, ao mesmo tempo, contido nele. A parte é o Todo, o Todo está
inteiro em cada uma de suas partes. Cada um, do indivíduo e do cos­
mos, é como o espelho do outro e toda ação sobre um deve agir sobre
o outro. O mundo inteiro, inclusive os homens, tornou-se “encantado”.
Portanto, vê-se que, em uma sociedade em que o essencial das re­
lações sociais assume a forma de relações pessoais, quando domina a
crença segundo a qual as coisas também são pessoas, então o dom não
somente captura em si algo da essência das relações sociais, mas tam­
bém amplifica e aumenta a sua presença e realidade na consciência dos
indivíduos. Ele am plifica porque acreditar na existência de uma alma
nas coisas estende para além da sociedade — e impõe ao cosmos todo
inteiro, a todos os objetos e a todas as relações existentes no universo
— a forma das relações humanas.
A prática do dom estende-se, portanto, além do mundo humano e
torna-se elemento essencial de uma prática religiosa, ou seja, das rela­
ções entre os humanos, os espíritos e os deuses que, eles também, po­
voam o universo. O dom transforma-se aqui em sacrifício aos espíritos
e aos deuses, naquilo que Mauss designava como a quarta obrigação
fundadora da prática do dom. A crença na alma das coisas amplifica,
mas também engrandece as pessoas e as relações sociais, porque as
sacraliza. Pois se as coisas têm uma alma é porque as potências sobre­
naturais, deuses ou espíritos, habitualmente invisíveis, vivem nelas e
circulam com elas entre os homens, ligando-se ora a uns, ora a outros,
mas sempre ligando-os a si. Ora, sacralizando ao mesmo tempo os
objetos, as pessoas e as relações, a crença na alma das coisas não ape­
nas amplifica-engrandece um universo feito de relações pessoais, mas
altera a sua natureza, sua aparência e seu sentido. Ela os m etam orfoseia.
Em vez de se apresentarem como atores, os humanos se apresentam
como atuados. Em vez de simplesmente agirem sobre outrem por in­
termédio dos objetos que dão, eles se apresentam como atuados pelos
objetos que dão ou que recebem, submetidos às suas vontades e aos

16 1
MAURICE GODELIER

seus deslocamentos. A causa torna-se efeito, o meio se transforma em


agente, o agente se transforma em meio, e o objeto em sujeito.
Resumindo, a combinação dessa base sociológica, dessa lógica de
relações sociais personalizadas, com a crença em coisas-pessoas pro­
duz uma m etam orfose geral da realidade e uma inversão no pensam en­
to das relações reais existentes na prática. Os objetos se transformam
em sujeitos e os sujeitos em objetos. Não são mais (apenas) os seres
humanos que agem uns sobre os outros, uns com os outros, por inter­
médio das coisas; são as coisas, e os espíritos que as animam, que agem
doravante sobre elas mesmas, por intermédio dos humanos.
Foi por não ter levado mais longe a reconstrução da base socioló­
gica da prática do dom que Mauss veio a dar uma importância tão gran­
de a crenças mágico-religiosas que emprestam uma alma às coisas. Não
que tais crenças não desempenhem um papel social importante, mas
elas não explicam a origem real da obrigação de dar de volta aquilo
que se recebeu ou um equivalente. Elas explicam apenas a maneira como
esta obrigação é pensada, vivida, legitimada pelos atores sociais, os
indígenas de diferentes culturas. E não é apenas um mundo sim bólico
que aparece aqui. É, mais fundamentalmente, o mundo das represen­
tações imaginárias elaboradas pelos atores para explicar as razões de
suas próprias ações, sua origem e seu sentido: o mundo d o imaginário.
Percebe-se o contraste entre esses tipos de sociedade, de universos
sociais e mentais, e a sociedade capitalista de hoje em dia, em que a
maior parte das relações sociais é impessoal (eles engajam o indivíduo
como cidadão e o Estado como exemplo) e onde a troca das coisas e
dos serviços passa essencialmente por mercados anônimos, não dei­
xando nenhum espaço para uma economia e para uma moral do dom.
Quando a maior parte das trocas passa por um mercado e o valor dos
bens e dos serviços se exprime em uma moeda universal, as dívidas
contratadas se anulam, as coisas compradas ficam em suas mãos. Tal
universo deve, no entanto, apresentar necessariamente outras formas
de representação (e de prática), alienadas e fetichizadas, das relações
sociais sobre as quais se fundamenta. Mas isso é uma outra história.

1 6 2
Dos objetos-substitutos dos
homens e dos deuses
Encontramo-nos, portanto, diante de um certo número de problemas
que nossa análise do trabalho de Mauss sobre o dom fez surgir de
maneira bastante inesperada.
De fato, pareceu-nos cada vez mais claro que, ao lado daquilo que
se dá ou que se troca, seria necessário examinar com urgência as coisas
que se guardam; e que o próprio dom ganharia muito se o examinásse­
mos à luz daquilo que não se deve dar, mas guardar. Ora, as coisas que
se guardam são muitas vezes “sagradas” e, conseqüentemente, tornou-
se necessário que nos interrogássemos sobre aquilo que conferia uma
característica “sagrada” a esses objetos e, portanto, sobre o que é o
“sagrado”. Aliás, as divisórias não são tão estanques entre os objetos
sagrados e os objetos de valor produzidos para serem dados ou para
serem vendidos, alguns deles funcionando mesmo como “quase-moe-
das”. Os objetos não têm necessidade de ser diferentes para operar em
diferentes domínios e vale a pena examinar como, às vezes, um mes­
mo objeto pode ser sucessivamente vendido, dado e terminar enfurnado
no tesouro de uma família ou de um clã. Não é o objeto que cria as
diferenças, são as diversas lógicas dos domínios da vida social que lhe
conferem sentidos diferentes na medida em que se desloca de um para
outro e troca de função e de emprego.
Mas colocava-se também um outro problema, aquele de analisar
um pouco mais de perto as condições sociológicas, logo históricas,
do aparecimento e do desenvolvimento dos dons antagonistas, do
potlatch e das sociedades de potlatch. Sobre este ponto, contentamo-
nos em ouvir Mauss quando sugeriu — sem que isso tenha suscitado

1 6 5
MAURICE GODELIER

muitas reações — que o potlatch é uma forma transformada da prá­


tica de dons e contradons não-antagônicos. O problema era que real­
mente Mauss havia dito muito pouco sobre a natureza desses dons,
sobre sua lógica particular, para que pudéssemos distinguir as trans­
formações sociais necessárias ao aparecimento e ao desenvolvimento
do potlatch. Partindo daí, e tendo a sorte de viver e trabalhar em uma
sociedade na qual a prática de dons e contradons existia, mas não o
potlatch, formulamos a hipótese de que uma análise relativamente
detalhada do que acontece entre os baruyas — uma sociedade sem
potlatch, mas onde coexistem objetos sagrados, objetos de valor e
mesmo uma espécie de “objeto-moeda” (o sal de uso exclusivamente
cerimonial) — nos permitiria distinguir por contraste as condições
sociais de aparecimento do potlatch, a base social de seu desenvolvi­
mento. Os resultados desta reconstrução, que procedeu por indução
a contrario, deveriam permitir situar com precisão maior que a Mauss
o lugar das sociedades “de potlatch” entre as formas variadas da evo­
lução da sociedade humana.
Finalmente, foi de novo para os objetos que nos voltamos para
tentar distinguir as características que um objeto deveria apresentar para
que as representações imaginárias da vida, da riqueza e do poder pu­
dessem projetar-se, investir-se neles. A força dos objetos é a de materia­
lizar o invisível, representar o irrepresentável. E é o objeto sagrado que
preenche mais plenamente esta função.
Sem dúvida, tais análises colocam pelo menos duas questões às
ciências sociais. Por um lado, colocam em questão um postulado, pie­
dosamente recebido e unanimemente respeitado, celebrado sobretu­
do depois da introdução de Lévi-Strauss à obra de Mauss, a saber,
que tudo é troca no ser do homem e que é partindo da necessidade
da troca que se compreende o funcionamento das sociedades (ainda
que sua história, as diversas formas assumidas por sua evolução per­
manecem fora do campo da análise, onde são até mesmo repudiadas
como simples contingências). Por outro lado, elas desempenham para
as ciências sociais a função crítica das crenças espontâneas e das ilusões

4 C. C
0 ENIGMA DO DOM

que as sociedades e os indivíduos fazem sobre eles mesmos, e crítica


também das sábias teorias que não levam tais crenças a sério ou não
dão conta delas.

OBJETOS SAGRADOS, OBJETOS PRECIOSOS E OBJETOS-MOEDA ENTRE


OS BARUYAS DA NOVA GUINÉ

Os baruyas são uma tribo que vive nos dois vales de uma cadeia de
montanhas do interior da Nova Guiné, as Eastern Highlands. Sua re­
putação de produtores de sal fez com que fossem conhecidos por nu­
merosas tribos que jamais os tinham encontrado antes, mas que
compravam o sal que produziam das tribos com as quais eles comercia­
vam. Os ancestrais dos baruyas não habitavam onde seus descendentes
habitam agora: viviam na região de Menyamya, em Bravegareu-
baramandeuc, um local hoje deserto, onde os mestres das iniciações
voltavam a cada três ou quatro anos, por ocasião das cerimônias de
iniciação masculina, para colher as plantas mágicas e coletar os punha­
dos de argila e de terra ancestral de propriedades igualmente mágicas,
isto é, cheias de poderes sobrenaturais e da força dos ancestrais.
De fato, os ancestrais dos baruyas faziam parte de uma tribo que
se chamava Yoyué e tinham então o nome de Baragayé. Eles tiveram
que deixar seu território — provavelmente por volta do fim do século
XVIII — depois que a aldeia foi incendiada por inimigos e uma parte
de seus habitantes foi massacrada. Os remanescentes fugiram e encon­
traram finalmente asilo em Marawaka, entre os andjés, que habitavam
as encostas do monte Yelia, a cerca de quatro ou cinco dias de marcha.
Depois de algumas gerações, os refugiados, com a cumplicidade dos
ndeliés, um clã pertencente à tribo de seus hospedeiros, expulsaram
estes últimos de seu território e uma nova tribo surgiu, tomando o nome
de Baruya, do nome do clã que tinha a função ritual mais importante
nas iniciações masculinas: fazer os meninos passarem da infância à
adolescência, transformá-los em jovens guerreiros. Os baruyas conti­
MAURICE GODELIER

nuaram, no fim do século X IX e no começo do século X X , sua expan­


são territorial e invadiram um outro vale, o vale de Wonenara. Eles
combateram contra os grupos locais, com os quais, no entanto, troca­
ram mulheres, absorvendo pouco a pouco um certo número de linha­
gens autóctones que se afastaram de suas tribos de origem e escolheram
viver com eles, seus inimigos, mas também seus aliados pelo casamen­
to, repetindo o que os ndeliés tinham feito um bom século antes com
a sua tribo, os yoyués.
Precisemos, para completar esta exposição mais que sumária, que
entre os baruyas não há poder central, um param ount chief, como nas
Trobriand, nem Big Men que acumulem riquezas e mulheres e rivali­
zem a golpes de dons e contradons de tipo potlatch, como entre os
melpas. Existem homens mais importantes que os outros, os Apmwé-
nangalo, os “Grandes Homens” cujos poderes são ou herdados (como
aqueles dos mestres das iniciações masculinas ou das iniciações dos
xamãs) ou merecidos (como aqueles dos grandes guerreiros, dos gran­
des caçadores de casuares, dos grandes agricultores e dos melhores
fabricantes de sal). Os mestres das iniciações provêm sempre dos mes­
mos clãs, os outros Grandes Homens podem pertencer a qualquer clã.
Quais são então, entre os baruyas, as coisas que se dão, que se vendem
ou que se devem guardar? Entre eles coexistem três categorias de ob­
jetos que chamaremos, na falta de melhor, objetos sagrados, objetos
de “valor” e objetos funcionando como uma espécie de moeda.

D as coisas qu e se devem guardar entre o s baruyas

Na primeira posição entre os objetos sagrados figuram os kw aim atnié,


objetos de culto guardados secretamente pelos mestres dos rituais de
iniciação, que os exibem a céu aberto somente nessas ocasiões. Apenas
os clãs descendentes dos refugiados vindos de Menyamya possuem tais
objetos. As linhagens autóctones não os possuem, à exceção dos ndeliés,
o clã que, com sua traição, ajudou os ancestrais dos baruyas, os
baragayés, a tomar o território dos andjés, a tribo que os havia acolhi-

4 f n
0 ENIGMA DO DOM

do. Depois da vitória, a linhagem dos kwarrandariars, linhagem do clã


dos baruyas que inicia os jovens ao terceiro estágio, deu um par de
kw aim atnié aos ndeliés em agradecimento à sua ajuda e sobretudo para
associá-los à celebração das iniciações, pois é no decorrer destas inicia­
ções que a tribo dos baruyas se apresenta a ela mesma e a todas as tri­
bos vizinhas, amigos e/ou inimigos, como um todo, como um só
“corpo”, dizem eles.
Entre os objetos sagrados dos baruyas figuram igualmente os de­
dos ressecados da mão direita1— a que estende a corda do arco — de
Bakitchatché, herói legendário dos baruyas, que os liderou para com­
bater os andjés e tomar suas terras. Seu espírito, por exemplo, teria
abatido, com sua força apenas, uma grande árvore que caiu atravessa­
da sobre um precipício, permitindo que os guerreiros baruyas surpreen­
dessem e massacrassem seus inimigos, que não podiam imaginar que
seriam atacados por aquele lado. Seus dedos, conservados preciosamen­
te, como acontece muitas vezes com os grandes guerreiros, eram, no
curso das cerimônias de iniciação, mostrados aos futuros guerreiros
baruyas pelos descendentes de Bakitchatché, na crença de que uma parte
dos poderes sobrenaturais do herói se conservariam neles e dariam força
aos baruyas. Para estes últimos, os objetos têm um espírito, koulié, que
é ao mesmo tempo poder, um poder. A noção de koulié corresponde,
portanto, às idéias de m ana e de hau entre os polinésios.
O clã dos andavakias possuía um par de pedaços de sílex usado
apenas quando se construía a tsimia, a grande casa cerimonial que os
baruyas constroem a cada três ou quatro anos para iniciar seus meni­
nos. Antes da chegada dos europeus, os baruyas acendiam o fogo coti­
diano por fricção, ao passo que a cada vez, todos os fogos da aldeia

’Cf. o artigo de Patrick Guery “Sacred Commodities: The Circulation of Medie­


val Relics”, in A. Appadurai (ed.), The Social Life o f Things; Commodities in a
Cultural Perspective, Cambridge University Press, 1986, p. 169-194. Ver também
o artigo de Ilana Silber “Gift-Gi ving in the Great Traditions: The Case of Donations
to Monasteries in the Medieval West", comunicação feita em Princeton em 1995.
Agradecemos vivamente a I. Silber pelo envio do texto antes de sua publicação.

1 69
MAURICE GODELIER

apagados, o fogo das cerimônias era aceso por percussão, reativando o


gesto do Sol, pai dos baruyas e de todos os humanos, que tinha feito
jorrar o fogo primordial e nele lançara pedras de sílex. Estas, ao explo­
direm, haviam perfurado o sexo e o ânus do primeiro homem e da
primeira mulher, que, até então, tinham o sexo tapado; foi assim que,
em seguida, eles puderam copular e se reproduzir2. Os dedos de
Bakitchatché e as pedras de fogo desapareceram no incêndio da aldeia
em que viviam esses clãs, incêndio ordenado alguns meses após a pa­
cificação dos baruyas pelo jovem oficial australiano que comandava o
posto de Wonenara.
Este oficial, informado de que os homens da aldeia tinham pegado
em armas para lutar contra os homens de outra aldeia baruya, Wiaveu,
organizou uma expedição punitiva. De passagem, queimou a aldeia dos
agressores sem saber o que estava queimando “dentro”. Depois, che­
gando ao lugar do combate, confiscou todas as armas dos assaltantes,
quebrou-as ou queimou-as, e prendeu cerca de cinqüenta homens que
colocou “na prisão”. Na realidade, o combate tinha sido deflagrado
pelo suicídio de uma mulher proveniente da aldeia dos agressores, mas
casada com um homem de Wiaveu e que se tinha enforcado depois de
ter sido surpreendida ao enganar seu marido com o irmão caçula deste
último. Mas o oficial não tentou conhecer a razão do conflito. Impor­
tava-lhe apenas que as pessoas deixassem de fazer justiça com as pró­
prias mãos e que se estabelecesse em todo o território a justiça do Estado
australiano. Doravante, os baruyas seriam súditos, distantes, de Sua
Majestade, a rainha da Inglaterra.
Mencionemos também, embora não se trate de objetos “duráveis”,
as plantas mágicas colhidas no sítio sagrado de Bravegareubaramandeuc
pelos mestres das iniciações e seus ajudantes e conservadas para serem

2As noções de fogo aceso pelo Sol-Pai e dos sexos perfurados de súbito pela ex­
plosão do sílex da pedra de fogo se assemelham muitíssimo ao big-bang do
surgimento da linguagem entre os homens segundo Lévi-Strauss ou da ordem sim­
bólica em Lacan. Antes nada era possível, depois tudo o foi.

1 70
O ENIGMA 00 0 OM

utilizadas por ocasião das refeições rituais coletivas que se sucedem ao


longo de todas essas cerimônias. A revelia deles, os oficiantes inserem
em pedaços de taro ou de batata-doce as folhas secas das tais plantas e
dão para os iniciados, que não têm o direito de olhar o que comem.
Inserem-se igualmente pedaços dessas folhas nas nozes de bétele que
lhes são dadas para mascar. Mas, nesse caso, acrescenta-se também uma
fina fatia de fígado cru de uma variedade de gambá, o djatta, animal
muito perigoso e difícil de ser pego vivo e que é sacrificado quando se
está construindo a casa cerimonial, a tsimia. Este fígado cru devorado
é associado a uma prática já desaparecida. Outrora, os baruyas mata­
vam os guerreiros inimigos que haviam aprisionado; depois de que-
brar-lhes pernas e braços e de adornar seus corpos com plumas e outros
ornamentos, eles eram sacrificados. Um grupo de jovens guerreiros,
brandindo punhais de bambu com os cabos envoltos em uma tira de
cortiça vermelha, a cor do sol, descia correndo uma colina e, todos ao
mesmo tempo, mergulhava seus punhais no peito da vítima. Recolhia-
se então o seu sangue, com o qual a platéia era besuntada, e finalmente
abria-se o seu ventre, arrancando-lhe o fígado, que era dividido entre
os homens.
Todos esses objetos, kwaimatnié, dedos ressecados de Bakitchatché,
pedras de fogo, plantas colhidas no sítio sagrado dos ancestrais, distin-
guem-se dos outros objetos sagrados porque têm poderes que devem
ser colocados a serviço de todos os baruyas. Devemos acrescentar tam­
bém as flautas e os rombos, instrumentos cujos sons marcam os mo­
mentos mais solenes dos ritos, pelo menos daqueles que se desenrolam
fora da aldeia ou dos lugares habitados, no coração das florestas ou
nas savanas cultivadas que cercam as aldeias. Apenas os homens dos
clãs dos mestres das iniciações podem fabricar tais instrumentos e tocá-
los. Mas enquanto os rombos são conservados pelos homens desses clãs
cuidadosamente enrolados em estreitas faixas de cortiça e carregados
sempre junto ao corpo, fechados em um saquinho com outros objetos
mágicos, as flautas de bambu são fabricadas a cada cerimônia e des­
truídas logo após o uso. Elas são quebradas em mil pedaços, que os

1 7 1
MAURICE GODELIER

músicos jogam no mato assim que a caravana dos homens e dos iniciados
se aproxima das aldeias. Veremos o motivo um pouco mais adiante.
Mas notemos desde já, para não mais voltar ao assunto, que ao lado
desses objetos sagrados, duráveis ou não, colocados a serviço de todos os
baruyas no quadro das iniciações, cada clã ou linhagem possui outros ob­
jetos dotados de uma “eficácia”, de um poder (imaginário e simbólico para
nós) mais limitado. Trata-se de certos cassetetes de pedra ou de madeira
que pertenceram a guerreiros ilustres e que seus descendentes conservam
preciosamente e também das pedras de fertilidade que cada linhagem possui
e que os homens desta linhagem enterram no solo dos jardins que abrem
nas florestas e que desenterram quando deixam de cultivá-los. Bem en­
tendido, todos esses objetos não funcionam sem que sejam pronunciadas
as fórmulas, palavras secretas que acompanham seu uso.
Mais algumas palavras sobre os rombos: um rombo entre os baruyas
se apresenta com a forma de um pedaço negro de palma, fino e com
um comprimento que vai de 20 a 25cm, polido e trespassado em uma
ponta por um furo por onde passa um cordão de cortiça. Os rombos
são mostrados sob grande segredo aos jovens iniciados, quando eles
atingem o segundo estágio das iniciações. Então, é-lhes dito que jamais,
sob pena de morte, devem revelar às mulheres que são os homens que
tocam os rombos, fazendo-os girar acima de suas cabeças e produzin­
do um mugido, um ronco enorme que não se parece com nenhum som
da natureza e que é tido como a voz dos espíritos com os quais os ho­
mens conversam, comunicam-se na floresta, no momento das iniciações.
Os rombos são fabricados pelos homens e transmitidos preciosa­
mente a seus filhos, mas na origem, dizem os baruyas, foram dados aos
homens (e somente a eles) pelos yim aka, os espíritos da floresta. Um
wandjinia, um “homem do tempo do sonho”, um ancestral dos tem­
pos das origens que subiu ao topo de uma árvore, ouviu de repente
alguma coisa assobiando e enfiando-se no tronco acima de sua cabeça.
Ele olhou, viu uma espécie de flecha e soube que havia sido fabricada
e lançada pelos yim aka. Esta flecha é o ancestral dos rombos. Ao dar-
lhes os rombos, os yim akas, dizem os baruyas, deram aos homens po­

1 7 2
O ENIGMA DO DOM

deres para conseguir sucesso na caça e na guerra, poderes de morte. E


quando os rombos soam no coração da floresta, os padrinhos dos ini­
ciados recolhem a seiva (esperma e leite) de uma árvore que lança seus
ramos para o céu, em direção ao Sol, e depositam-na na boca dos jo­
vens rapazes. Nesse momento, o Sol, as árvores, os espíritos da flores­
ta, os homens baruyas se unem na tarefa de reengendrar esses rapazes
fora do ventre de suas mães.
Todos os objetos sagrados descritos até aqui são objetos masculinos
ou, mais exatamente, objetos apropriados e utilizados exclusivamente
pelos homens. De fato, uma outra realidade aparece quando se examina
mais de perto os mais poderosos e mais secretos de todos, os kwaimatnié.
Um kwaimatnié se apresenta sob a forma de um pacote oblongo envol­
vido por tira de cortiça marrom bem apertada e envolvida ela mesma
em um yipmoulié, faixa de cor vermelha, a cor do Sol, com a qual os
homens cingem a testa durante as cerimônias. Esta faixa é o símbolo da
“rota de fogo” que uniu os ancestrais dos baruyas, os homens do tempo
do sonho, ao Sol. Kwaimatnié provém de kwala, “homem”, e yitmania,
“fazer crescer, aumentar”. Um kwaimatnié é, portanto, um objeto que
contém o poder de fazer crescerem os seres humanos, e os baruyas apro­
ximam esta palavra de nymatnié, que significa “feto” ou “aprendiz xamã”.
Um kwaimatnié não existe sozinho. Ele faz parte de um par, e neste par
ele é tanto macho quanto fêmea. O mais poderoso dos dois, o mais “quen­
te”, é o kwaimatnié mulher. O único que pode guardá-lo é o homem
que “representa” sua linhagem quando esta linhagem possui um par de
kwaimatnié. É ele que manuseia o kwaimatnié mulher; o outro, o ma­
cho, é deixado a seus irmãos reais ou classificatórios, que o assístem em
suas funções rituais. O número e a natureza destes casais de kwaimatnié
e o fato de que o mais poderoso dos dois seja mulher são coisas mantidas
completamente em segredo para as mulheres, crianças e para os inicia­
dos nos primeiros estágios.
Os kw aim atnié não podem liberar seus poderes de vida por si
mesmos. Eles são liberados apenas no momento em que o represen­
tante da linhagem que possui tais objetos os eleva para o céu, em direção

17 3
MAURICE GODELIER

ao Sol, antes de bater com ele no peito dos iniciados e fazer com que
sua força penetre seus corpos. Quando os eleva ao céu, o oficiante
invoca silenciosamente, dentro de si, o nome secreto do Sol (des­
conhecido das mulheres) e a fórmula mágica que seus ancestrais lhe
transmitiram com o par de kw aim atnié. O objeto sagrado é, portan­
to, o elemento visível, material, de um todo que comporta outros ele­
mentos imateriais, uma fórmula secreta e um nome sagrado. Sem a
fórmula, o objeto perde grande parte de seus poderes. E por isso que
os mestres dos rituais, nesta sociedade guerreira, não vão à guerra:
por medo de que sejam mortos antes de transmitirem seu saber aos
filhos. E por isso também que os outros clãs lhes dão esposas com
facilidade, sem exigir nada em retorno ou sem fazê-lo imediatamen­
te, pois o que se espera é que eles tenham filhos, filhos a quem trans­
mitir o objeto e a fórmula.
Exteriormente, um kw aim atnié se apresenta como um objeto cu­
rioso de se ver, cuja forma e aspecto não permitem adivinhar seu uso,
função, e cujo interior ninguém, entre os baruyas, deve ver, com exce­
ção, bem entendido, do representante da linhagem que o possui e da­
quela de seus filhos, que herdará suas funções rituais. Toda uma série
de questões se coloca, portanto, a esse respeito. De onde eles vêm,
segundo os baruyas? Por que nem todos os clãs dos baruyas possuem
um? O que se esconde no interior de um kw aim atn ié? O que seu
guardião vê quando, de tempos em tempos, abre o pacote para ajeitar
de novo o que está dentro dele e fechá-lo de novo?
Comecemos pela primeira questão: de onde vêm os kw aim atn ié?
A resposta dos baruyas é invariável: é o Sol, é a Lua ou são os espíritos
que os deram aos ancestrais dos baruyas do tempo dos wandjinia.

O s o b jeto s sagrados co m o don s d o Sol, d a L u a o u d os espíritos


a o s ancestrais m íticos d os baruyas.

Precisemos antes de mais nada que existem duas tradições entre os


baruyas a respeito do Sol e da Lua. Uma conhecida por todos (homens,

1 74
O ENIGMA DO DOM

mulheres, crianças, iniciados e não-iniciados) afirma que o Sol é mas­


culino e a Lua é sua esposa. Os baruyas dirigem-se, aliás, ao Sol tratan­
do-o por N oum wé, pai, e à Lua chamando-a de N oua, mãe. Sol reina
sobre a luz, o dia, o calor, o seco, o esperma; Lua sobre a obscuridade,
a noite, o frio, o úmido, o sangue menstruai. Mas existe uma outra
tradição, esotérica, conhecida apenas pelos mestres das iniciações e
pelos grandes xamãs, segundo a qual Lua é o irmão caçula do Sol. Entre
os kw aim atnié, alguns foram dados pelo Sol, como é o caso daqueles
da linhagem dos kwarrandariars, a mais importante do clã dos baruyas,
que deu seu próprio nome à tribo que surgiu após a vitória dos refugia­
dos yoyués sobre seus hospedeiros, os andjés de Marakawa. Outros
teriam sido dados pela Lua, como o dos kuopbakias, do qual tivemos o
privilégio de observar o que estava escondido no interior. Voltaremos
a este ponto.
De fato, o dom de kwaimatnié, feito por Sol, aos ancestrais dos
kwarrandariars é considerado como o ato mesmo de fundação da tribo
dos yoyués, à qual pertenciam os ancestrais dos baruyas. Eis o relato deste
ato de fundação tal como me foi confiado em 1970 por Yarouémayé, da
linhagem dos kwarrandariars, que vinha de suceder, na função de mes­
tre das iniciações (em baruya: “homem do kwaimatnié”), a Ypméyé, seu
tio, que ao morrer deixara apenas garotos jovens demais para assumi­
rem sua tarefa. Salta aos olhos que o relato é construído, os aconteci­
mentos apresentados de tal maneira que fica claramente legitimado o
lugar central desse clã e dessa linhagem no desenrolar das iniciações
masculinas:

Outrora todos os homens viviam em um mesmo lugar, um lugar situa­


do perto do mar. Um dia, os homens separaram-se e nosso ancestral, o
ancestral de nossa própria linhagem, os kwarrandariars, os kwarran­
dariars sbaruyas, os kwarrandariars do clã dos baruyas, elevou-se nos
ares e voou até o lugar onde desde então vivemos, Bravegareubaraman-
deuc, não longe de Menyamya.

17 5
MAURICE GODELIER

Nosso ancestral se chamava Djivaamakwé, e Djivaamakwé voou nos


ares ao longo de uma estrada vermelha como o fogo. Esta estrada
era com o uma ponte que os wandjinia haviam construído para
Djivaamakwé e para os kwaimatnié que o Sol tinha dado a nosso
ancestral antes que ele voasse. O Sol é o homem do meio. Ele vê
tudo e todos ao mesmo tempo. Djivaamakwé recebeu três kwai­
matnié. Quando ele tocou o solo, os wandjinia, os homens-espírito,
revelaram-lhe o nome, Kanaamakwé, o nome secreto do Sol. Reve­
laram-lhe também o nome do lugar e o nome que se deveria dar aos
homens que ele encontraria por lá: os baragayés, os baruyas. Baruya
é o nome de um inseto de asas vermelhas manchadas de negro que
os membros do clã dos baruyas não têm o direito de matar. Essas
asas são com o a estrada vermelha que levou Djivaam akwé até
Bravegareubaramandeuc.
Lá havia aqueles homens. Ele lhes deu seus nomes [de clã], Andavakia,
Nunguyé etc. Depois ele instituiu as iniciações masculinas. Explicou
que um rapaz deve se tornar mouka [primeiro estágio], depois palitta-
mounié [segundo estágio], depois tchouwanié [terceiro estágio] etc. e
deu-lhes a todos tarefas a cumprir, ritos a celebrar, e fez com que cons­
truíssem uma tsimia [a casa cerimonial]. Então, ele declarou: ‘Eu sou,
eu, a viga mestra desta casa, o tsimayé. Vocês estão abaixo de mim,
eu sou o primeiro e o primeiro nome de todos será doravante o meu,
Baruya.’ Os outros, os andavakias, os nunguyés etc., não protesta­
ram quando ele exaltava seu nome, o nome dos baruyas kwarran-
dariars, e rebaixava os seus, andavakias, nunguyés etc. Eles possuíam
pequenos kwaimatnié [...]. Ele lhes disse: ‘Agora experimentem os seus
kwaimatnié, ensaiem-nos a fazer o que eu disse que fizessem nas ini­
ciações. '
Eles lhe disseram: 'Nós somos os teus guerreiros, não podemos dei­
xar que os inimigos te matem, tu não farás a guerra. Nós iremos e tu
restarás no meio de todos nós.’ Pois a partir do momento em que
Djivaamakwé tocou a terra, houve muitas guerras [...]. Foi por cau­
sa da guerra, das guerras incessantes, que Yarouémayé [note-se que
é o mesmo nome que tem , hoje, aquele que detém o kwaimatnié e
0 ENIGMA DO DOM

que Djivaamakwé, teve q u e fu g ir de


m e fe z este rela to ], filh o d e
Marawaka. Mas e le le­
B ra v ega reu b a ra m a n d eu c e vir se refu gia r e m
vou os k w a im atn ié, o d o m do Sol.
Em Marakawa nossos ancestrais mudaram de nome. Os ndeliés os aco­
lheram e instalaram em kwarrandariar. Desde então nós somos os
baruyas kwarrandariars. Em seguida, os ndeliés nos ajudaram a ven­
cer os andjés e a tomar conta de seu território e, para agradecer-lhes,
nosso ancestral de então, que também se chamava Djivaamakwé, deu
aos ndeliés o terceiro dos kwaimatnié dados pelo Sol. E deu-lhes um
papel nas iniciações. Diante dos inimigos vencidos, Djivaamakwé pou­
sou suas insígnias sobre a cabeça dos homens jovens. Ele disse: ‘Estes
aqui serão grandes guerreiros’ [os aoulatta], "aqueles lá serão os
koulaka, os xamãs’. Ele viu e marcou aqueles que deveriam ser Gran­
des Homens3.

Vários comentários se impõem à leitura deste relato. Ele confirma


que Bravegareubaramandeuc é realmente o local sagrado dos baruyas,
um sítio a vários dias de marcha de seu atual território, mas ao qual, a
cada três anos, os mestres dos kw aim atnié acorrem com seus ajudan­
tes. Eles voltam aos locais em que Djivaamakwé havia pousado o pé
para colher as plantas sagradas que secretamente darão aos novos ini­
ciados no decorrer das refeições rituais que pontuam as diversas fases
das iniciações.
Bravegareubaramandeuc é para os baruyas aquilo que Lavinium era
para os romanos. Situada a cerca de trinta quilômetros ao sul de Roma,
Lavinium era considerada a metrópole dos latinos. Era lá que os dii
penates populi Romani, os deuses próprios do povo romano, os deuses
ancestrais das linhagens (patrii), os deuses de dentro (penates) tinham
seu sítio oficial, provavelmente no santuário de Vesta. Segundo o mito,
Lavinium havia sido fundada por Enéias, que fugira de Tróia em cha­
mas levando consigo as imagens dos deuses, objetos sagrados e o fa­
moso escudo de Atena, o Paládio, que Dardanos, fundador de Tróia,

3Maurice Godelier, La Production des Grands Hommes , op. cit., p. 15S-156.


MAURICE GODELIER

tinha trazido com ele da Samotrácia. Como escreve Yan Thomas em


um notável estudo consagrado aos sacra principiorum populi rom ani4:

Quando se abria o ano político, apenas ratificados por Júpiter, assim


que recebiam a investidura do povo, os magistrados romanos subiam
ao Capitólio e logo em seguida iam a Lavinium para proceder aos
sacrifícos para Júpiter indiges, de um lado, para os deuses penates
públicos e para Vesta, de outro O retorno a Lavinium é uma volta
no tempo. Mais exatamente, uma regressão até aquele momento da
origem em que a linhagem encontra um território e, ao fixar-se, mar­
ca o origo: momento em que a duração se imobiliza em um lugar, na
interseção da linhagem e do território [...]. Na origem se encontram
duas tendências contrárias entre o movimento que segue o curso das
gerações — e que figura o exílio — e o enraizamento5.

Voltaremos mais adiante aos objetos sagrados dos romanos que ape­
nas os sacerdotes e as vestais tinham direito de contemplar. Servius fala
de louças de madeira e de mármore trazidas por Enéas, que evocam o
mobiliário enterrado nas tumbas dos chefes. Mas é sobretudo o Paládio
que merece comentário, pois, ao reivindicar sua posse, os romanos in­
ventavam origens míticas que os faziam iguais aos heróis legendários dos
gregos e faziam de Roma uma cidade comparável a Atenas. Evidencia-se
a engrenagem política desta filiação, mas para estabelecê-la foi preciso
dedicar-se a certas contorções que Dênis de Halicarnasso nos reporta6.
Foi preciso, por exemplo, imaginar que Dardanos havia trazido da
Samotrácia dois escudos, um dos quais tinha sido roubado pelos gregos

‘'Yan Thomas, “L’institution de Porigine; Sacra principiorum Populi Romani”, in


Mareei Détienne, Tracés de fondation, Louvain-Paris, Peeters, 1990, p. 143-170.
Agradeço vivamente a Yan Thomas por ter, generosamente, aberto seus arquivos
para que eu pudesse ír em busca dos objetos sagrados dos romanos através das
fontes múltiplas e fragmentárias que ele havia reunido e que comentou para mim.
5Ibid.( p. 143 e 162.
‘ Dênis de Halicarnasso I, 68-69.

17 8
O ENIGMA DO DOM

e levado de volta à Grécia, e o outro trazido por Enéias quando da que­


da de Tróia. Em suma, isso tem lá suas semelhanças com os baruyas kwar­
randariars que pretendem ter sido o seu ancestral, Djivaamakwé, quem
deu aos outros clãs os seus kwaimatnié, e que negam, como veremos,
que os clãs que eles submeteram tivessem jamais possuído um.
O mito de fundação dos baruyas também é perfeitamente explícito
no que concerne às funções e ao status dos homens com kwaimatnié, que
não somente instituem a dominação masculina e comunicam aos futuros
guerreiros a força do Sol e dos grandes guerreiros mortos outrora, mas
distinguem em cada geração aqueles que vão sucedê-los, aqueles que se­
rão o abrigo de toda a tribo, aqueles cujo nome vai crescer como o deles:
os aoulatta, os koulaka, os grandes guerreiros, os xamãs, cujo status não
se herda, mas se merece, se mostra e se demonstra. Compreende-se por
que, entre os baruyas, somente os mestres dos kwaimatnié do Sol têm o
direito de pousar sobre a cabeça dos jovens homens, e de retirá-los, o bico
de calao e o círculo de dentes de porco que simbolizam seu status de ho­
mens e de guerreiros. Seu próprio pai não tem o direito de fazê-lo, prova,
se fosse necessário, de que as iniciações constituem uma ordem social su­
perior àquela das relações de parentesco. E a ordem da solidariedade
masculina e da unidade política e ideológica de toda a tribo.
Diante da solidariedade coletiva dos homens em relação às mulhe­
res e da necessidade de preservar a unidade da tribo, o fato de que as
linhagens e clãs autóctones que se aliaram aos baruyas não tenham lugar
nas iniciações parece ter menos peso. Mas isto não significa que esta
denegação dirigida contra os autóctones não seja um ponto virtual de
fratura no interior do corpo social, da tribo.
O mito nos “explica”, portanto, a origem dos kw aim atnié. Para os
baruyas kwarrandariars, foi o próprio Sol que os deu aos ancestrais dos
clãs que viviam em Bravegareubaramandeuc. Em contrapartida, o Sol
nada deu aos ancestrais das populações autóctones que os baruyas incor­
poraram, depois, à sua tribo. Se os ndeliés são uma exceção, é porque
os baruyas kwarrandariars fizeram-lhes dom de um deles para recom­
pensá-los por terem acolhido e protegido seus ancestrais e para

17 9
MAURICE GODELIER

associá-los aos rituais que celebram a unidade da tribo, assegurando


ao mesmo tempo a dominação dos homens sobre as mulheres. Como
que por acaso, o Sol havia, no entanto, dado aos ancestrais dos baruyas
vários pares de kw aim atnié, prevendo que eles um dia ainda precisa­
riam. O que demonstra que nas crenças dos baruyas há lugar, como
em qualquer religião, para alguns silêncios, algumas amnésias, sobre­
tudo nos casos em que ser surdo, cego ou perder a memória pode ser
útil, e mesmo necessário, para manter o poder.
Um fato vai nos permirtir compreender a engrenagem dessas amné­
sias e a razão da divisão desigual dos kwaimatnié entre os clãs. Pois esta
divisão tem um significado político. Ela testemunha uma história passa­
da, relações de forças e de alianças entre refugiados transformados em
conquistadores e autóctones que se tornaram aliados, mas subjugados.
Eis o fato: como eu perguntei a um dos mestres dos rituais por que os
kavaliés, linhagem autóctone absorvida por ocasião da invasão do vale
de Wonemara no início do século X X , não possuíam kwaimatnié, ele
respondeu-me em tom veemente e com um ar enojado: “Mas é gente
que saiu dos excrementos dos casuares, são homens da floresta aos quais
o Sol nada deu.” Algum tempo depois, tive a ocasião de perguntar ao
representante dos kavaliés, Arindjané, um guerreiro temido, admirado,
por que a sua linhagem não possuía nenhum kwaimatnié. Abaixando a
voz, ele me respondeu que ia me dizer tudo, porém mais tarde, em um
local sagrado. E foi o que fez. Revelou-me então que seus ancestrais, no
momento da vitória dos baruyas, tinham decidido que aqueles dentre
eles que haviam trocado mulheres com os baruyas iriam viver com eles,
abandonando seu clã ancestral e sua tribo vencida. Depois, antes de se
separarem, esses homens enterraram seus kw aim atnié em seu antigo
território, em um local da floresta mantido em segredo, onde esperariam
o dia em que os kavaliés poderiam retomá-los e brandi-los novamente
acima do peito dos futuros guerreiros.
Mas aos olhos dos baruyas, o clã dos kavaliés não tem kw aim atnié e
depende deles para que seus filhos cresçam e se tornem guerreiros. Por­
tanto, os baruyas querem acreditar que se os kavaliés não os possuem é

i 8o
0 ENIGMA DO DOM

porque nunca os possuíram por não serem dignos e não serem seres
humanos como os baruyas. A divisão desigual dos kw aim atnié traduz
diretamente, portanto, as relações de poder, de lugares distintos em uma
hierarquia, na totalidade político-religiosa que é a sociedade dos baruyas.
Não é difícil compreender por que todos esses objetos, assim como
os saberes que os acompanham (fórmulas, nomes secretos etc.), são
bens inalienáveis que, em princípio, são excluídos das trocas, tanto das
trocas de dons quanto das trocas comerciais. Esses bens são inalienáveis
porque constituem uma parte essencial da identidade de cada clã7. Eles
os distinguem, marcam suas diferenças, diferenças estas que compõem,
aqui, uma hierarquia.
Pois todos os clãs dos descendentes dos refugiados de Bravega-
reubaramandeuc, assim como os ndelié, participam por certo dos traba­
lhos de iniciação, mas não no mesmo lugar, não no mesmo estágio, não
através dos mesmos ritos. O conjunto dos estágios e dos ritos que os re­
produzem se apresenta como uma estrutura que se desdobra entre dois
momentos cruciais e os une: a separação forçada dos meninos do mundo
feminino e a perfuração do nariz (passagem ao primero estágio) é tarefa
do clã dos tchatchés; a passagem, alguns anos mais tarde, dos meninos, do
mundo da adolescência ao mundo dos “homens jovens” (passagem do
segundo para o terceiro estágio) é trabalho do clã dos baruyas. No curso
da segunda passagem, no maior segredo, coloca-se acima da cabeça dos
rapazes um bico de calao que é, para os baruyas, o sím bolo do pênis que se
eleva sobre uma espécie de coroa, cingindo a fronte e terminando por dois
dentes de porco afiados como punhais, cujas pontas são enterradas na carne
da testa do iniciado. É o sím bolo da vagina das mulheres.
Parece-nos essencial lembrar que em uma totalidade hierarquizada
não existem relações verdadeiramente recíprocas. Existem apenas rela­
ções não-simétricas de complementaridade e de interdependência. Em
uma hierarquia, mesmo se todos os clãs têm seu lugar, nenhum ocupa

^ o s s a posição concorda com a de Annette Weiner em seu artigo “Inalienable


Wealth”, American Ethnologist, 12 (2), maio de 1988, p. 210-227.

