You are on page 1of 19

Cultura e

cidadania:
políticas
culturais
de base
comunitária

[ ARTIGO ]
Emilena Sousa dos Santos
[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

Este artigo discute possíveis zonas de abrangência das políticas culturais, contextualiza
conceitos de política de cultura na contemporaneidade e debate temas a serem abarcados
pela noção. Por esta razão, reitero o recorte sobre o qual a investigação se debruça
e destaco concepções que servem como horizonte teórico deste trabalho: cultura,
políticas culturais, democracia, cidadania cultural e tradições populares. Este trabalho
está dividido em dois subtemas: 1) políticas culturais de intervenção comunitária
e 2) conceitos e práticas das políticas culturais e democracia cultural – levando em
consideração aspectos relacionados ao reconhecimento e cidadania cultural.

Palavras-chaves: Políticas culturais. Democracia. Cidadania. Tradições populares.

This study to discuss aspects of possible areas of coverage of cultural policies,


contextualize concept of culture in contemporary politics and discuss issues to be
covered by the notion. For this reason, i reiterate the cutout on which the research
focuses and highlight concepts that serve as theoretical horizon of this work: culture,
cultural policies, democracy, cultural citizenship and popular traditions. This work is
divided into two sub-themes: 1) cultural policies of Community and 2) concepts and
practices of cultural and cultural democracy policy - taking into account aspects related
to the recognition and cultural citizenship.

Keywords: Cultural policies. Democracy. Citizenship. Popular Traditions.

Em este artículo se analizan las posibles áreas de amplitud de las políticas culturales,
contextualiza los conceptos de política de cultura en la contemporaneidad y discute temas
abarcado por la noción. Por este motivo, reitero el recorte que se centra la investigación
y destaco conceptos que sirven como horizonte teórico de este trabajo: la cultura, las
políticas culturales, la democracia, la ciudadanía cultural y tradiciones populares. Este
trabajo se divide en dos subtemas: 1) las políticas culturales de la Comunidad y 2) los
conceptos y prácticas de la política cultural y de la democracia cultural - teniendo en
cuenta aspectos relacionados con el reconocimiento y la ciudadanía cultural.

Palabras clave: Políticas culturales. Democracia. La ciudadanía. Tradiciones populares.


20 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
1. ESTUDOS DAS POLÍTICAS
CULTURAIS

São inúmeros os estudos que abordam


a institucionalização e o histórico das “...é importante
políticas de cultura no Brasil. Tais
apreciações redesenham dois períodos notar que para além
distintos: dos anos 30 (1935 a 2002)
e, posteriormente, o percurso entre da participação
2003 e 2015. Pesquisas comprovam
que, no primeiro período, algumas social, existem
esferas das políticas públicas de
cultura teve como característica a minorias culturais
descontinuidade e a instabilidade –
políticas demarcadas por concentração que se organizam e
de financiamento e de recursos; parcos
recursos; centralização do Ministério instituem práticas
da Cultura em determinadas áreas da
cultura e regiões do país; instrumentos e intervenções no
de fomento que instauravam um
conceito de cultura alicerçado à ação de campo cultural
comunicação e marketing – com anseios
mercadológicos; ação estatal restrita à que podem ser
preservação de patrimônios edificados
e obras artísticas ligadas à cultura compreendidas e
erudita, ou seja, à manutenção de um
conjunto restrito de manifestações visibilizadas como
artísticas selecionadas. No contexto,
manifestações populares foram políticas culturais.”
destacadas como o folclore nacional.

O período que segue o ano suas manifestações simbólicas, e busca


de 2003 é marcado por significativas ao mesmo tempo ampliar repertórios e
transformações – ocorre a “construção informações culturais. Assim, a elaboração
real” (CALABRE, 2007, p. 98) e a de políticas adota a percepção da cultura
reformulação do Ministério da Cultura como bem da coletividade e da observação
(MinC), e a ampliação do conceito de da interferência nas práticas arraigadas
cultura, dito antropológico, que valoriza das ações levadas a cabo pelas mais diversas
todos os modos de expressões como áreas governamentais: “saúde, educação,
elementos culturais, manifestações meio ambiente, planejamento urbano etc”
populares, etnias, etc. Nessa (CALABRE, 2007, p. 98).
perspectiva, a ampliação do conceito
de cultura permite abarcar os fazeres Os estudos de políticas culturais,
e saberes populares e não apenas se frequentemente analisam as políticas
restringir às belas-artes. A incorporação estatais em suas diversas escalas (federal,
da dimensão antropológica da estadual e municipal) e as intervenções de
cultura tem em vista a valorização instituições como Petrobrás, Itaú e Caixa
dos modos de viver, pensar, fruir, de Cultural, Boticário, etc.
21 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
2. POLÍTICAS CULTURAIS DE
INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA
É ínfimo o número de estudos que
destacam as políticas culturais de base
comunitária. A maioria das abordagens
relatam experiências de participação Como dito anteriormente, o conceito de
social – interação entre políticas políticas culturais, quando traduzido
estatais e sociedade civil. São diversas em pesquisas, tem privilegiado as
as ações: conselhos, cursos, congressos, macropolíticas desenvolvidas pelo Estado
seminários, comitês, comissões, etc. - e por grandes organizações. Hoje, alguns
políticas culturais municipais, estatais e autores (RUBIM, 2007; BARBALHO,
nacional. São iniciativas relevantes por 2007; CALABRE, 2009; CHAUÍ, 2009;
suscitar indícios de politicas públicas que COELHO, 2012; CERTEAU, 2012; PORTO,
tem como marca a participação cidadã. 2009 E YÚDICE, 2013); corroboram
Entretanto, é importante notar que para com a ampliação e novas abordagens
além da participação social, existem desses estudos – mencionam diferentes
minorias culturais que se organizam intervenções na elaboração de políticas
e instituem práticas e intervenções públicas de cultura.
no campo cultural que podem ser
compreendidas e visibilizadas como Sendoc assim, cabe de início,
políticas culturais. descrever brevemente a tradução dos
termos cultura e política, para entendimento
Mesmo diante de significativa e melhor abrangência da temática. Cultura
produção científica sobre a temática, significa “ato, efeito ou modo de cultivar”
torna-se relevante ampliar as análises (Cunha, 2010, p. 194; Ferreira, 2010,
e abordagens, e, sobretudo, perceber p.213). Segundo Ferreira (2010), cultura é o
como o campo da política cultural é complexo dos padrões de comportamento,
vasto e diversificado. Ou seja, notar que, das crenças, das instituições, das
minorias culturais, coletivos, instituições manifestações artísticas, intelectuais
não estatais, sindicatos e associações de etc. transmitidos coletivamente e típicos
moradores(as), movimentos populares, de uma sociedade. É o conjunto dos
grupos artísticos e culturais, mestres e conhecimentos adquiridos em dado campo.
brincantes também promovem políticas
de cultura em suas mais distintas formas Segundo Terry Eagleton, a palavra
de mobilização, como propõe o debate cultura significa desde cultivar e habitar
fomentado por este trabalho. a adorar, proteger e cultuar. A cultura
é “aquilo de que vivemos. É aquilo para
o que vivemos. Afeto, relacionamento,
memória, parentesco, lugar, comunidade,
satisfação emocional, prazer intelectual
[...]” (EAGLETON, 2011, p. 10).

