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Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
CONFLUÊNCIAS E TRANSFLUÊNCIAS
NO TERECÔ,
RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA DE CODÓ, MARANHÃO
2018
CONFLUÊNCIAS E TRANSFLUÊNCIAS
NO TERECÔ,
RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA DE CODÓ, MARANHÃO
Fevereiro
2018
ii
iii
iv
- Ondjaki (2011)
v
AGRADECIMENTOS
amizade: há preferências que seja húmida, pois
mundo está isolar pessoas; assim amizade procura
por ela que pessoas se escorreguem para algum
encontro.
- Ondjaki (2011)
Talvez para o leitor a seção dos agradecimentos seja um tanto repetitiva, pois ela toca
muito mais as pessoas envolvidas em um processo intenso e que via de regra fica restrito aos
bastidores da produção acadêmica; particularmente, gosto bastante de ler essa parte que
antecede os argumentos de uma dissertação ou de uma tese, e junto com isso imaginar a
jornada que culminou naquele estudo. Por outro lado, escrever na direção das pessoas todas
que nos sustentam ao longo da empreitada que constitui a escrita é parte especial da escrita,
momento de rememorar afetos, felicidades e dificuldades superadas.
vi
tenda Santa Bárbara. Aos encantados, voduns, orixás e santos que povoam as encantorias. A
seu Wildelano e dona Fátima, por me mostrarem Codó a partir da União Artística que carrega
história tão nobre e importante para as comunidades trabalhadoras de Codó. À rezadeira
Mariana pelo bom humor e o leque enorme de histórias para contar. A dona Julia, dona
Iracema, seu Pedro d'Oxum, Claudia, Raifran, Zé de Brito, e todos os pais, mães e filhos de
santo que me apoiaram desde a minha chegada em Codó em 2014, compartilharam comigo
momentos muito especiais e me ensinaram muito sobre o terecô e seus saberes sobre a vida. A
Cândido Sousa pelo excelente trabalho documentando as manifestações culturais
maranhenses. A Edmilson, mototaxista das estrelas, sempre viabilizando a presença nos
festejos.
Agradeço à AUCAC, Mãe Nilza, Marcelo Senzala, Beth d'Oxum, Socorro, Chica e
todas as pessoas que sonharam a organização que me levou a conhecer Codó de uma maneira
privilegiada, convivendo intensamente com o povo de terreiro, os jovens integrantes dos
grupos culturais, os movimentos ligados a manifestações de matriz africana e fizeram daquela
uma experiência verdadeiramente transformadora.
Ao Coletivo Núcleo pelas trocas sempre intensas e por nunca esquecer que "somos
movimento". A Dácia Abreu pela amizade, os ensinamentos e a companhia. A Noelson
Moreira Trindade pelo companheirismo desde os meus primeiros dias em Codó, por fazer
companhia nas noites viradas nos festejos, as fotos preciosas e a generosidade que o fizeram,
além de tudo, um valoroso assistente de pesquisa.
vii
A Luiz Antonio Simas, que me incentivou a fazer a prova do Museu, por todos os
aprendizados. A Daiane Ciriáco e Margarida Mattos pela grande ajuda nos dados sobre a
cidade e a população de Codó. A Bianca Arruda por todo o incentivo e por gentilmente abrir
caminho.
Por aceitarem compor minha banca, agradeço a Martina Ahlert - que, além de tudo,
junto de Conceição Lima, me recebeu em São Luís - e a Maria da Consolação Lucinda, em
uma "coincidência" muito produtiva. A Clara Flaksman e Luisa Elvira Belaunde por
igualmente aceitarem compor minha banca como suplentes e pelas boas trocas constantes. A
Gabriel Banaggia pelos comentários sempre muito instigantes e a disposição generosa em
compartilhar ideias.
viii
tinha aprendido. Em particular ao contramestre Leandro Bicicleta, que é minha grande
referência na capoeira, com a humildade de aprender constantemente com seus alunos e se
reinventar, assim como a paciência infindável para trocar ideia sobre debates acadêmicos,
saberes tradicionais ou tipos de cerveja, sempre com fundamento e bom humor. A Ludmilla
Almeida pelo espaço de fortalecimento e trabalho sensível que alimenta a alma daqueles que
se aproximam.
A todos os meus amigos. Flora Barcellos, que me abriu as portas para Codó, Marcelo
Spolidoro, Camila Issa e Catarina Pedroso. A Ana Paula Braga por me ajudar a fluir. A
Luciana Schirmer, Marcela Americano, Tamires Alves, Flavia Trizotto, Luisa Mizarela, Luisa
Henke, Laís Dias, Mariana Solis, Bruna Bevilacqua, Fernanda Pougy, Julia Parada e a toda
essa lista imensa de pessoas muito amadas que se fazem presentes de formas tantas e com
quem aprendo constantemente.
À minha família, agradeço na figura de minha bisavó Damiana, que nos ensinou
"quem tem o conhecimento, tem o poder" e fez com que perseguíssemos arduamente os
estudos com o senso de responsabilidade coletiva sempre alerta, para que nunca nos
esqueçamos dos passos que abriram os nossos caminhos. A meu pai Eloá, minhas tias Edmar,
Elmar e Einar, meus irmãos Eliana, Adriana e Paulo Vicente, meus sobrinhos Jorge e Julia. À
Tenda de Umbanda Casa de Celina pelos meus primeiros ensinamentos acerca da Umbanda e
das religiões de matriz africana.
À Cristina Pimentel da Silva, minha mãe, meu guia, minha amiga, meu suporte, que
sempre me apoiou, mesmo quando não entendia as viradas no caminho. Por ser quem é e
ajudar a me fazer quem eu sou.
ix
Resumo
x
Abstract
xi
Convenções
A grande maioria dos textos em língua estrangeira foram por mim traduzidos para o
português, na intenção de tornar a leitura mais acessível. Em itálico estão os termos utilizados
por meus interlocutores, incluindo aí as falas e as doutrinas, ladainhas, rezas e canções em
geral que registrei nessa convivência. Optei por grafar em itálico particularmente os termos
referentes às religiões tambor da mata e tambor de mina - assim como seus sinônimos, mata e
mina, para diferenciá-las do instrumento tambor (que pode ser da mina ou da mata) ou da
mata enquanto vegetação/localização geográfica, e assim facilitar a leitura. Não utilizo esse
recurso para as demais religiões (catolicismo, umbanda, candomblé, etc) por julgar que não
demandavam essa diferenciação. Utilizo as aspas duplas para indicar conceitos, falas e
citações de outros autores, ou para indicar alguma relativização ou destaque do termo. Dentro
das citações, no entanto, busquei respeitar as opções feitas pelos autores no original.
xii
Lista de Figuras e Fotos
xiii
Sumário
Introdução 1
3. Encontros e Misturas 92
Conclusão 106
Referências 111
Anexo I 119
xiv
Introdução
Começo pedindo licença aos Orixás e Encantados, aos ancestrais e entidades, assim
como aos pais e mães de santo de Codó e aos brincantes que compartilharam comigo parte do
seu mundo. Inicio assim esta introdução não por mera formalidade pela qual passamos
rapidamente para prosseguir no que seria "mais importante". Tomo a expressão na seriedade
que ela impõe, reafirmando uma conexão incontornável com as pessoas - incluindo aí as
entidades - com aqueles e aquelas com quem convivi em campo e que, no compartilhar de
suas visões de mundo, me deram autorização para falar do terecô. Tal conexão não se
restringe ao campo, mas se desdobra em diversos níveis. A encantada cabocla Mariana certa
feita me disse: "Você está num trabalho com a gente, você sabia? Você está num trabalho
com a gente. Só em você pesquisar, escrever, você está com a gente.".
A fala da cabocla sublinha aquilo que talvez pareça óbvio, mas, penso, temos muito a
ganhar em considerar seriamente as implicações: a escrita de um trabalho acadêmico não se
descola dos diferentes modos de produção de conhecimento expressos nas mais variadas
formas espalhadas pelo mundo e nem paira acima das consequências daquilo que é enunciado
- nem para si, nem para "os outros".
Desse modo, assim como nos lembra Stengers (2007) a partir de uma ideia de
Deleuze, é preciso escrever em presença de, ou seja, na presença daqueles que de algum
modo enfrentam as consequências daquilo que é enunciado. O ato de escrever em presença,
uma presença “ativa, objetante, proponente”, que nos faça hesitar diante das fórmulas rápidas
que tendem a laminar as divergências e têm o mau costume de ignorar as assimetrias
presentes e que, por outro lado, nos leve a considerar o impacto ético, político e filosófico dos
saberes não-hegemônicos (ou contra-hegemônicos), no sentido de “experimentar uma outra
relação com o discurso e práticas nativas, suas possibilidades de emergência no espaço
acadêmico” (Anjos 2008: 78). A esse respeito, vale recordar que em Codó se diz que os
encantados vem sempre que seus nomes são mencionados e que há consequências caso não
gostem daquilo que é dito sobre eles (M. Ferretti 1993; Lima 2017). Assim, trata-se de
"[c]olocar uma filosofia não-ocidental numa posição de simetria com as filosofias ocidentais
[e] fazê-la ressoar no interior do discurso antropológico. Na linguagem dos terreiros seria
1
fazer com que a filosofia nativa se ocupe da antropologia como um espírito se ocupa de um
cavalo de santo." (Anjos 2008: 78).
Por tal perspectiva, pedir licença tomada como uma "filosofia no sentido de
especialização erudita de um pensamento sobre o mundo" (Anjos 2008: 79), é expressão que
aciona múltiplos significados e implicações; a prática é muito presente em comunidades
negras onde se cultiva o costume de pedir licença1 aos mais velhos, ou seja, aqueles que
vieram antes, mas também àqueles que se debruçaram antes sobre o assunto a ser comentado
1
É comum que nas manifestações de matriz africana haja músicas que façam referência a "pedir licença". Por
exemplo: "Dona da casa me dê licença/Seu salão para vadiar", "Dá licença aê/Dá licençá/Dá licença meu povo
de rua, meu povo angoleiro/Eu quero vadiar" (corridos de capoeira); "Dá licença aí/Dá licençá!/Aos donos da
casa/Peço licença pra jongar" (ponto de abertura de jongo); "Dona da casa me dê licença/Pra falar com a
senhora/Pra falar na língua ligeira/Passei na roseira/Peguei uma rosa/Dei meu amor (pra cheirar)/Óia dei meu
amor (pra cheirar)" (samba de roda); "Oi bom dia, boa noite, meus senhor/Me dê licença esses cavaleiros/Eu
venho de longe, eu venho/Maculelê, nós é brasileiro" (maculelê).
2
ou que habitam ou adentraram o território que vai ser tocado com o que será enunciado a
seguir. Pede-se licença, por vezes, também aos mais novos, o que nos leva a pensar que há a
consideração sobre quem vem depois e que habitará um mundo marcado por aquilo que já foi
enunciado - lembrete de que as consequências das palavras e das ações continuam
reverberando e se desdobram no tempo. Bá nos contou que "[e]m todos os ramos do
conhecimento tradicional, a cadeia de transmissão se reveste de uma importância primordial"
(2010: 181). Expressa-se, assim, a consciência de estar-se adentrando um espaço habitado e
aproxima-se o que será enunciado daquilo que já foi construído e vivido anteriormente, mas
também do que virá a ser. Nesse sentido, o pedir licença expressa respeito, mas também age
como lembrete das implicações e da necessidade de atenção e cuidado ao adentrar um
território já habitado. Pedir licença é, portanto, outro modo de nos lembrar da necessidade de
falar ou escrever em presença de não no sentido de uma questão moral, mas sobretudo como
procedimento epistemológico.
2
Sobre os pedidos de licença, Mãe Hilsa Mukalê conta: “Porque eu sou do tempo que quando a gente ia em um
candomblé, chegava e esperava na porta. A mãe ou o pai-de-santo via a gente, os atabaques paravam, dobravam
os couros e de lá de fora os tatas cantavam, primeiro, três licenças, “Oi dai-me licença, oi dai-me licença, alô
de…” Aí dizia o nome do inquice. Depois que cantavam essas três, cantavam uma zuela, um barravento, que é a
mesma que cantamos no início dos nossos toques, quando me chamam para entrar. Aí é que a mãe-de-santo
entrava com a comitiva dela toda. Entrava, louvava o fundamento da casa, depois os atabaques; falava com o
dono da casa, depois com o pessoal todo e acomodava as pessoas. Todos sentavam e apreciavam o candomblé, o
xirê da casa todo. Só depois que a pessoa acabava de fazer o xirê é que oferecia para as visitas. As pessoas que
quisessem cantar, cantavam, dançavam e ajudavam a fazer o candomblé” (Mukalê 2011)
3
questão é mais de "lapidação" do que de produção, de modo que é possível perceber o
candomblé como uma forma de arte que cria objetos, pessoas e deuses - atravessa-lhe,
entretanto, uma grande particularidade, já que os "entes já existem antes de serem criados, o
que faz com que o processo de criação envolvido só possa ser entendido como a revelação das
virtualidades que as atualizações dominantes contêm, no duplo sentido do termo" (2009: 134).
Ouso dizer que, além de objetos, pessoas e deuses, criam-se também formas singulares de
relação, elementos postos em uma composição que exige um saber profundo, construído ao
longo de muito tempo.
Por esse ângulo, não creio que a fala esteja no sentido de que o trabalho acadêmico
seja exatamente o mesmo que um trabalho espiritual, nem mesmo que haja a necessidade de
completar algo em falta naquele contexto; a questão me parece mais se referir a algum tipo de
composição que aproxima os elementos em jogo de tal maneira que é preciso ter em mente os
efeitos mútuos produzidos nessa relação. No caso, a cabocla me chama à responsabilidade
quanto ao que escreverei e reafirma que a presença daqueles entes todos acompanha essa
escrita; em contrapartida, o que faço também ecoa no universo dos terecozeiros, em uma
propagação que não sou capaz de medir - apenas meus amigos de Codó podem dizer. Mesmo
assim, talvez seja impossível alcançar uma explicação ou rastrear os desdobramentos que
dêem conta da totalidade dessa relação e dos efeitos produzidos por esse encontro; sem
dúvidas fica a lição que traz para o centro a arte de se encontrar e de levar o encontro a sério.
É certo, ainda, que esse fazer negro que constitui o pedir licença perpassa toda a
minha relação com o campo e vai além. Frequentemente ouvia que "se você procurar, tem
parente, algum antepassado aqui em Codó, tenho certeza", o que se somava ao fato de que
Vera me apresentava como parte de sua família, muitas vezes como sua filha - para além dos
traços fenotípicos, essas relações me colocavam em um lugar que não exclusivamente o de
professora ou pesquisadora. No entanto, penso que quanto mais estreitos os laços, maiores os
cuidados e por isso mesmo pedi licença muitas vezes - sem que tivesse elaborado de início
todos esses desdobramentos, mas ciente da necessidade de deixar explícitos os meus objetivos
(e eventualmente algum "excesso de cuidado" era respondido com "como você é tímida! vem
aqui, pode ouvir, pode gravar e contar o que você viu" ou alguma frase análoga). Pedido esse
para registrar algo, para lembrar sobre a intenção de incluir alguma informação ou situação
vivida na pesquisa ou por força de um fazer que me ultrapassa e marca minhas interações
justamente porque é traço de um fazer coletivo que expressa respeito ao adentrar a casa de
4
alguém - casa aí em um sentido amplo, talvez aquele dos territórios existenciais habitados. Tal
prática ressoa ainda na habilidade de conduzir essa arte do encontro onde os cuidados são
necessários para que as misturas não se tornem amálgamas laminadores das diferenças, como
veremos adiante. Assim como peço licença para entrar nas tendas de Codó - costume sempre
muito bem visto, embora via de regra ninguém seja mal recebido -, para entrar em uma roda
de capoeira ou na casa de alguém, tal prática atravessa meu deslocamento pelo mundo, não
por uma perspectiva essencialista ou superficialmente identitária, mas justamente pelo que diz
Anjos: "os corpos não têm raças, raças são perspectivas que circulam por uma multiplicidade
de corpos". Raça como o lugar "de onde emanam as perspectivas" ou os espíritos, esses
"pontos de vista que encarnam corpos" (2008: 78).
Por fim, talvez provoque algum estranhamento a transposição de uma prática utilizada
por ocasião de comunicações orais para a forma de um texto, uma dissertação. Souza Pinto
(2015: 36-37) propõe pensar a relação entre os domínios da oralidade e da escrita enquanto
movimento, com base na ideia de "obviação" de Wagner (2015). De outra parte, Bá já
afirmou que
Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no
próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o
cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor
ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo." (Bá 2010: 168)
Desse modo, "sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda
manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como
sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma" (2010:
172). Falam os corpos, os espíritos, a língua e o texto acadêmico. À luz dessas ideias, espero
fazer desta dissertação "um espaço de ressonância do discurso político-filosófico afro-
brasileiro" (Anjos 2008: 78). Para tanto, pretendo fazer um movimento de hesitação diante de
um campo - o da literatura acerca das religiões de matriz africana e mais especificamente o
Maranhão e o terecô - marcado pelo risco de colar automaticamente dinâmicas próprias de
outros contextos que à primeira vista parecem semelhantes, mas que não dão necessariamente
conta dos processos que ocorrem em Codó, como veremos mais à frente ainda nesta
introdução.
5
Faço, portanto, uma breve descrição do terecô e da cidade de Codó, sem qualquer
pretensão de esgotar o tema, que aprofundaremos ao longo desta dissertação. O tambor da
mata é religião de matriz africana, organizada em tendas comandadas por pais e mães de
santo. O ritmo da mata é predominante nos toques, que chegam a durar várias noites seguidas.
Na narrativa local, a comunidade quilombola de Santo Antônio dos Pretos3 é o berço do
terecô, que teria nascido pelos idos do século XVIII. A cidade de Codó é considerada centro
fundamental para a religião, também identificada como brinquedo de Santa Bárbara,
Verequete, encantaria de Barba Soeira, tambor da mata ou mata. Trata-se de religião de
possessão que concebe a incorporação sobretudo de encantados da mata, pessoas que viveram
e que não morreram, mas em dado momento desapareceram e se encantaram. Tais entidades
formam um conjunto heterogêneo de seres que, além da incorporação, podem ser notados em
sensações, sonhos ou ainda se materializar em lugares e objetos (Ahlert 2016). Há uma
intensa circulação entre as tendas através da prática de pagar visita ou pagar noite, já
explicitada em outros trabalhos (Ahlert 2013; Lima 2017), onde uma casa vai ao festejo de
outra para que quando for sua vez tenha também muitos convidados, como veremos adiante.
3
Santo Antonio dos Pretos é um povoado situado a cerca de 60km da cidade de Codó e consiste em uma
comunidade quilombola titulada. Há um grande número de comunidades quilombolas nos arredores e Santo
Antonio figura como uma das maiores em termos de número de moradores, além de ser conhecida nas narrativas
locais como espaço de nascimento do terecô e fonte de uma energia muito forte.
6
Codó, cidade encantada
4
Em 2017, a estimativa era de 120.810 pessoas.
5
Dados retirados do sistema SIDRA/IBGE e do IBGE Cidades, com base no Censo de 2010.
6
Abordada por M. Ferretti, 2001, Barros, 2000, e Ahlert, 2013.
7
município, além de 5 paróquias católicas, 2 centros kardecistas e cerca de 30 diferentes
denominações evangélicas de variados tipos, de acordo com estimativa da Secretaria de
Cultura e Igualdade Racial local (Ahlert 2013: 23)7. A primeira casa de candomblé data da
década de 1980, sendo cinco existentes atualmente, das quais quatro tocam também o tambor
da mata e de mina (2013: 23). Destaque-se que as denominações atinentes às religiões de
matriz africana partem da autoidentificação das tendas e seus componentes e não implica em
uma rigidez absoluta: como se costuma dizer em Codó, mesmo os terreiros de candomblé
batem terecô, pelo menos de vez em quando.
Conta-se que a chegada da umbanda remete ao final da década de 1930 através da mãe
de santo Maria Piauí, fundadora da Tenda Espírita de Umbanda Santo Antônio (há alguma
divergência em torno da data de sua fundação8) e cuja chegada na cidade teria disseminado o
termo umbanda para descrever as demais tendas existentes, mesmo que tocassem
exclusivamente o toque da mata (M. Ferretti 2001 et al apud Ahlert 2013). É comum a prática
de denominar as casas existentes em Codó com variações da fórmula “tenda espírita de
umbanda”, nada obstante a variedade de práticas abarcadas. De maneira geral, a explicação
que voga em Codó acerca desse processo diz tratar-se de mecanismo utilizado para ter
legitimidade e se proteger das perseguições policiais comuns no início do século XX9. Seu
Pedro d'Oxum me explica que há uma atuação no plano das burocracias e formalidades, de
modo que "quem vai responder pela religião é a umbanda", mas que isso não implica em
nenhuma mudança nas práticas das casas de terecô. Por outro lado, a umbanda leva "um
7
Nos dados de 2010 do IBGE, a grande maioria da população consta como católica apostólica romana (98.439),
e há ainda 13.162 evangélicos entre diversas denominações, 78 espíritas, 447 umbandistas, 203 candomblecistas
e 159 declarados como sem determinação ou de múltiplo pertencimento, entre outras categorias.
8
Dona Iracema, sua herdeira, contou a Ahlert (2013: 275) que Maria Piauí chegou a Codó a convite de Eusébio
Jansen, tido como pai de santo da primeira tenda de terecô da cidade (no perímetro urbano). Segundo o Instituto
Histórico e Geográfico de Codó, a tenda da mãe de santo foi fundada em 1938; Costa Eduardo (1948), que fez
campo na região nos anos 1940, não encontrou casas abertas na cidade (mas presenciou uma "brincadeira"
organizada na praça para que o pesquisador pudesse ver), o que não implica necessariamente na ausência,
sobretudo considerando-se a intensa perseguição policial que sofriam os praticantes de terecô; M. Ferretti (2001:
81) fala em 1936 e 1948, com base em informações divergentes encontradas. A autora diz também que
"[s]egundo Pai Crispim, sucessor daquela mãe-de-santo, alguns anos após a abertura de seu terreiro em Codó,
Maria Piauí foi 'confirmada' na Mina, em São Luís, por Noêmia Fragoso, fundadora do Terreiro do Cutim
(cambinda), e passou a tocar Mina e Mata em sua casa, em dias diferentes. A integração da Mina com a Mata
(Terecô), num mesmo ritual, parece ter ocorrido primeiro no terreiro de Bita do Barão que, como o de Maria
Piauí, foi aberto dentro dos 'preceitos' da Mata." (1993: 140). Dona Maria dos Santos me contou que alcançou
baiar nesses terreiros (de Eusébio Jansen e Maria Piauí) e "antes era tudo terecô" até que Maria Piauí se fez na
umbanda com uma mulher que veio de Teresina.
9
Encontra-se explicação semelhante acerca da dinâmica dos terreiros de São Luís. Segundo M. Ferretti, "[a]
perseguição policial obrigou os curadores de São Luís a estabelecerem-se em sítios afastados e realizarem ali
seus rituais. E, segundo os pesquisadores Maria do Rosário SANTOS e Manuel dos SANTOS NETO (1989:
119), como a Mina era menos perseguida, os 'pajés' começaram a "mascarar-se" de 'mineiros' e a abrir terreiros
com 'linha' de Mina e de Cura." (1993: 90).
8
pouco das outras religiões afro" para dentro de suas práticas (Entrevista Pedro d'Oxum,
22/04/2017).
Ahlert (2013: 84-86) trata deste ponto afirmando que os termos umbanda e terecô são
constantemente utilizados como sinônimos, tendo em vista que todas as tendas de umbanda da
cidade tocam pontos de terecô e recebem entidades da mata, ainda que em um segundo
momento haja diferenciações internas a depender das entidades com que cada casa trabalha.