18 1
MAURICE GODELIER

exatamente o mesmo lugar e nem mesmo um lugar equivalente ao dos


outros. Pelo fato de tal clã possuir tal kw aim atnié e intervir no momen­
to tal das iniciações, seu papel tem um peso distinto daquele dos outros.
Sendo singular e indispensável, nada pode realmente eqüivaler a ele,
tomar seu lugar, substituí-lo, enfim, medir-se com ele. Uma totalidade
hierarquizada é, portanto, um conjunto de relações complementares, no
limite insubstituíveis umas às outras, um “todo que forma um sistema”.
Mas não há nenhuma razão para afirmar, como faz Lévi-Strauss, que
um todo, por formar um sistema, depende de cabo a rabo do simbólico,
que o significante (o simbólico) nele “precede e determina” o significa­
do. O sistema político-religioso dos baruyas, o lugar de seus clãs no inte­
rior de uma hierarquia são baseados na posse desigual dos poderes
“imaginários” que legitimam esta hierarquia. Uma lógica simbólica é uma
lógica de relações, mas estas não se reduzem a seus símbolos. E, levando
em conta a polissemia dos símbolos, o conteúdo das relações não pode
ser deduzido diretamente da análise de seus símbolos, nem se reduzir a
eles. Temos, aliás, um exemplo nos dois símbolos da vagina que encon­
tramos em nossa análise, a flauta de bambu e um círculo de junco termi­
nado por duas presas de porco. Eles são totalmente distintos um do outro
e não se explicam senão pela construção ideal, imaginária, em que to­
mam lugar e que lhes dá sentido. Donde a questão que devemos nos
colocar agora e que vai bem além do caso dos baruyas.

Os o b jeto s sagrados são sím b o lo s?

Se os objetos sagrados dos baruyas são símbolos, o são do mesmo modo


para os baruyas e para nós? Os kwaimatnié são dons que o Sol fez aos
ancestrais dos diferentes clãs dos baruyas na época em que os homens não
eram como os homens de agora, nos tempos originários em que as coisas
instalaram-se em seus lugares, na época dos wandijnia, seres do sonho.
Para com o Sol e a Lua os homens e as mulheres que vivem hoje têm,
portanto, uma dívida impagável, como estão em dívida em relação a seus
ancestrais que receberam tais dons do Sol e transmitiram-nos a eles. Esses
O ENIGMA DO D O M

objetos sagrados, assim como os saberes que os acompanham, os baruyas


não podem aliená-los. Devem guardá-los. São eles que formam sua iden­
tidade enraizando-a no tempo das origens, o tempo da ordem (imaginá­
ria) das coisas, o tempo dos fundamentos da ordem cósmica e social.
Mas se devem guardá-los, os clãs baruyas devem também partilhar
com os outros os seus benefícios. Sem alienar o objeto, fonte de seus
poderes, eles alienam seus poderes benéficos, redistribuindo-os entre todos
os membros da tribo. Eles os partilham, colocam-nos a serviço do todo
como um todo, da sociedade. Logo, não é o objeto apropriado que é
alienado, são seus efeitos. O objeto, este permanece imóvel entre as mãos
do clã, fixando-o em seu lugar, ligado ao Sol e a seus ancestrais; o que se
desliga dele, o que é alienável, doável, trocável mesmo, não são os seus
poderes, que permanecem ligados a ele, mas os efeitos desses poderes
que, eles sim, podem se dividir, podem ser partilhados, trocados, juntar-
se a outros, completá-los (ou ligar-se a outros ainda, opondo-se a eles)8.

“Insistindo no fato de que os objetos sagrados são objetos que devem ser guarda­
dos, que tendem a ser excluídos da troca de dons e das trocas comerciais, não
vamos pretender ignorar os vários testemunhos de venda e de compra de objetos,
ritos e fórmulas sagradas observados e descritos em numerosas sociedades pelo
mundo afora e em épocas diferentes. Encontram-se exemplos, na Nova Guiné
mesmo, de “compra” de ritos e de objetos sagrados associados aos cultos de uma
mulher-espírito senhora da fertilidade entre os engas e em outras culturas. O dom
de relíquias dos santos apóstolos pelos papas na Idade Média, que desfrutavam
do vasto tesouro das catacumbas, seu comércio por intermédio de profissionais
como Deusdona, que havia obtido a concessão para vender ao abade Hilduin de
Soissons as relíquias dos mártires enterrados em Roma, fazia circular em toda a
Europa fragmentos de ossos e outros vestígios, finalmente depositados nos alta­
res das igrejas e conventos recém-construídos, que os conservavam. Essas relíquias
sagradas, dadas ou vendidas, eram objeto de cobiça, de roubos, de pilhagens ou
motivo de peregrinagens, atraindo aos lugares onde eram conservados milhares
de fiéis, fonte de riqueza para os abades e igrejas que delas se encarregavam. Mas
toda essa circulação, todo esse tráfico só tinha sentido em referência a “realida­
des sagradas” invendáveis, intraficáveis, presentes apenas em Roma e em Jerusa­
lém. Ver Patrick Guery, “Sacred Commodities: The Circulation of Medieval Relics”,
art. cit., p. 169-194. Ver também Lionel Rothkrug, “Popular Religion and Holy
Schrines”, in J. Obelkevitch (ed.), Religion and People, Chapei Hill, 1987.
MAURICE GODELIER

O que os clãs trocam são os “benefícios” particulares que os objetos


possuídos por cada um deles podem trazer para todos e que eles colo­
cam a serviço de todos, trabalhando para que a sociedade à qual perten­
cem se reproduza como um todo, como sociedade. Mas estas trocas
recíprocas de benefícios não podem ser verdadeiramente recíprocas, pois
os benefícios partilhados, dados, nunca são equivalentes. Em um uni­
verso político-religioso hierarquizado não há simetria real possível.
Ao contrário, no domínio do parentesco entre os baruyas, como já
vimos, a reciprocidade, a simetria nas trocas é voluntária e posta como
um princípio. Onde se situam então os objetos sagrados? Eles se man­
têm entre dois dons, mas sem que possam ser, eles próprios, objetos de
dom. Eles lá estão porque foram dados pelos deuses aos ancestrais dos
homens. Os deuses permanecem, portanto, como seus verdadeiros pro­
prietários e poderiam pegá-los de volta. Mas, porque foram dados pelos
deuses aos homens, eles não podem ser dados pelos homens a outros
homens, exceto em circunstâncias excepcionais e por razões extraordi­
nárias. Por outro lado, o que os homens podem (e devem) dar são os
benefícios, as coisas positivas que emanam dos poderes neles guardados
desde a origem. As coisas sagradas, uma vez recebidas dos deuses, só
raramente podem ser dadas de novo pelos homens a outros homens e,
parafraseando Mauss, “seria difícil que fosse diferente9”.
Então: tais objetos sagrados seriam símbolos, e se são simbólicos
de alguma coisa, de que seria e até que ponto? Partindo desse ponto, a
análise deveria navegar entre duas margens, entre o que é simbólico
para os baruyas e o que o é para nós, que não cremos nas crenças de­
les. Para os baruyas, os poderes de fazer crescerem os corpos, poderes
dados pelo Sol sob a forma de kw aim atnié, estão realmente presentes
na pedra negra, no osso de águia e no osso de homem enrolados em
uma cortiça socada envolvida por uma faixa de cabeça. A pedra negra
não é o signo, o sím bolo de Vênus e dos poderes femininos. Ela é Vênus,
ela é esses poderes. Ela os contém.

9Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 224.


0 ENIGMA DO D O M

Ao contrário, o fato de que este ou aquele kw aim atnié esteja nas


mãos deste ou daquele mestre dos rituais é mesmo o signo de que seu
clã foi distinguido, recebeu do Sol e de seus ancestrais poderes parti­
culares. Assim como o bico do calao é um signo, o símbolo do pênis, e
sua posição acima dos dentes de porco, símbolo da vagina das mulhe­
res, é percebida como um signo da dominação masculina (ou pelo menos
o signo da vontade, do desejo dos homens de dominar as mulheres),
também a presença do kw aim atnié na mão do representante de um clã
é o signo do lugar desse clã nas relações político-religiosas que organi­
zam a sociedade baruya, signo cujo código todos os homens da socie­
dade possuem, cujo sentido público podem decifrar, mas cujo sentido
íntimo, secreto, sagrado, a maioria é condenada a ignorar. Os outros
clãs compreendem seu sentido público, mas não o sentido secreto. O
sagrado deve permanecer sempre, em última instância, secreto, inde­
cifrável, deixar-se adivinhar além do dizível e do representável.
Logo, os objetos secretos dos baruyas são para eles, antes de serem
signos e símbolos, coisas que possuem um espírito, portanto, poderes.
Espírito e poder são ditos com a mesma palavra: koulié. O que “prece­
de” o simbólico é, portanto, justamente o imaginário, e isto tanto para
os baruyas quanto para nós. Mas para nós, que não acreditamos em
suas crenças, estas se tornam “simbólicas”. Que não creiamos em suas
crenças é um fato que nos concerne e que pode atestar uma consciên­
cia crítica de sua religião, ou mesmo uma consciência irreligiosa das
religiões, isto é, uma consciência crítica de todas as religiões, de todas
as crenças e práticas religiosas. Mas o fato de não partilhar uma crença
não a extingue. Esta crença na presença de poderes reais (“espirituais”)
nos objetos é, aliás, a mais direta das provas de que o poder entre os
baruyas contém em si, necessariamente, “nódulos de imaginário”, de
que as relações políticas, hierárquicas entre os clãs, de um lado, entre
os homens e as mulheres, de outro, só podem existir legitimados por
relações com um mundo sobrenatural, com a origem das coisas, em
suma, por representações sociais dos fundamentos imaginários da or­
dem do universo.

18 s
MAURICE GODELIER

Aqui está, de fato, o ponto capital. Para os baruyas, a maneira como


sua sociedade é organizada, as normas de conduta, os valores aos quais
obedecem, em uma palavra, a ordem que reina entre eles lhes parece
evidente, legítima, a única possível. E isto porque eles não se pensam
com o autores, pois acreditam que seres mais poderosos que eles inven­
taram esta ordem e entregaram-na a seus ancestrais, que eram diferen­
tes dos homens de hoje em dia. E portanto dever sagrado dos baruyas
conservá-las e re-produzi-las.
Mas essas potências sobrenaturais, Sol, Lua, e os homens e as mu­
lheres dos primeiros tempos, que se comunicavam diretamente com
elas, não desapareceram. Eles permanecem lá, coexistindo com os
homens e agindo sobre eles, por ou contra eles. Sua presença perma­
nente entre os humanos é atestada pela existência dos objetos sagra­
dos, os kw aim atnié, e pelas fórmulas e ritos que os acompanham.
Objetos, fórmulas, ritos estão ali para representar o irrepresentável,
dizer o indizível e atestar sua existência. O passado imaginário das
origens está sempre lá porque se transformou no fundamento da or­
dem cósmica e social, uma realidade invisível, mas sempre co-presente
no presente. A origem tornou-se fundação, um momento do tempo e
uma realidade desde então intransponíveis. O passado das origens trans­
cende o tempo, ultrapassa-o, envolve-o. Ele pertence ao domínio do
sagrado (do atemporal, talvez mesmo do eterno). Donde a importân­
cia dos mitos de origem entre os baruyas, de origem dos homens, das
mulheres, do fogo, das flautas, das armas, das plantas cultivadas etc.,
que dizem e tornam a dizer o caráter sobrenatural dessas origens.
O ponto capital está aí. Temos o direito, sem sermos acusados de
reduzir a nada a explicação dos baruyas, de supor que os ancestrais
dos baruyas produziram, em uma época distante, o tipo de sociedade
que seus descendentes reproduzem. Mas os ancestrais que figuram nos
mitos de origem não são como esses ancestrais reais, nem como seus
descendentes de hoje. São duplos dos humanos, mas de outra nature­
za, pois se comunicavam pessoalmente com Sol e Lua e recebiam dire­
tamente os seus dons. Ao imaginar uma origem sobrenatural para o

18 e
O ENIGMA DO DOM

social, o social torna-se sagrado e a sociedade é legitimada, tal como é.


Sua ordem deve ser preservada, reproduzida. Mas quando o sagrado
das origens aparece, o homem real desaparece e, em seu lugar, entram
em cena os duplos imaginários dele m esm o, seres à sua imagem e se­
melhança, mas dotados de poderes maiores e mantendo relações ima­
ginárias com “os espíritos que animam” todas as coisas, todas as forças
que compõem o universo.
Sem dúvida, o que viemos de analisar entre os baruyas pode ser
encontrado em todas as sociedades humanas, inclusive aquelas que não
atribuem a deuses, mas ao povo soberano, a origem das leis às quais
ele mesmo deve obedecer. Estamos, portanto, na presença de um fato
universal, de um mecanismo geral que não deriva apenas das estrutu­
ras inconscientes do pensamento. Relações sociais, para serem repro­
duzidas por todos, devem parecer, se não para todos, pelo menos para
o maior número possível, legítimas, as únicas possíveis, e esta evidên­
cia só se impõe plenamente se as relações parecem ter sua origem além
do mundo humano, em uma ordem imutável e sagrada, imutável por­
que sagrada. Bem entendido, as representações não serão as mesmas,
o sagrado será de natureza diversa se a ordem imutável em que a socie­
dade mergulha suas origens é uma ordem “divina” ou uma ordem “na­
tural”. No segundo caso, um fetichismo da “Lei” ou das leis ocupará o
lugar do culto aos deuses pais e às deusas mães da ordem humana.
Finalmente, para medir até que ponto os objetos sagrados dos
baruyas são para eles somente realidades “simbólicas”, até que ponto
seu conteúdo manifesta a crença no acesso imaginário dos clãs e dos
indivíduos aos tempos da fundação do mundo e da sociedade, precisa­
mos saber o que se esconde verdadeiramente no interior de um kw ai­
matnié.
O privilégio de ver aquilo que há “dentro” de um kw aim atnié me
foi concedido depois de vários anos de estadia entre os baruyas, quan­
do um dos mestres das iniciações, um homem de uns cinqüenta anos,
da linhagem dos kuopbakias (do clã dos bakias), reputado pela bravu­
ra de seus guerreiros e pela eficácia de suas mágicas guerreiras, veio

18 7
MAURICE GODELIER

com seu filho mais velho, com a idade entre dezesseis e dezoito anos,
honrar a promessa que me havia feito de mostrar um dia o que havia
“dentro” de seu kwaimatnié. O que aconteceu e o que havia no interior?

O qu e se escon d e no interior de um o b je to sagrado

Antes mesmo que ele chegasse, eu tinha sentido que algo de insólito se
passava. Um silêncio pesado nos envolvia. A aldeia estava, de repente,
deserta. Todo mundo tinha partido com o boato de que algo de grave
era iminente. Depois o homem chegou. Seu filho — que vivia na casa
dos homens no alto da aldeia com os iniciados — o acompanhava. Eu
não esperava por isso. Os dois homens penetraram em minha casa e sen­
taram-se cada um num extremo da mesa. Eu passei a cabeça pela porta
para me assegurar de que ninguém podia nos escutar e constatei que dois
ou três homens do clã dos bakias, armados de arcos e flechas, estavam
discretamente colocados ao redor de minha casa para impedir que qual­
quer um se aproximasse. O homem retirou de sua bolsa um longo obje­
to enrolado em uma tira de cortiça de cor vermelha. Pousou-o sem uma
palavra sobre a mesa, desfez o rolo e começou a abrir o pacote. Isso to­
mou tempo. Seus dedos afastavam a cortiça com precaução, delicada­
mente. Finalmente, ele retirou tudo e eu vi, estendidos lado a lado, uma
pedra negra, ossos longos e pontudos, alguns discos chatos e escuros.
E nada pude dizer, nada perguntar. O homem havia começado a
chorar, silenciosamente, evitando olhar aquilo que se oferecia a seus
olhos. Ele continuou assim por alguns minutos, a cabeça baixa, solu­
çando, a fronte apoiada sobre as mãos pousadas nas bordas da mesa.
Depois ele levantou a cabeça, enxugou os olhos vermelhos, olhou o
filho e fechou com a mesma delicadeza, as mesmas precauções, o pa­
cote, que envolveu com o ypm oulié vermelho. Estava acabado. Tive
então o direito de fazer algumas perguntas que me permitiram desco­
brir que aquele kw aim atnié era tão poderoso, porque ele era fêmea,
pois os kw aim atnié existem em casais. Isso foi tudo. O homem levan­
tou-se, seu filho depois dele, e eles partiram.

18 8
0 ENIGMA DO DOM

O que eu havia visto realmente no interior do kw aim atnié? A pedra


negra tinha a forma de uma lâmina de enxó, longa e polida. Os ossos
pontudos eram ossos de águia. Ora, a águia é o pássaro do Sol, que leva
até ele as preces e os espíritos dos baruyas. A águia, para os baruyas, não
é apenas o pássaro majestoso que é na realidade. É uma transformação
de Djoué, o cão selvagem, companheiro de Kourambingac, a primeira
mulher, a mulher primordial, quando ela percorria a terra antes que os
homens aparecessem10.
Mas havia também um osso humano, do antebraço de um dos ances­
trais prodigiosos dos kuopbakias. Não era, evidentemente, aquele do an­
cestral mítico que havia recebido diretamente do Sol os kwaimatnié dos
bakias. O osso era pontudo, e talvez tivesse servido em outros tempos para
furar o nariz dos iniciados. Quanto à pedra negra, ela é, segundo os baruyas,
habitada pelo espírito de um astro, Vênus, a estrela que brilha na manhã e
à tarde. Ora, quem é Vênus? É uma mulher que foi oferecida de presente
pelos baruyas à serpente píton, mestre do trovão e da chuva (e das mens­
truações), num dia em que ela apareceu sobre a terra sob a forma de um
porco selvagem gigantesco e aterrorizante que devastava os jardins dos
homens, ameaçando-os com a fome. Esta história, nós a chamamos de
“mito” e os baruyas, de uma “palavra breve”, isto é, um relato que conta
em poucas palavras a origem das coisas. Ei-la:

Um dia os baruyas ouviram um grande rumor em seus jardins. Todos


se reuniram e viram um píton gigantesco, que mataram a flechadas.
Levaram-no e cortaram-no em pedaços, que começaram a cozinhar com
inhame-branco e legumes em um grande forno de terra. À noite eles
abriram o forno e dividiram entre eles a carne e o inhame. Começa­
ram por comer o inhame, deixando a carne para o dia seguinte. No
dia seguinte, uma mulher acordou muito cedo e quis comer a carne.
Não havia mais nada em seu saco. ‘Quem me roubou?’ As outras mu­
lheres ouviram, verificaram em seus sacos e descobriram que sua car­
ne também tinha desaparecido. Todos e todas retornaram ao forno e

10Cf. Maurice Godelier, La Production des Grands Hommes, op. cit., p. 243-245.

189
MAURICE GODELIER

lá viram a serpente, que tinha se reincorporado e estava enrolada so­


bre si mesma, parecendo adormecida. Aproximaram-se assustados e
perguntaram: ‘O que queres de nós para que te vás, o que podemos te
dar? Inhames?’ A serpente não se moveu. ‘Sal?’ A serpente continuava
imóvel. ‘Cauris, colares, conchas?’ A serpente continuava com a cabe­
ça inclinada para o solo. Finalmente, perguntaram-lhe: ‘Quem sabe
poderíamos dar-te uma mulher?’
A essas palavras, o píton endireitou-se e isto queria dizer ‘sim’. Ele
olhou para o céu. ‘Por qual caminho vais nos deixar?’ Ele voltou a
olhar para o céu. Os baruyas trouxeram-lhe uma mulher coberta de
enfeites. O píton fez-lhe um sinal para que passasse primeiro, mas ela
disse: ‘Não, mostra-me o caminho.’ Antes de segui-lo, ela tomou uma
pedra em brasa que estava perto do forno e guardou-a em seu saco.
Eles subiram e chegaram ao céu, perto de uma grande casa. O píton
fez sinal para que entrasse. ‘Não, passa primeiro, a casa é tua.’ En­
quanto a serpente deslizava para o interior, a mulher pegou a pedra e
obstruiu a porta; depois precipitou-se para descer, deslizando ao lon­
go da coluna de fumaça por onde havia subido. A meio caminho trans­
formou-se em Vênus, a estrela da manhã e da tarde. Entrementes, o
píton tinha dado meia-volta e, quando chegou à porta, seu nariz bateu
na porta. Ele queimou-se brutalmente e gritou. É a origem do trovão.
A mesma serpente dá origem à chuva e ao arco-íris".

Esta é a origem de Vênus. Vênus é a estrela que está ligada, em seu


curso, aos passos do próprio Sol, a quem segue (no crepúsculo) ou
precede (na aurora) imediatamente no céu. O astro ê,,portanto, uma
mulher baruya que foi ofertada pelos homens mas, ao mesmo tempo,
não ficou passiva em seu sacrifício, pois tomou a iniciativa de levar com
ela a tal pedra para emparedar a grande serpente, provocando indire­
tamente a aparição do trovão e da chuva.
A conclusão é clara e nela está o segredo mais secreto dos baruyas:
no objeto sagrado que manifesta o poder dos homens se encontram os

f "Ibid., p. 197.

1 9o
O ENIGMA DO DOM

poderes das mulheres, dos quais os homens conseguiram se apropriar


quando roubaram suas flautas. Depois desses tempos primordiais, os
homens podem reengendrar os meninos fora do ventre das mulheres,
mas têm de mantê-las permanentemente separadas, afastadas de seus
poderes próprios, alienadas, diríamos nós, em relação a elas mesmas.
Isto explica a presença nos kw aim atnié dos discos escuros e chatos,
que são caroços do fruto não-comestível de uma árvore que cresce nas
florestas dos vales quentes, no sul do território dos baruyas. Os discos
escuros têm de um lado uma marca que se assemelha à íris de um olho
e que os baruyas chamam de “olho de bebê”. Aliás, eles utilizam esses
caroços nas magias destinadas a dar a vida ou a devolvê-la. E põem-
nos na boca quando falaram de mulheres e de coisas sexuais, chupan­
do-os para purificá-los.
Voltaremos às flautas, outros objetos cultuais cuja “voz” desempe­
nha um papel importante no decorrer das iniciações e cuja vista, como
a dos rombos, é totalmente proibida às mulheres, que devem ignorar
até mesmo sua existência. Ora, o que são as flautas para os baruyas?
São, dizem os homens às mulheres, a voz dos espíritos que vêm se
misturar a eles na floresta no momento em que iniciam os meninos.
Como no caso dos rombos, é igualmente proibido aos jovens inicia­
dos, sob pena de morte, revelar às mulheres e às crianças não-iniciadas
que não são espíritos, mas instrumentos fabricados pelos homens, e
que estes últimos quebram-nos em pedacinhos depois de tocar. Mas
qual é a origem das flautas? Eis o que se conta aos iniciados:

No tempo dos wandjinia [os homens do tempo do sonho] as mulhe­


res inventaram as flautas. Elas tocavam e tiravam sons maravilhosos.
Os homens escutavam, sem saber o que era. Um dia, um deles escon­
deu-se para espiar as mulheres e descobriu o que produzia aqueles sons
melodiosos. Ele viu várias mulheres, das quais uma levava à boca um
pedaço de bambu e tirava os sons que os homens ouviam. Depois a
mulher guardou a flauta sob uma das saias penduradas em sua casa,
que era uma cabana menstruai. Elas partiram. O homem aproximou-

19 1
MAURICE GODELIER

se, deslizou para dentro da cabana, remexeu entre as saias e encon­


trou a flauta, que levou à boca. E ele tirou os mesmos sons. Ele a
recolocou rapidamente em seu lugar e foi contar aos homens o que
tinha visto e feito. Mais tarde, a mulher retornou e pegou sua flauta
para tocar. Mas os sons que tirou eram muito feios. Por esta razão ela
jogou-a fora, suspeitando que os homens a tinham tocado. Mais tarde
o homem voltou, reencontrou a flauta e tocou. E tirou os belos sons
que a mulher tirava antes. Desde então as flautas servem para fazer
crescerem os meninos12

Depois de contar aos iniciados esse mito, o nome secreto das flau­
tas lhes é revelado, nam boula-m ala. M ala quer dizer “luta”, “comba­
te”. N am bou la quer dizer “girino”, mas utiliza-se também, entre
homens, para designar a vagina das mulheres. Por que esta alusão aos
girinos e à vagina? Um outro mito nos explica:

As mulheres, de fato, existiram antes dos homens. Estes apareceram


um dia à beira de um lago sob a forma de girinos. As mulheres decidi­
ram confeccionar-lhes tangas e arcos e flechas em miniatura, que dei­
xaram sobre a margem. No dia seguinte eles haviam desaparecido e,
mais tarde, os girinos se metamorfosearam em homens13.

Hoje, de tempos em tempos, as mulheres baruyas partem coletiva­


mente para o rio para pescar girinos, que oferecem aos jovens rapazes.
A cada noite acredita-se que as mulheres xamãs se transformam em rãs,
que se reunem às margens do rio, na fronteira do território dos baruyas,

uIbid., p. 117-118.
uIbid., p. 118. Os jovens iniciados — meninos de nove a dez anos — , uma vez
separados de sua mãe e assim que têm o nariz perfurado, recebem vestimentas
novas, que testemunharão sua pertinência à categoria dos iniciados do primeiro
estágio. Estas vestimentas são meio femininas, meio masculinas, correspondendo
a esse estado de transição do mundo das mulheres àquele dos homens. Sobre as
nádegas eles portam, então, uma estreita tira de cortiça, que se chama precisa­
mente “cauda de girino”.

192
O ENIGMA DO DOM

para deter os espíritos das mulheres e das crianças adormecidas que, por
descuido, atravessem a fronteira e caiam em território das tribos inimi­
gas, com o risco de serem capturadas e devoradas por seus xamãs.
Mas, antes de tudo, o que é importante notar aqui é que, segundo
os baruyas, teriam sido as mulheres a inventar os arcos e as flechas, as
armas de caça e de guerra. Elas os teriam dado aos homens que, hoje,
detêm o monopólio de seu uso. Mas elas fizeram mais. Segundo um
mito recolhido em uma tribo vizinha dos baruyas, os watchakes, per­
tencentes à mesma cultura, teria sido do corpo de uma mulher assassi­
nada por seu marido e enterrada secretamente na floresta que saíram
as plantas cultivadas e as diversas variedades de bambu que servem como
“recipientes” para cozinhar os alimentos. No fundo, o que dizem e
repetem todos os mitos, são duas afirmações essenciais.
Primeiramente que as mulheres enquanto gênero possuem origi-
nariamente uma criatividade superior à dos homens, e que esta é du­
pla: de um lado, o poder de dar a vida, a capacidade de carregar crianças
no ventre, pô-las no mundo e alimentá-las; de outro, a invenção de
elementos materiais da “civilização” — armas, vestimentas, plantas
cultivadas. Em suma, é a elas que a humanidade deve o fato de ter saí­
do do estado selvagem14:

Naquele tempo os homens e as mulheres comiam apenas frutos e plantas


selvagens. Sua pele era negra e suja. Um dia um homem partiu com sua
mulher para a floresta e no caminho matou-a e enterrou secretamente o
corpo. Voltou à aldeia e declarou que sua mulher tinha desaparecido de
repente. Mais tarde ele voltou ao local do crime e constatou que todos os
tipos de plantas haviam saído da terra lá onde tinha enterrado o cadáver.
Ele experimentou as folhas e achou bom. Quando voltou à aldeia, os outros

14Voltaremos a encontrar esse tema mais adiante ,quando analisarmos o persona­


gem da velha Afek, uma mulher-espírito que é o objeto principal dos cultos da
região de Oksapmin, na Nova Guiné, e é tida como a origem dos animais comes­
tíveis e das plantas cultivadas, da caça e da agricultura, mas também da vida, da
morte e do casamento.

1 9 3
MAURICE GODELIER

lhe disseram: ‘O que fizeste para estares com uma pele assim tão bonita?’
Ele tinha mudado de aspecto, mas não disse nada. No dia seguinte,
retornou à floresta e comeu de novo das plantas. Sua pele foi ficando cada
vez mais bonita. Quando voltou à aldeia, os outros suplicaram-lhe que
dissesse como fazia para ter uma pele tão bonita. Isso se repetiu até
que um dia o homem disse aos outros que o seguissem. Levou-os até a
tumba e indicou as plantas boas para comer e aquelas que serviam para
cozinhar os alimentos. Depois disso os homens começaram a cultivar e a
comer as tais plantas. E suas peles mudaram15.

Portanto, os baruyas não opõem a mulher e o homem como dois


seres que estariam ligados um à natureza (a mulher) e outro à cultura
(o homem). Para eles, seria antes o homem que ficou mais próximo da
natureza selvagem. Aliás, enquanto as mulheres passam o essencial de
seu tempo nas aldeias e nos jardins, os espaços cultivados, os homens,
estes passam uma grande parte de seu tempo na floresta. Aí eles ca­
çam, iniciam os meninos, colocam os ossos de seus mortos nos buracos
das árvores. Aí eles fazem suas preces ao Sol e encontram os yim aka,
os espíritos que lhes deram os rombos. No fundo, os homens acumu­
lam as forças da vida “civilizada”, da agricultura, da vida sedentária
nas aldeias e as forças da vida selvagem, móvel, nas florestas.
Mas o reconhecimento nos mitos da superioridade originária das
mulheres é também um pretexto, uma “astúcia”. Pois, na realidade, é
esta superioridade que justifica a violência feita às mulheres, violência
que é um princípio essencial da organização da sociedade baruya, um
dos fundamentos da ordem que ela pretende ver reinar, aos quais pretende
permanecer fiel reivindicando a autoridade e as vontades dos ancestrais
que os transmitiram. Mas como o reconhecimento da superioridade ori­
ginária das mulheres pode servir de pretexto para a violência? Como
pode este reconhecimento legitimar sua subordinação no exercício do
poder político, na apropriação da terra e nas alianças acertadas entre os
diversos grupos de parentesco?

15Maurice Godelier, La Production des Grands Hommes, op. cit., p. 118.

19 4
O ENIGMA DO DOM

A resposta, ainda uma vez, está nos mitos. Eles nos dizem, com efeito,
que as mulheres certamente inventaram o arco e a flecha, mas especifi­
cam que elas serviam-se do arco segurando-o pelo lado errado. Dessa
maneira matavam demasiada caça. E os homens tiveram de intervir. Apo-
deraram-se do arco e viraram-no para o lado certo. Desde então, matam
a caça quando é necessário e na quantidade necessária, e as mulheres não
têm mais o direito de usar os arcos. A tese é clara. As mulheres com certe­
za são dotadas de uma criatividade primeira que ultrapassa a dos homens,
mas esta criatividade é fonte de desordem, de excessos. Ela constitui uma
ameaça permanente para a vida em comum, não apenas dos humanos entre
eles, mas dos humanos com os seres que coexistem com eles no mesmo
universo— animais, plantas etc. Portanto, os homens se consideram infe­
riores às mulheres em um certo plano, mas superiores quando se trata de
impor a ordem, de introduzir a medida na sociedade e no universo. É por
esta razão que a relação entre os homens e as mulheres não é concebida
apenas como uma relação de oposição entre dois termos complementa-
res, pois um dos termos se opõe ao outro subordinando e, de certo modo,
englobando-o. Aos olhos dos baruyas, é justamente porque o seu poder
subordina, engloba o das mulheres, que o direito dos homens de repre­
sentar os dois sexos ao mesmo tempo, eles próprios e as mulheres, o direi­
to, portanto, de dirigir a sociedade encontra seu fundamento16.
Mas para impor a ordem e governar a sociedade foi preciso que
eles interviessem e sujeitassem as mulheres pela violência física, psí­
quica e social. Todas essas formas de violência não são, aos olhos dos
homens, senão conseqüências da violência primordial que seus ances­
trais dos tempos do sonho exerceram contra as primeiras mulheres,
quando se apropriaram das flautas. O que se passou então? As flautas
deixaram definitivamente de tocar para as mulheres e começaram a
cantar apenas entre as mãos dos homens. O que quer dizer que os po­

16Cf. id., “Du quadruple rapport entre les catégories du masculin e du feminin”,
in La Place des femmes. Les enjeux de 1’ideniité e de l’égalité au regard des sciences
sociales, Paris, La Découverte, 1995, p. 439-442.

19 5
MAURICE GODELIER

deres de vida das mulheres afastaram-se, de algum forma, delas, de seus


corpos; que as mulheres foram separadas, desunidas de si mesmas pela
primeira agressão cometida por um homem contra uma delas. E a lem­
brança dessa agressão está presente na palavra m ala da expressão
nam boula-m ala, que designa a flauta-vagina.
Esta cena originária da expropriação pela astúcia e pela violência
dos poderes que originalmente pertenciam às mulheres é lembrada
incessantemente pelo som das flautas que acompanham os deslocamen­
tos dos iniciados na floresta. Depois desse roubo, os homens viram-se
maiores e mais poderosos do que na origem. Aos poderes de morte
dados pelos yim aka e que estão presentes nos rombos, os homens
baruyas acrescentaram os poderes de vida das mulheres, agora presen­
tes nas flautas ou nas pedras negras da estrela da manhã e da tarde, de
Vênus. A fórmula do poder político entre os baruyas é, portanto, cla­
ra. É preciso que os homens acrescentem os poderes das mulheres aos
seus próprios, que acumulem os dois tipos de poderes para que seu
sexo possa tornar-se não apenas superior ao outro, mas ao mesmo tempo
capaz de englobá-lo. Este é o preço para que uma parte da sociedade,
os homens, possa representar o todo e para que as mulheres sejam
excluídas da ação direta sobre o todo enquanto tal, sobre a sociedade
como um todo, isto é, excluídas do exercício do poder político.
Porém, para roubar às mulheres seu poder de fazer crescer a vida
e seus poderes civilizadores, foi preciso que um dia um homem (logo,
todos os homens) violasse um tabu fundamental, penetrasse em uma
cabana menstruai, espaço proibido aos homens, remexesse as saias
manchadas de sangue, tocasse em um objeto maculado por esse san­
gue e o levasse à boca. Foi ao preço da violação de um princípio esta­
belecido desde os tempos mais longínquos como necessário para
regular as relações entre os sexos que os homens puderam apropriar-
se dos meios de re-engendrar os meninos fora do mundo feminino,
fora do ventre de sua mãe. E isso explica a ambivalência do sangue
menstruai para os baruyas. Esse sangue é ao mesmo tempo associado
ao poder de vida das mulheres (e a seu poder civilizador, pois as

19 6
O ENIGMA DO DOM

mulheres “inventaram”, elas mesmas, as flautas) e a uma ameaça de


morte para os homens, de morte física e de morte social, de perda de
identidade e de superioridade. Para os baruyas, se seus corpos, e par­
ticularmente seus sexos, entrarem em contato com o sangue mens­
truai das mulheres, eles perdem todo o poder, toda a força — não
apenas os poderes roubados às mulheres, mas aqueles que o Sol, a
Lua e os yim aka deram propriamente a eles. O sangue menstruai é
pensado e vivido pelos homens como uma ameaça absoluta, e esta é
a razão pela qual as mulheres devem ficar separadas durante as re­
gras, pela qual são confinadas nesse período em um espaço entre a
aldeia e a floresta17.
Para re-engendrá-los, para fazer com que cresçam mais rápido
e melhor em um mundo doravante exclusivamente masculino (até
o casamento), os rapazinhos recebem uma outra alimentação, a mais
secreta: o sêmen dos rapazes mais velhos, de jovens púberes, não-
casados, que estão nos últimos anos de sua iniciação e de sua vida
na casa dos homens. Este sêmen saído do corpo de jovens virgens
de qualquer contato sexual com as mulheres é, portanto, uma subs­
tância puramente masculina, uma fonte de vida e de força preser­
vada de qualquer polução feminina. Esta substância circula entre as
gerações e liga cada nova geração de homens aos mais velhos e, atra­
vés deles, aos ancestrais e ao Sol. Esta corrente é composta de dons
e dívidas. Dons dos mais velhos aos caçulas, e dívidas impagáveis,
pois aqueles que recebem, os meninos, ainda não são sexualmente
capazes de dar de volta e quando se tornam capazes, alguns anos
mais tarde, não são autorizados a fazê-lo: é às gerações de meninos
que entram depois deles na casa dos homens que eles darão seu sê­
men. Também aqui os doadores são superiores aos recebedores, mas
estes não podem dar de volta a seus doadores.

l7É também a razâo pela qual os baruyas têm, em sua língua, um termo específico
para designar o sangue menstruai e distingui-lo do sangue que circula tanto no
corpo dos homens quanto no das mulheres, assim como no corpo dos animais.

19 7
MAURICE GODELIER

Essas diferenças de relações entre doadores e donatários são as


mesmas que existem entre o campo das relações de parentesco e o
campo das relações de poder entre os sexos, entre as gerações, entre
os clãs e, mais geralmente, do poder político. Enquanto na produção
das relações de parentesco os jovens homens de uma mesma geração
trocam entre si uma de suas irmãs, ficando assim, um em relação ao
outro, na posição de doador e de recebedor, superior e inferior, e logo
com um status social equivalente ao do outro, na construção da do­
minação geral dos homens sobre as mulheres, que é também a cons­
trução de sua personalidade “masculina”, os homens pertencentes a
gerações distintas ocupam, uns em relação aos outros, uma posição
não-equivalente, cada um sendo donatário em relação aos veteranos
e doador em relação aos mais novos. E todos, qualquer que seja a sua
idade, encontram-se, em um outro plano, em dívida em relação aos
mestres das cerimônias, os possuidores dos kw aim atn ié que os inicia­
ram. Estes, por sua vez, encontram-se em dívida para com o Sol e a
Lua, sua esposa (ou, segundo a versão esotérica dos xamãs, seu ir­
mão caçula), que deram a Kanaamakwé, o herói fundador da tribo
dos baruyas, todos os kw aim atnié.
Assim, no pensamento dos baruyas, em seus relatos sobre a origem
das flautas e sobre os fundamentos do poder dos hòmens, está presente
uma idéia essencial que liga sua concepção das origens da ordem social
a tudo o que dissemos do caráter inalienável dos objetos sagrados e
dos objetos preciosos. Os primeiros, conforme mostramos, são ina­
lienáveis e não devem ser dados; os segundos são inalienáveis, mas
podem sê-lo. E, nesse caso, aquilo que é dado não é a propriedade do
objeto que permanece ligado a seu proprietário original, mas o direito
de usá-lo. O doador dá o direito de usar e guarda o direito de proprie­
dade. Ele guarda ao mesmo tempo em que dá. E aquilo que ele dá, ele
o dá voluntariamente. Ora, no caso das flautas, depositárias dos pode­
res femininos originários, estamos diante da mesma lógica, mas inver­
tida. O roubo é o oposto do dom. Mas por trás do dom e do roubo,
está a mesma lógica.