Cultura tomada em seu sentido


etnográfico é todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes, qualquer outra capacidade ou
hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma sociedade. Definição
que abrange todas as possibilidades de
realização humana (LARAIA, 1986).
22 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
O antropólogo estadunidense,
estudioso da cultura e evolução histórica,
Alfred Kroeber, citado por Laraia (1986)
contribui para a ampliação do conceito. para o desenvolvimento local e regional
Ele destaca que a cultura determina o e salvaguarda das expressões artísticas,
comportamento do homem e justifica culturais e manifestações populares.
suas realizações; o sujeito age de acordo
com seus padrões culturais e a cultura O conceito de cultura é semiótico.
é um processo acumulativo, resultante “O homem é entrelaçado de teias de
da experiência histórica das gerações significados que ele mesmo teceu. A cultura
anteriores. é composta por essas teias, é uma ciência
interpretativa, à procura dos significados”
Por seu turno, Rubim (2014) (GEERTZ, 2012, p. 4). Para o pesquisador,
reitera que a ampliação do conceito as formas da sociedade são substâncias
significa que a cultura deve ser da cultura. Assim, a premissa da análise
entendida para além do patrimônio e antropológica é tentar analisar as formas
da arte, nas suas dimensões simbólica, simbólicas ligadas aos acontecimentos
cidadã e de desenvolvimento. Como sociais e ocasiões concretas, o mundo
dimensão simbólica, a cultura é exercida público da vida comum, e organizá-las
por todos(as), através de valores, visões, de tal forma que as conexões entre as
sensibilidades, comportamentos, formulações teóricas e as interpretações
crenças, expressões, estéticas, fazeres, descritivas não sejam obscurecidas. Nas
criatividades, expressões espontâneas, considerações do antropólogo, significa
informais, dentre outras. No tocante à olhar as dimensões simbólicas da ação
sua dimensão cidadã, reconhece-se que a social – arte, religião, ideologia, ciência, lei,
cultura é um direito humano elementar. oralidade, senso comum – não afastar-se
A cidadania cultural compreende o pleno dos dilemas existenciais da vida em favor
acesso aos bens e serviços culturais, à de algum domínio empírico de formas não
possibilidade de experimentar a criação emocionalizadas, é mergulhar no meio
cultural e a participação na discussão e delas. A vocação essencial da antropologia
na elaboração de políticas culturais. Por interpretativa é colocar à nossa disposição
fim, como vetor de desenvolvimento, as respostas que outros deram –– e assim,
entende-se que sem a presença da incluí-las no registro de consultas sobre o
cultura não há desenvolvimento que o homem expôs.
efetivo, ou seja, a cultura é essencial
para o aprimoramento dos indivíduos e O conceito de cultura ao qual
das sociedades. Geertz (2012) se atém a um padrão de
significado transmitido historicamente,
Essas dimensões se expressam incorporado em símbolos, um sistema de
em subtemas como criação, produção, concepções herdadas expressas em formas
preservação, intercâmbios e circulação simbólicas por meio das quais os homens
de bens artísticos e culturais; proteção comunicam, perpetuam e desenvolvem
dos conhecimentos dos povos e seu conhecimento e suas atividades em
comunidades tradicionais; ampliação relação à vida.
do acesso à cultura; valorização e
fomento das iniciativas culturais A cultura relaciona-se à política em
locais e articulação em rede; formação dois registros: o estético e o antropológico.
para a proteção e salvaguarda do No registro estético, a produção artística
direito à memória e identidades; surge de indivíduos criativos e é considerada
valorização do patrimônio cultural a partir de critérios estéticos emoldurados
23 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
ou grupos comunitários com o objetivo
de satisfazer as necessidades culturais da
por interesses e práticas da crítica e população e promover o desenvolvimento
da história cultural. Neste âmbito, a de suas representações simbólicas. São
cultura é considerada um indicador iniciativas que visam agenciar a produção,
das diferenças e similitudes de gosto e a distribuição e o uso da cultura; a
estado dentro dos grupos sociais. Já o preservação e divulgação do patrimônio
registro antropológico, toma a cultura histórico e o ordenamento do aparelho
como indicador da maneira em que burocrático por elas responsável. Refere-
vivemos, o sentido do lugar e da pessoa, se ao resultado das atividades políticas
isto é, nem inteiramente universais que envolvem diferentes agentes e, assim,
nem inteiramente individuais, mas necessitam de alocação de recursos de
estabelecidos na língua, na religião, nos natureza diversa. Não é apenas a soma de
costumes, no tempo e no espaço. Em políticas setoriais “arte, educação artística,
suma, “o registro estético articula as patrimônio, etc.” (CALABRE, 2009, p. 9), diz
diferenças das populações e o registro respeito também a esforços em conjunto
antropológico articula as diferenças de atores sociais que interferem no campo
entre as populações” [tradução minha] cultural.
(MILLER, Yúdice, 2004, p. 11).
Raramente a política cultural é
Na acepção de Ferreira (2010) definida como o conjunto de intervenções
política é o conjunto dos fenômenos dos diversos agentes no campo cultural. Há
e das práticas relativas ao Estado ou a muito, as políticas culturais são pensadas
uma sociedade. Arte e ciência de bem como intervenção estatal – nesse caso
governar, de cuidar de negócios públicos. cristalizou-se a ideia que o Estado é a única
Qualquer modalidade de exercício da instância que garante a legitimidade para
política, habilidade no trato das relações gestão da área de cultura, “entidade que
humanas, enfim, modo acertado de cuida de todos e em nome de todos fala”,
conduzir uma negociação; estratégia. ou seja, somente o Estado tem o objetivo
de “levar a cultura ao povo” (Coelho,
Se a acepção do termo cultura 2012, p. 314). Esse lema reitera modelos
denota modo de cultivar/preservar e conservadores que polarizam a relação
traduz ainda comportamentos, crenças, “cultura” e “atores socias” – como se ambos
conhecimentos adquiridos, costumes, fossem instâncias distintas e afastadas
acontecimentos sociais e manifestações uma da outra.
artísticas coletivas de uma sociedade
e, política, práticas relativas a uma Nesse modelo, as políticas culturais
sociedade, à ciência e ao exercício do costumam apresentar-se como seguindo
bem governar e, sobretudo, destreza uma lógica da oferta, como por exemplo,
no trato das relações humanas, convêm apoio a artistas, criação e manutenção de
apurar como diferentes acepções do uma infraestrutura adequada à demanda
termo cultura são articuladas nas e política de estado – inserida nas políticas
formas de pensar e nos modos de fazer preocupadas com estatísticas, formatos de
políticas culturais. editais e captação de recursos, formação de
público, formação de gestores, entre ouros
Canclíni (1987) apresenta interesses e normas institucionais.
política cultural como a ciência da
organização das estruturas culturais. Barbalho, também contribui para
Programas de intervenções estatal, a ampliação do conceito, afirmando que a
instituições civis, entidades privadas política cultural não é entendida apenas