Seus interlocutores também aproximam os dois termos em contraponto ao candomblé,
percebido como aquele que trabalha apenas com orixás. A autora afirma ainda que essa
miríade de categorias e possíveis relações podem provocar estranhamento aos desejos
classificatórios e que as associações entre todas as vertentes que aparecem em Codó
(umbanda e tambor de mina, tambor de mina e terecô, terecô e umbanda, candomblé e terecô)
e as percepções sobre elas variam de acordo com a concepção e as experiências de cada pai e
mãe de santo. Nesse sentido, “[a] digressão etimológica e as tentativas classificatórias estão à
mercê da experiência de cada um dos sujeitos e a forma com que esta experiência se cruza
com a de outros pais de santo.” (Ahlert 2013: 86).
9
Associação havia aprovado junto a diversos órgãos11. Assim que cheguei à porta da sede, após
uma viagem até Teresina e de lá, de carro, por cerca de 2h30 até Codó, três mulheres me
aguardavam: Socorro, Rejane e Vera. Irrequietas com o fato de que eu era de fora e, por isso,
não deveria dormir sozinha12 logo na primeira noite, decidiram que eu deveria ser recebida
pela Vera naquela noite. No caminho da casa de minha anfitriã paramos no espaço em que seu
filho, Moisés, ensaiava com o grupo de boi mirim Encanto Codoense.
Boa parte das oficinas nas quais me envolvi orbitavam em torno de temas étnico-
raciais, o que me levou, logo de início, a adentrar questões que raramente estavam em pauta
nas conversas da cidade. Sempre me surpreendia o hábito das pessoas em se referirem umas
às outras como morenas em lugar de se dizerem negras. "Fala com aquele ali, aquele bem
moreninho". Nas narrativas em geral, quando alguém abordava a história de Codó, tratavam
do momento em que chegaram os barcos pelos rios que banham a cidade - Itapecuru e
Codozinho -, trazendo comércio, expulsando as comunidades indígenas que ali habitavam e
11
À época a AUCAC havia aprovado vários projetos em editais ligados sobretudo ao Governo Federal,
oferecidos pelo MinC, Fundação Palmares, Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Direitos Humanos, entre
outros.
12
Durante uma parte do tempo em que trabalhei na AUCAC, morei em um dos quartos que compunha a casa
que servia de sede à organização.
10
conduzindo à força africanos e seus descendentes em condição de escravizados13. Uma vez
decretada a abolição, os antigos senhores de engenho teriam abandonado as terras para
aqueles que trabalharam nela. Afora isso, e tendo em vista que a história era sempre contada
de uma perspectiva distante, como uma página antiga e virada, dificilmente alguém tocava no
tema. Mesmo as minhas perguntas acerca dos quilombos da região vez ou outra provocavam
um certo estranhamento. O tempo deixou evidente que aquelas regiões eram quase sempre
descritas como os interiores, mas uma associação automática com um passado de escravidão
e lutas era muitas vezes tomada, em maior ou menor grau, nas mesmas bases da reação ao
comentário sobre os meus antepassados, como vou contar a seguir.
Certa vez comentava com uma amiga sobre o esforço que minha irmã empreendia
para recontar a história de nossa família, partindo das memórias de nossa tia-avó e recorrendo
ao auxílio de amigos historiadores e antropólogos para recompor os elementos que resultaram
em um livro14. Quando mencionei que ela havia conseguido rastrear nossos passos de modo a
descobrir a região de onde nossos avós foram arrancados para serem escravizados em terras
brasileiras, minha amiga estancou e perguntou de supetão: "mas como assim? você acha que
seus avós foram escravos?". O silêncio contundente que se estabeleceu na procura pelas
palavras que se seguiriam àqueles segundos de espanto mútuo evidenciou a torrencial
sucessão de pensamentos; enquanto me atravessava a sensação de ter inadvertidamente tocado
em uma ferida aberta somada à cortante constatação de que dificilmente a realidade poderia
ser outra, seus olhos revelavam que a pergunta havia encontrado resposta quase que
instantaneamente, como se algo que sempre estivera esquecido nos porões do espírito
encontrasse violentamente a luz, gerando a necessidade doída de adaptar o foco para que
fosse possível continuar a ver naquele novo cenário que a partir de então não se permitiria
mais ocultar.
13
Os habitantes originários da região eram indígenas das etnias barbados e guanarés (Machado 1999; Abreu
2010) - às quais os grupos Bumba Boi costumam fazem referência - e foram expulsos por agricultores como Luís
José Rodrigues, ou Pau Real. "O ano de 1780 foi o considerado para o comêço das explorações das florestas,
quando os mais antigos lavradores transportaram-se para o município em barcos, onde os escravos eram também
conduzidos a fim de ajudarem na exploração. A imigração africana chegou de 1780 a 1790, enquanto que os
portuguêses começaram a afluir no municípioem 1855 e os sírios em 1887. (...) Os portuguêses e os africanos se
aplicavam à lavoura e os sírios ao comércio." (IBGE 1959: 149). Ahlert afirma que a memória e as narrativas
sobre a criação da cidade "contam sobre a invenção de uma localidade, que nasce católica e precisando da
proteção dos santos diante de grupos – negros e indígenas que viviam foragidos e escondidos na perigosa mata.
Nestes momentos que se tornam marcos de fundação da cidade, a religião e a política se mostram imbricadas,
formando um contexto político, um espaço domesticado e inscrito no Brasil Colônia." (2013: 56). Para mais
detalhes acerca das histórias de surgimento da cidade e o processo de colonização, ver Machado 1999; Abreu
2010 e Ahlert 2013.
14
Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz, publicado em 2016 pela Fundação Palmares.
11
Nada disso implica, é preciso dizer, que discursos perpassados pela raça e pelo
racismo estejam ausentes; antes, me parece que eles são elaborados em chaves que um olhar
que se atenha excessivamente a discursos mais conhecidos no contexto acadêmico pode
deixar escapar, o que aporta o perigo de considerar as pessoas desinformadas, inocentes ou
passivas. Minha experiência na AUCAC logo de início me mostrou que isso não tem nada de
verdade e que era preciso muito mais aprender um outro vocabulário e outros mecanismos
para elaborar as oficinas de que participei do que cair na tentação de tentar ensinar algo às
pessoas com quem convivi: talvez o caminho fosse tentar aprender juntos. Se a percepção
sobre o racismo passa por múltiplas formas de elaboração, todas essas coisas são mobilizadas
de maneira diferente a depender do contexto, das pessoas envolvidas, de uma série de
elementos contingenciais - a mesma pessoa que se surpreende diante da constatação de que
nossos - ou os meus - antepassados foram escravizados diria em outro momento que um
tratamento diferenciado em uma loja era nitidamente por conta do tom das nossas peles.
Embora as noções de raça tal qual mobilizadas pelo vocabulário acadêmico não estejam
necessaria ou manifestamente em primeiro plano, isso não implica em que os discursos não
sejam em maior ou menor medida racializados. Ou, nas palavras de Anjos, "a racialidade
vivenciada como um ponto de vista que se “ocupa” de um corpo, como intensidade histórica
que se faz corpo", de tal modo que depreende-se uma "modalidade de não essencialização das
raças, que nem por isso deixa de se fazer como espaço de racialização." (2008: 83), em
expressão daquilo que, como me sugeriu Marcio Goldman, poderíamos considerar um saber
afro-diaspórico que faz passar forças outras sob formas aparentemente dominantes. De certa
forma é disto que trata esta dissertação.
***
Na convivência a partir da Associação, conheci integrantes de muitas tendas da
cidade. Embora não tenha tido oportunidade de presenciar um festejo naquele ano devido ao
volume de trabalho, os laços que estabelecemos foram significativos e as torções de
pensamento fruto das trocas que aconteceram naquela ocasião me levaram a buscar algum
caminho que me permitisse elaborar em outras chaves aquilo que tinha vivido ali, esforço que
desembocou em uma aproximação com a Antropologia. No segundo capítulo tratarei um
pouco da retomada dessas relações e do papel de Vera, que me acolheu desde então como
parte de sua família.
A única exceção naquele ano de 2014 foi um toque na casa de dona Teresinha, na
Tenda Espírita de Umbanda Nossa Senhora da Conceição, do qual vi uma fração muito curta
12
(ainda mais considerando-se a duração prolongada dos festejos da cidade). Em um dia de
junho, quando se desenrolavam as festas juninas, acompanhei o grupo de boi mirim no qual
Moisés, filho de Vera, dançava. O Encanto Codoense se apresenta em vários lugares, igrejas,
praças, clubes, vez ou outra vai a outra cidade. Naquela ocasião, foram se apresentar no toque
de dona Teresinha, que possui um boi também - nesse caso, trata-se de um boi de encantaria,
brincado dentro do terreiro de modo diferente dos bois de "grupos culturais". Aguardamos por
alguns momentos, obervando o que se passava dentro do barracão, até que a mãe de santo
suspendeu o toque, dando um intervalo para os tamborzeiros, momento no qual as crianças
entraram no salão e apresentaram a coreografia correspondente à sequência de músicas que vi
dançarem inúmeras vezes. Um certo receio no olhar daquelas que desconheciam a dinâmica
dos terreiros não impediu que dançassem com a mesma dedicação com que costumavam se
apresentar.
Quando voltei a Codó, em março de 2017, desta feita com foco no trabalho de campo
que se desdobrou na presente dissertação, dona Teresinha foi uma das primeiras pessoas que
reencontrei. A mãe de santo me reconheceu, abriu as portas de sua casa e se prontificou a me
ajudar a reunir as informações necessárias para a minha escrita. Passei a visitá-la com
frequência, na casa em que mora com uma de suas filhas de santo, Claudina, sua neta e agora
sua bisneta, e que é também o espaço de seu terreiro, como é comum em Codó. Ela, assim
como praticamente todas as pessoas que de alguma forma tomam parte neste trabalho, me
estimulou a conversar com outras pessoas e integrantes de outras tendas, de forma que logo de
início me pareceu quase impossível seguir apenas uma pessoa. Há um espaço definido em que
há uma mãe ou pai-de-santo, filhos de santo, uma organização em diretoria, com titular, vice,
tesoureiro, secretário, etc, bastante atuante na organização dos festejos. No entanto, as
relações extrapolam os limites de cada casa e há um trânsito incontornável que culmina na
prática de pagar visitas sobre a qual já comentei e aprofundarei mais à frente. Ademais, a
comunidade é formada por um emaranhado de relações, com o compartilhamento de laços de
sangue, de parentesco, de entidades, de obrigações, de relações de apadrinhamento, de
cruzamento entre casas. Há quem celebre aniversário de encantado em algum terreiro amigo,
ou um pai de santo cujo filho carnal - ou seja, de sangue - seja filho de santo de outra casa,
mas ainda assim participe ativamente de seus festejos.
Nesse sentido, além de dona Teresinha (Tenda Espírita de Umbanda Nossa Senhora da
Conceição), frequentei bastante a casa/tenda de seu Domingueiro (Tenda Espírita de
13
Umbanda Santa Bárbara), de dona Maria do Santo (Tenda Espírita de Umbanda Santa
Bárbara) e de seu Pedro d'Oxum, meus interlocutores mais frequentes. Mas encontrava com
frequência nos toques dona Iracema (Tenda Espírita de Umbanda Santo Antônio), dona Julia,
seu Café (Tenda Espírita de Umbanda São Cipriano), todos junto a seus filhos de santo,
filhos, afilhados e integrantes em geral de suas casas, bem como com seu Piauí, abatazeiro
muito conhecido na cidade. Passei, ainda, muitas tardes conversando com seu Wildelano,
presidente da União Artística Operária Codoense - ricamente registrada no trabalho de Abreu
(2010) e da Banda Euterpe, fora os encontros com a rezadeira Mariana e as rezas em locais
diversos a que compareci na companhia de Vera. Com exceção de uma visita que fiz à
comunidade quilombola de Santo Antônio dos Pretos, minha circulação ficou mais restrita à
área urbana de Codó, onde está localizada a maior parte dos terreiros da região.
14
Parte das fotos dispostas nesta dissertação são de sua autoria. Além disso, devo dizer que em
alguns dos festejos a que compareci - particularmente o de dona Teresinha, que compõe parte
substancial do segundo capítulo - meu companheiro Guilherme me acompanhou e auxiliou no
registro dos acontecimentos, de forma que esteve presente filmando o festejo, para gosto da
mãe de santo. Embora no início eu ficasse constrangida em pedir para gravar alguma situação,
de maneira geral as pessoas gostam muito de fotos e vídeos mostrando os toques e os eventos
da cidade e pedem que registremos sempre que temos algum aparelho à mão, para somar aos
registros feitos pelos celulares. Certa vez, acompanhando o velório de seu Ribinha Muniz,
várias pessoas em momentos distintos me instigaram a usar a câmera que carregava na
mochila. Diante da minha timidez na situação, seu Wildelano me disse que isso só podia ser
coisa do Rio e que "lá o cabra morre devendo" e só essa razão justificava meu
constrangimento. "Em Codó, o povo gosta é que filme".
Foto 2: Crianças da comunidade quilombola Eira dos Coqueiros em oficina da AUCAC (2014).
15
No tempo que passei em campo, realizei algumas entrevistas utilizando um gravador.
Porém, julguei que nem sempre esse recurso funcionava tão bem; se algumas pessoas não se
importavam - e mesmo me estimulavam particularmente quando se tratava de algum evento
ou festejo público -, na maioria dos casos as conversas ficavam mais rígidas e restava algum
grau de desconfiança. Sendo assim, com raras exceções, conversava longamente com as
pessoas e anotava tudo o que lembrava no meu diário de campo. Eventualmente, quando a
memória não ajudava, voltava a fazer as mesmas perguntas quando era possível, de modo a
recompor as informações ofertadas. Em que pese a "perda" de alguns detalhes e frases de
efeito, julguei que deixar as conversas e os ensinamentos fluírem de forma mais orgânica me
abriu mais perspectivas sobre o terecô. De todo modo, o aprendizado nos contextos de matriz
africana não se dá de maneira linear, rígida ou em um corpo de ensinamentos que se pretende
acabado, ou seja "não é somente reunir ‘dados’ ou ‘informações’ sobre tal ou qual coisa", mas
depende do tempo, dos investimentos nas relações, da observação atenta, que implica em
"deixar o conhecimento “enraizar-se nas profundezas do seu ser” (Cossard 1970:227), através
de um engajamento corporal ativo com o ambiente e seus contextos." Diz respeito, portanto, a
"criar-se continuamente através da tentativa, do erro e, sobretudo, da experimentação: trata-se
de “tatear” a mata, “capengar” até conseguir fazer a coisa certa" (Marques 2016: 7).
Quando falamos em uma cidade de imensa maioria negra como Codó, onde há um
sem número de quilombos no entorno, e sobretudo quando tratamos de uma religião de matriz
africana praticada naquele contexto, contendo voduns, encantados, orixás, pretos-velhos e
caboclos, talvez algumas ideias tenham a tendência a se impor: tratar das interações que
poderiam ser vistas como "misturadas" aciona uma série de referências no que tange as
dinâmicas atinentes às religiões de matriz africana, tais como sincretismo e mestiçagem. Se
por um lado o tema pode parecer um tanto óbvio e sem nenhuma grande novidade quando se
trata de assunto já tão longamente debatido na literatura, justamente por essas razões me
parece necessário retornar ao movimento de hesitação que mencionei brevemente na
introdução deste trabalho. Hesitar e atentar para as práticas discursivas e não discursivas que
abrem outras possibilidades de abordagem sobre os encontros e as misturas e, talvez mais
ainda, outras formas de colocar as diferenças em contato, qualquer que seja o contexto.
16
Trata-se, em um primeiro momento, como já disse acima, de um movimento de
hesitação diante de um campo - o das religiões de matriz africana e mais especificamente o
terecô - marcado pelo risco de amoldar dinâmicas próprias de outros contextos que à primeira
vista parecem semelhantes, mas que não necessariamente correspondem aos processos que
ocorrem em Codó. A literatura antropológica sobre o terecô, como veremos, me parece
permeada de explicações e pontos de vista marcadamente dos praticantes do tambor de mina,
religião característica da capital do Maranhão, São Luís. Ademais, a profusão de trabalhos e
informações em geral sobre o candomblé e a umbanda, além do tambor de mina, nos oferece
um referencial baseado nas dinâmicas próprias dessas religiões que não atende às
singularidades presentes no terecô de Codó. Esse movimento desponta, portanto, de modo a
evitar que os modelos que se referem a tais vertentes religiosas sejam aplicados
irrefletidamente ao terecô, ainda que de maneira não intencional; emerge assim a necessidade
de atentar para as explicações que tendem a se impor de forma quase automática, não apenas
na intenção de controlar esse impulso, mas também para trabalhar com ele e perceber como
inflete nas conclusões retiradas. Desse modo, retorno aos trabalhos já realizados e ao meu
próprio trabalho de campo, ainda que até então tenha sido relativamente curto, para descrever
o terecô trazendo para o centro as práticas discursivas e não discursivas de seus praticantes.
Em outros termos, o que quero explorar aqui é a ideia de que no contexto das religiões
de matriz africana no Maranhão, o tambor de mina, ainda que apareça como vertente religiosa
minoritária em um quadro "dominado" pelos discursos sobre o candomblé e a umbanda - e
mesmo pensando num quadro ainda maior em que as religiões de matriz africana aparecem
como minoritárias -, pode operar como sobrecodificador sobre o terecô por ser, num certo
sentido, uma corrente majoritária nesse campo de reflexões mais restrito, o Maranhão. Nada
disso implica, é preciso destacar, na ausência de semelhanças e conexões com outras vertentes
religiosas de matriz africana, de maneira que outros contextos etnográficos podem ajudar a
compor as reflexões ao longo desse trabalho, em termos outros que não a partir de uma
relação verticalizada entre essas religiões. Para explicitar o argumento, recorro às palavras de
Goldman quando diz que
Já há algum tempo, José Carlos dos Anjos (2006) nos revelou tudo o que
teríamos a ganhar abandonando os clichês dominantes da miscigenação, da
mestiçagem ou do sincretismo em benefício de imagens oriundas de nossos
próprios campos empíricos de investigação. Assim, a ideia de "linha
17
cruzada", presente em praticamente todas as religiões de matriz africana no
Brasil, permite pensar um espaço de agenciamento de diferenças enquanto
diferenças, sem a necessidade de pressupor nenhum tipo de síntese ou fusão.
As diferenças são intensidades que nada têm a ver com uma lógica da
assimilação, mas sim com a da organização de forças, que envolve a
modulação analógica (contra a escolha digital) dos fluxos e de seus cortes,
bem como o estabelecimento de conexões e disjunções. Esse modelo
heterogenético apoiado nas variações contínuas permite opor termo a termo
mestiçagem e sincretismo, de um lado, contramestiçagem e composição (no
sentido artístico do termo), de outro. (Goldman 2015: 653)
18
entender como uma "relação afroindígena" (Goldman 2014, 2015, 2017). Lanço mão, nesse
sentido, da ideia de uma antropologia afroindígena sobretudo como metodologia, ou melhor
dizendo, como uma proposição no sentido levantado por Stengers (2007), que "não se
confunde em nada com um programa, mas tem muito mais a ver com a passagem de um
arrepio ou um temor que faz tremer as certezas" (2007: 49) e implica em pensar "à partir
dessas consequências ditas secundárias, receosas da ideia de que um senso comum qualquer
possa laminar, pacificar, a questão, sempre delicada, hesitante entre a guerra e a paz, de todo
encontro entre heterogêneos" (Stengers 2007: 68).
19
arranjos fruto da ilimitada possibilidade de encontros e pela modulação analógica das forças
aí somadas.
20
1. Antropologias do Maranhão e do Terecô
Fora da capital, a literatura é ainda mais enxuta e depois da tese de Costa Eduardo
(1948) até os anos 90, resume-se a relatórios curtos de pesquisa, alguns hoje inacessíveis. Em
1975, foi publicado relatório de pesquisa sobre a prelazia de Pinheiro, na Baixada
Maranhense, executada em 1972 sob o comando de Roberto da Matta, e M. Ferretti dá
notícias do trabalho de Correia Lima e Azevedo (1980 apud M. Ferretti 2001: 21) sobre
religião de matriz africana em Viana, Alcântara e Codó. O trabalho de M. Ferretti, a partir da
segunda metade dos anos 1990, fez-se destaque nesse campo. Além do livro (1993)
21
decorrente de sua tese sobre o caboclo no tambor de mina de São Luís, a autora escreveu um
livro (2001) sobre o terecô de Codó e publicou incontáveis artigos sobre diversas
manifestações de matriz africana maranhenses. Martina Ahlert15 defendeu sua tese em 2013,
uma etnografia de mais fôlego a partir do terecô na cidade de Codó, trabalho mais recente
sobre o tema.
Essa breve introdução pretende apenas fornecer um panorama dos estudos sobre
religião de matriz africana no Maranhão. Em seguida, vou aprofundar as considerações sobre
três trabalhos com foco no terecô e em Codó, emblemáticos de três momentos marcantes da
literatura sobre religiões afro-brasileiras na Antropologia. Não tenho a pretensão de elaborar
algum modelo definitivo ou exaurir o assunto; trata-se apenas de uma simplificação
esquemática que nos guie pelas elaborações antropológicas acerca do terecô e lance um olhar
atento para os contextos em que esses trabalhos foram escritos, as correntes e reflexões com
as quais se ligam ou em que ressoam. Ademais, as valiosas informações etnográficas
registradas pelos três autores estarão presentes ao longo de toda esta dissertação. Passo, então,
a tratar dos três trabalhos: o de Costa Eduardo (1948), "The Negro in Northern Brazil - A
Study in Acculturation"; o de Mundicarmo Ferretti (2001), "Encantaria de Barba Soeira -
Codó, capital da magia negra?"; e o de Martina Ahlert (2013), "Cidade Relicário - Uma
etnografia sobre terecô, precisão e Encantaria em Codó (Maranhão)".
22
em São Luís e na comunidade quilombola de Santo Antônio dos Pretos16 em 1943 e 1944.
Seu foco repousava no que chamava de "processos de aculturação do negro", perspectiva que
ressoa na investigação de práticas tidas como mais puras em comparação com aquelas que se
perderam ou que se misturaram a outras.
As teorias racistas que encaravam a África como uma terra de selvageria primitiva já há
muito eram questionadas por pesquisadores negros; Boas, no entanto, figurava praticamente
sozinho entre os pesquisadores brancos, na contra-corrente que buscava entender as culturas
africanas e afro-americanas como parte de uma forte crítica aos pressupostos racistas do
século XIX. Por outro lado, o autor, no mesmo passo em que propunha um certo orgulho da
raça que se contrapusesse a sentimentos de inferioridade, defendia que a miscigenação seria a
única solução para os conflitos raciais - o que se aplicava também para o caso do anti-
semitismo (Jackson 1986: 98).
16
Santo Antonio dos Pretos é um povoado situado a cerca de 60km da cidade de Codó e consiste em uma
comunidade quilombola titulada, disposta nas narrativas locais como o berço do terecô, conforme dispus na
introdução deste trabalho.