19 8
0 ENIGMA DO DOM

O roubo das flautas pelos homens

As flautas não foram dadas voluntariamente pelas mulheres aos ho­


mens, elas lhes foram roubadas. E isto ao preço de violar as regras
da vida comum, a boa conduta entre os sexos, o tabu do sangue mens­
truai. Mas os homens, se souberam apropriar-se dos poderes das
mulheres, não puderam fazê-lo inteiramente. Esses poderes perma­
neceram essencialmente ligados às mulheres, é nelas que eles têm
sua fonte originária, inalienável. De fato, aquilo de que os homens
se apropriaram foi apenas do uso desses poderes, não de sua pro­
priedade última. E esse direito de usá-los, porque não foram dados
mas adquiridos pela violência, deve ser mantido constantemente pela
violência. E justamente porque os poderes roubados às mulheres per­
manecem sempre femininos, em sua origem e em sua essência,
mesmo estando nas mãos dos homens, que eles não podem ser com­
pletamente apropriados pelos homens. E se estes se permitissem
relaxar, um só dia que fosse, um único mês, um ano, a violência e a
coação que exercem sobre as mulheres, seus poderes voltariam para
as mulheres, a desordem surgiria novamente e subverteria a socie­
dade, o cosmos.
É por isso que os homens devem, geração após geração, despender
tanta energia, tempo e recursos materiais para organizar as grandes
iniciações dos meninos. É por isso também que devem esconder per­
manentemente das mulheres que aquilo que fazem, o fazem usando
os poderes das mulheres. É por isso que, dos dois kw aim atn ié que
fazem o casal, o kw aim atn ié mulher é mais forte e mais quente. É
por isso, enfim, que os próprios homens se condenam a viver na
denegação das capacidades reais das mulheres e ao mesmo tempo no
temor de que os poderes que eles tomam delas no imaginário ressur-
jam. O homem, diante das mulheres, está preso entre a inveja e o
desprezo.
Vimos como a lógica do pensamento baruya repousa sobre a noção
da inalienabilidade das coisas e dos poderes em relação às pessoas que são

1 9 9
MAURICE GODELIER

seus proprietários originais. É porque se apoderaram do uso apenas dos


poderes femininos que os homens baruyas têm de renovar permanente­
mente a violência que lhes permitiu tomar o que não lhes tinha sido dado.
Aquilo que tomaram pela violência, eles só podem guardar pela violência.
No término desta análise dos objetos sagrados que, entre os baruyas,
estão exclusivamente nas mãos dos homens e são manejados apenas por
alguns deles, podemos confrontar o que é dito nos mitos com o que se
passa realmente na sociedade. Nos mitos, assiste-se ao engrandecimento
imaginário da pessoa dos homens18. Podemos vê-los orgulhando-se por
terem afastado pela violência poderes que pertenciam com propriedade

18Engrandecimento imaginário dos homens legitimado por seu acesso exclusivo


aos objetos sagrados vindos do tempo do sonho e contendo em si os poderes de
reproduzir a vida, não apenas dos humanos, como é o caso dos kwaimatnié dos
baruyas, mas de todas as espécies animais ou vegetais, poder que pertence origi-
nariamente às mulheres e do qual os homens as separaram através de um roubo,
como no mito dos Djanggawul, três personagens do tempo do sonho, um irmão e
duas irmãs, em que se vê um irmão roubar das irmãs os cestos sagrados (úteros) e
os bastões fálicos que eles contêm; iniciação onde se marca o corpo dos jovens
rapazes (circuncisão, subincisão), onde lhes são mostrados os objetos sagrados e
ensinados os mitos fundadores, reencenando-se sempre os acontecimentos origi­
nários que eles descrevem: em suma, uma comparação entre as instituições e os
sistemas de pensamento das sociedades aborígines da Austrália e os baruyas (e
outras sociedades da Nova Guiné) ainda está por ser feita e seria muito frutífera.
Além das semelhanças, grandes diferenças subsistem, no entanto. Os rombos são
masculinos e femininos na Austrália, masculinos entre os baruyas. Os homens
baruyas pretendem apenas reengendrar e fazer crescerem os meninos fora do ven­
tre das mulheres, enquanto os homens da Austrália, no curso das cerimônias de
intichiuma, são investidos por algum tempo, assim como acontecia com os seres
do tempo do sonho, da capacidade de reproduzir a natureza, de multiplicar as
espécies viventes, assim como os humanos. Devemos a Alain Testart várias análi­
ses notáveis dos ritos de iniciação dos aborígines australianos e particularmente
da natureza dos rombos ou dos tjuringa. Testart analisou a natureza do objeto
mais sagrado presente no momento mais importante dos ritos realizados na últi­
ma fase das iniciações, o ambilia-ekura, objeto que deve ser levantado e abaixado
pelo líder cerimonial ao longo da noite inteira, em um gesto do qual depende a
fecundidade das mulheres. Ora, o ambilia-ekura consiste em dois tjuringa colados
e ligados por barrigueiras de cavalo; ambilia seria a criança e ekura a bolsa, o
útero. O objeto não deixa de lembrar a flauta-vagina dos baruyas ou o kwaimatnié
mais poderoso, o kwaimatnié-ía\Ahex. Ver Alain Testart, “Des rhombes e des tjuringa:

200
O ENIGMA DO DOM

ao outro sexo e de tê-los ligado a seu próprio sexo pela violência. Por
um lado eles mutilaram, por outro eles se ligaram ao que tinham desli­
gado pela violência, pela astúcia, do ser do outro. Esta mutilação, esta
disjunção forçada das mulheres de seus poderes originários, é um ato de
violência imaginária, realizado pelo pensamento no pensamento.
Mas é esta violência imaginária, ideal, que legitima, em primeira ins­
tância, todas as violências reais impostas às mulheres: o fato de que elas
não herdam a terra de seus ancestrais; de que são excluídas da posse e do
uso dos kwaimatnié e, portanto, não têm acesso senão indiretamente ao
Sol e às forças que governam o universo; de que não têm acesso aos meios

la question des objets sacrés en Australie”, L’Homme, n. 125, 1993, p. 31-65, e


mais particularmente p. 32-35 e 58-60; De la nécessité d ’être initié, Nanterre, Société
d’ethnologie, 1992, mais particularmente o capítulo sobre o engwura, p. 147-190;
Des dons et des dieux, Paris, Armand Colin, 1993, capítulos 3 e 12. No entanto, nós
não concordamos com Alain Testart quando ele afirma, em Des dons et des dieux,
que “a revelação feita por ocasião da iniciação é uma desmistificação, em uma pala­
vra uma profissão de ateísmo [... que] aquilo que se leva ao conhecimento dos jovens
assim que passaram pelas provas da iniciação [é que] toda esta história não passa de
uma história de comadres, sabiamente orquestrada pelos homens iniciados para
enganá-los, [que] não há nenhum ser fabuloso a temer, que ele não existe, são ape­
nas os protagonistas humanos e masculinos do ritual” (p. 37). Trata-se de uma visão
redutiva, conforme veremos mais tarde ao analisar aquilo que chamamos sagrado.
Tendo feito alusão rapidamente aos trabalhos de Testart, não podemos deixar de
mencionar aqueles, igualmente notáveis, de Marika Moisseeff, cujo Un longchemin
semé d ’objets cultueis, consagrado ao “ciclo iniciático aranda” (EHESS, 1995), aca­
ba de ser lançado, embora já circulasse em alguns poucos exemplares, desde 1978.
Ver também seu artigo “Les objets cultueis aborigènes ou comment représenrer
1’irreprésentable”, Genèse, n. 17, setembro de 1994, p. 8-32, consagrado aos tjuringa,
que Marika Moisseeff chama de “artefatos-conceito auto-referenciais”. Não con­
cluiremos, como ela, que os tjuringa são “significantes puros” (p. 32). Toda a sua
análise prova o contrário e torna inútil tal referência a um conceito avançado por
Lévi-Strauss para falar do “espírito” que habita as coisas, o hau dos maoris. Todos
esses trabalhos, de Testart, de Moisseeff, assim como os nossos, não podem deixar
de fazer referência ao artigo, hoje em dia célebre, de Nancy Munn, “The Trans-
formation of Subjects into Objects in Walbiri and Pitjanjara Myth”, in R., Berndt
(ed.), Australian AboriginalAnthropology, Wedlands, Universi ty of Western Australia
Press, 1970, p. 141-163. Ver também Les R. Hiatt, “Secret Pseudo-Procreation Rites
among the Australian Aborígenes”, in id. e C. Jayawardena (ed.), Anthropology in
Oceania , Sydney, Angus and Robertson, 1971, p. 77-88.

2 0 1
MAURICE GODELIER

de violência armada, às armas; de que não têm mais o direito de produzir


seus próprios meios de produção, seus utensílios. Mesmo o bastão para
escavar, utensílio simples mas indispensável para plantar e colher tubér­
culos, não é fabricado por elas, mas por seus pais, quando não são casa­
das, ou seus maridos quando o são. Enfim, elas não têm mais acesso à
fabricação do sal, que serve de meio de troca na sociedade dos baruyas.
Podemos ver aqui como o imaginário é uma condição essencial e um
pivô da construção do real social. O imaginário é feito de tudo aquilo que
os seres humanos (dos dois sexos) adicionam, em pensamento (idealmente),
a suas capacidades reais e tudo aquilo que, em pensamento, delas subtra­
em. Mas no jogo puramente imaginário de atribuir às mulheres, através
do pensamento, poderes imaginários dos quais elas são em seguida despo­
jadas, sempre através do pensamento, realiza-se algo mais do que um
“jogo”. É toda a configuração das relações reais entre os sexos que se vê aí
legitimada. Não que o mito seja a origem “real” da realidade social, mas
esta última não pode se cristalizar e se reproduzir sem um mito que a re­
presente desta maneira e a legitime. Nos mitos está presente uma força
social considerável que trabalha permanentemente os indivíduos que ne­
les crêem. Os mitos, ao fazerem o relato dos acontecimentos extraordiná­
rios que estiveram na origem da ordem que hoje reina no cosmos e na
sociedade, ao relacionarem esses acontecimentos às ações de personagens
maiores que os humanos de hoje, conferem a esta ordem um caráter sa­
grado, sobrenatural, que é a prova mais convincente, mais impressionante
de sua legitimidade, de sua inviolabilidade. Os mitos são, portanto, uma
das fontes mais eficazes do consentimento de todos os membros de uma
sociedade às normas que a organizam e que lhes são impostas desde o nas­
cimento, tanto aos hom ens quanto às mulheres, tanto aos mais velhos
quanto aos mais novos e, entre os baruyas, tanto aos clãs com kwaimatnié
quanto àqueles sem kwaimatnié ou, de uma maneira mais geral, aos
governantes como aos governados.
Os mitos de fundação constituem um elemento essencial da parte
ideal do real, um dos componentes imaginários da realidade social. E
este elemento ideal, este ponto nodal imaginário do poder, que está
presente em permanência nos objetos sagrados e que estes re-presentam

202
0 ENIGMA DO DOM

por seu lado, e permanentemente, para a consciência, pessoal e coleti­


va, dos indivíduos. Os objetos sagrados são, portanto, objetos plenos
de sentido, do sentido mesmo da origem das coisas, objetos que não
são belos e não têm necessidade de sê-lo ou, pelo menos, se são perce­
bidos como belos, é uma beleza sublime, uma beleza que ultrapassa o
belo. Assim são os kw aim atnié para os baruyas. Compreende-se, por­
tanto, a emoção que inundou meu amigo kuopbakias quando abriu com
precaução o pacote em que jazia o kw aim atnié de seus ancestrais. O
que poderia ser senão a emoção que inunda o crente quando contem­
pla o objeto sublime de sua fé, o rosto do Cristo impresso no Santo
Sudário ou um pedaço da “Cruz Verdadeira”, em suma, quando ele se
encontra de repente diante do irrepresentável, quando vê o invisível?

D o su blim e19

Nossa análise devolve, portanto, seu lugar e seu sentido às emoções,


aos sentimentos e às crenças no jogo das relações sociais e choca-se
com a de Lévi-Strauss, que criticava Mauss por ter ido

buscar a origem da noção de mana em uma outra ordem de realidades


que não as relações que ela ajuda a construir: ordem dos sentimentos,
volições e crenças que são, do ponto de vista da explicação sociológi­
ca, ou epifenômenos, ou mistérios, mas em qualquer caso objetos
extrínsecos ao campo de investigação20.

‘‘‘Nossa análise não trata do caráter “estético’ ou “artístico” dos objetos sagrados,
mas da emoção diante do caráter sagrado desses objetos. A separação entre objeto
sagrado e objeto precioso torna-se manifesta no caso de um ostensório em cujo cen­
tro encontra-se conservado, por trás de uma placa de vidro, um pedaço do corpo ou
das vestes de um santo. O ostensório pode ser de ouro ou abundantemente decorado,
uma verdadeira obra de arte que simboliza a riqueza da Igreja e a vontade de dar
glória a Deus e seus santos. Mas, no centro, o objeto sagrado não tem outro caráter
senão o de ter sido parte do corpo de um “amigo do Cristo”. Nada de “belo” o dis­
tingue. O sublime do qual falamos em nada se aproxima da arte. É por falta de outro
termo que empregamos este. Talvez o termo “numinoso” fosse mais conveniente, mas
discuti-lo nos levaria longe demais. Cf. Rudolf Otto, Le Sacré, Paris, Payot, 1949.
“ Claude Lévi-Strauss, “Introduction à 1’oeuvre de Mauss”, art. cit., p. XLIV

203
MAURICE GODELIER

A emoção diante de um objeto sagrado não é nem um mistério,


nem um epifenômeno. Ela faz parte do mesmo conjunto; ela é um seu
componente essencial que não pode surgir, vir à tona à visão de um
“símbolo em estado puro”, de um significante “vazio de sentido, mas
suscetível de carregar-se com qualquer conteúdo simbólico”21.
Portanto, não estamos diante de processos que derivariam direta e
essencialmente das “leis do pensamento humano”, sendo o resto, se­
gundo Lévi-Strauss, “residual”. Estamos nos confrontando com certos
tipos de relações do homem consigo m esm o, relações implicadas na­
quelas que ele estabelece com o mundo que o cerca, relações que são,
portanto, sociais, intelectuais e afetivas ao m esm o tem po e que se ma­
terializam em objetos.
Essas relações do homem consigo mesmo são de tal sorte que os
homens nelas ocupam dois lugares ao mesmo tempo, no espaço e no
tempo: com eles, tomam parte nelas os duplos imaginários deles mes­
mos. E, na medida em que se desdobram, os homens povoam o univer­
so de seres que concebem à sua própria imagem, mas dotados de poderes
inacessíveis aos humanos de hoje (exceto pela magia), de poderes dos
quais seus ancestrais míticos eram, estes sim, normalmente dotados. E
nisso que as relações com o mundo que os cerca não são senão a pro­
jeção, nas coisas, de um aspecto deles próprios. Por isso as coisas nun­
ca são “coisas verdadeiras”, exteriores aos homens, pois assumem,
necessariamente, a aparência de pessoas e, metamorfoseadas em pes­
soas, os humanos se dirigem a elas como pessoas (em suas preces, atra­
vés dos sacrifícios etc.). O círculo se fecha. As idéias correspondem às
coisas. As coisas e os fatos correspondem às idéias. A verdade é
verificada. A evidência não pode ser negada. O homem encontra-se
murado no mundo de suas representações e de seus desejos, de sua
vontade. E, no curso do mesmo processo, são suas relações sociais que
se constroem de modo tal que a opacidade necessária à sua existência,
à sua reprodução, possa, ao mesmo tempo, ser produzida.

I 21Ibid., p. L.

204
0 ENIGMA DO DOM

Portanto, não estamos lidando com fenômenos puramente intelec­


tuais, porém mais profundamente, com a parte que o pensamento as­
sume no próprio processo de produção das relações sociais, com a parte
ideal do real social. Em outras palavras, não é, portanto, apenas em
função “de uma certa situação do espírito em presença das coisas22”
que esses processos são acionados, é também em razão de uma certa
situação dos homens em relação a eles próprios, em razão dos proble­
mas implicados na natureza de suas relações sociais, engrenagens que
os levam a construir representações deles mesmos e do mundo, em cujo
conteúdo certos aspectos dessas relações são ou mantidos sob silêncio,
ou idealizados, metamorfoseados em condições invioláveis da sobrevi­
vência da sociedade, em Bem comum.
Situações desse tipo existem em todas as sociedades, inclusive, bem
entendido, a nossa, na qual, ao lado dos mitos e das religiões, os co­
nhecimentos científicos, experimentais e matemáticos conhecem o
maior desenvolvimento já alcançado na história da humanidade e pro­
duzem efeitos diretos sobre nossas condições materiais de existência,
pois, à diferença do que se passava na Antiguidade e na Idade Média,
as ciências são hoje a fonte de praticamente todas as técnicas de pro­
dução, de destruição e de comunicação.
Em nossas sociedades, o desdobramento do homem, a inversão das
relações entre sujeito e objeto, entre os indivíduos que produzem e seus
produtos se manifestam antes de mais nada em dois domínios: o eco­
nômico, onde as relações entre os homens estão ao mesmo tempo pre­
sentes e apagadas nesse objeto que se tornou eminentemente sagrado,
o dinheiro, particularmente quando funciona como capital, como di­
nheiro que faz dinheiro “por si só”; o político, pois, a despeito de se­
rem os cidadãos que elejem seus representantes e estes que votam as

“ Ibid., p. XLIII. A obra de Lévi-Strauss La Pensée sauvage (Paris, Plon, 1962)


demonstra claramente que a “ciência do concreto” das sociedades “primitivas” é
perfeitamente compatível com as construções de sistemas mágico-religiosos. Es­
ses conhecimentos concretos fornecem ao pensamento mítico materiais, imagens
e esquemas de relações baseados na observação das espécies animais e vegetais.

2 0 5
MAURICE GODELIER

leis, a Lei enquanto tal e seu suporte institucional, o Estado, continuam


a revestir-se de um caráter quase sagrado.
Parece-me da maior importância insistir sobre o fato de que todos
os processos nos quais o homem e o mundo se desdobram, se m ateria­
lizam finalmente em objetos. Sem dúvida, todos os objetos materiais
fabricados pelo homem são misturas de realidades sensíveis e inteligí­
veis, de ideal, de cultural incorporado na matéria. Mas não estamos
tratando aqui de objetos culturais em geral, mas de objetos sagrados
em particular. Estes podem se apresentar como fabricados diretamen­
te pelos deuses ou espíritos, ou pelos homens sob indicação dos deuses
ou dos espíritos, mas em qualquer caso os poderes neles presentes não
foram fabricados pelos homens. São dons dos deuses ou dos ancestrais,
dons de poderes presentes doravante no objeto.
Tudo se passa como se não fossem, portanto, os homens que des­
sem um sentido às coisas, mas sim as coisas, cujo sentido provém do
além do mundo dos homens e que elas transmitem aos homens sob
certas condições. Dito de outra maneira, a síntese do dizível e do indi-
zível, do representável e do irrepresentável se realiza em um objeto
exterior ao homem, mas que exerce sobre os homens, sobre sua con­
duta, sua existência, a maior influência; dito de outra forma ainda, com
o objeto sagrado estamos no ponto extremo em que a opacidade ne­
cessária à reprodução da sociedade é plenamente realizada, em que o
desconhecimento necessário à manutenção da sociedade não corre o
risco de ser reconhecido.
Os homens encontram-se alienados, finalmente, em um objeto
material que nada mais é que eles mesmos, mas um objeto no qual eles
próprios desapareceram, um objeto em que eles estão contraditória e
necessariamente sob o signo da ausência. Mas esta alienação não é di­
reta, material, social, imposta, do exterior, por um senhor a seus es­
cravos ou por um conquistador aos povos submetidos. É uma alienação
que nasce no interior de cada um, pois tem sua fonte nas relações que
fazem o ser social de todos, as relações que existem entre todos aque­
les que pertencem à mesma sociedade, que fazem essa sociedade.

206
O ENIGMA DO D OM

Mais ainda que os textos sagrados, os objetos sagrados realizam a


síntese d o real e do imaginário23 que com põem o ser social d o hom em e
por isso estão carregados do mais alto valor simbólico para os mem­
bros da sociedade que produziu seu código, sem nunca se reduzirem,
todavia, a puros símbolos ou simples objetos24. Isso explica por que os
objetos sagrados não precisam ser “belos” nem objetos de um embe­
lezamento realizado pelo homem para suscitar a emoção que provoca
a presença dos deuses e dos ancestrais. Não é o caso, como vimos, dos
objetos preciosos que circulam nos dons, sobretudo nos dons ago-
nísticos, os potlatch.
Isso explica também o caráter, em princípio, único dos objetos sa­
grados. Mesmo quando os objetos sagrados existem em casais (ou sob
um outro múltiplo), como entre os baruyas, o par que um clã possui é,
em princípio, único e indivisível. E nas sociedades onde os objetos sa­
grados podem ser copiados e onde é possível multiplicar tais cópias,
em algum lugar é conservado preciosamente, nem que seja na cabeça
das pessoas, o arquétipo de tais objetos, que ao mesmo tempo é o seu
protótipo25. Basta pensar, a propósito, no ouro conservado nos bancos
na época em que garantia o valor das outras formas de moeda — bi­
lhetes de banco, títulos bancários etc. — que circulavam nas trocas
mercantis.

u O imaginário, recordemos, é feito ao mesmo tempo de tudo aquilo que os ho­


mens acrescentam idealmente às suas capacidades reais e de tudo o que delas sub­
traem.
24Donde o caráter de profanação que reveste a venda a estrangeiros, colecionado­
res ou turistas, de máscaras e outros objetos sagrados preciosamente conservados
nos clãs. Mas sempre se acha um indivíduo capaz de roubá-los ao próprio clã e
vendê-los em segredo por alguns francos ou um punhado de dólares. Donde tam­
bém a obstinação dos missionários em destruir tais objetos, muitas vezes até o
último deles, para “extirpar a idolatria” dos indígenas. Destruição pública que é
um outro tipo de profanação destinada a demonstrar que o deus dos missionários
é o mais forte.
2,Brigitte Derlon, Malanggan. Objets, rites et société en Nouvelle-Irlande, a sair
nas edições da MSH, em 1996; “Droits de reproduction des objets de culte, tenure
foncière et filiation en Nouvelle-Irlande”, UHomme, 34, n° 2, 1994, p. 31-58.

2 0 7
MAURICE GODELIER

Das coisas que os baruyas produzem para dar ou para trocar

O sal, “moeda” dos baruyas, é extraído das cinzas de uma planta culti­
vada26, espécie de cana-de-sal, que eles transplantam para zonas
irrigadas natural ou artificialmente. As canas, uma vez cortadas, filtra­
das e secas, são queimadas, suas cinzas misturadas em água, e a solução
salgada é lentamente liberada de sua água em fornos de sal. No fim
desse processo (que dura dois dias e uma noite), obtém-se uma quinzena
de barras de sal cristalizado de 2 a 3kg cada uma. A cristalização nos
fornos é confiada a um especialista, que alimenta o fogo, elimina as
impurezas que se depositam no sal etc. No decorrer de toda a duração
do trabalho, este homem não volta para casa e é proibido de manter
relações sexuais com uma mulher. Se ele não se conformasse a essas
proibições, o sal viraria água e o proprietário não poderia trocá-lo.
Todos os clãs dos baruyas têm campos de cana-de-sal dispostos nas
margens dos rios. O especialista, detentor de um saber mágico, é recom­
pensado por seu trabalho com o dom de uma ou duas barras de sal.
O sal em questão não é sódio, mas potássio. Ele dá aos alimentos
um gosto salgado, mas em doses fortes é um poderoso veneno. E não
é usado no consumo corrente, mas exclusivamente nos contextos
ritualísticos (iniciações masculinas, iniciações femininas etc.). É por isso
que seu consumo é associado às etapas-chave da vida dos indivíduos,
ligadas elas mesmas a momentos-chave da reprodução da sociedade.
O sal é considerado como uma fonte de força que se acumula no
fígado, órgão cheio de sangue que, para os baruyas, é o lugar em que
se concentra toda a força contida nos indivíduos. Mais secretamente,
ele é associado ao esperma, à força masculina. É por esta razão que o
fabricante é um homem, e ele deve se privar de qualquer relação sexual

u Coix gigantea, Konig ex Rob. Planta proveniente do Sudeste asiático. Ver


Maurice Godelier, “La monnaie de sei des Baruya de Nouvelle-Guinée”,
UHomme, vol. 9, n. 2, 1969, p. 5-3 7 ; “Monnaie et richesses dans divers types
de société et leur rencontre à la périphérie du capitalisme”, Actuel Marx, n. 15,
abril de 1994, p. 77-97.

208
O ENIGMA 00 DOM

enquanto procede à cristalização do sal. Entre os baruyas, o sal tem


dois usos e dois modos de circulação. No interior da tribo é objeto de
partilhas, de uma redistribuição pelo dom. Finalmente é consumido,
mas apenas nos contextos ritualísticos. Os pais dos iniciados dão, por
exemplo, um pedaço de sal aos homens que iniciam seus filhos para
que eles mastiguem e cuspam o suco sobre os alimentos cerimoniais.
Mas uma barra de sal pode ser dada também a um xamã que expulsou
um mau espírito de seu corpo, pelo menos se ele assim o desejar. Em
suma, o sal é redistribuído principalmente através das relações de pa­
rentesco, de vizinhança, de co-iniciação etc. Ele nunca circula entre
eles como mercadoria, mas como objeto de dom pelo qual, aliás, não
se espera um contradom direto ou mesmo diferido no tempo.
No entanto, a maior parte do sal dos baruyas não é produzida para
ser dada entre eles e consumida por eles, mas para ser trocada como
mercadoria com as tribos vizinhas. Os baruyas partem regularmente em
expedição por dois ou três dias, os corpos pintados de signos mágicos
que os protegem dos feiticeiros inimigos e dos maus espíritos. Nessa
ocasião, eles vão para a casa de parceiros, que lhes asseguram hospitali­
dade e proteção, em tribos que ainda ontem eram inimigas e que ama­
nhã poderão voltar a sê-lo. As trocas se dão diante de suas portas, em
um espaço que funciona durante um tempo como zona de paz e como
mercado. O sal é então trocado por várias categorias de bens, de meios
de produção (utensílios de pedra, de aço etc.), meios de destruição (ar­
cos, flechas etc.), meios de reprodução social (plumas de aves-do-paraíso,
de casuares, cauris, pearl-shells, grandes conchas, inúmeros ornamentos
e vestimentas necessários para a paramentação dos iniciados, dos guer­
reiros, das jovens iniciadas, das mulheres casadas etc.), bens de consumo
corrente (capas de cortiça, redes de corda trançada), pequenos porcos.
Em suma, o sal funciona nessas trocas como uma mercadoria dis­
tinta de todas as outras, na medida em que é a única que pode ser
trocada por qualquer outra. Portanto, ele é mais que uma mercadoria
que se troca. Ele serve de certo modo para medir o valor de troca das
outras mercadorias, pois pode ser trocado por todas elas a taxas está­

2 0 9
MAURICE GODELIER

veis que constituem seu “preço”. Uma barra média se troca por 4 gran­
des capas de cortiça ou, outrora, por 2 lâminas de pedra polida para
fabricar enxós etc. De fato, o sal serve de unidade de medida também
porque pode ser partido em pedaços mais ou menos grandes, é divisí­
vel sem perder seu valor de uso, o que não se pode fazer com uma capa
de cortiça ou com uma enxó de pedra.
Mas parece-nos que o sal pode servir como moeda também por
uma outra razão: porque, aos olhos das tribos vizinhas dos baruyas,
assim como para eles, ele contém uma força de vida mágico-religiosa,
algo do universo dos kwaimatnié, dos objetos sagrados. Tanto uns quan­
to os outros, só se servem dele, aliás, em contextos ritualísticos, embo­
ra seus ritos sejam diferentes e não derivem sempre da mesma cultura.
É preciso sublinhar, no entanto, que, quando o vendem, os baruyas não
se sentem ligados pessoalm ente àqueles com quem trocam seu sal por
utensílios ou capas de cortiça. Eles têm e devem ter laços pessoais com
o “correspondente” que os hospeda, os protege e espalha a nova de
que os baruyas chegaram com sal. Mas eles não sentem nenhuma obri­
gação em relação àqueles que compram o seu sal: este, enquanto obje­
to, desliga-se completamente de seu proprietário. As trocas mercantis
revestem-se, portanto, para os baruyas, de um caráter impessoal. Em
determinadas circunstâncias, excepcionais é verdade, o sal não é tro­
cado como mercadoria entre os baruyas e as tribos vizinhas. Ele é dado
como garantia para selar um tratado de paz. As barras de sal oferecidas
nessas ocasiões não podem ser trocadas nem consumidas: elas ficam lá
para lembrar à memória dos homens um acordo político; elas contêm,
de fato, um juramento, e seu dom exige, por parte dos inimigos de
ontem, um contradom que sela a amizade e a igualdade entre eles,
recuperadas com a paz. Em suma, não servem mais para o consumo
nem para a troca. São dadas para serem guardadas e para que sirvam
de testemunho.
Cumpre, aliás, ressaltar que as tribos que compram o sal dos baruyas
não o usam como meio de pagamento privilegiado em suas próprias
trocas com as tribos mais distantes, que não comerciam com os baruyas.

2 1 o
O ENIGMA DO DOM

Além disso, estes últimos não produzem mais sal do que o necessário
para adquirir as coisas que eles mesmos não produzem ou não o fazem
çpi quantidade suficiente. Eles nunca produzem para estocar e adqui­
rir mercadorias com o único objetivo de revendê-las e lucrar com isso.
Em outras palavras, se o sal é, de algum modo, uma mercadoria-moe-
da, trata-se de uma moeda que não funciona jamais como capital, como
dinheiro que se investe para obter lucro. O sal dos baruyas, embora
seja a única mercadoria que eles podem trocar por todas aquelas de
que necessitam, não deixa nunca de ser um objeto de troca, privilegia­
do, é certo, mas cujo valor de troca ainda não se distingue suficiente­
mente de seu valor de uso para que ele seja plenamente uma moeda27.

Co lares d e con chas e o b jeto s de '‘v a lo r”entre os baruyas

Existem, no entanto, objetos pelos quais se troca o sal e que têm, como
ele, a capacidade de trocarem-se por outros, mas de modo muito mais
limitado. São as grandes conchas chatas, nacaradas, as pearl-shells, que
ornam o peito dos homens iniciados, e as grandes conchas redondas,
brancas como leite, que enfeitam o colo das mulheres a partir do mo­
mento em que elas têm sua primeira menstruação e são iniciadas. Es­
ses objetos contêm igualmente um poder mágico-religioso ligado à
reprodução da vida28. Mas ninguém, entre os baruyas, os coleciona para
ofertar como dom nos potlatch.

27Este ponto foi levantado por Jean-Michel Servet em 1974, em sua obra Essai sur
les origines des monnaies, publicação da Universidade de Lyon-III, p. 74-79. J.M.
Servet critica aí nosso uso do termo “moeda”, em 1969, em nossa primeira publi­
cação sobre o sal dos baruyas. Nós lhe damos razão de bom grado, tanto que aquilo
que hoje escrevemos sobre os objetos-substitutos dos homens e dos deuses con­
verge com suas idéias sobre as origens não mercantis mas político-religiosas da
moeda.
28Os baruyas ignoravam sua origem, pois essas conchas provêm do mar e, até a
chegada dos europeus, eles não sabiam de sua existência. No entanto, seus mitos
falavam de uma grande extensão de água, de uma espécie de imenso lago...

211
MAURICE GODELIER

Ora, são precisamente esses de objetos que — antes da chegada


dos europeus — os melpas, os engas e outras sociedades das Highlands
da Nova Guiné acumulavam para que figurassem, ao lado de centenas
de porcos, nas grandes trocas cerimoniais, nas grandes competições de
dons de riquezas (o m oka dos melpas, o tee dos engas etc.) que liga­
vam e opunham essas sociedades umas às outras. O contraste com os
baruyas é, portanto, marcante, pois estes não acumulam29 seu sal, em­
bora pudessem fazê-lo; criam seus porcos mas não os utilizam em suas
trocas cerimoniais, nas quais entra somente a caça abatida pelos ho­
mens; não praticam nenhum tipo de troca competitiva de dons e
contradons e, entre eles, cada homem e cada mulher adultos possui
um certo número de conchas que destina a seus filhos (pearl-shells) e
suas filhas (grandes conchas redondas). Qual a razão de tal contraste?
Por que aquilo que é praticado em outras partes com os mesmos obje­
tos — pearl-shells, porcos — não o é e não pode sê-lo entre os baruyas?
A razão parece residir na própria natureza das relações de paren­
tesco e das relações políticas que organizam a sociedade baruya e na
relação, no laço direto, que existe entre ambas. As primeiras repou­
sam no princípio da troca de mulheres entre os homens, entre as linha­
gens; as segundas consistem em iniciações masculinas e femininas que
estabelecem e legitimam a dominação coletiva e individual dos homens,
sua solidariedade e sua unidade diante das mulheres no interior de suas
tribos e diante dos homens das tribos vizinhas, todas potencial ou real­
mente inimigas. Ora, esta estrutura social exclui qualquer competição
através do dom de riquezas para se ter acesso às posições de poder.
O casamento entre os baruyas repousa na troca direta de duas ir­
mãs, reais ou classificatórias, entre dois irmãos. Através dessa troca,
uma aliança é selada entre duas linhagens e dois clãs. O casamento
também é autorizado dentro de um mesmo “clã”, mas entre linhagens

z,Cf. Andrew Strathern, “Finance and Production...”, art. cit., p. 42-67; id., The
Rope ofthe Moka..., op. cit.; James Weiner, The Heart ofthe Pearl-Shell, Berkeley,
University of Califórnia Press, 1988.

2 12
O ENIGMA DO DOM

distantes. Um homem não pode tomar mulher na linhagem de sua mãe,


reproduzindo assim o casamento de seu pai. E dois irmãos não podem
tomar mulheres na mesma linhagem. Cada um tem que se aliar a li­
nhagens diferentes.
Aplicando essas regras, cada linhagem baruya encontra-se ligada,
a cada geração, a várias outras linhagens, e essas alianças mudam de
geração em geração, as antigas apagando-se lentamente, mas sendo
eventualmente reproduzidas depois de três ou quatro gerações. Exa­
minemos aquilo que, nesses princípios, exclui o uso competitivo dos
bens. É antes de tudo o fato de que, entre os baruyas, as mulheres não
são trocadas por riquezas, mas por outras mulheres. Nenhum bride-
wealth, nenhuma riqueza em objetos preciosos, em porcos, que seja
um substituto direto da mulher, de um ser vivo. E uma linhagem que
deu uma mulher sem receber nenhuma em troca terá direitos sobre a
filha da mulher dada, que voltará, assim, para desposar um homem da
linhagem de sua mãe, um primo cruzado matrilateral.
Através desse dom e desse contradom de mulheres, as duas linha­
gens ficam reciprocamente em dívida e permanecem obrigadas a prestar
ajuda e assistência mútua, a trocar serviços, a partilhar o sal, os porcos e
a convidar umas às outras para cultivarem as terras em comum. A troca
recíproca une as linhagens e, em determinadas circunstâncias, uma den­
tre elas se estabelece na tribo de seus aliados, mesmo quando estes per­
tencem a uma tribo inimiga. A aliança matrimonial solapa a solidariedade
política, e os baruyas, como seus vizinhos, sabem jogar perfeitamente
com o parentesco para criar divisões entre os inimigos.
Mas as relações de parentesco e as alianças por casamento entre as
linhagens e os clãs não são suficientes para fazer uma sociedade, isto é,
uma totalidade unificada em relação a si mesma e ao exterior. Para isso,
é preciso haver relações político-religiosas que integrem todos os clãs,
todas as gerações e todos os indivíduos em um mesmo quadro, em uma
mesma estrutura, a que é construída pelas cerimônias de iniciação
masculina e feminina, através das quais os baruyas se apresentam, a si
mesmos e a seus vizinhos, amigos e inimigos, como um todo.

2 13
MAURICE GODELIER

E é essa mesma lógica de equivalência que eles aplicam à guerra. A


morte de um baruya só pode ser paga com a morte de um inimigo.
Assim como nenhuma riqueza pode ser trocada por uma mulher, não
há nenhuma riqueza que possa compensar a morte de um guerreiro.
Não é que os baruyas ignorem a possibilidade de trocar riquezas
contra a vida ou contra a morte. Ao contrário, eles conhecem tal prin­
cípio e o praticam em duas ocasiões. Quando querem selar uma alian­
ça comercial com uma tribo distante, com a qual não correm, portanto,
o risco de estarem alternativamente em paz e em guerra, eles despo-
sam uma mulher desta tribo e dão em troca um grande número de barras
de sal e dezenas de braças de cauris. Em suma, eles dão “moeda” e
“riquezas”. Conhecem, portanto, o princípio do casamento com dote,
embora recusem-se a praticá-lo entre eles e com seus vizinhos imedia­
tos, ou seja, na esfera de suas relações políticas.
Em um outro contexto, desta vez interno à tribo mas excepcional, os
baruyas trocam riquezas por vida. Isso se produx quando um indivíduo
deseja cortar definitivamente os laços com sua linhagem e, casado com
uma mulher de outra linhagem, deseja ser considerado como um membro
da linhagem de seus aliados. Se estes últimos e a sua própria linhagem estão
de acordo, a transferência e a ligação simbólica do indivíduo à nova linha­
gem têm lugar no curso de uma cerimônia na qual uma “ponte” feita de
barras de sal, de braças de cauris, de pearl-shells etc. é construída e dada
pela linhagem dos aliados à linhagem de origem. A partir desse momento,
o homem e seus descendentes perdem todos os direitos de utilizar as ter­
ras de seus ancestrais, de cultivá-la, de nela caçar etc. Portanto, longe de
ignorar o princípio da troca de riquezas contra a vida e contra a morte, os
baruyas o conhecem bem, mas não estendem sua aplicação ao interior da
esfera de suas relações político-religiosas.
Logo, não é a presença de pearl-shells ou a capacidade de encon­
trá-las, não é sequer a capacidade de criar um grande número de
porcos que explicam a existência das grandes trocas competitivas.
Estas trocas supõem, sem dúvida, condições tecnológicas ou ecológi­
cas favoráveis para que possam se desenvolver, mas o que explica seu

2 14
O ENIGMA DO DOM

aparecimento e posterior desenvolvimento é um certo tipo de relação


que os homens estabelecem entre eles (e não diretamente com a natu­
reza). E essas relações devem ser buscadas precisamente no âmbito do
parentesco e do político-religioso.
É assim que, entre os baruyas, se a troca direta de mulheres entre
as linhagens tem efeitos sobre a economia e a moral, já que acarreta
outros dons, trocas de serviços, partilhas de bens, a sociedade, em seu
conjunto, não repousa sobre “uma economia e uma moral do dom”.
Pois as relações de parentesco, que constituem o domínio sobre o qual
age o princípio do dom-contradom, não constituem um campo aberto
para a competição. Não teria sentido algum para um baruya dar duas
de suas irmãs em troca de uma esposa. Uma mulher deve tomar o lu­
gar de uma mulher, e idealmente qualquer uma (de boa saúde, e bem
criada) vale qualquer uma outra.
Aliás, as relações político-religiosas que existem entre os clãs e as
linhagens, sua participação em lugares distintos, herdados, na realiza­
ção das cerimônias de iniciação, na produção dessa arquitetura imagi­
nária coletiva que realiza e ao mesmo tempo simboliza a unidade política
da tribo bem além de suas divisões em grupos de parentesco e em gru­
pos de residência distintos, tudo isso exclui a instauração entre eles de
uma competição para se ter acesso, em número limitado, a posições de
poder e prestígio. Quando tal campo existe e o meio para se chegar a
posições de poder e renome é a competição pelos dons de riquezas
acumuladas, trata-se de uma sociedade onde a economia e a moral têm
todas as chances de ser marcadas e impulsionadas pela prática de dons
e contradons. Vemos assim por que, entre os baruyas, o acúmulo de
conchas e porcos não é socialm ente necessário, embora seja possível.

Dos dons entre amigos

Na língua baruya, um amigo se diz nya’m wei, uma amiga nya’mwé.


Para um homem, pode-se utilizar igualmente a palavra kw aiyeu-
waalyaigeu. Os dois primeiros termos podem ser empregados igual­

2 1 5
MAURICE GODELIER

mente para dizer “irmão” e “irmã”. Um amigo é (como) um irmão,


uma amiga (como) uma irmã. O segundo termo se refere ao mundo
das iniciações masculinas, dos laços de solidariedade que se estabele­
cem entre co-iniciados (nyakwé): deles se espera que se ajudem mutua­
mente e partilhem o alimento, assim como sofram juntos o frio, a fome,
os medos, as angústias, as provas.
As relações entre amigos se situam, portanto, em algum lugar en­
tre as relações que unem parentes muito próximos da mesma geração
e aquelas que unem co-iniciados. Entre amigos, sejam eles do mesmo
sexo ou de sexos diferentes, ajuda-se sem obrigação de retribuição, mas,
sabendo que se pode contar com o outro, dá-se, partilha-se. Em suma,
a amizade é uma relação entre indivíduos não-aparentados, na maior
parte das vezes (mas não necessariamente) da mesma geração, que
marcam seus sentimentos por gestos de ajuda mútua e através de tro­
cas de dons, de presentes (yanga). O termo yanga cabe tão bem na idéia
de partilhar (yanga m udeum o) quanto na de trocar {yanga yeunako).
Mas quando uma coisa foi definitivamente dada, separou-se de verda­
de de seu doador, emprega-se o termo seubum ale para designá-la.
Os dons entre amigos só engajam os indivíduos. Não contribuem,
portanto, para a reprodução das estruturas de base da sociedade, das
relações de parentesco, por exemplo, como a prática do ginam aré, a
troca de irmãs entre dois homens, de mulheres entre duas linhagens.
Os dons, a ajuda entre amigos, relaciona-se com a esfera dos laços
subjetivos entre indivíduos que se escolhem sem que sua escolha
recíproca tenha outro motivo, outra obrigação além da força de seus
sentimentos, a atração que suscitam e sentem um pelo outro. No en­
tanto, uma obrigação social pesa, entre os baruyas, sobre as relações
de amizade: é excluída qualquer relação sexual. Nisso as relações de
amizade se assemelham a relações de intimidade entre irmãos e ir­
mãs, entre consangüíneos. Aliás, parecem-se com elas também em um
outro aspecto: entre amigos dá-se sem esperar retorno imediato e sem
se preocupar sequer com um retorno, um pouco como entre pais e
filhos.

2 16
0 ENIGMA DO DOM

Podemos entrever aqui uma das razões pelas quais na cultura oci­
dental os dons entre amigos continuam a existir e a ser valorizados, en­
quanto outros tipos de dons, obrigatórios porque necessários para
reproduzir elementos fundamentais da sociedade, tais como as relações
de parentesco, não existem ou pelo menos não existem mais. O dom
entre amigos, que ocupa um lugar menor na cultura baruya, permanece
um paradigma forte no Ocidente individualista, pois se apresenta como
um ato individual, espontâneo, subjetivo, altruísta, não obedecendo a
nenhuma obrigação coletiva, a nenhuma coação social objetiva: que não
serve, portanto, para reproduzir em profundidade a sociedade. No Oci­
dente, o dom entre amigos toma assento ao lado de um outro dom, for­
temente privilegiado, este, pelo Ocidente cristão: o dom por Cristo, filho
de Deus, da própria vida para remir os pecados dos humanos e salvá-los
da danação eterna, exemplo supremo do dom gratuito, absoluto.

Q uadro recapitulativo das coisas que se devem guardar, qu e se


devem d a r o u qu e são trocadas entre o s baruyas

Primeiramente, temos os objetos sagrados, assim como os nomes e


fórmulas que os acompanham. As linhagens pretendem tê-los recebi­
do do Sol, da Lua, dos espíritos da natureza como dons que devem
guardar e não dar. Todas essas realidades, excluídas em princípio do
dom e da troca, constituem o fundamento ideal e ideológico das rela­
ções de poder, das relações político-religiosas que reinam entre os se­
xos, de um lado, os clãs do outro e que são relações de dominação.
Alguns desses objetos foram dados diretamente aos homens pelas
potências do universo: são os kw aim atnié, os rombos etc. Outros ha­
viam sido dados às mulheres (flautas), mas os homens roubaram-nos.
Todos se encontram agora nas mãos dos homens, que os guardam. Mas,
mesmo guardando-os, eles fazem dom a toda a população baruya das
forças vitais que eles contêm e que podem ser benéficas para os seres
humanos. Assim, se os objetos são excluídos do dom, seus benefícios
são dados, trocados.