24 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
como ações concretas e institucionais,
mas, sobretudo, como uma concepção
estratégica, “o confronto de idéias, lutas associações de moradores(as), organizações
institucionais e relações de poder na de movimentos populares, grupos artísticos
produção e circulação de significados e culturais, etc.
simbólicos” (BARBALHO, 2007, p.
39). Nessas políticas estão inseridas Certeau (2012) reitera a crítica
a criatividade, novas propostas e acerca da visão linear de análise das
discursos. Assim, uma política de políticas culturais. Para o autor, as análises
cultura não deve restringir seu papel das políticas culturais são subtraídas
ao fomento do consumo, isso apenas da linguagem parlamentar, ideológica e
seria fator inibidor da criatividade e da cultural; é a repetição do discurso oficial
inovação/produção da cultura. produtivista e tecnocrático – divisão
que expõe questões mais políticas do que
A política cultural latino- culturais.
americana aponta para uma
colaboração, dos diversos atores que Alguns autores estendem
trabalham nas diferentes escalas do as discussões acerca da temática e
espaço social: desde os grupos locais apresentam outras possibilidades. Teixeira
até as empresas transnacionais, as Coelho (2012) subdivide os modos de
instituições financeiras, a mídia e as análise das políticas culturais: do ponto de
ONGs (YÚDICE, 2013). Miller e Yúdice, vista do objeto para o qual se voltam, dito
acrescentam que a política cultural se patrimonialista, dirigida à preservação, ao
refere ainda aos suportes institucionais fomento e à difusão de tradições culturais
que canalizam tanto a criatividade supostamente autóctones, que diz respeito,
estética como os estilos coletivos de em princípio, tanto ao acervo da história
vida. “A política se faz há muito de dos grupos dirigentes quanto às tradições
forma involuntária, permeando espaço e costumes das classes populares. O
social de gêneros que invocam um tipo segundo modo, o criacionista, caracteriza a
específico da organização do público, política cultural que promove a produção,
passível de manter e modificar os a distribuição e o uso ou consumo de
sistemas ideológicos cristalizados” novos valores e obras culturais. Embora
[tradução minha] (MILLER E YÚDICE, não se limite a tanto, na prática as políticas
2004, p. 12). criacionistas costumam privilegiar o apoio
às formas culturais próprias das culturas
Na leitura de Barbalho (2007), médias, como o cinema, museus, música de
alguns autores não compreendem vanguarda, etc.
intervenções não estatais na cultura
como política cultural porque estão Nesse caso, o autor considera as
presos a uma visão estreita do políticas culturais, segundo seus circuitos
significado de público, entendido de intervenção, políticas relativas à
apenas como sinônimo de Estado. É cultura alheia ao mercado cultural: dizem
importante perceber como o campo respeito aos modos culturais que, em
da política cultural é público, amplo princípio, não se propõem a entrar no
e diversificado. Assim, instituições circuito do mercado cultural tal como este
não estatais, empresas privadas e é habitualmente caracterizado. São modos
comunidades também promovem culturais que não atendem ao interesse
políticas de cultura em suas mais econômico, tanto na sua produção quanto
distintas formas de intervenção. Elas nos seus objetivos ou na recompensa de
podem ser implantadas por: sindicatos, seus criadores. Geralmente estão inseridos
25 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
programa de intervenções para satisfazer
as necessidades da população e promover
nessa perspectiva, grupos folclóricos, de o desenvolvimento de suas representações
cultura popular, de amadores, ou seja, simbólicas. Esse conjunto de iniciativas
grupos, comunidades e organizações visa promover a produção, distribuição, o
que conformam programas voltados uso da cultura, a preservação e divulgação
para a defesa, proteção e difusão do do patrimônio histórico cultural.
patrimônio histórico.
Assim, a intervenção comunitária
São políticas que têm como é política. O reconhecimento cultural e
protagonista a comunidade, o coletivo, a intervenção comunitária são políticas
as minorias culturais, etc. Porto (2009) porque a sociedade elege o que será
menciona uma política cultural que protegido, estimulado, incentivado e até
não tem como principais destinatários representado no espaço simbólico. “Implica
artistas e produtores, mas a comunidade. em escolhas, opções e posicionamentos;
Não para entretê-lo, mas para criar trabalho colaborativo; aprimoramento
oportunidades reais de enriquecimento da gestão e atuação integrada em rede”
humano, de acesso ao conhecimento (RUBIM, 2014, p. 52). E é cultural quando
produzido pela enorme diversidade as assimetrias sociais e ou econômicas
cultural, do reconhecimento de outras não são relevantes para a compreensão da
identidades e de experiências culturais capacidade criadora de cada indivíduo de
que há muito permanecem no ostracismo agir sobre a sua vida e suas escolhas.
e que habilitam inúmeras comunidades,
manifestações populares e minorias Os pilares de uma política pensada
culturais a serem participantes das suas para a população são o reconhecimento
escolhas – sobre o que é e será protegido da diversidade cultural como elemento
em seus territórios. Trata-se de uma promotor de uma ética de convivência
política cultural voltada para as pessoas e reciprocidade. A política cultural
e que valoriza, reconhece a diversidade promotora da diversidade deve ofertar
e expressões artísticas e culturais, capaz bens e serviços com a mesma qualidade
de expandir experiências e com elas a para todos os cidadãos, independente
vontade de se relacionar com o diferente. do local de moradia ou da sua origem
Uma política que torne atores sociais social, estimular intercâmbios entre as
protagonistas e não beneficiário de várias expressões culturais e tecnologias
outras políticas instituídas pelo Estado. artísticas e garantir mecanismos de poder
“Uma política para a liberdade” (PORTO, de gestão cultural. Pressupõe-se assim
2009, p. 31). Desenha-se assim, o espaço que, todos os atores sociais são capazes
do reconhecimento da importância das de produzir cultura e estão em condições
expressões e tradições culturais que de igualdade para trocar e experimentar
revela, geralmente a partir da memória, novas vivências e práticas. Acesso, então,
costumes, vivências, fazeres, gestos, é promover o diálogo de culturas em
diferentes formas de se manifestar e de contextos de igualdade e cooperação,
salvaguardar suas culturas. garantindo bens e serviços culturais com
a mesma qualidade em todos os espaços e
As políticas culturais a todos os setores da sociedade (PORTO,
comunitárias também organizam as 2009).
estruturas culturais. São políticas para a
melhoria da qualidade de vida, através Em resumo, o acesso à cultura
de atividades culturais, artísticas, demanda um ambiente comunitário e
sociais e recreativas. É ainda, um político favorável à inserção cultural de
26 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
indivíduos e grupos e a experiência
cultural ocorre a partir do diálogo
constante entre práticas criativas
próprias e o livre acesso aos acervos
culturais autóctones e contemporâneos.