23
científico fortemente difundido à época, tarefa que muitas vezes delegava a Herskovits. Uma
postura assimilacionista marcou seu trabalho até certo ponto, como vemos nas palavras de
Jackson: "[p]rocurando refutar o argumento racista de que imigrantes e negros eram incapazes
de assimilar a cultura americana, ele argumentou que a assimilação estava, de fato, ocorrendo
e que era um processo social inevitável" (1986: 100). No entanto, tal postura entrou em
choque quando do seu encontro com a Harlem Renaissance17 e "o desejo de intelectuais
negros em desenvolver uma tradição cultural distintiva com raízes no passado africano e no
folclore afro-americano" (1986: 101). Herskovits escreveu em um artigo para a revista Survey
Graphic18, a convite de Alain Locke, que as culturas negra e branca eram "do mesmo padrão,
apenas em uma tonalidade diferente" (1986: 102), insistindo na descontinuidade das culturas
africana e afro-americana. O tom dissonante do artigo de Herskovits em relação aos outros
trabalhos publicados não provocou sua exclusão do volume, mas o texto foi acompanhado de
uma nota editorial na qual Locke escreveu que
24
incluídos no livro e sem dúvida o autor com posição mais assimilacionista (Jackson 1986:
103). Seu contato, diálogo e mesmo relações de amizade com aqueles intelectuais negros não
cessou por conta de tais diferenças; pelo contrário, as trocas contínuas fizeram com que
repensasse alguns de seus posicionamentos anteriores. Nesse sentido,
25
Como afirma Goldman (1984), o trabalho de Herskovits significa uma primeira torção
nos estudos sobre religiões de matriz africana, percebendo-as não apenas como sistemas
religiosos, mas como modos de vida. A metodologia proposta pretenderia "compreender e
explicar a coexistência dos vários níveis culturais dentro da comunidade pesquisada, bem
como a relação desta unidade com outras da mesma natureza e também com toda a sociedade
abrangente" (Goldman 1984: 82). A abordagem proposta por Hersovits rejeita a visão
presente na literatura anterior de que a possessão é manifestação de algum tipo de distúrbio
mental para dar lugar à noção de transe enquanto função de ajustamento do indivíduo ao
grupo e à sociedade, passando de perturbação médica a técnica de ajustamento psicológico
(Goldman 1984: 86). Cito:
No que diz respeito aos fenômenos extáticos, este tipo de perspectiva terá a
inegável virtude de extrair a possessão do domínio psicopatológico, já que,
ao situá-la no contexto ritual e sociológico onde ela se processa, seu caráter
de comportamento normal, estatística e normativamente falando, se
manifestará imediatamente. Herskovits procurará então interpretar o transe
como fato cultural normal, a partir de uma concepção behaviorista do
processo estímulo-resposta. Para ele, a iniciação — que passa a constituir o
foco central de preocupação do pesquisador, na medida em que nela é
possível perceber a integração do indivíduo à comunidade — e a
convivência grupal acabariam por criar um “reflexo condicionado” ligado a
um certo comportamento (a possessão) que seria detonado a partir de sinais
tradicionais, tais como a música, as danças, a prece, etc. A possessão passa a
ser vista como integrando um complexo cultural que, dentro da tradição
culturalista norte-americana, será encarado como fator de estabilização da
personalidade individual e de sua adaptação tanto ao meio social quanto ao
meio-ambiente natural (...). Este modelo será integralmente adotado por dois
discípulos brasileiros de Herskovits (...). (Goldman 1984: 83)
26
comunidade de Santo Antônio dos Pretos, próxima à cidade de Codó e tida como berço do
terecô nas narrativas locais.
27
estudo como esse porque provê os meios pelos quais uma linha de base cultural, indispensável
em um estudo de aculturação e mudança cultural, pode ser estabelecida" (Costa Eduardo
1948: 10) e foi atrás de documentos e inventários para concluir que aquelas pessoas foram
trazidas principalmente de quatro regiões: Angola, entorno do Congo, Costa da Guiné e
Senegal. Afirma que as "retenções culturais africanas no Maranhão que podem ser traçadas
com certeza, derivam de povos angolanos, yorubanos e daomeanos" (Costa Eduardo 1948:
10). No entanto, se questiona sobre o fato de que os dois últimos quase não aparecem nos
inventários e conclui que há a possibilidade de terem entrado sob o nome genérico "Mina".
Diante disso, propõe uma rápida análise das similaridades - sobretudo os padrões de vida
econômica, organização familiar e religiosa - entre essas culturas que, apesar de estarem em
três áreas culturais africanas distintas, encontram "semelhanças contundentes" especialmente
"quando são contrastadas, em conjunto, a culturas européias e ameríndias" (Costa Eduardo
1948: 10). Nesse mesmo sentido, argumenta que
19
Para pensar a dinâmica de "adaptação", interessante o que diz Leroi Jones [Amiri Baraka] (2002): "The
Negro’s way in this part of the Western world was adaptation and reinterpretation. (...) they were unsuccessful in
their attempt to “disappear” because the whites themselves reminded them that they were still, for all their
assimilation, “coons.” And this seems to me an extremely important idea since it is just this bitter insistence that
has kept what can be called Negro culture a brilliant amalgam of diverse influences. There was always a border
beyond which the Negro could not go, whether musically or socially. There was always a possible limitation to
any dilution or excession of cultural or spiritual references. The Negro could not ever become white and that was
his strength; at some point, always, he could not participate in the dominant tenor of the white man’s culture. It
was at this juncture that he had to make use of other resources, whether African, subcultural, or hermetic. And it
was this boundary, this no man’s land, that provided the logic and beauty of his music. (...) As always, the
masses of black men adapted, rather than completely assimilated; appropriated, rather than traded, one god or
one culture for another." (2002: 27; 80; 124). Na mesma linha, Abdias Nascimento comenta um texto de Efraím
Bó sobre o Teatro Experimental do Negro: "(...) a perspectiva negra de concepção do mundo (...) nada tem a ver
com a visão arcaica. Trata-se, para Bó, de uma cosmovisão antiga e atual: "o negro, negro que é, tem olhos e
ouvidos e consciência para perceber o mundo e qualificá-lo, reinterpretando-o com seus calejados olhos e
ouvidos negros de hoje"" (Bó apud Nascimento 2016:162-163).
28
Depois de descrever uma série de aspectos que marcaram a vida das populações
negras no Maranhão nos tempos da escravidão, Costa Eduardo passa aos capítulos centrais do
livro que se estruturam de um mesmo modo: descrevem aspectos da vida (modos de
subsistência; família; religião; a alma, o anjo da guarda e os ritos) em uma perspectiva
comparativa entre a área rural, a comunidade de Santo Antônio dos Pretos, e a urbana, que diz
respeito a São Luís, para ao fim de cada ponto explorar as ligações das práticas descritas com
a África, verificando em que medida preservaram-se as tradições, quais as influências
européias e o quanto houve de influência. Suas conclusões se dão no sentido de que no que
tange a técnicas e organização do trabalho, bem como sobre a dinâmica de família, a área
rural preservou em maior grau a herança africana; diversamente, no caso da religião, as
tradições se mantiveram mais em São Luís do que em Santo Antônio dos Pretos. Detenhamo-
nos por um momento no capítulo intitulado "Religião" (1948: 46-107).
Costa Eduardo inicia o capítulo afirmando que tanto na área urbana quanto na área
rural a população negra, em sua maioria, professa o catolicismo, com um grupo reduzido que
pertence a igrejas protestantes ou espiritualistas; de todo modo, boa parte desses grupos
acredita e participa, concomitantemente, de ritos derivados dos africanos, uma vez que,
segundo sua explicação, a aceitação do cristianismo por parte dos africanos escravizados não
implicou na desaparição dos padrões de culto. Em lugar disso, o autor afirma que houve um
processo de sincretismo com a nova religião que é o foco do capítulo (1948: 46). Em seguida
descreve uma série de hábitos e práticas, nos mesmos padrões já expostos acima: descrições
com um intuito comparativo entre a área urbana e a rural, acompanhados de um olhar em
busca das permanências africanas.
Assim, o autor (1948: 46-49) nos conta sobre a existência recorrente de altares com
imagens de santos nas casas de Santo Antônio dos Pretos, o hábito de cantar ladainhas ao
redor desses altares pedindo proteção por ocasião de partos, doenças e dificuldades em geral,
as danças que se seguem e as procissões para louvar os santos. Em sua avaliação, as práticas
africanas foram diluídas na área rural, restando apenas alguns elementos sutis de rituais
outrora complexos, que aparecem sobretudo no que chama de danças rituais que ocorrem a
cada um ou dois meses, circunstância na qual os participantes são possuídos, isto é, o espírito
da pessoa é temporariamente deslocado para dar lugar a um ser espiritual. Em São Luís,
prossegue, também verificam-se ladainhas em torno dos altares domésticos, rezas, missas e
cerimônias religiosas em geral, além da Festa do Divino Espírito Santo. Na cidade, as práticas
29
africanas, em sua concepção, foram mais preservadas inclusive em uma forma
institucionalizada por grupos de descendência daomeana (associa com "Gege") e yorubana
(associa com "Nagô"), que estabeleceram casas de culto chamadas terreiros ou casas de
mina, sendo as danças que têm lugar nessas casas chamadas tambor de mina. Tal prática,
argumenta, faz-se continuação do padrão africano de possessão e dança acompanhados de
tambores. Cerca de duas dezenas de outras casas além das duas principais e consideradas mais
ortodoxas - a Casa das Minas e a Casa de Nagô - se distribuem pela cidade, além de algumas
localizadas na parte mais rural da cidade, que, segundo o autor, dedicam-se a práticas de cura
proibidas por lei e utilizam as danças rituais apenas como disfarce. Mesmo as casas
ortodoxas, no entanto, são marcadas por alguma integração com as crenças católicas em uma
mistura freiriana de "valores e sentimentos"; as demais, além disso, também incorporaram
elementos indígenas com a "pagelança" ou "cura". No caso da "dança" da "pagelança", há a
incorporação de espíritos indígenas. A maioria das casas de culto urbanas, porém, cultuam
também entidades indígenas chamadas, nesse caso, de caboclos.
Desse modo, é notável como duas tendências religiosas, uma Católica e uma
Africana, mais a tradição da mágica derivada dos indígenas autóctones da
região, combinaram-se para compor o sistema atual de crenças e práticas
encontradas entre os negros do Maranhão. São estes sincretismos que devem
estar em evidência em nossas mentes enquanto procedemos à análise das
religiões de negros rurais e urbanos da região como elas existem hoje, pois é
apenas dessa forma que seremos capazes de entender o sistema de crenças e
30
sanções em funcionamento que influencia tão profundamente as vidas desses
grupos como eles a vivem cotidianamente. (Costa Eduardo 1948: 51)
Segundo nos conta Costa Eduardo (1948: 60-62), a cerimônia para louvar os
encantados era conhecida como pagé, brinquedo de Santa Bárbara, tereko, nago e Budu e era
celebrada a cada um ou dois meses, normalmente em noites de sábado que duravam até o
amanhecer. Tais eventos aconteciam em uma estrutura diferente das demais casas da
comunidade, parcialmente aberta de um dos lados, com uma ampla sala principal, uma saleta
menor e um santuário com as imagens de santos católicos e uma caixa de madeira onde são
31
guardadas pedras sagradas. Havia um poste central na sala principal ao redor do qual os
"dançarinos" se moviam no sentido anti-horário. Pelo menos quinze adultos de ambos os
sexos experimentavam a possessão nessas ocasiões, mas algumas pessoas dançavam apenas
pelo prazer de dançar, sem serem possuídas. O acompanhamento musical era composto de um
tambor com membrana feita de pele animal em apenas uma das extremidades, um ou dois
berimbaus e alguns chocalhos. Todos os músicos eram homens e tocavam de pé. O autor
afirma que "certamente a admissão a esse grupo não requer cerimônias de iniciação enquanto
o ato de beber por parte da maioria dos "membros" durante uma dança despoja o ritual de
parte de seu caráter sagrado e age como fator desintegrador" (1948: 62). Nos diz ainda que
não há a direção de um líder reconhecido, mas apenas a presença de dois homens que
cuidavam das providências para que a cerimônia acontecesse.
32
Ao colocar em comparação os dados que recolheu em seu trabalho de campo, Costa
Eduardo (1948: 104) se depara com alguns questionamentos e lacunas no que se refere às
explicações que busca para as diferenças verificadas. Em sua visão, os dados históricos fazem
falta para uma análise mais completa. Vale aqui citar o trecho em que o autor revela tais
preocupações relativas à comparação entre as sobrevivências religiosas na área urbana e na
área rural:
33
cultura tem uma "área focal" que resiste com mais força às mudanças derivadas do contato e
das pressões de uma cultura dominante. No caso do estudo em questão, conclui, a religião
ocupa esse lugar.
34
social, satisfazendo determinadas necessidades sociais e/ou individuais" (Goldman 1984: 88).
A proposta de Bastide, embora de forma distinta daquela que vai marcar a próxima fase na
qual se enquadra o trabalho de M. Ferretti, aponta uma passagem para a sociologia. Veremos
como essa passagem se dá na obra da autora no próximo ponto.
Nas palavras da autora, seu objeto de estudo é o caboclo no tambor de mina, que
define como
35
caboclos do Tambor de Mina, embora sejam apresentados como ligados, de
alguma forma, ao índio brasileiro e à vida rural, aparecem frequentemente na
mitologia como descendentes de nobres e de estrangeiros (como os turcos),
característica esta que os afasta dos 'caboclos de pena' da Umbanda e do
Candomblé mas que ali é também, às vezes associada a boiadeiros -
entidades frequentemente apresentadas em letras de músicas ('pontos') como
tendo vindo de Angola, de 'Aluanda' (...), ou da Hungria. (M. Ferretti 1993:
30-31).
Seu foco recai sobretudo nos terreiros de São Luís e há um interesse também no
processo de reafricanização da religião afro-brasileira, em particular na Casa Fanti-Ashanti.
Assim, M. Ferretti se propõe a investigar as diferenças entre os caboclos e as divindades
africanas e sua integração no tambor de mina; investigar os mitos atinentes e suas matrizes e
influências; o impacto da entrada do caboclo no candomblé e na mina sob a ótica da
reafricanização; dialogar com a literatura sobre religião afro-brasileira no que toca a entidades
caboclas para propor "uma nova conceituação do caboclo no Tambor de Mina" (1993: 46-47).
A pesquisa de campo, prolongada e desenvolvida na Casa Fanti Ashanti ao longo de alguns
anos, somou-se a viagens, entrevistas e contatos em geral com diversos terreiros dentro e fora
de São Luís, não apenas de tambor de mina, mas também da mata de Codó (tenda de Maria
Piauí), de São Paulo (Casa de Toia Jarina), de umbanda e candomblé, viagens a Cuba e a
outros estados brasileiros.
36
Em sua revisão da literatura afro-brasileira a autora (M. Ferretti 1993: 64-79) aponta a
divisão feita entre terreiros jejes e nagôs como os mais tradicionais e os bantus como os mais
dados ao sincretismo, para em seguida assinalar as críticas realizadas à época a essas
tentativas de "classificação dos terreiros em "puros" (apegados à tradição africana recebida
dos antepassados ou à tradição nagô - por muitos considerada mais rica e a única bem
conservada no Brasil) e "misturados" (sincréticos, descaracterizados)" (1993: 65). Argumenta
que os indicadores de pureza africana foram definidos a partir dos terreiros baianos de
candomblé ketu, em padrões que não necessariamente encaixam ou são aceitos por outras
manifestações religiosas afro-brasileiras. Desse modo, "[a] "mistura" na religião afro-
brasileira tendo sido apresentada como algo muito negativo, desestimulou a pesquisa em
terreiros bantus (tidos como mais "sincréticos") e em casas 'de caboclos'." (1993: 66).
Tudo indica que as entidades espirituais 'da mata' ou da área rural (ligadas às
diversas atividades camponesas), tenham surgido primeiro no interior do
Maranhão, no Terecô (Tambor da Mata, de Codó), e que tenham entrado na
Mina trazidos por filhas-de-santo de Codó. Não é por acaso que encantados
antigos de Codó são denominados: Zé Vaqueiro, Onofre Caçador, Kelé
Onça, Onofre da Mata e o próprio Légua-Boji, que aparece em letras de
músicas, cantadas em sua homenagem, como dono de bois. (M. Ferretti
1993: 132)
Na própria obra de Costa Eduardo, afirma a autora, já se falava que na Casa de Nagô
havia homenagens a "entidades nagô, 'taipa' e mata (cambinda de Codó) - linha esta há muito
37
ali homenageada e associada à de 'Caxias' (nome da antiga sede do município a que pertencia
Codó)" (M. Ferretti 1993: 132). Interessante destacar que Mãe Andresa, liderança da Casa das
Minas de São Luís, era de Codó e recebia anualmente visitantes de um terreiro codoense
existente à época (1993: 133).
Como visto acima, Costa Eduardo (1948) descreveu uma festa ocorrida na
comunidade quilombola de Santo Antonio dos Pretos afirmando que ali não havia sacerdotes
reconhecidos ou terreiros organizados como aqueles presentes em São Luís do Maranhão. O
mesmo tom crítico encontrado na literatura antropológica é apontado pela autora como
presente nas narrativas dos pais e mães de santo de São Luís. Nesse sentido, conta que
Por outro lado, argumenta que "no discurso do 'povo jeje'", presente na Casa das
Minas, há uma valorização das características da Mata de Codó e um discurso de que alguns
voduns entraram na Mata e que Légua-Boji-Buá, chefe da 'linha da Mata' é um "vodum
cambinda". Assim, referenciando as palavras de dona Denis, uma de suas interlocutoras na
Casa das Minas, M. Ferretti diz que
Diante desse quadro, a autora sustenta que durante bastante tempo alcançou-se uma
independência entre o tambor da mina de São Luís e o tambor da mata de Codó, apesar do
intenso fluxo entre as duas cidades. A primeira integração em um mesmo ritual em um
terreiro ludovicense teria ocorrido no terreiro de Maximiana; já na cidade de Codó, a
38
integração teria ocorrido anos depois, no terreiro de Maria Piauí e de Bita do Barão, que a
autora considera "'umbandizados'". M. Ferretti, porém, informa que dona Antoninha, sua
interlocutora em Codó, dizia tocar o toque da mina para dar um descanso aos médiuns, já que
o toque da mata é muito corrido e cansativo (M. Ferretti 1993: 139-140). Sobre os
desdobramentos dessa chamada integração, afirma que
***
Nos anos 2000, M. Ferretti lança seu "Encantaria de Barba Soeira" (2001), obra que
repercutiu fortemente tornando-se referência sobre o terecô, inclusive dentro da cidade de
Codó, como ouvi muitas vezes. Isso se deve em parte ao fato de que o livro de Costa Eduardo
(1948) não teve até hoje tradução para o português, não sendo acessível para a população em
geral, e o próprio autor mudou de interesses acadêmicos e profissionais após sua publicação,
mas também pelo destacado trabalho da autora sobre as manifestações de matriz africana no
Maranhão.
M. Ferretti, além de realizar uma revisão bibliográfica importante na primeira parte do
livro, trazendo informações de documentos hoje perdidos e dialogando com um espectro
amplo de fontes, desenvolve seu argumento com base em seu trabalho de campo, quando
acompanhou sobretudo o terreiro de dona Antoninha, hoje comandado por sua herdeira, dona
39
Maria dos Santos. A autora classifica sua principal interlocutora como a "mãe-de-santo mais
velha e considerada a mais tradicionalista de Codó" (2001: 107) e se preocupa
particularmente com o que denomina "modernização do terecô" que poderia fazer com que
esse último se enfraquecesse progressivamente dando lugar à umbanda.
Tampouco se trata, como indicado nas primeiras linhas deste capítulo, de promover
um encaixe perfeito ou enquadramento em algum modelo rígido. Creio que há conexões entre
a obra de M. Ferretti e de outros autores contemporâneos a ela, com quem dialoga e que
certamente se influenciam mutuamente. Nesse sentido, as metodologias utilizadas, bem como
a linha de análise, ressoam no corpo de trabalho que Banaggia (2008, 2014) denominou afro-
brasilianismo. Segundo o autor (2014), é possível perceber dois momentos distintos na
literatura sobre religiões afro-brasileiras: o primeiro teria um foco sobre a descrição dos
elementos que conformariam tais manifestações, em uma perspectiva ora histórico-
evolucionista, indicando traços de origem e os diferentes graus de africanidade, ora
culturalista, debruçando-se sobre os valores, representações, mentalidades, culturas; o
segundo momento se deslocaria para a análise de sua relação com a sociedade englobante.
Nesse último caso, a virada teórica trouxe contribuições significativas para o campo,
questionando a tentativa de hierarquizar em graus de pureza as diversas manifestações
40
religiosas, incorporando à análise outros aspectos da vida das pessoas que não apenas os
rituais públicos e abrindo seu interesse para as múltiplas formações religiosas afro-brasileiras.
41
declarações, depoimentos e histórias de vida, de modo a obter informações
que seriam de outro modo conseguidas com o convívio etnográfico. De
modo similar, aposta-se na arrecadação de dados não só em curto prazo e em
pouca profundidade como a partir de diversos territórios etnográficos
diferentes, culminando numa promessa de estratégia de pesquisa
transnacional com a qual o antropólogo se esquiva das tentativas de seu
objeto de capturá-lo (...)." (Banaggia 2008: 194-195)
Nesse sentido, ainda que não reproduza fielmente os métodos e caminhos de análise
daquilo que Banaggia denomina afro-brasilianismo, o trabalho de M. Ferretti ora comentado é
marcado por ressonâncias com aquele momento da antropologia das religiões afro-brasileiras.
A autora não chega a desconsiderar o que é enunciado por seus interlocutores, nem a pregar
um distanciamento contundente ou a necessidade de uma defesa contra uma intenção de
captura; há, no entanto, o movimento de buscar algum tipo de confirmação externa, seja com
interlocutores de outras casas e mesmo de fora de Codó, em outras comunidades e contextos
religiosos, seja nos dados historiográficos, nas versões mais oficiais da História ou em
notícias de jornal, investigando o que considera contradições e incompletudes das explicações
que recebe.
42
entende por quimbanda e do culto a entidades como Exu e Pombagira, associadas ao demônio
e ao pecado, de modo que lhe parecem obscuras as razões pelas quais tal encontro atrairia a
classe dominante ou afastaria a polícia. Para M. Ferretti, o cruzamento entre mata, mina e
umbanda emerge mais como justaposição do que como integração. Ademais, considera a
grande possibilidade desta última ganhar progressivamente mais espaço após a morte da mãe
de santo chefe da Casa. Ainda na introdução do livro (M. Ferretti 2001), a autora evidencia
que uma das preocupações de seu estudo repousava sobre o comportamento dos terreiros de
terecô frente aos avanços da umbanda e da quimbanda.
Se "há fronteiras que são rigorosas apenas na etnografia" (Serra 1995: 63) - elaboração
que, para além dos contextos etnográficos, também pode ser aplicada ao campo dos estudos
sobre o tema -, algumas ressonâncias podem nos ajudar a compreender o contexto em que
trabalhos que se fizeram referência no que tange a manifestações de matriz africana no
Maranhão foram produzidos, bem como suas potências e limites. O livro de M. Ferretti
(2001) constitui documento etnográfico central para os estudos acerca do terecô de Codó, em
que pese estar ocasionalmente marcado pelo ponto de vista dos praticantes de tambor de
mina, religião sobre a qual se dedicou com mais profundidade. Suas conclusões, comparações
com outras vertentes religiosas - incluindo aí a percepção de que os estudos sobre a figura do
caboclo e sobre a mina estavam marcados em certo sentido por sobrecodificações - nos
ajudam a entrever como esse processo se dá em relação ao terecô. Ademais, a observação na
casa Fanti-Ashanti, que recebia a linha de Codó, oferece também registro importante acerca
dos trânsitos entre as duas religiões. Seu corpo de trabalho servirá de referência para os
estudos posteriores sobre o tema, ainda que se enquadrem em outros momentos da produção
antropológica e adotem métodos e parâmetros diversos de trabalho.
43
1.3 Cidade Relicário
A tese de Martina Ahlert, "Cidade Relicário - Uma etnografia sobre terecô, precisão e
Encantaria em Codó (Maranhão)" (2013) é fruto de trabalho de campo prolongado, através da
"convivência nas casas e tendas de pais e mães de santo", mas não se propõe a uma análise
circunscrita "a um estudo sobre religião afro-brasileira" e sim pretende "acompanh[ar] o ritmo
das coisas que aconteceram em campo, não estabelecendo limites e fronteiras entre as
experiências religiosas, domésticas, familiares, as preocupações materiais e financeiras"
(Ahlert 2013: 35). Nesse sentido, a autora compreende que as vivências relacionadas à
religião estavam profundamente ligadas às experiências e condições da vida em geral, de
forma que "[s]er brincante não era uma parte da vida, mas a própria vida, em uma forma de
ver o mundo que não fazia sentido sem a presença dos encantados e das entidades" (Cardoso
2007 apud Ahlert 2013: 35-36). Seu trabalho se constrói no percurso entre várias casas,
acompanhando os movimentos das pessoas nessa circulação, por recomendação delas
mesmas, uma vez que "concebiam que a experiência de cada pai de santo era particular (em
cada casa se "fazia de um jeito")" (2013: 36).
