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cidadania:
políticas
culturais
de base
comunitária
[ ARTIGO ]
Emilena Sousa dos Santos
[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]
Este artigo discute possíveis zonas de abrangência das políticas culturais, contextualiza
conceitos de política de cultura na contemporaneidade e debate temas a serem abarcados
pela noção. Por esta razão, reitero o recorte sobre o qual a investigação se debruça
e destaco concepções que servem como horizonte teórico deste trabalho: cultura,
políticas culturais, democracia, cidadania cultural e tradições populares. Este trabalho
está dividido em dois subtemas: 1) políticas culturais de intervenção comunitária
e 2) conceitos e práticas das políticas culturais e democracia cultural – levando em
consideração aspectos relacionados ao reconhecimento e cidadania cultural.
Em este artículo se analizan las posibles áreas de amplitud de las políticas culturales,
contextualiza los conceptos de política de cultura en la contemporaneidad y discute temas
abarcado por la noción. Por este motivo, reitero el recorte que se centra la investigación
y destaco conceptos que sirven como horizonte teórico de este trabajo: la cultura, las
políticas culturales, la democracia, la ciudadanía cultural y tradiciones populares. Este
trabajo se divide en dos subtemas: 1) las políticas culturales de la Comunidad y 2) los
conceptos y prácticas de la política cultural y de la democracia cultural - teniendo en
cuenta aspectos relacionados con el reconocimiento y la ciudadanía cultural.
não deve ser mero produtor de cultura, Entendo que hoje o foco das políticas
mas agente democratizador das áreas culturais se desloca do quadro exclusivo do
de produção, distribuição e consumo. universo das artes e do patrimônio material
para a consideração da cultura em sua
A Comissão Mundial sobre dimensão mais abrangente, tendo como
Cultura e Desenvolvimento publicou objetivo a cultura como direito e como
no Relatório Nossa diversidade criativa cidadania. Para Cunha (2010), cidadania é
que a cultura é fonte de progresso a qualidade ou estado de cidadão. Já para
e criatividade e não elemento Ferreira (2010), significa indivíduo no gozo
secundário e subsidiário do processo de dos direitos civis e políticos de um Estado.
desenvolvimento econômico. A cultura
não é, consoante a Comissão, um meio O direito à intervenção cidadã
para obter o progresso material, e sim o na consolidação de política cultural e na
fim e a meta do “desenvolvimento” visto definição das diretrizes culturais, garantem
como o florescimento da existência tanto o acesso quanto a produção de cultura.
humana. O desenvolvimento não é Trata-se não apenas da participação, mas
um objetivo, mas um processo que de políticas culturais comunitárias para
deve oferecer aos indivíduos maior salvaguarda de memórias e expressões
liberdade para fazer o que realmente artísticas e culturais - trocas de experiências
lhes interessa, isto é, para realizar suas que recusam formas/formatos de cultura,
legitimas aspirações (Stavenhagen; ou seja, criam outras formas e movem o
Arizpe, Nalda, 2003). Por seu turno, os processo cultural. O desafio é a construção
momentos de proteção e conservação e consolidação efetiva de políticas culturais
são essenciais para manter a herança de regime democrático.
cultural e democratizar o patrimônio
material e imaterial. A proteção do Avançar na reflexão sobre o perfil
patrimônio subsidia o desenvolvimento, das práticas culturais populares significa
as identidades e dá “vida” a agrupamentos partir de uma dinâmica plural no plano da
humanos, manifestações populares produção, condição para que se estabeleça
e minorias culturais. Desse modo, as uma política pública articulada que
políticas culturais que têm como meta o contemple as várias dimensões da vida
desenvolvimento e a cidadania cultural cultural, sem preconceitos elitistas.
podem reconhecer as diversidades
e singularidades das expressões e A democratização cultural oferece
manifestações culturais. a todos(as) a possibilidade de escolha:
gostar ou não, proteger ou não. Essa
Em suma, faz-se necessário que o situação implica colocar todos os meios
maior número de indivíduos participe do à disposição, combater a dificuldade ou
processo de produção e criação. “Todos impossibilidade de acesso à produção
os indivíduos devem ter acesso aos e também contrabalançar o excesso de
bens culturais”, todavia, “uma vez que oferta da produção que segue as leis do
todos assumem o papel de produtores mercado, com vistas ao que seria uma
culturais, no sentido antropológico, são efetiva democracia cultural – algo distinto
sujeitos, agentes, autores da sua própria da democratização unidirecional que até
memória/cultura” (CHAUÍ, 2009, p. 9), aqui orientou as políticas. Articula-se
a expansão do campo e do conceito de nessa direção a perspectiva da democracia
cultura exige o protagonismo popular, cultural.