Nesse ponto, a gestão da cultura


tem como prerrogativa o comunitário,
diferentes experiências que permitam o
diálogo entre o tradicional, o cotidiano,
os costumes, os saberes e fazeres.
É a cultura que tem como mote o
desenvolvimento social, ou seja, inserida
em ativo originado de um traço singular cultura é uma atividade que prescinde da
– o fazer produtivo – artesanato, organização. A organização da cultura
culinária, festas populares, patrimônios, não é exigida apenas em manifestações
memória e histórias, etc. São práticas, de dimensões espetaculares ou em ações
saberes e fazeres que contribuem para eventuais, mas parece como obrigatória
o desenvolvimento, possibilidades em atividades permanentes e não tão
de proteção e continuidade para as grandiosas. O trabalho da organização
próximas gerações, condições que, da cultura não é requisitado apenas
além de suprir necessidades atuais, pelos grandes espetáculos e eventos: as
reafirmam identidades e carreguem de pequenas manifestações também carecem
sentido as comunidades. Nesse caso, a de organização.
cultura ganha em dimensão e relevância,
oportuniza a todos(as), a participação Na contemporaneidade,
– todos(as) são protagonistas de si e entende-se que atores não estatais –
mediadores culturais. entidades associativas, organizações
não governamentais, redes culturais –
Para a proteção e continuidade são criadores, inventores e inovadores,
das culturas e tradições populares, representados por artistas, mestres,
são fundamentais atividades, ações e brincantes, artesãs etc. vinculados
as seguintes práticas sociais: criação, aos mais distintos universos culturais
inovação e invenção; transmissão, populares, são tomados como pontos
difusão e divulgação; preservação e centrais do sistema cultural, dada a
manutenção; administração e gestão; sua relevância como inauguradores de
organização; estudo e pesquisa (Rubim, práticas e produtos culturais. Hoje, na
Barbalho, et. al. 2005). Segundo Rubim perspectiva das políticas de cultura, a
e Barbalho, a criação cultural está governança da sociedade transcende os
associada aos intelectuais, aos cientistas, formatos convencionalmente instituídos.
aos artistas e aos criadores das Os grupos autônomos geralmente não
manifestações populares. A organização têm subsídio estatal e assim, essa política
da cultura exige a presença de um cultural é consolidada e mantida por meio
profissional especializado: o produtor, de trabalho comunal, projetos de produção
promotor ou ainda animador cultural. coletiva, negociações, trocas e parcerias
A preservação da cultura, material e independentes e interdependentes.
imaterial, tangível ou intangível requer As políticas culturais podem e já são
restauradores, arquitetos, museólogos, desenvolvidas por uma pluralidade de
arquivistas, bibliotecários, etc. A atores políticos sociais, não somente na
instância estatal.
27 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
É certo que o acesso a diversos bens
culturais melhora a qualidade de vida dos
2.1DEMO CRACIA, membros de uma coletividade. Todavia,
RECONHECIMENTO E se fomentado indiscriminadamente,
CIDADANIA CULTURAL pode frustrar formas de criatividade
e descaracterizar a cultura de uma
comunidade. Uma política cultural que se
restringe a fomentar apenas o consumo
de bens culturais tende a ser inibitória de
Celso Furtado, já anunciava no ano atividades criativas e impõe empecilhos
de 1984 que, em uma sociedade à inovação. A premissa de uma política
democrática, exige-se que o cultural deve ser a liberação das forças
indivíduo, com liberdade, assegure o criativas da sociedade. Não se trata nesse
enriquecimento contínuo da cultura. caso de monitorar a atividade criativa e
Furtado defendia a liberdade, a sim de abrir espaço para que ela floresça
criatividade e a sustentabilidade como (FURTADO, 1984).
bases essenciais para uma nova ordem
social, constituída com solidariedade Celso Furtado, conclui seu capítulo
e cooperação entre os membros da Desenvolvimento e cultura garantindo
sociedade. O objetivo é estimular a que a sociedade carece de subsídios para
emergência e o desenvolvimento das remover os obstáculos à atividade criativa,
forças criativas populares e assim, venham eles de instituições hegemônicas
facilitar o surgimento e a proteção de tradicionais que se pronunciam como
instituições e manifestações locais de guardiãs da herança cultural, de
apoio a ações e práticas culturais. comerciantes transvestidos de mecenas ou
do poder burocrático. O autor demonstra
Apenas a aspiração política é sua preocupação em defender a liberdade
capaz de aglutinar forças criativas de criar, por a compreender como a mais
para a reconstrução de bases sociais vigiada e laçada de todas as formas de
avariadas e, especialmente, a conquista liberdade. Logo, ele finaliza afirmando
de novos avanços na condução de que seguramente, “essa iniciativa terá de
formas superiores de vida. Somente a ser conquistada pelo esforço e vigilância