Em outro trecho:
44
Circular entre as tendas, portanto, é uma postura ‘bem vista’ pelas pessoas
com as quais convivi, pois permite conhecer e destacar outros pais e mães de
santo. Igualmente permite conhecer mais sobre a religião, já que os pais e
mães de santo “fazem” suas atividades de forma diferente. Menos como um
campo em determinado espaço específico, esta experiência etnográfica em
Codó se apresenta enquanto calcada em “lugares evento” (...), o que permite
lançar um olhar aos “lugares ou objetos que se manifestam como ações” (...)
ou mesmo como uma etnografia do movimento (que acompanha encantados
e pessoas). (Ahlert 2013: 44)21
O primeiro capítulo da tese de Ahlert é dedicado a apresentar a cidade de Codó a partir
da narrativa dos moradores e pesquisadores. A autora discute as noções de riqueza e pobreza
que aparecem em seu campo, diante daquilo que nomeia como o "paradoxo de Rosalva": ao
mesmo tempo em que havia menos fome do que no passado, a cidade aparece como menos
rica do que em outros tempos. Além disso, aborda a 'mata', espaço que de certa forma se opõe
ao progresso (ou é por ele visado) e que constitui lugar importante para os brincantes, morada
dos encantados e onde os primeiros rituais eram realizados, protegidos das vistas e da
perseguição do Estado. Nessa transição, emerge a questão das roupas novas22 e um maior
investimento nos festejos, enfeites e acessórios utilizados pelos filhos de santo (2013: 78),
mas que, na visão dos terecozeiros, não implica em mudança nos fundamentos da religião
(2013: 80). Além disso, "[e]mbora mantenham certa independência entre si, os pais de santo
costumam se visitar por ocasião dos festejos" (2013: 82). Assim, como já indicado, o trânsito
entre as casas não implica em uma homogeneidade entre elas. Ahlert afirma que
21
Acerca do que a autora dispõe sobre seu trabalho de campo e como se desenvolveu tendo como mote a
circulação e o movimento, parecem pertinentes as palavras de Goldman: "O problema, contudo, é justamente até
onde somos capazes de realmente escutar o que um fetichista, ou qualquer “nativo”, tem a dizer. A única
resposta (...) é “o máximo possível”, quer dizer, até sermos “postos em movimento pelos informantes”. Estes,
aliás, nunca são “informantes”, mas actores dotados de reflexividade própria, ou seja, teóricos, com os quais
podemos e devemos tentar dialogar e aprender." (Goldman 2009: 130).
22
Tema sobre o qual Freire (2016) se dedica em sua monografia.
45
são também homenageados, juntamente com suas entidades, nas festas.
(Ahlert 2013: 86)
No segundo capítulo, volta-se para as memórias sobre os pais e mães de santo com
quem conviveu, abordando sua relação com a mediunidade e com os encantados. Desse
modo, propõe uma ideia de noção de pessoa relacional, a partir das relações com os familiares
e com os encantados, que participam das tramas de parentesco. A autora parte de uma "noção
de família não substantiva, aberta e possível de ser continuamente modificada - ou seja,
podendo ser 'aumentada' e 'diminuída' dependendo do momento e do comportamento dos
familiares" (2013: 117-118), incluindo aí parentes consanguíneos, afins e "de consideração".
Os encantados também se organizam em famílias às quais fazem constantes referências. O
argumento de Ahlert é no sentido de que essa "flexibilidade" da família "permite o
entrelaçamento dos encantados e das pessoas". Desse modo
O terceiro capítulo fala da transição entre a mata e as tendas dos pais e mães de santo,
tendo em vista que "ter uma tenda (...) é também ter um festejo" (2013: 47), o que envolve a
realização de um grande festejo anual e consequentemente a dinâmica de visitas denominada
pagar noite. Assim, a autora descreve a organização das tendas, que de maneira geral
funcionam no mesmo terreno das casas em que moram os terecozeiros. Há sempre um altar ou
"mesinha", normalmente com imagens de santos, onde são realizadas as rezas, obrigações e
curas; podem haver também quartos de santo ou de encantados em geral dedicados a uma
entidade. Nem todas as mães e pais de santo possuem um barracão; colocá-lo implica em
46
construir um salão, mas também em aceitar as responsabilidades oriundas do cargo,
fomentando as atividades dos filhos de santo, bem como lidar com os custos de sustentá-lo -
que tem a ver tanto com os custos financeiros, com as implicações de organizar um festejo,
quanto com enfrentar resistências dos vizinhos e os estigmas que se intensificam (2013: 130-
137).
47
As pessoas devem estar sempre acompanhadas - em presença ou em
pensamento - pelos seus familiares, por seus encantados e pelos seus mortos.
É importante ter com quem contar diante da "precisão" (das dificuldades) e
das imprecisões da vida. É possível dizer que estas considerações se pautam
sobre uma noção de pessoa percebida em uma rede de relações, que brinca
com a noção de tempo e com diferentes percepções de vida e morte (de
ausência e presença). (Ahlert 2013: 224)
Considerações
48
O trabalho de Costa Eduardo (1948), como demonstrado, se conecta com os estudos
de aculturação e o projeto extenso de investigação da permanência de "africanismos" e
ligações com a África proposto por seu orientador, Herskovits. O de M. Ferretti (2001), tem
uma perspectiva mais sociológica, tendo como pano de fundo de análise a sociedade
brasileira. Por fim, o trabalho de Ahlert (2013) vem no bojo de uma antropologia
contemporânea que valoriza um trabalho de campo intensivo e parte das elaborações de seus
interlocutores para compreender a religião não como necessariamente circunscrita a um
campo definido, mas atravessando variadas dimensões da vida.
49
Destaque-se que, com diferenças marcantes, as preocupações de Costa Eduardo e de
M. Ferretti se voltam para uma outra questão em comum: a forma e os desdobramentos do
cruzamento entre diferentes vertentes ou, em outras palavras, aquilo que poderíamos chamar
de mistura. Se o autor quer encontrar aquilo que se manteve de África diante das misturas
ocorridas no Brasil (afirmando mesmo a necessidade de colocar o sincretismo como
perspectiva que atravessa a análise), a autora se preocupa com os desdobramentos de uma
"modernização" decorrente da mistura (do terecô com a mina, com o candomblé, mas
sobretudo com a umbanda e a quimbanda) que, em sua visão, tende à descaracterização. Se
um prega de maneira otimista uma "adaptação bem-sucedida", tendo "preservado muitos
padrões africanos, aceitado muitos traços da cultura européia dos senhores, emprestado dos
indígenas e combinado tudo em um novo corpo de costumes" (2008: 124), a outra concebe
um processo onde parece avassaladora a imposição de uma das vertentes, externa, sobre as
demais, de forma a sufocar outros agenciamentos possíveis. Assim, as duas teorias parecem
desembocar em uma concepção de mistura que reflete teorias de sincretismo e democracia
racial, seja porque há uma convivência harmônica e quase paradisíaca entre elementos
diferentes que se fundem em um caminho único, seja porque um dos elementos se impõe e
sobrepõe sobre os demais, promovendo também uma fusão que gera um produto único.
Aprofundaremos essa discussão nos próximos capítulos.
Por outro lado, o trabalho de Costa Eduardo (1948) e a busca por "africanismos" não é
necessariamente uma página virada na história da literatura antropológica; pelo contrário, há
contribuições importantes de tal linha de pensamento, o que não significa aderir cegamente às
conclusões dos autores que se dedicaram aos estudos de aculturação. Nesse sentido,
"[e]xistem textos para os quais a influência africana nestas religiões permanece
incontornável" (Banaggia 2008: 201), já que “a questão clássica da identificação de
africanismos nas Américas não nos parece esgotada, mesmo se esse tipo de pesquisa não pode
mais ser feito com a ingenuidade que caracterizava o primeiro afro-americanismo” (Dianteill
2003 apud Banaggia 2008: 201), mesmo porque a referência à África permanece de variados
modos relevante para os praticantes de religiões de matriz africana.
O trabalho de Ahlert parece se conectar com uma outra forma de encarar aquilo que
aprende com as pessoas com quem convive. Nas palavras de Banaggia,
50
Uma alternativa ao afro-brasilianismo consiste em imaginar que “nosso
saber é diferente daquele dos nativos, não por ser mais objetivo, totalizante
ou verdadeiro, mas simplesmente porque decidimos a priori conferir a todas
as histórias que escutamos o mesmo valor” (cf. Goldman 2006: 25), numa
tentativa de aplainamento das assimetrias na qual também a teoria
antropológica está inserida. (Banaggia 2008: 199)
Assim, "toma como seu ponto de partida as conexões feitas pelos próprios religiosos,
procurando levar em conta da melhor forma possível a concretude que eles mesmos conferem
a suas tradições" (2008: 200). Talvez o trabalho da autora implique em um momento da
antropologia sobre religiões de matriz africana que busca escapar aos dualismos que ora
entendem uma abordagem como "boa" e a outra "ruim" para dar lugar à constatação de que é
possível aprender com tudo isso. Nesse ponto, a noção de encruzilhada, muito presente nesses
contextos etnográficos e nas comunidades de matriz africana de maneira geral, pode nos
ajudar a pensar em uma chave que compreenda os cruzamentos enquanto pontos de
adensamento, que pode ser rápido ou perdurar no tempo. Nas encruzilhadas de diferentes
temporalidades, há sempre a possibilidade de novos arranjos, alianças e leituras sobre aquilo
que já foi feito ou produzido.
Por fim, quero chamar atenção para um ponto que acompanhará boa parte das
reflexões desenvolvidas nesta dissertação. Como vimos, a literatura sobre religiões de matriz
africana no Maranhão se concentra particularmente na cidade de São Luís, no tambor de mina
e, mais ainda, nas três casas mais conhecidas: Fanti-Ashanti, Casa das Minas e Casa de Nagô.
Se há conexões entre o tambor de mina e o terecô e não se nega que os trabalhos sobre
religiões de matriz africana em geral têm muito a acrescentar nos estudos sobre o tambor da
mata, parece que aqueles referenciais acabam por se impor sobre o campo. Assim, os
discursos em geral mais conhecidos subsumiram as dinâmicas do terecô às explicações
próprias de outras vertentes como o candomblé e sobretudo o tambor de mina, que operaram
como sobrecodificações sobre os discursos e as práticas dos terecozeiros. Indicativo disso é o
investimento de tempo e a atenção que dois dos autores aqui destacados, referências no tema,
dedicaram a terreiros de mina e à cidade de São Luís, notavelmente mais prolongado em
comparação àquele dedicado a Codó e seu entorno. Ambos buscam preencher as lacunas que
identificam com dados e informações coletadas em outros lugares e contextos religiosos. M.
51
Ferretti já havia chamado atenção para uma dinâmica análoga no que diz respeito à figura do
caboclo quando disse que
Ainda que reconheça tal atravessamento no que se refere ao caboclo, pode ser que a
visão da autora sobre o terecô esteja marcada pelos discursos em geral sobre o tambor de
mina e particularmente pela visão e interpretação dos praticantes da mina sobre Codó e o
terecô. Talvez valha refletir, sem ignorar que haja uma série de aproximações, se observar a
linha de Codó presente na mina é o mesmo que voltar a atenção sobre o terecô em Codó. As
entidades circulam com as pessoas, mas há uma dinâmica própria para lidar com essa
"chegada" na mina, que talvez não se confunda com a dinâmica própria do terecô em Codó e
mesmo em cidades mais próximas como Bacabal e Caxias. Do mesmo modo, o trabalho de
Costa Eduardo, quando lança mão de uma perspectiva comparativa com o tambor de mina e
outras manifestações de matriz africana, parece muitas vezes referenciar essas últimas em
detrimento das explicações dos terecozeiros. Nesse sentido, por exemplo, suas conclusões no
sentido de uma desorganização e perda da complexidade ritual, que talvez se contente com
um parâmetro externo e não contemple a dinâmica própria do terecô.
52
croa, os visitantes que recebe, a duração do festejo ou toque, naquilo que Barbosa Neto
(2017: 174) chama de composição heterogênea de forças. Ainda que diga respeito sobretudo à
faceta mais pública do terecô - talvez por essa mesma razão -, penso que o festejo é ocasião
privilegiada para perceber determinadas dinâmicas, sobretudo porque constitui de certa forma
o ponto adensador dos encontros entre pessoas, grupos, práticas, forças, casas, vertentes
religiosas, entidades.
53
2. Tempo de Baiar Terecô
Quando cheguei em Codó para fazer trabalho de campo, em março de 2017 fui direto
para a casa de Vera. Como da outra vez em que estive na cidade para trabalhar durante alguns
meses na AUCAC - Associação de Umbanda e Candomblé de Codó e Região -, ela, junto à
sua família, me recebeu em sua casa e foi minha anfitriã na cidade, me ajudando a retomar
contatos perdidos. A despeito da relação próxima e a convivência quase cotidiana com o povo
de terreiro da cidade por ocasião do trabalho realizado em 2014, não havia tido oportunidade
de ir a um festejo ou a uma tenda que estivesse em atividade. Ademais, com algumas poucas
exceções, manter o contato com as pessoas ao longo daqueles três anos que separavam as
duas viagens tinha sido um grande desafio; os números de telefone mudavam constantemente,
o acesso à internet nem sempre era fácil e muitas mensagens se perdiam nesses hiatos. Entre
idas e vindas, no entanto, eu e Vera conseguimos alimentar alguma comunicação, mantendo
aceso o laço que havíamos criado.
Seu Osmar, figura querida pela cidade, é o patriarca da família, bastante católica. A
mãe de Vera, dona Esther, que faleceu alguns anos atrás, fora afamada rezadeira e dona de
um notável espírito de liderança que a levou a tomar parte em organizações de mães,
fomentando cursos e modos criativos para angariar recursos e mantimentos para as famílias
da cidade que viviam via de regra com o dinheiro contado. Assim como outras figuras
conhecidas na cidade, como seu Wildelano, presidente da União Artística Operária Codoense,
dona Mariana rezadeira, seu Ribinha Muniz, importante liderança cultural, fundador de
grupos de Tambor de Crioula entre tantas outras atividades, ou o afamado pai de santo Bita do
Barão, seu Osmar é portador de muitas histórias sobre a formação da cidade e as
transformações que se passaram nos seus oitenta e tantos anos de idade. Sempre que eu
chegava em algum lugar, o fato de ser próxima à família de Vera angariava muitas simpatias.
Logo no início conversamos sobre a minha pesquisa e eu deixei explícito que buscava
os terreiros da cidade, assegurando que ela deveria ficar à vontade para me dizer se não se
sentisse confortável com isso, tendo em vista que passaria os meses seguintes frequentando
intensamente os festejos e toques que aconteceriam. A resposta foi bem direta: "aprendi com a
minha mãe, a gente respeita, mas não vai atrás. Eu te levo onde for e volto depois pra te
buscar se for preciso".
***
54
No primeiro reencontro com dona Teresinha, ela abriu um sorriso e me ofereceu um
café, enquanto perguntava se eu estava de volta para dar aulas novamente. Diante da negativa,
passamos umas duas horas conversando sobre o terecô e ela me mostrou seu barracão,
localizado no mesmo terreno, separado da casa de moradia por uma espécie de corredor ou
hall que também levava a uma escada para o pátio. Seu Domingueiro me recebeu com um
pouco de desconfiança quando soube que eu agora vinha "como pesquisadora". "Toda hora
vem um povo aqui, às vezes chegam com umas câmeras enormes, botam na cara das pessoas,
depois a gente nem sabe o que foi feito disso". Quando me viu no festejo de Café, algumas
semanas depois, as coisas mudaram um pouco: a desconfiança deu lugar a uma simpatia
acolhedora, reforçando o convite para seu próprio festejo, que aconteceria dali a uma semana,
na aleluinha. Dona Maria do Santo atendia um rapaz e, a despeito das minhas tentativas de
adiar o encontro, dizendo que não queria atrapalhá-la e poderia voltar outra hora, ela me
mandou entrar e sentar, enquanto dava conta dos preparos e instruções para o que estava
sendo feito. Conseguiu parar por cinco minutos, me ofereceu um copo d'água e também me
perguntou se eu tinha voltado para dar aulas. A resposta gerou a mesma desconfiança do pai
de santo. Mesmo assim, ela disse que eu voltasse. Nos encontramos em alguns festejos; a cada
encontro, a recepção mais calorosa.
É comum que as pessoas, quando começam a falar sobre o terecô, façam uma
comparação com o tempo antigo. "Antigamente o terecô era tocado na taboca, na maringa,
no meio do mato. Não tinha essas luxuosidades que hoje tem", me disse Chica Baiana,
encantada de seu Pedro d'Oxum. Mas o essencial mesmo é ter compromisso. "Muita gente já
não tem o mesmo compromisso de antes, aí o vodunso23 vai se afastando. Se a pessoa não
cuida ele se afasta. Tem que observar o preceito, o respeito". Muitos cuidados já foram
flexibilizados e tem gente que bota barracão sem ter estrada ou conhecimento suficiente, o
que é visto por muitos como um enfraquecimento das forças dos pais e mães de santo. "São
poucos os que sabem mesmo" e "hoje é muito difícil encontrar quem saiba mesmo as coisas,
que elas estão se perdendo" eram frases recorrentes. Seu Piauí, abatazeiro antigo, neto da
conhecida mãe-de-santo Maria Piauí, enumerou coisas que aconteciam antigamente em
decorrência do poder dos pais e mães de santo, e hoje já não se vê: você chegava para pedir
algo e ela já dizia do que se tratava; se quisesse, apenas dava o comando e a pessoa ficava
23
O termo vodunso foi usado muitas vezes como sinônimo de encantado e de orixá; os três termos, nesse
sentido, são intercambiáveis, mas é de se notar que haja momentos em que se dê preferência a um ou outro, a
depender do contexto, da entidade e do momento a que se faz referência.
55
imóvel, sem conseguir sair daquela posição a noite inteira; os encantados bebiam tiquira e
não cerveja - quem bebia tiquira e entrava na água (dos rios e açudes) - acabava se perdendo.
24
A monografia de Lima (2017) dedica-se ao estudo dessa família.
25
A organização em famílias está registrada na literatura antropológica (M. Ferretti 1993, 2001; S. Ferretti,
1985; Prandi e Souza 2011; Ahlert 2013; Lima 2017). M. Ferretti afirma que no tambor de mina há uma
classificação de acordo com diversos critérios, tais como categoria, família, linha ou nação. Nesse sentido, as
entidades "são organizadas em famílias extensas, tanto por pais-de-santo quanto pelos membros menos
graduados dos terreiros. As famílias de voduns da Casa das Minas e de ‘bonsus’ da Casa Fanti-Ashanti são
constituídas por parentes consangüíneos e não consangüíneos (...). Esta forma de organização é também
encontrada entre os gentis (fidalgos) e caboclos, tanto em São Luís como em Belém do Pará (...)". (1993: 100).
Importante notar, no entanto, que essa explicação parte da visão dos praticantes do tambor de mina
interlocutores da autora. Sobre a questão, Ahlert afirma que "[m]uitas dessas classificações são também referidas
em Codó, onde os encantados podem ser relacionados à linha da Mata, mas também ser entendidos como
caboclos (enquanto categoria), como uma família extensa (a família de Légua, por exemplo), como o povo de
Codó (quando relacionados à região de origem, diferente, portanto, do povo Bahia, do Pará, do Ceará etc.)."
(2013: 21). Para uma enumeração das famílias de encantados e indicação das características de alguns de maior
destaque, ver Prandi e Souza (2011: 216-280). Embora a lista (notavelmente extensa) tome por base a Casa das
Minas de Tóia Jarina em São Paulo, fornece um bom panorama da extensão e das características dos encantados
relativos também ao terecô.
26
Chica Baiana me contou que está na família de seu Pedro há anos; esteve com sua tataravó, bisavó, o avô,
ocasião em que fez, ela mesma, o parto do pai de santo. Chegou no Brasil pela Bahia, veio para o Maranhão e
desceu para o Codó, onde foi adotada pela família de seu Légua Boji Buá da Trindade. São muitas as histórias de
encantados que, não tendo relações de parentesco consanguíneo, foram adotados pelas famílias já estabelecidas,
particularmente a de Légua Boji, que parece estar se ampliando constantemente.
27
Eira é termo recorrente nas doutrinas que também dá nome a um dos quilombos da região, Eira dos
Coqueiros. Segundo dona Teresinha, antigamente chamava-se salão de intendência ou de eira. É o mesmo que
56
Sobre Légua Boji pairam muitas teorias. M. Ferretti (2001: 159 e 160) afirma que há
um silêncio em relação à sua história. A mãe-de-santo Antoninha descreve-o como o
encantado mais velho do mundo, um preto-velho angolano, e sua filha de santo e sucessora,
Maria dos Santos, fala dele como filho desobediente. Na literatura antropológica (Costa
Eduardo 1948; M. Ferretti 2001), assim como entre pais e mães de santo de outras regiões
como São Luís (M. Ferretti 2001), há especulações sobre sua relação com Legba e Polibogi
(Exu e Obaluaiê para os nagôs), bem como sua aptidão para trabalhos para o bem e para o mal
e possíveis associações com a 'linha negra'.
Tal interpretação, no entanto, parece estar embebida na ideia de uma separação entre
religião, curandeirismo (correspondente à magia branca) e feitiçaria (correspondente à magia
negra) (Nunes Pereira 1947 e Costa Eduardo 1948 apud M. Ferretti 2001: 154), que a autora
deduz ter desaparecido quando da multiplicação dos terreiros na capital e no interior, dando
lugar a uma integração entre os três pólos. Entretanto, me parece que os pais e mães de santo
de Codó percebem tais forças de bem e de mal de maneira um tanto distinta da divisão - ainda
que depois "integrada" - estabelecida pela literatura. Talvez seja interessante afastar a tentação
das especulações sobre as origens e classificação das entidades e pensar em suas interações,
funções, cruzamentos e efeitos no contexto do terecô. Assim, podemos pensar nas diferentes
bandas enquanto forças que atravessam e podem ser manejadas de diferentes formas,
obviamente considerando-se seus riscos, como é possível depreender da fala de dona
Antoninha que “na encantaria de Barba Soeira tem bom e mau, e que tem “segredo”, (...) não
se deve abusar dessas coisas” (M. Ferretti 2001: 120). Se não é aconselhável abusar, a
possibilidade de fazê-lo existe, podendo ser acessada ou não. No mesmo sentido, a impressão
de Ahlert (2013: 189) a partir da observação de uma "“farra” de Padilha" de que aquilo que é
considerado “pedido para o bem” e “pedido para o mal” é relativo ao contexto que motiva o
trabalho, de modo que a divisão não era definida na maior parte das situações. Note-se ainda
que os brincantes vez em quando fazem referência à necessidade de conhecer - e carregar
entidades da banda da esquerda28, que podem fazer coisas que as demais não podem - para
ter meios de desfazer algum trabalho que poderia ser tido como "para o mal". Ademais, sem
deixar de levar em conta as considerações das mães e pais de santo em relação à figura de
barracão, como as pessoas se referem aos terreiros de Codó, particularmente o salão onde ocorrem boa parte dos
rituais.
28
Há ainda as pessoas que, mesmo não tendo entidades da banda da esquerda em sua corrente, fazem suas
obrigações para elas, separadas das demais, porque julgam importante cuidar dessas entidades. Uma brincante
me disse que "todos nós temos as duas coisas", a esquerda e a direita; o que varia é a relação que se estabelece
com essas energias.