nesse caso, a população torna-se
30 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
Democracia cultural se traduz
na existência de públicos diversos,
no governo e soberania comunitária, e comunidades. Além de conectar a
pressupõe ainda a pluralidade das multiplicidade de obras criativas – saberes,
práticas culturais e implica na perda de valores, crenças, etc. – marcas culturais
homogeneidade. Essa transformação só dos modos de vida –, as práticas simbólicas
pode ser materializada se os cidadãos que expõem a cotidianidade, as memórias
participarem ativamente como que articulam tradições culturais e
criadores e as relações se tornarem mais manifestações populares.
amplas e inclusivas. Ampliar e incluir
significam questionar as convenções Conforme Porto (2007), o acesso
originadas das culturas autoritárias, nas à cultura é pensado como memória,
quais “os modelos” não são observados ato criativo espontâneo ou artístico,
como cânones inquestionáveis. como conhecimento e ou necessidade
de apropriar-se continuamente de suas
A proposta é articular educação variáveis e disponibilizar esse acervo à
e cultura, cidadania e produção comunidade; é um ato consciente que
cultural visto que, uma das mais exige inserção coletiva e política de todos
importantes maneiras de se formar os cidadãos.
um público é a partir da experiência
vivida pelos indivíduos. Para atender Essa dinâmica exige um ambiente
tanto a população em geral, quanto a comunitário e político que indica a inserção
comunidade de produtores, as políticas cultural de indivíduos e comunidades em
devem levar em consideração a que a cultura é definida por experiências,
formação no sentido amplo: a formal – vivências e troca de conhecimentos
mediante o uso da escola – e a informal – cotidianos. Essa experiência cultural
pela oferta de oportunidades (programa ocorre a partir do diálogo constante
ou projetos) fora da escola (BOTELHO, entre práticas criativas próprias e o livre
2007). acesso aos acervos culturais tradicionais
e contemporâneos, através da socialização
Isto não significa menosprezar dos bens e serviços culturais ofertados
o consumo das obras e práticas da a toda a população, por meio de práticas
cultura lidas como universais e sim, sociais e produção cultural comunitárias
dar prioridade para a ampliação do que incentivam a formação de hábitos de
repertório de informação cultural fruição cultural e promovem a proteção e
das pessoas, permitindo-lhes o salvaguarda de produtos, bens culturais e
conhecimento das diversas linguagens artísticos locais.
e expressões. Assim, o foco torna-
se o desenvolvimento e formação do Extrai-se, então, uma cultura
indivíduo e não a preocupação com ele identificada como um ato efetivo do fazer
enquanto consumidor. produtivo – artesanato, culinária, festas
populares, patrimônio tangível e intangível,
É importante notar que todos os memória e história que podem ser tratados
atores sociais são capazes de produzir como agentes de desenvolvimento social e
cultura e estão em condições de igualdade das artes.
para experimentar e intercambiar
suas práticas e experiências. Assim, Democracia não é apenas um
a diversidade cultural vincula-se às método de governo no qual o povo elege
várias formas de produção e circulação governantes. É ainda, um estado de espírito,
de expressões que identificam pessoas um modo de relacionamento entre as
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[EXTRAPRENSA]
Leitão (2009) garante que a estruturação
de territórios, a partir de seu arcabouço
cultural, e a reconstrução de bases ao
pessoas e um estado de participação que valorizar os imaginários locais, por meio
por sua vez, é o caminho natural para o do fomento das expressões culturais
homem exprimir sua tendência inata de tradicionalmente descartadas, tornam
realizar, fazer coisas e afirmar-se. Sua as práticas de produção comunitária
prática envolve a satisfação de outras geradoras de sinergias estimuladoras
necessidades não menos básicas, tais de solidariedade comunitária. A autora
como a interação com os demais homens, destaca que é chegada a hora da população
a autoexpressão, o desenvolvimento do assumir o próprio desenvolvimento, as
pensamento reflexivo, o prazer de criar iniciativas devem partir de coletivos.
e recriar coisas, e, ainda, a valorização Portanto, o conceito de cidadania traduz
de si mesmo pelos outros (BORDENAVE, a garantia dos direitos e deveres face
2013). à preservação e autonomia dos grupos
envolvidos. Produzir, compartilhar e
Na democracia participativa fruir cultura são experiências únicas,
é fundamental a microparticipação, fundamentais e valiosas, pois representam,
aquela que se dá nas comunidades, o substrato da própria existência.
