O QUE VEM PRIMEIRO:
O TEXTO, A MUSICA OU A PERFORMANCE?"
Ruth Finnegan’
“Palavra cantada”: 0 tema deste coléquio nao poderia ser de maior inte-
resse. A “palavra cantada” est4 presente em um enorme espectro de manifes-
tagGes: desde a arte erudita ocidental (Cantatas de Bach, Lieder de Schubert)
ou o canto medieval eclesidstico, a canges de danga africanas, lamentagées,
poemas épicos declamados, cangées em filmes indianos, encantamentos ma-
gicos, rock, hinos religiosos, sermdes entoados ou cangdes de meninos nas
ruas. A palavra cantada recobre toda a mtisica vocal e se confunde com a poe-
sia, principalmente 0 que se chamou “poesia oral”. Como’ésclarecem as or-
ganizadoras do Encontro, ela pode incluir 0 canto, a declamagio, os recita-
tivos, desde (conforme dizem) “o canto de mitos em sociedades tradicionais
& cangao comercial em contextos urbanos”. Trata-se de um tema digno des-
te maravilhoso evento nesta cidade maravilhosa.
O que entio significa “can¢ao” (termo que vou usar, mas no sentido
amplo indicado pelas organizadoras)? A cang4o é um fendmeno tio difun-
dido por todos os tempos e culturas que pode sem dtivida ser considerada
como um dos verdadeiros universais da vida humana. Mesmo sendo por ve-
zes restrita a especialistas, ou vindo acompanhada de sons instrumentais ela-
borados com apoio de tecnologias complicadas, a cangao termina por existir
na experiéncia de todos. Em ultima instancia, tudo de que precisamos é de
um ouvido que escute e de uma voz que soe.
Em certo sentido, entao, ela parece a mais simples e mais fundamental
de todas as artes. Contudo, também estd entre as praticas humanas mais su-
tis e mais elaboradas. Ha algo especial em palavras cantadas. Elas estao re-
movidas do banal, transcendendo o presente e dele distanciadas, destacan-
do-se como arte e performance. E mesmo a cangao aparentemente mais
simples é maravilhosamente complexa, com texto, muisica e performance
acontecendo simultaneamente.
* O texto foi traduzido do original inglés por Fernanda Teixeira de Medeiros.ALGUMAS ABORDAGENS DA CANGAO f
Como podemos entao abordar este fendmeno tao complexo da cangao?
Quero focalizar algumas quest6es que surgem quando levamos a sério a in-
dagagao sobre como dar conta das trés dimensées da cangao: texto, musica e
performance. Essas trés dimensdes sAo freqiientemente consideradas em se-
parado. Neste Encontro, encontramo-las corretamente interligadas. O de-
safio que se nos coloca é nao atribuir automaticamente prioridade a uma ou
outra, mas refletir sobre como operam em conjunto.
A questo é, no entanto, complexa. E ficil partir do principio de que existe
apenas uma forma correta segundo a qual o texto, a miisica ea performance se
inter-relacionam, e, conseqiientemente, apenas um método auto-evidente pa-
ra conceituar essa forma. Mas, de fato, hd muita diversidade — e miltiplas con-
trovérsias também. De modo que escolhi meu titulo, talvez algo desafiador,
como um meio de me aproximar de alguns dos debates sobre formas de abor-
dar essa interconexao e ao mesmo tempo apontar para uma questao de fun-
do a qual, sugiro, precisa ser enfrentada para um entendimento completo.
Poderiamos comegar lembrando rapidamente algumas das muitas abor-
dagens estabelecidas para andlise e interpretag4o de cangées. Cada uma car-
rega seus pressupostos sobre quais s40 as dimensées centrais da cangao — e,
conseqiientemente, sobre qual elemento tem prioridade sobre os outros.
Ainda muito presente pard nés é a visio romdntica da cangao como se-
de da criatividade primeva, do transbordamento natural ¢ irrestrito da ex-
pressao humana. Essa visdo foi expressa de modo elogiiente em sucessivas
formulagées através dos séculos. Como afirma o autor do século XVIII, An-
selm Bayly, “que a musica seja filha da natureza constata-se pela aptidao,
que criangas de todas as naces possuem, de cantar livremente como passa-
ros na floresta”’ (Bayly, 1789:2), enquanto a poesia de Wordsworth roman-
ticamente retrata como 0
Bebé, em sua alegria
cantava ao set amamentado
(Wordsworth, Michael 348-9, citado por Kramer, 1984:130)*
A unio de misica e voz parece fazer recordar 0 paraiso perdido da ino-
céncia natural. John Milton, poeta inglés do século XVII, invoca o “Par
abengoado de sereias... Voz e Poesia”, captando de maneira semelhante o tema
recorrente da cangao primeva original:Irmas harmoniosas nascidas nas esferas, Voz ¢ Poesia,
Casem seus sons divinos, e empreguem seu poder conjugado...
Ele chora a perda daquela harmonia primeira, e anseia por recuperé-la
Para que nés, na Terra, em vozes concordantes,
Possamos responder com justeza aquele ruido melodioso [da muisica celeste]
Como outrora fizemos, até que 0 pecado imenso
Vibrou contra os sons da natureza e com barulho severo
Rompeu a bela musica que todas as criaturas faziam
Para seu grande Senhor, cujo amor as punha a dangar
Em perfeito diapasio, enquanto postavam-se
Em total obediéncia (...).
(Milton, At a solemn music)*
Um romantismo semelhante informou abordagens para as chamadas
cangGes “indigenas” e “primitivas”. Assim, interpretacoes iniciais da “poesia
oral” (um quase sindnimo de “cangio”) apresentaram-na como as evocacées
intocadas de povos imersos em alguma “cultura oral” primeva antes da in-
trusao letrada e logocéntrica do colonialismo.
Essas imagens romanticas do parafso e dos “filhos da natureza” ainda
perduram. Mas houve sem dtivida uma decisiva reagao a elas. Hoje em dia,
a cangao (como a poesia oral) é mais comumente entendida em sua deter-
minagfo cultural e nao “natural”, enraizada em nossas propensdes humanas
fundamentais, porém, certamente, assim como a linguagem, varidvel em suas
especificidades culturais. Dentro desse amplo enfoque, entretanto, hé espago
para diferentes tipos de andlise.
Existe em particular uma longa e continua tradigao académica relacio-
nada ao aspecto verbal das cang6es. As diferentes perspectivas que j4 surgi-
ram e desapareceram nas teorias literdrias, lingiifsticas e socioldgicas volta-
ram-se em larga medida para os textos, tratados como entidades verbais ¢
documentados em milhares ¢ milhares de péginas escritas. O principal foco
incidiu sobre a questao dos géneros, entendidos como originados ou trans-
mitidos pela escrita, mas hoje transcrigdes de performances vocais mais re-
centes sao também inclufdas nessas andlises. E verdade que no passado acre-
ditava-se por vezes que o interesse literario de formas classificadas como
nao-escritas ou “tradicionais” era pouco ou nenhum. Hoje, todavia, andlises
de letras de canoes, poesia oral ¢ “literatura oral” de um modo geral encon-
tram-se bem estabelecidas e interagem com as abordagens variadas das lite-
raturas escritas mais “convencionais” (para exemplos desse jé extensivo tra-
balho, ver Brown, 1999; Finnegan, 1992; Foley, 2002 e 2003). Nestas, o
texto verbal é priorizado.