57
Exu, suas aproximações com a figura do diabo (seja aquele demônio pentecostal, o cristão, a
figura do compadre com quem se negocia, dos pequenos delitos, das brechas, do pacto com
diabo) e as razões que colocam para tanto, parece inevitável considerar os efeitos do racismo
para a associação das religiões e práticas em geral de matriz africana enquanto a coisas do
“mal”. Seu Domingueiro me disse que
Há uma miríade de entidades que aparecem nos terreiros de Codó ou são referenciadas
pelos praticantes de terecô, sem que haja exatamente uma homogeneidade nas percepções
entre as tendas ou brincantes. Canta-se para os voduns - particularmente para Verequete29,
como veremos adiante -, ainda que tais entidades não necessariamente baixem. Os orixás,
conforme ouvi muitas vezes, aparecem muito raramente e não descem em qualquer médium.
De maneira geral, os terecozeiros expressavam que os orixás comandam as linhas das quais
fazem parte correntes de entidades, vodunsos e encantados, que frequentemente descem
naquela linha. Para alguns pais e mães de santo, os orixás podem ser representados pelos
encantados (como é o caso, por exemplo, de Chica Baiana que afirma representar Oxum, de
maneira nada figurada, diga-se). Uma vez, visitando dona Maria dos Santos em sua casa,
contemplei uma pintura grande, pendurada em uma parede que dava de frente para a entrada
do salão, retratando um grande arco-íris 30 e uma série de pequenas figuras que faziam
29
Escolho grafar o nome do vodum da forma como meus interlocutores em Codó se referem à entidade, mas
encontra-se na literatura outras possibilidades: "Avérêquête" (Nunes Pereira 1947); "Averequete" (Bastide
2001; M. Ferretti 1993, 2001); "Verekete" (Bastide 1971).
30
Ao quadro e à interpretação da mãe de santo conecta-se de maneira muito interessante a imagem desenhada
por Flaksman: "Poderíamos imaginar que o panteão dos orixás se organiza à maneira das cores no espectro do
arco-íris. Sabemos que o arco-íris é um fenômeno ótico que surge pelo desdobramento da luz do sol,
originalmente branca (composta pelo conjunto de todas as cores), em um espectro sucessivo de cores. As sete
cores que conseguimos diferenciar são o que se pode distinguir a olho nu, mas o espectro da luz do sol é
58
referência a orixás. Ela me explicou que aquelas cores representavam as linhas puxadas pelos
orixás das quais os encantados fazem parte e, sem entrar muito em detalhes, concluiu que
"está tudo ligado"31.
contínuo, ou seja, e como bem se sabe, o arco-íris exibe um infinito de cores. Entre uma cor e outra, portanto, é
sempre possível se encontrar outras. Nessa visão mais rica e complexa da escala cromática, a separação não é
perfeitamente delimitada e não existe divisão nítida: cada faixa invade a área da seguinte, mesclando-se a ela,
como dois conjuntos em interseção." (Flaksman 2017: 160)
31
Penso que o trabalho de Flaksman pode igualmente trazer uma perspectiva interessante para pensar a questão.
A relação entre as diferentes entidades - orixás, voduns, santos, encantados - pode ser bem traduzida pela noção
de enredo, como se lê: "Foi pensando nessa insuficiência da nossa própria língua (...) que percebi que um termo
muito utilizado no candomblé de Salvador — “enredo” — poderia dar conta dessa relação em que estar próximo
de algo significa tornar-se um pouco essa coisa (...) Ter enredo é ter uma relação; ou melhor, um complexo de
relações. (...) Ter enredo significa tanto ser um pouco o outro quanto estar um pouco no outro — e ter um pouco
do outro." (Flaksman 2017: 159; 163).
32
Sobre as formas de incorporar novos membros: "[s]egundo Ricardo Légua, há similaridades entre a forma com
que se organiza o parentesco no mundo do pecado e na Encantaria, onde existem tanto os laços de sangue
(quando as pessoas são todas da mesma descendência) como laços de consideração, quando não há
consanguinidade, mas existe convivência e respeito." (Ahlert 2013: 121)
59
Dos festejos
33
O Tambor de Crioula é característico das celebrações do dia 13 de Maio, em Codó, data em que se comemora
a Abolição. Os mais velhos da cidade contam que antigamente era mais comum que o Tambor de Crioula
acompanhasse as rezas e outros eventos da cidade, mas que hoje já não se encontra com tanta frequência quem
dance. M. Ferretti descreve a presença da brincadeira em vários momentos da Casa Fanti-Ashanti, junto a rezas,
obrigações e "para dar vida à festa", como dizia Pai Euclides, sendo muito apreciada pelos caboclos e encantados
(1993: 372-374).
34
Este último pertencera a seu Ribinha Muniz, segundo Dácia Abreu e Noelson Trindade que me
acompanhavam no dia.
60
Cada terreiro de Codó oferece ao menos um grande festejo35 no ano, chefiado pelo pai
ou mãe de santo, homenageando um santo, orixá, encantado ou mesmo um grupo de
entidades, ocasião na qual recebe integrantes de outras tendas com comida e bebida no salão
todo decorado. Diante da pergunta acerca da data do festejo de uma casa, a resposta dos
terecozeiros em geral diz respeito àquele ou àqueles que são considerados os "principais"
daquela tenda. No entanto, a convivência com o povo de terreiro em Codó por algum tempo
logo revela que são muitos os toques e seus motivos. Não por acaso, é quase certo que haja
alguma cerimônia em qualquer noite do ano36. A única exceção é o período entre o carnaval e
a semana santa. Durante a quaresma não há toques e deve-se observar algumas restrições
como não comer carne, não ter relações sexuais, manter os santos cobertos por um tecido e só
há atendimentos em casos de emergência e forte necessidade.
Foto 3: Mãe-de-santo Maria dos Santos em frente ao seu altar, no salão da Tenda Santa Bárbara.
35
Segundo Ahlert: "A casa/tenda vive intensamente o festejo - e vive por dentro, sendo ocupada pelos
encantados e pelos visitantes. O festejo também lança o terecô para a rua e para a cidade, pois a partir dele os
encantados saem das casas e acompanham procissões, assistem forrós e serestas, se deslocam para visitar tendas
e levar seus "cavalos" de volta para casa. Estão presentes em espaços e tempos não sempre pensados como
religiosos e rituais." (2013: 153)
36
"É difícil estimar a quantidade de festejos realizados em Codó. Se temos em média duzentas e cinquenta
tendas na cidade e se cada uma delas tiver apenas um festejo de três dias por ano, teríamos cerca de duas tendas
tocando tambor por dia. Esse dado é uma suposição, apenas para ilustrar a frequência das festas." (Ahlert 2013:
141, nota 138).
61
Há sempre um altar onde estão dispostos os santos devoção, hábito popular nas casas
de Codó, e particularmente naqueles presentes nas tendas é comum encontrar imagens de
Santa Bárbara, São Benedito, São Sebastião e de Padre Cícero (ou Padim Ciço). Dona Maria
dos Santos, como outros pais e mães-de-santo, explicou que se cobre os santos na semana
anterior à Páscoa, para serem descobertos no sábado de Aleluia, quando as casas reabrem.
As explicações para tal interrupção das atividades nos terreiros são muitas. Algumas
pessoas me disseram que a prática se deve ao respeito que guardam em relação à Igreja
Católica e ao cristianismo. Em comunicação pessoal, Martina Ahlert relatou que para a mãe
de santo Luizinha, a quaresma é período de luto pelo que aconteceu com Jesus Cristo.
Ademais, Ahlert sugeriu que pode tratar-se, entre outras funções, de uma pausa em um
calendário extremamente atribulado, descanso fundamental para que todas as demais
atividades sejam viáveis. Interessante também, ainda que não tenha me deparado com esta
explicação em Codó, mas tomando em conta os trânsitos com o tambor de mina, o que diz M.
Ferretti acerca da questão. Nessas considerações entra ainda o fato de que há uma presença
importante dos voduns para o tambor da mata, mesmo que as entidades não necessariamente
desçam nos rituais de terecô, como veremos mais à frente. Em São Luís, M. Ferretti tomou
contato com uma elaboração acerca da quaresma:
Acredita-se nos terreiros de São Luís que voduns e tobossis são entidades
espirituais de encantarias africanas que tiveram que 'sair pelo mundo',
acompanhando seus filhos quando estes foram escravizados. Há quem
afirme que, apesar de afastadas do continente africano, aquelas entidades
continuam indo à África anualmente, na quaresma, daí porque neste período
os terreiros não realizam rituais que exijam sua presença. (M. Ferretti 1993:
147-148)
Finda a quaresma, portanto, é preciso realizar um toque de reabertura, pois a casa não
deve ficar parada por muito tempo. Em algumas tendas, como foi o caso de dona Teresinha no
ano de 2017, o toque é realizado durante o dia, com trajes simples e com a presença apenas
62
dos filhos da casa, pessoas próximas e de alguns curiosos que chegam para ver; em outras
promove-se uma festa maior, com a tenda enfeitada, as roupas mais elaboradas e a visita de
outros grupos, bem como obrigações tais como o aniversário de alguma entidade. Esse foi o
caso, por exemplo, da tenda de Café, que celebrou o aniversário de Supriano, e a de seu
Domingueiro, que fez um toque de dois dias, um deles com o aniversário37 da encantada
Maria Moça.
O segundo semestre é o mais intenso, grande parte das tendas concentrando seus
festejos principais nessa época. O calendário dos brincantes fica cheio de compromissos
diante da prática de ganhar ou pagar visitas. Segundo Ahlert, "[p]ara os dois movimentos -
receber e visitar - é preciso tempo (...). O calendário dos festejos marca uma constituição
ritual do tempo e, ao mesmo tempo, suspende o ritmo das atividades 'comuns', deixadas de
lado em virtude das visitas e dos festejos." (2013: 158). Quando estive em Codó em
novembro para os festejos da Tenda Nossa Senhora da Conceição e da Tenda Santa Bárbara,
muitas pessoas comentavam que aquele era o momento mais atribulado: tamborzeiros
contavam que haviam virado muitas noites sem pausas e outros tantos falavam que as
atividades só dariam alguma arrefecida depois do festejo da Tenda Santa Luzia, no dia 13 de
dezembro. Além dos festejos principais, soube da existência dos toques de lava-pratos,
obrigação feita após o festejo principal. Dona Teresinha mencionou que o realiza quinze dias
após o encerramento do festejo de novembro como que para fechar os trabalhos da tenda.
63
2.1 Depois da quaresma
O primeiro toque a que fui aconteceu na casa do pai-de-santo Café, Tenda Espírita de
Umbanda São Cipriano, no sábado de Aleluia. Dona Teresinha havia me convidado para ir
junto com ela e pediu que a encontrasse em sua casa para que ela pudesse me cruzar antes de
ir porque "a gente vai nessas festas e lugar que tem muita gente tem bom e tem ruim e às
vezes não dá pra saber". Seu Pedro d'Oxum me falou em certa ocasião que "quando a gente
sai da casa da gente pra pagar uma visita, a gente já sai de peito limpo, de peito aberto, a
gente já fez nossas obrigações, e tamos indo para contribuir". Se proteger e fazer suas
obrigações, portanto, para poder brincar terecô e contribuir para embelezar a festa dos
terreiros amigos de coração limpo. Tais práticas, ademais, não se restringem aos momentos de
visita; pais e mães de santo, filhos de santo, brincantes em geral, abatazeiros38, todos devem
observar suas obrigações e atentar para os cuidados a serem tomados para manter o corpo
preparado para os rituais de que tomam parte. Dona Iracema pede que todas as pessoas da
casa, incluindo os tamborzeiros e maracazeiros, tomem um banho de folhas antes de adentrar
o salão. Suas filhas, além disso, devem ficar recolhidas durante os dias de festejo, "tem que
ficar dedicado dentro. Fica logo aqui pra não quebrar a corrente. Você vai atravessar uma
linha, uma encruzilhada, você não sabe o que é que tem pra lá e aí quebra sua corrente". Seu
Piauí39, tamborzeiro antigo, certa vez me explicou que é preciso, entre outros procedimentos,
evitar fazer sexo nos dias de toque para manter o corpo limpo e não dispersar a energia;
antigamente nem mesmo era permitido que pessoas integrantes do mesmo terreiro
namorassem. Na sua visão, hoje em dia os pais e mães de santo perderam muita força em
comparação a como era antigamente, justamente porque muitas dessas regras foram
flexibilizadas. Eventualmente, a negligência de um brincante ou tamborzeiro em relação a tais
cuidados 40 pode afetar o andamento do toque como um todo, abrindo espaço para
divergências, obstáculos inesperados e problemas no andamento dos toques ou entre as
pessoas de uma maneira geral. Certa vez, entidades incorporadas em membros de uma tenda
iniciaram uma discussão que gerou tensão nos demais brincantes, ameaçando inclusive a
38
Utilizo, seguindo as referências dos terecozeiros de Codó, abatazeiro, tamborzeiro e, de forma menos
frequente, cabaceiro ou maracazeiro como sinônimos. Além dos termos serem mobilizados para se referir aos
músicos de maneira genérica, estes revezam as funções ao longo do toque. É mesmo difícil mensurar exatamente
quantos estão envolvidos na bateria de um toque, tendo em vista que há aqueles que chegam vestidos com
roupas da tenda ou ao menos coordenadas com as roupas dos demais brincantes; porém, é comum que pessoas
que sabem tocar - não necessariamente ligadas à casa em questão e mesmo pessoas não preparadas - se
aproximem e tomem parte nos instrumentos também. Sobre o ponto, ver Lamy (2016).
39
Seu Piauí me contou que era neto de Maria Piauí e aprendeu a tocar por causa da avó, que o colocava desde os
sete anos sentado no tambor. Hoje, além de tocar em inúmeros festejos, ele ensina novos tamborzeiros.
40
Sobre a questão dos cuidados e do risco da negligência ver também Amoras, 2018.
64
continuidade do festejo, e um tocador comentou que o ocorrido era fruto da negligência de
outro abatazeiro, que "não se cuida" e "fica deitando com mulher em dia de toque".
Alguns dias depois da festa de Café, quando voltei à sua casa, dona Teresinha estava
muito contrariada porque durante aquela noite uma tia, sua mãe de pegação - a pessoa que
auxilia no parto - havia falecido em Coroatá. O encantado Seu Rei de Minas, que ela recebera
naquela ocasião, não quis subir41 alegando que se o fizesse ela sairia desbaratada ainda de
madrugada para Coroatá e não podia deixar isso acontecer, de modo que brincaria até de
manhã. Quando voltou a si, a mãe-de-santo ficou com raiva e disse a suas filhas que elas não
tinham autoridade nenhuma para terem permitido aquilo. A relação dos cavalos com as
entidades é pautada por constantes negociações (Ahlert 2013; Lima 2017), em uma relação
bastante horizontal, na qual é comum que as pessoas expressam abertamente suas
discordâncias para com atitudes de seus encantados. Tais negociações, por outro lado,
também passam pelos procedimentos de cuidado nos termos expostos no parágrafo anterior,
tendo em seu centro as obrigações que, como veremos, constituem elemento fundamental
para manter a força da relação entre médiuns e encantados42.
De todo modo, ela disse que iria ao segundo dia de festa do seu Domingueiro. A mãe
de santo é madrinha do tambor de mina dele. Segundo ela me explicou, há essa prática de
apadrinhar uma mesa de aniversário, uma pedra, um tambor, em geral a pedido do encantado.
Os tambores, em particular, são batizados antes do uso (Lamy 2016: 81). Pedro d'Oxum me
contou que antigamente o termo usado no lugar do atual pai-de-santo era padrinho e
madrinha. Muitas pessoas continuam a fazê-lo, chamando as lideranças espirituais com quem
se relacionam de maneira mais próxima de "padim" ou "madinha".
41
Subir, descer, baixar são termos relativos aos processos de incorporação e desincorporação.
42
Em seu trabalho sobre umbanda em Valença, Maria da Consolação Lucinda comenta as palavras de mãe
Lourdes, sua interlocutora, nos seguintes termos: "Este jeito de expressar-se sobre a espiritualidade indica
também que sem esforço, sem renúncia de si em algumas circunstâncias, a parceria fundamental entre filho-de-
santo e entidade pode não se efetivar a contento." (Lucinda 2016:187-188)
65
Os foguetes anunciaram o início do toque, como é comum nos dias de festa nos
terreiros da cidade. Cada grupo que entrava realizava, de modo mais ou menos discreto,
algum tipo de ritual: faziam o sinal da cruz, encostavam no grande cruzeiro que ficava de
frente para a entrada ou faziam um gesto no canto do salão. Seu Domingueiro adentrou o
espaço seguido em fila por suas filhas e filhos de santo, todos vestidos de branco, formando
um círculo. Ele então puxou um Pai Nosso e uma Ave Maria e ofereceu a "nossa Mãe Iansã,
gloriosa Santa Bárbara, a deusa e a mãe de todos nós; chefe e padroeira dessa casa". Depois
das informações sobre a festa, que só terminaria com uma procissão na segunda-feira, às 7h, e
que celebraria a encantada Maria Moça na noite seguinte, puxou um ponto para Ogum:
66
movimento do corpo ainda mais conectado ao som dos tambores, afetando os ombros, os
braços, os pés. Em alguns cavalos a incorporação se dava de forma mais sutil, em outros
trazia consigo movimentos bruscos, demandando a intervenção de companheiros que
ajudavam a firmar a chegada dos encantados44.
As entidades farristas, como ouvi muitas vezes em Codó, são as que muito
frequentemente baixam nos festejos para aproveitar a noite, rindo, brincando e bebendo com
44
Certa vez, no terreiro de dona Iracema, vi uma mulher que estava sentada em uma cadeira ao canto do salão
ser repentinamente jogada ao chão, sendo amparada por uma moça que estava próxima. O corpo da médium
fazia movimentos bruscos, mesmo violentos, até parar de frente para uma imagem posicionada bem ao lado do
altar principal e bater inúmeras vezes no chão. A pessoa que a assistiu me disse que o encantado "sempre
maltrata ela demais".
67
os visitantes. As entidades são muitas, cada uma vindo em uma corrente e dedicando-se a
atividades variadas. Enquanto as farristas vão para os festejos e gostam de curtir e beber, há
aquelas que estão mais para as práticas de vidência, ou ainda que atendem em mesas brancas,
promovem tratamentos de saúde, fazem determinados tipos de trabalhos, etc., em um sem
número de possibilidades.
No segundo dia, a dinâmica foi um pouco diferente. O salão estava enfeitado em verde
e branco, com uma mesa decorada e um bolo grande enfeitado. Era aniversário da encantada
Maria Moça. Seu Domingueiro entrou no salão com uma roupa verde e rosa, seguido do
pessoal da casa, de branco com detalhes em verde. Dessa vez ele falou pouco e seu pai
pequeno foi quem puxou a abertura dos trabalhos. Ele se sentou em uma cadeira imponente
enquanto o rapaz tomava a organização dos trabalhos e dizia umas palavras para abençoar a
abertura e cantava algumas doutrinas, no ritmo da mina:
Quando Maria Moça chegou, ele deu a ela o braço e desfilou por dentro da roda
enquanto seguia cantando os pontos. Parabéns cantado, bolo distribuído, salão rearrumado e
recomeçam os trabalhos, agora com os tambores tocando mata, em uma dinâmica parecida
com a da noite anterior. Alguns dias depois, seu Domingueiro me explicou que não se tratava
de uma obrigação, mas apenas uma arriada de princesa; obrigação mesmo só no festejo
grande, em dezembro. Talvez possamos entender arriada como oferenda, procedimento mais
simples que pode, nos termos do pai-de-santo, ser feita em situações menos elaboradas, mas
também está contida na obrigação. As princesas são entidades encontradas nos terreiros de
tambor de mina, mas, segundo ele, o ritmo da mina é apenas para descansar os médiuns, pois
todas as entidades que descem pertencem à mata.
68
Foto 5: Aniversário da encantada Maria Moça, incorporada no pai-de-santo Domingueiro.
69
que faziam piadas e brincadeiras entre si. Supriano, entidade do pai de santo Café, ria e
anunciava que ficaria em terra até dia 13, emendando um festejo no outro. Seu Rei de Minas
determinou o fim do toque por volta das 8h para que todos pudessem tomar café da manhã e
dar continuidade aos preparativos necessários.
Horas mais tarde e os foguetes novamente estouravam no céu. Por volta das 20h
iniciou-se a reza, que já estava em seu sexto dia, puxada por um rezador. As rezas podem
acontecer por devoção a um santo, ao longo do ano, como dona Maria dos Santos me disse
fazer no mês de Maria, maio, quando também costuma vestir branco; ocorrem frequentemente
também antes dos toques e durante os festejos, variando em número de noites a depender da
tenda. Nesse caso, muitas vezes começam alguns dias antes do início do festejo e seguem
pelos dias de festa adentro.
"O povo de Codó é feliz porque reza muito e reza porque gosta. Reza de todo jeito, em
todo lugar, sempre tem uma reza. Muitas vezes reza e depois vai pras suas macumbas, bate
seus terecôs ou o que for". Esses foram os dizeres de seu Wildelano, por ocasião da Novena
de Maio da União Artística Operária Codoense, presidida por ele, que igualmente comanda a
Banda Euterpe46, banda da Prefeitura que toca em diversas ocasiões, eventos municipais e
cerimônias religiosas como velórios, rezas e procissões. As rezas, portanto, fazem parte do
cotidiano de boa parte da cidade, e são muitas vezes lideradas pelas rezadeiras como dona
Mariana e por algumas vezes Vera, minha anfitriã em Codó, que, embora não frequentasse os
terreiros, andava auxiliando rezadeiras mais experientes, retomando o trabalho que sua
falecida mãe fazia.
Dentro do salão, de frente para o altar formado por várias imagens, em sua maioria
santos católicos se encontravam os filhos da casa e algumas pessoas próximas que
acompanhavam o terço. O rezador puxava a primeira parte de cada oração e a segunda
metade era completada pelas vozes em coro. A cada mistério a ser meditado entoavam-se
cantos. No quinto mistério, a parte final do terço, rezada em conjunto com todos de pé. Ao
46
A primeira vez em que vi a Banda Euterpe em ação, para além dos inúmeros ensaios que presenciei por ocasião
das conversas com seu Wildelano no salão da União Artística, foi no velório de seu Ribinha Muniz, que faleceu
em 1o de maio de 2017. A Banda tocou durante todo o tempo em que os parentes e amigos chegavam à casa do
líder cultural onde ocorria o velório, a missa e as rezas e ladainhas puxadas pelas rezadeiras e acompanhou a
procissão que seguiu até o cemitério da cidade, formada por integrantes de grupos culturais, integrantes dos
terreiros, tamborzeiros e dançarinas de tambor de crioula, boi, grupos de rezas, entre parentes e amigos.
70
fim, após uma salve rainha cantado, cantaram-se os benditos e ladainhas, músicas em louvor
dos santos, como esta:
Ao fim da reza, todos juntos repetiram os dizeres "se foi bem rezada, vós aceitais, se
foi mal rezada, vós perdoais". Reza encerrada, os filhos de santo foram cumprimentar os
presentes e calmamente iniciar os preparativos para mais tarde. Preparados de ervas para o
banho antes de vestir as roupas da noite e toalhas enroladas nos corpos à espera de sua vez
nos chuveiros das pequenas construções do terreno. Zé de Brito, o responsável pelo bar,
também incumbido do som, fez tocar as músicas em alta na região, os arrochas e bregas,
enquanto vendia refrigerantes e cervejas para os visitantes. Os médiuns, mesmo aqueles que
chegavam bem cedo para esperar já na casa, em geral não consomem bebidas alcóolicas nos
71
dias de toque e antes da incorporação. Tais bebidas, como veremos, são consumidas em larga
quantidade pelos encantados, que via de regra "levam embora" os efeitos do álcool, a não ser
que queiram castigar seus cavalos quando esses agem de modo reprovável pelas entidades - o
que pode significar, por exemplo, negligência em relação aos cuidados e obrigações ou a
comportamentos contrários às orientações dos guias47.