sindicatos, associações de bairro,
grêmios estudantis, sociedades Outro desafio das políticas públicas
profissionais, grupos de igreja, clubes de cultura é o de estender o conceito
esportivos, escolas de samba e muitas de cidadania. Pode-se considerar que
outras expressões associativas. É nesse cidadania cultural teria fundamentalmente
contexto que a práxis participativa duas vocações: afirmar os direitos e deveres
e a educação para a participação se dos indivíduos face às suas culturas e às
desenvolvem e tornam-se efetiva demais culturas; determinar os direitos
(BORDENAVE, 2013). e deveres de uma comunidade cultural
frente às demais comunidades culturais.
A participação comunitária Nesse sentido, só se pode construir
consiste em um microcosmos político- política cultural democrática quando é
social complexo e dinâmico de forma garantida a livre expressão de indivíduos
a representar a própria sociedade ou e comunidades, assim como os meios para
nação. O grupo comunitário geralmente que estes estabeleçam objetivos, elejam
possui um núcleo de liderança, que é valores, definam prioridades, controlando,
uma equipe, um grupo que estimula e enfim, os recursos disponíveis para
sustenta a organização e a mobilização alcançar seus objetivos, a partir de suas
dos integrantes e interage mais de perto crenças e valores.
com os agentes (BORDENAVE, 2013).
Segundo Bordenave, a participação Todos os cidadãos são produtores
tende para a organização e a organização de cultura, no sentido antropológico da
facilita e canaliza a participação. palavra; são sujeitos, agentes, autores
A organização não é um fim em si da sua própria memória. Podem criar
mesma, mas uma condição necessária condições e formas de registros e
para a participação transformadora; a preservação de sua memória, da qual são
participação é uma evidência coletiva, sujeitos, como também, oferecer condições
de modo que somente se pode aprender teóricas e técnicas para que, conhecendo as
na práxis grupal. várias modalidades de suporte da memória
(documentos, escritos, fotografias, filmes,
Em Cultura e Municipalização, objetos etc.), possam preservar sua própria
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[EXTRAPRENSA]
criação como memória social. Não
trata-se apenas como descreve Leitão
(2009, p. 67) “do direito à participação 3. Reflexões
nas decisões de política cultural”. Para
além das ações de participação social,
este estudo lança luz em especial, a
uma cultura política que conclama a
intervenção cidadã. Refiro-me à ações É importante discutir como e de que
efetivas que sedimentam mecanismos maneira tradições populares sustentadas
para salvaguarda de bens culturais. por redes de produção coletiva, com
Nesse caso, as comunidades podem, além todos os percalços enfrentados pelas
de participar do processo de formulação manifestações e expressões comunitárias,
de políticas que têm como referência mantém-se viva.
as dinâmicas locais, instaurar políticas
específicas para salvaguardar memórias As organizações e produções
e experiências locais. comunitárias são alternativas para a
proteção de territórios, redes de atividades,
Em A conveniência da cultura governança local (sociedade civil) e
Yúdice (2013) alega que o conceito consolidação de marcas identitárias. Nesse
de cidadania na cultura democrática caso, o simbólico é traduzido no sentimento
precisa levar em consideração aspectos de pertencimento da população, no grau
simbólicos, tais como a identidade de confiança e participação política. As
coletiva e não limitar-se a um discurso práticas culturais flexíveis são ambientes
racionalizado dos direitos. Há uma adequados às necessidades e mudanças,
correlação entre a identidade e a luta em uma solução é a participação da sociedade
torno das interpretações das carências, civil, iniciativa que aglutina e une
que cria um novo espaço social. Sendo sujeitos sociais à produção cultural. O
assim, cabe indagar: se, nesse processo, que preserva não é a ação do governo,
o produtor cultural e criador artístico é mas sim a comunidade. A ação estatal
a comunidade e sua produção é inerente apenas empodera. Empoderamento que se
à criatividade e à sensibilidade artística, desdobra em recursos1.
como e de que maneira dinamizar essa
criatividade para conter o avanço das Sobressaem-se experiências
produções no contexto global? Em suma, alternativas que necessitam ser expandidas
quais são os modos de organização social e reconhecidas como questionamento a
e produção cultural das comunidades e modelos hegemônicos, ou seja, um fator
minorias culturais para salvaguarda de imprescindível para a pluralização cultural
culturas populares na atualidade? da democracia e multiplicação dessas
iniciativas em distintos territórios.
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