criatividade política impulsionada por daqueles que crêem no gênio criativo de
essa aspiração coletiva poderá produzir nosso povo. A política de desenvolvimento
a superação da instabilidade brasileira. deve ser posta a serviço do processo de
O primeiro passo para o processo de enriquecimento cultural” (FURTADO,
reconstrução terá de ser a participação 1984, p. 32).
efetiva da sociedade no sistema de
decisões. “Assim, o desenvolvimento Uma política cultural atual requer
futuro poderá alimentar-se da o reconhecimento da existência da
criatividade de nosso povo e efetivamente diversidade de públicos, visões e interesses
contribuir para a satisfação dos anseios que compõem a contemporaneidade. As
mais legítimos deste” (FURTADO, 1984, oportunidades de consumo e de criações
p. 30). Para o economista, a questão foram submetidas, durante alguns anos,
central circunda em saber se temos ou a processos excludentes. O desafio é criar
não a possibilidade de preservar nossa projetos que não sejam desmontados a
identidade cultural. Se a resposta for cada nova gestão e fundar estabilidade de
negativa, estamos reduzidos ao papel de programas que garantam a continuidade
passivos consumidores de bens culturais de planos que visem à democratização de
concebidos por outros indivíduos. acesso e à criação.
28Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
Hoje os brasileiros vêm se
organizando para a construção de
projetos de produção coletiva nas permite a expressão efetiva e democrática
mais variadas áreas e são frequentes da diversidade cultural.
as manifestações e produções geridas
por comunidades. Nesse cenário, Uma política democratizadora
ressurgem movimentos de valorização não é apenas a que socializa os bens
das manifestações culturais populares “legítimos”, mas a que problematiza
que incentivam tanto a redescoberta o que deve entender-se por cultura e
dos artistas da comunidade, como novas quais são os direitos do heterogêneo.
formas de produções artístico-culturais Uma política é democrática tanto por
coletivas e a implantação de projetos construir espaços para o reconhecimento
que têm por característica autonomia e o desenvolvimento coletivos quanto por
cultural e administrativa. suscitar as condições reflexivas, críticas,
sensíveis para que seja pensado o que põe
Oquesepropõeéoreconhecimento obstáculos a esse reconhecimento. Talvez,
da diversidade cultural dos distintos uma questão central das políticas culturais
agentes sociais, liberdade de criação e seja, hoje, como construir sociedades com
canais de participação democrática. A projetos democráticos compartilhados por
diversidade cultural coloca em pauta todos(as) – sem perspectiva homogênea
a questão da democratização cultural – em que a desagregação transforme-se
que deve ser um processo baseado em diversidade e as desigualdades (entre
em uma visão de cultura como bem classes, etnias ou grupos) se reduzam a
coletivo, independente de disposições diferenças (CANCLINI, 2013).
mercadológicas. Em uma democracia
participativa, a cultura deve ser a De acordo com Calabre (2007),
expressão de cidadania, exige-se a as questões centrais da atualidade na
liberdade de promoção das formas pauta das políticas de cultura são: a da
culturais de todos os grupos sociais, diversidade cultural e a da economia da
o incentivo à participação popular cultura. As problemáticas que as envolvem
no processo de criação cultural e a têm uma série de pontos interseccionados,
promoção dos modos de autogestão das acompanhados por possíveis formas de
iniciativas culturais. atuação na elaboração de políticas. Um
aspecto problemático está na necessidade
A democracia participativa de tratamento das manifestações culturais
aponta para o sentido de comunidade, como parte do patrimônio nacional, a ser
de associação, união, identidade, isto é, a protegido, frente a ameaças de natureza
ideia de que o gozo e o desenvolvimento diversa ou quando, por algum motivo, um
das capacidades de alguém são expressos, grupo, tradição encontre-se em risco de
sobretudo em união com outros, numa desintegração e/ou desaparição, enfim, por
relação de comunidade (TORRES, meio de iniciativas que contribuam para
2001). Autores(as) como Arizpe, Nalda a elaboração de formas de ação. O desafio
(2003) definem comunidade cultural é transformar essa complexidade em
como conjunto de pessoas que se políticas contínuas nas próximas décadas.
autoatribuem sentimentos de ligação
e pertença, quer seja grupo em escala A cultura deve ser pensada como
local, regional, quer seja grupo em escala vetor de desenvolvimento e portanto, a
nacional. A valorização das múltiplas elaboração de políticas públicas de cultura
práticas, de demandas culturais, de deve ter como mote a garantia de condições
saberes, de fazeres, de costumes de desenvolvimento da mesma. O Estado
29 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
produtora da sua obra.