***
47
Barbosa Neto (2012: 163-164) narra episódio no mesmo sentido vivido por Pai Luis no batuque do Rio
Grande do Sul, quando uma de suas entidades, insatisfeita com a demora do pai de santo em providenciar sua
morada no terreiro, controlou seu corpo, levando-o à beirada do terraço e proferindo ameaças. "Pai Luis, no
entanto, sempre lembra que essa relação, ainda que seja com aquele odú que nos favorece, nunca é simples e
deve ser objeto de constante atenção". Assim, "(...)todos os seres sobrenaturais são, como se costuma dizer,
'facas de dois gumes'. O próprio orixá, quando a pessoa está em falta com ele, pode mandar o odú em seu lugar,
como uma maneira de puní-la".
72
O relógio passava da meia-noite quando os foguetes voltaram a estourar. Os visitantes
se aprumaram em suas cadeiras espalhadas pelo quintal a céu aberto, voltando sua atenção
para a entrada que dava para a rua, na expectativa do que aconteceria. O cruzeiro, no meio do
terreno, comportava uma vela em cima e uma à frente, acesas. Um pequeno arbusto, comum
nos terreiros da cidade, banhava o chão de flores brancas. Em fila, na porta, surgiram todos
vestidos de branco - as mulheres de saia e blusa, os homens com uma espécie de bata
comprida, todos usando um torço amarrado na cabeça e toalhinhas à mão, usadas para secar o
rosto quando o calor se fazia muito forte. O volume da música do bar diminuiu, sem que
deixasse de tocar. Dona Teresinha, acompanhada de seus filhos de santo, começou a andar,
dando a volta no cruzeiro48 para então entrar no salão, formando um círculo. Os tamborzeiros
já estavam a postos, o couro dos tambores aquecido, esperando o momento de iniciar o toque.
Duas velas, uma branca e uma amarela, acesas bem no centro do salão, refletiam a chama no
piso azulejado. Formando um círculo ao redor do lume, os filhos de santo ajoelharam e
inclinaram o corpo até chegar próximo ao chão, seguindo o movimento de dona Teresinha.
Uma moça que estava na assistência49, estendeu o microfone para a mãe de santo, que iniciou
o Louvariê50, obrigação que abre os festejos principais das tendas de terecô. A cada louvação
a mãe de santo girava a cabaça, seguida de uma resposta do coro.
O tambor da mata costuma ser aberto com o Louvariê, onde canta-se para o vodum
Verequete - que não desce para ser incorporado - e para as entidades espirituais cultuadas pelo
grupo (Costa Eduardo 1948; M. Ferretti 2001). Segundo dona Teresinha, o Louvariê é o
momento em que se canta para os voduns e que Verequete51 não desce porque não há pessoas
preparadas para recebê-lo ali, preparação essa específica e mais comum em São Luís, onde é
possível vê-lo presente em rituais de tambor de mina. A mãe de santo conta que o momento
do Louvariê é aquele em que se "puxa o povo da mata" e Verequete aparece como aquele que
48
O cruzeiro, uma grande cruz posicionada no pátio em algum ponto próximo à entrada dos terreiros, parece ser
algum ponto de força; há momentos, como veremos em alguns exemplos, em que os encantados dançam em
frente a ele, muitos convidados se benzem aí quando adentram uma tenda, os anfitriões acendem velas, etc.
49
Há sempre a presença de pessoas que não incorporam, mas ficam dando a assistência naquilo que for
necessário, conservando as chaves das portas que estão fechadas guardando a parte do terreno onde fica a casa
que serve de moradia para a mãe de santo, providenciando bebidas e acessórios utilizados pelas entidades, etc.
50
A grafia procura seguir a forma que encontrei em campo, assim como está presente na literatura mais recente
sobre o tema (Lamy 2016; Lima 2017); há, na literatura, registro de outras formas, como se vê em M. Ferretti:
"A palavra 'Novariê' foi por nós também grafada como ‘Sanvariê’ e por Costa Eduardo (que transcreveu sua letra
em 1944), como ‘La Vaire’, e ‘São Varie’ (COSTA EDUARDO, O. 1948:63)." (1993: 140)
51
Segundo Ahlert, "Averequete e Badé são duas entidades para as quais se toca constantemente em Codó. Eles
são voduns da família de Queviossô, de origem nagô e hóspede na Casa das Minas em São Luís. Averequete é
jovem, enquanto Badé é considerado adulto e chefe da família" (M. Ferretti 2000 apud Ahlert 2013: 29)51. Há,
ainda, associações registradas na literatura antropológica com São Benedito e com Ewá (M. Ferretti, 1993,
2001).
73
"traz a linha da mata" e "organiza todas as correntes". A lista de entidades evocadas nesse
momento é longa e faz referência àquelas relacionadas à tenda, com a recorrência de
entidades como Santa Bárbara. Há uma variação entre as diferentes tendas sobre o modo, o
ritmo e as entidades evocadas no Louvariê. Costa Eduardo (1948: 63) fez uma transcrição da
música entoada naquela ocasião; julgo, porém, que a diferença em relação ao que presenciei
na casa de dona Teresinha causaria estranhamento, de modo que farei exercício análogo ao do
autor, tentando reproduzir um trecho curto, sem a pretensão de alcançar uma transcrição
apurada52 ou que contemple todas as casas ou ocasiões em que se canta o Louvariê:
Louvariê, iê, iê
Ó, minha rainha
Vem me valer, minha mãe
(...)
(Louvariê)
Louvariê, iê, iê
Ô Santa Bárbara
Vem me valer
...Verequete...
52
É particularmente difícil discernir as palavras enunciadas nesse momento e nem mesmo posso afirmar com
certeza se todas estavam em português. Embora ouça inúmeras vezes a mãe de santo mencionar "Verequete",
não compreendo as palavras ditas imediatamente antes ou depois. A transcrição está, desse modo, mais a título
ilustrativo, para dar brecha a alguma imaginação sobre o momento, e ao mesmo tempo mais próxima do que
presenciei na tenda Nossa Senhora da Conceição do que a letra registrada por Costa Eduardo (1948).
74
Todos então começaram a bater com as duas mãos no chão em um ritmo coordenado
com os tambores e cabaças que começaram a tocar. A mãe-de-santo apanhou a vela amarela e
se ergueu, seguida pelos demais, enquanto o ritmo da louvação ganhava uma marcação mais
definida e progressivamente acelerada - que recebia respostas mais rápidas com "louvariê!" -
até passar a cantar doutrinas que seguiam o ritmo da mina. O grupo começou a girar
lentamente, em passos curtos. Outros cantadores assumiram o microfone, e, ao lado da
bateria, puxavam pontos na mina, que logo após uma breve pausa na bateria, virou para a
mata. O ritmo do toque, do canto e da dança acelerou.
*
A água mais a areia
São dois irmãos reais
A água vai embora
Areia (fica no lugar)
Areia (fica no lugar)
É na areia
É na areia
Cabocla da tapuia vai rolando
É na areia
Na areia, (na areia), na areia, (na areia)
Virar para a mina, virar para a mata são expressões correntes no universo do tambor
da mata. Nos toques de terecô, de tempos em tempos o ritmo muda para o toque da mina,
mais cadenciado e "lento". Os tambores são os mesmos (o tambor utilizado nos terreiros de
mina, com membranas nas duas extremidades e tocado na posição horizontal, não é o mesmo
utilizado nos de terecô53, que tem apenas uma extremidade coberta com couro de animal e é
tocado na posição vertical), mas o toque muda juntamente com as doutrinas puxadas. A
energia parece diminuir sensivelmente de intensidade, assim como a velocidade da dança dos
médiuns e das entidades já incorporadas. A explicação corrente, tanto na literatura
antropológica (M. Ferretti 2001; Ahlert 2013) quanto na explicação do povo de terreiro, diz
53
É possível encontrar tambores de mina, horizontais, em alguns terreiros como o de seu Domingueiro, ainda
que essa não seja a regra, mas eles não necessariamente são usados nessas transições.
75
que tal virada serve para descansar os médiuns, já que o ritmo da mata é muito acelerado.
Muitas pessoas me disseram também que o toque da mina é o indicado para o começo das
obrigações, assim como muitas vezes dá o tom do toque puxado quando muda o cantador
que, depois de uma ou duas doutrinas na mina, pode virar para a mata. Veremos no próximo
capítulo alguns desdobramentos que podemos depreender dessa prática tão marcante.
Foto 8: Abatazeiros durante o festejo da Tenda Nossa Senhora da Conceição. Seu Piauí de camisa verde.
***
Em muitas tendas, segundo algumas pessoas me disseram depois, o primeiro dia é
mais reservado para os integrantes da casa, contando com a presença de poucas pessoas "de
fora"; isso varia de tenda para tenda, mas também a depender de uma série de fatores, tais
como visitas que faz às casas amigas e de que modo, porte do terreiro, número de dias de
duração do festejo, obrigações feitas naquele dia homenageando que entidades, etc. Naquele
dia, portanto, havia basicamente pessoas próximas à casa em um clima mais familiar, com as
entidades conversando entre si, fazendo piadas e muito à vontade em um espaço "dominado"
por elas. Havia alguma presença de curiosos, pessoas em busca de ouvir a música e consumir
bebidas alcóolicas em níveis variados. Eventualmente os seguranças contratados eram
chamados para contornar algum comportamento excessivo que estivesse incomodando em
demasia o povo da casa, mas via de regra as pessoas se divertiam e observavam o festejo.
76
Existem muitos motivos pelos quais as pessoas que não são brincantes se aproximam
para tomar parte nos festejos dos terreiros de Codó. Por curiosidade, para buscar a música do
bar e a bebida como quem busca diversão em algum lugar da cidade, pelo interesse no
movimento e no baiado das entidades ou uma oportunidade de conversar, pedir alguma ajuda,
oferecer algum agrado, ou mesmo por acompanhar amigos e suas entidades. Em certa ocasião,
conheci uma moça que acompanhava uma amiga médium, mais particularmente uma de suas
encantadas, Teresa Légua, pelos festejos em que fosse, mesmo os mais distantes. Não baiava,
apenas auxiliava a companheira e sua entidade no que fosse preciso, fazendo também
registros com a câmera do celular. Ela me explicou que o fazia porque tinha mediunidade,
mas a encantada segurava sua corrente para que não se manifestasse. No entanto, a suspensão
estava condicionada ao bom comportamento da moça aos olhos da entidade, e ela a
acompanhava com gosto.
2.2.2 Obrigações
54
Segundo Ahlert, "Dos encantados se recebe muitas bênçãos e com eles se travam relações de proximidade. A
familiaridade, entretanto, não exclui o fato deles não serem necessariamente benevolentes. As ‘boas’ relações
com os encantados dependem de um sistema de prestações e contraprestações feito por intermédio das
“obrigações”. Rezas realizadas em horários marcados, o acendimento de velas durante o dia e a noite, tabus
alimentares, restrições sexuais e a manutenção dos festejos são algumas das possibilidades do que se denomina
obrigação, uma regra fornecida pelo encantado ao pai de santo. O seu não cumprimento leva a cobranças por
parte das entidades e mesmo a punições feitas sobre seus “cavalos”." (Ahlert 2013: 113)
77
Cada dia tem um santo, tem um orixá que pertence àquela obrigação e a
gente tem que cantar pra ele. Quem decide é a mãe de santo, o pai de santo,
é quem puxa. Tem a ver com as obrigações que a gente tem que fazer.
Porque os médiuns, cada um tem um tipo de medionagem. Não pode ter tudo
igual, só uma corrente só. Não. Cada um tem a sua medionagem. Quem tem
Verequete tem, quem tem Xangô tem, quem tem Iansã tem, quem tem Oxum
tem, quem tem o povo só da mata tem, que é Légua Boji da Trindade, que
ele é do Maranhão mesmo. É da mata, é a mata. Porque o dono da
encantoria de Codó, daqui do Maranhão, é o velho Légua Boji, que ele foi
que trouxe essas raízes de encantoria, de terecô. Ele não tem nada com o
candomblé, ele não tem nada com mina. Aí o povo, as medionagem, que vem
nascendo, que vem vindo, é que já traz essas correntes. Os que não se
prepara fica aí avulso. E os que se prepara fica com aquelas obrigações,
entendeu? (Teresinha, entrevista em 03/12/2017)
A obrigação, bem como as doutrinas puxadas dão o tom e influenciam que entidades
vão descer naquela ocasião. Ao entrar no salão, a partir da formação em fila que veio da porta
do pátio como na noite anterior, os integrantes da casa passaram a girar em sentido anti-
horário, com o corpo voltado para o centro da roda, dando dois curtos passos para frente e
para trás. Em outra ocasião, dona Teresinha me contara que em Codó poucas pessoas sabem
baiar mina, pois além do passo diferente, é preciso coordenar com quem está do lado para que
os corpos se revezem em vai e vem, para frente e para trás. Acompanhada de uma das filhas
de santo, que assumiu o segundo microfone, responsável por fazer a resposta ao que o
cantador está puxando, firmando o coro engrossado pelas demais pessoas presentes, a líder da
tenda começou cantando, no ritmo da mina:
Ô estrela do oriente
Que alumeia lá no céu
Ô estrela do oriente
Que alumeia lá no céu
A Santa Bárbara
Dentro da guma raiou
78
O passo, de todo modo, durou pouco tempo, sendo logo substituído pela formação da
roda com um atrás do outro, acompanhando a mudança do tambor e das doutrinas, na virada
para a mata. Os visitantes das tendas amigas foram entrando aos poucos no salão e na gira.
Já trovejou
Relampiou
Já trovejou
Relampiou
...
...
Manda chover
(Manda chover pra mim)
Quando o tambor deu uma pausa para ser reaquecido pela primeira vez, boa parte das
entidades saiu do salão e se dirigiu para a área do bar. Ali, o som toca alto, reproduzindo
músicas em alta no momento, muitas em versões de cantores de Codó ou do entorno. Os
bregas e arrochas dominavam a seleção musical, convivendo com as doutrinas quando o
tambor voltava a tocar. Os encantados brincavam e se divertiam, consumindo largas
quantidades de cerveja e cigarros55, ofertados pelas pessoas presentes. Ao longo da noite, uma
espécie de "pausa" nas incorporações vez ou outra acontecia, para que o médium pudesse
suprir necessidades fisiológicas, como beber água ou ir ao banheiro. Certa vez, em um outro
festejo na casa do pai de santo Bina, lá pela madrugada resolvi sentar para descansar do lado
de fora do salão. Uma entidade com um chapéu na cabeça veio caminhando decidida em
minha direção, olhou nos meus olhos e disse "sustenta!". Me estendeu as mãos e eu segurei
55
A oferta de cervejas e cigarros é comum nos dias de festejos. No entanto, em todos os terreiros e toques a que
compareci, havia a interdição absoluta de consumo desses elementos dentro do espaço do salão, ficando restritos
ao espaço externo, o pátio. Ressalte-se, ainda, que algumas mães e pais de santo não gostam que as pessoas
consumam cerveja em tanta quantidade, mas abrem o espaço do bar mesmo assim, por entenderem que hoje em
dia as pessoas não atendem com tanto afinco aos festejos que não tenham tais possibilidades de divertimento.
79
firme. Com um movimento que jogou o corpo para trás, o encantado "saiu" e a médium,
zonza, perguntou onde era o banheiro. Depois de ir, assistida pelas pessoas no caminho para
não cair por causa da tonteira, ela voltou e, em um movimento similar, a entidade retornou e
voltou para a festa.
Na terceira noite, dona Teresinha começou cantando para Santa Bárbara. No ritmo da
Mina, seus filhos de santo baiavam mina e os visitantes que aos poucos entravam formavam
um segundo círculo, em volta do primeiro, baiando na formação do terecô. A mãe de santo
puxou a seguinte doutrina:
Ô estrela do Oriente
Lá no céu alumiou
A Santa Bárbara é uma beleza
Dentro da riqueza
Na guma raiou
Dona Teresinha me contou depois que pediu a seu Rei de Minas, seu guia de croa, que
pudesse ver como estava a festa e cumprimentar seus convidados, de modo que nesse dia
ficou pura, ou seja, não incorporou nenhuma de suas entidades. O guia de croa é quem
controla o acesso e dá passagem para as demais entidades da corrente do médium, em uma
hierarquia que organiza a corrente de cada médium. Como afirma Ahlert (2013: 99-102), não
há uma quantidade definida de encantados que passam na corrente de cada médium; os
próprios muitas vezes desconhecem esse número. Isso em parte se deve ao fato de que esse
número não é fixo, mas varia ao longo da vida, com entidades deixando de aparecer e outras
surgindo na corrente em determinado momento. Além disso, algumas entidades apenas
"passam" ou dão passagem pelo corpo de uma pessoa, de forma tal que nem seu nome seja
conhecido. Dona Teresinha afirmou que não sabe exatamente que entidade de sua corrente
incorporou em dada noite, a não ser depois, quando as pessoas ao redor, sobretudo seus filhos
de santo, lhe contam; a única exceção é seu Rei de Minas, que deixa uma energia muito
particular que ela sente e sabe. Vários brincantes de terecô me relataram em momentos
diferentes que a incorporação é como um apagão, como se a pessoa dormisse e abrisse os
olhos novamente um tempo depois - tempo esse que pode ser bastante prolongado tendo em
vista a duração dos toques e mesmo as histórias de encantados que ficam incorporados em
seus cavalos durante horas e mesmo dias. Como me disse dona Iracema, "a gente é matéria de
80
receber os guias, os espíritos". São comuns os relatos, sobretudo no que toca as primeiras
manifestações de mediunidade, de pessoas que sumiam nas matas e voltavam dias depois sem
se lembrarem de nada do que havia acontecido. A lembrança do médium sobre os
acontecimentos ocorridos durante o período em que estava incorporado por vezes levanta a
suspeita sobre sua mediunidade ou sobre a "legitimidade" da incorporação.
A mãe de santo ficou bastante satisfeita com o que viu. A casa cheia, a festa bonita,
visitantes de outras regiões, pessoas queridas. Receber pessoas de outras cidades e mesmo
outros estados é parte do cotidiano dos terreiros de Codó: filhos de santo que moram distante,
brincantes que chegam para pagar ou ganhar noites, pesquisadores, curiosos. Os visitantes de
longe normalmente chegam cedo por conta do transporte escasso e da distância e portanto
esperam por longos períodos. Por esse motivo, estão sempre disponíveis pequenos quartos, a
maioria do lado de fora da casa principal, no pátio, em construções frequentemente feitas de
pau-à-pique, preparadas para receber as redes dos visitantes que podem descansar até o início
dos trabalhos e mesmo ao longo da noite ou nos intervalos para descanso e alimentação dos
médiuns. Receber bem é uma grande preocupação para os pais e mães de santo, que se
mobilizam ao longo do ano para guardar recursos e fazer parcerias que viabilizem a realização
de um bom festejo, com muitos visitantes bem recebidos. É responsabilidade do anfitrião
providenciar espaço para guardar pertences e dormir (normalmente em redes, que podem ser
trazidas pelos convidados, mas deve haver espaço com prendedores adequados), bem como a
alimentação pelos dias em que durar a celebração. Em Codó não há transporte público e a
maioria das pessoas circula a pé, a despeito da utilização de motos e bicicletas. Nos dias de
festejo é comum ver grupos de integrantes de uma tenda andando pelas ruas carregando
bolsas com as roupas que vão trocar quando chegarem na casa, de preferência em um horário
próximo do início do toque, ou andando todos já nos trajes dos encantados, nesse caso
formando bonitos cortejos coloridos pelas ruas da cidade.
Um dos visitantes naquela noite era Raí, um rapaz de Bacabal, cidade distante cerca de
três horas de Codó, que havia conhecido a casa através de um dos seus encantados que
também integrava a corrente de uma das filhas de santo de dona Teresinha. Em uma ocasião
em que ambos compareceram a um mesmo festejo, a entidade baixou na médium e se
apresentou a ele, dizendo que deveriam passar a se visitar. Nas suas palavras, "o encantado é
um só, mas aparece em várias croas. Só uma de cada vez, mas lembra de tudo. Conhece a
pessoa e todo o seu povo se encontrar com ela. Aí vira tudo uma família". Dona Teresinha já
81
havia me explicado essa dinâmica, afirmando que "um guia não é feito só pra uma cabeça, é
pra várias cabeças". Ele tem a possibilidade, se quiser, de irradiar outras pessoas enquanto
incorporado em um médium, afetando seu comportamento56. Alguns médiuns se aproximam,
passam a se visitar e mesmo a se enxergar como amigos ou família. Raí lidera um grupo de
mais de cinquenta pessoas e conta que é preparado como filho-de-santo, mas não como pai-
de-santo, motivo pelo qual ainda prefere não se apresentar de tal forma. Uma entidade que
passava em sua croa e na de sua falecida mãe-de-santo, o escolheu ainda novo para suceder a
líder no cargo quando chegasse o momento.
Como vimos no primeiro capítulo, Costa Eduardo (1948: 62) afirma que não há
cerimônias formais de iniciação nem sacerdotes reconhecidos57 em Santo Antônio dos Pretos.
Mundicarmo Ferretti (2001: 113-114) conta, no entanto, a partir do depoimento de dona
Antoninha, da Tenda de Santa Bárbara, que esta fora preparada por sua tia Melânia naquela
comunidade por volta dos anos 1930, no tempo em que "se preparava quem tinha 'invisível' e
quem entrava no quarto não falava sobre o que viu". A mãe de santo afirma que no terecô não
tem feitoria, mas sim "batismo, confirmação, ordenamento e juramento - cada coisa tem um
tempo".
82
como é exemplo o que está registrado sobre a Casa das Minas (Costa Eduardo 1948; Bastide
1971; S. Ferretti 1985). Ahlert (2013: 108) afirma que a palavra "iniciação" não é muito
utilizada na cidade de Codó, "talvez com exceção de pais de santo que também foram
preparados no candomblé". Fala-se mais em preparação58 e confirmação de croa. Dona
Iracema relatou que
A pessoa já vem com as entidades dela. Aí o pai de santo vai saber quem é
seu guia, quem são as entidades, vai fazer uma afirmação. E as entidades
então vão passar a fazer parte daquela casa. Fica cumprindo suas
obrigações na casa. (Dona Iracema, entrevista, 17/03/2017)
83
Mais à frente, passaria por algum tipo de "recolhimento", quando então puxariam as
correntes de sua croa.
Note-se, ainda, que um pai de santo pode se deparar com a necessidade de preparação
ou obrigação para uma entidade que não conheça ou não saiba trabalhar; nesse caso, pode
recomendar que a pessoa procure uma outra casa. Não há, nesse sentido, uma uniformidade
que perpasse as trajetórias dos pais e mães de santo ou de seus filhos e filhas de santo.
Ademais, as entidades, tanto as recebidas pelo médium quanto as de quem o prepara, exercem
papel fundamental nesse processo, tendo em vista que o "período de "preparação" conta com
a participação do pai de santo, mas se entende que o aprendizado vem diretamente dos
encantados" (Ahlert 2013: 110).
84
trariam uma banda preta ou banda da esquerda; isso porque ela gostaria de ter recursos caso
fosse preciso desfazer algum trabalho que envolvesse tal tipo de energia.