2 17
MAURICE GODELIER

Os dons de esperma são referentes a essas relações político-religiosas


destinadas a assegurar a dominação masculina e aparecem em dois con­
textos completamente diferentes. Por um lado, os dons aos jovens inicia­
dos por jovens virgens de qualquer contato sexual com mulheres; do outro,
os dons que um homem, a partir do momento em que se casa, deve fazer
à esposa na idéia de que seu esperma vai se acumular nos seios da mulher,
onde se transformará no leite com o qual ela alimentará seus filhos. Esses
dons são renovados a cada vez que a esposa dá à luz, às vezes mesmo a
cada vez que ela tem suas regras, isto para devolver-lhe as forças. Assim,
entre os baruyas, a criança é considerada como produto do esperma de
seu pai, que fabrica seu corpo no ventre de sua mãe e que a nutre em se­
guida através de coitos repetidos durante a gravidez. Mas os dons de es­
perma do pai ao feto não são suficientes para fabricar a criança inteiramente,
e é o Sol, pai de todos os baruyas, que termina o embrião no ventre da
mulher, fabricando-lhe as mãos, os pés e o nariz (sede do espírito).
Em contrapartida, os baruyas elevam preces aos deuses e aos espí­
ritos. De tempos em tempos, quando alguma epidemia devasta a tribo
e pessoas morrem às dezenas, os xamãs sacrificam um porco, do qual
enterram uma pata perto da casa em que invocam os espíritos. Os
baruyas gostam de lembrar que deram uma mulher ao grande píton
mestre do trovão, da chuva e do sangue menstruai e que esta mulher
transformou-se na estrela Vênus. Mas é claro que as dívidas em rela­
ção aos espíritos e às potências invisíveis não poderiam ser anuladas,
nem mesmo “equilibradas”.
Na esfera do parentesco, ao contrário, os dons recíprocos de mu­
lheres se equilibram sem se anularem, restabelecendo a equivalência
dos status sociais dos indivíduos e dos grupos implicados nas trocas.
Com o sal, enfim, estamos lidando com um objeto produzido para ser
redistribuído entre os baruyas através de uma série de dons ou utiliza­
do como uma espécie de moeda para comprar coisas necessárias, mas
que os baruyas não produzem ou o fazem em quantidade insuficiente.
Entre as coisas que eles compram figuram os colares de cauris ou as
grandes conchas chatas que lhes chegam do mar através de uma série

2 18
O ENIGMA 00 DOM

de trocas intertribais. Essas conchas servem de ornamento e são dadas


aos filhos ou filhas quando são iniciados ou se casam.
A sociedade baruya nos oferece, portanto, uma variedade de formas
de dons. Dons em que os tomadores (os deuses, os espíritos) dominam
os doadores (os humanos), pois são eternamente superiores a eles, por­
que lhes deram os kwaimatnié, os saberes secretos etc. Dons simétricos
entre tomadores e doadores de esposas, dons assimétricos de esperma
entre iniciados, nos quais os homens de uma geração ficam para sempre
em dívida em relação aos mais velhos, enquanto seus caçulas ficarão
eternamente em dívida para com eles. Fica evidente que lidamos com
uma configuração completamente diferente daquela das sociedades de
potlatch, cujas condições de aparecimento podemos agora tentar definir.

HIPÓTESES SOBRE O APARECIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DAS


SOCIEDADES DE POTLATCH

Essas condições são duas. Primeiro é preciso que a aliança no parentesco


.não seja mais regulada pela troca direta de mulheres e que, no essencial,
a prática do bridewealth tenha substituído a troca de “irmãs”. E preciso,
por outro lado, que uma parte do poder político-religioso se apresente
sob a forma de títulos, categorias, nomes, emblemas colocados na com­
petição e acessíveis àqueles que conseguem afirmar sua superioridade
sobre os outros pela prodigalidade de seus dons, acumulando mais ri­
queza que os outros para poderem dar ou retribuir mais do que seus rivais
(lhes) haviam dado. Dar cada vez mais, retribuir sempre mais, esta é a
fórmula e ela impulsiona incessantemente o sistema para seus limites30

“ Sublinhemos mais uma vez que, nesse sistema, restituir o equivalente daquilo
que se recebeu não interessa a ninguém. Não é o objetivo perseguido. O objetivo
é colocar aquele que recebe em situação de inferioridade permanente, substituir
relações recíprocas instáveis por relações hierárquicas mais ou menos estáveis.
Aqui também, mas de uma maneira completamente diferente dos dons e contradons
não-antagonistas, retribuir não é restituir.

2 1 9
MAURICE GODELIER

Para isso, é preciso que o ferrolho da troca direta de mulheres te­


nha arrebentado. O número de “irmãs” (mesmo “dassificatórias”)
trocáveis é sempre muito limitado e, exceto se imaginarmos que um
único irmão troque todas as suas irmãs para multiplicar o número de
suas esposas, condenando seus irmãos ao celibato, a esfera das trocas
diretas de mulheres é, de antemão, quantitativamente limitada. A tro­
ca é, aliás, qualitativamente limitada, pois são duas pessoas concretas
que são trocadas.
O problema desaparece quando, em troca de uma pessoa concreta,
são oferecidos objetos de valor, riquezas ou porcos criados não para o
consumo, mas para a troca. Os dados do problema são, de fato, comple­
tamente diferentes: de um lado uma mulher, do outro riquezas, objetos
de valor ou porcos que podemos multiplicar produzindo-os ou conse­
guindo-os de outras maneiras. De um lado temos pessoas, do outro todo
o tipo de “coisas” que funcionam como substitutos dessas pessoas.
Quando uma mulher é trocada por outra mulher, a troca se dá entre
dois seres de natureza igual, cujo valor social supõe-se seja equivalen­
te. A educação está ali para fazer com que as moças tornem-se, todas,
sólidas trabalhadoras, esposas fiéis e boas mães, com que se eqüiva­
lham. Mas nem mesmo a melhor educação garante que ela não será
estéril ou que dela nascerão crianças que vão sobreviver. Na maioria
dos casos, são as mulheres que são acusadas de serem estéreis. Um
homem, entre os baruyas, não p ode ser estéril.
Mas quando uma mulher é trocada por riquezas, a equivalência
assume um caráter novo, mais abstrato. Pessoas tornam-se equivalen­
tes a coisas, coisas a pessoas. Ora, os dois termos da equação não têm
o mesmo modo de existência. As pessoas são produzidas no quadro de
relações de parentesco, as riquezas o são no quadro de relações sociais
que organizam a produção e as trocas. A partir do momento em que as
mulheres são trocadas por riquezas, “uma verdadeira economia políti­
ca do parentesco” torna-se possível. As riquezas permitem conseguir
mulheres, as mulheres permitem conseguir riquezas. As próprias mu­
lheres se tornam uma riqueza.

22 0
O ENIGMA DO DOM

Sem abordar de frente o problema da significação dos dotes entre­


gues pelo homem aos pais da futura mulher (bridew ealtb), e ainda
menos dos dotes que, em certas civilizações, são dados pelos pais da
mulher quando ela vai viver com o marido (dow ry)M, daremos aqui
um exemplo que é suficiente para ilustrar nossas hipóteses e que reme­
te diretamente ao mundo do potlatch, e particularmente ao universo
do m oka, das trocas de dons cerimoniais entre os melpas32.
Entre os melpas, quando um acordo é concluído entre duas famí­
lias ou duas linhagens para o casamento de duas crianças, as negocia­
ções para fixar o montante do dote se desenvolvem em várias etapas.
Bens são trocados entre as famílias, mas um certo número de grandes
conchas e de porcos é dado aos parentes da noiva e não deve ser resti-
tuído. Vários desses porcos são descritos com kem kng, que Andrew
Strathern traduz grosso m odo como “porcos pela vagina da moça”; um
certo número de conchas é chamado de pengpokla, o que significa “para
cortar a cabeça” da moça, isto é, separá-la de seus parentes; um porco
é dado especialmente à mãe da noiva, e diz-se que é m am peng kng, o
“porco da cabeça da mãe”.
A lógica dessas equivalências é visível. Riquezas, porcos, conchas,
são transferidos sem retorno seja para cortar (em parte) os laços que
ligam a jovem mulher aos seus, seja para ter acesso aos “serviços” se­
xuais ou outros. Mas, ao mesmo tempo, porcos vivos são trocados entre
as duas linhagens e alguns outros são dados à jovem por seus parentes
para que o casal possa começar sua própria criação de porcos. A intenção

3'Ver, sobre esse ponto, Jack Goody e Stanley Jeyarada Tambiah (ed.), Bridewealtb
and Dowry, Cambridge University Press, 1973, obra cuja publicação suscitou
múltiplas discussões.
32Andrew Strathern, “The Central and the Contingent: Bridewealth among the
Melpa and the Wiru”, in J. L. Komaroff (ed.), The Meaning ofM arriage Payments,
Londres, Academic Press, 1980, p. 49-66. Ver também, a propósito dos engas que
praticam um outro tipo de troca cerimonial, o tee, o artigo de Daryl K. Feil “The
Bride in Bridewealth: A Case from the New Guinea Highlands”, Ethnology, n°
20, 1981, p. 63-75, e seu livro Ways o f Exchange: The Enga Tee o f Papua New
Guinea, The University of Queensland Press, 1984.

22 1
MAURICE GODELIER

que se esconde por trás desses dons não é mais compensar com riquezas
o dom de uma mulher, mas se preparar para transformar os aliados
pelo casamento em parceiros no m oka.
De fato, entre os melpas o casamento só fica plenamente estabele­
cido quando os grupos e os indivíduos ligados por ele se transformam
em parceiros nas trocas m oka e, sempre cooperando, rivalizam entre
si. Com este exemplo pode-se compreender muito bem por que, nas
sociedades com potlatch, o casamento não poderia repousar na troca
direta de mulheres: isto não “bloquearia” a competição na troca de
riquezas materiais? As alianças, os jogos do parentesco são subordina­
dos aqui à perpetuação do m oka e ao alargamento de sua base em de­
zenas e dezenas de clãs e milhares de indivíduos, em suma, em uma
base que deriva de uma outra ordem que não o parentesco, a ordem
do político.
Dito de outra forma, a prática do bridewealth, a inexistência ou a
presença sem importância social maior da troca direta de mulheres,
não basta para engajar a sociedade na ronda excitante mas perigosa
dos dons e contradons de riquezas, para subordinar a economia e o
universo moral dos indivíduos e dos grupos à transferência constante
de riquezas de mão em mão, de grupo a grupo, de indivíduo a indiví­
duo. É preciso também que um certo número de posições de poder
seja acessível por com petição entre os grupos e entre os indivíduos, que
a condição para ter sucesso nessa competição seja a capacidade de acu ­
m ular riquezas e redistribuí-las, dá-las.
E dando riquezas que se adquirem poder e renome, assim como
é dando riquezas que se adquirem mulheres. Logo, os objetos que
constituem riqueza funcionam não apenas como substitutos de p es­
soas, de seres humanos, mas também como substitutos de ob jeto s
sagrados que constituem a fonte última de todo poder entre os ho­
mens e cuja posse testemunha relações privilegadas com os deuses
e os ancestrais.
Quando esses dois tipos de estrutura se encontram e se engre­
nam um com o outro — relações de parentesco em que a aliança

222
O ENIGMA DO DOM

entre duas linhagens implica transferências de riquezas por parte


dos tomadores de mulheres e a troca direta de mulheres desempe­
nha apenas um papel menor, sendo, às vezes, até mesmo proibida33;
relações políticas em que um certo número de indivíduos e de gru­
pos locais pode, rivalizando pelo dom de suas riquezas, ascender a
posições de poder e prestígio, seja no quadro de sua tribo, seja em
um quadro mais vasto, intertribal, regional — , então parecem estar
reunidas as condições para que surja uma sociedade em que os gru­
pos e os indivíduos que os representam possam perseguir seus inte­
resses mostrando-se desinteressados, rivalizando pela importância
de seus dons.
Nesse tipo de sociedade, o campo aberto à competição entre os
grupos e entre os indivíduos tornou-se, portanto, bastante vasto. Ele
atravessa o conjunto das relações de parentesco e se estende a uma
porção das relações político-religiosos. Mas ele deriva sempre da mes­
ma lógica de relações sociais que só existem e se reproduzem de pes­
soa a pessoa, de grupo a grupo, dos grupos que, na maioria, agem
como pessoas e são considerados como tais. Nada aqui aponta para
relações interpessoais como as que, na sociedade ocidental contem­
porânea, se estabelecem entre cidadãos iguais em direito e o Estado
constitucional.
Por poderes político-religiosos, entendo um certo tipo de poderes
que se exercem sobre a sociedade inteira e em nome da sociedade in­
teira para que todos os grupos de parentesco e todos os grupos locais
que a compõem se reproduzam juntos, como um todo, unidos por e
para além de suas divisões internas, suas oposições de interesses, suas

33Como acontece entre os melpas do interior da Nova Guiné, que proíbem a tro­
ca direta de mulheres porque impede que aliados pelo casamento sejam rivais na
competição de dons e contradons. Cf. Rena Lederman, What Gifts Engender: Social
Relations and Politics in Mendi, Highlands Papua New Guinea, Nova York,
Cambridge University Press, 1986. Ver nossa análise deste exemplo em Big Men,
Great Men, Personifications o f Power in Melanesia, Cambridge University Press/
Maison des sciences de l’homme, 1991, p. 284.

2 2 3
MAURICE GODELIER

discórdias. O campo do político-religioso ultrapassa, portanto, e en­


volve o campo do parentesco porque, mesmo quando relacionado aos
interesses dos grupos locais e dos grupos de parentesco, ele os trata em
outro plano, em grande parte autônomo em relação ao domínio do
parentesco.
Por que a troca de dons e contradons torna-se, nesse tipo de socie­
dade, o instrumento privilegiado da luta pelo poder e pela reputação?
A primeira razão nos parece residir no fato de que dar obriga os outros
sem que haja necessidade de recorrer à violência. O dom, como vimos,
torna solidários os dois parceiros e, ao mesmo tempo, faz com que um
deles (o donatário) fique obrigado ao outro (o doador), instala-o em
uma posição socialmente inferior e dependente enquanto ele não pu­
der dar, por sua vez, mais do que recebeu.
Mas enquanto entre os baruyas o objetivo perseguido ao aplicar o
princípio “uma mulher por uma mulher” é permitir que todos os ho­
mens possam ter pelo menos uma esposa e, portanto, que todas as li­
nhagens possam se reproduzir34, nas sociedades de trocas competitivas
de dons e contradons de riquezas o objetivo declarado é permitir ape­
nas a alguns indivíduos e a alguns grupos som ente o acesso a posições,
títulos, categorias postas em competição, o que significa que o número
dessas categorias, títulos e posições deve ser amplamente inferior ao

J4Em 1981, testemunhamos uma tentativa, por parte de um certo número de re­
presentantes de linhagens baruyas, de substituir o sistema tradicional de troca direta
de mulheres, o ginamaré, por um sistema de dote. O fato deu ensejo a debates
muito acalorados, discussões políticas coletivas, no curso das quais os jovens sol­
teiros afirmaram, em sua maioria, seu apego à tradição para evitar que apenas os
“ricos” pudessem se casar e “ter todas as mulheres”. Alguns deles acusaram publi­
camente os velhos de desejarem “vender” suas filhas, embora não tivessem sido
obrigados a “comprar” suas mulheres. A história parou por aí, mas alguns desses
jovens que tinham partido para trabalhar nas plantações voltaram anos mais tarde
acompanhados de esposas que haviam “comprado” com seu dinheiro nas tribos
vizinhas das plantações ou entre os chimbus e outros grupos das terras altas, em
que a prática do bridewealth é tradicional e que estão sempre com pouco dinhei­
ro, pois este é gasto nas trocas cerimoniais.

224
O ENIGMA DO DOM

número de grupos e indivíduos que se enfrentam35. Esse fato, a “rari­


dade” relativa dos bens políticos em relação ao número de participan­
tes, tem por conseqüência que aqueles que entram no jogo com o
objetivo de ir até o fim e ganhar são socialmente obrigados a dar sem­
pre mais que os outros ou a dar objetos muito mais raros, mais precio­
sos que os dos outros. Outra conseqüência: o estilo, enfático, cerimonial,
dos gestos através dos quais se realizam os dons e contradons.
Fácil compreender, nesse tipo de sociedade, por que é difícil, quiçá
impossível para a maioria dos indivíduos e dos grupos, não entrar no jogo
dos dons e contradons ou sair dele. Só conseguem escapar (em parte) aque­
les que, por sua posição elevada, estão situados acima da arena ou aqueles
que, por sua condição inferior ou servil, são excluídos por baixo. Para os
outros, querer escapar é perder a honra, a sua e a do grupo que represen­
tam36. Não dar ou não retribuir torna-se impossível. O dom encerra assim
uma violência que não é apenas aquela dos indivíduos, pois tem origem
além deles, nas relações sociais que implicam a luta de riquezas pelo po­
der e pela reputação. O dom contém esta violência no sentido duplo do
termo. Ele a retém em si e a mantém dentro de certos limites, permitindo,
porém, que se manifeste publicamente, politicamente37.

35Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 202: “Assim, não somente se pro­
gride, mas também se faz progredir a própria família na escala social.” O declínio
demográfico das sociedades índias da costa noroeste dos Estados Unidos criou
uma situação anormal caracterizada pelo fato de que cada vez mais títulos fica­
vam vagos, enquanto a população ficava cada vez menos numerosa e mais rica em
moeda e bens europeus.
36Ibid., p. 203: “Como se vê, a noção de honra que age violentamente na Polinésia,
que está sempre presente na Melanésia, causa aqui [na América do Norte] uma
verdadeira devastação [...]. O próprio mana polinésio simboliza não apenas a força
mágica de cada ser, mas também sua honra, e uma das melhores traduções desta
palavra é: autoridade, riqueza.”
37Ibid., p. 200: “O princípio do antagonismo e da rivalidade fundamenta tudo. O
status político dos indivíduos, nas confrarias e nos clãs, as posições de toda espé­
cie são obtidas pela ‘guerra de propriedade’, assim como pela guerra [de catego­
ria] ou pela sorte, pela herança, pela aliança e pelo casamento. Mas tudo é
concebido como se fosse uma ‘luta de riquezas’.” P. 201: “O potlatch é uma guer­
ra. Ele leva o título de ‘dança de guerra’ entre os tlingits.”

22 S
MAURICE GODELIER

Aqui estamos nós de volta a Mauss, de novo mergulhados no


“Essai sur le don”. Podemos, portanto, dar meia-volta para termos
uma visão de conjunto do caminho percorrido, o que eqüivale a to­
mar, de certa maneira, a medida dos méritos e dos limites de Mauss.
Ele foi o primeiro a ressaltar a importância do dom, das trocas de
dons no funcionamento das sociedades humanas, antigas ou moder­
nas, ocidentais ou não. Foi o primeiro a distinguir claramente dois
tipos de dons, os dons e contradons não-antagonistas e os dons anta­
gonistas, que batizou, sem ficar inteiramente satisfeito, com o termo
“potlatch”. Ele sugeriu — o que era igualmente importante, mas não
interessou àqueles que não acreditam que a sociedade humana evo­
lui ou que não fazem desta evolução um objeto digno do pensamento
científico — que os dons antagonistas eram uma forma transformada
dos dons não-antagonistas, uma forma em que a rivalidade, a luta de
riquezas predomina sobre o ato de partilha. A seus olhos, o potlatch
não poderia ter caracterizado as primeiras formas de organização da
sociedade humana, foi uma instituição que se desenvolveu mais tar­
de, a ponto de, às vezes, marcar toda “a economia e a moral” de uma
sociedade.
No entanto, sua análise tem limites. Mauss soube sem dúvida res­
saltar o fato de que na prática de dons e contradons acontecem coisas
estranhas para um ocidental habituado a viver num mundo onde há
muito tempo as coisas são separáveis e separadas das pessoas. Ele es­
pantou-se legitimamente porque o doador de uma coisa conserva la­
ços com a coisa que havia dado, ao mesmo tempo em que esta última
continua a circular em outras mãos, a ser objeto de outros dons. Mas
ele não encontrou a chave do enigma. Ou pelo menos acreditou tê-la
encontrado no conceito de hau, de espírito das coisas, e nas palavras
de um sábio maori, tais como ele as tinha interpretado.
Seguir esta via poderia tê-lo levado à solução, mas o fato é que ele
não conseguiu. E isto não somente, como muitas vezes censuraram-
no, por deixar-se fascinar por uma explicação “místico-religiosa” do
fenômeno, mas por não ter tentado reconstituir mais exatamente o

2 2 6
O ENIGMA 00 DOM

fundamento sociológico do modo de circulação de um certo tipo de


objeto, por ter reconhecido a importância das significações imaginárias
que revestem tais objetos para os atores sociais, sem remontar até suas
fontes seu papel na produção-legitimação de uma ordem social. Pois
toda ordem social tem necessidade, para (se) convencer de sua legiti­
midade, de, ao mesmo tempo, silenciar certos aspectos de seu funcio­
namento e projetar outros para o primeiro plano, carregando-os de
significações imaginárias e de peso simbólico. Em suma, de inventar
um dispositivo ideal, social e material que produza e mantenha as re­
presentações, em parte ilusórias, que cada sociedade faz de si mesma e
das outras.
Mas só se pode descobrir e desmontar esta engrenagem produtora
de ilusões úteis, eficazes, se esmiuçarmos os detalhes do funcionamento
das relações sociais. Ora, no “Essai sur le don” falta uma análise apro­
fundada, sociologicamente precisa do campo da prática social em que se
exercem as competições cerimoniais de dons, da identidade de seus ato­
res reais e de seus efeitos na reprodução da sociedade. Apesar do lugar
que ele reservou para dois exemplos particulares, o potlatch dos índios
da costa noroeste e o kula dos habitantes das ilhas Trobriand, Mauss nunca
penetrou nos mecanismos de seus sistemas de parentesco, seus ritos de
nascimento, iniciação ou morte. Ele nunca descreveu com precisão a
arquitetura das categorias, títulos e outras posições de poder. Ele perce­
beu que alguns dentre eles, os mais elevados, se mantinham além do
campo das lutas do potlatch, viu e compreendeu perfeitamente também
que essas posições fora de competição eram associadas à propriedade de
objetos sagrados que não eram dados, nem trocados, mas ele parou por
aí, descrevendo os fatos sem questioná-los.
Por um outro lado, seguindo a pista indicada pelo próprio Mauss e
analisando em detalhe uma sociedade na qual se pratica o dom, mas
não o potlatch, foram surgindo cada vez mais claras, por contraste, as
condições que permitiram o aparecimento, o desenvolvimento e o ple­
no amadurecimento das sociedades caracterizadas por uma economia
e uma moral de dons agonísticos, de dons-potlatch. E essas condições

2 2 7
MAURICE GODELIER

nos parecem muito jjrecisas. Seria preciso, como já dissemos, que, pelo
lado do parentesco, a troca direta de mulheres não existisse38 ou que
tivesse apenas uma importância menor, e que, em seu lugar, a aliança
entre linhagens e indivíduos proceda do dom de riquezas por mulhe­
res. Seria preciso que, pelo lado do político-religioso, um número signi­
ficativo de oposições e de funções de poder não fosse fixo e hereditário,
mas competitivo, e que o instrumento dessa competição fosse o dom
de riquezas.
Tomadas separadamente, cada uma dessas condições é necessá­
ria mas não é suficiente para lançar as sociedades nesse caminho. Reu­
nidas e encadeadas umas às outras, acumulando e multiplicando seus
efeitos, elas se transformam em condições estruturais, fundamento
social das sociedades de economia e de moral do dom-potlatch. Por­
tanto, foram necessárias uma ou várias evoluções sociais e mentais
para que se pudesse substituir a identidade (pessoa = pessoa) pela
equivalência (riquezas = pessoa) e para que se chegasse a buscar a
não-equivalência de dons, mais que sua equivalência. Voltaremos a
este ponto.
Para concluir, vamos retornar uma última vez ao problema da equi­
valência entre “realidades” de natureza diversa. Quando se troca ri­
queza por uma mulher, não se troca apenas coisas por pessoas, não se
faz das coisas apenas substitutos das pessoas, faz-se também o inverso,
faz-se das pessoas substitutos das coisas e, sobretudo, quebra-se o ca­
ráter estreito, rompe-se o limite imposto pela natureza das “coisas”
trocadas, uma mulher por uma mulher, um guerreiro morto por um
guerreiro morto. Institui-se uma relação de equivalência mais abstra­
ta, pois de um lado está uma pessoa concreta, uma mulher, que não se
pode dividir, mesmo podendo “utilizar” de maneiras diversas, e, de
outro, temos porcos, pérolas etc., que se podem somar, diminuir, mul­
tiplicar ou dividir. Mas essa relação abstrata entre um ser humano con­
creto e as coisas particulares que lhe eqüivalem possui ela também os

38Ou não existisse mais se antes existia.

2 2 8
O ENIGMA DO DOM

seus limites. Eles são ultrapassados quando todas as coisas ou quase,


todos os serviços ou quase se transformam em mercadorias que po­
dem ser equivalentes entre elas se medidas com o mesmo metro. Ora,
isso só acontece quando a moeda funciona como moeda universal,
quando tudo ou quase tudo aquilo que é útil para os homens é vendido
ou comprado, e o próprio homem, ou pelo menos partes (ou usos) de
seu corpo, tem um preço que se mede com a mesma moeda. Então a
sociedade se apresenta inteiramente como um gigantesco mercado. Já
chegamos lá, no Ocidente e em algumas partes da Ásia. É também para
isso que evoluem todas as outras sociedades do planeta, entre as quais,
hoje, nenhuma escapa à pressão direta ou indireta das condições do
desenvolvimento capitalista. No entanto, disso não tiraremos, como
Mauss, a conclusão de que “se pode e se deve voltar ao arcaico39”,
mesmo se pensamos, como ele, que é preciso “ultrapassar a fria razão
do comerciante, do banqueiro e do capitalista40”.

Q ual é o lugar das sociedades d e p otla tch na história?

Finalmente, deveria ser possível, ao que parece, avaliar o lugar das


sociedades de potlatch na história. Sem dúvida, a história de que fa­
lamos aqui não é aquela, específica, de cada uma das sociedades. E
aquela que se desenha, se reconstrói, quando começam a aparecer,
através das histórias específicas de sociedades particulares, as evolu­
ções paralelas que fazem sentido porque supõem irreversibilidades
não mais singulares e acidentais, mas estruturais e necessárias. Ora,
èssas irreversibilidades paralelas, ligadas a transformações estruturais
convergentes, verificam-se em sociedades que nunca tiveram conta­
to entre si e que muito freqüentemente não pertencem às mesmas
épocas.

39Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 263.


■“ Ibid., p. 270, ler também p. 272: “A nosso ver, não é no cálculo das necessidades
individuais que encontraremos o método da melhor economia.”

229
MAURICE GODELIER

Isso significa que há evolução na história. Não que existem leis


de evolução das sociedades humanas inscritas na natureza ou no en­
tendimento de Deus, leis que precederiam a história e que fariam
avançar as sociedades em tal ou qual direção. Também não é a histó­
ria que impulsiona a história. São os próprios homens que fazem
mudar as coisas, que mudam suas relações, entre si e com a natureza.
Mas uma coisa qualquer não pode se transformar em outra coisa
qualquer. Em uma época dada, em uma dada sociedade, o número de
transformações possíveis é sempre muito limitado. É impossível so­
ciológica, mental, material e portanto historicamente que uma socie­
dade da época neolítica, mais ou menos organizada à maneira dos
baruyas tal como viviam em 1951, data da chegada do jovem oficial
australiano James Sinclair4', pudesse se transformar diretam ente em
uma sociedade organizada segundo os princípios da economia de
mercado, governada por um Estado e dominando múltiplas formas
de energia, entre as quais a nuclear. O simples fato de evocar tal pos­
sibilidade basta para mostrar que ela é desprovida de sentido. E pre­
ciso portanto que, no espaço e no tempo, algumas etapas tenham sido
vencidas por certas sociedades para que tais transformações se verifi­
quem e para que as outras possam ter acesso aos mesmos resultados
sem ter que passar por essas mesmas etapas. É esta necessidade de
vencer certas etapas que chamamos de “condições de evolução” ou
“necessidade histórica”. Nenhuma sociedade escapa disso, pois quan­
do uma delas pode dispensar tal necessidade é porque outras já pas­
saram por ela.
Todas as sociedades que existem hoje provêm de transformações
das sociedades que as precederam e que, às vezes, continuam a existir
a seu lado. Todas as estruturas sociais atuais são transformações de

■"James Sinclair, Behind the Ranges: Patrolling in New Guinea, Victoria, Melbourne
University Press, 1966. No cap. 3, Sinclair narra a chegada de sua patrulha, a
primeira, entre os batiyas (os baruyas), os saltmakers, em uma manhã de julho de
1951 (p. 24-75).

2 3 0
O ENIGMA DO DOM

outras estruturas que caracterizam as mesmas sociedades e outras em


outros tempos. Transformação significa ao mesmo tempo conservação
e destruição de determinados elementos das antigas estruturas, mas
também surgimento de realidades novas que se combinam às antigas e
lhes dão um sentido novo, novas funções.
Nesta perspectiva, e depois de ter tomado todas essas precauções
teóricas, vamos reproduzir, mas sem corroborá-la, a concepção que
Mauss tinha do lugar das sociedades de potlatch na história. Segundo
ele, elas correspondem a

um regime que deve ter sido o de uma grande parte da humanidade


durante uma longuíssima fase de transição e que ainda subsiste em
outros lugares além dos povos [do Pacífico e da América] [...] o prin­
cípio da troca-dom deve ter regido as sociedades que ultrapassaram a
fase da ‘prestação total’, de clã a clã, de família a família, e que, no
entanto, ainda não chegaram ao contrato individual puro, ao merca­
do em que rola o dinheiro, à venda propriamente dita e, sobretudo, à
noção de preço estimado em moeda pesada e titulada42.

Entre as estruturas econômicas das sociedades de “prestações to­


tais” e

a economia individual e do puro interesse que nossas sociedades co­


nheceram, ao menos em parte, desde que foi descoberta pelas popula­
ções semíticas e gregas [...] encadeou-se toda uma imensa série de
instituições e de acontecimentos econômicos e esta série não é gover­
nada pelo racionalismo econômico, cuja teoria é feita com tanta boa
vontade43.

Assim, para Mauss, o que se pode esperar encontrar no funciona­


mento atual das sociedades ocidentais, como em sua história passada,

42Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 227.


43Ibid„ p. 271.

2 3 1
MAURICE GODELIER

são fragmentos desta economia do dom44 ou das formas de dom pre­


sentes em outras esferas que não a economia e que não são necessaria­
mente sobrevivências4S.
Não podemos senão partilhar a idéia de Mauss segundo a qual as lutas
de riquezas não tinham lugar, não tinham base nas primeiras etapas da
evolução das sociedades humanas, pois a acumulação “individual” de rique­
zas não era possível ou não era um princípio aceito da vida econômica e
social. Mas não o seguiremos mais longe, pois várias afirmações contidas
nessas citações exigem importantes restrições. Nós vamos desenvolver duas.
Antes de mais nada, embora de um século para cá os etnólogos
tenham descoberto um certo número de exemplos (como o m oka), as
trocas de tipo potlatch não parecem ter caracterizado “uma grande parte
da humanidade”. Seu número pérmanece limitado em relação aos exem­
plos, realmente muito numerosos, de dons e contradons recíprocos
praticados para cimentar solidariedades, e não para desenvolver a ri­
validade entre indivíduos e grupos. Não ficou demonstrado, aliás, que
todo potlatch culmine com a destruição pública, massiva, de riquezas,
como aquele observado por Boas e que tanto irá fascinar Georges
Bataille46, que vê em tais prodigalidades, como o sacrifício pelos astecas

44“Esta moral e esta economia funcionam ainda em nossas sociedades de modo


constante e, por assim dizer, subjacente” (ibid., p. 148). Mauss tinha por método
interrogar primeiro os sistemas de direito para descobrir a presença de formas de
economia e de moral do dom. Ele só descobriu vestígios nos antigos direitos gre­
go, romano e judaico, mas uma presença vigorosa no antigo direito germânico,
que se explicaria segundo ele, e em conformidade com as idéias aceitas no século
X IX , porque “a civilização germânica viveu por longo tempo sem mercados” (ibid.,
p. 251). O que, a seus olhos, quer dizer que os germânicos viviam em uma “eco­
nomia natural” (ibid., p. 150).
45“Nesta vida à parte que é nossa vida social”, diz Mauss (ibid., p. 259), invocan­
do confusamente as regras de hospitalidade, das atitudes e hábitos populares etc.
46Georges Bataille, La Part maudite, op. cit. Nele Bataille proclama seu desejo de
desvelar “o movimento fundamental que tende a devolver a riqueza à sua função,
ao dom, ao desperdício sem contrapartida” (Oeuvres complètes, Paris, Gallimard,
t. VII, p. 44). Para ele, a sociedade asteca e seus sacrifícios sangrentos são o exem­
plo mesmo de uma sociedade de “consumação” (sic) (ibid., p. 52-54).

2 3 2
0 ENIGMA DO DOM

de milhares de prisioneiros em Quetzalcoad, o deus do milho e da chuva,


tentativas repetidas de atingir a eternidade num instante. Ora, esse
potlatch, se realmente existiu sob esta forma paroxística, é definitiva­
mente uma exceção. E produto de um mecanismo social desregulado,
enlouquecido, conseqüência inesperada de circunstâncias excepcionais,
da intrusão no funcionamento das sociedades índias da costa noroeste
das riquezas e da dominação política, colonial dos europeus.
A esse respeito, notemos que em certas regiões da Nova Guiné, na
província das Eastern Highlands, assistimos, depois da chegada dos
europeus e do desenvolvimento das culturas comerciais e do trabalho
assalariado, à rápida transformação do sistema tradicional de trocas
cerimoniais competitivas (que integravam as numerosas tribos da re­
gião em uma vasta rede política e religiosa) em uma espécie de sistema
de festivais de dança de caráter comercial batizados de sing sing bisnis.
Vale a pena investigar a razão de uma transformação assim radical na
medida em que, apesar das aparências, ela não é de ordem econômica.
Tradicionalmente, essas trocas reuniam no terreno cerimonial da tribo
que convidava (que muda a cada vez) uma multidão considerável de
participantes pertencentes a todos os grupos da região. Nesta ocasião,
as hostilidades que poderiam opor alguns dentre eles, e mesmo as guer­
ras, eram interrompidas. Todos se punham de acordo para coordenar
a preparação das trocas, para aumentar a própria produção e partici­
par dos rituais. Pois no curso de tais festividades, diversamente, ao que
parece, dos sistemas do tipo m oka existentes mais a oeste, afirmava-se
o caráter sagrado dos encontros. As flautas sagradas, símbolo podero­
so da fertilidade e da dominação masculinas, soavam durante as ceri­
mônias e durante toda a preparação, e as iniciações dos meninos
evoluíam em conjunção com os acontecimentos. Oferendas eram con­
sagradas aos ancestrais e aos mortos para agradecer por*eles terem
cumulado os vivos de alimento abundante, de uma riqueza evidente,
visto o número de porcos abatidos e redistribuídos, de conchas dadas
aos visitantes ou trazidas por eles. Era também a ocasião dos ritos que
punham fim aos períodos de luto e da negociação dos casamentos. Em

2 3 3
MAURICE GODELIER

suma, esses acontecimentos cíclicos eram ao mesmo tempo fim e co­


meço, a ocasião oferecida a cada grupo para pôr em evidência o núme­
ro de seus guerreiros, sua potência, sua riqueza e vitalidade, tudo isso
se materializando finalmente em sua capacidade de dar ou de retribuir
mais do que os outros.
Era também nessas cerimônias que os líderes exibiam sua influên­
cia e seu poder aos olhos de todos os grupos, pois eram eles que con­
trolavam as distribuições dos bens, dos dons, acompanhando-as com
grandes discursos. Ora, tudo isso mudou bruscamente47. Desde os anos
60, os pig festivais desapareceram uns depois dos outros. O processo
teve início entre os kamanos depois que os missionários e os oficiais da
administração australiana forçaram os homens a expor publicamente
as flautas sagradas diante das mulheres e dos jovens não-iniciados48.
Pouco a pouco, as populações se converteram e os ritos cessaram.
Foi nesse contexto de dessacralização forçada que apareceu, no lu­
gar e posto das antigas trocas cerimoniais, um novo sistema misturando
a economia de dom àquela do lucro comercial (o sing sing bisrtis). Um
grupo local, sob a autoridade de um sponsor, convida outros grupos para
dançar em seu pátio de cerimônia. Cada dançarino paga para dançar. O
grupo que convida faz oferta de dons, mas também vende cerveja, peda­
ços de porco, mercadorias européias compradas para serem revendidas,
com lucro, nesse dia. Ao entrar no salão de dança, o líder do grupo, que
já tem tudo acertado para organizar o próximo sing sing bisnis, faz um
dom generoso ao sponsor da festa, dom que lhe será restituído quando
este último e seu grupo vierem participar do próximo festival.
Este exemplo prova que a intrusão maciça de mercadorias e de
moeda (européia ou outra) não destrói, sozinha, a economia de dons
ou leva o potlatch a seus limites ou faz com que desapareça. São

47Ver David Boyd, “The Commercialization of Ritual in the Eastern Highlands of


Papua New Guinea”, Man, vol. 20, n° 2, p. 325-340.
48Robert Berndt, Excess and Restraint: Social Control Among a New Guinea
Mountain People, Chicago University Press, 1962, p. 84.

234
O ENIGMA 00 DOM

necessários outros fatores, não-econômicos: transformações culturais


e ideológicas que afetam a sociedade em profundidade.
O exemplo do Japão mostra, por um lado, que, quando uma cul­
tura não é atingida em profundidade por intervenções diretas (podería­
mos mesmo dizer agressões) de sociedades e culturas estrangeiras, a
prática de dons pode coexistir com um desenvolvimento impetuoso
da economia comercial capitalista e da lógica do lucro.
Sabe-se que no Japão a prática das trocas de presentes é uma tradi­
ção milenar respeitada em todos os meios da sociedade, desempenhando
um papel considerável na vida de cada um. Os presentes são obrigató­
rios quando dos grandes acontecimentos da vida (nascimento, casamen­
to, construção de uma casa, falecimento etc.) e a cada ano no Ano-Novo,
no meio e no fim do ano. Mas, além desses presentes obrigatórios e
formais, em todos os momentos da vida cotidiana são oferecidos pre­
sentes informais, pequenos presentes de visita etc. Ora, o traço funda­
mental e original dessa troca generalizada de dons, de presentes, é que
cada presente chama um presente de retorno, que deve ter valor equi­
valente. Como escreve Jane Cobbi, “para os japoneses, não se trata de
rivalizar através de dons mais generosos ou mais numerosos [...] o es­
pírito de competição no dom não é valorizado [...] e engendra antes o
desdém e o descontentamento do que a admiração49”. Paradoxalmen­
te, é entre pessoas muito próximas que um “grande presente” pode ser
feito, pois esse desequilíbrio não é “percebido como ameaçador” de
sua relação de intimidade. Estamos, portanto, diante de uma prática
generalizada do dom que se situa no oposto de uma economia e de
uma moral do potlatch.

4,Jane Cobbi, “Don et contre-don. Une tradition à 1’epreuve de la modernité”, in


A. Berque, L e Japon et son double, Paris, Masson, 1987, p. 159-168; “L’obligation
du cadeau au Japon”, in Ch. Malamoud (ed.), Lien de vie, noeud mortel. Les
représentations de la dette en Chine, au Japon et dans le monde entier, Paris, EHESS,
198 8 , p. 1 1 3 -1 6 5 ; Pratiques et représentations sociales des Jap on ais, Paris,
UHarmattan, 1993, “Uéchange des cadeaux au Japon” (p. 103-116) e “Le marché
du cadeau” (p. 151-163).

235
MAURICE GODELIER

O desenvolvimento gigantesco da economia de mercado capitalis­


ta no Japão, sobretudo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, teve
dois efeitos de certa maneira opostos sobre esta tradição. Por um lado,
o mercado apropriou-se disso criando uma verdadeira indústria do
presente, que se desenvolve sem cessar e oferece sempre mais escolhas
aos indivíduos para que possam satisfazer a tradição. Mas ao mesmo
tempo a expansão da prática do presente entrou em conflito com os
novos comportamentos econômicos que apelam à poupança e ao inves­
timento produtivo. Assim, campanhas pela “simplificação” da prática
dos presentes e por uma atenuação das obrigações sociais tradicionais
desenvolveram-se nos anos 60. Este exemplo nos mostra que a econo­
mia de dons-equivalentes foi, num primeiro tempo, reforçada pela
expansão das relações comerciais capitalistas, assim como, aliás, já havia
acontecido com a economia de dons-potlatch.
Segunda objeção: não se pode reduzir a história da humanidade
ou sua evolução a uma “longa transição” entre o momento em que as
sociedades eram organizadas sobre a base da troca de dons não-anta-
gonistas e a época moderna, caracterizada pela troca comercial e pelo
contrato individual, princípios de organização que teriam aparecido
entre certos povos da Antiguidade, os semitas, os gregos e os romanos,
ou, em suma, ao redor do Mediterrâneo, e que, depois de vários sécu­
los, de desvios, de avatares, teriam finalmente desabrochado nas socie­
dades ocidentais no curso dos dois últimos séculos.
Sabe-se hoje que em todas as sociedades existem formas “indivi­
duais” de contrato, e que em todo lugar uma parte dos objetos ou
mesmo dos saberes necessários à reprodução social provém de outras
sociedades, por intermédio da troca ou de outras formas mais desen­
volvidas de relações comerciais. Elas não são ignoradas em parte alguma
e só difere a sua importância no funcionamento interno das socieda­
des em questão.
Além disso, é evidente que se a sociedade humana evoluiu, ela não
seguiu uma linha, um traçado único, mas diversas vias. A nossos olhos,
foi em duas dessas vias, a das sociedades de Big Men e a das sociedades

2 3 6
O ENIGMA DO DOM

em que apareceram aristocracias tribais mais ou menos hereditárias,


que se multiplicaram os atos de generosidade calculados, as lutas de
riquezas que lembram o potlatch. Mauss, a esse respeito, menciona ao
mesmo tempo os nobres germanos, os chefes celtas, os nobres das ilhas
Trobriand. Bem entendido, quem diz aristocracia diz prodigalidade e
demonstração de generosidade, mas generosidade ou prodigalidade não
significam necessariamente potlatch como ato que permite adquirir um
título, uma posição, e não simplesmente manifestá-los. Outras evolu­
ções históricas houve, aliás, que também não levaram ao desenvolvi­
mento de uma economia de mercado e limitaram o lugar disponível
para a prática do potlatch.
Mauss percebeu-o muito bem, ele que notou que “os elementos
fundamentais do potlatch são encontráveis na Polinésia, embora a insti­
tuição completa não o seja” e acrescentou, depois de aventar a hipóte­
se de que o potlatch existisse outrora na Polinésia, a seguinte observação,
que fazia alusão, por uma vez, à natureza das estruturas políticas das
sociedades de potlatch:

De fato há um a razão para que ela [a instituição com p leta do potlatch]


tenha desaparecido de uma parte desta área. É que os clãs estão defi­
nitivamente hierarquizados em quase todas as ilhas e mesmo concen­
trados em torno a uma monarquia. Falta, p ortan to, uma das principais
condições do potlatch, a instabilidade de uma hierarquia que a rivali­
dade dos chefes tem justam ente o objetivo de fixar p o r instantes50.

A afirmação de que na Polinésia os clãs estavam “definitivamente


hierarquizados” em quase todas as ilhas parece hoje um pouco leviana
e os casos em que eles estavam “concentrados em torno a uma monar­
quia” mostraram-se mais raros do que pensava Mauss. É verdade em
relação a Tonga, mas não a Samoa, por exemplo. Mas o que parece
exato na tese de Mauss é que, em toda a Polinésia, quando os indivíduos

50Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 171. Grifo nosso.