não deve ser mero produtor de cultura, Entendo que hoje o foco das políticas
mas agente democratizador das áreas culturais se desloca do quadro exclusivo do
de produção, distribuição e consumo. universo das artes e do patrimônio material
para a consideração da cultura em sua
A Comissão Mundial sobre dimensão mais abrangente, tendo como
Cultura e Desenvolvimento publicou objetivo a cultura como direito e como
no Relatório Nossa diversidade criativa cidadania. Para Cunha (2010), cidadania é
que a cultura é fonte de progresso a qualidade ou estado de cidadão. Já para
e criatividade e não elemento Ferreira (2010), significa indivíduo no gozo
secundário e subsidiário do processo de dos direitos civis e políticos de um Estado.
desenvolvimento econômico. A cultura
não é, consoante a Comissão, um meio O direito à intervenção cidadã
para obter o progresso material, e sim o na consolidação de política cultural e na
fim e a meta do “desenvolvimento” visto definição das diretrizes culturais, garantem
como o florescimento da existência tanto o acesso quanto a produção de cultura.
humana. O desenvolvimento não é Trata-se não apenas da participação, mas
um objetivo, mas um processo que de políticas culturais comunitárias para
deve oferecer aos indivíduos maior salvaguarda de memórias e expressões
liberdade para fazer o que realmente artísticas e culturais - trocas de experiências
lhes interessa, isto é, para realizar suas que recusam formas/formatos de cultura,
legitimas aspirações (Stavenhagen; ou seja, criam outras formas e movem o
Arizpe, Nalda, 2003). Por seu turno, os processo cultural. O desafio é a construção
momentos de proteção e conservação e consolidação efetiva de políticas culturais
são essenciais para manter a herança de regime democrático.
cultural e democratizar o patrimônio
material e imaterial. A proteção do Avançar na reflexão sobre o perfil
patrimônio subsidia o desenvolvimento, das práticas culturais populares significa
as identidades e dá “vida” a agrupamentos partir de uma dinâmica plural no plano da
humanos, manifestações populares produção, condição para que se estabeleça
e minorias culturais. Desse modo, as uma política pública articulada que
políticas culturais que têm como meta o contemple as várias dimensões da vida
desenvolvimento e a cidadania cultural cultural, sem preconceitos elitistas.
podem reconhecer as diversidades
e singularidades das expressões e A democratização cultural oferece
manifestações culturais. a todos(as) a possibilidade de escolha:
gostar ou não, proteger ou não. Essa
Em suma, faz-se necessário que o situação implica colocar todos os meios
maior número de indivíduos participe do à disposição, combater a dificuldade ou
processo de produção e criação. “Todos impossibilidade de acesso à produção
os indivíduos devem ter acesso aos e também contrabalançar o excesso de
bens culturais”, todavia, “uma vez que oferta da produção que segue as leis do
todos assumem o papel de produtores mercado, com vistas ao que seria uma
culturais, no sentido antropológico, são efetiva democracia cultural – algo distinto
sujeitos, agentes, autores da sua própria da democratização unidirecional que até
memória/cultura” (CHAUÍ, 2009, p. 9), aqui orientou as políticas. Articula-se
a expansão do campo e do conceito de nessa direção a perspectiva da democracia
cultura exige o protagonismo popular, cultural.
nesse caso, a população torna-se
30 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
Democracia cultural se traduz
na existência de públicos diversos,
no governo e soberania comunitária, e comunidades. Além de conectar a
pressupõe ainda a pluralidade das multiplicidade de obras criativas – saberes,
práticas culturais e implica na perda de valores, crenças, etc. – marcas culturais
homogeneidade. Essa transformação só dos modos de vida –, as práticas simbólicas
pode ser materializada se os cidadãos que expõem a cotidianidade, as memórias
participarem ativamente como que articulam tradições culturais e
criadores e as relações se tornarem mais manifestações populares.
amplas e inclusivas. Ampliar e incluir
significam questionar as convenções Conforme Porto (2007), o acesso
originadas das culturas autoritárias, nas à cultura é pensado como memória,
quais “os modelos” não são observados ato criativo espontâneo ou artístico,
como cânones inquestionáveis. como conhecimento e ou necessidade
de apropriar-se continuamente de suas
A proposta é articular educação variáveis e disponibilizar esse acervo à
e cultura, cidadania e produção comunidade; é um ato consciente que
cultural visto que, uma das mais exige inserção coletiva e política de todos
importantes maneiras de se formar os cidadãos.
um público é a partir da experiência
vivida pelos indivíduos. Para atender Essa dinâmica exige um ambiente
tanto a população em geral, quanto a comunitário e político que indica a inserção
comunidade de produtores, as políticas cultural de indivíduos e comunidades em
devem levar em consideração a que a cultura é definida por experiências,
formação no sentido amplo: a formal – vivências e troca de conhecimentos
mediante o uso da escola – e a informal – cotidianos. Essa experiência cultural
pela oferta de oportunidades (programa ocorre a partir do diálogo constante
ou projetos) fora da escola (BOTELHO, entre práticas criativas próprias e o livre
2007). acesso aos acervos culturais tradicionais
e contemporâneos, através da socialização
Isto não significa menosprezar dos bens e serviços culturais ofertados
o consumo das obras e práticas da a toda a população, por meio de práticas
cultura lidas como universais e sim, sociais e produção cultural comunitárias
dar prioridade para a ampliação do que incentivam a formação de hábitos de
repertório de informação cultural fruição cultural e promovem a proteção e
das pessoas, permitindo-lhes o salvaguarda de produtos, bens culturais e
conhecimento das diversas linguagens artísticos locais.
e expressões. Assim, o foco torna-
se o desenvolvimento e formação do Extrai-se, então, uma cultura
indivíduo e não a preocupação com ele identificada como um ato efetivo do fazer
enquanto consumidor. produtivo – artesanato, culinária, festas
populares, patrimônio tangível e intangível,
É importante notar que todos os memória e história que podem ser tratados
atores sociais são capazes de produzir como agentes de desenvolvimento social e
cultura e estão em condições de igualdade das artes.