***
Quando chamado para cantar, Raí puxou a seguinte doutrina, no ritmo da mina, como
é comum que os visitantes iniciem sua participação como cantadores:
Nos dias que se seguem a um festejo ou uma visita, não é de se espantar que as
pessoas comentem os acontecimentos das noites passadas e façam uma espécie de "balanço"
dos encontros e situações que se apresentaram. Nesse contexto, as visitas ocupam alguma
centralidade, com muitos comentários girando em torno de quem foi ou deixou de ir, se ficou
até de manhã ou se foi embora "ainda no escuro", se atendeu a apenas um, a alguns ou a todos
os dias, seguindo-se comparações com o esforço que a casa que recebeu fez nos festejos
anteriores da casa visitante. Há, portanto, uma observação atenta às dinâmicas de pagar visita
que determina em que festejos - e consequentemente em que relações - será investida a
energia dos brincantes, que prestigiam com mais ou menos gosto e empenho os toques de
outras casas a depender da reciprocidade de seus visitantes. Se a mãe ou pai-de-santo não
comparece pessoalmente, pode determinar que alguns de seus filhos compareçam em nome da
tenda. A quantidade de pessoas enviada também é foco de análise e comentários dos demais
terecozeiros, tendo em vista que as visitas, entre outros tantos motivos, se prestam a
embelezar e fortalecer os festejos uns dos outros; a beleza, portanto, é também medida pela
casa cheia.
85
Foto 9: Salão da Tenda Nossa Senhora da Conceição.
A quarta e última noite começou mais cedo, com a procissão. Uma imagem de Nossa
Senhora da Conceição e outra de São Benedito estavam posicionadas no salão, em dois
andores enfeitados em tons de azul. Conversávamos no pátio, comentando os acontecimentos
das noites anteriores, quando se aproximou um caminhão, espécie de trio elétrico com sistema
de som, cedido pelas Casas Sampaio61. Algum tempo depois, por volta das 17h, chegou seu
Wildelano, seguido pelos músicos que compõem a banda Euterpe. Entre conversas e
comentários descontraídos, começaram a armar os instrumentos e a tocar algumas canções de
tema religioso. Ao chamado de dona Teresinha, se dirigiram para a rua, em frente ao
caminhão, à espera do grupo da casa que acompanharia a procissão. Uma vela acesa no salão,
quatro pessoas se posicionaram para carregar os andores, duas em cada um, uma à frente,
outra atrás. Os demais foram acendendo velas e seguindo as imagens dos santos, por dentro
da casa de morada de dona Teresinha até a porta da frente. Saímos todos por volta das 18h,
em direção à Avenida 1o de Maio, que faz esquina com a rua Paraguai, onde fica o barracão.
Ao longo do caminho, o rezador ia puxando o terço e as ladainhas, e em cada intervalo, no
que seria o momento de contemplação dos mistérios, a banda tocava uma música. A procissão
seguiu em direção ao centro, atravessou a linha do trem, mudando de direção e deu a volta
pelo bairo São Francisco, parando por um instante em locais considerados importantes, como
61
Rede de lojas de departamento com filial em Codó.
86
o terreiro da famosa Maria Piauí, hoje liderado por dona Iracema, e a Igreja de São Francisco.
Por fim, chegamos pelo outro lado da rua Paraguai, entrando todos juntos pela porta que dava
para o pátio. Os músicos se acomodaram dentro do salão, nas cadeiras já arrumadas à sua
espera, e os demais se sentaram nos bancos disponíveis. Ao som da banda que tocava levanta,
devoto, algumas pessoas se ergueram e foram até as imagens novamente colocadas no salão,
fazendo orações, pedidos e agradecimentos. Por fim, a mãe de santo agradeceu a presença da
banda e seu Wildelano falou algumas palavras, agradecendo a acolhida e dizendo a todos que
se lembrassem de seu Claudionor, finado marido de dona Teresinha, muito querido por todos
e conhecido por seus dons musicais, que ensinou suas técnicas a várias pessoas na cidade.
Certa vez tive a oportunidade de ouvir uma gravação de uma de suas participações tocando
saxofone62 com os tamborzeiros em um toque de terecô, coisa que fazia com frequência.
62
Não tive ainda ocasião de presenciar, mas são correntes os relatos de toques acompanhados, além do tambor e
da cabaça (o tarol parece ter sido incluído mais recentemente), de outros instrumentos tais como berimbau (cf.
M. Ferretti 2001), flauta, saxofone, etc.
87
Na Tenda Nossa Senhora da Conceição, o tom da roupa nova esse ano foi um azul
celeste praticamente do mesmo tom com o qual as paredes do salão estavam pintadas.
Naquela noite, a mais movimentada da tenda, com a presença de muitas casas visitantes,
inclusive de outros estados, a obrigação começou nos mesmos moldes das noites anteriores,
iniciando com a mina e posteriormente virando para a mata, seguindo-se de convites para
que representantes das casas visitantes viessem também puxar doutrinas. A dança,
acompanhando o ritmo, se intensificava na mesma medida dos pontos e do tambor. Quando a
velocidade atingia um certo nível, era quase palpável a força da energia circulando, bem como
a elevação da temperatura no interior do salão. A sensação de que algo estava prestes a
acontecer diante da intensidade das coisas era grande, e nesses momentos em geral duas
coisas aconteciam: ou virava para a mina, inclusive com a chamada de outras casas
convidadas - segundo algumas pessoas disseram, os convidados sempre iniciam com um ou
dois pontos de mina para só então virar para a mata - ou havia uma pausa no toque, de modo
que os tamborzeiros saíam para colocar os tambores para aquecer o couro na fogueira
novamente e as entidades se dirigiam para o pátio, onde cumprimentavam os demais,
consumiam cervejas e cigarros ofertados pelas pessoas presentes, conversavam entre si e
brincavam. O caboclo de dona Isabel, filha de santo de dona Teresinha, gostava de puxar
doutrinas à capela de vez em quando, inclusive no meio de conversas. Algumas entidades
brincavam e faziam piadas, outras permaneciam mais sérias em algum canto, mais
observando o movimento.
Na volta dos tambores, alguns encantados entravam para dançar; outros permaneciam
do lado de fora. Havia um revezamento orgânico - às vezes incentivado por algum brincante,
de modo a evitar que o salão ficasse muito vazio; havia sempre gente baiando e gente
curtindo o lado de fora.
88
fomos seguindo rua acima, na direção contrária da avenida, os tamborzeiros tocando com
vontade, o rapaz segurando o tarol andando de costas para que seu companheiro pudesse
tocar, as cabaças soando nas viradas dos tocadores e os encantados se revezavam puxando
doutrinas enquanto exaltavam os demais para que respondessem também com empolgação.
Era perto das 7h da manhã, os ruídos das casas vizinhas acordando lentamente e
começando o dia contrastava com a algazarra da passeata vibrante comandada pelos
encantados em seus trajes coloridos, que cumprimentavam as pessoas, brincavam entre si e
cantavam doutrinas a plenos pulmões, parando de tempos em tempos para dançar junto aos
instrumentos. O tambor arrastava no chão deixando um rastro branco no asfalto, desenhando
o trajeto em volta do quarteirão.
Terminado o processo, o médium parecia levar alguns instantes para entender onde
estava, restando na face uma expressão de surpresa misturada a uma certa distância, como
uma antena tentando ressintonizar. Mas nem todos foram embora. Alguns encantados
permaneceram incorporados, cumprimentando a todos, comentando sobre a festa, dando
recados e agradecendo por terem conhecido ou encontrado alguém. Não sei bem em que
63
De acordo com Barbosa Neto, "[o] pai-de-santo, tal como vimos antes, é uma pessoa composta por outras
pessoas, um pouco como o 'grande homem', na definição de Strathern, é 'aquele capaz de conter em si muitos
homens'" (2012: 129-130). Por outro lado, "'O prestígio depende, tudo indica, menos de posições hierárquicas
imutáveis que da energia e iniciativa de alguém' (Sztutman 2005: 210) ao modo do grande homem yorubá que,
como ele, deve 'se fazer por si mesmo' (Barber 1989)". (2012: 111, nota 89).
90
momento eles partiram. Parece ser comum que, mesmo encerrado um toque, entidades
permaneçam incorporadas por algum tempo, não havendo uma obrigatoriedade de retirar-se
em um instante determinado. Teresa Légua, incorporada em dona Rosa, disse à amiga de sua
médium que não queria partir logo depois da passeata, pois achava muito chato isso de ter que
ir embora justo na melhor hora para "tomar uns gorós". Ela subiu no momento do
encerramento, no entanto, permitindo que as duas amigas fossem embora de carona na van
que seguiria na mesma direção de suas casas. Lima (2017) traz alguns episódios em sentido
semelhante, onde a chegada, mas principalmente, a saída das entidades, é algo que não se dá
necessariamente em um momento definido. É comum que elas permaneçam após o fim do
toque ou mesmo que venham fora de um contexto ritual específico. O encantado Supriano do
pai de santo Café, por exemplo, comenta que "as pessoas reclamam porque ele vem demais" e
é notável a passagem narrada pela autora na qual, tendo ido visitar Café às 16h de um dia
comum, soube, pelo próprio encantado que bebia na companhia de um homem, que este
estava incorporado desde a madrugada (Lima 2017: 50).
***
O capítulo que aqui se encerra teve por objetivo trazer para a leitura um guia, uma
maneira mais palpável de vislumbrar o terecô de Codó como vivido pelos brincantes em sua
dimensão mais pública, fazendo uso do material etnográfico já recolhido nos trabalhos sobre o
tema, mas sem perder de vista a atenção para com as sobrecodificações e comparações com o
tambor de mina, a umbanda e o candomblé. Como já vimos exaustivamente ao longo desta
dissertação, não almejo esgotar o assunto ou alcançar algum tipo de totalidade. O que diz
Cardoso acerca da macumba carioca pode nos oferecer uma perspectiva interessante: mais do
que alguma forma de "identidade religiosa distinta", podemos encará-lo como uma
"socialidade - um imaginário e um “ver o mundo” — inextricavelmente marcada pela
presença de espíritos" (2007: 317), que representa uma "poderosa 'linha de fuga' situada na
transversal de muitas classificações religiosas, como, por exemplo, aquela que opõe o sagrado
e o profano", como acrescentou Barbosa Neto (2012: 217, nota 184). Com esse referencial em
mente, passamos para o último capítulo desta dissertação, que partirá das dinâmicas
observadas até o presente momento para arriscar algumas elaborações, como veremos a
seguir.
91
3. Encontros e Misturas
Como vimos desde o começo desta dissertação, o tempo de trabalho de campo que
empreendi foi curto e uma dissertação de mestrado com passagem direta ao doutorado impõe
limites de tempo e espaço que não procurei contornar. Não obstante, farei neste capítulo, sem
qualquer pretensão de alcançar respostas fechadas - o que, de todo modo, está em consonância
com a proposição afroindígena que orienta essa escrita -, o exercício de levantar algumas
questões e propostas de leitura a partir do material etnográfico levantado, reflexões que
apontam caminhos de pesquisa a serem aprofundados etnograficamente em um momento
futuro. Tendo isso em vista, dois "mecanismos" percebidos nos toques de terecô me
chamaram atenção: as viradas entre a mina e a mata e a presença do vodum Verequete, que
não baixa nas tendas, mas é invocado durante o Louvariê, na abertura dos festejos principais
das casas de Codó. Esses dois elementos, penso, podem conformar chaves interessantes para
pensar como a interação das diferenças pode ser efetivada sem que necessariamente se
dissolvam em um amálgama.
92
nos detenhamos por um momento e lancemos um olhar atento para a prática - e os discursos
sobre ela - que, me parece, serve como chave importante para pensar os encontros que
atravessam o terecô.
Voltemos alguns passos. Dentro dos salões de terecô encontramos três ritmos básicos:
mata, mina corrida e mina dobrada. A mata prevalece ao longo da noite, sendo o ritmo que
caracteriza o terecô, também chamado de tambor da mata. A mina dobrada é ritmo mais
lento e cadenciado, normalmente tocado no início de algumas obrigações, como no
aniversário da encantada Maria Moça de seu Domingueiro (ver capítulo 2.1); vez ou outra é
tocada quando muda o cantador, por exemplo, no que se denomina virar para a mina. A mina
corrida, que também pode se enquadrar como uma virada, guarda uma diferença muito sutil
com a mata, de modo que os ouvidos leigos muitas vezes têm dificuldades em diferenciá-las.
Sobre o ponto, interessante o que diz Lamy:
Desse modo, a sensação de que o toque da mata é mais acelerado teria a ver com o
fato de que "o pulso grave, que é a principal referência dos ritmos no tambor, aparece duas
vezes mais frequente na "mata" do que na "mina dobrada"" (Lamy 2016: 106), de forma que
o número de giros e a intensidade da dança que corresponde à primeira é maior em relação à
segunda. Seja como for, as viradas dependem de uma série de fatores manejados por pais e
mães de santo, encantados, bateria, cantadores (que podem ser os convidados) e não
corresponde a momentos rituais marcados como vemos em outras manifestações de matriz
africana. Nesse sentido, não se trata da virada que encontramos com mais frequência na
93
literatura sobre o tema, na qual há uma mudança de "nação" ou vertente religiosa;
eventualmente, há entidades que não permanecem quando a mudança de toque se efetua. Por
exemplo, dona Iracema diz que as princesas sobem quando vira para a mata e que nem todas
as entidades "aguentam o rojão de baiar a noite toda" porque a "mata é muito forte". Tal
momento, que talvez marque uma diferenciação maior, normalmente se concentra no início
do toque, constituindo a obrigação daquele dia. Como disse acima, muitos brincantes
afirmam que o ritmo no qual se inicia as obrigações e toques é a mina. Ressalte-se, no
entanto, que nada disso implica em alguma regra, tendo em vista que todos esses elementos
variam de tenda para tenda e de toque para toque. Em boa parte dos toques não se percebe
nenhum tipo de diferenciação entre os momentos, mais presentes em dias nos quais há, por
exemplo, aniversário de um encantado ou arriada de princesas. Seja como for, logo vira para
a mata, ritmo tido como do terecô e mais apreciado pelos terecozeiros. As viradas ao longo
da noite, então, podem se dar sem intervalos ou serem marcadas por uma breve pausa na qual
os tambores são levados para aquecer o couro na fogueira acesa na parte externa do terreiro.
Diante disso, um caminho talvez seja pensar se o cansaço a ser evitado é o cansaço
físico, como tendemos a pensar. Creio que não, ou pelo menos que não se refira "apenas" a
isso. Lamy (2016) sugeriu uma relação entre a música e a força nos terreiros de Codó. Em sua
análise, destaca que os instrumentos utilizados pelos abatazeiros - sobretudo o tambor e as
cabaças - podem ser tocados por pessoas não preparadas, sem que haja restrições nesse
sentido; o que há, sim, é uma preocupação com que sejam tocados de maneira adequada e em
sintonia com os demais elementos em jogo, de modo a manter o bom andamento do toque. Se
são mal tocados, "podem diminuir a "força" da "gira" ou até fazer subir encantados" (2016:
94
41). As doutrinas puxadas pelos cantadores, o baiado dos brincantes, a bateria, são todos
elementos fundamentais para manter a "força" e a "energia". Assim sendo, conclui, "[a] boa
performance sequencial de uma festa de Terecô é saber alternar os momentos de grande,
média e baixa intensidade para manter o comprometimento de todos até o fim da festa."
(2016: 73). A música opera uma espécie de manejo das forças, chamando ou afastando
alguma entidade, aumentando e diminuindo a intensidade de acordo com os momentos do
toque e mantendo sua firmeza. A virada para a mina, destarte, aparece como um elemento
fundamental e a operação ganha outra dimensão. As elaborações de Barbosa Neto (2012) para
a ocorrência da ideia de cruzar que aparece nas casas religiosas de matriz africana do Rio
Grande do Sul pode somar a essa reflexão. Segundo o autor,
Cruzar, nesse caso, não é tornar idênticos, mas sim fazer propagar uma
forma ritual, a saber, usar a ação que se encontra aí implicada para
transformar uma outra ação. Uma forma não se propaga sem a redistribuição
da força que a constitui. Usa-se, portanto, o lado do batuque ou da nação,
mais precisamente o modo de culto aos orixás que ele contém, para
transformar o lado da umbanda e a sua maneira de ritualizar os exus. A
proximidade entre os lados é criada por dentro da própria separação
existente entre eles. (Barbosa Neto 2012: 36)
À luz dessas ideias64, talvez possamos compreender o virar para a mina como um
exercício de modulação de forças, com o toque operando como mecanismo de manuseio de
energias que, de outro modo, poderiam "sair do controle" provocando efeitos indesejados
sobre os médiuns e sobre o ritual em si, utilizando, para tanto, procedimentos para chamar,
afastar, impulsionar, manter ou arrefecer a força ou a energia. Modulação esta que não atende
a uma lógica binária, mas corresponde a uma organização de forças em um método analógico,
que utiliza "verdadeiras técnicas de composição, no sentido artístico do termo" (Goldman
2017: 25). Essa linha de análise pode lançar uma outra perspectiva sobre as tentativas de
afastamento de algumas entidades dos toques narradas por Costa Eduardo (1948) e M. Ferretti
(1993). A autora conta, na perspectiva do tambor de mina, que
95
(onde é conhecido como cambinda e como uma das entidades espirituais
mais velhas de Codó), Mãe Elzita, do terreiro Fé em Deus, lembra que tanto
ele, como Rei Surrupira (pai de Surrupirinha, chefe de sua casa na linha de
caboclo), foram vítimas de hostilidades em terreiros de São Luís e eram
despachados nos 'toques' de Mina logo depois que chegavam no barracão
(...)
Arretira o Lego,
Jalí, Jalo;
Adeus, Seu Legua ja vai,
Jalí, Jalo
Seu Legua é dono de terreiro,(...)
(Costa Eduardo 1948: 60)
65
A passagem reflete a associação automática que o autor faz entre Légua Boji Buá - encantado importante para
o terecô - e Légba ou Exu.
66
No trecho, o autor comenta alguns procedimentos levados à cabo quando da chegada de um orixá. Cito:
"Perguntei a Pai Mano a razão desse gesto, e ele me explicou que o seu propósito é 'tirar do santo um pouco da
sua força, pois, como ele chega cru, o corpo não aguentaria a aproximação'" (Barbosa Neto 2012: 44). Na obra
de Costa Eduardo, um outro procedimento encontrado em terreiros de São Luís chama atenção: o batismo de
encantados. Segundo o autor, "alguns espíritos caboclos dizem desgostar do batismo porque perdem parte de
suas forças e não podem dançar tão irrefreadamente como antes" (1948: 75).
96
pretender afastar a entidade de todo - sejam justamente exercícios de modulação de forças67.
As doutrinas cantadas e as viradas para a mina, portanto, como uma das ferramentas
utilizadas em tal operação.
Como já vimos ao longo desta dissertação, há uma elaborada relação entre o tambor
da mata e o tambor de mina, que também abraça a linha de Codó, como nos diz M. Ferretti
(1993). Tais movimentos, quais sejam as dinâmicas resultantes da presença do terecô na
mina68 e da mina no terecô, não se confundem. Talvez haja, nesse sentido, um processo de
incorporação de elementos da mina sem que isso implique necessariamente um amálgama que
"descaracterize" um ou outro, no sentido da preocupação expressa em parte da literatura no
que tange aos encontros entre diferentes vertentes religiosas. A explicação dos brincantes que
nos leva a entender que "nada mudou" e que a virada se dá apenas para "descansar os
médiuns" revela que não há efetivamente uma mudança de "lado", "nação" ou vertente
espiritual, como é comum em outras situações etnográficas relativas a religiões de matriz
africana, como o candomblé e mesmo o batuque; em lugar disso, a virada não se dá para uma
linha ou vertente "externa", mas implica em uma variação entre elementos já presentes. Para
utilizar o raciocínio de Barbosa Neto (2012) sobre o batuque no Rio Grande do Sul, a
proximidade entre a mina e a mata se dá por dentro da separação existente entre elas, de tal
modo que o verbo "virar" indica a existência de uma relação que pode ser entendida como de
figura e fundo (Wagner 2015): nem a mina nem a mata deixam de estar presentes, qualquer
que seja a composição em destaque. Contudo, tal dinâmica não é binária, de sorte que, se nem
uma nem outra estão totalmente ausentes - caindo por terra uma dicotomia entre "de fora" e
67
Sobre a questão, Barbosa Neto mostra que pais e mães de santo eventualmente fazem um manejo das forças,
por exemplo acrescentando "mel à culinária do povo de dendê, temperando os novos com um lado mais velho,
para evitar que fiquem muito agitados e perturbem os seus filhos humanos" (2012: 185). Por outro lado, quem é
de um santo do mel não pode sequer encostar o dendê, de modo que há uma ciência para que tais procedimentos
atendam a seus propósitos sem provocar efeitos indesejados. Uma imagem trazida em nota pelo autor talvez
ajude a ilustrar o ponto: "Uma narrativa cubana conta como Oxum usou o mel para 'fazer Ogum sair da selva,
onde vivia sozinho, sem outra companhia que não a de seus cachorros', levando-o de volta para a aldeia. 'Oxum
canta. A voz de Oxum é tão doce que Ogum fica em silêncio, ouvindo-a. Arrisca-se a pôr a cabeça para fora e
ela, rápida, passa em seus lábios um pouco de oñi, o mel que leva na cabaça. Em seguida, Ogum se aventura a
dar alguns passos para fora do matagal. Oxum dança e lhe oferece mel. Oxum não pára de cantar com sua voz
doce e pouco a pouco o deus amansa [...] Ogum, domesticado, não se modificará. (...). O mel acalma, mas não
altera completamente a natureza do guerreiro." (2012: 185).
68
M. Ferretti relata dinâmica análoga no toque de Mina da Casa Fanti Ashanti, com uma virada para a mata:
"Começa com um canto para Exu (...) e para outras entidades espirituais africanas, numa ordem preestabelecida.
Num segundo momento, o ‘tambor’ “vira prá mata” – passa-se a homenagear as principais entidades caboclas da
casa. Num terceiro momento, volta-se a homenagear as entidades espirituais africanas e encerra-se o ‘toque’ com
um canto para Légba. Na Casa Fanti-Ashanti, antes do tambor ‘virar prá mata’, canta-se para o vodum
Averequete e quando se volta a homenagear as entidades africanas canta-se primeiro para Badé Queviossô
(outro vodum da Casa das Minas, da mesma família de Averequete, conhecido no Maranhão como nagô)."
(1993: 297-298, grifo meu)
97
"de dentro" -, essa presença é modulada em sua intensidade em uma operação analógica dos
fluxos e cortes, de forma que os elementos em jogo se ajuntam sem se misturarem, como
veremos a seguir.
As associações, um tanto automáticas, entre Légua Boji e Légba (ou Exu), se fazem
presentes em parte da literatura acerca do terecô, muito por conta das características da
família da entidade, muito brincalhona e apreciadora de bebidas alcóolicas, embora os
próprios terecozeiros neguem veementemente tal relação. Isso não implica na ausência da
figura de Exu, ou dos exus, de maneira geral tidos como da banda da esquerda. Porém, para
além de uma correspondência direta (que tantas vezes parte da moralidade das entidades e
estanca nesse ponto), Exu tomado como entidade ou energia que comanda os caminhos talvez
não esteja ausente, conquanto não da maneira mais comumente verificada em outros
contextos etnográficos69. Nesse passo, Bastide indaga: "(...) se Legbá não abre os caminhos e
não intercede junto aos deuses para que baixem em seus cavalos, quem o substitui?". Para o
autor, "os toquenos desempenham, nessa religião daomeana [na Casa das Minas], o mesmo
papel desempenhado por Exu e Ogum nos candomblés iorubás: "abrem o caminho", são os
intermediários obrigatórios entre homens e divindades." (2001: 201-202). Os toquenos são
entidades que baixam antes da incorporação dos voduns, sobretudo das entidades mais
idosas70. A conclusão de Bastide tem por base a obra de Nunes Pereira, que por sua vez
afirma que "temos a considerar os Toquens ou guias, ou meninos que antecedem os Voduns
nas visitas que êstes fazem a seus fiéis. Muitas vêzes um Vodun como Avérêquête (...) faz o
papel de Toquen ou guia ou menino, como, também, é designado êsse personagem do mundo
espiritual mina-gêge" (1947: 34).