2 3 7
MAURICE GODELIER

e os clãs queriam ser reconhecidos como os melhores súditos de um


chefe ou os melhores fiéis de um deus (ou se eram chefes como os
melhores “vassalos” de outros chefes), dedicavam-se a dar, mais do que
os outros clãs, de seus bens, de suas colheitas, em oferenda aos chefes
e aos deuses. E mesmo em uma relação que presumisse igualdade de
categoria entre os parceiros, como em um matrimônio entre dois clãs,
a mesma obrigação de afirmar-se como o melhor levava (e leva ainda)
cada um deles a dar um pouco mais que o outro, um pouco mais de
bens femininos ou um pouco mais de bens masculinos segundo o lado
da aliança, cuidando no entanto para não romper a equivalência glo­
bal das trocas que a igualdade de status das duas partes impõe. Portan­
to, seria possível tentar deslocar-se na escala das categorias pela
importância dos dons feitos, mas isso não era suficiente para se adqui­
rir um novo título.
A guerra, pelo contrário, oferecia tal possibilidade. Quando um
chefe submetia a população de um outro distrito, ele se apropriava dos
títulos dos vencidos e os redistribuía entre aqueles que o haviam se­
cundado em sua empresa e ele próprio também remodelava sua genea­
logia para fazer como se seus ancestrais sempre tivessem tido direitos
sobre o novo território. A violência podia, portanto, mais que o dom
para modificar os postos em uma hierarquia, mas, na Polinésia, ela ex­
primia em qualquer caso uma dupla assimetria fundamental: entre os
deuses e os homens, de um lado, e, pelo lado dos homens, entre os che­
fes e as pessoas do povo. E esta dupla assimetria era incontornável,
assentada “na natureza das coisas51”.
Mas na Polinésia as pessoas do povo são quase sempre aparenta­
das com o chefe. Estes últimos são descendentes dos filhos e filhas mais
velhos de um casal de ancestrais fundadores, um irmão e uma irmã,
um homem e sua esposa, e mesmo um deus e uma mortal. As pessoas

slValerio Valeri, Kingship and Sacrifice: Ritual and Society in Ancient Hawaii,
Chicago, University of Chicago Press, 1985; Goldman, Irving, Ancient Polynesian
Society, Chicago, University of Chicago Press, 1970.

2 3 8
O ENIGMA DO DOM

do povo são, estas, descendentes dos caçulas. Mas essa relação de pa­
rentesco entre aristocratas e pessoas do povo não se verifica na estru­
tura dos grandes Estados e impérios que, desde a China antiga até os
impérios inca e asteca destruídos pela conquista espanhola, submete­
ram a um poder central milhões de indivíduos pertencentes a tribos,
etnias de línguas e culturas diferentes. A oferenda de primícias das
colheitas aos chefes e aos deuses transformou-se em tributo obrigató­
rio, recolhido e contabilizado aos cuidados de um aparelho burocráti-
co-militar. O trabalho voluntário dos membros de uma comunidade
local para servir aos interesses comuns transformou-se em trabalho
obrigatório para reproduzir o Estado e manter os grupos étnicos que o
controlavam e que tinham se transformado em espécies de castas ou
de classes-tribos, dominantes por deterem o monopólio das principais
funções religiosas, militares e burocráticas desses impérios52.
Em tais universos, o dom estava sempre presente e sua magni­
ficência sempre tinha conseqüências políticas, mas o dom enquanto
meio para obter um título, uma função em uma hierarquia político-
religiosa, o dom enquanto potlatch, tinha ainda menos espaço do que
nos “reinos polinésios”53.
Mas o que poderia explicar por que, entre os baruyas da Melanésia
(que não têm aristocracia nem rei) e nas sociedades polinésias (que os têm),
o desenvolvimento da prática do potlatch é impossível, embora todas es­
sas sociedades pratiquem o dom? É, a nosso ver, o fato de que nessas so­
ciedades, não importa quão diferentes sejam, a hierarquia político-religiosa
entre os grupos de parentesco e os grupos locais tende a se apresentar como
um quadro, uma arquitetura fixa, imutável, herdada mas também heredi­
tária. Os fundamentos das sociedades de podatch seriam, assim, a ausên­
cia de uma hierarquia política definitivamente estabelecida e a presença

52John Murra, “On Inca Political Structure”, in Ray Vem (ed.), Systems ofPolitical
Control and Bureaucracy in Human Societies, Seattle, University of Washington
Press, 1958, p. 30-41.
ÍJPatrick V. Kirch, The Evolution o f the Polynesian Chiefdom s, Cambridge,
Cambridge University Press, 1984.

2 3 9
MAURICE GODELIER

de relações de parentesco que implicam transferências de bens, de rique­


zas, para selar alianças. E nesse nível que estaria a explicação para seu fun­
cionamento, e não na crença na “alma das coisas”.
Mas essas duas condições não têm a mesma natureza e não agem no
mesmo nível, na medida em que as relações de parentesco não bastam
para fazer uma sociedade. Uma sociedade só existe se forma uma totali­
dade, e deve ser representada em algum lugar como tal, num nível em
que os interesses dos grupos de parentesco ou dos outros grupos parti­
culares que a compõem fiquem submetidos à reprodução em conjunto
desse todo. Esse nível é aquele das relações políticas, não importa quais
sejam sua forma e seu conteúdo. Mas tanto no nível do todo, quanto no
de suas partes (famílias, clãs e mesmo castas ou classes), dois princípios
inversos devem estar combinados: trocar e guardar, trocar para guardar,
guardar para transmitir. É preciso que em toda a sociedade, ao lado das
coisas que circulam, que se movimentam, haja pontos fixos, pontos de
ancoragem das relações sociais e das identidades coletivas e individuais;
são eles que permitem a troca e fixam seus limites.

O qu e é um o b jeto p recio so ?

As sociedades de dom e de potlatch têm, de fato, despendido muita


engenhosidade e refinamento na seleção e invenção de objetos que pare­
cem ter a capacidade de dar poder e de simbolizá-lo. Mas esses objetos
têm de, em qualquer caso, cumprir várias funções, a saber: a) substituir as
pessoas reais; b) testemunhar a presença neles próprios de poderes prove­
nientes de seres imaginários (divindades, espíritos da natureza, ancestrais)
considerados detentores de poderes de vida e de morte sobre as pessoas e
sobre as coisas; c) ser comparáveis entre eles de modo a oferecer, por suas
quantidades e/ou qualidades, os meios para que seus proprietários pos­
sam medir uns aos outros e possam se elevar uns acima dos outros.
Todos os objetos escolhidos para materializar a riqueza e o poder de­
vem apresentar, além da diversidade de suas formas e de suas matérias-
primas concretas, um certo número de características que lhes permitam

2 40
O ENIGMA DO DOM

preencher essas funções e servir de suporte para os mecanismos de fusão/


inversão das relações entre os homens e as coisas implicados nessas funções.
Antes de mais nada, esses objetos devem ser inúteis ou inutilizáveis
nas atividades cotidianas da subsistência e da existência. Alguns são,
efetivamente, armas ou utensílios, mas nunca são utilizados como tais:
os machados de pedra cerimoniais da Nova Guiné, por exemplo54. Isso
significa que a competição pelo poder e pela fama se desenvolve além
da esfera da subsistência. Não vamos esquecer que estamos lidando com
sociedades capazes de produzir regularmente excedentes consideráveis
de produtos da terra ou do mar. Notemos também que a terra, os cur­
sos d’água, as costas marinhas e outros locais de produção não são to­
mados individualmente, mas em com um (qualquer que seja a natureza
da comunidade, linhagem, clã, casta etc.), e não entram no jogo dos
dons e contradons ou das trocas comerciais. Não vamos, enfim, esque­
cer que estamos diante de sociedades em que, pela própria natureza
dos processos de trabalho e pela simplicidade relativa das formas de
divisão social das tarefas que nelas reinam, a maioria dos indivíduos e
dos grupos satisfazem uma grande parte de suas necessidades contan­
d o com eles m esm os, mobilizando suas próprias forças de trabalho e
seus próprios recursos. Caso contrário, torna-se um rubbish m an, um
homem sem valor, um lixo (rubbish), e não se tem chances de figurar
no jogo de dons e contradons de riquezas e de tentar obter poder55.
Segunda característica desses objetos: sua abstração. E o caso das
conchas utilizadas na Melanésia e no Pacífico ou das conchas de abalone,

5,,Cf. Mauss, a propósito dos pratos e das colheres entre os kwakiutls e os haidas:
“Os pratos e as colheres com as quais se come solenemente, decorados e esculpi­
dos, brasonados com o totem do clã ou da categoria, são coisas animadas. São
réplicas dos instrumentos inesgotáveis, criadores de alimento, que os espíritos de­
ram aos ancestrais [...]. Também os pratos kwakiutls e as colheres haidas são bens
essenciais de circulação bastante restrita e são cuidadosamente repartidos entre
os clãs e as famílias dos chefes” (ibid., p. 221), grifo nosso. Sobre os machados de
pedra na Nova Guiné, ver a obra de Pierre e Anne-Marie Pétrequin, Ecologie d ’un
outil. La hache de pierre en Irian Jaya , Paris, CNRS, 1993.
55Cf. Michel Panoff, “Une figure de 1’abjection en Nouvelle-Bretagne: le rubbish
man ”, LH om m e, n° 94, janeiro-fevereiro de 1985, p. 57-72.

2 4 1
MAURICE GODELIER

que talvez tenham sido ancestrais dos cobres entre os chinooks, os salishs
etc., da costa Noroeste56. Mas o mesmo acontece com as “moedas” de
dentes de porcos machos, não-castrados, que foram forçados a crescer
em espiral e que são utilizados em Malekula, nas ilhas Salomão, no
curso das competições cerimoniais para a obtenção de títulos e posi­
ções nas sociedades de iniciação57.
O caráter “abstrato” e a disjunção desses objetos em relação à vida
cotidiana parecem constituir as condições prévias para que eles possam
“incorporar” relações sociais e sistemas de pensamento para, em seguida,
re-presentá-los aos atores sociais sob uma forma material, abstrata e sim­
bólica. Abstração e disjunção do universo da subsistência e do cotidiano
facilitam a projeção e o encerramento, no objeto, dos nós imaginários e
dos símbolos que fazem parte do aspecto ideal do funcionamento das re­
lações sociais através das quais se tem acesso à riqueza e ao poder58.

' ‘ Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 2 19, nota 2.
57Arthur B. Deacon, Malekula: A Vanishirtg People in the New Hebrides, Londres,
Routledge, 1934, p. 196-197.
58Geza Roheim havia proposto, desde 1923, uma interpretação psicanalítica das moedas
da Melanésia em seu artigo, cujo título fora tomado emprestado de Laum, defensor
da tese da origem sagrada das moedas cunhadas: “Heiliges Geld in Melanesien”,
IntemationalesZeitschrift für Psychoanalyse, 9,1 9 2 3 , p. 384-401. Mais recentemen­
te, A. Epstein, notável conhecedor dos tolais da Nova Bretanha, tribo que acumula
enormes quantidades de moedas de conchas para distribuí-las no curso das cerimônias
funerárias, tentou uma análise psicanalítica do simbolismo dessas moedas, que ele
associa ao erotismo anal: “Tambu: The Shell Money of the Tolai”, in Fantasy and
Symbol, Robert Hook (ed.), Londres, Academic Press, 1979, p. 144-205. Ele encon­
tra suas referências em Freud, Abraham e Otto Fenichel, 1938, “The Drive to Amass
Wealth”, in C ollected Papers (1954), p. 89-108, Norton, Nova York. Os tolais ofere­
cem um caso excepcional na Oceania, na medida em que adotaram muito rapidamen­
te e desenvolveram a economia de mercado capitalista e estão entre os grupos mais
ricos da Nova Guiné. Ao mesmo tempo, continuaram a importar e a utilizar a moeda
de conchas em todos os seus rituais, funerários ou outros, pois a consideram mais
“pesada”, mais “moral” que a moeda nacional, a kina, baseada no dólar e que eles
não consideram suficientemente “moral”. Eles até lançaram o primeiro banco do
mundo onde são estocadas e trocadas moedas tradicionais de conchas. Cf. Frederick
Errington e Deborah Gewertz, Articulating Change in the Last Unknown, San Fran­
cisco, Western Press, 1991, cap. 2 (“Dueling Currencies in East New Britain: The
Construction of Shell Money as National Cultural Property”), p. 49-76.

2 4 2
O ENIGMA DO DOM

Em um estudo, a nosso ver exemplar, das grandes conchas que funci­


onam nas terras altas da Nova Guiné ao mesmo tempo como riquezas e
como símbolos do poder, Jeffrey Clareie59revelou pela primeira vez a com­
plexidade das significações imaginárias e simbólicas das quais tais objetos
estão carregados e que explicam seu emprego na produção de relações de
parentesco e de relações políticas.
Tais significações estão de alguma forma impressas materialmente nos
objetos e no suporte em cortiça sobre o qual repousa e é exposto. A concha
de cor natural amarela é polvilhada de pó ocre, sua borda inferior orlada
por uma camada de seiva branca, mas que escurece rapidamente, marcas
são gravadas na borda superior. Todas essas operações constituem um traba­
lho que transforma o objeto e que não somente lhe dá um sentido, mas o
embeleza. Esse sentido, o que é? A cor amarela é uma cor feminina associada
a uma substância amarelada que se encontraria na matriz das mulheres e
seria um componente essencial do feto no momento de sua concepção. O
vermelho é a çor da riqueza, mas também da virilidade, e unta-se de ocre
as pedras sagradas associadas à saúde e à fertilidade etc. O branco da seiva
é associado ao esperma, o negro é associado, como o vermelho, à virilidade.
As marcas gravadas perto da borda feminina do objeto são como os nós
do bambu, como a glande do pênis. Não iremos levar adiante a análise
deste exemplo. E suficiente constatar que, mais uma vez, o que se encontra
de certo modo oculto neste objeto andrógino e recoberto por atributos
masculinos é a “feminilidade”, essencialmente as capacidades reprodutoras
das mulheres apartadas de seus corpos e ligadas aos dos homens60.

5,Jeffrey Clarck, “Pearl-Shell Symbolism in Highlands Papua New Guinea, with


Particular References to the Wiru People of Southern Highlands Province”,
Oceania, n° 61, 1991, p. 309-339. Pode-se citar igualmente o estudo de Deborah
Battaglia, “Projecting Personhood in Melanesia. The Dialectics of Artefact
Symbolism on Sabarl Island”, Man, n° 18, 1983, p. 289-304.
60Marilyn Strathern notou, já faz bastante tempo, que o “valor atribuído à femini­
lidade não deve ser necessariamente considerado idêntico ao valor atribuído à
mulher”, in “Culture in a Netbag”, Man, n° 16, 1981, p. 676. Ver também, do
mesmo autor: “Subject or Object? Women and the Circulation of Valuables in
Highlands New Guinea”, in R. Hirschon (ed.), Women and Property, Women as
Property, Londres, Groom Helm, p. 158-175. E, é claro, sua grande obra: The
Gender o f the Gift, Berkeley, University of Califórnia Press, 1988.

2 4 3
MAURICE GODELIER

A terceira característica desses objetos é sua beleza, tal como é defini­


da no universo cultural e simbólico das sociedades que deles fazem uso.
Ora, a beleza pode ser o suporte de duas funções. Pode, por um lado, va­
lorizar, embelezar e glorificar aqueles que possuem o objeto. Portado ou
dado com ostentação, ele expõe a qualidade e o status da pessoa que o
porta ou que o dá. Mas a beleza de um objeto é também fonte de emoções
que criam uma espécie de intimidade entre ele e a pessoa que o possui e
contribuem para o sentimento de identificação que pode existir entre o
indivíduo e a coisa que ele expõe61 aos olhos de todos.
A beleza de uma concha e sua raridade não derivam apenas dos
acasos da natureza: para se tornar um objeto trocável, uma concha tem
de ser trabalhada — polida, furada, montada, decorada; um brasão de
cobre deve ser fundido, moldado, decorado. Os objetos de troca são,
portanto, desigualmente belos e desigualmente raros, e seu valor varia
em conseqüência disso. Este valor está certamente ligado à raridade,
mas esta raridade tanto pode ser função de um acaso da natureza, quanto
fruto de um trabalho ou efeito de ter sido de um indivíduo célebre.
Mas, qualquer que seja a sua fonte, o valor de um objeto precioso
se “representa” sempre em objetos de um valor “equivalente” contra
os quais se pode trocá-lo. Na maior parte das vezes, os objetos de valor
são classificados em várias categorias hierarquizadas e é raro que um
objeto de categoria superior possa ser trocado por vários outros de uma
categoria inferior. Cada categoria de bens constitui, segundo a expres­
são de Paul Bohannan62, uma “esfera de troca” distinta das outras, não
ocupando o mesmo lugar na reprodução da sociedade. Uma esfera, por

‘ 'Malinowski explica quanto tempo ele levou para compreender por que certos
“objetos inúteis e feios” eram, para as pessoas das Trobriand, “veículo de associa­
ções sentimentais importantes e fonte de emoções que inspiravam a vida e prepa­
ravam para a morte [...]” etc. Malinowski, Argonauts o f the Western Pacific, op.
cit., p. 89, 513-514. Ver também os comentários de Annette Weiner, Inalienable
Possessions: The Paradox o f Keeping-while-Giving, op. cit.
“ Paul Bohannan, “The Impact of Money on an African Subsistance Economy”,
Journal ofE con om ic History, vol. 19, n° 4, 1959, p. 491-503. E sobretudo id. e
Laura Bohannan, Tiv Economy, Evanston, Northwestern, 1968.

2 44
O ENIGMA DO DOM

exemplo, refere-se ao parentesco, uma outra às relações políticas. Além


disso, é preciso lembrar que a lógica dos dons visa a valorizar as cate­
gorias na sociedade. Ora, estas últimas marcam diferenças qualitativas
que nenhuma manipulação quantitativa pode apagar63.
Levando a extremos, os objetos mais preciosos são únicos e, tendo
em mente o fato de que seu valor aumenta com o número e a impor­
tância das pessoas que os possuíram por algum tempo, eles, a bem di­
zer, não precisam mais ser belos; basta-lhes serem velhos. Tornam-se
então “unos e indivisíveis”, como tendem a ser os objetos sagrados.
Para terminar sobre esse ponto, examinaremos dois exemplos de
“moedas” exóticas. Ainda uma vez, constataremos que, para que uma
moeda circule como meio de pagamento ou como riqueza, é preciso
que ela seja de certa forma autorizada a fazê-lo por seus laços com uma
realidade que, esta, não circula, é mantida fora da esfera das trocas e
se apresenta como fonte mesma de seu valor de troca.
O primeiro é o exemplo dos laus da ilha de Malaita, onde Pierre
Maranda, a quem devemos essas informações, trabalhou. Entre os laus,
cada clã possui um tesouro inalienável conservado pelo chefe do clã. Nes-
jse tesouro figuram um emaranhado de moedas de conchas e uma enfiada
de grandes dentes de golfinho igualmente utilizados nas trocas. O conjun­
to é envolvido em tecidos muito velhos de cortiça batida64. O conjunto é
chamado de m alefo aabu, moeda tabu. De fato, seu uso é proibido, não
importa o propósito, do contrário o clã definharia e se extinguiria.

63Cf. Christopher Gregory, G iftsand Commodities, Londres-Nova York, Academic


Press, 1982.
MA importância dos tecidos, das tranças que servem para envolver as estátuas de
deuses e os objetos sagrados é atestada em outros lugares: na Polinésia, por exem­
plo, entre os maoris (cf. A. Weiner), e em Tonga (cf. F. Marsaudon). A arqueolo­
gia e a etno-história revelam que era assim também no Império Inca e nas grandes
civilizações andinas que o haviam precedido. Annette Weiner e Jane Schneider,
Cloth and Human Experiettce, Washington, Smithsonian Institution, 1989; John
Murra, “Cloth and its Function in the Inca State”, American Anthropologist, 64(4),
1962, p. 7 1 0 -7 2 8 ; Françoise Marsaudon, “Nourriture et richesses. Les objets
cérémoniels comme signes d’identité à Tonga et à Wallis”, manuscrito, 1995

2 4 5
MAURICE GODELIER

Esta moeda é, portanto, associada à “fundação” do clã e contém


uma parte dos poderes, do m ana, que sustentam sua existência. Um
outro objeto, chamado “pacote do espírito”, também é associado à
fundação do clã e constitui uma outra fonte de seu m ana. É um pacote
de folhas de cordyline contendo uma relíquia do ancestral do clã ou
um objeto que teria sido ligado a ele. O “pacote do espírito” também
é conservado com o maior cuidado, seja na casa de recepção do chefe,
seja num abrigo sagrado construído para este fim, mas sempre no es­
paço reservado aos homens65.
O segundo é o exemplo das “moedas” de conchas da Nova Cale-
dônia, descritas há muito tempo por Maurice Leenhardt, que reúnem
em si todos os atributos dos objetos-riqueza que analisamos66. Elas são
substitutas das pessoas, entram nos dotes, servem para compensar a
morte dos guerreiros mortos em combate e para selar a paz. Servem
igualmente como moeda por ocasião das trocas mais profanas. Se são
divisíveis, retiram sua força de um objeto sagrado indivisível, uma es­
pécie de cesto ao qual são amarradas.
Essas moedas são compostas de braças de conchas que têm o
comprimento de um homem e que sáo divididas em partes designa­
das pelos mesmos termos que servem para descrever o corpo hu­
mano. Fala-se, portanto, da cabeça, do tronco, do pé de uma moeda.
Esses comprimentos de conchas são divisíveis em metades e em

“ Ver Pierre Maranda e Elli Kõngas Maranda, “Le crâne et 1’utérus. Deux théorèmes
nord-malaitais”, in Echanges et Communications, textos vários oferecidos a Lévi-
Strauss por ocasião de seu sexagésimo aniversário, op. cit., vol. II, p. 829-861.
Agradecemos a P. Maranda por essas informações ainda parcialmente inéditas e
pela sugestão que nos fez de comparar esses objetos sagrados com aqueles da re­
ligião católica: o tabernáculo contendo o cibório consagrado, as hóstias que serão
distribuídas e o altar onde está oculta, em princípio, uma relíquia.
“ Maurice Leenhardt, Notes d ‘ethnologie néo-calédonienne, Paris, Institut d’ethno-
logie, 1930, cap. 4, p. 47-55. É interessante recordar que o valor dos cobres entre
os tlingits variava segundo sua altura e era cifrado em número de escravos. Cf.
Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 2 23, com referência a Boas e a
Swanton.

2 4 6
O ENIGMA DO DOM

comprimentos menores, que são destacados e distribuídos, prontos


para substituir os comprimentos faltantes na primeira ocasião, re­
compondo-os por inteiro. Essas moedas representariam o corpo de
um ancestral.
Elas são conservadas em um cesto sagrado, uma obra de cestaria
na qual são depositadas depois de atadas a um gancho chamado de
“cabeça de ancestral”. Divisíveis e alienáveis, elas receberiam dessa
cabeça de ancestral um poder de vida, uma força que escoa para
elas através do laço que as liga ao gancho. O conjunto — cesto,
gancho, moedas de conchas — apresenta-se de certa forma como
uma síntese material de todas as nossas análises. Cestos e ganchos
são conservados como tesouros pelos chefes dos clãs. São sagrados,
inalienáveis. As moedas, estas circulam nas trocas de dons ou nas
trocas comerciais. São alienáveis e alienadas. Contudo, o cesto e seu
gancho não Circulam jamais e constituem a fonte permanente da
presença vital dos ancestrais, o ponto fixo que permite que todo o
resto circule67.

67Serge Tcherkézoff chamou nossa atenção para um costume de Samoa que re­
pousa no jogo de certas oposições que mencionamos aqui, a do divisível e do
indivisível, do profano e do sagrado. Em Samoa, quando um assassino se ofere­
ce para pagar o preço de seu assassinato, ele se apresenta acocorado, segurando
pedras nas mãos, daquelas que se esquenta para cozinhar o alimento nos fornos
de terra. Ele se apresenta como um porco oferecido para ser morto, cozido,
dividido e comido. Mas está envolvido em uma esteira fina que contém alma,
mana, que representa a luz divina que, envolvendo as coisas, lhes dá vida. A
esteira é indivisível. O porco, quando está cozido, é dividido e comido. Cada
parte de seu corpo tem um nome e é atribuído a esta ou àquela pessoa segundo
sua posição. O porco faz parte da categoria dos oloa, a esteira daquela dos tonga.
Cf. S. Tcherkézoff, “La question du ‘genre’ à Samoa: de 1’illusion dualiste à la
hiérarchie des níveaux”, Anthropologie et Sociétés, vol. 16, n. 2, 1992, p. 91-
117, particularmente p. 101. Ver também Daniel De Coppet, “La monnaie,
présence des morts et mesure du temps”, in UHomme, X (l), 1979, p. 2-39. Cécile
Barraud, “Des relations et des morts. Analyse de quatre sociétés vues sous 1’angle
des échanges”, in J.-C. Galey (ed.), Différences, valeurs et hiérarchie. Textes offerts
à Louis Dumont, Paris, CNRS, 1984, p. 421-520.

2 4 7
MAURICE GODELIER

O cesto e o gancho assumem, portanto, a função de objeto sagrado,


de fonte de trocas excluída, ela mesma, da troca. Seja a troca de dons,
seja ela mercantil, são as mesmas braças de conchas que funcionam no
primeiro caso como riquezas a dar e no segundo como moeda, como
meio de pagamento para serviços ou mercadorias. Logo, o mesmo tipo
de objeto assume duas funções distintas, pois entra em dois campos
distintos de relações sociais. Porque, e este é um ponto fundamental,
em todas as sociedades as trocas mercantis e as trocas de dons existem
e coexistem como dois modos de troca e dois domínios da prática so­
cial que são mantidos consciente e voluntariamente distintos e disjuntos,
ainda se o mesmo tipo de objeto circula em um e outro, de um para
outro68.
Há muito tempo Malinowski mostrou que nas Trobriand — ao lado
do kula, das trocas competitivas dos m wali e dos soulava, aqueles bra­
celetes e colares que circulam em sentido contrário uns aos outros —
existem trocas comerciais, as gim -m wali69, que não se praticam com
os mesmos parceiros, são objeto de ásperos regateios e utilizam con­
chas como moeda e também trocas comerciais sem moeda70, as wasi,
no curso das quais tribos agrícolas do interior e tribos marítimas da
costa trocam seus produtos respectivos. E nós vimos que os baruyas

68James Carrier, “The Gift in Theory and Practice in Melanesia: A Note on the
Centrality of Gift Exchange”, Ethnology, 31(2), 1992, p. 185-193. Hoje, na Nova
Caledônia, as “moedas” de conchas pretas e brancas valem entre 1.500 e 1.800
francos Pacifico. Em Samoa, as esteiras mais finas valem milhares de dólares e
seu valor só faz crescer com a idade. Em um grande número de sociedades do
Pacífico, as pessoas não tiveram nenhuma dificuldade para entender o que se
podia fazer com a moeda européia, à parte o fato de alienar a terra de seus an­
cestrais, de vendê-la por dinheiro. Para conseguir o dinheiro dos brancos, pre­
cisavam vender (a preços muito baixos) sua força de trabalho — o que antes não
faziam entre eles — ou vender aos europeus os produtos que estes desejavam
comprar (coprah) e que muitas vezes eles mesmos haviam introduzido, como o
café ou o chá.
<9Bronislaw Malinowski, op. cit., p. 211.
70lbid., p. 187-188.

248
0 ENIGMA 00 DOM

produzem quantidades de sal que utilizam como moeda em suas trocas


com as tribos vizinhas, mas que jamais circula como tal ou como mer­
cadoria no interior de sua própria tribo.
Mas nossas análises já permitiriam dizer alguma coisa sobre a ori­
gem das moedas, sobre a origem da moeda? Acreditamos que sim. As
moedas são objetos preciosos que resvalaram para as trocas comer­
ciais na medida em que estas se estendiam, se ampliavam, não po­
dendo mais ser contidas nos quadros demasiado estreitos das formas,
mesmo complexas, de troca. As moedas são objetos preciosos (e por
isto em contato com os objetos sagrados) que deixaram de ser aliená­
veis e ao mesmo tempo inalienáveis para se tornarem definitivamen­
te alienáveis, como as mercadorias que elas já serviam para comprar,
fazer circular ou estocar. As moedas são objetos preciosos que já ha­
viam feito uma longa carreira em outros tipos de relações que não as
comerciais e que, pipuco a pouco, se desligaram dessas relações não-
comerciais para fazer circular, em relações interpessoais entre indi­
víduos ou grupos, objetos que tinham, eles mesmos, se tornado
destacáveis das pessoas, tinham se transformado em mercadorias. Ora,
quando a fórmula da transferência de mercadorias não é a troca, mas
aquela em que mercadorias são compradas para serem revendidas —
quando, portanto, elas se apresentam nas mãos de verdadeiros co­
merciantes — , então elas têm necessariamente de se transformar,
quando são compradas e quando são vendidas, em uma certa quanti­
dade de um objeto de valor, em relação ao qual cada uma delas mede
seu valor de troca relativo. É este objeto símbolo e intermediário
obrigatório das trocas comerciais desenvolvidas que nós chamamos
“moeda”.
O fato de que em muitas sociedades, em muitas culturas, o ouro
e a prata tenham servido como moeda não pode nos surpreender. São
metais que, há séculos, serviam para adornar o corpo dos deuses e
dos homens (e mulheres) de poder e que eram inúteis na vida cotidia­
na. Não se podia transformá-los em utensílios. O ouro, pensavam os

2 4 9
MAURICE GODELIER

antigos egípcios, é “a carne dos deuses”71, e o faraó era chamado


“Hórus de ouro”, pois sua divindade só poderia exprimir-se através
do brilho imortal do metal precioso que brilhava como o Sol, pai de
todos os deuses. Em outras partes do mundo, foi o nácar das belas
conchas que capturou o imaginário de sociedades que viam em sua
brancura irisada a presença da vida, o traço do sêmen dos deuses e de
homens de sociedades que, na maioria, não haviam descoberto como
fundir metais.
Para que um objeto precioso circule como moeda, é preciso que seu
valor “imaginário” seja partilhado pelos membros das sociedades que
fazem comércio entre elas. Uma moeda não pode existir, ter “curso”,
sem ter “força de lei”. E a lei não é do âmbito do indivíduo. Uma moeda
tem de ter em si a presença dos deuses, ser marcada com seus símbolos
ou com o selo do Estado ou com a efígie de um rei. Hoje mesmo, o dólar,

7,Bernhard Laum, em sua grande obra Heiliges Geld — eine historische Unter-
suchung über den Saktalen Ursprung des Geldes, Tübingen, Mohr, 1924, cita tra­
balhos de Jeremias sobre o Oriente antigo (1913) que mostravam como os metais
simbolizavam os deuses na Babilônia: o ouro para o Sol, a prata para a Lua, o
cobre para Vênus etc. As teses de Laum não deixaram de suscitar reservas e corre-
ções, pois uma moeda cunhada com o selo de um Estado não se explica apenas
pelas referências a crenças religiosas tidas como sua principal origem. Foi neces­
sário o desenvolvimento da cidade-Estado, de relações econômicas e sobretudo
políticas novas que mudaram o lugar da religião na sociedade, recentrando-a em
torno do político, da Lei, para que aparecessem no Ocidente as primeiras moedas
cunhadas com o selo de um Estado. Cf. Eric Will, “De 1’aspect éthique des origi­
nes grecques de la monnaie”, Revue historique, out.-dez. de 1954, p. 209-231:
“Se Laum pecou por excesso ao voltar as costas às exigências de uma vida econô­
mica mesmo que rudimentar, é certo que o racionalismo dos economistas moder­
nos não saberia dar conta das características mais originais da civilização grega”,
op. cit., p. 214. Ver Alban Bensa, “Présentation de Bernhard Laum”, Genèses, n°
8, 1992, p. 60-64. Emile Benveniste, em L e Vocabulaire des institutions ittdo-
européennes, Paris, Ed. de Minuit, 1968, vol. 1, p. 132-133, mostrou que o verbo
“vender”, em inglês to sell, vem do gótico saljan, que significava “oferecer em
sacrifício a uma divindade”, e que a palavra “comprar”, to buy, vem do gótico
bugjan, que significava “comprar alguém para salvá-lo de uma condição servil”. A
moeda era, portanto, na Europa como na Melanésia, o equivalente a uma vida.

250
O ENIGMA DO DOM

a nota verde que é a única moeda conhecida e aceita em qualquer lugar


do mundo, traz impressa a referência a Deus, o deus da Bíblia.
Ora, Mauss viu tudo isso perfeitamente, como prova a soberba “Nota
de princípio sobre o emprego da noção de moeda” que cobre duas pági­
nas do “Essai sur le don” e esboça uma história da moeda72. Mas, a nos­
so ver, sempre faltou alguma coisa em sua análise, assim como naquela
de vários outros entre os que o sucederam e que enfrentaram os mesmos
problemas. Foi não ter reconhecido que, para que haja movimento, tro­
cas, é preciso que existam coisas subtraídas à troca, pontos fixos a partir
dos quais o resto — os homens, os bens, os serviços — possa circular73.

D a m etam orfo se d e um o b jeto d e com ércio em o b je to d e d o m ou


em o b jeto sagrado

Devemos a Michel Panoff uma bela análise desse processo, que ele
observou entre os maenges da Nova Bretanha. Lá, circulavam ou eram

^Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 178-179, respondendo a Malinowski
e a Simiand, que o haviam criticado por um uso “laxista” da noção de moeda, es­
creveu: “A esse respeito, só há valor econômico quando há moeda e só há moeda
quando as coisas preciosas, riquezas condensadas em si mesmas e sinais de riqueza,
foram realmente monetarizadas, isto é, tituladas, impessoalizadas, destacadas de
qualquer ligação com qualquer pessoa moral, coletiva ou individual diversa da au­
toridade do Estado que as cunha. Mas a questão assim colocada não é a do limite
arbitrário que se deve erguer para o emprego da palavra. Na minha opinião, apenas
um segundo tipo de moeda se define assim: o nosso” (p. 178). Ver id., “Origine de
la notion de monnaie”, Anthropologie, Institut français d’anthropologie, t. III, n° 1,
1914, p. 14-20. Nesta mesma perspectiva, Jean-Michel Servet, Numismata. Etat et
origines de la monnaie, Lyon, Presses universitaires, 1984.
73Nosso livro já estava terminado quando foi publicado o de Philippe Rospabé, La
Dette de vie. Aux origines de la monnaie, Paris, La Découverte-MAUSS, 1995, livro
de um sociólogo muito bem documentado, particularmente sobre a etnologia melanésia
e sobre os debates entre antropólogos. As conclusões desse trabalho concordam com
as nossas, mas lhe falta a análise dos objetos que não se podem dar, das coisas sagra­
das que são, todavia, a fonte de onde tiram seu sentido os objetos preciosos que cir­
culam em pagamento da vida ou da morte (bridewealtb , compensações etc.).

2 5 1
MAURICE GODELIER

entesourados anéis (pagé) talhados na concha da vieira e enfiadas de


contas (tali) recortadas de conchas. Os maenges, tribo da costa sul,
compravam-nos contra cães ou um certo número de cocos às tribos
das montanhas do interior da ilha que, elas mesmas, os tinham com­
prado por sal e tubérculos dos nakanais, uma etnia da costa norte. Os
maenges ignoravam a origem dessas conchas, assim como a existência
dos nakanais, e não podiam saber que eram obtidas em expedições
marítimas que compravam os pagé nas ilhas de Nova Hanôver e os tali
na ilha da Nova Irlanda, isto é, a centenas de quilômetros da Nova
Bretanha74. Foi apenas por volta de 1914, quando homens foram re­
crutados entre os maenges e outras tribos do sul para trabalhar nas
grandes plantações alemãs do nordeste da ilha, que os maenges desco­
briram a verdadeira proveniência desses objetos.
Até então, eles acreditavam que eram obra de seres sobrenaturais
que os guardavam em um lugar misterioso antes de distribuí-los entre
os homens. Sabiam que não havia sido entre seus próprios ancestrais
que tais seres sobrenaturais os tinham distribuído, mas em outras tri­
bos às quais seus ancestrais os compraram. Pierre Maranda assinalou
um caso ainda mais intrincado. Na ilha de Malaita, as moedas de con­
chas são fabricadas principalmente pelos langa langas, que de certa
maneira asseguram sua “cunhagem”. Ora, o que dá mais valor a essas
moedas são certos discos púrpura, cujo número por meada é calculado
cuidadosamente, e que provêm dos lábios de uma concha (rom u) que
os langa langas vêm pescar uma vez por ano nos territórios lagunares
de um clã da tribo dos laus, por ocasião das grandes expedições que
reúnem várias pirogas. Os mergulhadores permanecem alguns dias no
local. Os chefes autorizam esta pesca em troca da metade das moedas
em cuja composição entrarem os discos da concha romu. Assim, nos
locais de fabricação das moedas o espírito comercial está bem presente
e os laus sabem tirar “proveito” de sua “renda de situação”, pois conce­

74Michel Panoff, “Objets précieux e moyens de paiement chez les Maenge de


Nouvelle-Bretagne”, UHomme, X X (2), abril-junho de 1980, p. 6-37.

2 5 2
O ENIGMA DO DOM

dem aos langa langas o uso de sua laguna contra 50% da produção.
Mas não vamos esquecer que são esses mesmos laus que conservam
em seu tesouro sagrado moedas que não podem, em circunstância al­
guma, alienar...
Várias conclusões teóricas podem ser tiradas dessa série de fatos
convergentes. Malinowski, Armstrong, Mauss e muitos outros espan­
taram-se com a complexidade das classificações estabelecidas por es­
sas sociedades entre os diferentes tipos de trocas e os diferentes tipos
de objetos que nelas circulam75. Parece-nos que a fonte desta comple­
xidade e desta complicação deve ser buscada nas razões que obrigam
tais sociedades a distinguir conscientemente e a manter voluntariamente
separadas a esfera das trocas comerciais e a dos dons, conservando-as,
todavia, associadas e separadas do domínio do sagrado. Essas razões se
situam, confoífne demonstramos, no campo das relações de parentes­
co e das relações políticas. As coisas são tão complicadas que muitas
vezes o mesmo tipo de objeto pode funcionar sucessivamente como
mercadoria (de valor), como objeto de dom e contradom e como te­
souro. Donde, a nossos olhos, a grande importância dos fatos maenges,
reportados e analisados por Michel Panoff, pois trazem diretamente à
baila processos sociais e mentais fundamentais.
Esses fatos mostram em que contextos e segundo quais mecanismos
sociais e mentais os objetos sem uso na vida cotidiana, inúteis quando se
trata apenas de sobreviver, incorporados à sociedade sem cerimônias,
mas como mercadorias de valor, revestem-se pouco a pouco de atributos

75É impossível não se espantar que Mauss, que conhecia esses fatos, tenha escrito,
a propósito do vocabulário das trocas nas ilhas Trobriand, por ele qualificado como
“linguagem jurídica um pouco pueril”: “Não é possível imaginar até que ponto
esse vocabulário é complicada por uma estranha inaptidão para dividir e definir e
por estranhos refinamentos de nomenclaturas” (art. cit., p. 191). Ele fala mesmo
da incapacidade dos sistemas de direito “do mundo das ilhas” de “abstrair e divi­
dir seus conceitos econômicos e jurídicos” e os compara ao antigo direito
germânico, supostamente marcado pela mesma incapacidade (p. 193). Curiosa­
mente, como se corrigisse um juízo de forte colorido eurocentrista, ele acrescen­
ta: “eles não precisavam, aliás, [de tal capacidade]” (p. 191 e 193).

2 5 3
MAURICE GODELIER

das pessoas humanas ou de pessoas mais poderosas que os humanos —


divindades, gênios, ancestrais míticos — depois que atingem os campos
da vida social onde seu uso é necessário, onde são esperados. À imagem
das pessoas, humanas ou sobrenaturais, eles adquirem um nome, uma
identidade, uma história, poderes. A grande maioria desses objetos de
comércio, marcados de início por uma origem misteriosa e possuidores
de um valor de troca, vai circular como substituto de pessoas vivas (prê­
mio da noiva) ou mortas (prêmio de sangue), servir de instrumento para
a reprodução das relações sociais, de parentesco e de poder que os clãs
que compõem a sociedade maenge mantêm entre eles, clãs esses que não
poderiam se reproduzir sem suas trocas.
Mas as trocas não são a única condição para a perpetuação desses
clãs. Há uma outra, tão indispensável quanto ela, embora menos visível,
pois não tem o caráter público, quiçá ostentatório, das trocas de bens,
mantendo-se retraída. São as relações que cada clã deve manter consigo
m esm o, são os gestos, as cerimônias, os esforços com os quais cada um
produz sua identidade, assegura sua continuidade, mantém a conexão
permanente com suas origens. Ora, quando chega até lá, ao campo não
apenas das trocas dos homens vivos entre eles, mas dos homens que vi­
vem com seus mortos e com seus deuses, é que o objeto de comércio se
sacraliza. Já distinto porque não serve para nada na vida cotidiana e dis-
tinguido porque lhe são emprestadas origens sobrenaturais, o objeto de
comércio deixa então de circular e se fixa em um lugar essencial da so­
ciedade, naquele ponto ao qual cada clã se obriga a voltar periodicamente,
pois vem encontrar a si mesmo, confirmar seu ser, sua identidade, sua
substância, preservada do tempo e conservada no tempo, ou seja, quan­
do ele se encontra diante de suas origens.
Para resumir, é quando o objeto de comércio penetra nesse lugar e
é utilizado para reativar essa relação, imaginária e simbólica, com a
origem, que ele se sacraliza e adquire o valor ainda maior por ter en­
trado na parte religiosa do poder. Pois o sagrado — contrariamente às
idéias de Durkheim, que separa o religioso do político de maneira de­
masiado radical — sempre teve a ver e o que fazer com o poder, na

2 5 4
O ENIGMA DO DOM

medida em que o sagrado é um certo tipo de relação com as origens e as


origens dos indivíduos e dos grupos pesam na definição dos lugares que
eles ocupam no seio de uma ordem, social e cósmica. E através da re­
ferência às origens de cada um e de cada grupo que o estado de fato
das relações presentes entre os indivíduos e os grupos que formam uma
sociedade é confrontado com a ordem que deveria reinar no universo
e na sociedade. Esse estado de fato é então considerado legítimo ou
ilegítimo em relação ao direito e, logo, aceitável ou inaceitável. Por­
tanto, não são os objetos que sacralizam total ou parcialmente as rela­
ções dos homens entre eles e com o universo que os cerca, é o inverso.
No exemplo dos maenges, vemos claramente homens projetando
sobre as coisas e incorporando na matéria e na forma desses objetos
importados o nódulo imaginário e os símbolos das relações reais que
mantêm entre è^les e com o mundo que os cerca. Todo esse processo social
é ao mesmo tempo um processo mental que mobiliza as duas partes do
pensamento e, além dele, as duas partes do psiquismo humano, a parte
consciente e a parte inconsciente. Ora, os indivíduos não estão consci­
entes desses mecanismos de projeção e de coisificação das realidades que
pertencem a seu próprio ser social. Eles se encontram diante de coisas
que têm um nome, uma alma, força, poderes, coisas que saíram deles,
mas que eles consideram, tratam, como seres diferentes deles mesmos,
vindos de outra parte, estranhos, estrangeiros. Ou, para ser mais exato,
eles se encontram diante de coisas-pessoas ao mesmo tempo estrangei­
ras e familiares. Familiares porque de uma certa maneira os homens se
reencontram nos objetos de troca e nos objetos sagrados, mas estrangei­
ras porque se encontram sem que possam se reconhecer.
Os homens se desdobram, mas não se reconhecem em seus duplos
que, uma vez desligados dos homens, erguem-se diante deles como
pessoas familiares e ao mesmo tempo estrangeiras. De fato, não são os
duplos dos homens que se erguem diante deles como estrangeiros, são
os próprios homens que, ao se desdobrarem, tornam-se em parte es­
trangeiros para si mesmos, submissos, alienados a esses seres diversos
que são, no entanto, uma parte deles mesmos.