para experimentar e intercambiar
suas práticas e experiências. Assim, Democracia não é apenas um
a diversidade cultural vincula-se às método de governo no qual o povo elege
várias formas de produção e circulação governantes. É ainda, um estado de espírito,
de expressões que identificam pessoas um modo de relacionamento entre as
31 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
Leitão (2009) garante que a estruturação
de territórios, a partir de seu arcabouço
cultural, e a reconstrução de bases ao
pessoas e um estado de participação que valorizar os imaginários locais, por meio
por sua vez, é o caminho natural para o do fomento das expressões culturais
homem exprimir sua tendência inata de tradicionalmente descartadas, tornam
realizar, fazer coisas e afirmar-se. Sua as práticas de produção comunitária
prática envolve a satisfação de outras geradoras de sinergias estimuladoras
necessidades não menos básicas, tais de solidariedade comunitária. A autora
como a interação com os demais homens, destaca que é chegada a hora da população
a autoexpressão, o desenvolvimento do assumir o próprio desenvolvimento, as
pensamento reflexivo, o prazer de criar iniciativas devem partir de coletivos.
e recriar coisas, e, ainda, a valorização Portanto, o conceito de cidadania traduz
de si mesmo pelos outros (BORDENAVE, a garantia dos direitos e deveres face
2013). à preservação e autonomia dos grupos
envolvidos. Produzir, compartilhar e
Na democracia participativa fruir cultura são experiências únicas,
é fundamental a microparticipação, fundamentais e valiosas, pois representam,
aquela que se dá nas comunidades, o substrato da própria existência.
sindicatos, associações de bairro,
grêmios estudantis, sociedades Outro desafio das políticas públicas
profissionais, grupos de igreja, clubes de cultura é o de estender o conceito
esportivos, escolas de samba e muitas de cidadania. Pode-se considerar que
outras expressões associativas. É nesse cidadania cultural teria fundamentalmente
contexto que a práxis participativa duas vocações: afirmar os direitos e deveres
e a educação para a participação se dos indivíduos face às suas culturas e às
desenvolvem e tornam-se efetiva demais culturas; determinar os direitos
(BORDENAVE, 2013). e deveres de uma comunidade cultural
frente às demais comunidades culturais.
A participação comunitária Nesse sentido, só se pode construir
consiste em um microcosmos político- política cultural democrática quando é
social complexo e dinâmico de forma garantida a livre expressão de indivíduos
a representar a própria sociedade ou e comunidades, assim como os meios para
nação. O grupo comunitário geralmente que estes estabeleçam objetivos, elejam
possui um núcleo de liderança, que é valores, definam prioridades, controlando,
uma equipe, um grupo que estimula e enfim, os recursos disponíveis para
sustenta a organização e a mobilização alcançar seus objetivos, a partir de suas
dos integrantes e interage mais de perto crenças e valores.
com os agentes (BORDENAVE, 2013).
Segundo Bordenave, a participação Todos os cidadãos são produtores
tende para a organização e a organização de cultura, no sentido antropológico da
facilita e canaliza a participação. palavra; são sujeitos, agentes, autores
A organização não é um fim em si da sua própria memória. Podem criar
mesma, mas uma condição necessária condições e formas de registros e
para a participação transformadora; a preservação de sua memória, da qual são
participação é uma evidência coletiva, sujeitos, como também, oferecer condições
de modo que somente se pode aprender teóricas e técnicas para que, conhecendo as
na práxis grupal. várias modalidades de suporte da memória
(documentos, escritos, fotografias, filmes,
Em Cultura e Municipalização, objetos etc.), possam preservar sua própria
32 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]
criação como memória social. Não
trata-se apenas como descreve Leitão
(2009, p. 67) “do direito à participação 3. Reflexões
nas decisões de política cultural”. Para
além das ações de participação social,
este estudo lança luz em especial, a
uma cultura política que conclama a
intervenção cidadã. Refiro-me à ações É importante discutir como e de que
efetivas que sedimentam mecanismos maneira tradições populares sustentadas
para salvaguarda de bens culturais. por redes de produção coletiva, com
Nesse caso, as comunidades podem, além todos os percalços enfrentados pelas
de participar do processo de formulação manifestações e expressões comunitárias,
de políticas que têm como referência mantém-se viva.
as dinâmicas locais, instaurar políticas
específicas para salvaguardar memórias As organizações e produções
e experiências locais. comunitárias são alternativas para a
proteção de territórios, redes de atividades,
Em A conveniência da cultura governança local (sociedade civil) e
Yúdice (2013) alega que o conceito consolidação de marcas identitárias. Nesse
de cidadania na cultura democrática caso, o simbólico é traduzido no sentimento
precisa levar em consideração aspectos de pertencimento da população, no grau
simbólicos, tais como a identidade de confiança e participação política. As
coletiva e não limitar-se a um discurso práticas culturais flexíveis são ambientes
racionalizado dos direitos. Há uma adequados às necessidades e mudanças,
correlação entre a identidade e a luta em uma solução é a participação da sociedade
torno das interpretações das carências, civil, iniciativa que aglutina e une
que cria um novo espaço social. Sendo sujeitos sociais à produção cultural. O
assim, cabe indagar: se, nesse processo, que preserva não é a ação do governo,
o produtor cultural e criador artístico é mas sim a comunidade. A ação estatal
a comunidade e sua produção é inerente apenas empodera. Empoderamento que se
à criatividade e à sensibilidade artística, desdobra em recursos1.
como e de que maneira dinamizar essa
criatividade para conter o avanço das Sobressaem-se experiências
produções no contexto global? Em suma, alternativas que necessitam ser expandidas
quais são os modos de organização social e reconhecidas como questionamento a
e produção cultural das comunidades e modelos hegemônicos, ou seja, um fator
minorias culturais para salvaguarda de imprescindível para a pluralização cultural
culturas populares na atualidade? da democracia e multiplicação dessas
iniciativas em distintos territórios.