Nunes Pereira, comentando as entidades que baixam nas filhas da Casa das Minas,
afirma que o conjunto de voduns ali presente corresponde àqueles do panteão místico do
Daomé. Três seriam as famílias: Davice, Queviossô e Dambirá. Detenhamo-nos em suas
69
Barbosa Neto já apontou as vantagens de dar lugar a uma abordagem menos restrita da figura de Exu: "Estou
sugerindo que a etnografia teria muito a ganhar se considerasse Exu como o conjunto de todas as suas versões,
sem privilegiar qualquer uma delas, e entre as quais cada trabalho específico deveria, nos seus próprios termos,
descrever suas respectivas relações de aproximação e de afastamento. Deveríamos, portanto, descrevê-lo através
do 'contínuo de suas variações'", de forma a valorizar "as várias possibilidades de atualização ritual e
cosmológica que o material afro-brasileiro documenta para esse espírito" (2012: 216).
70
Bastide afirma que "trata-se de "crianças", de "peraltas", como Exu entre os iorubás (2001: 204).
98
considerações sobre a segunda e mais especificamente sobre a entidade Averequete, que
ganhou grande projeção na Casa das Minas, mas hoje não baixa mais frequentemente como
costumava fazer (1979: 81). O autor conta que Averequete seria a filha de Sogbô71 de idade
mais tenra, sendo a mais mimada e sagaz da família e "conhecia todos os segredos dos pais, e
desde que guardava todos os tesouros do Mar, ela era a mais rica da família" (1979: 79).
Segundo Verger, "Averequete faz farsas e caretas porque é a mais jovem de todos e quer que
toda gente ria. Quando há uma reunião, é ela que vai convidar os demais para atender ao
chamado do chefe" (Verger apud Nunes Pereira, 1979: 80). Bastide chama atenção para uma
transmutação que afeta a entidade: "[é] curioso que, mudando de país, Averequete também
mudasse de sexo, tornando-se um deus masculino. Foi adotado sob essa forma nos terreiros
iorubás de São Luís do Maranhão", onde se canta que "Averequete é rei do mar" (Bastide
2001: 203).
Segundo M. Ferretti (1993: 109), "poucos voduns Mina-jeje eram recebidos fora da
Casa das Minas, e geralmente os que baixavam em outros terreiros eram da família de
Queviossô", esta conhecida na Casa das Minas como nagô, estrangeira e hóspede, além de
"mais facilmente associável aos orixás e às forças da natureza". A autora afirma que "[a]lguns
santos e voduns cultuados nos terreiros são objeto de devoção de todo o ‘povo de santo’
(população maranhense ligada à religião afro-brasileira), como é o caso de Santa
Bárbara/Iansã, São Sebastião/Xapanã, São Lázaro/Acossi, e São Benedito/Averequete."
Como se depreende daí, há algumas relações na literatura entre Averequete e São Benedito72,
santo esse muito querido no Maranhão, estando presente em boa parte dos altares de Codó.
Note-se, ainda, que o santo guarda ligação com o Tambor de Crioula, que, nas palavras de
dona Teresinha, é diferente do terecô, porém "é tudo da encantoria, mas é diferente, é da
cultura". Além de São Benedito, M. Ferretti afirma ainda uma correspondência com Ewá,
como se lê:
Costa Eduardo afirma que nas casas derivadas dos cultos iorubás do Maranhão, Santa
Bárbara, tida como fundadora dos terreiros de mina, instalou Verequete como seu delegado
para guiar as cerimônias (1948: 84). Em Codó, o Louvariê marca a abertura dos festejos
principais da tendas de tambor da mata, momento em que invoca-se o vodum Verequete, e na
mesma trilha as entidades com as quais a casa se relaciona (ver 2.2.1). A entidade não baixa
no terreiro; no entanto, sua figura parece fundamental. O que Pai Edivanei conta a Pereira
porventura nos ajudará a ilustrar o argumento:
Pai Edivanei ressalta que algo estava faltando para fechar o último anel da
cobra grande [que expressa a fundação do tambor de mina na Amazônia],
ciclo que vai se fechando com a chegada às terras amazônicas de povos
vindos de Daomé, Angola, Guiné e Cambina, trazidos de maneira forçada
para esta terra. Dassalã teria assistido à chegada e o sofrimento desses
povos, mas enxergou que ao lado daquelas pessoas estavam também suas
divindades. Dassalã avista, então, a força de Ogum, a leveza de Iemanjá, a
nobreza de Dadarô, mas de todos o que mais teria impressionado ao Sultão
foi Verequete, considerado aquele que vai a frente, que enxerga longe e
desbrava caminhos.
Pai Edivanei destaca que Dassalã fica confuso, mesmo vendo negros,
índios, portugueses e turcos irmanados espiritualmente, as divindades
africanas só se manifestavam nos africanos. Verequete percebeu que essa
‘divisão’ não poderia acontecer, ele passa então a se manifestar nas casas de
caboclos e encantados, levando consigo as entidades africanas, fazendo-as
assim conhecidas entre os caboclos e encantados. Com essa atitude,
Verequete passa a ser visto na mina como o responsável pelas alianças entre
esses povos espirituais. (Pereira 2017: 71)
Contei essa história a dona Teresinha que me respondeu que "isso mesmo, é a mesma
coisa que eu estou te contando". Como vimos no capítulo anterior, quando comentava sobre o
Louvariê que abre os grandes festejos nas tendas de terecô, Verequete é chamado para "puxar
100
a linha da mata" e "organizar as correntes". Sem subsumir os discursos dos codoenses às
visões disseminadas em outros contextos, penso que colocá-los em contato pode render
chaves interessantes de reflexão, justamente porque estamos tratando a questão na perspectiva
das confluências, como veremos a seguir.
Toi Averequete
É o nosso maioral
É imperador
Governador ô iá
(Doutrina de Verequete na mina)
*
Chama Verequete
Averete
Chama Verequete
Averete
Aiaiai
Verequete
Aiaiai
Verequete
(doutrina de Verequete na mata)73
Antônio Bispo dos Santos (2015) faz um contraste entre o que poderíamos entender
como dois modos de pensar, mecanismos ou dispositivos que atravessam coletividades74: um
atinente aos colonizadores de pensamento monista e monoteísta e o outro relativo aos povos
que o autor define como politeístas e de pensamento plurista - de maneira geral povos contra-
colonizadores75. O primeiro caso se rege pela lei da transfluência que parte da noção de
transformação e que diz que "nem tudo que se mistura se ajunta". Nesse sentido, a lei da
transfluência se conecta com as teorias sobre sincretismo e mestiçagem que podem ser
descritas de uma maneira simplificada como bifurcadas em dois sentidos, que Goldman
dispõe como "negativas" e "positivas": por um lado, aquelas que encaram tanto a mestiçagem
73
Dona Maria dos Santos foi quem cantou para mim essas duas doutrinas, durante uma conversa. É preciso dizer
que o final do último verso da doutrina na mina não ficou muito nítido, de modo que não tenho certeza absoluta
da escrita correta.
74
Não se trata de uma diferenciação rígida, maniqueísta ou conformadora de "tipos" estáticos, mas de modos de
pensar que atravessam coletividades, de modo que um pode afetar - ou ameaçar - o outro, em infinitas
possibilidades de atravessamentos. Por outro lado, é preciso dizer que Santos, em comunicação pessoal, afirmou
que a noção de "transfluência" ainda está sendo amadurecida e sua elaboração certamente oferecerá mais
subsídios para pensarmos as diversas possibilidades de pensamento acerca dos encontros entre diferenças.
75
Santos compreende a colonização como "todos os processos etnocêntricos de invasão, expropriação, etnocídio,
subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra, independentemente do território físico geográfico em
que essa cultura se encontra", enquanto a "contra colonização" diz respeito a "todos os processos de resistência e
de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de
vida praticados nesses territórios" (2015: 48). Nesse sentido, o autor dispõe os povos originários das Américas e
os africanos trazidos para o Brasil na mesma chave da contra colonização, sem ignorar, no entanto, que haja
"especificidades e particularidades" inclusive nos processos de escravização e como esta se desenvolveu.
101
como o sincretismo como um mal a ser combatido "seja pela segregação e eliminação de um
dos elementos da "mistura", seja por uma mistura dirigida, uma "purificação" que eliminaria
os traços indesejáveis com a introdução dos desejáveis e dissolveria o elemento supostamente
inferior naquela tido como superior"; por outro, aquelas que "aceitam, e mesmo celebram,
como grandes conquistas a preservar e desenvolver". Malgrado suas divergências, há um
ponto em comum que "supõe que o destino inelutável de qualquer agenciamento entre
diferenças seja a homogeneidade, quer essa se manifeste por depuração e purificação, quer
por mistura e fusão (Goldman 2017: 15). A mistura laminadora, portanto, que elimina as
arestas e impede um "ajuntamento" que mantenha as diferenças enquanto tais.
102
nem gostam desses elementos, como algumas mães de santo afirmam - note-se que as
entidades também apreciam cerveja e música. As longas distâncias percorridas para atender a
um festejo e ganhar ou pagar uma visita alimentam ainda mais esse sistema.
Junto aos médiuns, caminham seus guias e encantados, de modo que há sempre a
possibilidade de conhecer uma nova entidade, que carrega consigo todo um novo corpo de
conhecimentos - doutrinas, histórias, saberes, tramas de parentesco. Em tal processo de
circulação, portanto, há a possibilidade de aprender algo, ou, como Goldman (comunicação
pessoal) já havia me chamado a atenção, de capturar energias a partir dos diversos
agenciamentos que emergem desses encontros. Somando-se ao que desenvolvemos linhas
acima acerca do processo de virar para a mina, é possível pensar que nos encontros - entre
tendas, líderes espirituais, médiuns, encantados, vertentes religiosas, etc - está a possibilidade
constante de dar passagem a algum novo conhecimento ou à incorporação de alguma técnica
ou energia capaz de potencializar as práticas de uma tenda, em um exercício de propagação
de axé (Barbosa Neto 2012: 101).
Obviamente, há que se levar em conta que toda essa dinâmica implica em riscos, que
estão de certa forma previstos - no sentido de ter ciência da sua existência - e devem ser
manejados. "Circular é, desta forma, também colocar-se em uma posição de vulnerabilidade.
Decorre dessa constatação a percepção de que é preciso reconhecer a presença de “forças” e
103
energias, boas e ruins, operando nos diferentes espaços", escreveu Ahlert (2013: 243). No
mesmo sentido, Barbosa Neto diz que "[e]sse é um perigo que sempre se corre: propagar o
axé é importante, mas é também arriscado, pois, ao fazê-lo, está-se igualmente tornando-o
disponível para um uso contrário" (2012: 101). Conecta-se aqui, portanto, aquilo que me
disseram dona Teresinha, Pedro d'Oxum e Piauí acerca das necessidades de cuidado e
proteção antes de um festejo ou ritual: diante da imprevisibilidade e do caráter aberto dos
encontros, é preciso se cuidar. Se em lugar que tem muita gente "tem bom e tem ruim", é
preciso fazer suas obrigações e se proteger para conservar o corpo limpo e não dispersar a
energia, de modo a poder chegar "de peito aberto" e "coração limpo" - logicamente já
protegido - para se abrir para esses encontros e contribuir com os festejos das demais tendas.
Averequete
Ele é maioral
Imperador em terra
Governador no mar77
77
Doutrina cantada no início de uma virada para a mina no festejo da Tenda Nossa Senhora da Conceição, de
dona Teresinha.
104
Nesse sentido, é preciso levar em conta que talvez não seja "qualquer" encontro que
importe aí, mas que haja uma série de elementos que fazem de um encontro, um que possa se
prolongar no tempo. Para pensar esse ponto, decerto a noção de enredo advinda do candomblé
como desenvolvida no trabalho de Flaksman (2017) pode nos auxiliar, de modo que
78
Carvalho asseverou em sentido análogo: "Por minha parte insisto em que a macumba, a quimbanda e a jurema
perpetuam técnicas tipicamente religiosas de aproximação do caos - o número crescente de novos espíritos, de
comportamento imprevisível, por exemplo, é um artifício para impedir a fixação de significados rígidos. A
improvisação na teatralidade de cada espírito também dificulta a dianoia (a apreensão de um significado global)
e a formação de uma polissemia coerente. Esse deslocamento simbólico constante surpreende, acrescenta novas
complexidades, e disfarça a relação entre meios e fins no ato religioso. E é a meu ver justamente a obliquidade
dessa relação o que mantém viva a dimensão do sagrado, tanto no campo do mito (ao expandir o universo de
105
Conclusão
Ajuntar e Misturar
Muitas vezes ao longo de um toque, o ritmo da mata ganha uma forte intensidade,
acompanhado pelos passos mais rápidos e o aumento acentuado de giros, o calor crescente e
uma energia tamanha que a sensação de quem observa é de que algo está prestes a acontecer,
ainda que não se saiba muito bem o que. Em várias dessas ocasiões, pouco antes de uma
pausa ou uma virada para a mina, a pessoa que comandava o canto puxava a doutrina que
transcrevi acima. Longe de querer explicá-la, informando seus significados e funções dentro
de um toque - conhecimento esse que mesmo me escapa - a letra se impõe na memória
enquanto escrevo essas últimas linhas.
Dois eixos atravessaram a escrita dessa dissertação: por um lado, a sombra das
sobrecodificações que ao longo do tempo, de um modo ou de outro, ofuscaram em parte os
fazeres e saberes do tambor da mata, muitas vezes contado com base em estruturas a ele
"externas", como o tambor de mina e outras referências de religiões de matriz africana, que
nesse campo restrito se comportaram, por vezes, como correntes majoritárias. Nesse sentido,
uma certa torção de perspectiva, a partir do procedimento de minoração de que nos fala
Goldman (2015: 646), permite entrever as "virtualidades bloqueadas pela variável dominante"
e vislumbrar o que temos a aprender sobre a arte dos encontros com o universo do terecô,
entrando assim no segundo eixo. Esse outro olhar abre mesmo novas possibilidades de
composição com os estudos já realizados sobre o tema, uma vez que nos oferece chaves para
pensar em termos de uma encruzilhada de diferentes temporalidades que escapa aos
dualismos e põe em relevo as práticas dos terecozeiros. Ademais, abre caminho para colocar o
terecô em composição com outros contextos etnográficos, de forma tal que seu acoplamento,
tanto quanto seu confronto com os saberes eruditos, "abre caminho para o mapeamento, a
aliança e a ativação dos contradiscursos sobre o sincretismo e a mestiçagem, de modo a
crença e das possibilidades de interpretação) como no campo do ritual (ao intensificar e diversificar a
experiência individual)." (1994: 116)
106
contribuir para que apareçam com uma força ainda maior do que a que já possuem." Nesse
passo ainda propiciam "uma melhor compreensão tanto dos saberes minoritários quanto dos
dominantes" (Goldman 2017: 16) e junto disso lidar com questões que, longe de
ultrapassadas, ainda se fazem presentes - eventualmente assumindo facetas particularmente
violentas.
Se por um lado o encontro pode soar como ameaça, como algum tipo de pergunta para
a qual a resposta já está dada de antemão e revela que só há espaço para o Um (Clastres 1974
apud Goldman 2017) que deve ser incessantemente perseguido a qualquer custo, por outro
lado as mentes contracolonizadoras, para usar os termos de Antônio Bispo dos Santos (2015),
parecem não ter a mesma reação. A possibilidade de existir apartado das conexões é que
talvez seja ameaçador e, penso, as visitas evidenciam justamente a centralidade do encontro,
da necessidade de estabelecer relações em suas infinitas possibilidades e ao mesmo tempo
potencializar suas forças a partir delas. Nessa perspectiva, como já mencionei algumas
páginas atrás, não encontrar é o verdadeiro perigo.
Se o encontro é, então, desejado, ou mais do que isso, talvez seja mesmo inevitável e
constitua o destino incontornável de todos os entes, isso não implica em que seja sempre
suave, tranquilo e inofensivo. Sua potência reside justamente na imprevisibilidade que o
atravessa: nunca se sabe o que o outro - aquele com quem se encontra - traz em sua bagagem
e menos ainda o que intenciona fazer a partir dali, e é justamente por essa razão, por esse
"desconhecer", é que há a expectativa de aprender algo, de passar a conhecer ou de realizar
uma composição. Em última análise, não se sabe o que cada um fará a partir daqueles
agenciamentos, mas "o que importa" é que eles aconteçam e assim abram a possibilidade de
incorporar e potencializar forças. Como bem traduz a proposição afroindígena que atravessou
esta escrita, é uma forma de levantar questões79 e estabelecer relações que não parte de
alguma resposta já pré-estabelecida e faz da indeterminação sua força.
79
Esse ponto me faz lembrar que na Capoeira Angola, como diz o contramestre Leandro Bicicleta (comunicação
pessoal), diz-se o jogo é "com" e não "contra", de forma que os jogos são um diálogo constituído de perguntas e
respostas. Há múltiplas formas de fazer a pergunta e o movimento abre sempre muitas possibilidades de resposta
e revide, que o capoeirista pode apenas intuir; se preparar ao máximo para saber lidar com a imprevisibilidade do
jogo e com as capacidades daquele com quem se joga. A potência do jogo está justamente na constante
possibilidade de se surpreender com a resposta-pergunta do outro, o que por sua vez faz pensar e criar novas
formas de perguntar-responder.
107
O risco, não sendo impeditivo do encontro e menos ainda uma ameaça a ser
combatida, faz lembrar que o movimento é sempre necessário, pois a imobilidade sim pode
nos fazer reféns de todas as formas de aprisionamento e, consequentemente, das ameaças de
aniquilação. É aquilo que talvez Edson Carneiro tenha traduzido como o "hábito andejo"
(apud Barbosa Neto 2012: 99) e que pode ser lido como o traçado de linhas de fuga, não em
uma reação apática diante das ameaças do mundo, mas em uma recusa ativa (Goldman 2017)
das homogeneidades laminadoras. É a necessidade de se colocar em movimento e de misturar
sem se amalgamar, ou, nos termos de Ântonio Bispo dos Santos (2015), de ajuntar sem se
misturar. Verequete faz questão que os povos africanos e encantados se misturem, mas opera
de modo a evitar que as transformações sejam completas, o que não exclui as mutações e os
efeitos desse contato.
"Sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda manifestação de uma só
força, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como sua fala. É por isso que
no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma" (Bá 2010: 172), de modo que
"[p]retender que no ato ritualístico se faz filosofia é dissolver a oposição comum entre mente
e corporalidade" (Anjos 2008: 85). Desse modo, as religiões de matriz africana, e em
particular o terecô do qual falamos nesta ocasião, têm muito a nos ensinar acerca das
interações entre diferenças, e não apenas em um registro étnico, como pode soar em um
primeiro momento. Anjos já disse que "[o] que se desprende dos jogos das diferenças na
religiosidade afro-brasileira é uma modalidade de não essencialização das raças, que nem por
isso deixa de se fazer como espaço de racialização" (2008: 83), ou seja, tendo em conta raça
como o lugar de onde emanam as perspectivas, e não em um sentido estático: "[a]
sacralização de determinadas dimensões da natureza está correlacionada a um processo de
circulação de perspectivas por corpos" (2008: 78).
108
Se constatamos a inevitabilidade dos encontros e de seus riscos, resta criar
mecanismos para melhor lidar com eles e potencializá-los. Nesse sentido é que as religiões de
matriz africana, bem como o pensamento contracolonizador (Santos 2015) de maneira geral,
parecem ter desenvolvido sofisticados mecanismos de alteridade, que, cientes da
impossibilidade de eliminar o imprevisível, o abraçam, fazendo dele sua força: a cada passo
do caminho é preciso se movimentar, escapando das ameaças de aprisionamento, traçando
linhas de fuga e criando novas composições de forças.
Como vimos na seção anterior, verifica-se uma maneira de combinar entidades cuja
origem não importa tanto porque o que importa é como elas se cruzam, o caminho pelo qual
se colocam em cruzamento, sem perder de vista a dimensão aberta dessas composições, o
grau de "indeterminação que qualquer processo de mistura comporta" (2017: 25); essa
verdadeira arte da composição expressa uma perspectiva, uma forma de se relacionar e de
colocar as coisas em relação, ou seja, "um modo particular de articular diferenças" (2017: 12),
que não se atém aos limites da religiosidade, mas expressa uma forma de relação que pode ser
colocada em prática em todas as dimensões da vida.
109
Abdias Nascimento afirmou que "[o]s tradicionalistas africanos respeitam a fé dos
outros como igualmente autêntica, e como uma experiência na qual eles mesmos podem
tomar parte" (2016: 136), o que percebemos nos discursos e práticas de muitas lideranças
religiosas de matriz africana. Mãe Stella (2012) nos explica que quando os orixás revelam que
vão reger o ano, o fazem em relação às pessoas ligadas a uma casa, de forma "mais profunda
– como é o caso dos iniciados; ou mais superficial – os devotos que freqüentam", sem que
isso resulte em alguma intenção de se imporem sobre o mundo todo, indistintamente (e à
revelia). Isso não implica, contudo, em que as demais pessoas necessariamente estejam
excluídas da proteção dos seres espirituais, de modo que cada um será regido pelas entidades
que cultua ou acredita e, se não tem religião, pela natureza. Não estar ligado a uma casa não
quer dizer estar totalmente privado daquele contato, ao mesmo tempo em que ele não se
impõe a quem dele não queira tomar parte. Em sentido análogo, dona Teresinha explicou que
"não pode ter tudo igual, só uma corrente só" e cada um guarda suas singularidades e carrega
a corrente que lhe cabe - e faz com ela suas escolhas para então enfrentar as consequências.
Nesse sentido, as possibilidades de encontro são múltiplas, assim como o que se faz a
partir dele. Tomar parte na fé do outro é, portanto, perfeitamente concebível, e não implica
em desrespeito ou em uma perda irreversível de si. Antes, nos fala das maneiras pelas quais
um encontro respeitoso abre caminho para a potencialização de forças ou utilizando a imagem
de Anjos para a possessão, é "o “outro” introduzido no “mesmo” fazendo explodir a
mesmidade como possibilidade de pensar e ser." (2008: 85-86). Assim, ora as diferenças se
aproximam, ora se distanciam, em uma tessitura que, ciente dos riscos, não se furta a compor
os variados elementos presentes.
"Mesmo para misturar é preciso saber distinguir", como disse Barbosa Neto (2017:
178), e é por isso mesmo que a água e a areia, intrinsecamente relacionadas, não se
confundem. Trata-se, então, de uma "presença particular no mundo", um mundo em que
"todas as coisas se religam e interagem" (Bá 2010: 168) sem necessariamente deixarem de ser
o que são, e a virtualidade do encontro é atualizada ad infinitum, sempre cuidando para que
quando a água passar - concebendo a transformação mútua inerente ao encontro -, a areia
ainda fique no lugar.
110
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Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.
118
Anexo I
Caderno de Fotografias
Mãe-de-santo Teresinha puxando a fila de entrada no 1o dia do festejo da Tenda N. Sra. da Conceição.
Procissão da Tenda N. Sra. da Conceição acompanhada pela banda Euterpe pelas ruas de Codó.
119
Seu Wildelano no comando da banda Euterpe na reza de encerramento da procissão da Tenda N. Sra.
da Conceição.
120
Bateria e dançarina de
Tambor de Crioula nas
comemorações do
Treze de Maio.
121
Tambor de mina da mãe-de-santo Maria Piauí, exposto no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro de Codó. Abaixo, a encantada Cabocla Mariana incorporada no pai-de-santo César.
122
Encantados na Tenda Santa Bárbara.
123
Mãe-de-santo Teresinha durante seu festejo.
124
Mãe-de-santo convidada da Tenda N. Sra. da Conceição puxando doutrinas.
125
Encantada dançando.
126
Festejo na Tenda N. Sra. da Conceição.
127
Passeata de encantados.
128