2 5 5
CAPÍTULO III O sagrado
O qu e é o sagrado?

O sagrado é um certo tipo de relação com as origens em que, no lugar


dos homens reais, instalam-se duplos imaginários deles mesmos. Em
outra palavras, o sagrado é um certo tipo de relação dos hom ens com a
origem das coisas tal que, nessa relação, os homens reais desaparecem
e em seu lugar aparecem seus duplos, os homens imaginários. O sagra­
do só pode aparecer quando alguma coisa do homem desaparece. E o
homem que desaparece é o homem co-autor, com a natureza, dele
mesmo, o homem autor de sua maneira de existir, de seu ser social.
Pois os seres humanos são tais que não vivem apenas em sociedade como
os outros animais sociais, mas produzem sociedade para viver. Desdo­
brando-se em homens imaginários mais poderosos que os homens reais,
mas que não existem, e em homens reais que não parecem capazes de
fazer aquilo que seus ancestrais e até eles mesmos já puderam fazer
(domesticar as plantas, os animais, fabricar instrumentos etc.), algo
acontece e faz com que os homens reais apareçam não mais como ato­
res e como autores, em parte, de si mesmos, mas como atuados. O
desdobramento do homem se faz acompanhar de uma alteração, de
uma ocultação do real e de uma inversão das relações de causas em
efeitos.
Mas quando o homem real desaparece das origens, quando se des­
dobra, através do pensamento, em seres sobre-humanos mais podero­
sos que o homem e em homens imaginários menos capazes que os
homens reais, quando a realidade humana sofre uma clivagem e os

2 5 9
MAURICE GODELIER

homens reais tornam-se em parte estrangeiros de si mesmos, é porque


um mecanismo que não deriva apenas do pensamento começou a fun­
cionar. Bem entendido, a fabricação desses seres imaginários, a produ­
ção das narrativas que relatam suas aventuras, a elaboração dos ritos
que os celebram e que os fazem viver de novo entre os homens por um
tempo — simbolicamente a nosso ver, realmente para os baruyas — ,
tudo isso implica um trabalho do pensamento, um trabalho consciente
que ao m esm o tem po aciona as estruturas inconscientes do espírito.
Mas o essencial, a nossos olhos, não é isto. Também na produção das
idealidades matemáticas, ou das obras de arte, o pensamento consciente
intervém e ao mesmo tempo aciona estruturas inconscientes do espíri­
to. O essencial está no fato de que os mitos são uma explicação da
origem das coisas que legitima a ordem do universo e da sociedade
substituindo os homens reais que domesticaram as plantas e os animais,
inventaram os utensílios e as armas etc. por homens imaginários que
não o fizeram, mas receberam tais benefícios das mãos dos deuses ou
dos heróis fundadores.
Tudo se passa, portanto, como se a sociedade humana não pudesse
existir sem fazer desaparecer da consciência a presença ativa do ho­
mem na origem de si mesmo. Tudo se passa como se a sociedade não
pudesse subsistir sem recalcar no inconsciente coletivo e individual, além
da consciência, a ação do hom em na origem dele m esm o. Tudo se passa
como se a sobrevivência das sociedades, pelo menos sua sobrevivência
enquanto sociedades legítimas, realidades que todos os membros d e­
vem preservar e re-produzir, estivesse am eaçada pelo fato de se reco­
nhecer, de tomar como ponto de partida para a reflexão sobre a
sociedade o fato essencial de que, em parte, os homens (e não os deu­
ses ou os espíritos da natureza ou ancestrais míticos) são autores de si
mesmos.
Se isto tem um sentido, a questão do insconsciente pode se colocar
em outros termos. Não seria o espírito humano que, pelo jogo de suas
estruturas inconscientes, universais e a-históricas, estaria na origem deste
desaparecimento do homem real e de sua substituição por seres imagi­

2 6 0
O ENIGMA DO DOM

nários que comunicam plenamente e em pleno direito com os espíritos


das coisas. Seria a sociedade, como totalidade que transcende os indi­
víduos e lhes fornece as condições materiais e culturais de sua existên­
cia, a sua origem primeira, pois esta supressão dos homens reais e sua
substituição por seres imaginários, o recalque para além da consciên­
cia do papel ativo dos homens nas origens da sociedade, o esquecimento
de sua presença nas origens seriam necessários para produzir e repro­
duzir a sociedade.
Um tal mecanismo, se existe, para ser eficaz, tem de ser ignorado
pelos indivíduos que o vivem. Ele deve, co m o o objeto que recalca, ser
ele tam bém recalcado. É aí que o inconsciente — que extravasa, a nos­
so ver, das muitas estruturas inconscientes do pensam ento — intervém.
Ou, pelo menos, para não reificar o inconsciente, substantivá-lo, é aí
que os mecanismos físicos, que recalcam e conservam para além da
consciência as realidades que a consciência não quer (ou não deve)
conhecer, começam a funcionar. O inconsciente intervém, mas como
m eio, não como origem; como instrumento, não como fundamento.
Não basta afirmar, como Durkheim, que a sociedade é a fonte do sa­
grado. É preciso também mostrar que o sagrado rouba à consciência
coletiva e individual algo do conteúdo das relações sociais, algo de es­
sencial à sociedade, e que, fazendo isso, o sagrado traveste o social,
torna-o op aco a si mesmo. E é preciso ir mais longe ainda e mostrar
que existe na sociedade algo que faz parte do ser social dos membros
que a compõem e que precisa de opacidade para se produzir e se re­
produzir. Seria, portanto, fundamentalmente por razões sociais que o
social rouba de si mesmo, se opacifica, se sacraliza. Os fantasmas da
origem não estão decididamente na origem dos fantasmas.
Entre os baruyas, as fontes de opacidade são claras. Os rituais em
que os kw aim atnié estão presentes à luz do dia são rituais de iniciação
masculina, rituais dos quais são excluídas as mulheres, a metade da
sociedade, e que consagram e legitimam a dominação geral dos ho-
niens sobre as mulheres, sempre legitimando ao mesmo tempo o fato
de que um certo número de clãs, de grupos de parentesco que fazem

2 6 1
MAURICE GODELIER

parte da tribo dos baruyas ficam excluídos da responsabilidade pelos


rituais que celebram seja a unidade dos baruyas diante de seus inimi­
gos exteriores, seja a superioridade e a solidariedade dos homens
baruyas em relação às mulheres.
As fontes da opacidade entre os baruyas têm, portanto, a ver com
a existência de duas relações de exclusão que pertencem às bases mes­
mas de sua sociedade, que são os princípios fundamentais de uma or­
ganização que necessita, para ser reproduzida com um mínimo de
conflitos, do consentimento de todos e em primeiro lugar daqueles que
sofrem as conseqüências negativas dessas exclusões. Pois, assim como
não se deve substantivar, coisificar o inconsciente, também não se pode
reificar a sociedade. Não é a Sociedade que rouba aos homens algo
dela mesma, são os homens reais que se roubam entre eles algo de suas
relações sociais. Se para uma parte da sociedade, aquela que governa,
as relações sociais estão “bem” como estão, é preciso que elas o este­
jam também para o resto da sociedade ou, em outras palavras, para
todos.
Algo que está implicado na própria natureza das relações sociais,
algo que pertence ao fundo mesmo dessas relações, aos fundamentos
da sociedade, e acarreta, necessária e continuamente, conseqüências
negativas para uma parte da sociedade, não pode aparecer co m o tal
nas representações que os indivíduos que compõem a sociedade se fa­
zem dela. Duas transformações da realidade são então possíveis: ou
este algo desaparece das representações, não aparece mais nos discur­
sos públicos, ou aparece mas transformado em uma realidade total­
mente positiva, em um componente indispensável do Bem comum, em
condição “necessária” da existência da sociedade e de sua reprodução,
ainda mais indispensável, mais inviolável na medida em que parece
existir desde sempre, pois faz parte das coisas que os homens do tem­
po do sonho, os ancestrais imaginários dos baruyas, legaram a seus
descendentes para seu bem. Uma condição ainda mais inviolável po*$,
associada às origens da sociedade, ela participa do sagrado dessas ori­
gens e aparece como a Lei dada, confiada pelo Sol e pelas outras po­

2 6 2
O ENIGMA DO DOM

tências do universo aos baruyas para que estes pautem por ela suas vi­
das e a transmitam a seus descendentes.
Vê-se, portanto, para que servem os homens (e as mulheres) ima­
ginários que tomam o lugar dos homens e das mulheres reais no tempo
das origens. Eles devolvem -lhes suas próprias leis, seus costumes, mas
sacralizados, idealizados, transmutados em Bem comum, em princípio
sagrado que não pode sofrer contestação, oposição, que só pode ser
objeto do consentimento de todos. Tudo isso que se encontra presente
nos objetos sagrados: os kw aim atnié elevados ao Sol antes de tocarem
o peito dos iniciados.
Os kw aim atnié — isto agora deveria ser evidente — não são sím­
bolos puros, significantes vazios de sentido, são símbolos plenos,
significantes cheios de sentido, apresentando e dissimulando, a o m es­
m o tem po, o conteúdo das relações sociais, enunciando a ordem que
deve reinar na sociedade, unificando e materializando em um objeto
— um fragmento de matéria, madeira, osso, pedra, não importa— tudo
que a sociedade deve dizer e deve esconder de si mesma. É justamente
porque ele é a síntese visível de tudo aquilo que uma sociedade quer
apresentar e dissimular de si mesma que o objeto sagrado unifica em si
o conteúdo — imaginário, simbólico e “real” — das relações sociais. E
é por ser o objeto cultural que condensa e unifica mais íntima e eficien­
temente do que qualquer outro o imaginário e o real que compõem a
realidade social que ele é ao mesmo tempo o símbolo mais forte, o
significante mais pleno, o termo mais rico de sentido de uma língua
que ultrapassa a palavra, a língua falada na sociedade e que fala tam­
bém através dos gestos, dos corpos e dos objetos, naturais ou fabrica­
dos que os cercam. O objeto sagrado, porque diz o indizível, porque
representa o irrepresentável, é o objeto carregado do valor simbólico
mais forte. Nossa análise dos objetos sagrados dos baruyas nos levou
assim aos antípodas das teses de Lévi-Strauss e de Lacan, que dão ao
simbólico a primazia sobre o imaginário e sobre o real, que crêem no
simbólico puro e que, como Lévi-Strauss, nas noções de m ana, ou para
os baruyas koulié, de “espírito-poder” contido nas coisas, vêem con­

2 6 3
MAURICE GODELIER

ceitos cuja função é “se opor à ausência de significação sem comportar


por si só nenhuma significação particular1”.
Objetos cheios de sentido, objetos dotados de uma beleza “subli­
me” situada além do belo, tais são os objetos sagrados, objetos nos quais
o homem está ao mesmo tempo presente e ausente.

D os o b jeto s sagrados co m o presença-ausência d o


h om em e da socied ad e

Ao longo de toda esta análise, deixamos na sombra um aspecto es­


sencial dos objetos sagrados. Certamente eles são o suporte e o signo
das relações de dependência, de endividamento e de reconhecimen­
to que os homens mantêm com os seres imaginários, “verdadeiros
proprietários das coisas e dos bens do mundo”, que dividiram seu uso
com os homens e lhes deram, com os objetos sagrados, alguns de seus
poderes. Mas não podemos esquecer o ponto de onde partimos, que
explica por que os objetos sagrados são para guardar e não para dar:
o fato de que a posse desses objetos dá poderes aos hom ens, pelo menos
a alguns deles, e assim os distingue do resto dos membros de sua so­
ciedade. Possuir tais objetos é deter uma parte dos poderes desses seres
mais poderosos que o homem, é satisfazer um desejo de potência,
manifestar a vontade de controlar as forças que se impõem aos ho­
mens, de agir sobre o curso das coisas, sobre o destino. K w aim atnié
não significa “fazer crescer os homens”, e os mestres das iniciações
baruyas não colocam a serviço da sociedade baruya em seu conjunto,
e da dominação dos homens sobre as mulheres no seio dessa socieda­
de, os poderes contidos em seus kw aim atnié e dados pelo Sol a seus
ancestrais?
No objeto sagrado há, portanto, a confissão de um desejo de po­
tência, de poder agir sobre o curso das coisas e colocá-las a serviço dos
homens. Com o objeto sagrado se persegue, no nível da ação, do rito,

'Claude Lévi-Strauss, “Introduction...”, art. cit., p. L.

2 6 4
O ENIGMA DO DOM

a mesma inversão que existe no nível da representação. Pois é lá onde


o homem nada pode fazer sobre a realidade, como por exemplo mul­
tiplicar as espécies selvagens que ele caça e pesca ou fazer com que
voltem a cada ano as águas do Nilo carregadas do limo fecundante,
que ele (deseja e) acredita poder agir sobre os seres que têm esse po­
der. Donde os ritos de fertilidade, de multiplicação das espécies ani­
mais e vegetais entre os aborígines australianos, donde os ritos que o
faraó realizava a cada ano quando, depois de seguir em sua barca sa­
grada até as fontes do Nilo, pronunciava as palavras rituais que deve­
riam fazer com que as águas do rio voltassem no ano seguinte. É evidente
que, para que este poder apareça como “real”, é preciso que esta cren­
ça seja compartilhada por todos e que sejam exibidas de tempos em
tempos as provas “reais” da eficácia do rito e do objeto. Pois, segundo
a fórmula de Mauçs, “em definitivo, é sempre a própria sociedade que
paga a si própria com a falsa moeda de seu sonho2”.
E por esta razão — a presença do desejo no fundo da crença —
que, para Mauss, a noção de mana não pode ser reduzida a algo “de­
masiado intelectual” nem “demasiado desligado do mecanismo da vida
social”. Por trás das “categorias do pensamento” que fundam os julga­
mentos mágicos, que impõem “uma classificação das coisas”, estabele­
cem “linhas de influência ou limites de isolamento”, há “na própria
raiz da magia, estados afetivos geradores de ilusões e esses estados não
são individuais”3.
No entanto, os estados afetivos não engendram por eles mesmos
as categorias do pensamento e não podem por si próprios produzir ilu­
sões: estas não poderiam tomar forma e sentido sem o trabalho do
pensamento. Ora, uma parte desse sentido repousa naquilo que leva
os homens a se dividirem, a se desdobrarem e se imaginarem ao mes­

2Marcel Mauss, “Esquisse d’une théorie générale de la magie”, em colaboração


com Henri Hubert, LAnnée sociologique, 1902-1903, reproduz em Sociologie et
Anthropologie, op. cit., p. 119.
3Ibid., p. 123. Ou ainda: “Graças à noção de mana, a magia, domínio do desejo,
é plena de racionalismo.”

2 6 5
MAURICE GODELIER

mo tempo mais fracos e mais fortes do que são, a estarem presentes,


mas sob a forma de ausência, nos objetos de seus cultos, submetidos às
potências que povoam o universo mas dotados ao mesmo tempo de
uma parte dessa potência.
Tudo aquilo que é idealmente excluído das relações reais que os
homens estabelecem entre eles e com a natureza compõe, com tudo
aquilo que lhe é idealmente acrescentado, o ser imaginário do ho­
mem, o nódulo imaginário de seu ser social, conteúdo fantasmático e
fonte permanente de realidades imaginárias transformadas em reali­
dade social. Esta opacidade do homem para si mesmo tem por com­
plemento o mundo encantado que surge no lugar do mundo real. Este
mundo e esta humanidade encantados não têm, bem entendido, sua
fonte na história pessoal, íntima, única de cada indivíduo. Eles nas­
cem, não dos acasos de uma história singular e na matéria complexa
das relações íntimas de pessoa a pessoa, mas na natureza de suas re­
lações sociais, em algo que está objetivamente presente e atuante
nestas relações, mas que não pode senão desaparecer nas representa­
ções conscientes que os indivíduos têm delas ou aparecer metamor-
foseado em outra coisa.
Este processo de ocultação e de metamorfose não é somente uma
condição da formação do indivíduo enquanto tal, ser singular, único.
Ele é antes uma condição do nascimento e da reprodução da sociedade
na qual nasceu, das relações sociais comuns, gerais, que são o suporte
de sua existência social e que cada um deve, até certo ponto, interiorizar
e reproduzir se quiser continuar a viver em sociedade. Seria preciso
lembrar que a gênese real, histórica, de uma “forma de sociedade”, isto
é, de uma configuração de relações sociais que regulam de m odo c o ­
mum, geral, a vida de todos os membros de uma sociedade, quaisquer
que sejam seu sexo e sua idade, é um processo coletivo e largamente
inintencional, que não pode ser “projeto” de nenhum indivíduo en­
quanto tal, como ser singular, único, separado dos outros? Este pro­
cesso remete àquilo que cada indivíduo tem objetivam ente em com um
com os outros sem tê-lo escolhido, àquilo que ele partilha com outros,

2 6 6
O ENIGMA DO DOM

conhecidos e desconhecidos, pelo fa to de pertencer à m esm a socieda­


d e: em outras palavras, seu ser social. E é preciso lembrar que a gênese
real, histórica, de uma nova forma de sociedade se desenvolve sempre
em um campo de transformações possíveis que não são em número
infinito e das quais nenhum indivíduo, nenhum grupo de indivíduos,
pode ter conhecimento completo.

D as coisas recalcadas qu e tornam possível a existên cia


s o c ia l d o h om em

Tudo se passa como se a existência social do homem só fosse possível


graças a d ois processos de recalque que constituem as duas fon tes da
form ação d o inconsciente individual e coletivo. O primeiro processo
concerne à sexualidade e sua repressão, o segundo ao poder (político
e econômico) e suas exclusões. Em todas as sociedades eles estão
intimamente ligados. Assim, entre os baruyas, os objetos sagrados
servem para instituir e exaltar uma ordem social que é, ao mesmo
tempo, uma ordem sexual e uma ordem político-religiosa, uma rela­
ção desigual entre clãs conquistadores e clãs autóctones. Em muitas
outras sociedades, as divisões maiores não opõem clãs dominantes e
dominados, mas castas ou classes. Estas últimas divisões ultrapassam,
sem dúvida, as diferenças e as exclusões existentes entre os indivídu­
os em razão do sexo, mas elas as contêm, todavia, redefinidas, remo­
deladas segundo as necessidades.
Se há duas fontes (pelo menos) de recalque, há apenas um psiquismo
humano que opera tais recalques de sentidos e símbolos, estas meta­
morfoses. É porque a psicologia individual e a psicologia coletiva (ou
metapsicologia, como Freud a chama) articulam-se uma à outra. Para
a análise desse processo, é claro que Freud e Marx continuam como
fontes maiores de inspiração, às quais se acrescentam numerosos ele­
mentos das obras de Mauss e, bem entendido, de Lévi-Strauss, assim
como de Lacan. Mas existem em todos estes pensadores muitos outros
temas, que não retomaremos.

2 6 7
MAURICE GODELIER

Permanece a questão incontornável: até que ponto os homens não


se reconhecem em seus duplos? Até que ponto acreditam em suas cren­
ças, estão convencidos de que são outros e não eles mesmos que im­
põem que se faça silêncio ou que se fechem os olhos sobre o que há de
negativo para alguns no funcionamento da sociedade? Até que ponto
eles estão convencidos de que é necessário excluir, reprimir, metamor-
fosear, sublimar os fatos pelo Bem supremo de todos e de que o acesso
de apenas uma parte da sociedade ao poder (e/ou à riqueza) está ins­
crito na ordem divina, sobrenatural das coisas?
Para citar fatos que pudemos muitas vezes verificar e dos quais pode­
ríamos encontrar facilmente um equivalente em nossas sociedades, as
mulheres baruyas, a partir de uma certa idade, sabem mais sobre os
ritos secretos dos homens do que deveriam. O que lhes é pedido é que
não o demonstrem, que façam de conta publicamente que não sabem.
Quando um dia os homens baruyas revelam aos iniciados que não são
os espíritos que produzem os ruídos terrificantes que eles ouvem na
floresta, mas os homens, fazendo girar um pedaço de madeira desfia­
do acima de suas cabeças, eles os ameaçam de morte caso revelem o
fato às mulheres. Mas eles contam também que não foram os homens
que fabricaram os primeiros rombos; que estes, originalmente, eram
flechas que os espíritos da floresta atiraram na direção de um ancestral
mítico dos baruyas, que as transmitiu em seguida a todos os homens
baruyas (mas não às mulheres).
Há lugar, portanto, ao lado (e no interior) da boa-fé para a má-
fé, ao lado da crença crédula para a crença maliciosa, interessada,
manipulada. Pode-se saber, mas ter interesse em fingir que não se
sabe, pode-se não saber e ter interesse em fingir que sabe etc. No
entanto, mais do que tais manipulações, importa saber que é nas
próprias relações sociais, nas estruturas da sociedade, e não naque­
las do pensamento funcionando por si mesmo, nele mesmo, que se
encontram as razões e as forças que levam o pensamento a todas
essas falsas impressões, até deixar na sombra, recalcar em pontos

2 6 8
0 ENIGMA 00 DOM

cegos toda uma parte da realidade e particularmente a que concerne


à origem humana das relações humanas e dos objetos que nelas cir­
culam e as simbolizam.
É nesta perspectiva que nos parece particularmente significativo
que o processo de produção dos objetos preciosos e os processos de
sua “consumação”, isto é, as circunstâncias, os momentos, os lugares
de seu uso como objeto precioso, tendem a separar-se, desunir-se no
espaço e/ou no tempo de tal maneira que a origem hum ana desses
ob jetos tende a apagar-se, depois a desaparecer, e que no lugar dos
homens que os fabricaram aparecem seres “sobrenaturais”, “heróis
culturais” a cuja inteligência e generosidade os homens de hoje de­
vem a posse desses objetos de valor e de poder e o direito de usá-los
por sua própria conta. A distância entre os locais de produção e de
consumo pode ser espacial como entre os maenges da Nova Bretanha
e as tribos da Nova Irlanda, ou temporal como para os kw aim atnié
ou os rombos dos baruyas, cujos primeiros exemplares não foram
fabricados pelos homens. Nos dois casos, sob diversas formas, é o
mesmo processo que se reproduz: o homem não é o autor de suas
obras, não está mais na origem de si mesmo. Ele pode certamente se
reencontrar nos objetos sagrados, pois possui seu código, mas não pode
mais neles reconhecer-se, reconhecer-se como autor, fabricante, em
suma, origem.
E é esse desaparecimento do homem de sua própria origem e
sua substituição por seres sobrenaturais que são duplos dele mes­
mo, por trás dos quais o homem real desaparece, que os m itos, ex­
plicando a origem dos bens culturais, mitos da origem do fogo, das
armas de caça, das plantas cultivadas, dos animais domésticos etc.,
operam. De mais a mais, como mostrou Lévi-Strauss nos quatro
volumes das M ithologiques, foi a o ca b o de aventuras apaixonantes
que têm como atores seres sobrenaturais, traidores ou sedutores,
em uma época em que os jaguares eram homens também, em que
estes esposavam mulheres-jaguar etc., que os homens com eçaram a

2 6 9
MAURICE GODELIER

perceber a diferença entre o cru e o cozido, a escavar suas pirogas,


a praticar a agricultura, a trocar suas irmãs, a ter boas maneiras na
mesa etc. Os homens nada inventaram. Tudo lhes foi dado. Cabia a
eles conservar o que receberam4.

D os don s desiguais q u e se fazem , desde a origem , os deuses,


o s espíritos e os hom en s

Se, conforme tentamos mostrar, o sagrado é uma relação dos homens


com as origens, origens deles mesmos, assim como de tudo que os cer­
ca, e uma relação tal que os homens reais nela estão ao mesmo tempo
presentes e ausentes, vale a pena voltar a alguns relatos das origens
para trazer à tona a natureza da dívida que os homens imaginam ter
em relação às potências, às forças que fizeram o universo e o homem
tais como são. As palavras para designar tais potências variam e mere­
ceriam ser discutidas. Fala-se de espíritos da natureza. Fala-se de deuses
e deusas. Fala-se de ancestrais divinizados etc. Pode-se constatar que
não me precipitei ao chamar de deus o Sol dos baruyas ou a serpente

Todos os trabalhos que Lévi-Strauss consagrou à análise dos mitos dos índios
da América do Norte, e mais amplamente ao estudo das formas e dos procedi­
mentos do “pensamento selvagem”, isto é, do pensamento “em estado selva­
gem”, trouxeram resultados fundamentais, perspectivas inéditas que cada um
de nós, e não apenas os etnólogos, deve incorporar a seu próprio trabalho para
poder avançar. Mas não é difícil mostrar que estes trabalhos e estes resultados
não trazem com eles a prova de que as célebres teses da “Introduction à Poeuvre
de Mauss” sejam fundadas. Ao contrário, eles demonstram que os símbolos e os
conceitos indígenas não são significantes puros, que os procedimentos do pen­
samento simbólico, o recurso à metafora e à metonímia estão a serviço de em­
presas de totalização e de explicação imaginárias da ordem que reina no universo
e deve reinar na sociedade. Lévi-Strauss mostra, aliás, que estas empresas estão
ancoradas em uma realidade que não podem ultrapassar: a dos modos de exis­
tência das sociedades paleolíticas e sobretudo neolíticas. Nossas críticas não se
dirigem, portanto, a estas análises e nunca farão com que negligenciemos ou
subestimemos os resultados já alcançados. Elas visam às fórmulas filosóficas que
pretendem fundamentá-las.

2 7 0
O ENIGMA DO DOM

píton de mestre das chuvas e trovoadas5. Mas deixo esta questão para
outros espaços. Meu propósito aqui é apenas trazer à luz a natureza
dos dons que estas potências fizeram aos homens e confrontá-los com
aquilo que os homens, por seu lado, oferecem aos deuses — e não ne­
cessariamente “em troca”. Eis-nos, portanto, de novo diante da famosa
quarta obrigação de Mauss, aquela que os humanos têm de fazer dons
“aos deuses, aos espíritos da natureza e aos espíritos dos mortos”, pois
“são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo6”.
O que os homens lhes dão são preces, oferendas e muitas vezes sa­
crifícios, isto é, a oferenda de uma vida, animal ou humana. Mas aten­
ção. O sacrifício não é uma prática universal. Existem religiões que não
o praticam, como parece ser o caso de numerosas sociedades que vivem
principalmente da caça e da colheita. Este fato, que saibamos, foi subli­
nhado pela primeira vez por James Woodburn, especialista em um dos
últimos povos caçadores da África, os hazdas, quando de uma conferên­
cia consagrada por um certo número de teólogos e antropólogos ao exa­
me da noção de sacrifício7. Esses caçadores, que vivem da carne, do
sangue, do corpo dos animais selvagens, esforçam-se para manter rela­
ções de amizade respeitosa e de reconhecimento com “os mestres dos
animais” e de não matar estes últimos, “senão comedidamente”, para
suas necessidades.
Esses povos não consideram, necessariamente, os seres humanos
“superiores” aos animais que eles caçam e dos quais dependem. As
religiões com sacrifícios são as religiões em que os deuses dominam o
homem com toda a sua potência e fazem-se temer. Mas, como destaca
igualmente Alain Testart, para que haja sacrifício, é preciso haver vítimas

5É a mesma atitude prudente que Alain Testart adota nas primeiras páginas de sua
obra Des dons et des dieux, quando escreve que “a pior definição que se pode
encontrar da religião é provavelmente aquela que fazia dela uma crença em um
ou vários deuses” (op. cit., p. 17).
‘ Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 167.
7Michael Bourdillon e Meyer Fortes (eds.), Sacrifice, Nova York, Academic Press,
1980, p. 82.

27 1
MAURICE GODELIER

e estas são muitas vezes seres humanos dependentes (cativos de guer­


ra, crianças, mulheres) ou animais, sobretudo domésticos8. Não vamos
esquecer o debate sobre o sacrifício do “boi trabalhador” na Grécia
antiga e a significação da recusa dos pitagóricos de comer da carne dos
animais oferecidos em sacrifício9.
É pelo mito melanésio que descreve o auto-sacrifício de um ser
sobrenatural, “a velha Afek”, que começaremos nossa evocação dos
dons que circulam entre os deuses e os homens.
Afek, “a Velha”, “a Grande” ou “a Viúva”, é objeto de um culto
em uma vasta região do interior da Nova Guiné10, nos altos vales
montanhosos das regiões de Telefomin, Oksapmin etc. Afek teria
vindo do leste e atravessado essas regiões dirigindo-se para o oeste.
Em sua passagem, ela abriu vales, aplainou o solo. Ela expulsou para
as urzes os primeiros ocupantes do local, um povo de espíritos que
provavelmente ainda se esconde por lá. No caminho, ela deixou
marcas de sua passagem e um dia deixou cair de sua sacola (útero)
porcos e taros (tubérculo tradicional, cuja chegada à Nova Guiné
precedeu em milhares de anos à da batata-doce, vinda no século XVI
da América com os navegadores espanhóis). Alguns dos porcos se

*Alain Testart, op. cit., p. 27-29. No entanto, não seguimos este autor quando
ele declara “estar impressionado com a correlação evidente entre a ausência de
sacrifício e o caráter não-estatal da sociedade”. Esta afirmação é excessivamen­
te redutora. Assim como a afirmação de que a Melanésia jamais praticou o sa­
crifício (p. 29).
''Ver os trabalhos de Jean-Pierre Vernant e Mareei Détienne, L a Cuisine du sacrifice
em paysgrec (Paris, Gallimard, 1979), e sobre o mito de Prometeu ladrão de fogo,
separando os homens dos deuses.
l0Muitos trabalhos de qualidade foram publicados sobre as sociedades que, na Nova
Guiné, celebram o culto de Afek. Elas estão localizadas na região das Star Mountains,
onde têm sua nascente os grandes rios Sepik e Fly. Ver notadamente Barry Craig e
David Hyndman (eds.), Children ofAlek: Tradition and Change among the Mountain-
Ok o f Central New Guinea, Sidney, Oceania Monograph, 1990. Particularmente o
capítulo 5, escrito por Robert Brumbaugh: “Afek Sang: The Old Woman’s Legacy
to the Mountain-Ok”, p. 54-87. Dan Jorgensen, Taro and Arrows: Order, Entropy
and Religion among the Telefomin, University of British Columbia, 1981.

272
O ENIGMA DO DOM

transformaram em marsupiais (que eram sacrificados com os por­


cos nos ritos de iniciação). Seu sangue menstruai deixou um depó­
sito de terra vermelha com o qual hoje se pinta o corpo dos iniciados.
Depois ela enterrou-se no solo e viajou sob a terra até o momento
em que voltou à superfície, mais a oeste, e construiu nesse local a
casa de culto que lá está até hoje.
Ela fez outras viagens subterrâneas, e em cada lugar onde reemergiu
há hoje um casa de culto. O caminho que liga todas elas leva até o maior
centro religioso, situado em Telefolip.
Em Telefolip, ela desviou o rio, secou um pântano e proibiu que
nele se plantassem sagüeiros, plantas das terras baixas e quentes da Nova
Guiné. Um velho homem havia se juntado a ela. Ela o matou e depois
ressuscitou-o. Dividiu as casas de culto em duas metades, aquela dita
da Flecha, que con)fiou a ele, e aquela dita do Taro, que guardou para
si. Mais adiante ela encontrou dois seres humanos que haviam comido
os frutos das bananeiras que ela havia plantado, assim como alguns
girinos que lhe pertenciam. Ela os matou, comeu um deles e utilizou
seu sangue para esfregar as vigas da casa de culto, cuja construção ter­
minou.
Mais tarde ela reencontrou o velho e os dois, antes de se separa­
rem, procederam à primeira troca “comercial”, pois o velho havia
trazido do reino dos mortos algumas conchas e lâminas de pedra para
fazer enxós. Afek viveu com seu irmão Olmoin, que, nessa época,
dormia à noite em uma casa de mulher e criava porcos como agora o
fazem as mulheres. Um dia, Afek decidiu decorar o corpo de seu ir­
mão e fazê-lo passar pelos ritos de iniciação. Foi depois desse mo­
mento que os papéis dos homens e das mulheres ficaram estabelecidos
para sempre. Mas seu irmão tinha um pênis gigantesco. Ela cortou-o
no tamanho justo e fez amor com ele. O sangue do pênis caiu sobre
duas plantas, que ela colheu e enfiou em seu corpo. O sangue espa­
lhado em uma delas era o sangue da fertilidade, o sangue espalhado
sobre a outra o da agressividade. Afek deu aos homens o sangue da
agressividade.

2 7 3
MAURICE GODELIER

Afek e seu irmão viveram longo tempo em Telefolip. Ele ficava na


aldeia preparando os alimentos e cozinhando o taro. Ela, por seu lado,
partia todo dia para a caça. Um dia, Olmoin a seguiu e espionou. Viu
que os animais vinham a ela voluntariamente. Foi depois desse mo­
mento que os animais deixaram de se entregar voluntariamente aos
humanos. Eles fogem quando ouvem o caçador. Um outro dia, o ir­
mão seguiu a irmã outra vez e surpreendeu-a, as pernas abertas, dando
à luz todas as variedades de animais. A cada uma ela explicava como
deveria viver e se comportar mais tarde.
Mas aconteceu que Afek surpreendeu o irmão a espiá-la. Ela o matou
e expôs seu corpo sobre uma plataforma. Como ele não se decompunha,
ela criou os vermes e com eles introduziu no mundo a morte, a podridão,
a decomposição. Certos vermes, correndo sobre os cadáveres, se transfor­
maram em conchas, em objetos de valor. Depois ela juntou os ossos de
seu irmão e distribuiu-os entre as diferentes casas de culto que havia
edificado. Desde então eles são utilizados nos rituais para fazer crescer o
taro. De seu irmão, Afek teve uma numerosa família. Seus filhos foram os
ancestrais de todos os grupos da região. A cada um deles ela atribuiu uma
língua e costumes distintos, mas próximos. Ela ordenou que, quando
morresse, sua cabeça restasse em Telefolip e que o osso de sua bacia fosse
colocado na casa de culto que é hoje aquela da tribo dos ulapmins.
Eis, brevemente resumido, um corpus de mitos, dos quais dispo­
mos de numerosas versões. Esses mitos eram associados a ritos de ini­
ciação e de fertilidade mantidos até hoje em grande segredo. Aqui temos
um desses ritos, descrito recentemente a Lorenzo Brutti11 por velhos
informantes que se resguardavam, ao contá-lo, de continuar seguindo
tais costumes, pois agora eles ouviam o “Tok bilongPapa G od”, a pala­
vra de Jesus Cristo, o Deus verdadeiro.

"Agradecemos vivamente a Lorenzo Brutti por nos ter comunicado esses dados
recolhidos pela primeira vez em agosto de 1995. Apresentamos aqui um resumo
sucinto que não dá conta de sua complexidade, mas já demonstra sua grande im­
portância para o conhecimento dessas sociedades e, em um plano mais geral, para
uma reflexão sobre as relações entre religião e sociedade.

274
O ENIGMA DO DOM

Esse rito era praticado quando aconteciam períodos prolongados


de seca e fome, dos quais o último remonta à Segunda Guerra Mundial.
Consistia no sacrifício de um homem jovem, tendo já dois ou três fi­
lhos. Esse rito foi recolhido entre os oksapmins. Eles explicam que Afek
(“Yuan-an” na língua deles) chegou do sudeste e atravessou a região
em diagonal para o noroeste, entregando-se no caminho a todas as
tarefas descritas n o m ito acima. Q uando terminou, e antes de prosse­
guir viagem, ela ordenou aos homens que a matassem e conservassem
seus ossos, que em seguida deveriam dividir entre eles e colocar nas
casas de culto.
Mas, antes que a matassem, ela explicou aos homens o que deveriam
fazer caso nada mais crescesse em seus jardins, se os taros morressem e
a fome os ameaçasse. Eles deveriam escolher um homem pertencente
a uma das duas aldeiàfe situadas nas duas extremidades, oeste e leste,
da estrada que ela havia percorrido, um homem jovem e forte que já
tivesse vários filhos, sobretudo meninos. Cabia aos anciãos decidirem
se era necessário realizar o ritual e escolher o penitente. Este de nada
poderia saber. Seu melhor amigo era encarregado de atraí-lo para uma
emboscada, onde jovens homens iniciados se apoderavam de sua pes­
soa, atavam-no e amarravam-no a uma árvore da floresta, um pandano
selvagem. Seus braços e pernas eram então quebrados, e eles o leva­
vam à morte enterrando sete agulhas de osso de morcego em seus rins,
pulmões, pescoço e cabeça. No fim, seu coração era arrancado, envol­
vido em folhas de pandano selvagem e levado depois de casa de culto
em casa de culto, onde, a cada vez, era passado pelas chamas de um
fogo. Os homens untavam o corpo com o sangue da vítima para fica­
rem fortes e terem belos jardins. O resto do sangue era destinado a
alimentar os insetos que vivem no solo e destroem as colheitas.
Depois o corpo da vítima era cozido com um porco sacrificado ao
mesmo tempo. A carne do porco era comida, mas não a do homem,
pois os oksapmins não praticavam o endocanibalismo: comiam seus
inimigos, mas não seus parentes. Depois os ossos do homem sacrifica­
do eram recuperados e divididos entre os diferentes clãs, que iam

2 7 5
MAURICE GODELIER

enterrá-los perto de suas aldeias. Os ossos eram plantados em locais


rochosos, secos, acima das terras estéreis que era preciso regenerar. A
morte e o cozimento lado a lado de um homem e de um porco são a
prova mais eloqüente de que na Nova Guiné o ser mais próximo do
homem, seu substituto, é o porco. E, como vimos, se as conchas tam­
bém são substitutos dos homens, o são igualmente dos porcos.
Esse rito, hoje “desaparecido”, inspira-se diretamente no mito que
resumimos, particularmente em seu fim. O sacrifício do homem re­
produz o auto-sacrifício de Afek. A cada vez, esses mortos reais ou
imaginários aparecem como condição da reprodução da vida — vida
do taro, vida dos homens — , quando esta está ameaçada de desapare­
cer. Mas a diferença entre Afek e os humanos é que Afek morre sem
nunca morrer. Uma vez morta em Oksapmin, ela vai para outra parte
viver outras vidas, realizar outras proezas. Os humanos, estes morrem
e continuam a viver depois da morte, mas no mesmo lugar, ancestrais
conhecidos ou fundidos na massa anônima dos ascendentes.
Vamos tentar, em poucas palavras, “qualificar” este ser imaginá­
rio, Afek, e suas ações. É uma mulher, “a Velha”, “a Grande”, mas uma
mulher não-humana. Chega não se sabe de onde, e à medida que atra­
vessa uma região ela a transforma. Ela nada cria. Ela remodela um
mundo que já está ali, habitado por um povo de espíritos e provavel­
mente por seres de forma humana que, aliás, roubam seus “bens” e
que ela mata. Ela tira de sua vagina o taro e as plantas que os homens
cultivarão mais tarde, assim como todos os animais selvagens que os
homens vão em seguida caçar (marsupiais) ou domesticar (porcos). Ela
caça, mas não se trata realmente de caça, pois os animais que provêm
dela, de seu corpo, voltam a ela por si mesmos. É uma mulher, a pri­
meira, e ela “civiliza” o mundo. Deixa atrás de si mandamentos, regras
que não podem ser violadas. Ela possui em si, aliás, todos os poderes
masculinos e femininos. E é ela mesma quem confere aos homens sua
masculinidade, que de certa maneira ela arranca de si para atribuir a
eles. Ela lhes dá a masculinidade para seu uso, e não como proprieda­
de, pois guarda em si a fonte de todos os poderes, masculinos e femi­

2 7 6
O ENIGMA 00 DOM

ninos. Além disso, se é ela quem dá a vida, é ela também quem intro­
duz a morte no universo.
Ela corta o pênis de seu irmão, que era longo demais, e copula com
ele pela primeira vez. Ela faz, portanto, emergir a sexualidade ao for­
çar seu irmão a cometer com ela um incesto, ato que em seguida será
proibido aos humanos. Ela modela o corpo dos homens, adorna-os,
decora e os faz entrar no ciclo das iniciações. Ela institui, com “o Ve­
lho”, a primeira forma de troca “comercial”. Enfim, ela morre e faz
dom de seus ossos, realidades duráveis que continuarão a proteger os
habitantes da região sob a condição de que lhe rendam culto. Ela con­
tinua, portanto, presente entre eles, embora os oksapmins saibam que,
depois de sua morte, ela partiu para outra parte, atravessando outras
regiões, realizando ^utras proezas. Finalmente, antes de deixá-los, ela
confiou-lhes o segredo do rito a ser realizado em caso de catástrofe,
quando o taro não cresce mais e a terra se torna estéril, quando a fome
ameaça a humanidade de desaparecimento.
Assim, paradoxalmente — mas é nesse paradoxo que se encontra
todo o sentido do mito — , o mito parte de uma situação originária em
que é a mulher que contém em si ao mesmo tempo a feminilidade e a
masculinidade, que é um ser que não aceita a realidade tal como é, mas
a transforma, a civiliza: uma mulher superior ao homem e que o en­
globava em si mesma antes de formá-lo e destacá-lo de si. Enfim, ao
termo do relato, o mito “junta-se” à realidade, pois ao desaparecer Afek
deixa atrás de si uma humanidade nova, idêntica à de hoje, em que os
homens caçam, iniciam os meninos, não criam porcos, não cozinham
etc., e são os únicos a ter acesso a Afek através de seu culto. No fim do
relato, portanto, são os homens que detêm todos os poderes, os dos
homens e os das mulheres. Desta vez a masculinidade engloba a femi­
nilidade. A realidade se apresenta como o mito invertido e é ao mesmo
tempo habitada, atravessada pelo mito, pois os homens sabem que
devem seus poderes a Afek, mas não podem a preço algum revelar o
segredo às mulheres, que devem ser “mantidas na ignorância”. A rea­
lidade não é, portanto, exatamente o inverso do mito, pois os homens

2 7 7
MAURICE GODELIER

que pretendem representar sozinhos a sociedade e governá-la vivem


esta situação de “força” com a consciência de sua precariedade, o sen­
timento de sua fragilidade.
Pois eles sabem que todos os poderes que exercem agora na socie­
dade, sobre a sociedade, não lhes pertenciam originalmente. Afek lhes
deu sem que eles lhe pedissem. E se hoje eles devem “trabalhar” duro
para caçar os animais selvagens, derrubar floresta para plantar o taro
alimentador (o que faziam até meio século atrás com instrumentos de
pedra), é porque Olmoin, o irmão de Afek, não pôde resistir à tenta­
ção de conhecer os segredos de sua irmã. Seguiu-a e espionou-a, e des­
de então, em vez dos animais entregarem-se aos homens e do taro
crescer sozinho, é preciso caçar os primeiros, plantar os outros. Em
suma, os homens, por causa de seu desejo de saber mais sobre as mu­
lheres e de apropriarem-se de seus poderes, fizeram desaparecer a abun­
dância e a facilidade originais, condenando-os a viver em um mundo
em que é necessário trabalhar e lutar para sobreviver. Já vimos, como
escreve Marilyn Strathern, que reconhecer as virtudes da “feminilida­
de” não implica necessariamente reconhecer virtudes à mulher. Como
fazer, no entanto, para que a “grande Afek” não esteja presente em
algum lugar, por trás de cada mulher?
Notemos enfim que Afek agiu sozinha, sem ajuda de outros “deu­
ses”. Ela não pediu autorização a ninguém e não se percebe ninguém
acima dela. Estamos lidando com uma religião sem “panteão”. Duas
questões se colocam. A primeira: por que ela fez tudo isso? Para fabri­
car a humanidade atual e civilizá-la? Em qualquer caso, parece que
ninguém lhe “pediu” tal coisa. Seus atos civilizadores se apresentam
como um dom gratuito que obriga para sempre os que o receberam,
embora não o tivessem solicitado. E não somente ela impôs essa or­
dem ao mundo, mas deixou também as suas ordens, mandamentos aos
quais não é bom desobedecer. Segunda questão: como os humanos
poderiam “restituir” o que receberam? E evidente que é impossível. A
humanidade encontra-se em dívida, portanto, desde a sua origem, em
relação às potências que deram forma e deixaram-lhe como herança o

2 7 8
O ENIGMA DO DOM

mundo em que vive, e esta dívida é impagável. Nenhum contradom


pode ser “equivalente” a ela, pode cancelá-la.
Observemos, no entanto, que a situação dos homens em relação às
potências que criaram ou modelaram o universo e continuam a controlá-
lo não é igual à situação relativa às potências menores, os espíritos da
floresta, por exemplo, com as quais eles se sentem muito mais à vonta-
4e. Pode-se fazer com que estas últimas caiam em armadilhas, zombar
delas, vencê-las pela astúcia ou, ao contrário, fazer amizade, associar-
se a elas, trocar presentes e gestos de afeição como entre os humanos.
Mas com Afek ou Jeová isso já não é possível. Na Bíblia é Eva, a mu­
lher, quem come do fruto proibido, a maçã que contém todos os pode­
res divinos. E a mulher que não sabe resistir ao desejo de saber mais e,
apropriando-se do fruto proibido, faz com que a humanidade seja ex­
pulsa do jardim do Çden. Em Telefolip é Afek quem tem todos os po­
deres em si e os dá aos humanos, e é o homem quem introduz a morte,
o trabalho, quando tenta se apropriar dos poderes que n ão lhe tinham
sido dados.
Temos que concluir que com as “grandes potências” — deuses,
deusas, seres sobrenaturais de todo tipo — a humanidade se encontra
diante de seres em relação aos quais não pode haver equivalência pos­
sível de dons e contradons, e isto por três razões ao menos. Porque
originalmente essas potências deram aos homens aquilo que quiseram,
sem que estes o pedissem. Porque o que elas deram — o mundo, a vida,
a morte — é tal que o homem nada tem de equivalente a dar de volta.
Enfim, porque os deuses dão m esm o quando recebem. Eles concedem
“a graça”, eles têm “a bondade” de aceitar. Mas, assim como não eram
obrigados a dar, os deuses não são obrigados nem a aceitar nem a retri­
buir. Os deuses não estão presos às três obrigações que se encadeiam
entre os homens e os prendem. Fica sempre a questão: por que eles
fizeram o que fizeram? Por amor aos homens? Para convencerem-se
da própria potência? Algo de incompreensível, de obscuro, subsiste
sempre aos olhos dos homens quando eles tentam compreender as ações
dos deuses.