Na análise de Boaventura de Sousa


Santos (2002), a relevância da democracia
participativa está no fato de esta forma de
iniciativa permitir a expansão da cidadania
e a inclusão daqueles que, de outra
forma, seriam excluídos dos assuntos da

[1] YÚDICE, George. Palestra no III Seminário para


Diversidade Cultural. Salvador, maio 2014.
33 Cultura e cidadania
[EXTRAPRENSA]

comunidade ou da sociedade como um


todo.

São experiências associativas que


tem como premissa a coletividade. A
proposta dessas comunidades baseiam-
se em fundamentos como a intervenção
popular – todos(as) participam e
todos(as) têm o direito de propor
sugestões e tomar decisões. Há uma
responsabilidade solidária que envolve
os seus membros. Esses princípios da
solidariedade e da responsabilidade
têm expressão prática nas reuniões,
são redes que se desenvolvem por meio
nas oficinas, no trabalho comunal e
de “ativistas comunitários” (Yudice, 2013,
pretendem, acima de tudo, manter laços
p. 286), artistas, brincantes, produtores e
solidários e o planejamento coletivo
comunidade local. Tornam-se importantes
tanto das ações quanto dos processos
localmente, pois utilizam práticas similares
produtivos.
às dos organismos privados para distribuir
serviços que o Estado não provê.
Os programas produtivos
coletivizados contrastam
Suponho que a compreensão das
significativamente com a organização
ações contra-hegemônicas aos modelos há
social e política centrada no sujeito
muito cristalizados, centro da maioria dos
individual e na autonomia pessoal.
projetos coletivos, deva ilustrar sobretudo
Todos são de notável tendência
“as possibilidades sociais e políticas de
democrática, faz das comunidades, um
refazer, refundando os vínculos sociais
híbrido no qual podem ser encontrados
rompidos pela crescente exclusão social
traços de vários sistemas de produção,
e política que povoam a paisagem criada
uma combinação de tempos históricos
pelas políticas neoliberais” (Boaventura de
e vivências diferentes e aberturas que
Sousa Santos, 2002, p. 375).
complexificam significativamente o
devir de um coletivo.
Assim, territórios locais e suas
significativas produções e políticas de
O que caracteriza os movimentos
cultura poderão ser vistos como expressão
ativistas culturais e as iniciativas de
maior da organização coletiva, como
ações de cidadania é a estrutura em
afirmação cada vez mais contundente de
redes abertas e flexíveis. Nesses valores
um terreno privilegiado de inovações das
de solidariedade da cultura comunitária,
produções alternativas de base popular
a ação cultural é tão importante quanto
e de políticas culturais carregadas de
o ativismo político e a ajuda econômica.
identidades, saberes, memórias e riquezas
A enormidade dos eventos imbuídos
históricas.
nas tradições e manifestações aflora
sentimentos de solidariedade,
pertença e identidade. São produções [Emilena Sousa dos Santos]
e iniciativas realizadas, em grande Doutoranda em Cultura e Sociedade - UFBA.
parte, sem a cooperação do governo, Mestre em Estudos Étnicos e Africanos - UFBA.
Bacharel em Relações Públicas - UNIFACS.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIZPE, Lourdes; NALDA, Enrique. Cultura, patrimônio e turismo. In: CANCLINI, Néstor
García. Culturas da Ibero-América: diagnósticos e propostas para seu desenvolvimento.
São Paulo: Moderna, 2003.

BARBALHO, Alexandre. Políticas culturais no Brasil: identidade e diversidade sem


diferença. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BARBALHO, Alexandre (Orgs), Políticas
culturais no Brasil. Coleção CULT: Salvador: EDUFBA, 2007.

____________________. A política cultural segundo Celso Furtado. In: BARBALHO,


Alexandre; CALABRE, Lia; MIGUEZ, Paulo e ROCHA, Renata (Orgs), Cultura e
Desenvolvimento: perspectivas políticas e econômicas. Salvador: EDUFBA, 2011.

_____________________. Por um conceito de política cultural, (2007).

BOBBIO, Noberto et. al. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
13ª ed. Vols. 1 e 2, 2010.

BORDENAVE, Juan E. Díaz. O que é participação. Coleção Primeiros Passos 95. Editora
Brasiliense. São Paulo, 2013.

BOTELHO, Isaura. Políticas culturais: discutindo pressupostos. In: NUSSBAUMER,


Gisele Marchiori (Org.), Teorias e políticas da cultura: visões multidisciplinares. Salvador:
EDUFBA, 2007.
_________________. A política cultural e o plano das ideias. In: RUBIM, Antonio Albino
Canelas e BARBALHO, Alexandre (Orgs.), Políticas culturais no Brasil. Coleção CULT.
Salvador: EDUFBA, 2007.

CALABRE, Lia. Gestão cultural municipal na contemporaneidade. In: políticas culturais:


reflexões e ações. São Paulo: Itaú Cultural. Rio de Janeiro: FCRB, 2009, 80-91.

______________. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. III Encontro de


Estudos Multidisciplinares em cultura. Salvador, 2007.

______________. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de
Janeiro. Editora FGV, 2009.

CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da


modernidade. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

_______________________. Políticas culturales y crisis de desarrolo: un balance


latinoamericano. In: Políticas culturales en América Latina, México, D. F.: Grijalbo, 1987.
p. 13-61.

CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 7ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.
COELHO, Teixeira. Dicinário crítico de política cultural. 2ª ed. Revista e ampliada. São
Paulo: Iluminuras, 2012.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. 2ª ed. Coleção Cultura é o que? Vol. I. Salvador:
Secretaria de Cultura, Fundação Pedro Calmon, 2009.

COELHO, Teixeira. Dicinário crítico de política cultural. 2ª ed. Revista e ampliada. São
Paulo: Iluminuras, 2012.

COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo:
Iluminuras, 2008.

CUNHA, Antonio Geraldo da. 1924-1999. Dicionário etimológico da língua portuguesa.


4ª Ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.

EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa.


8ª Ed. Curitiba: Positivo, 2010.

FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1984.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar,


1986.

LEITÃO, Cláudia. Cultura e municipalização. Salvador: Secretaria de Cultura, Fundação


Pedro Calmon, 2009.

MILLER, Toby; YÚDICE, George. Política Cultural. Serie Cultura - Gedisa Editorial
Espanha, 2004. p.11-53.

PORTO, Marta. Cultura e desenvolvimento em um quadro de desigualdades. Salvador:


Secretaria de Cultura, Fundação Pedro Calmon, 2009.

____________. Cultura para a política cultural. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e
BARBALHO, Alexandre (Orgs.), Políticas culturais no Brasil. Coleção CULT. Salvador:
EDUFBA, 2007.

RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais: entre o possível e o impossível.


In: Nussbaumer, Gisele Marchiori (Org.), Teorias e políticas da cultura: visões
multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007.

___________________________. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições,


enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BARBALHO, Alexandre.
Políticas culturais no Brasil. Coleção CULT. Salvador: EDUFBA, 2007.
_____________________________. Políticas culturais na Bahia contemporânea.
Coleção CULT, Salvador: EDUFBA, 2014.

RUBIM, Linda; BARBALHO, Alexandre, et. al. Organização e produção da cultura.


Salvador: EDUFBA/FACOM/CULT, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia


participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002a.

TORRES, Carlos Alberto. Democracia, educação e multiculturalismo: dilemas da


cidadania em um mundo globalizado. Petropolis, RJ: Vozes, 2001. p. 117-194.

YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. 2ª ed. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013.

You might also like