2 7 9
MAURICE GODELIER

As grandes potências do invisível, às quais a humanidade dirige suas


preces, oferendas ou sacrifícios, são, portanto, por definição, tomadoras
de dons superiores a seus doadores. E é porque os homens sabem que
poderiam não ser ouvidos por elas, e seus votos, seus desejos poderiam
não ser atendidos, que se impõe o maior rigor no cumprimento dos ri­
tos. Para que os seres do invisível aceitem interromper suas ocupações e
prestar atenção às demandas dos humanos, é preciso que estas sejam feitas
em uma língua e segundo procedimentos ouvidos e atendidos. É por esta
razão que, a nosso ver, não podem existir entre os grandes deuses e os
homens verdadeiros “contratos”, e que não pensamos, como Mauss, que
o sacrifício seja, em sua essência profunda, um contrato entre os homens
e os deuses. E menos ainda que, por sua forma, o sacrifício se aproxime
do potlatch sob o pretexto de que “esses deuses que dão e retribuem aí
estão para dar uma grande coisa no lugar de uma pequena12”. Os ho­
mens não poderiam praticar o potlatch com Afek, que tudo lhes deu e
que poderia um dia tudo tirar-lhes. Sem dúvida, realizar um sacrifício é
dar uma vida, é fazer um dom suscetível, mais que uma simples oração,
de criar naquele que o recebe uma obrigação maior de dar de volta. Mas
o sacrifício nunca é realmente um mercado, um investimento a prazo.
Portanto, compreende-se por que, no curso da história, a religião
foi sempre o domínio que podia fornecer modelos, já prontos, de po­
der aos homens, quando alguns deles começaram a alçar-se muito aci­
ma dos outros e quiseram afirmar e legitimar seu lugar diferente na
sociedade pela diferença em sua origem. Cabia a eles o direito de exer­
cer o poder porque descendiam diretamente dos deuses, como preten­
diam os grandes chefes polinésios, ou porque eram eles mesmos deuses
vivos entre os homens, como afirmava o faraó. Não queremos dizer

12Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 169. Mauss acrescenta, referindo-
se a seu “Essai sur le sacrifice”: “Talvez não seja por puro acaso que as duas fór­
mulas solenes do contrato, do ut des em latim e dadami se, dehi m e em sânscrito,
foram conservadas também através de textos religiosos.” Mas o fato de os contra­
tos humanos serem sagrados, cobertos pela autoridade de uma religião, não signi­
fica que as trocas dos homens com os deuses se reduzem a um contrato.

2 8 0
O ENIGMA DO DOM

que a religião está na origem das relações de casta ou de classe que


surgiram e se desenvolveram em numerosas regiões do mundo desde
os tempos neolíticos. Mas nos parece que a religião poderia facilmente
fornecer modelos de seres mais poderosos que os homens, fontes de
vida e de fertilidade ou de infelicidade e de catástrofes, aos quais os
homens estavam obrigados para sempre a oferecer dons e a demons­
trar amor, reconhecimento, obediência, temor e susto. A religião mos­
trava também que o acesso a tais fontes de vida e riqueza não era para
todos os humanos e que, por isso, os poucos que tinham acesso serviam
à sociedade realizando todos os ritos e sacrifícios, comunicando-se di­
retamente com os deuses.
E um exemplo dessa associação, muitas vezes celebrada na histó­
ria entre o monopólio religioso dos meios imaginários para chegar às
potências que controlam a vida e a riqueza e o monopólio político
dos meios de produzir materialmente tais riquezas — a terra, o tra­
balho — , que nós iremos examinar agora analisando uma “prece à
arvore e à pedra sagradas” que os metos, povo que vivia nas monta­
nhas do sudoeste de Timor, faziam a uma divindade suprema, deus
do Céu e da Terra, num ritual em que pediam a seu deus que lhes
enviasse chuva. Nos anos 60, assistiu-se nesta região a conversões em
massa ao cristianismo. Em 1965, o Movimento do Espírito, apoiado
pela Igreja Evangélica de Timor, varreu de fato todas as comunida­
des e exerceu uma formidável pressão sobre os novos convertidos para
que abandonassem suas crenças e práticas tradicionais, destruíssem
seus objetos sagrados e os objetos de culto associados a tais crenças13.
Um antropólogo, Andrew MacWilliam14, recolheu então, entre ho­
mens e mulheres mais idosos, algumas das invocações que se usavam
nesses ritos. Nós destacamos esta.

l3James Fox, “The Movement of the Spirit in the Timor Area: Christian Traditions
and Ethnic Identities”, in James Fox (ed.), Indonésia: The Making o f a Culture,
Camberra, The Australian National University, 1980, p. 235-246.
l4Andrew MacWilliam, “Prayers of the Sacred Stone and Tree: Aspects of Invocation
in West Timor”, Canberra Anthropology, 14 (2), 1991, p. 49-59.

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MAURICE GODELIER

Para os metos, o universo era dominado por uma divindade supre­


ma invocada pelo nome de “Uis Nemo, Uis Pah”, Senhor do Céu, Se­
nhor da Terra. A Terra é a mãe dos seres e dos homens, o Céu é o pai,
logo esse Deus supremo une nele/nela todos os aspectos complemen-
tares e opostos do universo. Segundo os contextos, o quente predomi­
na sobre o frio, o interior sobre o exterior, ou o inverso. No campo do
parentesco, os doadores de mulheres são sempre superiores aos toma­
dores, mas a troca entre eles não é simétrica. Os tomadores não dão
mulheres a seus doadores. Eles ficam em dívida.
Os metos crêem também na existência de um certo número de
seres sobrenaturais — o mestre das abelhas etc. — , cujos poderes
derivariam da divindade primeira. Eles renderiam culto também aos
ancestrais dos clãs e aos ancestrais das “casas”, as unidades domés­
ticas locais. Esses ancestrais habitariam um mundo intermediário en­
tre as comunidades dos vivos e a esfera do Ser supremo. Enfim, eles
acreditam na existência de maus espíritos, espíritos de mulheres
mortas de parto ou de pessoas mortas de morte violenta e condena­
das a errar na floresta e nas moitas às margens dos rios. Cada casa,
cada clã, cada povoado tinha seu altar feito de uma viga de madeira
bifurcada, sobre o qual era colocada uma pedra chata e redonda.
Donde, entre os metos, a idéia de que religião é “falar” à árvore
sagrada, à pedra sagrada. Cada família, cada clã celebrava seus pró­
prios ritos nos próprios altares. Mas essas famílias e esses clãs agru-
pavam-se no seio de comunidades político-religiosas e nesse nível
eram celebrados rituais coletivos destinados a garantir a prosperi­
dade de todos como membros de uma mesma comunidade, a pros­
peridade da comunidade enquanto tal.
É indispensável dizer aqui duas palavras sobre as estruturas políti­
co-religiosas dos micro-“Estados”, ou antes “chefaturas centralizadas”
encontráveis ainda no século passado ao sul de Timor. Esses Estados
eram divididos em cinco “domínios”, dos quais quatro eram associa­
dos dois a dois por funções opostas e cercavam um quinto, sagrado,

2 8 2
O ENIGMA DO DOM

situado ao centro e onde se acumulava o tributo recolhido pelo poder


central sobre as colheitas dos clãs e das famílias que viviam no territó­
rio do Estado.

A terra, em princípio, “pertencia” a esse poder central, que cedia


às famílias o direito de abrir roçados na floresta e cultivá-los por um
período de cinco anos, mediante um imposto, uma taxa de uma peça
de prata ou de uma pérola de coral vermelho. Ao cabo de cinco anos,
o campo deveria ser abandonado e voltar à guarda de um personagem,
o a na’am nes, um homem encarregado pelo poder central de celebrar
os rituais agrários coletivos que deveriam assegurar a prosperidade de
cada “território”, espaço político-ritual reunindo uma dúzia de comu­
nidades locais e estendendo-se por cerca de cinqüenta quilômetros
quadrados.
A agricultura nesta região repousa na produção de arroz nas terras
não-irrigadas e de milho. Como o clima é marcado por uma variação
muito grande das chuvas de monção e sobretudo por sua imprevi-
sibilidade, a “gestão” ritual da chuva revestia-se da maior importância
para garantir a subsistência das famílias e, ao mesmo tempo, para que
elas pudessem pagar os tributos às autoridades, aos senhores que viviam
no centro.
Os rituais que marcavam o começo, o desenrolar e o fim do ciclo
agrícola eram decididos pelo a n a’am nes e se realizavam sob seu con­
trole. Ele ia de comunidade em comunidade, de altar em altar, de cer­
to modo cercando o território de seus ritos. Preces e sacrifícios tinham
lugar no cume das montanhas e perto das nascentes subterrâneas, em
pontos de transição entre o mundo dos homens e o mundo da divinda­

2 8 3
MAURICE GODELIER

de suprema e dos espíritos. O a n a’am nes era encarregado também de


proteger a exploração de determinadas espécies da floresta, especial­
mente a madeira de sândalo, que muitos povos do Sudeste asiático e
da China importavam de Timor. Ele cuidava para que todos os roça­
dos devolvidos ao pousio fossem replantados de bambu nas áreas de
solo em declive, onde a erosão poderia arrastar a terra. Também cabia
a ele arbitrar em primeira instância as disputas a respeito da terra. Em
suma, o a na‘am nes controlava ao mesmo tempo o processo material e
o processo ritual da produção agrícola. Combinava em si os dois as­
pectos do poder, o religioso e o político, que se conjugavam no centro
do “Estado”. E ele mesmo era nomeado ou confirmado em seu cargo
— se seu pai já tivesse sido um a na’am nes — pelo poder central.
Eis o texto de uma prece dirigida à divindade suprema por um
desses a n a’am nes que detinha a guarda ritual do território de um do­
mínio no sul de Timor, da terra e de seus recursos — madeira de sândalo
e mesmo o mel e a cera das abelhas selvagens recolhidos duas vezes
por ano para fabricar velas e sobretudo para exportar a cera para Java,
onde, no séculq X IX , florescia a indústria do batique, grande consu­
midora de cera de abelhas:

Neste momento tenho-me diante desta pedra, esta pedra de meu ances­
tral. Eis porque meu Senhor a Terra abaixo, meu Senhor o Céu acima.
Neste momento tenho-me de pé diante desta pedra colocada aqui por
meu ancestral. Trago estes animais para que orem à pedra sagrada, à
árvore sagrada de Polo, Esliu [... seguem-se os nomes de outras seis
comunidades].
Esta pedra, esta árvore, abaixo a cabeça em oração, Terra embaixo,
Céu no alto. Solicito a chuva, Céu no alto, para lavar a Terra embai­
xo, para que eu e as gentes de Polo [...] comamos e bebamos, para
lavar toda a terra para que haja milho, para que possamos comer e
beber a nosso contento.
Por isso trazemos estes animais, por isso abaixamos nossas cabeças em
oração para a origem, a Terra abaixo, para que recebamos a chuva do
Céu acima.

2 84
O ENIGMA DO DOM

N esse m om ento um frango é sacrificado, depenado e co lo cad o


sobre o altar de pedra. Asperge-se com seu sangue o arroz sacrificial e
uma segunda invocação com eça, dirigida desta vez ao anim al:

Tu, animal engordado que aí estás, eu não te puno, eu não te castigo.


Desejo dar-te à Terra em baixo e ao Céu no alto para que a chuva to m ­
be, para que as gentes possam com er e jje b e r em abundância e para
que a Terra em baixo fique contente também.
N ão te am edrontes com o calor do fogo nem com o fio do punhal, nós
te oferecem os para que possam os com er bem , beber bem.

Em seguida degola-se um porco ou uma cabra e depositam -se no


altar a cabeça, o fígado, o coração, as entranhas e os testículos do ani­
mal. Os animais sacrificados, assim com o o arroz, são fornecid os pelas
comunidades para as quais o a na'amnes oficia e ele m esm o os consa­
grou. Carne e arroz são, além disso, os alim entos que se oferecem em
todas as situações “form ais”, em todas as cerim ônias ligadas aos rituais
do ciclo da vida, nascim ento etc. e em todas aquelas que consagram ou
reconfirm am uma aliança entre dois clãs, duas fam ílias etc. Em segui­
da eleva-se a terceira invocação:

C o loco este p orco no cen tro [do altar] para que estejais sem pre em
nossa m em ória, para que estejais sempre contentes em Polo [...]. Que
este alim ento assado e cozido perm ita-m e servir-vos e dirigir-vos esta
oferenda para que em nossos corações com am os e bebam os satisfeitos
sobre esta terra.

A cerim ônia tem fim com uma refeição, durante a qual os m em ­


bros da comunidade consom em o arroz e a carne cozida dos animais
sacrificados.
Aqui já não lidamos mais com uma m ulher-espírito que contém em
si os poderes fem ininos e m asculinos e que, finalm ente, depois de ter
remodelado o mundo em que vivem os humanos, eleva os homens acima

2 8 5
MAURICE GODELIER

deles mesmos e os engrandece em relação às mulheres15. Aqui, em


Timor, entre os metos, as relações dos humanos com as potências do
invisível são diferentes, assim como é diferente a estrutura da socieda­
de. Os clãs, as famílias celebram eles mesmos o culto de seus ances­
trais, manifestando-lhes respeito e dedicação, solicitam sua ajuda e
proteção e temem sua cólera e sua vingança. Mas estes ritos familiares
e de clã não são percebidos como dotados do poder de assegurar o bem-
estar de todos. São celebrados por homens, mas a divisão, a oposição
entre os sexos está incluída e é ultrapassada no seio de uma outra hie­
rarquia, aquela que separa a maioria dos clãs e famílias de uma mino­
ria que possui a terra e controla os rituais que garantem a vida e a
prosperidade de todos. Em Timor, uma parte da sociedade está acima
do resto e mais próxima dos deuses, mas esta parte da sociedade não é
mais o conjunto dos representantes de um mesmo sexo, os homens em
relação às mulheres, como entre os baruyas e os oksapmins, mas o
conjunto dos membros de alguns clãs e seus representantes em relação
aos outros clãs. Um limiar foi transposto, uma espécie de aristocracia
organizada em clãs exerce um poder centralizado sobre o resto de uma
população dividida e organizada, ela também, sobre uma base de clãs
e outros grupos de parentesco.
Mas esse “duplo monopólio” dos meios imaginários (para nós) e
reais de reprodução da vida — objetos sagrados, fórmulas rituais de
um lado, a terra, o trabalho e seus produtos de outro — exercido por
alguns clãs é pouco diante do fabuloso exemplo do Egito faraônico,
um exemplo que permanece único, mesmo comparado àqueles dos
Estados centralizados da América pré-colombiana: o Império Inca,
dirigido ele também por um “Filho do Sol”, o Império Asteca etc. Ele
é único porque Faraó concentrava em sua pessoa todas as funções, todos
os poderes que, em outras partes, puderam ser separados, partilhados.

15No rito de Afek que descrevemos acima, em que se sacrificava um homem para
devolver fertilidade à terra, matavam-se às vezes os filhos (os meninos^ da vítima
para que, mais tarde, eles não vingassem seu pai.

2 8 6
O ENIGMA DO DOM

Mas também porque esta concentração extrema dos poderes realizou-


se no primeiro Estado surgido na superfície da terra no terceiro milê­
nio antes de Jesus Cristo. Faraó não era um homem mais próximo dos
deuses, como um chefe em Timor. Não era um homem entre os deuses
como o rajá, o rei, na índia antiga. Ele era um deus que vivia entre os
homens. Era o deus mais próximo dos homens, pois vivia entre eles
permanentemente, apoiando-os na existência, um deus que lhes havia
trazido tudo: a vida, a justiça, a prosperidade, as artes, as ciências, em
suma, um deus que os havia civilizado16.
Faraó era deus, o deus Hórus nascido de um incesto entre um ir­
mão e uma irmã, Osíris, seu pai e Isis, sua mãe. Ele próprio desposou
a irmã e, à sua morte (termo, aliás, impróprio, pois Faraó não “mor­
ria”), ele voltava a ser Osíris, o pai. Os nomes dos faraós sucessivos
não eram, portanto, mais que a sucessão das encarnações do deus Hórus.
A essência divina de Faráo está em seu k â , seu alento que é também
seu duplo. O k â de Faraó é o sopro vital que anima todas as criaturas
vivas, de sorte que seu alento, suas vidas lhe pertencem. Neste sentido,
Faraó é “o pai e a mãe de todos os humanos”. Ele é o Único. Não tem

“ Os trabalhos sobre o Egito antigo e sobre a realeza sagrada são inumeráveis. Um


dos mais recentes que consultamos é de Marie-Ange Bonheux e Annie Fargeau,
Pharaort, les secrets du pouvoir, Paris, A. Colin, 1988. Mas certas obras mais anti­
gas continuam a ser fontes úteis e, sob certos aspectos, insubstituíveis. Particular­
mente a obra de Henri Frankfort, Kingship and the Gods, University of Chicago
Press, 1948 (trad. fr.: Paris, Payot, 1961), e a obra coletiva Before philosophy,
Chicago, Pelican, 1949. Em La Royautéet lesDieux, Frankfort escrevia: “O Oriente
Próximo antigo considerava a realeza como a base mesma da civilização. A seus
olhos, somente selvagens poderiam viver sem um rei. Mas se considerarmos a
realeza como uma instituição política, estaremos nos colocando em uma perspec­
tiva que os antigos não poderiam compreender. Para nós, de fato, isso pressupõe
que a política humana pode ser encarada em si mesma. Ora, aos olhos dos anti­
gos, e segundo sua experiência, a vida fazia parte de uma vasta rede de conexões
que ultrapassavam as comunidades locais e nacionais estendendo-se até as
profundezas secretas da natureza e das potências que a governam. Tudo aquilo
que possuía uma significação estava incrustado, inserido na vida do cosmos e o
rei, precisamente, tinha por função manter a harmonia desta integração” (p. 17).

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MAURICE GODELIER

igual e diante dele todos os humanos, mesmo aqueles que são investi­
dos por ele das mais altas funções, são iguais, pois toda autoridade
procede dele.
É através dele que os contrários se equilibram, a vida cósmica se
reproduz, a justiça pode reinar entre os homens, e é em relação a ele que
cada um encontra lugar e função na sociedade. Ele reina sobre o Egito
como o Sol reina no cosmos. Ele é o eterno ponto fixo, o pivô em torno
do qual tudo gira. Mas Faraó não é o Sol. Ele descende do Sol. Na ori­
gem de tudo há o Sol (Aton) incriado, mas criador. Aton fez sair de si
mesmo o ar e a água, e deste casal nasceram a Terra e o Céu, que pari­
ram os quatro últimos deuses da Enéade, entre os quais Osíris e ísis, pai
e mãe de Hórus, de Faraó. Este último dá continuidade à obra fecun-
dante dos deuses primordiais. Todo ano ele se dirige na barca sagrada
para as fontes do Nilo até Silsileh, lá onde as águas são demasiado bai­
xas para se navegar, e realiza o rito “que faz o Nilo correr fora de sua
fonte”, jogando na água o papiro em que estão inscritas as fórmulas
endereçadas ao grande rio que não é outro senão seu pai, Osíris. E a
Faraó que os camponeses devem o limo fértil, é ele quem “engorda o
país”. Ele é também “o touro poderoso”, o senhor do gado etc.
Estamos aqui bem distantes de Afek, que, depois de ter realizado
seus trabalhos, desapareceu deixando atrás de si os próprios ossos,
confiados aos mestres das iniciações de Telefolmin. Estamos distantes
também da divindade suprema dos metos, de seus mestres da Terra e
de seus sacerdotes. Estamos diante de um deus que vive permanente­
mente entre os homens e os dirige, os apóia em permanência na existên­
cia. Os homens lhe devem tudo, pois tudo devem aos deuses e Faraó
os representa entre eles. Faraó talvez seja o primeiro ser humano a ser
transformado em deus ainda vivo, homem transformado em deus, mas
que se pensa (e que é pensado por todos) como um deus feito homem.
Não um “pequeno” deus, um espírito da natureza, mas uma potência
assim como Afek, mas muito maior ainda por ter por trás dela todo o
Panteão, toda a cosmologia dos egípcios, todos os templos, todos os
ritos celebrados pela casta dos sacerdotes.

2 8 8
O ENIGMA DO DOM

Esta essência divina de Faraó nos confronta com dois fatos funda­
mentais. De um lado, compreende-se que aqueles que tudo devem a
tál potência, sua própria existência e a de seus descendentes, subm e­
tem-se voluntariamente a sua autoridade e que seu consentimento pesa
mais que a violência no exercício do poder. A violência repressiva existia
no Çgito e pesava como uma ameaça constante, mas, no curso dos
milênios de sua existência, o Impérjo Egípcio conheceu muito poucas
revoltas internas exprimindo a resistência dos camponeses e artesãos
às corvéias, tributos aos quais tinham de se submeter. E o segundo fato
fundamental, que lança luz, aliás, sobre o primeiro, é que este consen­
timento era a expressão de uma dívida original dos humanos para com
os deuses, especialmente o deus que vivia entre eles, Faraó, uma dívida
que não poderia ser compensada, e muito menos anulada, nem por
todos os contradons que eles poderiam fazer de seu trabalho, de suas
colheitas e mesmo de suas pessoas, se Faraó exigisse suas vidas.
Contrariamente ao que muitos pensam e até ao que nós mesmos
escrevemos17, há nessa relação entre um soberano-deus e seus súditos
algo que ultrapassa a lógica da troca. Diante dos dons dos grandes
deuses, das potências do invisível — e Afek era uma delas — , não há
contradom possível. Nada de equivalente pode ser dado e, bem enten­
dido, nenhum contradom mais importante, nenhum potlatch é possí­
vel, pois os grandes deuses são senhores de todas as riquezas.
Faraó, é certo, “dava” tudo e nem tudo era “imaginário” em seus
dons. Mas estes sorviam de um poder que se confundia com ele, com
sua essência divina, e com os objetos e fórmulas sagradas dos quais ti­
nha a guarda. É a partir desse ponto, situado além de qualquer troca
possível, que as trocas eram possíveis, entre ele e seus súditos e dos
súditos entre eles, súditos cujas relações passavam sempre por ele, re­
feriam-se a ele. Mas retornemos ao fato de que nem tudo era imaginá-

17Maurice Godelier, “L’Etat: les processus de sa formation, la diversité de ses for­


mes et de ses bases”, Revue internationale des sciences sociales, XXXV II, n° 4,
1980, p. 65 7 -6 7 1 ; Lldéel et le Matériel, op. cit., p. 205-220.

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MAURICE GODELIER

rio nos “serviços” prestados por Faraó. As primeiras dinastias no fim-


do neolítico, antes da fundação de Mênfis, capital do Egito unificado,
surgiram em uma época de grandes avanços culturais e técnicos: a es­
critura, os utensílios de metal, a arte monumental. Mas seria preciso
esperar a realeza e a unificação dos dois reinos do Alto e do Baixo Egito
para que os homens conseguissem represar as águas do Nilo e regula­
rizar o fluxo que todo ano trazia a terra “negra” e fértil que cercava
completamente a terra “vermelha” do deserto. O Inca, por seu lado,
não fez realizar os grandes trabalhos de terraplenagem que ganharam
para a cultura do milho as encostas das montanhas? E não abria perio­
dicamente seus silos — onde estava estocado o milho dos tributos pa­
gos por seus súditos — aos indigentes ou às comunidades que uma
catástrofe natural privara dos meios de sobrevivência?
Foi preciso, portanto, que alguns exercessem o monopólio das
condições imaginárias de reprodução da vida para que surgissem as
castas, as classes e a instituição que permite governar sociedades assim
divididas: o Estado em suas diversas formas. Não é que a religião te­
nha engendrado, por seu próprio movimento, castas ou classes; mas
ela forneceu o paradigma, a idéia de seres infinitamente mais podero­
sos que os humanos e aos quais estes estariam acorrentados por uma
dívida original que nenhum contradom seu poderia apagar, seres aos
quais deveriam respeito, obediência e reconhecimento expressos em
suas preces, oferendas e sacrifícios. A religião forneceu a idéia de rela­
ções hierárquicas, assimétricas, fonte ao mesmo tempo de obrigações
recíprocas e de relações de obediência situadas além de qualquer reci­
procidade.
As castas e as classes, na Antiguidade, não poderiam nascer seiji
que nelas surgissem tais grupos, tais homens, como se estes tivessem
avançado mais longe que os outros no espaço que separa, desde a ori­
gem, os homens dos deuses. Mas distinguir-se do resto dos humanos,
que se tornam então gente “do povo”, aproximar-se dos deuses e fa­
zer-se ouvir por eles não seriam, talvez, apenas dois aspectos do pro­
cesso pelo qual as sociedades se dividem e se reconstroem com base

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O ENIGMA DO DOM

em desigualdades reais, que em seguida é necessário recalcar no silên­


cio ou travestir como o melhor dos mundos possível?
Assim os sacrifícios a Deus ou aos deuses não derivam fundamen­
talmente de um contrato de comércio. Eles podem se parecer neste ou
naquele momento da história, como foi o caso na China com as moe­
das de oferenda e durante a Idade Média cristã com o comércio de
“indulgências”. Mas nenhuma religião se reduz a um tráfico mercantil
entre os homens e os deuses. À dívida original dos homens em relação
a seus deuses corresponde um sentimento do pensamento e do corpo,
uma atitude: a do crente. Que as crenças lutem entre elas, que os cren­
tes de uma religião acusem os de outras de adorar falsos deuses, que
queiram pela palavra ou pela violência convertê-los aos “verdadeiros”
deuses, é um fato que pesou e pesa muito na história humana. Mas
estas lutas implicam sempre o mesmo ato de fé: a existência de deuses
“verdadeiros”.
Terminaremos com três alusões. A primeira a Javé, o deus dos ju­
deus, e aos mandamentos do Levítico; a segunda a Cristo, que não é
um homem, mas o filho de Deus encarnado, nascido entre os homens
' para morrer por eles, resgatar seus pecados e prometer àqueles que
seguissem suas palavras a vida eterna junto de Deus, seu pai; enfim, ao
Rig Veda, fundamento da religião hindu, um texto que, à diferença do
Levítico, não se apresenta como a palavra de um deus, mas como um
texto sem origem, sem autor, um texto “aparecido” em fragmentos para
os grandes “visionários” de tempos passados, que os copiaram. Foi lá
que se desenhou a configuração de uma sociedade em que os brâmanes
iriam ser os únicos a poder celebrar os grandes sacrifícios, colocando-
se assim acima do rei, do rajá, que, à frente de seus guerreiros, podia
fazer correr um outro sangue: o dos inimigos do exterior ou do interior
do reino. Ora, no Rig Veda a dívida é apresentada como constitutiva
da natureza humana. Ela tudo explica de nosso destino sem ser, como
no judaísmo ou no cristianismo, associada a uma noção de pecado ori­
ginal. O caminho para o crente é claro. Ele deve pagar suas dívidas
com os deuses, com os grandes videntes e com os pais e escapar ao

2 9 1
MAURICE GODELIER

encadeamento de existências, de reencarnações sucessivas. O caminho


o levará então para onde não reinam nem os deuses nem os rsi (os gran­
des videntes) nem os pais. Ele vai atingir o nirvana — lá onde a dívida
da vida é abolida — e vai se encontrar em um estado de beatitude
fusional, além mesmo do cosmos, pois este é feito de diferenças e no
além não pode mais haver diferenças18. “A fé, na índia védica, não é a
crença nos deuses, mas a certeza de que o VEDA é VERDADE, uma
verdade incriada, sem origem e sem autor19.”
O homem verdadeiro é aquele que se reconhece como dívida e faz
tudo o que for preciso para ficar quite oferecendo sacrifícios20. A vida
é um depósito (kurida) pelo qual ficamos endividados. E a dívida de

“ Charles Malamoud, “Théologie de la dette dans les Brahmana”, “La Dette”, n°


especial da revista Purusartha, Paris, EHESS, 1990, p. 39-62; “La dette au texte:
remarques sur la dette constitutive de l’homme dans la pensée de 1’Inde ancienne”,
“De 1’argent à la dette”, n° especial de Cliniques méditerranéennes, nos3 3 -3 4 ,1 9 9 2 ,
p. 37-4 7; Gérard Toffin, “Hiérarchie et idéologie du don dans le monde indien”,
VHomme, n° 114, X X X (2), 1990, p. 130-142.
19Charles Malamoud, “La scène sacrificielle: observations sur la rivalité du mythe
et du rite dans 1’Inde védique”, Psychanalystes, n° 41, 1992, p. 19-33. Todas as
publicações de Charles Malamoud nos foram preciosas e nos deixaram em estado
de “dívida perpétua” para com seu autor. Ver uma obra mais antiga publicada em
colaboração com Madeleine Biardeau: Le Sacrifice dans l‘lnde ancienne, Paris,
PUF, 1976.
“ O homem verdadeiro deve também fazer dons aos brâmanes, e se estes têm a
obrigação de recebê-los, não podem restituí-los. O retorno do dom vai se dar atra­
vés do mecanismo impessoal do carma, pelo qual o destino de cada um é determi­
nado pela totalidade de suas vidas anteriores, de suas ações passadas. Cf. Thomas
Trautmann, The Gift in índia: Mareei Mauss as Indianist, comunicação apresentada
no 36° Encontro da Society of Asian Studies, 1986. Trautmann mostra que Mauss,
que conhecia o sânscrito e as fontes, particularmente o Mahabharata, havia reco- '
nhecido toda a importância do dom na índia antiga, mas não tinha levado suficien­
temente a sério os princípios religiosos que codificam sua prática. Cf. Mareei Mauss,
“Essai sur le don”, art. cit., p. 243, nota 3: “É preciso convir que, sobre o tema
principal de nossa demonstração, a obrigação de retribuir, encontramos muito poucos
fatos no direito hindu. E o mais claro deles consiste na regra que o proíbe. Os es­
pertos [s/c] brâmanes realmente encarregaram os deuses e os manes de retribuir os
presentes que eram feitos a eles.” Explicação muito “voltairiana”.

292
O ENIGMA 00 DOM

ter nascido e estar vivo jamais se cancela completamente, exceto para


aqueles que obtiveram a redenção absoluta (m oksa) e fundiram-se com
o Brâmane supremo, no Absoluto, que é o mundo da ausência de dívi­
da. Alguns, para chegar lá, escolhem a ascese, abandonam os ritos
(interiorizando-os), mas ao mesmo tempo abandonam a vida social.
São q s renunciantes21.
Mas retornemos a Javé e, através dele, a Cristo. Por que Javé? Por
duas razões. Porque ele é o deus de uma tribo ou antes de um conjunto
de tribos que, fato raríssimo, só reconhecem, por si mesmas, um único
Deus. O Deus dos judeus preparou assim o caminho para a idéia de
que não existe senão um Deus22 e, conseqüentemente, para a idéia de
que os deuses de todos os outros povos são falsos deuses. Esta é a pri­
meira razão. A segunda é que o texto da Bíblia, e particularmente o
livro do Levítico, nos mostra claramente que os sacrifícios que os ho­
mens fazem aos deuses devem se apresentar não como contratos pas­
sados entre os homens e os deuses, mas como obrigações impostas pelos
deuses aos homens e que valerão a estes últimos serem recompensados
caso se submetam. Vejamos as primeiras frases do Levítico:

E Iahweh chamou Moisés e, da Tenda da Reunião, falou-lhe, dizendo:


“Fala aos filhos de Israel, tu lhes dirás: Quando um de vós apresentar
uma oferenda a Iahweh, podereis fazer essa oferenda com animal gran­
de ou pequeno. Se a sua oferenda consistir em holocausto de animal
grande, oferecerá um macho sem defeito: oferecê-lo-á à entrada da
Tenda da Reunião para que possa ser aceito perante Iahweh. Porá a
mão sobre a cabeça da vítima e esta será aceita para que se faça por ele
o rito de expiação. Em seguida imolará o novilho diante de Iahweh, e
os filhos de Aarão, os sacerdotes, oferecerão o sangue. Eles o derra­
marão ao redor, sobre o altar e que se encontra à entrada da Tenda da

21Charles Malamoud, “Théologie de la dette...”, art. cit.


“ Ver, a esse respeito, os trabalhos de Jean Bottéro, particularmente La Naissance
de Dieu. La Bible et 1’historien, Paris, Gallimard, 1986, e Babylone et la Bible,
Paris, Les Belles Lettres, 1994.

293
MAURICE GODELIER

Reunião. Em seguida esfolará a vítima e a dividirá em quartos, e os fi­


lhos de Aarão, os sacerdotes, porão fogo sobre o altar e colocarão a le­
nha em ordem sobre o fogo. Depois os filhos de Aarão, os sacerdotes,
colocarão os quartos, a cabeça e a gordura em cima da lenha que está
sobre o fogo do altar. O homem lavará com água as entranhas e as patas
e o sacerdote queimará tudo sobre o altar. Este holocausto será uma
oferenda queimada, de agradável odor a Iahweh” (Levítico 1, 1-13).

De novo, vemos um deus explicando como se dirigir a ele para ser


ouvido, como realizar os ritos e os sacrifícios. E ele quem promete apa­
gar as injúrias que os homens cometem voluntária ou involuntariamente.
A exceção de algumas que são abominações tais que nenhum sacrifício a
Deus poderia lavá-las, repará-las. Nesse caso, será preciso que os ho­
mens punam os culpados com a morte, cortando-os de seu povo23.
Assim, neste texto, é o próprio Deus que se compromete a escutar
os homens e a lavá-los de seus erros, ditando-lhes a maneira como deve­
rão tratá-lo, como deverão apresentar oferendas e sacrifícios. É ele que,
de certo modo, fixa as “tarifas” e fixa os ritos. A exata observação dos

u Nós utilizamos o texto da Bíblia de Alexandria, com introdução e notas de Paul


Harlé e Didier Pralon, Paris, Editions du Cerf, 1988. “Não te deitarás com um
homem como se deita com uma mulher. E uma abominação. Não te deitarás com
animal algum; tornar-te-ias impuro. A mulher não se entregará a um animal para
se ajuntar com ele. Isto é uma impureza. Não vos torneis impuros com nenhuma
dessas práticas: foi por elas que se tornaram impuras as nações que expulso diante
de vós. A terra se tornou impura, eu puni a sua falta e ela vomitou os seus habitan­
tes. Vós, porém, guardareis minhas leis e meus juízos, e não cometereis nenhuma
dessas abominações, nem o cidadão e nem o estrangeiro que habita entre vós.
Porque todas estas abominações foram cometidas pelos homens que habitaram
esta terra antes de vós, e a terra tornou-se impura. Se vós a tornais impura, não
vos vomitará ela como vomitou a nação que vos precedeu? Porque todo aquele
que cometer uma dessas abominações, qualquer que seja, sim, todos aqueles que
as cometem, serão extirpados do seu povo” (Levítico, 18, 22-29)*.
‘ Utilizamos o texto da Bíblia de Jerusalém, traduzida para o português, sob a co­
ordenação de Gilberto Silva Gorgulho, Ivo Storniolo, Ana Flora Anderson, dire­
tamente dos textos originais hebraicos, aramaicos e gregos, Edições Paulinas, São
Paulo, 1981 (N. da T.).

2 9 4
0 ENIGMA DO DOM

ritos torna-se condição mesma do sucesso das demandas que seus fiéis
dirigem a Deus, pois foi o próprio Deus quem fixou os limites da aliança
e das trocas. Não foram os homens.
Abraão quis sacrificar Isaac, seu filho, a Deus, mas Javé deteve a
sua mão. O próprio Javé não se sacrificou pelos homens. O Cristo o
fez. Ele concordou em assumir forma humana, em viver e deixar-se
crucificar para salvar a humanidade de seus pecados, resgatá-la aos olhos
de Deus, seu pai, e assegurar àqueles que seguirão sua própria palavra
a salvação e a vida eterna depois da ressurreição dos mortos.
O Deus dos cristãos, um em três pessoas, parece ter algo de fami­
liar com os grandes deuses tribais que encontramos até aqui. Ele é
onipresente, onisciente, onipotente. Mas o Novo Testamento fala so­
bretudo do Filho de Deus e ocupa-se muito pouco desses tempos ori­
ginais da criação do mundo. Ele destaca o homem, seus pecados, o mal
que nele está e vem dele, testemunhados pelas injúrias e pelo ódio que
voltaram contra Cristo, seu julgamento e crucificação. Mas esta cruci­
ficação, foi o próprio Deus quem a quis para dar aos homens uma úl­
tima chance de escapar à danação eterna.
Releiamos o primeiro “manifesto” da fé cristã, o credo redigido
por ocasião do primeiro Concilio de Nicéia, em 19 de junho de 325,
alguns meses depois da conversão ao cristianismo do imperador
Constantino (o que reforçou os laços selados entre o império e a Igre­
ja), mas também em plena crise provocada pela heresia de Ario, padre
de Alexandria. Ele negava que a pessoa do Cristo, segunda pessoa da
Santíssima Trindade, fosse igual e consubstanciai à do Pai, pois o Cris­
to havia sido engendrado. Vejamos qual foi a resposta da Igreja:

Cremos em Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visí­


veis e invisíveis;
e em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, único engendrado do
Pai, ou seja, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus ver­
dadeiro de Deus verdadeiro, engendrado, não criado, consubstanciai
ao Pai, por quem tudo foi feito, o que está no céu e o que está sobre a

2 9 5
MAURICE GODELIER

terra; que, por nós, os homens, e por nossa salvação, desceu, encarnou-
se, fez-se homem, sofreu, ressuscitou no terceiro dia, subiu aos céus e
virá julgar os vivos e os mortos;
e no Espírito Santo.
E aqueles que dizem: ‘Houve um tempo em que ele não era’, e: ‘Antes
de nascer, ele não era’, e: ‘Ele foi criado do nada’, ou que declaram
que o Filho de Deus é de uma outra substância ou de uma outra essên­
cia, ou que está submetido à mudança ou à alteração, a Igreja católica
e apostólica os anatematiza24.

O Cristo é portanto Deus e filho de Deus. Ele veio viver durante


trinta e três anos unicamente entre os habitantes de Israel para salvar
a humanidade inteira do mal que esta traz em si e que pode nos con­
denar ao inferno. Este Deus dividiu seu corpo entre seus fiéis pelo
milagre da transubstanciação do pão e do vinho, transformados em
sua carne e seu sangue, milagre que se repete a cada vez que o padre
celebra a santa missa e eleva em direção a Deus o cálice e o cibório25.
O acento não é mais colocado sobre o cosmos e sua ordem, à exce­
ção da alusão ao fim dos tempos, ao fim do mundo. O acento não
está mais, como em Afek, sobre o dom feito aos homens de um mun­
do remodelado por seus cuidados e de princípios a serem seguidos
para que se construa uma boa sociedade. Ele é colocado, antes de tudo,
sobre o mal, sobre a desordem da qual os homens são a única causa,
não por seus erros apenas, como com Afek, mas em conseqüência do

24Texto traduzido e comentado por Gervais Dumeige, in La Foi Catholique, Paris,


Editions de l’Orante, 1993, p. 6.
25“Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, tendo-o abençoado, partiu-o e, distri­
buindo-o aos discípulos, disse: ‘Tomai e comei, isto é o meu corpo.’ Depois, to­
mou o cálice e, dando graças, deu-lho, dizendo: ‘Bebei dele todos; pois isto é meu
sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos peca­
dos. Eu vos digo: desde agora, não beberei deste fruto da videira até aquele dia
em que convosco beberei o vinho novo no Reino de meu Pai’”, in O Novo Testa­
mento, Evangelho Segundo São Mateus, nova tradução por E. Osty e J. Trinquet,
Paris, Siloé, 1974, p. 102-103*.
‘ Utilizamos mais uma vez o texto da Bíblia de Jerusalém, acima citada. (N. da T.)

2 9 6
O ENIGMA DO DOM

desejo de se tornar Deus, de roubar a Deus o fruto proibido, o co­


nhecimento.
O acento é colocado sobre o mal e sobre o homem. Pois o mal, no
monoteísmo cristão, não é mais conseqüência, como nas religiões po-
liteístas, tanto das ações dos deuses quanto daquelas dos homens, deuses e
homens partilhando a responsabilidade de sua existência. Aqui a cena tende
a reduzir-se a um enfrentamento entre um só deus, o Deus único, e o ho­
mem, sua criatura que pecou. Todo o mal que os deuses causam é transfe­
rido, quando estes desaparecem, para o homem e também para Satã, claro,
este duplo do homem que, como ele, foi tentado a elevar-se acima de sua
condição, a reinar no lugar de Deus. Mas de Satã fala-se pouco atualmen­
te, salvo nas seitas. A dívida dos homens para com um Deus morto na cruz
para salvá-los da conseqüência de seus atos, da danação eterna, é, portan­
to, maior ainda do que em qualquer outra religião.
A religião, escrevia Santo Tomás de Aquino, é a dívida que os homens
têm para com Deus, e para o cristianismo esta dívida é dupla, pois Deus
criou o homem duas vezes: quando da criação do mundo e depois de novo
quando Cristo morreu na cruz para resgatar os pecados do homem, para
reparar o pecado original que havia condenado Adão e Eva à expulsão do
paraíso terrestre. A religião é dívida, mas leiamos Santo Tomás:

“O hom em nada pode dar a Deus que já não lhe deva. Ainda assim,
ele jamais quitará sua dívida2*. ”

O cristão, este deseja amar a Deus e que Deus o perdoe e o convi­


de a sentar-se a seu lado. O crente, na índia, respeita os deuses e quita
suas dívidas em relação a eles, mas aspira a um mundo sem dívidas
onde não há mais Deus nem Pai.
Estas são algumas das figuras das dívidas que os homens reconhe­
cem ter em relação aos deuses, deuses que não são mais que duplos

“ Santo Tomás de Aquino, Somme théologique, Paris, Desclée & Cie, 1953, II, A,
questão 80, p. 12.

297
MAURICE GODELIER

imaginários deles mesmos e aos quais eles se ligam na esperança -


ilusória — de serem ouvidos.

D a fu n ção crítica das ciências sociais

Os homens desdobram-se, mas não podem e/ou não querem se reco­


nhecer em seus duplos. Donde a importância das ciências sociais (e nós
não privilegiamos nenhuma delas). Todas são necessárias, todas devem
se associar e cooperar assumindo cada qual uma visão crítica de si
mesma, de seus princípios, de seu reducionismo, de seus limites.
Seu trabalho consiste precisamente em recolocar o homem lá onde
ele estava, onde está, na origem dele mesmo e, partindo daí, comparar e
explicar a diversidade das formas de sociedade e das culturas e as parti­
cularidades de sua história. Seu trabalho consiste em fazer a história e a
sociologia das idéias, das instituições, das técnicas, dos utensílios, das
plantas cultivadas etc. Mas recolocar o homem em seu lugar, dar conta
de sua existência real, reconstituir a gênese, não imaginária, mas efetiva,
de suas práticas, de suas instituições, de suas representações, é engajar-
se em uma empresa que, objetivamente, ou seja, quaisquer que sejam as
opiniões filosóficas ou religiosas daqueles que se engajaram, se opõe às
intenções e às demonstrações de todos os discursos, de todos os sistemas
de representação que não reconhecem ao homem este lugar, seu lugar.
Em relação a todos esses sistemas, exprimam-se eles sob a forma
de mitos, de dogmas religiosos ou de princípios filosóficos, as ciências
sociais, recolocando o homem em seu lugar (que não é apenas aquele
de um ser que vive em sociedade, mas de um ser que produz sociedade
para viver), exercem uma função crítica. Tudo o que foi produzido pelo
homem, tudo o que nasceu de sua prática e portanto de seu pensamen­
to, de seu psiquismo, deve ser devolvido ao homem, tudo o que vem
dele, mas se levanta diante dele como uma realidade estrangeira, autô­
noma, deve voltar a estar nele. ,
Mas tal retorno é realmente possível? Isto significaria concretamen-
te que a humanidade não apenas se desprende de suas ilusões ao reco­
nhecer seu caráter de ilusão, mas sobretudo que ela não tem mais

2 9 8
O ENIGMA DO DOM

necessidade de ilusões para viver, para fabricar as sociedades nas quais


vive. Nós já “sabemos” que não podemos “acreditar” nisso e que não
se deve acreditar em tal coisa. No entanto, a humanidade não pára de
transformar-se, e os resultados críticos das ciências sociais podem ajudá-
la concretamente a escolher-se outra. Não há, portanto, razão para
abandonar o campo da pesquisa científica, para decretar inútil a tarefa
que é aquela de reencontrar os homens que estavam, que estão por
trás dos costumes, dos ritos, das leis, dos sistemas que as ciências sociais
estudam, e também a tarefa de explicar como e por que, a cada vez, o
homem se reconhece e não se reconhece em seus costumes, suas leis27.
Dupla tarefa, nível duplo de análise teórica, e para passar de um a
outro não podemos nos privar dos novos conhecimentos acumulados
sobre o funcionamento, consciente e inconsciente, do psiquismo hu­
mano. E por esta razão que as ciências sociais devem, se não cooperar,
pelo menos dialogar constantemente com a psicanálise, reexaminando
as teses e os resultados desta última a partir do conhecimento de siste­
mas sociais muito diferentes do nosso que modelam os indivíduos se­
gundo seus prórios princípios e exercem suas coações em todos os
domínios onde estes interagem, estabelecem laços, aliam-se, são sujei­
tos sociais. Diálogo fundado, bem entendido, no reconhecimento dos
avanços de Jacques Lacan em relação a Freud, mas também dos efeitos
negativos do postulado, transformado em dogma, segundo o qual o
simbólico prima sobre o imaginário.

27Sigmund Freud: “Não devemos, portanto, nos espantar ao vermos o homem pri­
mitivo exteriorizar as relações estruturais de sua própria psique e cabe a nós recolocar
na alma humana aquilo que o animismo nos ensina em relação à natureza das coi­
sas” (Totem et Tabou, Paris, Payot, 1965, p. 107, trad. livre)*. Karl Marx: “É bem
mais fácil encontrar através da análise o conteúdo, o nó terrestre das concepções
nebulosas das religiões, do que desenvolver, de modo inverso, a partir das relações
reais da vida, as formas celestes que lhes correspondem” (O capital, Livro I, vol. 2).

"Na edição brasileira: “Estamos então preparados para descobrir que o homem
primitivo transpunha as condições estruturais de sua própria mente para o mun­
do externo; e podemos inverter o processo e colocar de volta na mente humana
aquilo que o animismo acredita ser a natureza das coisas” (Totem e tabu, Rio de
Janeiro, Imago, 1996, p. 101). (N. da T.)

2 9 9
CAPÍTULO IV O dom des-encantado
Nossa viagem chega ao fim. A terra encantada dos objetos sagrados e
dos objetos dados afasta-se atrás de nós. Os objetos estão sempre lá,
mas as respostas que trouxemos às questões que Mauss se colocava a
seu respeito dissiparam o encantamento1.
Mais fundamentalmente, nossas análises nos levam a concluir que
não poderia haver uma sociedade sem dois domínios: o das trocas, não
importa o que se troque e qual seja a forma desta troca, do dom ao
potlatch, do sacrifício à venda, à compra, ao mercado; e aquele em
que os indivíduos e os grupos conservam preciosamente para eles mes­
mos, e depois transmitem a seus descendentes ou àqueles que compar­
tilham a mesma fé, coisas, relatos, nomes, formas de pensamento. Pois
o que se guarda sempre são “realidades” que arrastam os indivíduos e
os grupos para um outro tempo, que os remetem às suas origens, à
origem.
É a partir desses pontos de referência, dessas realidades “fixas na
natureza das coisas” que se constroem, se desdobram as identidades,
individuais e coletivas. São eles que fazem com que haja duração no
tempo. Medem-se as forças necessárias para destruir esses pontos de
referência, seja corroendo-os pouco a pouco, seja de um só golpe de-
cepando-os brutalmente. Não é indiferente para o futuro de uma socie­
dade o fato de que as forças destruidoras de seus pontos de referência
tenham surgido do interior dos modos de vida e de pensamento por

I 'Ver p. 14.

3 0 3
MAURICE GODELIER

eles mesmos fixados, ou tenham vindo do exterior, impostas pelas pres­


sões, pelas agressões conscientes ou involuntárias de sociedades com
outras referências.

D os p on to s d e referência necessários p ara fix a r a iden tidade das


socied ad es e d os indivíduos n o tem po

Eis uma descrição do gênero de vida do micado, do imperador do Ja ­


pão, escrita há quase três séculos por um viajante holandês, Kaempfer,
que redigiu uma História do Ja p ão depois de ter vivido nesse país no
momento em que ele se abria para o Ocidente, e reproduzida por James
Frazer em L e Ram eau d ’or2:

O m icad o acred ita que seria m uito prejudicial p ara sua dignidade e
p ara sua santidade to c a r o solo co m seus p és; assim , q uan d o quer
ir a algum lugar, ele deve ser levado sobre om b ros h um anos. Seria
ainda m enos su p ortável se expusesse sua sagrad a p essoa ao a r li­
vre, e não se con sid era que o sol seja digno de b rilh ar sob re sua
cab eça. U m a tal santidade liga-se a tod as as p artes de seu c o rp o , de
m o d o que ele n ão ousa c o rta r os cab elo s, a b arba ou as unhas. N o
e n ta n to , p ara que ele não ten ha um a ap arên cia d em asiado suja, eles
p od em ser retirad o s durante o s o n o ; diz-se que o que se to m a de
seu c o rp o d uran te esse p eríod o lhe é ro u b ad o , e um tal ro u b o não
causa danos à sua santidade nem à sua dignidade. O u tro ra ele era
ob rig ad o a sentar-se sobre o tro n o a cad a m an h ã, p o r várias h o ras,
a c o ro a im perial em sua cab eça, e aí p erm an ecer c o m o um a está­
tu a, sem m o ver os pés ou as m ãos, a cab eça ou os o lh os, nem qual­
quer o u tra p arte de seu c o rp o ; supunha-se que p o r este m eio ele
con servava a p az e a tran q üilid ade de seu im p ério ; m as se, p o r in­

2De fato, em “Tabou ou les périls de l’âme” (1911), que é a segunda parte do
Rameau d ’or, obra consagrada ao “rei mágico na sociedade primitiva”. Esta se­
gunda parte é o desenvolvimento do artigo “Tabou”, escrito por Frazer para a
Enciclopédia Britânica a pedido de Robertson Smith.

3 0 4
O ENIGMA DO DOM

felicidade, ele virasse para um lado ou para o outro, ou fixasse os


olhos sobre alguma parte de suas possessões, haveria de temer que
a guerra, a fome, o incêndio ou diversas grandes calamidades esti­
vessem a ponto de desolar o país. Mas descobriu-se em seguida que
a coroa imperial era o paládio que, por sua rigidez, podia conser­
var a pazydo império; desde então, julgou-se por bem liberar sua
imperial majestade, consagrada unicamente à ociosidade e ao pra­
zer, desta corvéia. Assim, agora coloca-se a coroa sobre o trono a
cada manhã, durante algumas horas3.

O micado, o imperador, é aqui realmente o ponto fixo, o ponto de


referência da sociedade na ordem cósmica. Embora fosse deus, algo de
humano nele impedia que guardasse fisicamente a imobilidade perfei­
ta, a fixidez total que teria garantido para sempre o bem-estar de seus
súditos. Infelizmente para eles, o micado não conseguia se impedir, cedo
ou tarde, de mover-se e de trazer assim desordens e infelicidades a uma
parte de seu reino. Foi substituído, portanto, por um objeto que parti­
cipava de sua divindade, mas podia permanecer totalmente imóvel, sua
“coroa”.
E Frazer faz dois comentários, um analítico, o outro ideológico:

O monarca era o ponto de aplicação ao qual se fixava a alavanca


do mundo, e a menor irregularidade de sua parte podia romper o
delicado equilíbrio. Tem-se, portanto, de tomar o maior cuidado
com ele, e ele mesmo deve prestar grande atenção; sua vida toda
inteira, mesmo nos mais minuciosos detalhes, deve ser regulada de
tal maneira que nenhum de seus atos, conscientes ou inconscien­
tes, perturbe ou desestabilize a ordem estabelecida da natureza. O
micado ou dairi, imperador espiritual do Japão, é, ou melhor, era
um exemplo típico desta classe de monarcas. Ele é considerado como
a encarnação da deusa do Sol, a divindade que reina sobre o uni­

3Kaempfer, History o f Japan, citada por James Frazer em L e Ratneau d ’or, Paris,
Laffont, 1981, p. 487.

30 5
MAURICE GODELIER

verso, inclusive os deuses e os homens; uma vez por ano todos os


deuses vêm lhe render homenagem e passar um mês em sua corte.
Durante este mês, cujo nome significa “sem deuses”, ninguém fre­
qüenta os templos, que se acredita estarem abandonados por suas
divindades. O micado recebe de seu povo, e assume em seus decre­
tos e proclamações oficiais, o título de “divindade manifesta ou
encarnada” [akitsu kamt] e pretende exercer uma autoridade geral
sobre os deuses do Japão. É assim que, em um decreto oficial do
ano de 64 6 , descreve-se o imperador como “o Deus encarnado que
governa o universo”4.

Este comentário de Frazer põe em evidência, com justeza5, a exis­


tência e a importância destes pontos de referência fixos no tempo e
necessários para assentar e legitimar a maneira como uma sociedade é
organizada, sua estrutura, sua ordem. Suas observações vão ao encon­
tro das nossas. No entanto, ele acrescenta em nota um juízo que é aquele

“Ibid., p. 486-487.
5Em outras sociedades, como na África, o ponto de referência, a alavanca do mun­
do, o rei é condenado, por sua vez, a permanecer totalmente invisível. No antigo
reino de Abomey havia dois reis. Um deles, visível, agia à luz do dia, cercado de
respeito, mas era um falso rei servindo de duplo a um verdadeiro rei que, este,
permanecia invisível. O verdadeiro rei, dizia um ditado de Abomey,
“não tem olhos, não vê [...]
não tem boca, não fala [...]
não percebe senão o bem”.
Marc Augé, que comenta este dito, acrescenta: “Tudo é feito para que o corpo
soberano, a aparência física do rei se identifique mais e mais com esta insensibili­
dade da pedra” (in Le Dieu objet, Paris, Flammarion, 1982, p. 131). Ao fim e^ao
cabo, o verdadeiro rei poderia até mesmo não existir. Mas talvez seja pedir de­
mais fazer repousar todo um reino apenas sobre a idéia de realeza, sem que reis
falsos ou verdadeiros jamais se manisfestem ao povo.
Por trás de todas estas escolhas culturais se apresenta o problema universal de
saber como representar o irrepresentável, o indizível. À diferença do cristianis­
mo, que escolheu representar Deus Pai sob os traços de um majestoso velho bar­
budo, o islã sempre recusou tal antropomorfismo. Cf. Jack Goody, “ícones et
iconoclasme en Afrique”, Annales, n° 6, 1991, p. 1235-1251.

3 0 6
O ENIGMA 00 DOM

de um ocidental convencido da superioridade das filosofias e das ciên­


cias desenvolvidas em sua própria cultura:

É certo que é muito difícil para o espírito ocidental adotar o ponto de


vista de um oriental e apreender o ponto preciso (se é que se pode
dizer que existe) em que o divino se apaga diante do humano, ou em
que o humano se ilumina e se torna divino. Ao traduzir, e somos obri­
gados a fazê-lo, o pensamento vago de uma teologia grosseira para a
linguagem relativamente precisa de uma Europa civilizada, devemos
lembrar que existe um ponto em que os dois não mais se correspondem:
é preciso deixar entre eles, por assim dizer, uma vaga fronteira ou a
divindade poderá buscar asilo e escapar à luz impiedosa da filosofia e
da ciência6.

Frazer era certamente um dos europeus que menos ignoravam que


tais personagens, tais instituições, tais sociedades são encontradas em
todas as partes do mundo, inclusive na Europa e em épocas bem diver­
sas. Mas ele tinha a convicção de que a crença na divindade dos reis,
que o processo de divinização do homem eram, no Ocidente, coisas
do passado, um estágio ultrapassado pelos progressos alcançados no
caminho da civilização. No começo do século X X , na época em que
Frazer redigia L e R am eau d ’or, as monarquias européias haviam se
tornado, de fato, “constitucionais” e as famílias reais satisfaziam-se,
em geral, em representar nas cenas que lhes eram deixadas por povos
já então “soberanos”.
Não veio a história fortalecer as teses de Frazer no fim da Segunda
Guerra Mundial, quando o Japão capitulou? O imperador Hiroito nada
fizera, bem ao contrário, para impedir seu povo de entrar em guerra e
de aliar-se à Alemanha nazista. Depois da capitulação do Japão, duas
posições confrontaram-se entre os aliados. Para uns, era preciso supri­
mir a monarquia e destruir o antigo regime imperial de fio a pavio.

‘James Frazer, op. cit., p. 888.

3 0 7
MAURICE GODELIER

Para outros, que temiam ferir os sentimentos profundos do povo japo­


nês e suscitar perturbações civis, era preciso manter o imperador mas
transformar a monarquia de direito divino em monarquia constitucio­
nal, à européia7. Foi a posição deles que levou a melhor. E pela primei­
ra vez na história pôde-se ver um deus vivendo sob forma humana
forçado a confessar que não era deus. Tal é o conteúdo do escrito que
o imperador Hiroito foi obrigado a redigir em I o de janeiro de 1946 e
cujo texto ele endereçou (em língua inglesa) ao general MacArthur,
chefe do exército de ocupação:

Os laços entre Nós e nosso povo sempre repousaram sobre a afeição e


a confiança mútuas. Não depende de lendas e mitos. Não são basea­
dos na falsa concepção de que o imperador é divino e de que o povo
japonês é superior aos outros e tem por destino dirigir o mundo8.

Uma nova monarquia, uma monarquia-símbolo, entrou em vigor


em 3 de maio de 1947. Do outro lado do planeta, um povo ocidental
herdeiro, sim, do cristianismo e do Santo Império germânico também
quis governar o mundo em nome da superioridade da raça ariana. Seu
Führer não abdicou de sua condição de super-homem. Ele suicidou-se
em seu bunker. Os aliados puseram-se então a “desnazificar” o povo
que os havia combatido e a ensinar-lhe novamente a democracia. A
democracia à ocidental tornou-se o futuro do mundo livre. Em 1989,
com a queda do muro de Berlim, tornou-se o futuro do mundo, simples­
mente. Por isso alguns consideraram que a história chegava a seu fim.

7Com o apoio de alguns antropólogos como Ruth Benedict, que nunca havia ido
ao Japão mas tinha pesquisado para o Office of War Information sobre “os mode­
los japoneses de comportamento”, relatório 25, pesquisa que realizou junto aos
japoneses que viviam nos Estados Unidos. O relatório deu lugar ao livro Le
Chrysanthème et le Sabre (1946), que vem conhecendo imenso sucesso até hoje.
Ver a reedição da tradução francesa, Picquier Poche, 1996, com um prefácio de
Jane Cobbi que recorda este contexto e analisa as teses sustentadas por Benedict.
8Cf. Eric Seizelet, Monarchie et démocratie dans le Japon d ’après guerre, Paris,
Maisonneuve & Larose, 1990, p. 143-217.

3 0 8
O ENIGMA DO DOM

O “fim da história” começou, portanto, em 1989, quando a “hu­


manidade” — diante do desmoronamento precipitado e generalizado
do comunismo, isto é, de uma forma de sociedade nascida da união de
uma economia estatizada e de uma ditadura disfarçada em democracia
popular — foi obrigada a render-se à evidência de que só havia futuro
para ela na generalização para todas as sociedades humanas do casa­
mento do capitalismo com a democracia, sistemas nascidos no Ocidente
em épocas distintas, mas que se uniram entre o fim do século XVIII e
o começo do X X , segundo o país9, na medida em que desapareciam as
sociedades de Antigo Regime.
Qual é, nesta forma de sociedade que se imagina que deve durar
eternamente, o lugar das trocas, e ainda existe algo além da troca?
Aparentemente tudo ou quase tudo está a venda: os meios de consu­
mo, os meios de produção (inclusive a terra), os meios de destruição,
os meios de comunicação, a força de trabalho manual e/ou intelectual
dos indivíduos, o uso de seus corpos. As coisas banais, as coisas precio­
sas, as obras de arte. E como tudo aquilo que se compra e se vende se
compra e se vende por dinheiro, ter dinheiro tornou-se a condição
necessária para existir física e socialmente.
O dinheiro está presente no coração de tudo aquilo que é “aliená-
vel”. Ele entra e sai permanentemente do mercado e, quando ele cir­
cula, faz circular com ele milhares de realidades materiais e imateriais
pelas quais ele é trocado e nas quais ele se troca — por um tempo.
Ele faz aquilo que as relações mercantis que se estabelecem entre
os indivíduos e entre os grupos fazem com que faça. O dinheiro não é

fim do século XVIII, os jovens “Estados Unidos da América” foram os pri­


meiros a realizar esta união quando deixaram de ser uma colônia da coroa da
Inglaterra para se transformarem numa “república”, sem nenhum entrave criado
pela presença de antigas formas ocidentais de propriedade e de produção, feudais
ou outras, como era o caso da Europa. Diante destes ocidentais “livres” e empreen­
dedores abria-se um país imenso, virgem e vazio, pois eles o esvaziavam empur­
rando diante de si os antigos habitantes, os índios, que hoje desapareceram ou
vivem em “reservas”.

30 9
MAURICE GODELIER

nem moral nem imoral. Ele é neutro. Digamos que é útil. Ele se esten­
de a tudo aquilo a que o mercado se estende. E este se estende impul­
sionado pela necessidade, para a produção e para o comércio capitalistas
de se estender sempre mais.
Logo, o dinheiro e o lucro estão no próprio coração do sistema.
Eles são inseparáveis e não deveriam, portanto, servir como bodes
expiatórios quando se criticam as conseqüências negativas do funcio­
namento desse sistema. Pois este, que é apresentado como o menos ruim
possível, exclui regular e necessariamente da produção — e portanto
do “mercado do trabalho” — centenas de milhares de indivíduos cuja
sobrevivência depende então da ajuda do Estado ou da generosidade
dos particulares, ou seja, de uma economia de redistribuição gerada
pelo Estado ou de uma economia do dom gerada por particulares.
Estamos tratando, portanto, com uma sociedade dividida em gru­
pos cujos interesses e status não são os mesmos, e que em boa parte se
opõem, se contradizem. Esta divisão e esta oposição são estruturais, o
que não contradiz o fato de que um certo número de assalariados pode
se transformar em capitalistas, e que um certo número de capitalistas
pode perder seus capitais e recomeçar outra vida. Em suma, existe ine­
gavelmente no coração do capitalismo uma fonte permanente de desi­
gualdades sociais, e isto significa que nesse sistema, como em todos os
outros, há coisas a serem recalcadas, coisas sobre as quais “é preciso”
silenciar ou que “é preciso” travestir de “interesse comum”.
Mas, combinado a esse tipo de economia, pelo menos no Ociden­
te, encontra-se um sistema político que repousa sobre o princípio de
que todos os indivíduos são livres e iguais em direito, livres para agir,
para pensar como quiserem com a condição de que seus atos não ateri^
tem contra os direitos dos outros e não ponham em perigo o interesse
geral, que o Estado tem por função representar e defender. Os indiví­
duos, desiguais por seu lugar na economia, gozam, portanto, no plano
político, no quadro de um Estado democrático, da igualdade pelo di­
reito.

3 1o
O ENIGMA DO DOM

Daquilo que se mantém além do mercado em uma


sociedade de mercado

Que lugar há em tal sistema político-econômico para o dom, para os


objetos sagrados etc.? E claro que a posse de objetos sagrados conten­
do neles a presença e os poderes dos deuses ou de Deus não dá a quem
os detém acesso ao poder político. A religião, as religiões tornaram-se
“assuntos privados”, e os objetos sagrados não têm poder público. Eles
são conservados e transmitidos no interior das comunidades particula­
res correspondentes às diversas confissões religiosas, cuja prática é re­
conhecida e protegida pelo Estado.
Mas as riquezas e o dinheiro, forma geral da riqueza, também não
proporcionam acesso direto ao poder político e à direção do Estado.
Sem dúvida, o dinheiro é necessário aos partidos políticos para fazer
campanha e convencer os cidadãos a votar em seus candidatos. Sem
dúvida, o dinheiro pode servir para “comprar” votos dos cidadãos, assim
como, sob a forma de donativos discretos de empresas e grupos parti­
culares de interesse, pode servir para comprar os favores de partidos e
de indivíduos que exercem o poder, seja ele local ou nacional.
Existem, portanto, limites jurídicos e constitucionais à extensão do
uso do dinheiro. Em uma sociedade na qual quase tudo pode ser ven­
dido ou comprado, os próprios indivíduos, as pessoas, não podem se
vender nem serem vendidos ou comprados por terceiros. Bem enten­
dido, pode-se vender partes de si mesmo, vender o próprio sangue, a
força de trabalho, as próprias competências. Uma mulher pode alugar
seu útero a um casal sem filhos e tornar-se mãe de aluguel. E este pro­
cesso de dissociação e comercialização de partes do ser humano corre
o risco de ir mais longe. Mas o corpo de um indivíduo permanece pro­
priedade sua, uma propriedade garantida pela lei e que ele jamais po­
derá transformar em mercadoria. Nem tudo é, portanto, “negociável”
em nossa sociedade de mercado. Os indivíduos como pessoas, como
singularidades corporais e espirituais, não podem figurar no mercado
como mercadorias, embora nele penetrem a cada dia como agentes

3 1 1
MAURICE GODELIER

econômicos. Pode-se privar qualquer um de sua liberdade levando-o à


prisão por dívida, mas não se pode vendê-lo para pagar suas dívidas.
Na Grécia antiga, ao contrário, e especialmente em Atenas até o
tempo de Solon, um homem livre poderia ser escravizado por dívida,
tornando-se propriedade de outrem. Depois das reformas de Solon, os
escravos em Atenas eram todos estrangeiros, gregos às vezes, mas so­
bretudo “bárbaros” capturados na guerra ou vendidos por seus clãs,
por seus chefes, a mercadores de escravos. No século XVIII, nos esta­
dos do sul dos Estados Unidos, os escravos eram negros comprados na
África ou nascidos lá mesmo. Mas na Grécia, como no Missouri, era o
próprio escravo que era comprado em bloco, e não o uso de sua força
de trabalho. E esta compra não era de forma alguma um contrato pas­
sado entre o senhor e o escravo, mas um acordo entre dois proprietá­
rios: um, do dinheiro, o que precisava de escravos; outro, dos escravos,
o que precisava de dinheiro. As relações comerciais na Grécia e na Roma
antigas tinham, portanto, uma extensão bem diferente da que têm hoje
na sociedade capitalista. Mesmo forçados, por falta de recursos pró­
prios, a trabalhar para outros, os indivíduos permanecem livres em
relação a quem os emprega.
Mas se o indivíduo como pessoa não pode ser transformado em
mercadoria ou em objeto de dom, é porque a própria Constituição, que
fundamenta o direito, não pertence às relações comerciais. Ela as funda­
menta, limita-as, não lhes pertence. A Constituição não é propriedade
de nenhum indivíduo enquanto tal, ela é propriedade comum, inalienável,
de todos aqueles que a seguem porque a escolheram, porque foi “vota­
da” por eles. A Constituição da República é um bem comum, público.
Ela pressupõe a existência de um coletivo de cidadãos, que a votaram.
Mas para isso é preciso que eles se comportem como cidadãos, e não
como súditos obedientes de um rei de direito divino, ocidental ou oriental.
Da mesma forma que os indivíduos como pessoas são inalienáveis,
presentes ao mesmo tempo dentro e fora da esfera das trocas comerciais,
assim também a Constituição é uma realidade social, um bem comum
que não pode, por essência, ser produto de relações comerciais. O

3 12
O ENIGMA DO DOM

“corpo” constituinte, o suporte da Constituição, é feito de todos os


cidadáos, mortos e vivos, que se sucederam sobre o território da Fran­
ça desde a primeira vez em que “o povo” se constituiu soberano, fonte
das leis. Esse corpo emergiu na época da Revolução Francesa, com a
primeira Assembléia Constituinte, e depois, de certa maneira, nunca
mais deixou de existir. No curso de dois séculos que vêm de escoar, a
Constituição mudou, o Estado assumiu diversas formas, monarquia
constitucional ou república, antes de fixar-se em sua forma republica­
na. Mas por trás de todas essas mudanças da Constituição, perdura o
mesmo corpo. O corpo constituinte é, portanto, uma realidade coleti­
va, indivisível, ideal e material, atravessando o tempo e atemporal, que
só desaparece se a democracia for duravelmente abolida. Não é mais o
corpo de Faraó, o corpo de um deus, é o corpo de um povo soberano
provisoriamente representado, encarnado pelo presidente da Repúbli­
ca: eleito por uma maioria de franceses — entre aqueles que votaram
—, o presidente, uma vez eleito, torna-se o presidente de todos os fran­
ceses. Torna-se por alguns anos o guardião da Constituição, o símbolo
da República. Sua função o coloca acima dos partidos, acima das fac-
çõès. Ele encarna provisoriamente a unidade e a identidade do Todo,
que é a nação, e do qual o Estado é apenas um instrumento, e não a
encarnação. Ele torna-se o ponto fixo.
O direito que funda os direitos dos indivíduos é, portanto, por es­
sência, coletivo. Ele é propriedade comum de todos aqueles que vivem
sob a mesma Constituição e a reconhecem como sua, propriedade
inalienável situada além da esfera das relações comerciais. É um dom
que os homens e as mulheres livres fazem a si mesmos e que funda­
menta não as suas relações íntimas, mas suas relações sociais públicas.
Vê-se por aí como o político tomou, em nossas sociedades, o lugar da
religião e como as Constituições que os povos dão a si mesmos são, de
certo modo, equivalentes aos objetos sagrados que os homens acredi­
tam ter recebido dos deuses para ajudá-los a viver juntos e a viver bem.
Ora, se a política tomou o lugar que outrora era ocupado pela religião,
ela corre doravante, e permanentemente, o risco de se sacralizar...

3 1 3
MAURICE GODELIER

O retorn o d o d o m e o d eslo ca m en to d o enigm a

Que lugar resta para o dom em nossas sociedades ocidentais? Nelas


ele não pode, evidentemente, desempenhar o papel que continua a
ter em diversas partes do mundo, e não apenas na Melanésia. Em
nossas sociedades, o dom não é mais um meio necessário para pro­
duzir e reproduzir as estruturas de base da sociedade. Por exemplo,
para se casar, um homem não tem de “dar” sua irmã ou uma mu­
lher, seu irmão. Não temos também de entrar em competições de
dons e contradons de riquezas para chegarmos ao poder político. O
dom existe, mas liberado de qualquer obrigação de produzir e re­
produzir relações sociais fundamentais, comuns a todos os membros
da sociedade.
O dom tornou-se objetivamente uma operação antes de mais nada
subjetiva, pessoal, individual. Ele é a expressão e o instrumento de
relações pessoais situadas além do mercado e do Estado. Na França,
ele continua, é claro, a ser praticado lá onde é costume há séculos:
nas relações de parentesco e de amizade. Entre próximos, parentes
próximos, amigos próximos, ele permanece como uma obrigação. E
testemunha esta proximidade pela ausência de cálculo, pela recusa
de tratar os próximos como meios a serviço de seus próprios fins.
Assim, em nossa cultura, o dom continua a derivar de uma ética e de
uma lógica que não são as do mercado e do lucro, e antes se opõem,
resistem a elas.
Todos têm na memória os velhos adágios populares que dizem que
“entre parentes não se fala de dinheiro”, que é “o melhor meio de in­
dispor as famílias” etc. Tudo se passa como se o dinheiro fosse mortal
para os sentimentos, matasse a afeição. De fato, o dinheiro não é o
culpado, ele é apenas a aparência, o cavalo de Tróia de interesses par­
ticulares divergentes, senão opostos, que em geral são recalcados, con­
tidos para manter a fachada ou a realidade de uma comunidade
solidária. O dom subjetivo se opõe, é certo, às relações comerciais, mas
carrega sempre os seus estigmas. Pois no imaginário dos indivíduos e

3 14
0 ENIGMA 00 DOM

dos grupos ele se apresenta um pouco como o inverso sonhado, como


o “sonho invertido”10 das relações de força, de interesse, de manipula­
ção e de submissão pressupostas pelas relações comerciais e pela busca
do lucro de um lado, pelas relações políticas, pela conquista e pelo exer­
cício do poder do outro. Ao idealizar-se, o dom “sem interesse” funciona
no imaginário como o último refúgio de uma solidariedade, de uma
generosidade na partilha que teria caracterizado outras épocas da evo­
lução da humanidade. O dom torna-se um portador de utopia (de uma
utopia que pode se projetar tanto para o passado quanto para o futuro).
E este sonho estava em Mauss, ele que, ao sair da guerra de 1914,
contava com o Estado e com a generosidade dos ricos para que nossas
sociedades ocidentais pudessem retomar o caminho do progresso social,
recusando-se a ficar prisioneiro, segundo suas próprias palavras, “da
fria razão do comerciante, do banqueiro e do capitalista”11. Mauss so­
nhava com um mundo onde os abastados seriam generosos e o Estado
voltado resolutamente para a construção de uma sociedade mais justa.
Ele combatia dois adversários: o bolchevismo e o capitalismo sem freios,
o liberalismo.
Hoje já não é esta a questão. O bolchevismo, que dera origem ao
socialismo à russa ou à chinesa e às “democracias populares”, desa­
bou. Parece, entretanto, que levou para a tumba duas idéias que ele
mesmo havia traído, depois de ter dado, por um pequeno instante, a
impressão de portá-las: a idéia de que a democracia pode ser realmen­
te exercida por todos e de que pode, ela própria, ultrapassar o quadro
do político e penetrar na esfera do econômico. Hoje, essas idéias

'“Segundo a bela fórmula de André Petitat em “Le don: espace imaginaire, normatif
et secret des acteurs”, Antbropologie et Sociétés, vol. 19, nos 1 e 2, 1995, p. 18,
número especial intitulado “Retour sur le don”. André Petitat junta seus esforços
aos despendidos há anos por Alain Caillé e pelos colaboradores da revista Mauss
(esforços aos quais desejamos render homenagem aqui) para criticar o utilitarismo
e devolver um lugar na vida às relações, aos princípios de pensamento e de ação
não-comerciais.
"Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 270.

3 15
MAURICE GODELIER

parecem ter ressurgido da terra e subido aos céus das utopias, e o ve­
lho mito do liberalismo econômico, da fé nas virtudes do mercado e
da concorrência como as únicas instituições capazes de regular os pro­
blemas essenciais da sociedade, voltou à tona.
A eficácia do capitalismo não consegue impedi-lo de acumular
excluídos — indivíduos, nações — e de aumentar fraturas (sociais) e
fossos (entre as nações). O Estado deveria representar todas as partes
da sociedade e teria como missão governá-la de maneira que os confli­
tos de interesse, as contradições que se desenvolvem entre algumas
destas partes, não a impeçam de se reproduzir como um todo e, menos
ainda, não excluam desse todo uma parte da sociedade. Ora, hoje o
Estado tenta desengajar-se não apenas da economia, mas também da
saúde, da educação, ou parece pelo menos ter cada vez mais pressa em
fazê-lo. É nesse contexto de fim de século que o dom generoso, o dom
“sem retorno”, é solicitado de novo, desta vez com a missão de ajudar
a resolver problemas de sociedade. As organizações caritativas multi­
plicam-se, ao passo que Mauss, já no início do século, considerava a
caridade “ofensiva para quem a aceita12”. Mas a caridade de hoje ser­
ve-se dos meios de hoje. Ela utiliza a mídia, burocratiza-se e, no Oci­
dente, nutre-se, através das imagens da televisão, de todas as desgraças,
de todos os males, conjunturais ou duráveis, que surgem nos quatro
cantos do planeta.
O dom no Ocidente recomeça, assim, a ultrapassar a esfera da vida
privada e das relações pessoais em que estava encurralado na medida
em que se estendia a ascendência do mercado sobre a produção e as
trocas e aumentava o papel do Estado na gestão das desigualdades. Mas
hoje, diante da amplidão dos problemas sociais e da incapacidade
manifesta do mercado e do Estado de resolvê-los, o dom está em via
de voltar a ser uma condição objetiva, socialmente necessária, da re­
produção da sociedade. Não será o dom recíproco de coisas equiva-

l2Ibíd., p. 258. Mauss retoma aqui as palavras de uma surata do Corão à qual ele
se refere: surata II, 265.

3 16
O ENIGMA DO DOM

lentes. Não será também o dom potlatch, pois aqueles a quem os dons
serão destinados terão muita dificuldade em “retribuir”, que dirá em
retribuir mais.
O dom caritativo está, portanto, em via de institucionalizar-se de
novo. Mas o dom não é a Terra Prometida. Ele pode servir para espe­
rar, mas não podemos esperar tudo dele, pois apenas os deuses dão
tudo ou tudo deram, precisamente, porém, porque não eram homens13.
O dom há de servir, mas esperando o quê?
Nós estamos em uma sociedade cujo funcionamento mesmo sepa­
ra os indivíduos uns dos outros, isola-os em suas famílias e só os pro­
move opondo-os uns aos outros. Estamos em uma sociedade que libera,
como nenhuma outra o fez, todas as forças, todas as potencialidades
adormecidas no indivíduo, mas que também leva cada indivíduo a
dessolidarizar-se dos outros, servindo-se ao mesmo tempo deles. Nos­
sa sociedade só vive e prospera, portanto, ao preço de um déficit per­
manente de solidariedade. E ela só imagina novas solidariedades se
negociadas sob a forma de contrato. Mas nem tudo é negociável naquilo i

13Talvez esse desejo sublime tenha sido o que levou Jacques Derrida, em sua obra ’
Donner le temps (Paris, Galilée, 1991), a decretar: “A bem dizer, o dom como
dom não deveria aparecer como dom nem para o donatário, nem para o doador”
(p. 26). “Nesse sentido, o dom é o impossível. Não impossível, mas o impossível.
A própria figura do impossível” (p. 19). O verdadeiro dom seria o dom de alguém
que, sem razão, dá sem saber que dá a alguém que nunca ficaria devendo nada,
pois não saberia que lhe deram. Mesmo Cristo tinha uma razão para dar a vida.
Ele o fazia por amor dos homens. Compreende-se que Jacques Derrida, tendo
analisado o dom sob este ângulo, pense que sua abordagem afasta-se totalmente
da tradição e antes de tudo de Mauss, sobre o qual ele escreve: “Poderíamos até
dizer que um livro tão monumental quanto o “Essai sur le don” de Mareei Mauss
fala de tudo, exceto do dom: ele trata da economia, da troca, do contrato, da
oferta, do sacrifício, do dom e do contradom, ou seja, de tudo aquilo que na pró­
pria coisa leva ao dom e a anular o dom” (p. 39). “Seria o mesmo que perguntar,
em suma, de que e de quem fala Mauss afinal” (p. 41) (grifado por J. Derrida). A
tarefa de desconstruir um objeto para torná-lo mais inteligível antes de recons­
truí-lo com base em novas hipóteses é aqui levada ao absurdo, pois no fim do
empreendimento o objeto desconstruído encontra-se inteiramente diluído.

3 17
MAURICE GODELIER

que estabelece laços entre os indivíduos, que compõe suas relações,


públicas e privadas, sociais e íntimas, naquilo que faz com que vivam
em sociedade mas tenham também que produzir sociedade para viver.
No entanto, os limites da negociação social são claros. E possível
imaginar uma criança assinando um contrato com seus pais para nas­
cer? Tal idéia é absurda. E seu absurdo mostra que o primeiro laço entre
os humanos, aquele do nascimento, não é negociado entre as pessoas
que ele envolve. E, no entanto, é sobre esses fatos incontornáveis que
nossa sociedade tende a silenciar.

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